BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social (Capítulo)

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  • 8/11/2019 BACZKO, Bronislaw. Imaginao Social (Captulo).

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    Baczko, Bronislaw. A imaginao social In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem.Lisboa,Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

    IMAGINAO SOCIAL

    Est na moda associar a imaginao e a poltica, o imaginrio e o social. Estas

    associaes e os problemas que elas traduzem tem feito uma carreira rpida e brilhante, quernos discursos polticos e ideolgicos, quer-nos das cincias humanas.Qual o partido que no se reclama hoje da imaginao poltica e social

    de que d provas? A imaginao prpria exaltada, enquanto denunciada a suaausncia ou a sua mediocridade nos adversrios. Os meios de comunicao de massacontriburam de maneira particular para a inflao destes termos. No pram de repetirque preciso imaginao social para controlar o futuro, para enfrentar problemas econflitos inditos, para se adaptar ao choque do futuro, etc. Os actores polticos, emespecial os chefes, so julgados no s pelas suas competncias, mas tambm pelaimaginao poltica e social que lhes atribuda ou recusada.

    O discurso contestatrio do ano de 1968 um exemplo flagrante desta deslocaoda imaginao no campo discursivo. Lembramo-nos ainda das inscries que ornavam asparedes de Paris: A imaginao no podem; Sejamos realistas, exijamos o impossvel.Aquilo que chama a ateno nestes slogans no apenas um deslize semntico, que no

    nos deve admirar se tivermos em conta a histria desta palavra cuja polissemia notria.A associao entre imaginao e poder continha algo de paradoxal, ou mesmo deprovocatrio, na medida em que um termo, cuja acepo corrente designava uma faculdadeprodutora de iluses, sonhos e smbolos, e que pertencia sobretudo ao domnio das artes,irrompia agora num terreno reservado as coisas srias e reais. Do mesmo passo, estesslogans elevavam a prpria imaginao ao nvel de um smbolo. Em 1968, o termofunciona como elemento importante de um dispositivo simblico, atravs do qual um certomovimento de massas procura dar-se a si prprio identidade e coerncia, permitindoreconhecer e designar as suas recusas bem como as suas expectativas. Maissurpreendente que as referencias a imaginao ocupem lugar to importante na mitologiaproduzida pelos acontecimentos de Maio de 1968. Nos testemunhos e memrias, Maio de68 frequentemente evocado como um tempo' de exploso do imaginrio, como airrupo da imaginao na praa pblica. Pouco importa saber se Maio de 68foi realmentemuito imaginativo: nas mentalidades, a mitologia que nasce a partir de determinadoacontecimento sobreleva em importncia o prprio acontecimento. A mitologia de Maio de68, sobretudo quando vivida de modo nostlgico, amplifica ainda mais o simbolismo de quea imaginao foi carregada. Este simbolismo concentra numa totalidade a recordao deter vivido um sentimento de libertao relativamente a pesados constrangimentosquotidianos,

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    bem como as expectativas, muitas vezes latentes e imprecisas, de que essa ruptura seperpetuasse em situao normal, no-imaginativa.

    Se nos virarmos para as cincias humanas, fcil verificar que aimaginao, acompanhada pelos adjectivos social ou colectiva, ganhou tambm

    terreno no respectivo campo discursivo e que o estudo dos imaginrios sociais setornou um tema na moda. As cincias humanas mostravam porm que, contrariamenteaos slogans que pediam a imaginao ao poder, esta sempre tinha estado nopoder. O paradoxo apenas aparente. Os slogans exaltavam somente as funescriadoras da imaginao e, ao investirem o termo com funes simblicas,concentravam nele as aspiraes a uma vida social diferente, outra. Os antroplogos eos socilogos, os historiadores e os psiclogos comearam a reconhecer, seno adescobrir, as funes mltiplas e complexas que competem ao imaginrio na vidacolectiva e, em especial, no exerccio do poder. As cincias humanas punhamem destaque o facto de qualquer poder, designadamente o poder poltico, serodear de representaes colectivas. Para tal poder, o domnio do imaginrio e dosimblico um importante lugar estratgico.

    Contudo, no era possvel insistir nas mltiplas funes do imaginrio na vidasocial sem pr em causa uma certa tradio intelectual. Foi sobretudo na segunda

    metade do sculo XIX que se afirmaram correntes do pensamento que aceitavamcomo evidencias afirmaes do gnero: No so as idias que fazem a histria. Ahistria verdadeira e real dos homens est para alm das representaes que estes tmde si prprios e para alm das suas crenas, mitos e iluses. Tratava-se, pois,de uma tendncia cienti sta e realista que pretendia separar na tramahistrica,-nas aces e comportamentos dos agentes sociais, o verdadeiro e o realdaquilo que era ilusrio e quimrico. A operao cientfica era assimconcebida como uma operao de desvendamento e de desmistificao.Retrospectivamente, h dois elementos prprios a esta abordagem que chamamem especial a nossa ateno. Em primeiro lugar, a confuso entre a operaocientfica propriamente dita e o objecto que ela inconscientemente constri. certo que s h cincia daquilo que est escondido e, neste sentido, toda a cincia desvendante. Todavia, na ptica cientista, a parte escondida do imaginrio socialno se encontrava nas estruturas que o organizam, nem nos seus modos de

    funcionamento especficos. Por detrs dos imaginrios, procura-vam-se os agentessociais, por assim dizer, no seu estado de nudez, despojados das suas mscaras, dassuas roupagens, dos seus sonhos e representaes, etc. Ora, a abordagem cientista noobservava realmente esses agentes sociais desnudados; era ela que osconstrua. Existiriam eles, alis, fora da finalidade que se propunha a prpriaabordagem cientista? singular, tambm, que a tendncia para reduzir o imaginrio aum real deformado se impusesse ao esprito numa poca em que a produo deideologias e mitos polticos modernos se tornava particularmente intensa, implicandodesse modo a renovao do imaginrio colectivo tradicional, bem como os seus modosde difuso. A construo de objectos como o homem real e os grupos sociaisverdadeiros, isto , despojados do seu imaginrio, conjuga-va-se perfeitamentecom o sonho colectivo de uma sociedade e de uma histria finalmentetransparentes para os homens que as constituem. Esta conjuno, que s a primeiravista pode parecer paradoxal, particularmente ntida no caso do marxismo, aoqual teremos oportunidade de voltar adiante.

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    Quanto mais no seja pela sua repetio, os lugares-comuns impoem-se comooutras tantas evidencias. A carreira recente dos termos que nos interessam aqui estsem dvida ligada ao facto de terem sido postas em causa certas evidencias,Ser que amoda vai durar muito tempo? Tratar-se- apenas de uma moda? demasiado arriscado

    avanar um prognstico. Qualquer moda , por definio, um fenmeno passageiro.Pode muito bem acontecer que a promoo simultnea da imaginao social - isto ,da palavra e das idias muito diferentes que evoca em vrios campos discursivosresulte apenas de um concurso de circunstncias. certo que no himpermeabilidade entre saber e mentalidades. Contudo, cada um dos domnios evoluisegundo o seu ritmo prprio, sendo cada um deles trabalhado pelas suas foras etendncias. Aquilo que constitui actualmente um lugar de encontro pode amanhatransformar-se numa encruzilhada de que partem caminhos divergentes. Mas tambmpode acontecer que uma modalidade terminolgica corresponda a um ndice revelador dealteraes profundas que se esto a operar no campo do saber e/ou das mentalidades. Ahistria das palavras tem conhecido pocas em que elas sofrem viragens, mudando designificados e deslocando-se da periferia para o centro de um campodiscursivo. No est pois excludo que seja este o caso da imaginao edo imaginrio, no discurso actual das cincias humanas. Com efeito, de sublinhar

    que, naquele discurso, o imaginrio se dissocia cada vez mais de significadostradicionais, tais como 'ilusrio' ou 'quimrico. tambm de assinalar que os termos'imaginao' e 'imaginrio' sejam cada vez mais utilizados fora do domnio a quetradicionalmente o seu uso se limitava, como seja o das belas-artes.

    Seja qual for o futuro prometido ao conjunto semntico da imaginao, a suahistria recente revela uma problemtica que se procura e define para l das flutuaese ambigidades semnticas. O imaginrio social cada vez menos consideradocomo uma espcie de ornamento de uma vida material considerada como a nicareal. Em contrapartida, as cincias humanas tend em cad a vez mais a considera rque os siste mas de imag inri os socia is s so irreais quando, precisamente,colocados entre aspas. banal, por exemplo, verificar que os percursosimaginados pelos agentes s ociais para si prprios e para os seus adversrios sraramente se cumprem. A posteriori, os prprios agentes ficam muitas vezessurpreendidos com os resultados das suas aces. Este desfasamento nada tira, porm,

    as funes reais desses percursos imaginrios. Pelo contrrio, apenas as pe em realce(no discutire-mos aqui nem os limites nem as deficincias da previso: trata-se de outroproblema).

    Em qualquer conflito social grave-uma guerra, uma revoluo - no seroas imagens exaltantes e magnificentes dos objectivos a atingir e dos frutos da vitriaprocurada uma condio de possibilidade da prpria aco das foras em presena?Como que se podem separar, neste tipo de conflitos, os agentes e os seus actos dasimagens que aqueles tm de si prprios e dos inimigos, sejam estes inimigos de classe,religio, raa, nacionalidade, etc.? No so as aces efectivamente guiadas por estasrepresentaes; no modelam elas os comportamentos; no mobilizam elas asenergias; no legitimam elas as violncias? Evoquemos sumariamente outroexemplo. No ser que o imaginrio colectivo intervm em qualquer exerccio dopoder e, designadamente, do poder poltico? Exercer um poder simblico no consiste

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    meramente em acrescentar o ilusrio a uma potencia real, mas sim em duplicar e reforara dominao efetiva pela apropriao dos smbolos e garantir a obedincia pelaconjugao das relaes de sentido e poderio. Os bens simblicos, que qualquersociedade fabrica, nada tem de irrisrio e no existem, efectivamente, em quantidadeilimitada. Alguns deles so particularmente raros e preciosos. A prova disso queconstituem o objecto de lutas e conflitos encarniados e que qualquer poder impe

    uma hierarquia entre eles, procurando monopolizar certas categorias de smbolos econtrolar as outras. Os dispositivos de represso que os poderes constitudos pemde p, a fim de preservarem o lugar privilegiado que a si prprios se atribuem nocampo simblico, provam, se necessrio fosse, o carcter decerto imaginrio, masde modo algum ilusrio, dos bens assim protegidos, tais como os emblemas dopoder, os monumentos erigidos em sua glria, o carisma do chefe, etc. Limitmo-nos a lembrar alguns exemplos de uma problemtica. Antes, porm, de a abordar demodo mais sistemtico, no talvez intil que nos interroguemos sobre a sua histria.

    1. Elementos para uma histria

    Tratar-se- de uma problemtica verdadeiramente nova ou, antes, da renovaode problemas bastante antigos? A resposta no pode deixar de sermatizada. Ao instalar-se, qualquer novo campo de pesquisas constitui, do mesmopasso, a sua prpria tradio. A ateno que hoje dedicada a certos problemas efenmenos induz a busca, no passado, das observaes, intuies e interrogaes queeles suscitaram anteriormente. A existncia e as mltiplas funes dos imaginriossociais no deixaram de ser observadas por todos aqueles que se interrogavam acercados mecanismos e estruturas da vida social e, nomeadamente, por aqueles queverificavam a interveno efetiva e eficaz das representaes e smbolos nasprticas colectivas, bem como na sua direco e or ientao. A hi stria destasobservaes, intuies e esboos de teoria est ainda por fazer a partir de umareleitura de textos muito diversos: filosofia e moral, retrica e antropologia,etc. Com efeito, foi muitas vezes nos confins de discursos tradicionalmente isoladosuns dos outros que surgiram os problemas mais interessantes do nosso ponto devista. Releitura de textos, pois, mas tambm interpelaes de um certo savoir faire

    passado.O savoir faire, a elaborao e aprendizagem das prticas e tcnicas demanejamento dos imaginrios sociais, tem prioridade sobre qualquer reflexo terica.Malinowski reconhece, em cada corpus de mitos, o equivalente a um verdadeiromapa social que representa e legitima eficazmente a formao existente, com o seusistema de distribuio do poder, dos privilgios, do prestgio e da propriedade [cf.Malinowski 1936; Balandier 1976]. Ora, ao produzir um sistema de representaesque simultaneamente traduz e legtima a sua ordem, qualquer sociedade instala tambmguardies do sistema que dispem de uma certa tcnica de manejo dasrepresentaes e smbolos. E certo que devemos ter cuidado ao aplicar um vocabulriomoderno as sociedades primitivas, designadamente as que no conhecem um poderestatal. Nestes casos, tanto o imaginrio social como as tcnicas do seu uso soproduzidos espontaneamente, confundindo-se com os mitos e os ritos.

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    Do mesmo modo, os guardies do imaginrio social so, simultaneamente, guardiesdo sagrado. A margem de liberdade e inovao na produo de todas as representaescolectivas, em especial na dos imaginrios sociais, particularmente restrita. Osimbolismo da ordem social, da dominao e submisso, das hierarquias e privilgios,etc., quantitativamente limitado, ao mesmo tempo que se caracteriza por umafixidez notvel. Por fim, tambm as tcnicas de manejo destes smbolos seconfundem com a prtica de ritos que reproduzem o fundo mtico, tratando-se tantode tcnicas corporais como da arte e da lngua [cf., por exemplo, Mauss 1934; Heusch1964]. S com a instalao do poder estatal, nomeadamente o poder centralizado,e com a relativa autonomia a que acede o domnio poltico, que as tcnicas de manejodos imaginrios sociais se desritualizam, ganhando em autonomia ediferenciao. No decurso do longo caminho histrico que conduz dos mitos comimplicaes ideolgicas as ideologias que escondiam uma parte dos mitos seculares,formou-se progressivamente uma atitude instrumental e utilitria perante osimaginrios sociais. As situaes conflituais entre poderes concorrentes estimulavam ainveno de novas tcnicas de combate no domnio do imaginrio. Por um lado,estas visavam a constituio de uma imagem desvalorizada do adversrio,procurando em especial invalidar a sua legitimidade; por outro lado, exaltavam

    atravs de representaes engrandecedoras o poder cuja causa defendiam e para oqual pretendiam obter o maior nmero de adeses (assim sucedeu, por exemplo, noconflito entre a realeza e o papado [cf. Bloch 1924; Lagarde 1934]). A Inveno denovas tcnicas, bem como o seu refinamento e diferenciao, implicavam apassagem de um simples manejo dos imaginrios sociais a sua manipulao cada vezmais sofisticada e especializada. A partir desse momento, a histria do savoir-faire nodomnio dos imaginrios sociais confunde-se em grande parte com a histria dapropaganda, isto , a evoluo das suas tcnicas e instituies, a formao do seupessoal, etc., campo este que continua ainda mal estudado [cf. Ellul 1967]. Odesabrochar das tcnicas de propaganda nos tempos modernos e a importncia cada vezmaior que esta ganhava no conjunto da vida pblica estimularam consideravelmente areflexo terica e sistemtica. Todavia, s no decurso do ltimo meio sculo que osavoir faire e as tcnicas mais ou menos artesanais da propaganda acederam ao nvel dacientificidade, problema ao qual teremos oportunidade de voltar mais adiante.

    Evoquemos, antes disso, alguns pontos de referencia que marcam as rupturas maissignificativas na histria dos discursos de algum modo sistematizados sobre oimaginrio social [cf. Ansart 1977].

    Plato e Aristteles traduzem, cada um a sua maneira, a experincia,adquirida na polir ateniense, de um universo de debates, de inverses de atitudeprovocadas pelo poder do verbo e pela sua capacidade de influenciar as decises eprticas colectivas. Com o advento da democracia, a assemblia deixa de ser um lugaronde se exercem os ritos e onde so reproduzidos os mitos, para se tornar numlugar de deliberao e confronto de rivais que visam tanto o poder efectivo como ocontrolo dos smbolos. Plato, se bem que denunciando estas novas formas de vidacolectiva, pe em realce as funes dos imaginrios sociais veiculados pelo mito.Este ltimo, embora no seja mais do que uma iluso, assegura a coeso social aolegitimar em especial as hierarquias sociais rigorosamente definidas. Quanto aAristteles, passa sistematicamente em revista as tcnicas de argumentao e

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    (Retrica), realando a influencia exercida pelo discurso sobre as almas e,nomeadamente, sobre a imaginao e os juzos de valor [cf. Finley 1965].

    Maquiavel [1513; 1513-19], conquanto inspirando-se na tradio antiga,retoma amplamente a experincia da propaganda real contra o poder eclesistico(especialmente o dos legistas) e da elabora a sua teoria. A famosa frase:Governar fazer crer pe em destaque as relaes ntimas entre o poder e oimaginrio, ao mesmo tempo que resume uma atitude tcnico-instrumental

    perante as crenas e o seu simbolismo, em especial perante a religio.Encontramos em Maquiavel toda uma teoria das aparncias de que o poder serodeia e que correspondem a outros tantos instrumentos de dominao simblica. Asaparncias fixam as esperanas do povo no Prncipe, permitindo mobilizar eaumentar a energia daquele, fazer medo aos adversrios, etc. O Prncipe,rodeando-se dos sinais do seu prprio prestgio e manipulando habilmente toda aespcie de iluses (smbolos, festas, etc), pode desviar em seu proveito ascrenas religiosas e impor aos seus sbditos o dispositivo simblico de queretira o prestgio da sua prpria imagem.

    Quando as antigas legitimidades foram postas em causa e dessacralizadas nosculo XVIII, criou-se a necessidade de pensar e imaginar novos objectivoslegtimos, assim como os meios de os inculcar nas mentalidades. A atitudetcnico-instrumental perante os imaginrios sociais alimentava-se muito da crticaracionalista contra a Igreja. Esta apenas teria conseguido implantar os preconceitose o fanatismo nos espritos graas a fraude e a manipula o pa rt ic ul ar ment ehbil das palavras, signos, cerimnias, etc. Esta crtica aplicava-setambm, e cada vez mais, ao poder monrquico absoluto, bem como aouniverso simblico que o rodeava. Simultaneamente, o pensamento polticoe social das Luzes interrogava-se acerca do problema mais geral do papel doimaginrio na vida colectiva. A atitude tcnico-instrumental prolonga-se atravsde teorias que concebem o imaginrio como um artifcio arbitrariamentefabricado e manipulvel at ao infinito. Da a idia de colocar o imaginrio aoservio da razo manipuladora. Da, tambm, a idia de dar batalha aospreconceitos e ao despotismo no terreno que eles haviam aambarcado. Pensa-se ento em fabricar um contra-imaginrio, arma de combate, mas tambminstrumento de educao destinado a inculcar no esprito do povo novos valores enovos modelos formadores. assim, por exemplo, que Rousseau [1762]

    procede a uma re flexo sistemtica sobre a linguagem dos signos, quefalariam mostrando e que teriam, deste modo, uma influencia muito especial sobre aimaginao. Ora, prprio desta ltima transportar o homem para fora de siprprio. Nenhuma relao social e, por maioria de razo, nenhuma instituiopoltica so possveis sem que o homem prolongue a sua existncia atravs dasimagens que tem de si prprio e de outrem. O princpio que leva o homem a agir ocorao, so as suas paixes e os seus desejos. A imaginao a faculdadeespecfica em cujo lume as paixes se acendem, sendo a ela, precisamente,que se dirige a linguagem enrgica dos smbolos e dos emblemas. Rousseau esboauma teoria da utilizao desta linguagem no mbito de um sistema de educaopblica cuja pedra angular constituda pelos ritos e pelas festas cvicas. desse modoque se prope instalar, no corao da vida colectiva, um imaginrio especificamentepoltico, que traduziria os princpios legitimadores do poder justo do povo soberano edos modelos formadores do cidado virtuoso [cf. Baczko 1964].

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    Durante a Revoluo Francesa, o combate pelo domnio simblico traduziu-se,entre outros factos, pela batalha encarniada contra os smbolos do Ancien Rgime.Um ensaio de teorizao acompanhou essas prticas as quais voltaremos adiante.Mirabeau foi um dos primeiros, com a sua habitual intuio poltica, a captar anovidade do problema, concebendo o objectivo segundo uma frmula que chama a

    ateno pela sua inovao. Apoiando-se em toda uma antropologia poltica efilosfica, ele exige que o novo poder se apodere da imaginao. O homem,na sua qualidade de ser sensvel, muito menos guiado por princpios generososdo que por objectos imponentes, imagens chamativas, grandes espectculos,emoes fortes. Sendo esta nova considerao rigorosamente aplicvel aosindivduos, - o ainda mais as naes encaradas no seu conjunto. Assim, o poderdeve apoderar-se do controlo dos meios que formam e guiam a imaginaocolectiva. A fim de impregnar as mentalidades com novos valores e fortalecer asua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizar um simbolismoe um ritual novos [Mirabeau 1791]. As experincias revolucionriasencontram os seus prolongamentos, por um lado, nas tcnicas da propagandanapolenica e, por outro, nas reflexes dos idelogos (Destutt de Tracy, Cabanis),que se propem explorar sistematicamente o universo simblico e pr emevidenc ia as leis que o regem.

    A primeira metade do sculo XIX abunda em idias e sugestes sobre aimaginao em geral e as suas funes sociais em particular. Areformulao da problemtica impunha-se sob o impacto dos factosrevolucionrios e da mitologia colectiva que aqueles haviam produzido, bem comoda evidenciao da luta entre as classes sociais, cuja presena se faz sentir nosgrandes enfrentamentos polticos, e ainda sob o impacto da produo acelerada deideologias que caracteriza o perodo em questo. As idias e as prticas orientam-senas direces mais diversas, seno opostas, contribuindo em conjunto para alargaro campo das interrogaes e das reflexes. Podemos extrair algumas tendnciasgerais, correndo naturalmente os riscos inevitveis de uma esquematizaoexcessiva.

    Nos conflitos sociais e polticos da poca, uma responsabilidade cada vez maiorvem a caber a interveno activa de grandes formaes ideolgicas modernas

    (liberalismo, democracia, socialismo, etc.). O prprio termo 'ideologia', de origemrecentssima, adquire o seu sentido contemporneo por volta de 1850. Os debatesideolgicos, incidindo designadamente sobre a legitimidade da ordem socialestabelecida, a qual se opem outras ordens possveis e imaginveis, pem emdestaque as relaes to ntimas quanto complexas que ligam os imaginriosaos interesses e reivindicaes de grupos sociais antagonistas. O desabrochardas utopias de tendncia socialista (o saint-simonismo, o fourierismo, oproudhonismo) levanta o problema das relaes entre a apario de uma nova classee a produo de imaginrios colectivos. Os novos sonhos sociais soconsiderados, por uns, como outras tantas antecipaes do futuro, inscritasnuma evoluo histrica inexorvel, e por outros, em contrapartida, comoquimeras particularmente perigosas para a ordem social devido a sua incontestvelfora de seduo. Uma e outra ptica coincidem, contudo, quanto a valorizao dopeso do imaginrio sobre as prticas colectivas. Os sistemas utpicos oferecem,

    alis, prolongamentos, por vezes paradoxais e surpreendentes, a atitude tcnico-instrumental perante a imaginao social. H quem pense, como Fourierpo r exemplo, em

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    mediante a produo das iluses; e por outro lado, descobrir os determinismos scio-culturais atravs de cujo jogo os homens confundem o real e o imaginrio nos seusmitos e preconceitos, crenas e prticas. O evolucionismo impregnado deeurocentrismo incitava a situar as pocas e os povos, onde tais confusessobrelevam os conhecimentos positivos, nos estdios menos civilizados daevoluo humana. O impacto dos imaginrios sobre os comportamentos dos

    agentes sociais explicar-se-ia apenas pela ausncia ou insuficincia dos seusconhecimentos positivos.A obra de Marx, conquanto alimentando-se das idias que proliferam em

    meados do sculo XIX, marca um dos momentos mais significativos no estudo dosimaginrios sociais. A contribuio de Marx resume-se, sumaria-mente exposta, adois pontos: a elaborao de um esquema global de interpretao dos imaginriossociais a partir da anlise das ideologias; o estudo dos casos concretos que, emboraaplicando aquele esquema, o tornam mais matizado e malevel. No necessrioexpor aqui esse esquema global, que corresponde, no fundo, ao do materialismohistrico. Bastar-nos- lembrar que, para Marx, a ideologia, em sentido lato (emboraMarx chegue a hesitar sobre a definio desse termo ao qual conferiu o seusignificado moderno), engloba as representaes que uma classe social d de siprpria, das suas relaes com as classes suas antagonistas e da estrutura global dasociedade. atravs das suas representaes ideolgicas que uma classe exprime as

    suas aspiraes, justifica moral e juridicamente os seus objectivos, concebe opassado e imagina o futuro. A luta das classes passa necessariamente pelo campoideolgico. Em cada formao social, as representaes ideolgicas da classedominante constituem, tambm, a ideologia dominante, no sentido em queesta veiculada e imposta por instituies tais como o Estado, a Igreja, o ensino,etc. A classe dominada s pode opor-se a classe dominante produzindo a suaprpria ideologia, elemento indispensvel da sua tomada de conscincia. A ideologiaassume, assim, uma dupla funo: por um lado, exprime e traduz a situao e osinteresses de uma classe, mas, por outro lado, isso s pode fazer-se deformando eocultando as relaes reais entre as classes e, nomeadamente, as relaes deproduo, que constituem, precisa-mente, o objecto da luta de classes. Factor realdos conflitos sociais, a ideologia no opera seno atravs do irreal, que so asrepresentaes que ela faz intervir. As estruturas e as funes das ideologiasmudam consoante o contexto histrico em que se inscrevem. assim que a burguesia,na sua fase ascendente, se serve da ideologia para denunciar a ordem feudal, revelar ocarcter de classe do Estado feudal, atacar a sociedade que dele deriva e o seusistema de valores, etc. Uma vez chegada ao poder, a ideologia da burguesiadissimula as relaes de dominao e de explorao capitalista,apresentando o Estado burgus como a expresso do interesse geral e apropriedade privada dos meios de produo como fundamento e smbolo,simultaneamente, da justia, igualdade, etc. Assim, cada classe social , ao mesmotempo, produtora e prisioneira da sua ideologia. Esta impoe-se necessariamentecomo esquema interpretativo global das realidades sociais. O advento da classeoperria assinala uma ruptura na histria das ideologias. A tomada de conscincia, porparte da classe operria, implica no s um combate contra a fora da ideologiaburguesa, mas tambm, e sobretudo, a desmontagem de todo e qualquerdispositivo ideolgico, bem como dos seus modos de produo e

    funcionamento. Devido ao seu lugar nas relaes de produo capita-

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    necessrias ao consenso social. Qualquer sociedade capaz de se erigir em deus ou decriar deuses, isto , produzir representaes carregadas de sagrado. Na poca moderna,as crenas e expectativas propriamente polticas sofrem transformaes simblicasanlogas. A Revoluo Francesa, em particular, constitui um exemplo notvel da

    instalao de um novo imaginrio social que, atravs dos seus smbolos, cultos eritos, simultaneamente traduz e guia o fervor colectivo, ao mesmo tempo queconsolida o novo consenso estabelecido com base numa nova organizao social. (Assugestes de Durkheim foram retomadas por Mathiez [1904] nos seus estudossobre o simbolismo e os cultos revolucionrios, questes estas as quais teremosoportunidade de voltar mais a frente).

    Os princpios metodolgicos de Max Weber [cf., em particular, 1904-905] e assuas aplicaes ao estudo de casos especficos sugerem outras abordagens dosimaginrios colectivos. A estrutura inteligvel de toda a actividadehumana provm do facto de os agentes sociais visarem um sentido na suaconduta, regulando os seus comportamentos recprocos em funo desse. O socialproduz-se atravs de uma rede de sentidos, de marcos de referencia simblicos pormeio dos quais os homens comunicam, se dotam de uma identidade colectiva edesignam as suas relaes com as instituies polticas, etc. A vida social

    produtora de valores e normas e, ao mesmo tempo, de sistemas de representaesque as fixam e traduzem. Assim se define um cdigo colectivo segundo o qual seexprimem as necessidades e as expectativas, as esperanas e as angstias dosagentes sociais. Por outras palavras, as relaes sociais nunca se reduzem aos seuscomponentes fsicos e materiais. Do mesmo modo, as relaes polticas, enquantodominao dos homens por outros homens, no se reduzem a simples relaes defora e de poderio. Os trs tipos de dominao poltica enunciados por Weber, asaber, a dominao tradicional, a carismtica e a burocrtica, exercem-se atravs dediferentes sistemas de representaes colectivas nos quais se fundamenta alegitimidade dos respectivos poderes. Do mesmo passo, estes sistemas regulam eorientam eficazmente as atitudes e comportamentos de obedincia, ao mesmotempo que motivam os dominados no sentido de obedecerem ao poder. O pesodas representaes e dos smbolos varia de um tipo de poder para o outro. Porexemplo, esse peso particularmente importante no exerccio do podercarismtico. O sistema simblico instalado pelos agentes sociais d lugar,frequentemente, a conseqncias imprevistas pelos criadores de tal simbolismo. Oestudo das relaes entre a tica protestante e o esprito do capitalismo mostra,por exemplo, como um sistema de representaes religiosas , que de fine ascondies de salvao da alma, leva os actores sociais a comportarem-sesegundo novas exigncias solidrias com as estruturas econmicas capitalistas. Acompreenso das estruturas inteligveis das actividades sociais passa, pois,necessariamente, pela reconstruo do sistema de representaes que a intervm,bem como pela anlise das suas combinaes e funcionamento.

    As idias de Marx, Durkheim e Weber definem aquilo a que podemos dar onome de campo clssico das pesquisas sobre os imaginrios sociais. Oscontributos recentes no se limitaram a alarg-lo, tendo alterado esse campo demodo mais ou menos profundo. A psicanlise ps em evidencia que a

    imaginao no uma faculdade, nem um poder psicolgico autnomo, massim uma actividade global do sujeito para organizar um mundo ajustado

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    as suas necessidades e aos seus conflitos. No domnio social, as produesimaginrias, em particular os mitos, constituem outras tantas respostas dadas pelassociedades aos seus desequilbrios, as tenses no interior das estruturas sociais e aseventuais ameaas de violncia. A antropologia estrutural ps em destaque o factode qualquer cultura poder ser considerada um conjunto de sistemas simblicos e de

    todos estes sistemas procurarem exprimir certos aspectos da realidade fsica e darealidade social; e, mais ainda, as relaes que estes dois tipos de realidades mantmentre si, bem como aquelas que os sistemas simblicos tecem entre eles. Aantropologia poltica sublinhou as relaes entre sentido e poderio, entre sistemassimblicos e estruturas de dominao. A histria das mentalidades, na esteira da escolados Annales, ps em relevo a longa durao em que a imaginao social opera, assimcomo o peso da inrcia dos imaginrios nos comporta-mentos econmicos,demogrficos, etc., bem como a especificidade dos perodos quentes em que aproduo dos imaginrios se acelera e intensifica. Last but not least, as pesquisassobre a propaganda mostraram os meios tcnicos e cientficos de que as sociedadescontemporneas dispem no domnio da produo e manipulao dosimaginrios sociais. Os poderes que conseguem garantir o controlo, seno omonoplio, destes meios apropriam-se assim de uma arma tanto mais temvelquanto mais sofisticada. difcil sobrestimar as possibilidades que se abrem, deste

    modo, as iniciativas de tipo totalitrio que visam anular os valores e modelosformadores diferentes daqueles que o Estado deseja, bem como condicionare manipular as massas, bloqueando a produo e renovao espontneas dosimaginrios sociais.

    2. Marcos para um campo de pesquisas

    Rpido como foi, este sobrevo da histria da problemtica tinha por objectivo,entre outros, fazer ressaltar a complexidade dos problemas que se colocam aoestudo da imaginao social, o seu carcter necessariamente pluridisciplinar e adiversidade das abordagens e tendncias metodolgicas que a se cruzam econtrapem. A ausncia de uma teoria do imaginrio social no pode, portanto,deixar de nos surpreender. As pesquisas partem em diferentes direces. maisfcil verificar a complementaridade das questes que as orientam do que integrarnum conjunto coerente as respostas hipotticas avanadas. O ecletismo quecaracteriza este domnio , talvez, revelador do estado actual das cinciashumanas. certo que no faltam os fundadores de capelas e os pretendentes aottulo de legtimo herdeiro de tal ou tal linha de pensamento. Contudo, osmarxistas de hoje passaram j pela leitura de Weber e os freudianostrabalharam as obras estruturalistas. A poca das ortodoxias parece, pois,ultrapassada; vivemos, muito feliz-mente, na poca das heresias eclticas. Contentarnos erros portanto, nesta parte da nossa exposio, em colocar alguns marcos quebalizam o actual campo de pesquisas. A apresentao de algumas investigaesconcretas - case-studies- tem por objectivo completar o carcter- fatalmente lacunare demasiado abstracto desta parte da exposio.

    Comecemos pela terminologia e, designadamente, pelas palavras-chave:

    'imaginao', 'imaginrio'. Devido, quanto mais no fosse, ao seu passado remoto,estes dois termos esto marcados por uma polissemia notria, seno

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    inevitvel. Remetem, com efeito, para um dado fundamental da condiohumana, e por isso que a sua definio nunca pode ser considerada adquirida.Cada gerao traz consigo uma certa definio do homem, simultaneamentedescritiva e normativa, ao mesmo tempo que se dota, a partir dela, de umadeterminada idia da imaginao, daquilo que ela ou daquilo que deveriaser [para a histria destes conceitos, cf. Starobinski 1970]. O adjectivo socialpoucas precises acrescenta. Com efeito, designa um duplo fenmeno. Por um lado,trata-se da orientao da actividade imaginativa em direco ao social, isto , aproduo de representaes da ordem social, dos actores sociais e das suas relaesrecprocas (hierarquia, dominao, obedincia, conflito, etc), bem como dasinstituies sociais, em particular as que dizem respeito ao exerccio do poder,as imagens do chefe, etc. Por outro lado, o mesmo adjectivo designa aparticipao da actividade imaginativa individual num fenmeno colectivo. Comefeito, todas as pocas tem as suas modalidades especficas de imaginar,reproduzir e renovar o imaginrio, assim como possuem modalidades especficasde acreditar, sentir e pensar. Seria talvez mais operatrio eliminar os termosambguos 'imaginao' e 'imaginrio', que projectam atrs de si a sombra da sua

    longa histria. Todavia, eles esto demasiado enraizados na nossa tradiolingstica e intelectual para que no ressurjam na primeira oportunidade,carregados de novo com conotaes diferentes.

    Conservando, a falta de melhor, estes termos, devemos insistir no facto deos estudos sobre a imaginao social, contrariamente a uma orientaotradicional, no se proporem fixar uma faculdade ou um poder psicolgicoautnomo. Trata-se, sim, de um aspecto da vida social, da actividade globaldos agentes sociais, cujas particularidades se manifestam na diversidade dosseus produtos. Os imaginrios sociais constituem outros tantos pontos dereferencia no vasto sistema simblico que qualquer colectividade produz e atravsda qual, como disse Mauss, ela se percepciona, divide e elabora os seus prpriosobjectivos. assim que, atravs dos seus imaginrios sociais, uma colectividadedesigna a sua identidade; elabora uma certa representao de si; estabelece a

    distribuio dos papis e das posies sociais; exprime e impe crenascomuns; constri uma espcie de cdigo de bom comportamento,designadamente atravs da instalao de modelos formadores tais como o dochefe, o bom sbdito, o guerreiro corajoso, etc. Assim produzida, emespecial, uma representao global e totalizante da sociedade como umaordem em que cada elemento encontra o seu lugar, a sua identidade e a suarazo de ser [cf. Ansart 1974, p. 14]. Porm, designar a identidade colectivacorresponde, do mesmo passo, a delimitar o seu territrio e as suas relaescom o meio ambiente e, designadamente, com os outros; e corresponde ainda aformar as imagens dos inimigos e dos amigos, rivais e aliados, etc. Oimaginrio social elaborado e consolidado por uma colectividade uma dasrespostas que esta d aos seus conflitos, divises e violncias reais oupotenciais. Todas as colectividades tem os seus modos de funcionamentoespecficos a este tipo de representaes. Nomeadamente, elaboram os meios dasua difuso e formam os seus guardies e gestores, em suma, o seupessoal.

    O imaginrio social , deste modo, uma das foras reguladoras da vidacolectiva. As referencias simblicas no se limitam a indicar os indivduos quepertencem a mesma sociedade, mas definem tambm de forma mais ou

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    menos precisa os meios inteligveis das suas relaes com ela, com as divisoesinternas e as instituies sociais, etc. [cf. Gauchet 1977]. O imaginrio social ,pois, uma pea efetiva e eficaz do dispositivo de controlo da vida colectiva e, emespecial, do exerccio da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o

    lugar e o objecto dos conflitos sociais.Com efeito, no prprio centro do imaginrio social que se encontra oproblema do poder legtimo, ou melhor, para ser mais exacto, o problema dalegitimao do poder. Qualquer sociedade precisa de imaginar e inventar alegitimidade que atribui ao poder. Por outras palavras, o poder tem necessariamentede enfrentar o seu arbitrrio e control-lo reivindicando uma legitimidade.Efectivamente, nenhuma cultura e, por conseguinte, nenhum poder podem serdeduzidos de qualquer princpio universal-fsico, biolgico ou espiritual, - vistono estarem ligados por qualquer espcie de relao interna a natureza das coisas oua natureza humana [Bourdieu e Passeron 1970]. Em contrapartida, todo o podertem de se impor no s como poderoso, mas tambm como legtimo. Ora, nalegitimao de um poder, as circunstncias e os acontecimentos que esto na suaorigem contam tanto, ou menos, do que o imaginrio a que do nascimento e de queo poder estabelecido se apropria. As relaes de fora e de poder que toda a dominao

    comporta, acrescentam-se assim as relaes de sentido. Qualquer instituio social,designadamente as instituies polticas, participa assim de um universo simblico que aenvolve e constitui o seu quadro de funcionamento.

    Como j indicamos, os bens simblicos que as sociedades produzem no soilimitados. Ora, a legitimidade do poder um bem particularmente raro easperamente disputado. Constitui, muito em especial, o objecto dos conflitos e lutasentre dominantes e dominados. O poder estabelecido protege a sua legitimidade contraaqueles que a atacam, quanto mais no seja pondo-a em dvida. Imaginar umacontr a-leg itimi dade, um pod er fun dado numa l egit imidade diferente daquelaque se reclama a dominao estabelecida, um elemento essencial do acto de prem causa a legitimidade do poder. Estes conflitos s so imaginrios no sentido emque tem por objecto o imaginrio social, ou seja, as relaes de fora no domnio doimaginrio colectivo, e em que exigem a elaborao de estratgias adaptadas asmodalidades especficas desses conflitos. A prova disso, caso seja necessrio d-la, resideno facto de os poderes terem inventado ao longo da histria, a fim de proteger essesbens raros, um conjunto de dispositivos extremamente variados e bem reais deproteco, seno de represso, com vista a assegurar-se do lugar privilegiado nodomnio dos imaginrios sociais. Outra prova o facto de as pocas de crise de umpoder serem tambm aquelas em que se intensifica a produo de imaginrios sociaisconcorrentes e antagonistas, e em que as representaes de uma nova legitimidade ede um futuro diferente proliferam e ganham difuso e agressividade. Consideremosoutra situao. Quando uma colectividade se sente agredida pelo exterior - porexemplo, uma comunidade de tipo tradicional agredida por um poder centralizadomoderno de tipo burocrtico-, ela pe em marcha, como meio de autodefesa, todo oseu dispositivo imaginrio, a fim de mobilizar as energias dos seus membros, unindo eguiando as suas aces. (Voltaremos adiante a estas situaes, que correspondem aoutros tantos cenrios de comportamentos colectivos possveis, com a anlise de alguns

    exemplos concretos).

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    O imaginrio social torna-se inteligvel e comunicvel atravs da produo dosdiscursos nos quais e pelos quais se efectua a reunio das representaescolectivas numa linguagem. Os signos investidos pelo imaginrio correspondem aoutros tantos smbolos. E assim que os imaginrios sociais assentam num

    simbolismo que , simultaneamente, obra e instrumento [cf. Castoriadis 1975;Malrieu 1967]. A construo do smbolo e dos sistemas de smbolos, que se revelamfortemente estruturados e dotados de notvel estabilidade, bem como as relaesentre imaginrio e smbolo, constituem problemas tanto para os psiclogos comopara os socilogos do conhecimento. O smbolo parece ser o intermedirio entre osinal e o signo: concreto como o primeiro; inscrito numa constelao de relaescomo o segundo. O signo objectiva mais do que o smbolo pode faze-lo, e cadasigno est inscrito numa rede de signos, s adquirindo o seu significado em relao aeles. Em contrapartida, o smbolo designa tanto como o objecto as reaces dosujeito perante esse objecto; os sistemas de smbolos no tem a coerncia prpria astotalidades de signos. O processo de significao por meio da projeco , neles,menos controlado; as oposies entre domnios so muito menos precisas do que naslinguagens. A funo do smbolo no apenas instituir uma classificao, mastambm introduzir valores, modelando os comporta-mentos individuais e colectivose indicando as possibilidades de xito dos seus empreendimentos [cf. ibid., pp. 76-128; Berger e Luckmann 1966, pp. 140 ss.].

    Os mais estveis dos smbolos esto ancorados em necessidades profundas eacabam por se tornar uma razo de existir e agir para os indivduos e para os grupossociais. Os sistemas simblicos em que assenta e atravs do qual opera o imaginriosocial so construdos a partir da experincia dos agentes sociais, mas tambm apartir dos seus desejos, aspiraes e motivaes. Qualquer campo de experinciassociais est rodeado por um horizonte de expectativas e de recusas, de temores e deesperanas [cf. Desroche 1973]. O dispositivo imaginrio assegura a um gruposocial quer um esquema colectivo de interpretao das experincias individuais, tocomplexas quanto variadas, quer uma codificao das expectativas e das

    esperanas. Um s e mesmo cdigo permite fazer concordar as expectativasindividuais, exprimir as coincidncias e as contradies entre as experincias e asesperanas, e ainda sustentar os indivduos em aces comuns. Os imaginriossociais fornecem, deste modo, um sistema de orientaes expressivas e afectivasque correspondem a outros tantos esteretipos oferecidos aos agentes sociais: aoindivduo relativamente ao seu grupo social; aos grupos sociais relativamente asociedade global, as suas hierarquias e relaes de dominao, etc.; a sociedadeglobal relativamente aos (

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    que legitimam um poder informam acerca da sua realidade e comprovam-no. Domesmo passo, constituem apelos imperativos ao respeito e a obedincia. Ocontrolo do imaginrio social, da sua reproduo, difuso e manejo, assegura emgraus variveis uma real influencia sobre os comportamentos e as actividadesindividuais e colectivas, permitindo obter os resultados prticos desejados, canalizaras energias e orientar as esperanas. Sendo todas as escolhas sociais resultantes deexperincias e expectativas, de saberes e normas, de informaes e valores, osagentes sociais procuram, sobretudo em situaes de crise e conflito graves, apagaras incertezas que essas escolhas necessariamente comportam. assim que estasescolhas so muitas vezes imaginadas como as nicas possveis e mesmo comoimpostas por um destino inelutvel. Uma das funes dos imaginrios sociaisconsiste na organizao e controlo do tempo colectivo no plano simblico. Essesimaginrios intervem activamente na memria colectiva, para a qual, comodissemos, os acontecimentos contam muitas vezes menos do que asrepresentaes a que do origem e que os enquadram. Os imaginrios sociaisoperam ainda mais vigorosamente, talvez, na produo de vises futuras,designadamente na projeco das angstias, esperanas e sonhos colectivos sobre o

    futuro.Graas a sua estrutura complexa e, em especial, graas ao seu tecido simblico, oimaginrio social intervm a diversos nveis da vida colectiva, realizandosimultaneamente vrias funes em relao aos agentes sociais. O seutrabalho opera atravs de sries de oposies que estruturam as foras afectivasque agem sobre a vida colectiva, unindo-as, por meio de uma rede designificaes, as dimenses intelectuais dessa vida colectiva: legitimar/in-validar;justificar/acusar; tranqilizar/perturbar; mobilizar/desencorajar; incluir/excluir(relativamente ao grupo em causa), etc. Esta enumerao , naturalmente, toabstracta quanto esquemtica. Na realidade, estas oposies raramente estoisoladas, antes se articulam umas com as outras. As suas junes e disjunesefectuam-se segundo diversas modalidades, diferenciadas consoante ascaractersticas especficas de um dado campo social e mental (estruturas sociais,sistemas de poder, intensidade dos conflitos sociais, sistemas de valores

    dominantes e concorrentes, simbolismo e ritual instalado, meios e tcnicas dedifuso das informaes e smbolos, etc.). Seria to prematuro como pretenciosoarriscar, nesta fase da pesquisa, uma tipologia daquelas modalidades. Algunsexemplos de situaes histricas concretas, que examinaremos de seguida, permitir-nos-ao evidenciar a complexidade e diversidade dos problemas que se impem a nossaconsiderao.

    Os imaginrios sociais e os smbolos em que eles assentam fazem parte desistemas complexos e compsitos, tais como, nomeadamente, os mitos,as religies, as utopias e as ideologias. No nos compete analisar aqui a parteque corresponde aos imaginrios sociais nesses sistemas de smbolos,ritos e crenas. Apenas insistimos no facto de os imaginrios sociais no funcionaremisoladamente, entrando, sim, em relaes diferenciadas e variveis com outrostipos de imaginrios e confundindo-se por vezes com eles e com a sua simbologia(por exemplo, a utilizao do simbolismo do sagrado a fim de legitimar um

    poder). No esqueamos tambm que, nos tempos modernos, os mitos polticospropriamente ditos [cf. Tudor 1972], as ideologias e as utopias formam lugaresprivilegiados em que se constituem os discursos que veiculam os imaginriossociais. Por fim, no esqueamos que estes imaginrios empregam facilmente aslinguagens mais diversas: religiosa e filo-

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    sfica, poltica e arquitectnica, etc. Apenas um ltimo exemplo: todas as cidadesso, entre outras coisas, uma projeco dos imaginrios sociais no espao. A suaorganizao espacial atribui um lugar privilegiado ao poder, explorando a cargasimblica das formas (o centro ope-se a periferia, o acima ope-se ao

    abaixo, etc.). A arquitectura traduz eficazmente, na sua linguagem prpria, oprestgio que rodeia um poder, utilizando para isso a escala monumental, osmateriais nobres, etc.

    A influencia dos imaginrios sociais sobre as mentalidades depende em largamedida da difuso destes e, por conseguinte, dos meios que asseguram tal difuso.Para garantir a dominao simblica, de importncia capital o controlo destesmeios, que correspondem a outros tantos instrumentos de persuaso, presso einculcao de valores e crenas. assim que qualquer poder procura desempenharum papel privilegiado na emisso dos discursos que veiculam os imaginriossociais, do mesmo modo que tenta conservar um certo controlo sobre os seuscircuitos de difuso. As modalidades de emisso e controlo eficazes alteram-se,entre outros motivos, segundo a evoluo do suporte tecnolgico e cultural queassegura a circulao das informaes e imagens. Nesta evoluo, h doismomentos que marcam rupturas significativas: a passagem da cultura oral acultura escrita, que se efectua graas, sem dvida, a tipografia, mas ainda maisdecisivamente graas a alfabetizao [cf. Goody 1968; Furet e Ozouf 1977]; e aimplantao duradoura dos meios de comunicao de massa. Entre as mltiplasconseqncias deste ltimo fenmeno, convm lembrar rapidamente aquelas quedizem respeito as relaes entre informao e imaginao, das quais derivam asnovas possibilidades que se oferecem a propaganda.

    Como j observamos, os meios de comunicao de massa garantem a umnico emissor a possibilidade de atingir simultaneamente uma audincia enorme,numa escala at ento desconhecida. Por outro lado, os novos circuitos e meiostcnicos amplificam extraordinariamente as funes performativas dos discursosdifundidos e, nomeadamente, dos imaginrios sociais que eles veiculam. Tal facto

    no se deve apenas a natureza audiovisual das novas tcnicas, mas tambm, esobretudo, a formao daquilo a que se d o nome, a falta de melhor, de culturade massa. Tecem-se ao nvel desta ltima relaes extremamente complexasentre informao e imaginao. Os mass media no se limitam a aumentar o fluxode informao; modelam tambm as suas caractersticas. A informao recebidade forma contnua, diversas vezes por dia, englobando o planeta inteiro,conjugando os dados estatsticos com as imagens e afectando todos os domniosda vida social, etc. A informao est centrada na actualidade, sendo portantonecessariamente atomizada e fragmentada: o acontecimento que hoje posto emfoco, amanha ser esquecido e recalcado. Devido tanto a sua quantidade como asua qualidade, esta massa de informaes presta-se particularmente asmanipulaes. A sua transmisso impe inevitavelmente uma seleco e umahierarquizao por parte dos emissores. Nos sistemas sociais em que o Estado se

    apoderou do monoplio da emisso, particularmente fcil exercer uma censurarigorosa, suprimir qualquer informao considerada indesejvel, ao mesmo tempoque se pode continuar a distribuir ondas de palavras e imagens. Todavia, ainformao moderna ainda manipulvel por outras formas alm do meroexerccio da censura, que alis um fenmeno bem antigo. Pelo simples facto deas informaes serem atomizadas e no constiturem um todo,

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    dando permanentemente lugar a inquietaes e tenses, elas reforam duasnecessidades: a necessidade de unificao e a de valorizao. Por outras palavras,os indivduos j no so capazes de dominar a massa fragmentada e dispersa deinformaes, sentindo assim uma maior necessidade de representaes globais e

    unificadoras. Num s movimento, os meios de informao de massa fabricam umanecessidade, que abre possibilidades inditas a propaganda e encarregam-se,simultaneamente, de satisfazer essa necessidade. Com efeito, aquilo que os massmedia fabricam e emitem, para alm das informaes centradas na actualidade,so os imaginrios sociais: as representaes globais da vida social, dos seusagentes, instncias e autoridades; as imagens dos chefes, etc. Em e mediante apropaganda moderna, a informao estimula a imaginao social e os imaginriosestimulam a informao, contaminando-se uns aos outros numa amlgamaextremamente activa, atravs da qual se exerce o poder simblico [cf. Ellul1962; Domenach 1954; Schramm e Roberts 1965]. Daremos um exemploapenas: ao longo da histria, o poder carismtico assenta em imaginrios sociaisque o grupo social projectava sobre o chefe carismtico; este ltimo amplificava-os eredistribua-os, oferecendo ao grupo uma certa identidade colectiva, orientando ecanalizando as suas esperanas e angstias, etc. Ora, a propaganda moderna goza de

    possibilidades tcnicas, culturais e polticas que permitem fabricar e manipular asemoes e imaginrios colectivos em que assenta o carisma. Em certascondies, a propaganda consegue fazer subir as angstias e esperanascolectivas, levando-as a histeria, ao mesmo tempo que projecta constantemente,sobre o chefe, os imaginrios que se confundem na representao global dosalvador supremo, instrumento eleito pela Nao e a Histria, etc. Nesta ptica,poderamos definir os sistemas totalitrios como sendo aqueles onde o Estado,graas ao monoplio dos meios de comunicao, exerce uma censura rigorosa sobreo conjunto das informaes e a conjuga com a contaminao e manipulao dasinformaes admitidas na circulao pela propaganda pol tica e ideolgicaomnipresente. O objectivo visado seria o de garantir ao Estado o controlototal sobre as mentalidades e, designada-mente, sobre a imaginao social; poroutras palavras, tratar-se-ia de bloquear eficazmente qualquer actividadeespontnea, no -controlada, da imaginao social. Conjugando o monoplio

    do poderio e do sentido, isto , da violncia fsica e da violncia simblica, o Estadototalitrio procura suprimir a prpria lembrana de qualquer imaginrio social, dequalquer representao do passado, presente e futuro colectivo, diferentes daquelesque confirmam a sua legitimidade e poderio, caucionando o seu controlo sobre oconjunto da vida social e glorificando tanto os seus fins como os seus meios.

    3. Case-studies

    Insistamos mais uma vez nas reservas j formuladas: no est nas nossasintenes mais do que colocar alguns marcos para uma problemtica que seprocura a si prpria na encruzilhada de diversas disciplinas e de diversas abordagensmetodolgicas. Da o carcter demasiado lacunar e abstracto da anterior

    exposio. Em vez de fazer o inventrio dessas lacunas, pareceu-nosmais frutfero apresentar alguns exemplos que concretizam o nosso modo deabordar a questo. Esta apresentao tem, pois, de ser sucinta. Pirose

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    apenas iluminar, atravs de determinadas situaes histricas, alguns caracteres emodos de funcionamento dos imaginrios sociais que acabamos de evocar demaneira global.

    3.1. Imaginrios sociais e violncias nas revoltas camponesas do sculo X V II e

    durante o Grande Medo de 1789

    As revoltas camponesas que a Frana conhecera no decurso do sculo XVII e nofim do Ancien Rgime so exemplos flagrantes, a diversos ttulos, do papeldesempenhado pelos imaginrios sociais nas mentalidades e prticas colectivas.Por um lado, elas pem em relevo a interveno activa desses imaginrios nacristalizao das recusas e das esperanas que as grandes crises de violnciapopular alimentam. Por outro lado, manifesta-se na sucesso destas crises umanotvel resistncia desse imaginrio, reproduzindo no longo prazo a solidariedadeentre tais imaginrios colectivos e um modo de vida, uma cultura e um dispositivosimblico determinados.

    Recordemos, rapidamente, a cronologia das revoltas do sculo XVII. Entre1624 e 1675, a Frana assistiu periodicamente a vagas de levantamentos popularese, em especial, levantamentos camponeses; esta vaga far-se- ainda sentir naltima grande revolta da srie, isto , a de Maio Junho de 1707. Depoisdesta ltima data, as vagas de revoltas camponesas desaparecem durante maisde trs quartos de sculo. Isto no significa, bem entendido, que o sculo X V IIIesteja isento de outras formas de violncia popular, mas to-s que a tradio doslevantamentos camponeses foi extirpada, durante algum tempo, pela repressoterrorista e sistemtica. As grandes vagas de revoltas do sculo X V II so aquelasque conhecemos sob o nome dos crquants (Quercy, Primavera de 1624; Guyenne,Maio Junho de 1635; Sain-tonge, Abril Junho de 1636; Gasconha, 1638-1645;Prigord, 1637); dos nus-pieds (Normandia, julho-Novembro de 1639); dossabtiers (Sologne, Agosto de 1658); dos lustucru (Boulonnais, Maio Julho de1662); dos bnnets-ruges (Bretanha, 1675); dos tard-aviss (Quercy, Maio Junho de1707). Os maiores destes levantamentos, no auge da vaga, chegaram a reuniralgumas dezenas de milhar de camponeses. Na maioria dos casos, os

    amotinados agrupavam-se em bandos que variavam entre algumas dezenas ealguns milhares de homens juntos, sob o comando de capites escolhidosgeralmente no seio dos camponeses, mas as vezes tambm na nobreza. Oscamponeses raramente dispunham de armas de fogo, estando sobretudomunidos das suas armas tradicionais -facas, forquilhas, machados e chuos.Podem-se distinguir quatro tipos de motins, bem como outros tantos tipos deviolncia colectiva: contra a carestia do po,. contra os aquartelamentos, contra acobrana dos impostos e contra a cobrana das rendas. As interpretaes sobreas causas e a natureza social destas revoltas deram origem a prolongadas discussesque se arrastavam no beco sem sada de um debate, simultaneamente metodolgicoe ideolgico, acerca dos caracteres do Ancien Rgime (enquanto sociedade declasses ou de ordens). Os estudos mais recentes, designadamente os de Berc[1974a e b], em cujos resultados nos apoiamos aqui, fizeram ressaltar o carctercomunitrio das revoltas enquanto reaco colectiva contra a progresso do

    Estado moderno, burocrtico e centralizado, ocupado em especial no sculo X V IIem desenvolver uma

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    nova organizao fiscal. A fim de atingir todos os sbditos, a expanso do fisco foiobrigada a pr em causa os privilgios, costumes e solidariedades comunitrias quese erguiam entre o Estado e o indivduo. Deste modo, a presso fiscal era sofrida e

    sentida pela comunidade como uma agresso exterior a qual reagia violentamente.Conflito social, portanto, mas que tem de ser dissociado do par misria-revoltaafirmado pela historiografia do sculo xix. A tolerncia fiscal dos camponeses , emcertos casos limite, relativa. Varia no s consoante a realidade da contribuio, mastambm, e sobretudo, consoante a idia que dela tem os contribuintes. No h umarelao linear entre a economia e a revolta. Esta ltima, e especialmente asmodalidades segundo as quais rebenta e se desenrola, so tambm factos culturaisnos quais se confundem a condio social, o quadro e estilo de vida, o dispositivosimblico, etc. Da um certo ritual da violncia, certos traos ritualizados erepetitivos, que se encontram ao longo de centenas de casos. Os imaginrios sociais,veiculados tanto pela linguagem dos gestos e dos objectos como pela palavra vivaneste meio dominado pela cultura no-escrita, so solidrios com o ritual daviolncia. So alis raros os casos em que os insurrectos formulam as suas aspiraes

    e os objectivos da revolta atravs de panfletos. , pois, ainda mais significativo queos mesmos imaginrios sociais se reproduzam, com pequenas diferenas, emcentenas de casos.

    Os imaginrios sociais intervem continuamente ao longo dos motins e adiversos nveis. As suas funes so mltiplas: designar o inimigo no planosimblico; mobilizar as energias e representar as solidariedades; cristalizar e ampliaros temores e esperanas difusos. Todos convergem para a legitimao da violnciapopular.

    A fim de esclarecer estas funes, apenas nos referiremos a um esquema geraldo ritual das revoltas, o qual est naturalmente submetido a algumas situaes-tipoque no nos possvel analisar aqui em pormenor. As revoltas so precedidas deboatos sobre os novos impostos ou sobre a chegada dos cobradores, ou ainda sobre oaquartelamento de soldados na aldeia, etc. As tabernas, as feiras e as festas, bemcomo os encontros a sada da missa, so outros tantos lugares de reunio a partir dosquais se propagam as informaes e boatos. atravs destes que se articula aantinomia entre ns e eles, isto , duas representaes que traduzem eesquematizam, simultaneamente, as recusas, os conflitos e os ressentimentos: elesquerem matar-ns a fome; eles querem roubar-ns; eles vem instalar-se emnossa cada para ns tirar o lar. Eles significa os estranhos e os trai-dores acomunidade; ns designa os membros da comunidade por nasce-mento, residnciae destino. Pela mesma operao, estas representaes globalizantes e unificadorasdefinem o motim como defensivo, como uma resposta armada contra a chegada deum invasor armado, contra uma agresso caracterizada. significativo que, nodesencadeamento do motim, inter-venha frequentemente o boato (espalhadosobretudo pela mulheres) acerca da introduo de um imposto imaginrio, como por

    exemplo um imposto sobre a vida, sobre os nascimentos, os casamentos e as mortes,que seria preciso pagar sempre que nascesse uma criana. A representao desteimposto to escandaloso quanto fantstico resume toda a iniquidade com que vistoo fisco, designando-o como um perigo mortal para a comunidade e legitimando,antecipadamente, a violncia enquanto autodefesa contra a

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    ltima ameaa. Os cobradores de impostos so, por conseguinte, assimiladossimbolicamente as foras mpias e diablicas que atacam a vida de cada um e detodos, sendo antecipadamente apontados como os bodes expiatrios de todos osmales da comunidade.

    Quanto ao motim propriamente dito, comea com o rebate dos sinos, cujo toque

    alarmante , ao mesmo tempo, meio de informao, convocao e mobilizao. O toquea rebate simboliza, por um lado, a solidariedade da comunidade e, por outro, identifica asituao como a de um perigo extremo. Assim inscreve a violncia futura no campodas violncias legtimas, admitidas pelo direito costumeiro, como por exemplo adefensa contra os salteadores.

    A imagem provocatria do imposto sobre a vida liga-se a outros elementos damitologia dos revoltosos que consolidam o movimento. Contrariamente aosmovimentos milenaristas, a dimenso sagrada e apocalptica est ausente daimaginao social dos amotinados. Esta comandada por representaes ligadas aimagem do rei justo e do fim dos impostos. Imagina-se que o rei foi enganado por mausconselheiros; que ignora a infelicidade do seu povo; que foi roubado por financeirosque pilham o tesouro real do mesmo modo que arrunam os sbditos do rei. A violnciacamponesa assim representada de uma maneira tanto mais legtima quanto seidentifica com o prncipe real, esse prncipe que ela procura tambm libertar. A

    imagem do bom prncipe aliava-se aos sonhos do imposto adiado, seno mesmo doEstado sem impostos, sonhos esses que ofereciam aos revoltosos uma representaopositiva da sua recusa. Remete-se tambm para um passado imaginrio no qual sebusca o modelo do rei, personificado frequentemente por Henrique IV, querespeitava os antigos costumes, aliviava os sbditos sobrecarregados de impostos egarantia ao bom povo a tranqilidade, a justia elementar e a dignidade. Este mitoprolongava-se por vezes atravs de uma utopia, incipientemente esboada, queconcebia uma sociedade diferente cuja idia e imagem chaves uniam o Estado semimpostos a liberdade pblica. Assim sucede no poema que circulava durante arevolta dos nus-peds, quando Jean Nu-Pieds, general do exrcito do sofrimento epersonagem imaginria que incarna as esperanas dos revoltosos, apresentado destemodo:

    Joao P-Descalo o vosso apoio. Ele vi ngar a vossa disputaLibertando-vos do imposto, Fazendo levantar a jogada, E li vrand o-vo s de

    toda ess a gente Que enriquece a custa Dos voss os b ens e da ptria. Foi

    ele que Deus mandou Para impor na Normandia Uma perfeita liberdade.

    Todos estes mitos, articulando-se entre si, traduzem no plano imaginrio a grandemola impulsionadora da dinmica dos revoltosos, isto , a esperana, seno mesmo acerteza, de uma vitria prxima e fcil.

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    Convm ainda aludir, por ltimo, a alguns elementos do ritual das revoltas,particularmente reveladores quanto a imaginao social em aco e quanto aodispositivo simblico utilizado. Falamos j dos sinos que tocam a rebate e doajuntamento das pessoas, anunciando e traduzindo, ao mesmo tempo , um traj ecto

    com o qual a comunidade se identifi ca. Quando os revoltosos conseguemaprisionar os culpados, como por exemplo os cobradores de impostos, a multidoprocede a conduo do cobrador da gabela. Trata-se de uma cerimnia punitiva,trgica ou cmica, humilhante ou sangrenta, em que a vtima simboliza todas asforas amaldioadas e agressivas. O cobrador de impostos, nu ou em trajos menores, obrigado a correr pela aldeia fora; atirado a lama ou ao estrume; lanam-lhepedras e do-lhe pauladas. A conduo termina com a morte, mas por vezes amultido contenta-se com um assassnio ritual e a expulso da aldeia.

    Quando os rebeldes atacam uma repartio de finanas ou um cartrio denotrio, estes so entregues a pilhagem, ao mesmo tempo que se abrem os tonisde vinho e a multido se embriaga, destruindo mveis, estbulos e jardins. Amultido atribui um interesse especial aos papis que apanha e d a ler em voz alta, emgeral, a um padre. Seguidamente, a papelada queimada a granel e a multido dana,por vezes, em torno deste fogo purifica-dor e aniquilador. A revolta vem assim

    prender-se aos ritos da festa, tornando-se ela prpria um ilhu utpico em rupturacom a vida quotidiana. Do mesmo modo, o facto de os revoltosos as vezes sedisfararem e mascararem revela todo um jogo imaginrio que aproxima a festa ea revolta, desde que, naturalmente, esta triunfe sobre os inimigos, quanto mais no sejatemporariamente. Atravs de todos estes ritos e smbolos, que mergulham numfundo secular, representada a faceta normativa da violncia, isto , a idia de umacerta justia popular.

    Como j indicamos acima, depois das revoltas de 1707, a Frana deixou de assistir,durante cerca de trs quartos de sculo, a novos motins camponeses. Foi na vspera daRevoluo e durante o Vero de 1789 que se manifestou novamente um formidvellevantamento campons. Enquanto os movimentos de revolta do sculo X V II sraramente exibiam imagens manifestamente antinobilirquicas, estas marcam emcontrapartida as insurreies de 1789. No nos compete analisar aqui as causas desteltimo facto, que tem que ver, por um lado, com a implantao duradoura do Estado

    moderno no sculo X V II e, por outro, com as modificaes do lugar do senhor nacomunidade rural. Desta vez, os castelos dos nobres tornam-se os alvos directos dosrevoltosos. aos castelos que declaram guerra, pondo em causa os direitose privilgios senhoriais e recusando o pagamento dos impostos. O movimentoinicia-se com uma srie de revoltas dispersas. Por volta de julho-Agosto de 1789,generaliza-se de tal maneira que desemboca no bloqueamento completo das trocascomerciais e provoca a paralisia do Estado. Nesta ampliao do movimento, o papeldecisivo desempenhado pelo grande medo, cujos epicentros, trajectos edinamismos conhecemos hoje graas aos trabalhos de Lefebvre [1932]. No contextoque agora nos preocupa, interessa sublinhar certas particularidades desse espectacularpnico colectivo que cobriu a maior parte do pas (com excepo da Bretanha, doNordeste da Lorena e Alscia, das Landes, do Languedoque e da Baixa Provena). Nasegunda quinzena de julho e at finais do ms de Agosto, espalham-se pelas aldeiasboatos segundo os quais o pas estaria a ser invadido por bandos de soldados e de

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    salteadores. Esses bandos avizinhar-se-iam pilhando pelo caminho todas as aldeias emassacrando a populao. uma conspirao infernal; querem destruir o povointeiro. Mas que bandos? E que conspirao? A imaginao, como em todos osmovimentos de pnico colectivo, parece estar marcada pela patologia e no capazde produzir seno fantasmas e efabulaoes. Fala-se sobretudo de salteadores, pois

    naquela poca de crise econmica e de falta de gneros, os mendigos e vagabundosabundavam, sendo a sua presena pelos caminhos apontada como prova tangvel dosboatos. Fala-se de milhares, de dezenas e mesmo centenas de milhares de salteadoresvindos das cidades, especialmente de Paris. Noutros locais, fala-se de estrangeiros,de exrcitos inimigos, particularmente aqueles de que havia recordaes: os Inglesesteriam desembarcado em Brest, os Piemonteses teriam invadido os Alpes. Noutroslocais ainda, o inimigo imaginado sob a sua forma mais mtica: o perigo que elerepresenta tanto maior quanto o seu nome designa apenas o desconhecido, o nuncavisto. assim que se teme a invaso dos Polacos vindos por mar, dos Panduros, dosMouros, dos Suecos... Outras imagens e rumores misturam-se aqueles. Todas estastropas, quer os salteadores quer os Polacos, esto ao servio dos aristocratas e levama cabo uma conspirao diablica contra o povo que tem por misso punir, senomesmo exterminar. Encontram-se nestes boatos ecos deformados da tomada da

    Bastilha e dos rumores que corriam em Paris acerca da conspirao da fome.Frente a estes perigos imaginrios, as aldeias pem em aco o dispositivo

    material e simblico de que falamos acima. Toca-se a rebate e desencadeia-se umaaco comum: os camponeses armados vo ao encontro do inimigo ou em socorrode uma aldeia vizinha. Estas invulgares movimentaes de homens armados nofaziam mais do que amplificar o pnico. Poder-se-ia pensar que os ajuntamentos sedispersariam quando se verificasse a ausncia de qualquer inimigo, mas issoraramente sucedia. Pelo contrrio, o movimento entrava ento numa segunda fase.Os aldeos no depem as armas; as guardas nacionais das vilas e aldeias nascemfreqentemente deste pnico. Alm disso, em vez de regressarem a casa, as tropascamponesas dirigiam-se ao castelo mais prximo, pedindo que lhes entregassem ospapis, os arquivos, as cartas fundirias, os ttulos dos privilgios e dascontribuies fiscais. Estes eram obtidos pela ameaa ou, em caso de recusa, peloataque ao castelo. Seguidamente, queimavam-se os papis numa grande fogueira quereproduzia um cenrio de violncia vizinho da festa. Frequentemente, esta guerracontra os papis era acompanhada por pilhagens e no so raros os casos decastelos incendiados, sobretudo se havia resistncia as exigncias camponesas. Porvezes, o castelo era assaltado, mas se certo que houve algumas vtimas, omovimento foi em geral pouco sangrento.

    Foi assim que o pnico inicial se prolongou atravs de uma acorevolucionria antifeudal. Com o grande medo, a Revoluo instalou-se na aldeia.Os mecanismos de passagem do pnico a Revoluo nem sempre so muito claros.Em certos casos, os rumores iniciais combinavam-se com boa-tos segundo os quaiso rei teria permitido, ele prprio, que se atacassem os castelos e queimassem ospapis a fim de evitar uma conspirao aristocrtica. Tais boatos materializavam-

    se mesmo em falsos manifestos reais, escritos a mo, em que se proclama que o reiapela para os seus camponeses se dirigirem aos castelos, fixando mesmo um prazo,geralmente at finais de

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    Agosto, durante o qual permitido desembaraar-se dos papis. A partir de certaetapa do pnico, o exemplo funciona por si prprio: o boato acerca dossalteadores omnipresentes surge contaminado, desde o princpio, pela notcia de queos castelos esto a arder nas redondezas. Todos estes rumores e smboloscombinados levam ao rubro a imaginao popular. Os fantasmas revelam-se

    particularmente eficazes e funcionais. Correspondem a outras tantas telas deprojeco para um mal-estar rural generalizado que assim se v dramatizado eampliado. Servem de trampolins simblicos atravs dos quais se opera aprogresso conjun ta dos medo s, d ios e espe ranas . Expresso da crise,eles tornam-se depois um factor determinante da dinmica da prpria crise. Atomada de armas e a presena material de tropas populares armadas tornam-se,por sua vez, o smbolo da unidade e da fora alde. O inimigo fantomtico, contrao qual a aldeia se ergueu, rene numa s representao colectiva, simultaneamenteprovocatria e mobilizadora, todos os agressores potenciais e reais. Os fantasmascombinam-se num jogo complexo com outros imaginrios sociais e designam, nofim de contas, o adversrio real, transferindo para ele medos e esperanas difusos.Ao mesmo tempo, a aco colectiva e os seus efeitos-os papis, seno oscastelos, que ardem-comportam eles prprios uma forte carga simblica.Representam, por um lado, o fim de uma ordem social opressiva e ultrapassada

    e, por outro, o advento da Nao unida para defender a sua liberdade.

    3.2. Imaginrios sociais e simbolismo revolucionrio

    A Revoluo Francesa foi, como todas as crises revolucionrias, um perodoquente na produo de imaginrios sociais. Uma vez desencadeado, o factorevolucionrio d um mpeto especial a imaginao social. A prpria dinmica darevoluo, a transformao das estruturas polticas e sociais, bem como dos modosde pensar e dos sistemas de valores, e ainda os conflitos polticos e sociais marcadospela presena das massas, em especial as multides revolucionrias- todos estesfactores estimulam a produo acelerada dos sentidos que se procura atribuir aprecipitao de acontecimentos cujos efeitos muitas vezes surpreendem os actores

    polticos e sociais. Os protagonistas, quer aqueles que pretendem radicalizar arevoluo, quer os que desejam det-la em determinado estdio, vem-se obrigados aesconjurar um destino incerto por meio de programas, seno mesmo vises do futuro;tem de imaginar situaes futuras para si e para os adversrios; tem de legitimar oudenunciar a violncia revolucionria e a nova redistribuio dos papis sociais; porfim, tem de mobilizar ou canalizar as energias e esperanas das massas, etc. Oclima afectivo gerado pelos factos revolucionrios, bem como os avanos e recuos domedo e da esperana, animam necessariamente a produo dos imaginrios sociais.No comeo, a revoluo , para muitos, essa sensao brutal, vaga e exaltante aomesmo tempo, de estar a viver um momento excepcional durante o qual, paraempregar as palavras de Michelet, tudo se tornou possvel. Subitamente, como sese adquirisse a esperana, e at mesmo a certeza, de que acabaram de vez osconstrangimentos sociais habituais. Est por construir um mundo novo quegaranta a liberdade e a felicidade (idia nova na Europa, como dizia Saint Just), e

    isso s poder ser feito pela negao desse regime rapidamente valorizado

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    como antigo, inclusivamente nos pormenores quotidianos. O futuro abre-se, assim,como um enorme estaleiro de sonhos sociais de todos os gneros e em todos osdomnios da vida colectiva. As imagens, glorificantes ou acusadoras, dosacontecimentos e das foras em presena combinam-se com os conflitos e asestratgias, iluminando-os e ocultando-os simultaneamente. As realidades e asexperincias revolucionrias so, muitas vezes, inseparveis do modo mitolgico como

    so vividas.A gerao dos smbolos e ritos revolucionrios uma das facetas maissignificativas da produo intensa de imaginrios sociais. Recordamos j as pginasem que Marx ope a Revoluo Francesa, que disfarava os seus actores comtrajos antigos, a sua viso da revoluo proletria, cujos actores dispensariamqualquer mscara. Porm, em nenhum caminho da sua histria, nem mesmocaminhos da revoluo, seja ela burguesa ou outra, os homens passeiam nus.Precisam de fatos, de signos e imagens, de gestos e figuras, a fim decomunicarem entre si e se reconhecerem ao longo do caminho. Os sonhos e asesperanas sociais, frequentemente vagos e contraditrios, procuram cristalizar-se eandam em busca de uma linguagem e de modos de expresso que os tornemcomunicveis. Os princpios e conceitos abstractos s se transformam em ideias-fora quando so capazes de se constituir como poios em torno dos quais aimaginao colectiva se organiza. A extenso das suas aurolas imaginrias faz-

    lhes ganhar amplitude emotiva. Enganar-nos-amos sobre o alcance do simbolismorevolucionrio se no vssemos nele mais do que um cenrio em que se pretendesituar qualquer Revoluo, como se esta se tratasse de um ente to puro comotransparente. A inveno e a difuso do repertrio simblico revolucionrio,a implantao destes novos smbolos e a guerra aos antigos, correspondem aoutros tantos factos revolucionrios. Aquilo que estava essencialmente em causanesta guerra, sobre a qual os contemporneos no tinham qualquer iluso, era umpoder real que se exercia no e atravs do domnio simblico. O fenmeno complexo. Recordaremos apenas alguns exemplos tirados dos primeiros anos daRevoluo e que mostram duas tendncias. Por um lado, trata-se da geraoespontnea do simbolismo e do ritual revolucionrios; por outro, trata-se da suatransformao em emblemas e instituies que rodeiam o novo poder,glorificando-o e atestando a sua legitimidade. bvio que estas duas tendnciasno se manifestam de modo isolado em relao uma a outra; pelo contrrio,

    combinam-se e entrecruzam-se.O primeiro exemplo constitui, seno o incio, pelo menos aquilo que se

    tornou o smbolo por excelncia da Revoluo. O clima de tenso entre o poder reale a Assemblia Nacional, recentemente proclamada, bem como o medo e a cleraprovocados pelos rumores acerca da conspirao da fome e da concentrao detropas que se preparariam para tomar Paris de assalto, formam o contexto emotivoem que se inscreve a positividade de um acontecimento: uma fortaleza maldefendida e a multido que a ataca. O acontecimento bruto do dia 14 de julhotransforma-se imediatamente no signo de uma coisa diferente do acontecimento emsi mesmo. A tomada da Bastilha torna-se obrigatoriamente o objecto de um olhare de um discurso que procuram atribuir um sentido totalizante a sucesso dosacontecimentos e aos seus mltiplos actores. A multido revolucionria,enquanto fenmeno novo pressupe no s uma presena colectiva e um princpiode estruturao, mas tambm uma comunidade de imaginao. Foi assim que a velha

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    fortaleza, j rodeada de rancores e mitos, se tornou o smbolo por excelncia doarbitrrio e de tudo quanto o Ancien Rgime tinha de arcaico, ultrapassado einjusto. A multido dotou-se de uma identidade ao projectar diante de siuma imagem ideal, isto , a da Nao que se ergue contra a tirania e a violnciaincarnadas naqueles muros vetustos e nos seus defensores. (Como se sabe, graas a

    anlise pormenorizada daqueles que tiveram direito ao ttulo de vencedores daBastilha, o grupo que tomou a fortaleza nada tinha de sociologicamente homogneo:um sexto de burgueses, cinco sextos de arraia-mida, ou seja, artesos, mestres,companheiros). O dia 14 de Julho acabou, alis, mais num clima de temor eincerteza do que de alegria. Ele oferece-se as imaginaes como,precisamente , o dia em que tudo se tornou possvel, como o smboloprivilegiado de uma ruptura temporal, momento nico em que incio e realizaocoincidem num s tempo. O mito traduz, segundo as suas prprias modalidades,uma experincia particularmente rica em emoes intensas que se confundem com asexpectativas e as esperanas de que est rodeada. Experincia colectiva por excelncia:vivida com uns e contra os outros no calor humano de uma multido que se est adescobrir a si prpria como uma realidade. O indivduo sente-se apoiado etransformado pelas emoes e foras colectivas que o ultrapassam. Asinmeras narrativas, gravuras, cerimnias comemorativas, etc., ampliam e

    consolidam ulterior-mente esta mitologia. O 14 de julho torna-se assim a matriz deuma jornada revolucionria, do mesmo modo que a Bastilha se tornou o smbolo detodas as outras bastilhas que a liberdade tem constantemente que tomar de assalto. Apartir do dia seguinte ao memorvel empreendimento, o lugar foi investido de umacarga simblica extraordinria. A 14 de julho, a Bastilha fora apenas tomada; muitorapidamente, decide-se demoli-la, rude labor que exigia muito mais do que um dia.(Um empreiteiro hbil havia de fazer fortuna com estas obras de demolio,vendendo as pedras da Bastilha. Este comrcio era extremamente prspero e oenorme edifcio fornecia pedras que chegavam para satisfazer a procura de relquias porparte de vrias geraes, e mesmo assim ainda houve quem vendesse pedras falsas...)Quanto a praa, uma vez vazia, tornou-se um lugar privilegiado do espaoimaginrio projectado sobre a cidade real. Integrando-se no ritual das festasrevolucionrias e smbolo do comeo, ainda hoje ela de preferncia escolhidacomo ponto de formao e partida dos cortejos festivos que atravessam acidade.

    Afirmar e consolidar as conquistas da revoluo era uma necessidadeparticularmente viva e muito cedo sentida. A linguagem dos smbolos prestava-seadmiravelmente a exprimir a parte de sonho e de esperana veiculada pelaRevoluo,, parte esta que constitui uma dimenso essencial das suas realidades. Foiassim que, desde o incio da Revoluo, no Vero-Outono de 1789, se assistiu agerao espontnea de um repertrio simblico novo, acompanhado por umaverdadeira guerra aos smbolos, com as suas estratgias prprias. No dia a seguir a14 de julho, era arvorada a insgnia (ccarde) nacional, composta pelas coresde Paris (o azul e o vermelho) e a cor do rei (o branco). A 17 de Julho, Lus XVI, queveio a Paris para se reconciliar com a sua boa cidade, arvorava a mesma ccarde, gestoque foi acolhido entusiasticamente pela multido que a havia imposto e a sentiacomo uma vitria. A partir de Paris, a ccarde iniciou uma marcha triunfal atravs da

    Frana. Emblema distintivo da nao, era ao mesmo tempo combatido pelos

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    aristocratas; da uma guerra incessante em torno das insgnias. O boato, verdadeiroou falso, de que os oficiais da rainha tinham espezinhado a insgnia tricolor emVersalhes, para depois arvorarem a insgnia branca, foi um dos factores quemobilizou a multido nas jornadas revolucionrias de 5-6 de Outubro. A partir da,assiste-se a uma escalada de decretos que tornam o uso da insgnia obrigatrio: a 29 deMaio de 1790 proibido arvorar qualquer outra insgnia que no fosse a tricolor; a4 de Julho de 1791, o uso foi declarado obrigatrio para todos os homens; a 26de Setembro, em pleno Terror, a obrigatoriedade foi extensiva as mulheres. (Destavez manifesta-se uma certa resistncia a esta imposio, designadamente nos meiospopulares). Do mesmo modo, no usar. a insgnia tornava-se um sinal distintivodos inimigos da Repblica.

    Recordemos ainda, muito sucintamente, alguns outros elementos deste novorepertrio simblico. No Outono de 1789, durante as Federaes, foram construdosum pouco por toda a parte altares da ptria. A eram depostos germes de trigo,por vezes coroados de chuos encabeados pelo barrete frgio da Liberdade. Oprimeiro baptismo civil celebrado num altar da ptria em junho de 1790. A 26 dejunho de 1791, a Assemblia Legislativa decreta que dever ser erguido em todas ascomunas um altar da ptria, no qual dever ser gravada a Declarao ds direitos dhomem e d cidado, bem como a inscrio: O cidado nasce, vive e morre pela

    Liberdade. (Estes altares, em runas, sobrevivero at ao Imprio). Foi tambm noOutono-Inverno de 1789 que se instalou outro smbolo: a rvore da liberdade, onico, talvez, que retoma uma tradio popular, a saber, a das rvores de Maio.Nos anos seguintes, era nestas rvores que se penduravam smbolos da feudalidade,tais como crivos, medidas, papis com ttulos e privilgios, cataventos (reservadosaos casteles), etc. A plantao das rvores da liberdade ser, por sua vez, tornadaobrigatria em todas as comunas. Lembremos outros smbolos: o barrete frgiovermelho, o olho da vigilncia e o nvel (ambos de origem manica), o chuoenquanto arma e emblema ao mesmo tempo, etc. Os meios dos sans-cultteselaboraram o seu prprio simbolismo, atravs de um vasto conjunto de signosdistintivos relativos ao vesturio, ao comportamento, a maneira de falar (porexemplo, o trata-mento por tu obrigatrio), etc. A guerra aos smbolos atingiu o augedurante o Terror e a descristianizao, com a destruio dos signos da feudalidade,a retirada dos sinos, a desfigurao das esttuas, etc.

    Na grande maioria dos casos, verifica-se a mesma tendncia: os smbolosespontneos tornaram-se obrigatrios, impostos. As minorias militantes, para nodizer o prprio poder, fazem deles um instrumento efectivo a fim de implantarnovos valores, transformar as almas e lig-las a nova ordem poltica e social.Havia, alis, uma tendncia para acreditar na eficcia quase ilimitada desteinstrumento, donde uma pletora de linguagens simblicas. No se tratava, contudo,de smbolos isolados, mas de um sistema global de representaes que tinha deimpregnar no s a vida pblica, como tambm, e sobretudo, constituir o quadro davida quotidiana de todos os cidados. O exemplo mais flagrante desteempreendimento , sem dvida, a introduo do calendrio revolucionrio.Situando o novo ponto-zero a partir do qual comea a nova era (22 de Setembro de1792, data da proclamao da Repblica), suprimindo o domingo, estruturando demodo racional o tempo quotidiano (ms de trinta dias dividido em trs dcadas),introduzindo

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    um sistema de festas cvicas, etc., o novo calendrio correspondia, nas intenes dosseus promotores, a idia de representar permanentemente os novos valores que aRepblica tinha por misso instalar para toda a eternidade. Lembremos, por fim, quea gerao espontnea do novo simbolismo est solidariamente associada aonascimento de um novo ritual, o qual evolui tambm da festa espordica e espontneapara um sistema institucionalizado de festas. Um dos objectivos que se pretendiaatingir com estas festas, nomeadamente as do Ano II, era o de incarnar em imagense o de dar vida, quanto mais no fosse por um instante, a utopia revolucionria, isto ,a promessa de uma comunidade fraterna de homens iguais. A linguagem simblicapresta-se particularmente bem, seno a corporizar, pelo menos a apresentar a imagemdaquilo que poderia ser o triunfo sonhado da Liberdade e da Virtude, da Igualdade eda Nao, da Fraternidade e da Felicidade. Albert Mathiez [1904], na sua perspectivaprpria e que exalta as componentes religiosas, quase messinicas, das mentalidadesrevolucionrias, ps admiravelmente em destaque essas expectativas e esperanasque encontram um modo privilegiado de expresso no simbolismo e ritualrevolucionrios.

    O nascimento e a difuso dos signos imaginados e dos ritos colectivos traduzem anecessidade de encontrar uma linguagem e um modo de expresso quecorrespondam a uma comunidade de imaginao social, garantindo as massas, que

    procuram reconhecer-se e afirmar-se nas suas aces, um modo de comunicao. Poroutro lado, contudo, esse simbolismo e esse ritual fornecem um cenrio e umsuporte para os poderes que sucessivamente se instalam, tentando estabilizar-se.Com efeito, significativo que as elites polticas se dem rapidamente conta dofacto de o dispositivo simblico ser um instrumento eficaz para influenciar eorientar a sensibilidade colectiva, em suma, para impressionar e eventualmentemanipular as multides. J aludimos a elaborao, durante o perodo revolucionrio,das teorias que valorizam a importncia da imaginao colectiva. Do mesmo passo,so tambm elaboradas as suas tcnicas de manejo. Recorde-se a frmula deMirabeau, que resume essa dupla tendncia: no basta mostrar ao homem a ve rdade;a questo capital lev-lo a apaixonar-se por ela; no basta servi-lo nassuas exigncias primrias, se no nos apoderarmos da sua imaginao. A fim decumprir este objectivo poltico e moral, necessrio instituir um sistema deeducao pblica distinto da instruo. Esta limita-se a dispensar um saber; a outra

    tem por objectivo formar as almas. Esta idia, que ento se torna um lugar-comum, fundamenta e justifica o lanamento da propaganda instituda. Esta concebida como um empreendimento global que diz respeito a todos os cidados,formando o seu esprito, orientando as suas paixes, inculcando modelosformadores positivos e apontando os inimigos a derrotar. Trata-se, como diziaRabaut-Saint-Etienne em 1792, de encontrar um meio infalvel de comunicarincessantemente, em pouco tempo, com todos os Franceses simultaneamente,impresses uniformes e comuns cujo efeito os tornar, a todos, dignos da Revoluo.Pa