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ESTUDOS AVANÇADOS 14 (38), 2000 321 NTRE OS desafios permanentes encontra-se o da estratégia adequada de uso, aproveitamento econômico e preservação do potencial con- tido na incomum megadiversidade brasileira, da natureza e das con- figurações socioculturais. A Mata Atlântica foi reduzida a cerca de 8%, o que torna as precauções quanto aos recursos da Amazônia inadiáveis (Dean, 1995:361). Com destaque para a diversidade de sua flora, com 15 a 20% do número total de espécies do planeta, 10% dos mamíferos e anfíbios e 17% das aves. Nas últimas décadas, as formas inapropriadas de uso dos recursos trouxeram à agenda a visão indígena e a de outras tradições locais, extra- tivistas, ribeirinhos, quilombolas e caiçaras. Essas contribuições ressurgem como legado exemplar, valor cultural e potencial de mercado, inclusive por- que convidam a pensar e defender “uma relação positiva entre natureza e tecnologia”, articulando “a necessidade de salvar bio-sociodiversidade com a necessidade de salvar também, a tecnologia”(Santos, 1999). Os lugares mais preservados, florestas e rios, ainda coincidem com espaços interiores ocupados por índios e outras culturas tradicionais. O emer- gente biomercado e as ofertas do conhecimento cultural da biodiversidade surgem como possibilidade para novos materiais, medicamentos, princípios ativos, alimentos, perfumes, conservantes, adoçantes, sal vegetal, varieda- des de plantas, sementes, pesticidas orgânicos e frutas. Tal potencial remete ao tema dos direitos de propriedade intelectual de seus detentores, de seu acesso ao mercado e de sua proteção in situ, uma vez que “os serviços natu- rais prestados pelos ecossistemas valem mais que o PIB mundial”, lembra Novaes (1999). Como conseguir que essas populações, e o país, possam sair ganhado- res, recompensados na preservação e no mercado? As primeiras levas de ocupação do interior da Amazônia, que deram origem às comunidades bei- radeiras e extrativistas, conduzidas pela mão do índio, anteriores às últimas décadas do final do século XIX, constituíram agrupamentos comparativa- mente em maior harmonia com o meio, herdando e acrescentando conheci- mentos de manejo. Os ambientes e as sociedades interagem e modificam-se (Leonel 1998/99). Bio-sociodiversidade: preservação e mercado MAURO LEONEL E

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NTRE OS desafios permanentes encontra-se o da estratégia adequadade uso, aproveitamento econômico e preservação do potencial con-tido na incomum megadiversidade brasileira, da natureza e das con-

figurações socioculturais. A Mata Atlântica foi reduzida a cerca de 8%, o quetorna as precauções quanto aos recursos da Amazônia inadiáveis (Dean,1995:361). Com destaque para a diversidade de sua flora, com 15 a 20% donúmero total de espécies do planeta, 10% dos mamíferos e anfíbios e 17%das aves. Nas últimas décadas, as formas inapropriadas de uso dos recursostrouxeram à agenda a visão indígena e a de outras tradições locais, extra-tivistas, ribeirinhos, quilombolas e caiçaras. Essas contribuições ressurgemcomo legado exemplar, valor cultural e potencial de mercado, inclusive por-que convidam a pensar e defender “uma relação positiva entre natureza etecnologia”, articulando “a necessidade de salvar bio-sociodiversidade coma necessidade de salvar também, a tecnologia”(Santos, 1999).

Os lugares mais preservados, florestas e rios, ainda coincidem comespaços interiores ocupados por índios e outras culturas tradicionais. O emer-gente biomercado e as ofertas do conhecimento cultural da biodiversidadesurgem como possibilidade para novos materiais, medicamentos, princípiosativos, alimentos, perfumes, conservantes, adoçantes, sal vegetal, varieda-des de plantas, sementes, pesticidas orgânicos e frutas. Tal potencial remeteao tema dos direitos de propriedade intelectual de seus detentores, de seuacesso ao mercado e de sua proteção in situ, uma vez que “os serviços natu-rais prestados pelos ecossistemas valem mais que o PIB mundial”, lembraNovaes (1999).

Como conseguir que essas populações, e o país, possam sair ganhado-res, recompensados na preservação e no mercado? As primeiras levas deocupação do interior da Amazônia, que deram origem às comunidades bei-radeiras e extrativistas, conduzidas pela mão do índio, anteriores às últimasdécadas do final do século XIX, constituíram agrupamentos comparativa-mente em maior harmonia com o meio, herdando e acrescentando conheci-mentos de manejo. Os ambientes e as sociedades interagem e modificam-se(Leonel 1998/99).

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O valor do saber indígena e tradicional

O uso indígena e tradicional dos recursos naturais contrasta com ouso destruidor dominante na recente expansão da frente econômica. Osconhecimentos da natureza demonstrados pelos índios, à medida que vãosendo revelados, chamam a atenção contraditoriamente pelo seu valor ines-timável e pelo seu subaproveitamento, sendo sua relevância evidente na for-mação brasileira, embora inaproveitados nos projetos de colonização e as-sentamentos na Amazônia. Estudos das últimas décadas procuraram reunirtais conhecimentos pelas fontes históricas e pelos sobreviventes, tribos eoutras culturas denominadas tradicionais, em contato maior ou menor como mercado, ou relativamente isoladas (Ribeiro, 1987). Vários desses traba-lhos evidenciam que suas premissas culturais determinam suas atividadesprodutivas, e que não são, como se pretendeu, apenas o resultado de estra-tégias adaptativas (Posey, 1984; Ribeiro, 1987).

Índios, outras populações culturalmente diferenciadas, quando isola-dos da pressão do mercado, que altera seu modo de vida, não são redutíveisa componentes de ecossistemas, mas ecologistas e ecólogos de pleno direito,uma vez que usaram e manejaram mais adequadamente o potencial da di-versidade da natureza, controlando pragas, promovendo a heterogeneidadedas espécies, vivendo sustentavelmente, sendo suas práticas flexíveis e relati-vas à sua visão cosmológica. Terra e território integram um mesmo tipo deespaço, onde o cultural e o econômico são inseparáveis. Esses conhecimen-tos e técnicas representam dimensões culturais coletivas, cumulativas e in-formais, não-redutíveis à propriedade intelectual privada, no sentido emque tal conceito é tratado no comércio e na jurisprudência internacionaldominantes, em muitos casos, sequer se destinando à troca. No centro dasociedade Ianomami, por exemplo, encontram-se os Xaboris (pajés), co-nhecedores de uma droga alucinógena chamada vakoana ou ebene, retiradade uma árvore (Virola elongata) que, quando inalada, combate a doença eoutras forças negativas, que ameaçam sua sobrevivência (Gray, 1991; Davis,1993) (1).

As mudanças introduzidas em escala, com o avanço da fronteira eco-nômica, alteram substantivamente estas relações internas às populações, eaos seus ecossistemas, impedindo idealizações. Apesar desse fato, por fazerparte do conjunto de um modo de ser e de uma visão do mundo, nãocaberia valorizar o saber indígena numa ótica restrita à racionalidade instru-mental, reduzido a técnicas: fazem parte integrante de sua cultura, organi-zação social, conceito de propriedade, xamanismo, língua, usos e costumes.Nem sempre toda a comunidade detém esses conhecimentos, ou os conta-tos com o mundo espiritual invisível, que têm papel relevante no uso dos

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recursos. Até o sucesso de uma caçada pode vir orientado pelos espíritos,em sonhos e rituais, assim como o uso das plantas e o poder de cura. Oconhecimento biológico é relacionado a esse entendimento com o espiritual.Alguns pajés recebem recompensas pelos seus serviços espirituais, em siste-mas de reciprocidade e redistribuição. Um conhecimento, o uso de umaespécie, isolado, levado para fora desse sistema cultural será submetido aoutras regras, será transformado em mercadoria, daí as dificuldades dos te-mas da propriedade intelectual, das patentes e do mercado que vêm doexterior desse quadro de relações culturais específicas e diferenciadas (Shiva,1999).

Alguns trabalhos dão conta de como os aborígenes domesticaram faunae flora, mediante pesquisas em etnobiologia, etnobotânica, etnozoologia,etnoagronomia, e, mais recentemente, etnoecologia. A generosa naturezabrasileira tem uma contribuição milenar da mão humana. Berta & DarcyRibeiro destacaram o manejo indígena, construindo o solo fértil pela adiçãode matéria orgânica nas “terras pretas”, algumas imemoriais, reservas para oplantio das gerações futuras, sem perda de equilíbrio e diversidade. Essesaber contrasta com as monoculturas dos civilizados, que removem a vege-tação a trator, ocasionando a erosão, a perda de nutrientes, implicando al-tos investimentos, energia e inseticidas, com danos ambientais e subutilizaçãodos recursos (Ribeiro, 1987:9).

As técnicas agrícolas dos indígenas, assimiladas pelas primeiras levasde ocupação, construíram soluções adequadas aos solos pobres e lixiviados,cobertos por exuberante vegetação, combinadas com a coleta – do mel àslarvas –, a caça e a pesca. Sioli (1990), mostrou como as roças de coivara, ashifting cultivation, pequenas alfinetadas na floresta, depois rotativamenteabandonadas à recuperação, que ocorria em 30 ou 40 anos, eram adaptadasa solos pobres em nutrientes. Outros estudos confirmam a grande diversi-dade das roças de manejo indígena, inclusive nas ilhas florestadas dos cerra-dos, como no caso dos Kayapó que introduzem 58 espécies por roça, 17variedades de mandioca, 33 de batata doce, inhame e taioba. Os índiosconheciam utilidades para 98% das espécies identificadas, plantavam maisde 75% delas, inclusive árvores de grande porte, como a castanha-do-pará,legadas às novas gerações. Apenas 1% dessas plantas foram analisadas emsuas propriedades químicas e farmacológicas. Florestas tidas como naturaispodem ter sido moldadas por populações indígenas, pelo adensamento epela diversificação (Posey, 1984; Anderson & Posey, 1985).

Mesmo em regiões consideradas pobres em solo, com águas ácidas epoucos nutrientes, os índios acabaram conseguindo um alto aproveitamen-to, como no caso do Rio Negro, onde foram descritas 1.300 plantas utiliza-

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das, entre outros fins, como venenos e remédios, chegando os índios a re-sistir em tais regiões mais tempo e em maior número à pressão dos invaso-res do que em outras áreas mais férteis, desenvolvendo 100 diferentes varie-dades de mandioca. Morán (1990) fez um balanço das pesquisas etnoeco-lógicas, constatando o sucesso dos índios no manejo de recursos de váriosdos ecossistemas da Amazônia, inclusive transferindo conhecimentos, porexemplo, da floresta para o cerrado e vice-versa.

Nas florestas de terra firme, as mais ricas, pelo menos 11,8% seriamflorestas antropogênicas, inclusive com “ilhas de recursos”, com adensamentode espécies, drenagem por canais, práticas de amontoamento do solo, téc-nicas superiores às introduzidas pelos colonos, exemplares para a superaçãodos limites naturais, sem promover novos danos à diversidade. Entre as flo-restas manejadas cita as de palmeiras, bambu, castanhais, ilhas florestais docerrado, caatinga baixa, cipó, várzeas, igapós e açaiçais. Várias espécies plan-tadas destinam-se a atrair caça, à fabricação de utensílios, alimento, lenha,colorantes e repelentes. Os colonos e técnicos, escolhendo solos inapro-priados, contrastam também com o saber indígena e caboclo na escolha dosmelhores solos, cerca de 7% da Amazônia.

O conhecimento tradicional é o acumulado por uma cultura em gera-ções, em estreita relação com a natureza, incluindo sistemas de classifica-ção, de zoneamento e de manejo. Embora imemorial, não deve ser conside-rado apenas por sua antigüidade, mas pela maneira como é usado e foi ad-quirido. Dutfield (1999) lista as diferenças apontadas, por acadêmicos eativistas, entre o conhecimento científico ocidental e o indígena: tradiçãooral; resultado da intuição, observação e práticas; intimidade com outrosseres, aos quais se consideram interdependentes e espiritualmente ligados;mais qualitativo, holístico, inclusivo e gerado por usuários; diacronicamentecumulativo e coletivo. A ciência ocidental é analítica, quantitativa, seletiva,deliberativa, sincrônica, hierarquizada, verticalmente compartamentalizadae reducionista. O conhecimento tradicional promove a diversidade alimen-tar, estabiliza a produção, diminui riscos, reduz a incidência de insetos edoenças, usa o trabalho com eficácia, exige menos insumos e recursos emaximiza o retorno em condições de tecnologias simples e adaptadas.

O aproveitamento do conhecimentotradicional pelo mercado

Alguns ecólogos propõem que, com a valorização desses conhecimen-tos pela pesquisa, poder-se-ia desenvolver in situ formas de aproveitamentoeconômico vantajosas, sem destruição ambiental, com potenciais avanços

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na química e na farmacologia, por meio de substâncias alcalóides, fungicidase herbicidas; no aproveitamento de fibras e frutos de palmeiras, combinadocom adensamento florestal. A extração de produtos renováveis, como indi-cam as práticas indígenas, deveriam ser consideradas, apesar do declínio deseu uso, como a seringa, a castanha-do-pará, os frutos de palmeiras e apesca tradicional. Ao contrário, a agricultura intensiva, devido à perda defertilizantes, não tem conseguido na Amazônia resultado econômico dura-douro (Morán, 1990).

Experiências, como as asiáticas em socialforestry, com culturas perenese anuais, consorciadas com espécies florestais, inspiradas na diversificaçãoda cultura tradicional, começam a ser realizadas na Amazônia, como serin-ga com pastagem; pupunha com cacau; espécies para a produção de papelcom milho e feijão. Os lucros do gado são baixos, os da madeira em toranão são sustentáveis, o que tornaria o extrativismo e o manejo diversificadodo modelo tradicional potencialmente competitivo, conservando a florestaem pé. Em tal proposta aliar-se-ia preservação com objetivos sociais, permi-tindo o acesso ao mercado desejado por muitos desses agrupamentos e ori-entando os colonos. A população permanente no interior da Amazônia émenor hoje do que a das populações indígenas anteriormente à coloniza-ção, salvo nos surtos localizados de acampamento, como o do garimpo. Ossobreviventes indígenas ainda são maioria da população residente no interiorem vários municípios da região Norte, sobretudo quando somados aos ri-beirinhos e extrativistas influenciados pelos primeiros habitantes (Oliveira,1988; Morán, 1990; Ab’Saber, 1996).

A coincidência da concentração da biodiversidade em territórios ocu-pados pelas populações indígenas, e outras culturas tradicionais de manejo,colocou o tema da preservação dos recursos da natureza como interligado àdefesa dos direitos da diferença, como à terra e à cultura. Consideradas emlongo prazo, essas culturas entenderam privilegiadamente que a biodiver-sidade, tomada como o conjunto dos recursos genéticos, espécies e ecossis-temas, viabiliza a vida humana. Embora muitos índios, e outras populações,tenham se envolvido em negócios com madeireiras, garimpos, sobrepesca,entre outras atividades comprometedoras da renovabilidade e da preserva-ção da biodiversidade, é inegável que, antes da colonização, inclusive atérecentemente, pelo isolamento, antes da pressão da fronteira econômicanos últimos 30 anos, essas populações mostraram-se incomuns protetoresde seus recursos, capazes de um uso adequado, orientado por seus padrõesculturais.

O desmatamento, a poluição das águas, o aquecimento global, a amea-ça real e imediata de comprometimento da biodiversidade articularam a sua

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preservação com o modo de vida das populações indígenas e tradicionais,colocando o tema na agenda pública internacional, embora poucas solu-ções abrangentes tenham dela resultado. Tal correlação tem vários desdo-bramentos: as áreas ocupadas por essas populações, como áreas de preserva-ção permanente, com uso; o aproveitamento econômico dessas áreas; osdireitos dessas populações à autodeterminação, tanto à terra e aos recursosnaturais, quanto de acesso ao mercado, quando o desejarem; os direitos depropriedade intelectual sobre o uso no mercado de conhecimentos desen-volvidos por suas tradições; as incompatibilidades da visão indígena com asexigências do mercado, como as tecnológicas, de financiamento, de escala,de administração, de ritmo de trabalho, de apresentação do produto, deespecialização e de monocultura, dentre outras diferenças culturais.

Os índios e extrativistas não aproveitaram historicamente vários dosprodutos desenvolvidos por sua cultura, como no caso do ciclo da borra-cha: os ganhos foram para os donos dos seringais e exportadores. Com asplantações da Ásia, a exploração local dos seringais nativos teve seus preçosdegradados, não-competitivos sequer com as produções plantadas no Su-deste do país. Os ingleses selecionaram seringueiras no Kew Gardens (Jar-dim Botânico de Londres) e promoveram produções monoculturais noSudeste da Ásia, tornando inviável a produção da borracha em escala naAmazônia, onde as “estradas” (trilhas tradicionais) têm mais distância entreas árvores, sujeitas a pragas, tornando mais difícil a coleta (Neves, 1999).Ao contrário, as atividades extrativistas levaram os índios e seringueiros àservidão, como no caso do regime de barracão, cumulativamente endivida-dos, sem direitos à terra, aos recursos e ao resultado de seu trabalho. Quan-do os produtos selecionados são reintroduzidos ex situ, ou até adensadossob o controle de outros interesses in situ, os detentores desses conheci-mentos não têm sua contribuição recompensada.

Organizações internacionais ambientalistas, multilaterais ou não-go-vernamentais, vêm enfatizando como gerar lucros a partir do aproveita-mento econômico da biodiversidade. O argumento é de que o realismoconvida a demonstrar aos interesses comerciais as vantagens do desenvolvi-mento sustentável. A dificuldade é como introduzirem-se indígenas e tradi-cionais no mercado, em termos vantajosos e num quadro de livre escolha.Na maioria dos casos, pretende-se promover produtos aceitáveis para con-sumidores dos grandes centros. De saída, não é fácil atribuir valor a essesprodutos, menos ainda esperar que o mercado lhes atribua qualquer com-pensação. Algumas projeções, feitas por ambientalistas, estimam que as gran-des multinacionais estariam perdendo, com a destruição das florestas, lu-cros potenciais da ordem de US$ 77 bilhões (Gray, 1991).

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Índia Uruéuauau com colar do cipó babatimão no pescoço: analgésico contra a dor de cabeça. Estadenominação foi registrada por Jesco von Puttkamer (In memoriam). Conhece-se o barbatimão, mas éatribuído a plantas que apresentam alto teor de tanino, de ação adstringente e cicatrizante (a conferir).

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Capitalismo verdee projetos de desenvolvimento sustentável

À primeira vista, é sedutora, obrigatória, ou única saída, a hipótese dealiar preservação, diferença cultural, mercado e desenvolvimento para po-pulações que reivindicam acesso a recursos financeiros. A proposta de al-guns ambientalistas é combinar a vontade manifesta eventual de algumaspopulações, sua contribuição à preservação, e articulá-las com o capital in-dustrial para que saiam ambos com lucro. Não acreditam que razões apenaséticas, de dívidas sociais, possam levar à correção dos rumos de exclusão.Mas como conseguir essa parceria de contrários, evitando-se a dependên-cia, garantindo o território, a autodeterminação, a cultura e o controle des-ses negócios aos mais fracos, historicamente sempre perdedores? As dificul-dades são incontáveis, uma vez que o desafio seria o de rentabilizar, semcomprometer a biodiversidade, nem a livre escolha dessas populações, quesentariam à mesa com forças melhor instrumentalizadas, em posição des-vantajosa, como parceiros desfavorecidos, ignorando práticas de mercadoque dominam ainda menos do que os demais cidadãos, menos inclusive queoutros segmentos da imensa maioria excluída, pela concentração do capitale da tecnologia, em um cada vez menor número de mãos.

Outros, mais cépticos, condicionam uma melhor relação dessas popu-lações com o mercado a uma mudança profunda do status quo do sistemainternacional, inclusive por intermédio de convenções internacionais. Al-guns dando-se como tarefa provar que é de interesse público, procuramampliar a compreensão, caminho pelo qual pretendem obter fundos, apoiostécnicos não-interferentes, consumidores, parceiros e outros espaços paraessas populações, contribuindo para suas necessidades e preservação dabiodiversidade em maior escala. Outros, ainda mais cépticos, consideramque o problema é estrutural e tudo na concentração em curso trabalha con-tra as necessidades da conservação e da autodeterminação. Há dificuldadesexternas e internas às populações para que tais experiências se tornem efica-zes, duradouras e compensatórias.

Se a biodiversidade está ameaçada, porque não protegê-la primeiro insitu? A conservação da biodiversidade, para dar-se nas dimensões amplasrecomendadas pelos especialistas, implica diversas modalidades de áreas depreservação, entre elas a garantia das terras e direitos das populações tradi-cionais. Os chamados civilizados seriam seres sem ligação local, os da biosfera,que terminam por necessitar criar parques nacionais para compensar as ati-vidades destrutivas de suas monoculturas. O velho estilo conservacionistaprocura remover as populações, mesmo quando mantiveram as áreas que

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habitam preservadas. Aumentam em número os que admitem que umapopulação possa ser parceira de projetos de conservação e qualidade devida, para presentes e futuras gerações, interligando preservação e direitosterritoriais. A proposta seria a de negociar uma política comum entre osambientalistas e a população local, o que não se dá sem conflitos contínuos.A crítica dos ambientalistas sociais aos conservacionistas clássicos centra-seem sua excessiva ênfase nas áreas de conservação exclusivas, permitindo nomáximo que os tradicionais conservem faixas do entorno, chamadas bufferareas (Gray, 1991).

Entre os próprios ambientalistas, indigenistas e representantes dessaspopulações diferenciadas há competição e diferenças de estratégia. Por exem-plo, entre as pequenas e médias iniciativas, de grupos menores ou de popu-lações que desenvolvem pequenos projetos, com grande carga administrati-va, levados por ombros generosos, diferenciando-se das grandes ONGS inter-nacionalizadas, que disputam projetos de maior porte, profissionalizadas,financiadas e socialmente prestigiadas. Alguns estão mais voltados a umaação próxima de interesses governamentais e privados, inclusive com finan-ciamento multilateral, com maior ou menor decisão, informação e partici-pação das populações.

Gray (1991) identificou tendências entre os ambientalistas frente àspopulações: os capitalistas verdes, os conservacionistas clássicos e os ecolo-gistas sociais. Os capitalistas verdes defendem que, para salvar a floresta, épreciso convencer governos, empresas e recém-chegados, criando merca-dos rentáveis para os produtos da floresta. Os sociais trabalham com insti-tuições voltadas ao manejo sustentável de recursos e dão prioridade às po-pulações. Os conservacionistas clássicos enfatizam a criação de parques ereservas mediante atividades como o turismo, ou por doações dos paísesmais ricos, removendo as populações. Nos últimos anos tais diferenças di-minuíram e surgiram outros alinhamentos. Líderes indígenas, indigenistas,também conseguiram melhores acordos entre os defensores da inserção in-condicional das populações no mercado, os que pregavam seu isolamento eos que enfatizavam a autodeterminação, tanto no controle das terras, quan-to no acesso ao mercado. Mas diferenças permanecem entre as visões so-ciais, culturais e éticas da conservação, nas quais populações surgem comoparceiros, e os que insistem na preservação como um fim em si, em áreaspara pesquisa e turismo, considerando irrealista trabalhar com populaçõeslocais.

Há cada vez maior unanimidade quanto a aproveitar oportunidadesde mercado, tanto via produtos quanto na conquista de compensações pelacontribuição que estas populações prestam à conservação da biodiversidade

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in situ e na obtenção de financiamento. As divergências, muitas vezes áspe-ras, dão-se mais sobre o como fazer. Pode-se concluir que médios e peque-nos projetos têm sido mais favoráveis ao controle indígena. No entanto,fracassam quando não-articulados com mudanças jurídicas e sócio-econô-micas mais amplas. As bases são a autodeterminação, o autodesenvolvimento,os direitos sobre o território, a liberdade de expressão cultural, o controledo manejo dos recursos, em todas as suas fases: produção, transformação,contatos, estratégias de mercado, tecnologia, administração, distribuiçãoda renda, escala, marketing. Tais aspectos sugerem que um aprendizadocompensatório será mais efetivo com apoio técnico, desde que não interfe-rentes ou controladores. A médio prazo, essa solução inclui a capacitaçãode técnicos das próprias populações, professores bilíngües, agentes de saú-de e administradores, escolhidos pelas comunidades. Uma das propostas éque cada comunidade deveria contar com seu plano próprio de autodesen-volvimento, prevendo manejo diversificado de recursos, aliando auto-so-brevivência com mercado de livre escolha, mas em diálogo com especialis-tas que possam sugerir e oferecer suporte técnico e treinamentos. O acessoao mercado traz obrigatoriamente mudanças produtivas, de difícil previsãopelo seu maior ou menor grau de incorporação, aceitação, dependência einterferência externa indesejada.

Muitos desses projetos não consideram a diversidade cultural das po-pulações, que, apesar de coincidirem como detentores de uma dívida socialcoletiva, apresentam-se com sua especificidade. Os grupos indígenas no Brasiltêm mais de 500 áreas, 180 idiomas e organização social diferente das deribeirinhos, quilombolas ou extrativistas. Estudos demonstram que indíge-nas sempre realizaram trocas, pela reciprocidade e em espécie, inclusive ri-tuais, entre vários grupos. Após a colonização, através de intermediários,regateiros e marreteiros que os exploravam, como no caso da borracha, en-tregavam o produto e seu trabalho a baixo custo, sempre “devedores”, con-traindo novas doenças, perdendo terras e recursos. Experiências mostramque o conhecimento não retorna vantajosamente aos tradicionais, quandoposto sob o poder concentracionário de interesses financeiros externos, in-dustriais ou do agribusiness, a partir do maior controle do acesso à informa-ção, à tecnologia, ao capital e à escala de produção. Os produtos que real-mente poderiam ter bons resultados financeiramente, são os que menosessas populações estão preparadas para administrar, os mais interferentes epredatórios, como os farmacêuticos, sementes, material genético, madeiranobre, mineração, ecoturismo, atividades ligadas a esferas e circuitos com-plexos do mercado, com maior risco de imposição de uma concepção exte-rior de desenvolvimento e de queda de qualidade de vida.

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Nos projetos de registro de patentes e produção ex situ da biodiver-sidade, os nativos servem como informantes, colaboradores na seleção dedados, mas raramente são os que compilam, sistematizam e controlam oaproveitamento desses dados (Dutfield, 1999; Shiva, 1999).

Algumas experiências de saídas econômicas, apresentadas como com-pensatórias, são até mais modestas, como a venda de farinha para o merca-do mais próximo, a exemplo dos índios do Mamoré, fornecendo à cidadede Guajará-Mirim. O mais freqüente é que consigam colocar ocasional-mente seus produtos em feiras locais. Dessas soluções resulta a oferta deexcedentes de sua produção rotineira para a auto-sobrevivência, como oartesanato, a pesca, a farinha, e não novidades escolhidas pelo seu valor demercado, mas produções variadas de pequena escala, levadas por famílias oualdeias, ampliando o acesso de seus excedentes no mercado regional.

Parte dos projetos voltados a essas populações não se mostraram com-pensatórios, nem garantiram autonomia e livre escolha. A advertência dealgumas vozes representativas dos índios e indigenistas, como de outrosdesfavorecidos pela diferença cultural, é de que, em geral, as populações sãotratadas como vítimas passivas ou simples receptáculos de projetos impos-tos de cima. Muitas vezes os proponentes partem de uma visão bem-inten-cionada, mas paternalista e economicista, que não leva em conta a especifi-cidade cultural, os direitos à autodeterminação, opções diversificadas, se-quer as produções costumeiras, voltadas à auto-sobrevivência e ao autoabaste-cimento. A tendência é de que a monocultura se imponha, privilegiandoprodutos não-sustentáveis, diminuindo sua autonomia e assimilando valo-res exteriores às suas tradições. Outros chegam a controlar a produção,impondo concepções de desenvolvimento, sejam de interesses privados, téc-nicos do Estado, religiosos, conservacionistas e ONGS indigenistas. Tais ini-ciativas tendem a soluções monolíticas e monoculturais, precárias, sazonais,produções sujeitas a preços instáveis, ameaçadas por desmatamento e pra-gas, como nos casos da pesca, seringa e castanha. A dependência vai aumen-tando por prazos, transporte, armazenamento, apresentação, marcas,tecnologias de transformação, escala e agregação de valor. Populações com-prometeram assim o seu modo de vida, sem vantagens, ao aceitarem, pornecessidade, pressões pelo consumo de seus produtos, incorporando novosmétodos, inclusive no trato de espécies que manejam tradicionalmente.

A livre escolha das populações tradicionais

Uma das propostas refere-se a que essas populações criem suas pró-prias instituições controlando seu conhecimento, com o apoio de pesquisa-

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dores, acordos sobre royalties, negociando autorizações e compensações.Nem todos julgam obrigatório o acesso às patentes; a informação poderiaser aberta, mas seu uso controlado e as compensações acordadas, desde quecapazes de decidir, porque autônomos e informados. Recomenda-se quepartam do mercado local e regional, para as esferas mais amplas do merca-do, como o nacional e o internacional. Suas próprias instituições encontra-riam canais para acessar o mercado, com marcas próprias, selos verdes ecertificados de origem, com banco de dados registrando a informação e aprodução que possam oferecer. Os defensores do capitalismo verde procu-ram espécies para o mercado, pretendendo “descobri-las”, mas as minoriastêm se saído melhor in situ do que ex situ. Esse reconhecimento, por meiodos produtos, contribuiria para o respeito e a tolerância com as culturasdiferenciadas e com maior sabedoria e conhecimento sobre o manejo dasflorestas (Gray, 1991).

O financiamento de projetos governamentais e privados pode resultarno fomento ao individualismo, aumento da desigualdade e de conflitos,com quebra não compensatória dos laços tradicionais de reciprocidade.Experiências revelaram dificuldades de representação dessas populações, aser sempre conferida e legitimada. No caso dos índios, dada sua diversida-de, é importante garantir que a representação seja proporcional e pluriétnica,quando se trata de organizações regionais ou intergrupos. Há conflitos en-tre as formas tradicionais de organização social, nos quais os mais velhosdesempenham papel fundamental, enquanto novas formas organizativas,de inspiração sindical ou partidária, lideradas por pioneiros mais jovens,desenvoltos na cultura majoritária, mas que nem sempre garantem formasde distribuição compensatórias aos mecanismos culturais de reciprocidade.A dificuldade advém do fato de se considerar a organização de representa-ção política dessas populações como capaz de conduzir também projetoseconômicos, quando os produtores ativos estão ligados aos conselhos tradi-cionais de aldeias, às famílias ampliadas e aos laços de parentesco, e não aoslíderes reconhecidos externamente, que muitas vezes residem na cidade,alguns prestando serviços reais, outros em situação socialmente precária.

Algumas iniciativas têm levado também à criação de facções nas co-munidades, não considerando as divisões internas já existentes, ou inter-grupos, e agravando-as. No caso de jovens lideranças indígenas que entra-ram ilegalmente em negociação com madeireiras e garimpos, freqüentementeurbanizaram-se, comprometeram-se em casamentos mistos e em outras re-lações de dependência, perderam muitos de seus laços, não souberam fazeruso dos recursos a longo prazo, nem os redistribuíram adequadamente aosseus. As mulheres, as crianças e os idosos terminaram sem as garantias da

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reciprocidade, não participaram dos ganhos dos negócios realizados peloshomens em suas novas alianças e suas aldeias foram faveladas, aumentandoa desnutrição e as doenças.

Muitos projetos inspiram-se em visões comunitaristas, como se os ín-dios estivessem disponíveis culturalmente para formar cooperativas igua-litaristas, o que não coincide com os fatos, nem com as tradições. A produ-ção de grande número desses agrupamentos tem como base o parentesco ea cooperação no trabalho, o que não se confunde com coletivismo, pois alise sabe o que pertence a cada um, apesar de os recursos encontrarem-semais disponíveis ao uso comum do que na cultura majoritária. Embora fun-dados na solidariedade e reciprocidade, não existe socialização da produ-ção, nem a predisposição idealizada por bem-intencionados. Com a pressãodo exemplo dos colonos vizinhos, ao contrário, sobretudo entre os maisjovens, muitos querem ver dinheiro vivo e imediato, cuja redistribuição nãoé automática, nem mantida nos padrões de reciprocidade da tradição. Pro-dutos de fora chegam com regras de mercado introduzidas pelas práticasregionais, das mais precárias na fronteira. O que se assiste é à subalternizaçãopelos intermediários, mais conhecedores da dinâmica do mercado, capazesde manterem contato com os consumidores distantes. Essas populaçõesprecisariam controlar coleta, produção, extração, transformação e comer-cialização, mesmo perdendo aparentes grandes negócios que não são os seus.

Dutfield (1999) recapitula o debate entre os que defendem os tradicio-nais como preservacionistas éticos e os que consideram que esta ética nãopode ser generalizada, pois prevaleceria apenas quando estão isolados emgrupos menores. Lembra os cépticos quanto “aos selvagens ecologicamentenobres”, e os que consideram perigoso e injusto impedir-lhes o acesso anovas tecnologias, condenando-os apenas às tradicionais, de menor impac-to, mas limitando suas estratégias de sobrevivência.

Etnomedicina e etnofarmacologia

Três quartos das drogas utilizadas pelo receituário médico derivam deplantas descobertas pelo conhecimento indígena. De 120 componentes ati-vos isolados de plantas, 75% têm origem em seu uso tradicional. Plantastradicionais foram utilizadas em sete mil componentes da farmacopéia emuso. O aproveitamento da biodiversidade no mercado transformou-se emum negócio expressivo: a venda de medicamentos derivados de plantas nosEUA, em 1990, já alcançava US$ 15.5 bilhões. Em 1985, somando-se EUA,Europa, Canadá, Austrália e Japão, esse mercado movimentou US$ 43 bi-lhões. Especialistas destacam a relevância do conhecimento indígena, comoquinino, para malária; curare, relaxante muscular; hormônio esteróide

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diosgenin, nas pílulas anticoncepcionais; vincristine, usada na cura do malde Hodgkin e na leucemia. No início da década, o Instituto Nacional doCâncer dos EUA desencadeou uma pesquisa procurando plantas para quimio-terapia em todo o mundo (Gray, 1991; Davis, 1993; Nijar, 1999). O Insti-tuto Nacional de Saúde dos EUA tem um estoque de germoplasmas, arma-zenados criogenicamente, que permanecerão disponíveis por 350 anos. Osresultados do conhecimento tradicional foram apropriados como tecnologiaspatenteadas, sem o consentimento ou a adequada compensação aos que odesenvolveram, como no caso da morfina ou do quinino.

Algumas iniciativas pretendem compartir com os índios os lucros desua medicina no mercado. Na Califórnia, a Shamam Pharmaceutical Inc. sepropôs a remunerá-los pela coleta, cooperação na taxinomia das plantas epela propriedade intelectual. A empresa encontrou, em 1999, dificuldadespara a aprovação de produtos pela FDA-EUA (SP-303-Provir), devido aoscustos dos estudos clínicos exigidos. Em 1998, foi criada também a ShamanBotanicals, voltada a produtos alimentícios, selecionados a partir de estu-dos etnobotânicos. Foram recebidos com ceticismo pelo mercado e comdesconfiança por alguns ambientalistas e pesquisadores. A Merck and Co.,Inc. fez um acordo semelhante com a organização de pesquisas INBio ecomunidades da Costa Rica (Davis, 1993:19).

Organizações indígenas da Amazônia (30/3/99), com o apoio deentidades ambientalistas, ingressaram com um pedido pela anulação da pa-tente n.º 5751, da planta “ayahuasca” ou “yagé”(Banisteriopsis caapi), re-gistrada por Loren Miller, em 1986 (2). O argumento, apresentado ao Patentand Trademark Office dos EUA, é de que a planta é usada pelos pajés daAmazônia em cerimônias religiosas de cura, para chamar os espíritos e paraprever o futuro, devendo ser cuidada e usada com respeito e precaução. Napetição, solicita-se que o serviço de patentes cuide de registrar apenas pro-dutos aos quais se acrescentou conhecimento, o que não vem ocorrendocom plantas de uso tradicional. O registro aceita como propriedade parti-cular de qualquer um, conhecimentos que pertencem há gerações a outrasculturas, quebrando a exigência de que a patente caracterize inovação. Asolicitação pretende que o serviço de patentes garanta contribuições aospovos indígenas, incentivando a conservação dos sistemas tradicionais deconhecimento da biodiversidade, equilibrando os benefícios entre os ope-radores no mercado e os detentores do conhecimento por tradição de uso.Um exemplo é o do anticoagulante retirado da planta “tike uba” (3), usadapelos Uruéu-au-au (RO), contatados na década de 80, que foi entreguepara análise a grandes empresas, sem retorno ou controle previsto à popula-ção que a desenvolveu (Gray, 1991:46; Leonel, 1995).

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Um químico francês coletou dos índios Chimanes da Bolívia, o pó dacasca da espécie da floresta tropical Phlebotomus, identificou a planta (Galipealongiflora), usada tradicionalmente no tratamento da Leishmaniose, paten-teou-a, isolou seu princípio ativo e pesquisou sua eficácia. O produto aindanão foi fabricado por seu alto custo ao consumidor e à exigência de pesqui-sas clínicas. Os bolivianos protestam porque os índios não foram associadosà patente. Como a pesquisa foi financiada pela cooperação técnica francesa,busca-se parceiros privados e formas jurídicas para reconhecer os direitosdos índios, caso se torne um produto rentável no mercado (Tardieu, 1999).Os Wapixana (RR) denunciam um químico alemão, Conrad Gorinski, filhode uma índia, pelas patentes nos EUA e na Europa de duas plantas de usotradicional: uma para a pesca, o cunani, que poderia ser usado como anes-tésico; outra, tibiru ou rupununi, um remédio tradicional, que poderia seraproveitado no tratamento de tumores, malária e como anticonceptivo.

Biotecnologia, biopirataria,patentes e conhecimentos tradicionais

A chamada “revolução verde” é citada como advertência e preceden-te da exclusão das populações (Escuret, 1989; Gray, 1991; Nijar, 1999). Aprodutividade por hectare de grãos selecionados foi dobrada nos anos 80, aárea cultivada aumentou em 24%, com alto custo em energia, insumos, má-quinas, combustíveis, fertilizantes, pesticidas, herbicidas, irrigação, eletrici-dade, transporte e impactos sobre a disponibilidade de terra e água.

Espécies foram selecionadas para monoculturas em escala, como mi-lho, arroz e batata. Sete cereais passaram a totalizar metade das calorias dapopulação mundial. Ao invés de compensações por sua oferta de biodiver-sidade, adquiriram novas espécies selecionadas, mais eficientes por hectare,porém mais expostas a pragas e parasitas, sem a garantia de substituiçãooferecida pela diversidade. Esses ganhos de curto prazo foram localizados,para grandes produtores, enquanto os pequenos endividaram-se e perde-ram terras.

A “revolução verde” foi patrocinada por uma rede, a InternationalAgricultural Research Centers, coordenada pelo Consultative Group onInternational Agricultural Research (CGIAR), criado em 1970, pelo BancoMundial. Promoveram-se coleções e bancos de conservação de recursosgenéticos, selecionando espécies, desestimulando a diversificação, criandomonopólios das sementes mais resistentes aos herbicidas. Muitas espéciestêm sido retiradas para conservação fora de seu local de origem, para pes-quisa, verificando-se as condições de aproveitamento em outros locais, ou

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desenvolvendo-se novas variedades. O CGIAR e a FAO criaram uma insti-tuição voltada para a conservação e pesquisa de recursos genéticos, o Inter-national Bureau for Plant Genetic Resources (IBPGR), que centralizou, noinício da década, 127 coleções de material genético, com 81 delas em paísesdo hemisfério norte e 29 controladas por multinacionais. Apenas 17 encon-travam-se em países do Terceiro Mundo, apesar de a maioria das espéciester sido neles coletada.

Estoques, em baixas temperaturas secas, foram conservados em 227bancos de sementes, em 99 países. Poucas espécies foram destinadas a se-rem preservadas in situ, como o amendoim, o óleo de palmeira, a banana, aborracha, o café, o cacau, a cebola e os cítricos.

Alguns conservacionistas entendiam que essa era uma das formas demanter vivas as opções, argumentando que a proteção de espécies da natu-reza oferece tantas alternativas e tantos avanços quanto a biotecnologia. Ossociais defendiam a prioridade à proteção in situ, com a participação daspopulações detentoras do conhecimento, pois consideram que, de outraforma, os resultados serão semelhantes aos da seleção para monoculturas da“revolução verde”, dominadas por um pequeno grupo de grandes empre-sas, controladoras de direitos e informações (Gray, 1991). Em 1996, o CGIARcontou com US$ 300 milhões para renovar seu programa, levando agoraem conta populações e ecossistemas, e denunciando patentes vindas dosbancos de germoplasma de acesso público.

Dutfield (1999) adverte que há dúvidas de que estes “arquivos” pos-sam se manter atualizados, uma vez que o conhecimento tradicional evolui,e, fora de seu contexto, perde vitalidade. A pesquisa para patentes que nãoreconhecem os direitos das populações vem sendo recebida com reservas deordem ética, ao valorizar e apropriar o conhecimento, excluindo dos bene-fícios as populações detentoras. Vários programas enviam pesquisadores paraselecionar amostras e descrições de uso. Os recursos dos ecossistemas tropi-cais são considerados herança da humanidade, sem dono, livres para paten-te e comercialização. A partir do processamento de amostras, a “descober-ta” é patenteada, os direitos passam para a empresa financiadora, protegidoscomo mercadorias.

A “revolução verde” consistiu na manipulação genética pela seleçãode plantas. A biotecnologia atravessa a barreira das espécies, recria, modifi-cando a partir de organismos vivos, por técnicas diversas, obtendo novasespécies de interesse comercial. A biotecnologia apresentou-se como pro-messa de solução à escassez de alimentos. Enquanto a “revolução verde”dependeu de fundos públicos, a biotecnologia é dominada pelas grandes

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corporações multinacionais, que definem a agenda das pesquisas, financian-do universidades e centros de pesquisa (Gray, 1991).

As patentes estão no centro do controle concentracionário permitidopela biotecnologia, com a cobrança de direitos sobre formas de vida modi-ficadas. O dono da patente tende a liderar o mercado e as futuras inovações,inclusive as dos detentores originais do conhecimento de seu uso. A concei-tuação desses produtos como novidades, pela criatividade e uso prático,condição para ser registrada, vem sendo questionada quanto à sua ética e àsua lógica, uma vez que nada na natureza é estritamente inventado, e o quese tem feito é modificar. Para todos os agricultores é um impasse, pois nãopoderiam usar mais as espécies com elementos genéticos patenteados. OsEUA e a Europa admitem legalmente tais patentes, e embora com discre-pâncias, o sistema é unificado. Os países em desenvolvimento tentaram, porintermédio da FAO, impedir que o controle ficasse apenas com os que de-têm tecnologia, em prejuízo dos detentores originais. Procura-se garantiras operações das multinacionais além fronteiras, com desvantagem para ospaíses que não detêm tecnologia, dificultando o acesso a produtos, bloque-ando sua capacidade de inovação e competitividade, inclusive quando osconhecimentos têm origem em suas próprias populações.

De início, a propriedade intelectual foi discutida quanto aos direitosdos conhecimentos informais de agricultores como um todo. Com a entra-da no debate da oferta de plantas da biodiversidade tropical, o tema tocoumais de perto as populações tradicionais. Pesquisas em curso voltam-se paraconservantes e inseticidas naturais. Chegou-se a reivindicar que direitos sobrevariedades de mandioca, batata, tabaco, quinino, curare e milho fossementão reconhecidas aos tradicionais. Os ambientalistas comerciais são criti-cados por encorajarem as empresas a desenvolverem superespécies, selecio-nando-as ex situ, promovendo monocultura, sem garantir os direitos daspopulações. Os países do Sul perderam com a “revolução verde”, seus po-vos tradicionais e pequenos produtores, perderão ainda mais com a biotecno-logia.

A tônica internacional é a do descolamento e de contradições entre osacordos e fóruns de negociações, separando-se temas inter-relacionados,como a conservação da biodiversidade, os direitos e conhecimentos daspopulações e os interesses das grandes corporações em garantir lucros sobretecnologias. Nos últimos anos, alguns discursos pareciam se aproximar, masnão há medidas efetivas que possam ser comemoradas. O princípio de que apreservação da biodiversidade é inseparável da cultural tornou-se mais acei-to, mas são poucas as parcerias entre populações, ambientalistas, governos esetor privado. Em geral, os direitos das populações à biodiversidade vêm

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sendo discutidos como temas éticos e sociais, em convenções da OIT, daFAO, na convenção da biodiversidade, em grupos de trabalho da ONU. Osinteresses das grandes empresas, na forma de patentes e propriedade inte-lectual são tratados no GATT e na OMC como direitos comerciais. A tônicaé a de sempre: os países tropicais oferecem livre acesso aos conhecimentosde uso da biodiversidade, os do Norte cobram tecnologia. Na lógica depropriedade e mercado que construíram, concentracionária e hegemoni-camente, os conhecimentos da biodiversidade são patrimônio da humani-dade, de livre acesso, não contabilizáveis, mesmo que regressem aos paísesde origem na forma de mercadorias.

A Convenção Internacional da Biodiversidade reconheceu a sobera-nia dos países sobre os benefícios e os recursos de sua biodiversidade; reco-mendou proteção aos direitos e conhecimentos das populações tradicionaisquanto a seus recursos; previu legislações nacionais sui generis garantindoestes conhecimentos; incentivou a proteção de tecnologias informais e ouso sustentável da biodiversidade. Os EUA isolaram-se frente aos 169 paísesque ratificaram a Convenção. Dutfield (1999) considera positivo que a con-venção tenha conceituado os conhecimentos informais como inovações epráticas tradicionais, retirando-lhes a carga de saber datado, histórico, infle-xível e estático.

A jurisprudência internacional reconheceu a propriedade intelectualquanto a criatividade e inovações das empresas, pelas patentes, mas não ainformal, tradicional, coletiva ou intergeneracional. O resultado, argumen-ta Nijar (1999), é que as empresas continuarão a visitar populações tropi-cais, reclassificar, transformar e patentear materiais genéticos do uso tradicio-nal da biodiversidade. A Union for the Protection of New Varieties of Plants(UPOV), em convenções (1961/1991), tratou das espécies consideradasidentificadas, homogêneas e estáveis, protegendo os selecionadores, emprejuízo dos conhecimentos informais. Com as patentes, os grandes podeminvestir em novas variedades, enquanto as populações tradicionais, mesmoque cumulativamente tenham desenvolvido esses produtos, foram margi-nalizadas da competição. Apenas a última contribuição tecnológica é prote-gida, a de grandes empresas, que podem controlar as variedades subseqüen-tes (Gray, 1991; Nijar, 1999).

O acordo patrocinado pela OMC – Organização Mundial do Comér-cio, o TRIPS – Trade Related Intellectual Property Rights, fortaleceu o sis-tema de patentes. Os EUA e a Europa consideram que os conhecimentostradicionais não cabem na lógica de propriedade e patente do TRIPS, masem sistemas como a UPOV, articulados com a convenção da biodiversidade,ou similares, a serem criados, mas menos efetivos (Nijar, 1999).

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O Grupo de Trabalho da ONU sobre populações indígenas, em 1990já reivindicava medidas de proteção da propriedade intelectual para manifes-tações culturais, entre elas literatura, desenho, artes visuais, performing arts,sementes, recursos genéticos, medicina e conhecimentos de uso de proprie-dades da fauna e da flora. Davis (1993:20) manifestou-se céptico quanto àpossibilidade de que a revolução biotecnológica, mesmo com o reconheci-mento da propriedade intelectual, pudesse por si só garantir prosperidadeeconômica para populações indígenas e comunidades rurais tradicionais.

A visão dominante é economicista, voltada às espécies rentáveis e àlógica do mercado, contraditória inclusive em documentos que afirmam serimpossível salvar uma espécie, sem preservar grandes porções dos ecossis-temas, e nos que reconhecem as dificuldades de aproveitá-las em todas assuas potencialidades ex-situ, por interromper o saber cumulativo de seu usocontínuo. A prioridade ao mercado é redutora do ambiente a um conjuntoquantitativo de recursos, listas ou inventários de espécies e usos, separadasdas inter-relações culturais entre sociedades e naturezas, das exigências da

Índios Uruéuauau passando nas flechas líquido anti-coagulante chamado Tike-Uba

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própria natureza, evitando articular as questões. As populações chegam aser vistas como mais um grupo de interesses, o das minorias, que seriampotenciais predadores, semelhantes às agropecuárias, mineradoras, madei-reiras e colonos, pois terminariam por aceitar a compensação do lucro peladegradação. Os ecologistas sociais respondem que é preciso garantir-lhes ascondições de autoabastecimento e compensações pela preservação.

Uma das tentativas iniciais foi a da troca de títulos da dívida externapor áreas de preservação, com experiências na Costa Rica e na Bolívia. Estaalternativa serviu para algumas experiências de parques conservacionistas,mas não tanto para as populações tradicionais. Na última década investiu-seem projetos florestais de captação de carbono, em sua maioria plantios deinteresse das indústrias de papel, sem a participação das comunidades, privi-legiando poucas espécies e carentes de uma visão de socialforestry. Gray (1991)estimou que sobrevivem cerca de cinco mil minorias culturais, 200 milhõesde pessoas, 4% da população mundial, localizando-se em sua maioria naÁsia, nas ilhas do Pacífico, entre os pastores e coletores da África, nas Amé-ricas, representando 90% da diversidade cultural do planeta.

Propostas para superaros impasses das negociações internacionais

A proposta de especialistas, reunidos em 1997 pela convenção dabiodiversidade, foi a de moratória da coleta de conhecimentos tradicionais,até sua proteção. Chegou-se a propor que o material biológico em geraldeveria ser excluído dos direitos de propriedade intelectual, por razões éti-cas, pelas diferenças culturais e pela ameaça à biodiversidade. A SociedadeInternacional de Etnobiologia condiciona as pesquisas ao consentimentoinformado das populações. Os críticos do reconhecimento da propriedadeintelectual informal argumentam que constituiria uma limitação ao acessoàs heranças da humanidade, além de forçar comunidades a agirem na óticadas empresas privadas, porque o conhecimento tradicional é consideradobem coletivo e a tecnologia privada.

Outras soluções têm sido consideradas, como a do registro de espécies,por sistemas próprios de cada país, antes que elementos genéticos da suacomposição venham a ser patenteados. As leis de copyright referem-se àreprodução de obras de arte, de material escrito ou visual. Os mecanismosde licenciamento de tecnologia, como o de patentes, tratam de direitosindividuais e não coletivos. Especialistas recomendam tentar todas as op-ções: cultivares, patente, copyright e licença tecnológica, embora tais instru-mentos não sejam adequados às necessidades e concepções das populações

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tradicionais. O Brasil nos últimos anos promulgou a lei de proteção decultivares, atualizou a lei de direitos autorais, que não considera invençãoos materiais biológicos, mesmo isolados, embora permita a patente dostrangênicos. Os bens culturais também são difíceis de proteger contra abu-sos e descaracterizações, pois é preciso, ao mesmo tempo, encorajar novascriações, apoiar a disseminação, adaptações em obras de autor, e condicioná-las à autorização das autoridades nacionais e das comunidades. Esforçostêm sido feitos para aumentar garantias às minorias, por intermédio da WorldIntellectual Property Organisation, com sede em Genebra (Gray, 1991; Nijar,1999).

Para garantir os direitos de tradições informais – fora do TRIPS e daUPOV – restam as leis nacionais, acordos de reciprocidade bilateral, novasconvenções, ou recorrendo-se a razões éticas ou de interesse público paraanular patentes. O conceito de inovação, pouco claro, daria espaço a quecada país estabeleça seus critérios. Nos EUA, uma forma isolada e processa-da, pode ser patenteada, mesmo quando encontrável na natureza. Os euro-peus permitem patentes de estruturas e processos de obtenção, desde quenão sejam de domínio público. Outros países, por leis próprias, poderiamreconhecer direitos de tradições, recusar o registro de patentes genéticas,ou combinar patentes com outras modalidades de proteção, equilibrandodireitos das empresas com os dos tradicionais. No Brasil o Congresso discu-te a regulamentação do acesso ao patrimônio genético, a partir da propostada senadora Marina Silva (PT-AC).

Outras experiências envolvem parcerias com pesquisadores locais e ascomunidades, o que é visto como uma iniciativa de instituições e de empre-sas farmacêuticas dos EUA de aplicar princípios da convenção da biodiver-sidade, mesmo sem ratificá-la, como a Bristol Myers Squibb, no Suriname.A dificuldade é que sequer os pesquisadores brasileiros estão preparadospara estas negociações, o que traz cepticismo quanto à possibilidade de queos índios e outros tradicionais possam fazê-lo (Kauffmann-Zeh, 1999). AGlaxo Wellcome fez um acordo com a empresa brasileira Extracta, para aprospecção de 30 mil compostos, a um custo de US$ 3,2 milhões, 18% parasubcontratos com cientistas brasileiros, mas a notícia não esclarece se osdireitos das populações estão previstos (FSP, 20 jul. 1999:13-21). Cientistasestrangeiros acusam os brasileiros de bioparanóia, advertindo que pesquisarãoem outros países e que o Brasil sairia prejudicado, pois apenas 10% das espé-cies da Amazônia seriam conhecidas.

Na proposta de Nijar (1999), leis nacionais poderiam condicionar aspatentes ao consentimento informado das populações; proibir o registro dederivados do conhecimento tradicional; desobrigar as populações de regis-

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trar conhecimentos, sendo suficiente a prova de uso tradicional; aplicar comoúnico critério de registro o da UPOV, em variedades identificadas, unifor-mes e estáveis; desobrigar pequenos e minorias de respeitar patentes; res-tringir o conceito de variedade derivada; incentivar a conservação local desementes; por precaução, recusar registros que possam vir a afetar a biodiver-sidade, a saúde, ou quando a variedade não tem capacidade regenerativanormal ou prejudica sócio-economicamente o país ou comunidades. Pro-põe ainda que os temas relativos à biodiversidade e às populações passem a sertratados pela convenção da biodiversidade e não pelos acordos comerciais.

Dutfield (1999) argumenta que há vários domínios privados de co-nhecimentos, não previstos nas convenções, que consideram apenas um tipode propriedade intelectual, o empresarial-comercial dominante. Para os di-reitos de populações tradicionais, seriam necessários novos instrumentos ju-rídicos, fundados nos direitos de detentores de conhecimentos resultantesde práticas coletivas, consuetudinárias ou costumeiras, com prioridade paraconhecimentos ainda não de domínio público e futuras inovações informais.Assim, quando um conhecimento fosse colocado no domínio público, semo consentimento de seus detentores, estes deveriam poder recuperar suatitularidade e direitos de indenização, pelo mesmo princípio da patente, queé o de estimular a criatividade. Tais direitos diferenciados deveriam ser reco-nhecidos não apenas pelo seu valor instrumental, mas também pela contri-buição das culturas minoritárias e por razões éticas. A troca de bioprospecçãopor tecnologia, associação nas patentes e combinação de royalties com paga-mentos antecipados na coleta são outras propostas formuladas. Fato é que aslógicas da ciência e do mercado diferem dos sistemas tradicionais de conhe-cimento, na concepção de propriedade, e há forte ceticismo quanto ao reco-nhecimento de direitos de populações, ou outros que se encontrem fora dosinteresses das grandes empresas que concentram capital e tecnologia.

Algumas das alternativas implicam modificar as leis de patentes, ou-tras combinam soluções, como certificados de origem dos produtos, mar-cas ou selos próprios de populações, com indicações geográficas e culturaisde origem como saídas para que países tropicais incentivem compensaçõesaos conhecimentos de suas populações tradicionais. Poderiam ser exigidas,para o registro de patentes, declarações de que produtos genéticos não re-ceberam qualquer contribuição anterior de populações tradicionais, ou evi-dências de que houve o seu consentimento informado e de que participa-riam dos lucros. Sistemas especiais de certificação e padronização podemgarantir às comunidades poder de veto ao acesso e uso de seus recursos.Mesmo que várias dessas iniciativas fossem tomadas, como os tradicionaisvenceriam no mercado?

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Outra linha de alternativas, não apenas jurídicas, mas de defesa dabiodiversidade e dos tradicionais in situ, pretende fortalecer as próprias co-munidades para que possam tratar seus conhecimentos como segredos co-merciais, capacitando-as para obter benefícios da bioprospecção, inclusivepara patenteá-las. As comunidades criariam seus próprios bancos de dados,com acesso reservado, identificando conhecimentos que já caíram no do-mínio público e os partilhados por mais de uma comunidade. Para evitarconflito de interesses nos casos em que há várias comunidades detentoras,seriam formados cartéis e negociados acordos entre governos e comunida-des. Bancos de dados de conhecimentos informais foram iniciados no Equa-dor e na Índia. Outros propõem que as autoridades tenham acesso aos da-dos, reconhecendo os conhecimentos tradicionais que possam ser confir-mados como novidade ou invenção. Dutfield (1999) considera que restri-ções ao acesso à informação, se por um lado podem impedir abusos, poroutro a transparência dos bancos de dados contribuiria para coibir ou anu-lar patentes, por exemplo, de uma planta medicinal indígena, desde que ajustiça considere as contribuições informais anteriores ao produto patentea-do e aprimore o conceito de domínio público. Em muitas das alternativas, oque se busca é adequar o conhecimento tradicional à lógica de propriedadeprivada do mercado.

A própria diversidade das populações detentoras destes direitos é usa-da como argumento para adiar o seu reconhecimento. Em algumas tradi-ções, o próprio conceito de propriedade é alienígena, pois sua ética compar-tilha conhecimentos; em outras, há sistemas específicos de propriedade, comjurisprudência própria. Segredos teriam existido desde tempos imemoriaisdos caçadores e coletores, comparáveis aos segredos comerciais contempo-râneos, porque podem ser trocados, vendidos, comprados, inclusive osmedicinais. Muitos pajés detêm conhecimentos exclusivos de cultivares,coletas e usos para cura. Certos conhecimentos foram geográfica e transcul-turalmente disseminados, não sendo fácil identificar o titular coletivo ouindividual desses direitos, mesmo quando tais conhecimentos podem seratribuídos a uma comunidade ou a um grupo de parentesco, ainda assimsurgem dificuldades, como as do custo para registrar e garantir a patente dapirataria, além do risco de o investimento ficar sem retorno.

A vantagem das empresas é a de que dispõem de um só sistema depatentes, baseado na propriedade privada de tecnologia. Seu fundamento éde que os direitos decorrem do aproveitamento comercial e técnico, dife-rente do conhecimento tradicional, do qual dependeriam cada vez menospara agregar novas inovações. O fato de haver comunidades que conside-ram seus conhecimentos como coletivos é retomado como prova de os

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mesmos serem de domínio público. Outro argumento é o de existirem pa-tentes que, embora com usos idênticos aos tradicionais, tratam de produtosfinais e métodos de extração diferentes, ou seja, seria necessário reconhecera todos os que contribuíram para o estado da arte final, até o uso industriale comercial atual (Dutfield, 1999). Fato é que a maioria perde no quadroatual, em sua própria mesa transgênica, não apenas as populações tradicio-nais, e que não há soluções convincentes em vista, sequer procurandoreequilibrar saber tradicional e tecnologia empresarial. Monocultura em escalasignifica hierarquização da divisão do trabalho e da organização da produ-ção social: a diversificação é ligada à auto-sobrevivência; a monocultura, àexportação e à dependência. Quanto mais distante o mercado consumidor,maior a especialização. Estocagem e escala têm seu papel na desigualdade,na centralização do poder político, financeiro e tecnológico, na redução daoferta de alimentos e na exploração irracional da natureza. Nada indica quese possa esperar por uma reversão da tendência à concentração, ou que osgargalos do mercado possam abrir oportunidades iguais às populações tra-dicionais e suas cooperativas, desqualificadas frente às transnacionais e aosacordos internacionais de comércio.

Notas

1 Família Myristicaceae. Esta planta é conhecida no Brasil por wana. Faz-se umtipo de rapé com a casca. Usada entre os Yanomami. Elisabesky, Elaine.Etnofarmacologia de algumas tribos brasileiras. In: Suma Etnológica Brasileira- 1 Etnobiologia. Petrópolis, Finep/Vozes, 1987, p. 137.

2 Banisteriopsis caapi (Spruce ex Griseb) Morton – Família Malpighiaceae. Ori-gem: América do Sul.

3 Ainda pouco se sabe sobre esse veneno de flecha que poderia ser uma planta compropriedade curarizante, uma vez que é aplicado na ponta da flecha, derrubandoo animal sem matá-lo. O animal cai devido a uma paralisia muscular. Agradeço aprofessora Maria Tereza de Arruda Camargo, ao professor Antonio Lamberti eLeopold Ródes por essas três notas em favor da interdisciplinaridade.

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RESUMO – VÁRIOS estudos vêm revelando possibilidades de aproveitamento de co-nhecimentos indígenas e de outras culturas tradicionais, entre eles, medicamentos,cosméticos, novos materiais, alimentos, sementes e conservantes como produtosde mercado. A prática do mercado vem sendo a de apropriar-se desses bens cultu-rais, registrá-los após adaptações e devolvê-los como mercadorias protegidas porpatentes, inclusive aos países onde tais conhecimentos foram desenvolvidos, geral-mente ao sul do Equador. Frente à escala da degradação social e ambiental, comona Amazônia, surgiu um novo otimismo, o de que resultados financeiros de taisprodutos pudessem reverter às populações, modificando-se a legislação internacio-nal e associando-se cooperativas de produtores com a biotecnologia e as trans-nacionais. O mercado, o principal adversário da preservação da bio e da sociodiver-sidade, seria assim convidado – empresas e consumidores – a tornar-se aliado damanutenção da floresta em pé e da diferença cultural, por exemplo, mediante cer-tificados de origem. No entanto, são numerosos os entraves para que essas popula-ções possam abrir brechas no mercado, ou nos sistemas internacionais de registrode patentes, frente à lógica da concentração de capital e tecnologia.

ABSTRACT – SEVERAL studies have been revealing prospects of capitalizing on nativeknowledge and traditional cultures in order to launch new market products, suchas drugs, cosmetics, new materials, foods, seeds and preservers. The market hasadopted the practice of appropriating such cultural goods, which after slightadaptation are registered and turned out as patent-protected products and soldeven to the countries where that knowledge was first developed, south of the equatoras a rule. Vis-à-vis the social and evironmental degradation scale, as is the case ofthe Amazon area, a new optimism has risen: the hope that financial results fromsuch products could benefit the native peoples, through the alteration ofinternational legislation and the association of producers cooperatives withtransnational companies. The market, the main opponent of bio- and sociodiversity,would thus be invited – both producers and consumers – to support the maintenanceof the standing forest and cultural difference, for example, by means of origincertificates. Nevertheless, many are the obstacles preventing the native peoplesfrom making a breakthrough either in the market or in the patent registrationinternational systems vis-à-vis the capital and technology concentration logic.

Mauro Leonel é professor-visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP,professor do Procam (Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientiais daUSP) e professor do Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofiae Ciências da Unesp-Marília. É autor, entre outros, de A morte social dos rios,Perspectiva, 1998; Etnodicéia Uruéu–au–au, Edusp, 1995 e Roads, Indians andthe Environment in the Amazon, from the Central Brazil to the Pacific. IWGIA,Copenhagen, 1992.