182

Boletim 3 - Exército

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Boletim 3 - Exército
Page 2: Boletim 3 - Exército

Ficha Técnica

BOLETIM DE SOCIOLOGIA MILITAR

Diretor: Coronel de Infantaria Fernando Manuel Oliveira da Cruz

Periodicidade: Anual

Conselho Científico: Maria de Lurdes Fonseca, Helena Carreiras, António Teixeira Fernandes,

António Firmino da Costa, Gen Silvestre Porto, Francisco Moita Flores, João Sedas Nunes, Maria

da Saudade Baltazar.

Chefe da Redação: Tenente-Coronel de Artilharia Amílcar José Teixeira da Cunha

Redação: Alferes RC Hélder Rafael dos Santos Moreira, Alferes RC Vítor Miguel Silva Gonçalves,

Rui Farelo

Autores: Alexandre Moura, Helena Carreiras, Isabel Ribeiro, Helena Jerónimo, Pedro Pinheiro,

Adelino Costa Cabral, Thiago Moraes, Rui Eusébio, Andreia Filipa Duarte Pires, Cândido Peixoto

Fernandes.

Edição: Centro de Psicologia Aplicada do Exército

ISSN: 2182 – 6226

Page 3: Boletim 3 - Exército

BOLETIM DE SOCIOLOGIA MILITAR

N.º 3

CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA DO EXÉRCITO

CPAE 2012

Page 4: Boletim 3 - Exército

CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA DO EXÉRCITO (CPAE)

Contatos: 213 260 680, 916103247, 916103371

Correio Eletrónico: [email protected]

Sítio da Internet: http://www.exercito.pt

INSTRUÇÕES AOS AUTORES

O Boletim de Sociologia Militar publica artigos e notas de investigação, revisão ou discussão teórica, nos domínios da Sociologia e de outras Ciências Sociais, Humanas e do Comportamento, que de alguma forma contribuam para o estudo ou desenvolvimento da Instituição Militar. Os artigos recebidos estão sujeitos à apreciação do Conselho Científico e da Redação, sendo o seu conteúdo da inteira responsabilidade dos autores. Na apresentação dos artigos os autores devem seguir as seguintes instruções: 1. Os artigos não deverão ultrapassar as 25 páginas incluindo notas, bibliografia e quadros. 2. Os originais deverão ser enviados num ficheiro Word, Arial, tamanho 11 (espaço 1,5 cm), para o Centro de Psicologia Aplicada do Exército, Praça do Comércio, 1100-148 Lisboa, dirigido aos Coordenadores de Redação, ou através de email: [email protected]. 3. Os artigos devem ser acompanhados de um resumo em português e outro em inglês não devendo ocupar mais que 10 linhas, cada um, dessa mesma página. Deverá ser feito em letra Arial, tamanho 9, com espaçamento de 1 linha. As palavras- chave (Keywords) são obrigatórias e colocadas a seguir ao Resumo (Abstract), (mínimo 3 palavras e máximo 7 palavras).

4. Todos os artigos entregues deverão já conter o título definitivo e a referência ao(s) seu(s) autore(s) (instituição, categoria, área de especialização e elementos de contacto). 5. Os quadros e as figuras devem ser usados apenas se contribuírem fortemente para a clarificação do artigo. Devem ser representados em folhas, devidamente numerados e acompanhados de breves legendas. A sua localização no texto deve ser claramente indicada. As figuras devem possuir elevada qualidade gráfica, de modo a permitir a sua reprodução sem perda apreciável de nitidez e a sua eventual redução. 6. As referências e autores de obras devem obedecer ao seguinte: (Robinson, 1978); (Piaget & Szeminka, 1941); (Bronckart, Papandropoulou & Kilcker, 1976); (Van der Pligt et al., 1982); Freud (1924 a; 1924 b), devendo ser listadas alfabeticamente, no final do artigo, as referências bibliográficas (apenas as obras referidas no texto), obedecendo ao seguinte formato: Andersen, N. & Schalk, R. (1998). The psychological

contract in retrospect and prospect. Journal of Organizational Behavior, 19, pp.637-647.

Chambel, M.J. (2005). Stress e Bem-Estar nas

Organizações. In A., Marques Pinto & A. Lopes da Silva (2005). Stress e Bem-Estar. Lisboa: Climepsi Editores.

Lazarus, R., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal

and copping. New York: Srpinger.

Page 5: Boletim 3 - Exército

ÍNDICE

Gestão do desempenho dos militares do Exército: Uma proposta de mudança ..................... 3

Alexandre Moura, Isabel Ribeiro e Pedro Pinheiro

Do uniforme militar ao desvio e à reclusão – Um olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar. .......................................................................................................................................... 22

Alexandre Moura e Helena Carreiras

Gestão de carreiras no Exército Português: Uma proposta de modelo aplicado .................. 66

Helena Jerónimo e Isabel Ribeiro

Gestão e desenvolvimento de carreiras: O caso da Marinha Portuguesa .............................. 86

Adelino Costa Cabral

Porque os homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo ............................................ 121

Thiago Moraes

A incerteza do risco: ensaio relativamente ao tema sociedade de risco de acordo com Ulrich Beck e Anthony Giddens ............................................................................................... 142

Rui Eusébio

Dois olhares sobre a mesma perspectiva – sociedade do risco - Ulrich Beck E Anthony Giddens ..................................................................................................................................... 152

Andreia Filipa Duarte Pires

O desemprego estrutural em Portugal (2001-2011): dois conceitos em conflito, devido às mudanças da economia política .............................................................................................. 163

Cândido Peixoto Fernandes

Page 6: Boletim 3 - Exército
Page 7: Boletim 3 - Exército

Editorial Coronel de Infantaria Fernando Manuel Oliveira da Cruz

Caros leitores,

Trazemos até vós o número 3 do Boletim de Sociologia Militar. O terceiro número

de uma publicação anual que procura reunir o que de qualidade se realiza numa área que

é cada vez mais desafiante, intensa e motivadora.

Tendo em conta as dificuldades financeiras que o País, o Exército e o Centro de

Psicologia Aplicada atravessam, foi tomada a decisão de se efetuar a presente publicação

em suporte informático. Não quisemos deixar de publicar os trabalhos que, no último ano,

foram sendo realizados no âmbito da investigação em Sociologia neste Centro e noutros

com os quais temos excelentes relações de amizade e cooperação.

O Boletim de Sociologia Militar pretende ser um espaço de encontro e de partilha.

É nossa intenção cumprir um desígnio científico e cultural no meio civil e militar, dando um

contributo epistemologicamente humilde mas esforçado e honesto.

A ligação à sociedade, designadamente através das Instituições de Ensino

Superior e Centros de Investigação, é um desígnio e uma realidade deste Centro.

Queremos cada vez mais mostrar a nossa Instituição à comunidade e interagir com ela,

contribuindo, na nossa área de atividade, com tudo aquilo que estiver ao nosso alcance. É

disso exemplo este Boletim de Sociologia.

Termino, agradecendo a todos os Militares e Civis que tornaram possível a

concretização deste Boletim de Sociologia.

Aos leitores, desejamos uma agradável e proveitosa leitura.

O Diretor

Fernando Manuel Oliveira da Cruz Coronel de Infantaria

Page 8: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º 3 – 2012

PP. 3 a 21

3

GESTÃO DO DESEMPENHO DOS MILITARES DO EXÉRCITO:

UMA PROPOSTA DE MUDANÇA

Alexandre Moura*, Isabel Ribeiro** e Pedro Pinheiro ***

RESUMO

Este artigo faz parte de uma investigação desenvolvida no Centro de Psicologia Aplicada do Exército. A investigação tem como principal objetivo constituir um contributo para um sistema de avaliação e gestão do desempenho que seja adequado à especificidade militar, procurando reter a filosofia e o paradigma subjacente ao Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho da Administração Pública (SIADAP). Palavras-chave: Avaliação de desempenho; Gestão de desempenho; Competências; SIADAP; Exército

ABSTRACT

This article makes part of an investigation developed in Centro de Psicologia Aplicada do Exército. The research have the main goal of constitute a contribution towards an evaluation system and performance management that suits to the military specificity, seeking retain the philosophy and the underlying paradigm of Sistema de Gestão e Avaliação do Desempenho da Administração Pública (SIADAP). Keywords: Performance evaluation; Performance management; Skills; SIADAP; Army

INTRODUÇÃO

Em qualquer organização, a procura da excelência e do mérito devem estar sempre

presentes. Neste contexto, a avaliação e gestão do desempenho constituem um suporte essencial

para a gestão dos recursos humanos, contribuindo para a validação do recrutamento e da

seleção, em sintonia com os objetivos organizacionais e estratégicos da Organização,

possibilitando a identificação da evolução dos colaboradores, diagnosticar necessidades de

formação e melhoria dos postos e processos de trabalho, tendo sempre em vista dinâmicas de

evolução profissional numa perspetiva de distinção do mérito e da excelência. Todavia, estes

processos não poderão ser efetuados sem o reforço da intervenção dos colaboradores no

processo de avaliação dos serviços e das suas ações.

A Avaliação do Desempenho (AD) é uma necessidade imperiosa em qualquer instituição.

Deve ser justa, ponderada e baseada num modelo válido e actual. Deve privilegiar a excelência, a

qualidade e o mérito, visando contribuir para a coerência e harmonia dos serviços/acções dos

* Major de Cavalaria, Centro de Psicologia Aplicada, Sociólogo ** Alferes RC, Centro de Psicologia Aplicada, Socióloga *** Alferes RC, Centro de Psicologia Aplicada, Sociólogo

Page 9: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

4

Comandantes/Dirigentes e demais colaboradores, promover a motivação e o desenvolvimento de

competências.

A satisfação, a motivação organizacional, o desenvolvimento de competências, o interesse,

a pró-actividade, o cumprimento rigoroso dos objectivos da Organização, podem ser mais

facilmente atingíveis se o Exército conseguir antecipadamente percepcionar os problemas, as

aspirações, expectativas de carreira e motivações, tendo em vista a definição de um modelo de

gestão de desempenho que consiga aliar as perspectivas organizacionais/institucionais, definidas

pela Instituição e a carreira individual desenvolvida pelo próprio militar, promovendo-se a

compatibilização dos interesses institucionais e individuais.

Com a avaliação dos colaboradores procurar-se-á contribuir para a melhoria da gestão dos

Recursos Humanos, desenvolver e consolidar práticas de avaliação, identificar as necessidades

de formação e desenvolvimento pessoal adequados à melhoria do desempenho dos serviços, dos

dirigentes e dos trabalhadores. A promoção da motivação, o desenvolvimento de competências e

qualificações, a formação ao longo da vida, são factores que também não devem ser descurados.

Neste contexto, procuramos investigar, discutir e propor um sistema de Gestão do

Desempenho adaptado ao Exército Português e à sua especificidade, que comungue das

orientações, perspectivas e filosofia do Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho

na Administração Pública (SIADAP). Este foi de uma forma sucinta, o objecto de estudo da nossa

investigação, contribuindo para a constituição de um sistema que motive, avalie e desenvolva os

militares na Organização.

Neste sentido apresentaremos um modelo conceptual, assente na gestão por objectivos e

num modelo por competências, permitindo o desenvolvimento dos recursos humanos em

conjugação com os objectivos gerais e estratégicos do Exército.

Esta investigação, autorizada por despacho de 24 de Maio de 2010 de S. Ex. General

CEME, pretende constituir, assim, um contributo para um sistema de avaliação e gestão do

desempenho. Vamos, aqui, apresentar uma proposta de um modelo conceptual, assente na

gestão por objetivos e num modelo por competências, permitindo o desenvolvimento dos recursos

humanos em conjugação com os objetivos organizacionais, estratégicos, de gestão e operacionais

do Exército.

Pretendemos um sistema de avaliação de desempenho contextualizado com a Missão e a

Visão da Organização e interligado com todas as práticas de Recursos Humanos da Organização

(Formação, Recompensas, Recrutamento e Selecção, Desenvolvimento de Carreiras, Gestão de

Competências).

Page 10: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

5

AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO E/OU GESTÃO DO DESEMPENHO

Na perspetiva de alguns autores, o desempenho pode ser concebido enquanto

comportamento (meios) ou enquanto resultados (fins) (Caetano, 2007: 74), ou como um ato de

cumprir (…) uma determinada missão ou tarefa aprioristicamente delineada… (Chiavenato, 2004:

98). Na perfectiva destes autores, o desempenho está intimamente relacionado com a motivação

e com os conhecimentos, capacidades e habilidades demonstradas.

Marras (2000) define desempenho como o acto ou efeito de cumprir ou executar

determinada missão ou meta previamente traçada.

Para António Caetano (1998), o desempenho pode, por um lado, ser entendido como um

comportamento, sendo que nesta perspetiva de ação centra-se nas exigências das funções. Por

outro lado, na perspetiva dos resultados, focaliza-se nos resultados que derivam das atividades

levadas a cabo pelos colaboradores num determinado período de tempo.

A avaliação de desempenho profissional constitui certamente um dos fenómenos que

maior perturbação introduz no funcionamento regular de qualquer organização (Caetano, 2008).

Ainda assim, vários autores têm evidenciado esta prática dos recursos humanos como um agente

de sucesso nas organizações e da qual depende tanto o seu sucesso estratégico como a sua

capacidade competitiva, pressupondo-se que o desempenho da organização deriva da

confluência do desempenho individual de todos os seus colaboradores.

O conceito de avaliação de desempenho pode ser entendido como um processo de análise

metódica pelo qual uma organização identifica em que medida o desempenho de cada trabalhador

contribui para atingir os objectivos estratégicos e alcançar os resultados, a fim de se identificar

quais os aspectos positivos e negativos, tentando, simultaneamente, encontrar oportunidades de

evolução, proporcionando ao avaliado a possibilidade de tomar conhecimento acerca do

desempenho que é espectável.

Quando bem conduzida, a avaliação de desempenho, pode representar mais-valias tanto

para a organização, como para o avaliador, como ainda para o avaliado, uma vez que, em

conjunto, as diferentes partes envolvidas podem estabelecer processos e procedimentos mais

eficazes que conduzam a níveis de desempenho superior, adaptados aos diferentes

departamentos e funções. Permite, também, definir objectivos claros para o futuro, avaliar o

potencial de desenvolvimento e estabelecer os meios apropriados para motivar os indivíduos

(Yemm, 2005).

Assim, torna-se imperioso determinar como qualificar/medir/quantificar o desempenho,

sendo esta uma das questões mais críticas de qualquer gestor de recursos humanos. A

quantificação/medição do desempenho, segundo Rui Gonçalves (2008), é um acto de avaliação

que obriga a uma comparação que aferirá o grau de concordância entre as partes em avaliação,

exigindo uma recolha de indicadores que permitam realizar comparações com níveis de

Page 11: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

6

desempenhos anteriores e desempenhos pretendidos. Nesta sequência, podem-se utilizar

inúmeros critérios de comparação para efeitos de avaliação de desempenho numa determinada

organização. Os mais frequentes alicerçam-se em objetivos e em competências. Todavia, existem

situações em que é muito difícil encontrar critérios ou medidas objetivas, pelo que tem de se optar

por indicadores qualitativos, os quais, na maioria das vezes, são avaliados de uma forma mais

subjetiva. Consequentemente, julgamos ser consensual admitir que a componente subjetiva na

medição do desempenho é difícil de excluir totalmente.

De acordo com inúmeros autores, a Avaliação do Desempenho (AD) tende a ser inserida

num conceito mais abrangente denominado de Gestão do Desempenho (GD).

A Gestão do Desempenho poderá ser entendida como um processo societal de influência,

comunicação e negociação entre avaliador e avaliado, que ocorre no âmbito de uma qualquer

atividade com o objetivo de estabelecer entendimentos mútuos em relação às tarefas que o

avaliado tem de efetuar, aos resultados esperados, ao contributo desses resultados para os

objetivos da organização, à forma como vai ser medido o desempenho e à identificação e

correção de desvios no desempenho efetivo. As componentes de um sistema de gestão do

desempenho são as que se enumeram: O planeamento do desempenho; o feedback/comunicação

contínua sobre o desempenho; a(s) reunião(ões) de desempenho propriamente ditas; a

diferenciação; a harmonização; o diagnóstico de ensino e desempenho e, cumulativamente a

todas as anteriores, o registo/observação contínua e recolha de dados.

Não podemos considerar a avaliação de desempenho, conforme argumentam Cascão &

Cunha (1998), um fim, mas antes um meio para melhorar os resultados dos recursos humanos na

organização. Nesta perspectiva, não pode restringir-se ao julgamento superficial e unilateral das

chefias a respeito do comportamento funcional dos subordinados. Consequentemente, emerge a

necessidade de estabelecer perspectivas de comum acordo com o avaliado.

Independentemente do que está em causa, terá de se considerar, sempre, a cultura

organizacional e o contexto enquanto fatores delimitadores do desempenho, uma vez que o

sujeito adota determinados comportamentos na execução de tarefas, num contexto particular, com

vista na obtenção de resultados específicos (Caetano, 2008)

MÉTODOS PARA A AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO

O desenvolvimento de um processo de avaliação do desempenho deve ter em conta os

intervenientes, internos e externos, importantes para a organização, bem como o contexto que

influencia a tomada de decisão. Neste sentido, podemos identificar diferentes métodos para a

avaliação de desempenho de desempenho, dos quais Caetano (2008) destaca os que se

focalizam na pessoa, no comportamento, no contexto e nos resultados.

Page 12: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

7

Os sistemas tradicionalistas procuram avaliar o desempenho focalizando-se “nas pessoas”,

nas suas características ou traços de personalidade. No entanto, a validação do sistema, a sua

praticabilidade e a investigação demonstraram fragilidades e alguma perversidade, pois a

avaliação baseava-se em julgamentos acerca dos atributos da personalidade do avaliado, não

estando alicerçado em qualquer critério relacionado com o desempenho na função. Todavia, a

avaliação do desempenho através do julgamento destes atributos voltou a surgir nos últimos anos,

agora sob a designação de avaliação por competências, interessando não a avaliação da

competência em si mas a demonstração efetiva e indubitável dessa competência no desempenho

das tarefas que estão atribuídas avaliado.

Como alternativa ao sistema mencionado anteriormente, surgiu o sistema focalizado “nos

comportamentos”. As escalas de observação comportamental consistem em descrições precisas

de comportamentos a adotar ou adotados pelos colaboradores, os quais podem ser adequadas

em certo tipo de funções pouco complexas e relativamente padronizados.

Um outro sistema de avaliação e gestão do desempenho preocupa-se com a “comparação

de pessoas no contexto social”. Consiste num método de avaliação que compara pessoas com

cargos semelhantes para apurar quem são os melhores, procedendo-se a ordenações de

avaliados. É um método que acarreta uma grande dose de subjetividade, pelo que acreditamos

que apenas deve ser tomado em consideração em conjugação com outros métodos.

O sistema de medição do desempenho focalizado “nos resultados”, também conhecido por

avaliação por objetivos, é o que se encontra mais generalizado no presente momento. Diversos

autores consideram-no como a melhor forma de avaliar o desempenho. A avaliação por objetivos

mede o desempenho do colaborador de acordo com uma série de objetivos/resultados/metas

negociadas individualmente para cada colaborador. Os objetivos e os resultados são definidos

durante a fase de planeamento da avaliação e assumidos de forma a serem medidos

objetivamente.

A organização comunica ao colaborador quais são as expectativas relativas ao seu

desempenho para o ciclo avaliativo que e vai seguir. O conhecimento destas metas, resultados e

expectativas pode permitir ao colaborador regular a sua própria atividade, organizar o seu trabalho

e estabelecer prioridades, aumentando assim a sua autonomia e responsabilidade. O

conhecimento das metas a atingir possibilita-lhe a identificação dos desvios que está a cometer e,

eventualmente, identificar os fatores que o determinaram e as medidas de correção a concretizar,

ficando mais predisposto para aceitar feedback e/ou aconselhamento por parte do avaliador

As nossas propostas, de acordo com o praticado na maioria das organizações atuais,

focaliza-se em mais do que um aspeto do desempenho pelo que se pode designar de “sistema de

gestão misto”. Na verdade, as propostas que mais à frente apresentaremos, combinam

essencialmente dois métodos de avaliação (desempenho focalizado nos resultados e

demonstração efetiva de um certo número de competências obrigatórias e complementares) e,

Page 13: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

8

marginalmente, um terceiro método (comparação em contexto laboral) ao procedermos à

comparação de pares.

METODOLOGIA

Um trabalho de investigação visa acima de tudo, compreender melhor os significados de

um acontecimento ou de uma conduta, fazer inteligentemente o ponto da situação, captar com

maior perspicácia as lógicas de funcionamento de uma organização, reflectir acertadamente sobre

as implicações de uma decisão política, ou ainda compreender com mais nitidez como

determinadas pessoas apreendem um problema e a tornar visíveis alguns dos fundamentos das

suas representações (Quivy, 1992).

Em termos metodológicos, efectuamos um estudo de carácter exploratório de natureza

essencialmente qualitativa, utilizando técnicas documentais modernas - segundo a visão de

António Firmino da Costa (1986) - recorrendo à análise de conteúdo e a revisões bibliográficas e

documentais específicas quer nacionais quer estrangeiras, sobretudo na área da gestão dos

Recursos Humanos, com incidência na Gestão do Desempenho. A análise documental

caracteriza-se por ser uma fonte rica e segura de informação, tem um baixo custo e trata-se de

um excelente utensílio para estimular o espírito crítico ajudando a perceber algumas questões.

Note-se que a análise documental é uma técnica muito utilizada na maioria das investigações em

Ciências Sociais, o que revela ser uma boa técnica, sempre em mudança e muito precisa (Quivy,

1992). Convém, porém, referir que nem tudo se apresenta como vantagem, dado que pode trazer

alguns constrangimentos, como a falta de objectividade dos documentos ou a omissão de

informação relevante.

Com o intuito de sustentar ainda mais o nosso trabalho, captámos determinadas

representações e narrativas, utilizando técnicas não documentais como a observação não

participante, realizando entrevistas semi-directivas e directivas a Informantes Privilegiados,

designadamente: ao Exmo. Chefe da Divisão de Recursos do Estado Maior do Exército, ao Exmo.

Director da Direcção de Administração de Recursos Humanos, ao Exmo. Chefe da Repartição de

Pessoal Militar/DARH, aos Exmos. Comandantes e Oficiais de Pessoal das três Brigadas do

Exército, ao Exmo. 2º Cmdt AM e ao Exmo. Coordenador Área Ensino Específico do Exército

(IESM)

A deslocação de uma equipa de investigadores a outros Exércitos -Espanhol e Holandês -

possibilitou o contacto com a realidade avaliativa destes, permitindo obter uma maior riqueza de

informação. A escolha dos referidos Exércitos deveu-se fundamentalmente a aspectos

relacionados com a proximidade geográfica e a alguma comunhão/partilha de valores e modos de

actuação (Exército Espanhol) e o número aproximado de efectivos (Exército Holandês).

Page 14: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

9

PROPOSTA DE INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO APLICADO AO EXÉRCITO

De seguida, gostaríamos de salientar alguns aspetos que, de acordo com Adalberto

Chiavenato (2004), são fundamentais durante a investigação e eventual implementação de um

sistema de avaliação do desempenho e que nortearam a nossa ação. O primeiro aspeto que

tivemos em consideração consistiu em verificar se a organização necessitaria, efetivamente, de

um novo método/sistema de avaliação. Tendo em conta as intenções do Comando do Exército, e

análise das entrevistas exploratórias, julgamos que a resposta é positiva. Neste caso, passa a

existir a obrigatoriedade de clarificar qual a relação do sistema de avaliação com a estratégia

global da organização e com os valores organizacionais/estratégicos pretendidos, tornando-se

necessário que a alta direção da organização (neste caso o Comando do Exército) esteja

envolvida neste processo.

O segundo aspeto que pretendemos clarificar, foi os “objetivos da avaliação”. Tentámos

definir com alguma clareza qual a finalidade do sistema de avaliação a criar, uma vez que não nos

foram transmitidas essas intenções. Apesar disso, acreditamos que o Exército Português terá este

pormenor equacionado. De facto, julga Chiavenato (2004), é importante definir se o sistema de

avaliação do desempenho se destina a justificar/fundamentar decisões sobre gestão de carreiras,

escolhas, nomeações; a identificar as necessidades de formação; a promover os mais aptos; a

recompensar monetariamente os que se distinguem. Os objetivos equacionados para o sistema

de avaliação condicionam e influenciam o tipo de sistema a criar, nomeadamente no que se refere

aos critérios e processos de medição, aos seus intervenientes, aos procedimentos e aos

processos de comunicação. Neste aspeto, julgamos que existe a necessidade de definir como é

que este sistema de avaliação vai interagir com os outros sistemas de gestão em uso, de forma a

implementar as necessárias alterações ou ajustamentos em cada um deles. Este é um trabalho

que necessitará de ser iniciado e complementado futuramente e que não mereceu a nossa

atenção.

Como qualquer sistema de avaliação é um meio para se gerirem os trabalhadores de uma

qualquer organização de modo promover-se a sua coordenação e desenvolvimento, só se atingirá

esta premissa se o sistema de avaliação e gestão do desempenho for aceite, bem conhecido e

assumido como adequado pelas diversas hierarquias. Este é um facto que necessitará de uma

especial atenção no caso do Exército Português.

Outro aspeto que tivemos em consideração foi “o que avaliar”. Como já foi referido,

existem diversos aspetos relacionados com o desempenho que podem ser, ou não, utilizados.

Referimo-nos a resultados/objetivos, comportamentos, atitudes, conhecimentos, habilidades,

atributos de personalidade. Após decidir o que avaliar, tivemos de decidir o que medir. Decidimos

que a avaliação contemplaria critérios mistos – objetivos e competências – sendo necessário

Page 15: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

10

definir eventuais combinações e respetivas ponderações para a avaliação global. Sobre estes dois

pontos falaremos mais à frente.

“Quem deve estar envolvido na avaliação” foi o aspeto seguinte que mereceu a nossa

atenção. Usualmente, a conceção de um sistema de avaliação e gestão do desempenho deve ser

liderado pelo seu departamento de recursos humanos e formado por uma equipa multidisciplinar

que envolva representantes de outras unidades orgânicas – na maioria das vezes recebendo a

apoio de investigadores/consultores externos à organização – de modo a acompanharem todo o

processo, contribuindo-se assim para a diminuição das desconfianças e promovendo-se a

adaptação do futuro sistema de avaliação às efetivas necessidades e objetivos da organização.

Com esta participação “multidisciplinar e universal” de todos os departamentos estimula-se e

motiva-se os colaboradores para a mudança e facilita-se a difusão e aceitação do sistema. O

Comando do exército não entendeu, devido a critérios de privacidade e descrição, alargar a grupo

de trabalho a mais intervenientes, apesar da nossa proposta mencionar essa intenção. Assim, o

grupo de trabalho ficou apenas constituído por elementos pertencentes ao CPAE.

Outro aspeto que mereceu a nossa atenção foi quais os “alvos da avaliação”. Sabendo que

a filosofia do SIADAP 1, subsistema de avaliação do desempenho dos serviços da Administração

pública e SIADAP 2, avaliação dos dirigentes superiores e intermédios, contribuem para o

reconhecimento de que as equipas e as organizações devem ser também avaliadas, sentimos a

necessidade de determinar até onde iria o nosso trabalho. Com efeito, tentámos efetuar duas

Fichas de Avaliação do Desempenho (FAD para Oficiais e Sargentos e FAD para Praças) que se

preocupam fundamentalmente com a avaliação do desempenho dos militares (equivalente à

filosofia subjacente ao SIADAP 2 – Oficias e Sargentos e SIADAP 3 - Praças) e não tanto sobre a

organização, pois seria efetuar um trabalho que não nos foi pedido.

Depois preocupámo-nos com a decisão de “quem avalia, quais os avaliadores”. Para esta

decisão tivemos em consideração a cultura organizacional da nossa instituição, a sua história e

valores, os custos associados, a burocracia a criar, a sua futura eficácia e eficiência. Alguns

destes aspetos necessitarão de ser esclarecidos futuramente, caso a nossa proposta seja aceite.

Usualmente, a principal fonte de informação na nossa instituição é o chefe imediato do

avaliado, apesar do RAMME apenas admitir como primeiro avaliador um Capitão. Julgamos que

na avaliação dos postos mais baixos da hierarquia militar – Cabos e Soldados – o primeiro

avaliador possa ser Oficial Subalterno, o Sargento de Pelotão ou mesmo um dos demais

Sargentos do Pelotão, desde que tenha a maturidade organizacional para o fazer.

Todavia, tendo em consideração as alterações organizacionais que têm ocorrido, é usual o

próprio avaliado ser fonte de informação, o que se designa por auto-avaliação. Assim, na

generalidade dos sistemas em uso são consideradas três fontes de informação: O avaliado, o

chefe imediato e o chefe seguinte. Na nossa proposta, tendo em consideração a cultura

Page 16: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

11

organizacional da Instituição, adicionámos o Comandante/Diretor/Chefe ao conjunto de

avaliadores.

Após as definições anteriores, tentámos criar o(s) documento(s) que registará(ão) o

processo de avaliação – o “formulário(s) de avaliação” que designámos por FAD. Tentámos

manter o formulário o mais simples possível, tomando como referência vários formulários como o

do SIADAP, FAI da Marinha Portuguesa, do Exército Português, da Força Aérea Portuguesa, do

Exército dos Estados Unidos da América, do Exército Espanhol, das Forças Armadas dos Países

Baixos, do Exército Brasileiro, international evaluation report usado em ambiente OTAN, entre

outros formulários como o do Banco Santander Totta e da Caixa geral de Depósitos.

CRITÉRIOS DE ESCOLHA DAS COMPETÊNCIAS

A definição de uma linha estratégica a que uma organização se compromete para levar a

cabo a sua missão, permite a identificação de um conjunto de actividades e tarefas indispensáveis

para a concretizar. Essas actividades são agrupadas em cargos e funções com determinada

complexidade e grau de responsabilidade. É então, preocupação de qualquer organização, que os

seus colaboradores detenham um conjunto de conhecimentos, capacidades, atitudes e

comportamentos que permitam atingir um bom desempenho. Este conjunto de conhecimentos e

comportamentos denominam-se competências.

A identificação das competências numa organização deve assentar em diversos tipos de

metodologias de análise e descrição de funções. Como exemplos podem ser identificados os

incidentes críticos, os questionários estruturados, a observação, as descrições de funções

anteriores, as entrevistas, os formulários de avaliação de desempenho, etc. (Cunha, M.P, et al,

2010, p.558).

Desta forma, teremos que assumir, que para fazer correctamente o levantamento das

competências seria necessário uma análise e descrição de funções de todos os cargos do

Exército, que permitiria identificar o conjunto de actividades e tarefas que o integram, bem como

os factores críticos do seu sucesso. No entanto, devido a limitações temporais, para a realização

do presente Estudo, não foi utilizada essa metodologia.

Para a identificação das competências tivemos como ponto de partida o modelo utilizado

no estudo realizado sobre o Perfil do Oficial do Exército oriundo da AM no qual os autores

consideraram que o modelo que o Exército Português poderia adoptar, deveria por um lado

sustentar-se nos valores e características, qualidades pessoais, e incluir competências definidas

como acções, mas também como processos, o que vem de acordo com Spencer e Spencer

(1993), referido anteriormente, uma vez que procura representar a totalidade do iceberg. Levando

em conta Cascão (2004), o autor define três aspectos essenciais em relação ao tratamento a dar

às competências:

Page 17: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

12

- Uma orientação prioritária para o trabalho e para as suas exigências funcionais;

- Uma orientação, que embora parta das exigências do trabalho, se concentre na

interacção constante entre o sujeito e a função no sentido de mobilizar as características

individuais para a construção de desempenhos;

- Uma orientação centrada essencialmente na pessoa e nos comportamentos

evidenciados, nomeadamente os baseados em desempenhos superiores;

- A necessidade de um modelo de competências, aparece na maior parte das

organizações ligada à gestão e por isso muito centrada nas acções e nos desempenhos, porém o

Exército como escola empresa, quando pensa em acções, pensa em simultâneo em formação e

selecção. O modo de descrição das competências no Exército, deve por isso incluir as descrições

comportamentais, acções concretas, mas também os processos, uma vez que é a partir destes

que se podem desenhar curricula ou desenvolver requisitos para a selecção de pessoal (in Silva,

et al, 2006, p.31).

As competências podem ser transversais às organizações, sendo uma ferramenta

poderosa ao serviço de outras práticas e políticas de gestão de pessoas. Segundo esta

perspectiva procuramos identificar um conjunto de competências para os militares do Exército

Português compatíveis com os valores, a missão e a estratégia da Organização combinado com

outros modelos. Para tentarmos obter uma seleção o mais rigorosa e o mais criteriosa possível

procuramos fazer uma análise e uma comparação entre:

- As competências identificadas nos vários ramos das Forças Armadas, Exército, Marinha

e Força Aérea;

-As competências avaliadas no Exército Espanhol, Exército Holandês e na Ficha de

Avaliação Internacional (Nato);

- O perfil de competências para cada um dos grupos profissionais da Administração

Pública definidos no SIADAP.

- As competências requisitadas, actualmente, por outras organizações (por exemplo,

resiliência e adaptabilidade). Tendo em conta a conjectura económica e social que o País

atravessa, as empresas procuram-se adaptar às constantes mudanças para que possam

continuar a manterem-se competitivas, as Forças Armadas também têm essa necessidade de

procurar novas respostas e de se adaptar às crescentes exigências.

Após o estudo, a comparação e a discussão para chegarmos ao Perfil de competências

que propomos para Oficiais/Sargentos e para as Praças tivemos em consideração os seguintes

aspectos:

- Os valores e as atitudes por que, Oficiais, Sargentos e Praças, pautam a sua acção;

- As actividades desempenhadas bem como o grau de exigência;

- As competências que mobilizam na realização dessas actividades;

- Os conhecimentos que necessitam de possuir;

Page 18: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

13

- Em que condições ambientais ou outras e sob que exigências físicas, sensoriais ou

Psico-motoras desenvolvem a sua actividade profissional.

Procurámos definir um número de competências que torne possível a sua observação

eficaz e objectiva. Em regra, o perfil de uma função deve ter entre 8 e 12 competências, no

somatório das genéricas e específicas (Camara, P, 2007, p.359).

Através da análise referida em cima, construímos um modelo de desempenho que define

critérios de competências a diferentes níveis tendo em conta o grau de complexidade das tarefas

e o nível de responsabilidade. Debruçamo-nos, então, sobre a identificação de competências

específicas de alguns postos e as competências comuns a todos - competências transversais.

As competências transversais a todos os militares (Oficiais, Sargentos e Praças) estão

sobretudo, ligadas à cultura da Organização: missão, objectivos e valores, como já referimos.

Para Oficiais e Sargentos identificamos o seguinte conjunto de competências comuns:

resiliência, inteligência prática, trabalho em equipa e cooperação, conhecimento técnico-

profissional, comunicação, adaptabilidade, relações interpessoais, sentido de responsabilidade e

autonomia e iniciativa.

Contudo, as funções do Sargento e do Oficial requerem, por vezes, exigências diferentes.

Desta forma definimos algumas competências específicas, complementares, que só serão

observados em determinados casos e por isso escolhidas e negociadas (duas das cinco) entre

avaliador e avaliado. Assim foram definidas: liderança, planeamento e organização, negociação e

persuasão, capacidade de decisão, desenvolvimento pessoal.

No caso das Praças foram identificadas as seguintes competências transversais:

resiliência, trabalho em equipa, conhecimento técnico-profissional, relações interpessoais,

adaptabilidade, sentido de responsabilidade, disponibilidade, apresentação pessoal.

Também aqui, tendo em consideração algumas funções mais exigentes que outras, foram

definidas as seguintes competências complementares: iniciativa, capacidade de decisão e

desenvolvimento pessoal.

Ainda que algumas competências sejam comuns entre Oficiais/Sargentos e as Praças, as

descrições são diferentes, variando segundo o nível de responsabilidade. Diferencia-se, também,

a descrição dos indicadores comportamentais observáveis para cada nível.

Chegámos a um perfil de competências que deverá ser observado em todos os militares

das respectivas categorias. No entanto, alguns deverão, tendencialmente, ser apoiados para

conseguir o desenvolvimento pretendido: formação on the job, acompanhamento e

aconselhamento pela chefia (coaching), etc.

A avaliação das competências será feita numa escala de um (1) a cinco (5): 1-

“Competência não demonstrada ou inexistente”, 3- “Competência demonstrada”, 5- “Competência

demonstrada a um nível elevado”.

Page 19: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

14

O processo de desenvolvimento de competências é um processo de aprendizagem

organizacional que pedirá um certo tempo até ser interiorizado pelos seus destinatários

(Câmara,P., 2007, p.359). É importante referir que o Perfil de competências não é estático e

definitivo, terá que ser reformulado e actualizado.

CICLO DE GESTÃO DE DESEMPENHO: ADAPTAÇÃO DO SIADAP AO EXÉRCITO

O novo sistema de avaliação de desempenho na função pública apresenta alguns

pressupostos que poderiam ser úteis à instituição militar, no entanto, não podemos esquecer que

o Exército não é um serviço público comum. Vimos que a carreira militar assenta em princípios e

critérios que não são equiparáveis aos definidos para a Administração Pública comum.

No entanto, não quer dizer que o Exército não se deva reger por princípios idênticos aos

serviços do Estado, embora adaptados à sua medida. Aqui os princípios da transparência, da

diferenciação do mérito por resultados devem ser analisados.

O Exército desde cedo desenvolveu e implementou um sistema de avaliação dos seus

militares (RAMME), que já contempla algumas especificidades mencionadas. No entanto, de

acordo com o Comando do Exército, a precisar de uma revisão.

Entende-se que a revisão do actual Sistema de Avaliação dos Militares do Exército

(avaliação individual) deverá ter como referência o modelo de avaliação utilizado na administração

pública, o SIADAP.

De acordo com o mencionado anteriormente, podemos aludir que apenas um sistema que

se baseie na GPO, modelo por competências e orientação para resultados permitirá seguir o

modelo conceptual do SIADAP e, simultaneamente responder às necessidades de garantir um

sistema de gestão do desempenho moderno, focado no desenvolvimento dos recursos humanos e

no progresso organizacional.

O SIADAP assenta numa concepção de gestão dos serviços públicos centrada em

objectivos previamente fixados. Este sistema define objectivos como o “parâmetro de avaliação

que traduz a previsão dos resultados que se pretendem alcançar no tempo, em regra

quantificáveis” (Art.4º,alínea e).

Também no RAMME, está explícito que a avaliação deve ter como principal preocupação

os objectivos propostos, ou seja, deve assentar na avaliação dos resultados. Deveremos ter em

conta que os objectivos a que se propõe medir devem ser flexíveis, claros e adequados aos meios

disponíveis. Neste sentido, tanto a avaliação da administração pública como a avaliação militar

estão em harmonia.

Desta forma, insistimos num sistema de gestão do desempenho que desenvolva uma

cultura de confiança e que estimule a participação de todos. Assim, consideramos essencial uma

Page 20: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

15

avaliação de desempenho que envolva superiores hierárquicos, subordinados e a própria

organização em todo o processo.

Apresentamos um modelo misto que combine resultados do desempenho e indicadores

comportamentais. Os modelos mistos “avaliam e recompensam o desempenho e a competência:

aquilo que efectivamente os colaboradores fizeram no último ano e como fizeram; as

características mostradas que predizem um desempenho superior no trabalho actual ou no futuro”

(Cascão, F, 2005, p.93).

Sabemos que o tema “avaliação de desempenho” é bastante delicado pelo que temos que

ter cuidado para que o programa de avaliação não se torne mais prejudicial que benéfico,

procurando não cair no erro de em vez de motivar os colaboradores, contribuir para a

desmotivação e consequente quebra de rendimento.

PROPOSTA DE CICLO DE GESTÃO DE DESEMPENHO DO EXÉRCITO

A avaliação de desempenho individual deve estar integrada no ciclo de gestão de uma

organização. Tal como se encontra previsto no SIADAP, o sistema de avaliação no Exército deve

funcionar de uma forma integrada, em que os objectivos individuais resultam do desdobramento

dos objectivos da organização. A literatura atribui a este método a definição de “cascata” onde os

objectivos vão sendo decompostos do topo até à base.

É importante que toda a organização se envolva no processo de gestão do desempenho.

Cada individuo deve ter presente que para que a organização cumpra os seus objectivos é

necessário que cada um, individualmente e/ou em equipa cumpra os objectivos que lhe estão

atribuídos. Assim, a definição dos objectivos e resultados a atingir pelas unidades orgânicas deve

envolver superiores hierárquicos e subordinados, assegurando as prioridades e o alinhamento

interno da actividade de serviço.

A planificação em cascata deve evidenciar o contributo de cada unidade orgânica para os

resultados finais pretendidos. Podemos dizer, que neste sentido, já existe uma adaptação do

Exército materializada na directiva do Exército para o Biénio 2010-2011 apresentada por Sua Ex.ª

o General CEME.

A partir dos objectivos operacionais, os organismos ou serviços, elaboram o seu plano de

actividades para o ano seguinte, incluindo os objectivos, actividades, indicadores de desempenho

do serviço e de cada unidade orgânica (UO). Com a elaboração do plano de actividades, inicia-se

o ciclo de gestão do serviço, que para além do plano de actividades, e conforme o art.º 8º do

SIADAP, inclui a fixação dos objectivos do serviço para o ano seguinte, elaboração e aprovação

do mapa de pessoal, elaboração e aprovação da proposta de orçamento, monitorização e revisão

dos objectivos do serviço e das UO e elaboração do relatório de actividades (Saraiva, 2010, p.75).

Page 21: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

16

Propomos uma GD que contemple o alinhamento entre os resultados individuais e os

objectivos organizacionais a par dos valores, da missão e da estratégia da organização. A

avaliação do desempenho pode ajudar a perceber essa relação entre desempenho organizacional

e desempenho individual.

Numa organização é difícil assegurar que todos avaliem com o mesmo rigor e equidade.

Desta forma, antes de partirmos para a avaliação individual devemos ter em conta uma das

principais etapas do processo de avaliação, o planeamento, onde serão uniformizados e

definidos os critérios de avaliação.

Após todo o planeamento, o ciclo de desempenho deve, então, iniciar com a reunião de

contratualização dos objetivos onde se procede à fixação, entre avaliador e avaliado, do

conjunto de objectivos a atingir. Deve ainda ser acordado entre as partes o conjunto de meios de

apoio de que o avaliado possa necessitar para poder atingir os objectivos.

Iniciado o ciclo de desempenho, o superior hierárquico deve fazer o acompanhamento do

seu colaborador, dando-lhe aconselhamento e orientação (coaching) e , pelo menos, duas vezes

durante esse ciclo, através das entrevistas de feedback, fazer o ponto de situação com o

colaborador acerca do seu desempenho (feedback), calibrando os objectivos, se necessário, e

corrigindo desvios que tenham surgido, de forma a optimizar a contribuição do colaborador para

que os objectivos sejam atingidos.

O sistema de avaliação por objectivos permite que estes sejam reajustados, por diversos

motivos que impeçam a concretização dos mesmos. A reformulação dos objectivos, no entanto,

deve ser evitada pelo que será importante ter em conta em que circunstancias devem ocorrer.

A reformulação dos objectivos decorre do processo de acompanhamento e feedback

consistindo na alteração dos objectivos ou mesmo na eliminação dos mesmos.

O avaliado deverá proceder à sua auto-avaliação, onde este deve indicar os seus pontos

fortes e as suas necessidades de desenvolvimento. Esta realiza-se através do preenchimento de

uma ficha a ser analisada pelo avaliador conjuntamente com o avaliado. Servirá apenas de apoio

para a avaliação não se constituindo como um critério vinculativo na avaliação.

A harmonização é outro passo a ter em conta. É difícil assegurar que, numa organização

com a dimensão do Exército, todas as chefias utilizem os mesmos critérios com o rigor a que

procedem. Assim, a “calibragem” das classificações deve ser feita por quem tenha uma visão

global da instituição.

O ciclo de desempenho é encerrado com a entrevista de avaliação que, agendada com

antecedência e preparada com o devido cuidado, conduzirá à avaliação global do desempenho do

avaliado. Esta etapa poderá revelar-se bastante útil para aumentar o grau de envolvimento entre

avaliador e avaliado.

Page 22: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

17

RECOMPENSAS

No final do ciclo avaliativo não nos podemos esquecer de recompensar os melhores

desempenhos. Quando discutimos um sistema de avaliação e de gestão do desempenho dos

colaboradores não podemos deixar de falar do sistema de recompensas. A avaliação de

desempenho tem que ter consequências. Os colaboradores devem saber que o seu

comportamento será recompensado, ou punido, de acordo com seu bom ou mau desempenho.

Consideramos que as recompensas intrínsecas serão as que mais se adequarão à

realidade militar. Apesar de algumas já existirem como é o caso dos louvores, e outras, como já

vimos anteriormente, estas devem ser atribuídas pelo desempenho meritório e digno de referência

do militar e não pelo tempo de serviço que este detém.

Os mecanismos de reconhecimento do mérito consistem essencialmente em formas de dar

visibilidade ao contributo dos colaboradores, prestigiando, distinguindo e premiando

comportamentos e acções que contribuíram para atingir os objectivos, constituindo um reforço

positivo na motivação. Julgámos que o desempenho relevante (nota superior ou igual a 4) deveria

ser recompensado. As recompensas poderão materializar-se em: Quadros informativos nos

espaços físicos comuns da organização onde se podem incluir menções honrosas para os

melhores desempenhos; Informações na intranet ou no site da internet da Organização;

recompensas de carácter temporal, onde em função do desempenho, correspondem a regalias

traduzidas, por exemplo, em dias suplementares de férias, isenções de horário, dias de mérito,

condecorações, etc.

CONCLUSÕES E PROPOSTAS

A implementação de um novo sistema de avaliação não será uma tarefa fácil e exigirá o

consumo de uma grande quantidade de recursos financeiros, formativos, temporais e espaciais,

por parte de avaliadores e avaliados. Todavia, julgamos ser indispensável a sua execução.

Desenvolver e implementar um novo sistema de gestão de desempenho implicará uma

mudança nas rotinas e susceptibilidades, promovendo a adequação das acções às novas

dinâmicas avaliativas. Adoptar um modelo ainda que válido e desafiante, tendo em consideração

práticas anteriores, poderá ser um processo moroso necessitando de algum tempo para

interiorizar os seus efeitos, exigindo-se uma nova postura para avaliados e avaliadores, induzida

ou não por acções de formação que desenvolvam as necessárias competências nos

intervenientes no processo.

Afigura-se como primordial a consciencialização real da importância da avaliação de

desempenho no percurso do militar. Esta deverá ser encarada como uma forma de medir e

diferenciar o desempenho e, sobretudo, deverá ter um objectivo pedagógico. Através da avaliação

pretende-se analisar a competência do indivíduo no exercício do cargo. O objectivo será o de

Page 23: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

18

aferir os pontos fracos e fortes, as áreas passíveis de melhoria e as necessidades de formação

prioritárias, promovendo, por um lado, o contínuo desenvolvimento pessoal e profissional, e, por

outro, o progresso institucional.

Deverá ter-se em consideração um requisito basilar para um sistema de avaliação de

desempenho eficaz: os objectivos. Afigura-se como imprescindível a fixação clara de objectivos

de desempenho. Esses objectivos deverão ser quantificáveis através de indicadores simples e

fáceis de medir, devidamente calendarizados. Para que a avaliação seja o mais pormenorizada

possível, os objectivos terão de ser formulados de forma individualizada para cada cargo/função -

o que pressupõe, desde logo, a elaboração da análise de funções para todos os cargos do

Exército.

Da forma como se processa a avaliação actualmente assiste-se, em determinados casos,

a um distanciamento entre avaliador e avaliado. O modelo ora proposto promove a

aproximação entre avaliador e avaliado. Este facto proporciona objectividade avaliativa, e o

conhecimento mais incisivo acerca do desempenho e do potencial do avaliado. Para que o

distanciamento diminua, principalmente no caso concreto das Praças, deveria ser formalizado na

prática o que acontece informalmente: a avaliação por parte do Sargento. Tal situação permitirá

uma proximidade real e efectiva entre avaliador e avaliado. A avaliação deverá ser feita por um

militar com, pelo menos, 5 anos na categoria de Sargento.

No sentido da uniformização/estandardização da avaliação será de todo imprescindível

facultar aos avaliadores uma formação de base. Essa formação permitirá diminuir as

discrepâncias avaliativas não só entre diferentes avaliadores como entre U/E/O distintas. Tal

formação deverá ser ministrada ao longo da formação de Oficiais na Academia Militar e Sargentos

na Escola de Sargentos do Exército. Seria importante, também, proceder a sucessivas

actualizações ministrando módulos de Avaliação de Desempenho nas diferentes etapas da

carreira, nomeadamente nos cursos de promoção. O CPAE está dotado de meios humanos que

permitem dar o apoio técnico que se julgue necessário.

A problemática das quotas que existe no SIADAP não deverá ser indiscriminadamente

aplicada ao Exército, pois determinadas áreas ou cargos/funções, pela sua especificidade,

implicam previamente uma escolha alicerçada no mérito e em elevados índices de motivação e

realização, sendo estas características incongruentes e incompatíveis com a filosofia das

percentagens e quotas.

A Educação Física Militar deveria constituir-se como elemento fundamental durante toda a

carreira militar e não apenas nos processos de formação. É algo inerente à dinâmica institucional

e é, entre outros, um aspecto que estabelece a distinção entre o meio castrense e a sociedade

civil. A aptidão física afigura-se como indispensável para o cumprimento das missões atribuídas

a qualquer militar. Esta consciencialização da importância da actividade física terá de ser

Page 24: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

19

assumida e valorizada, consubstanciando-se numa avaliação (com atribuição de uma “nota”) em

oposição do sistema “go/no go” existente.

Para facilitar o registo e a gestão da avaliação de desempenho propomos a aplicação de

uma ferramenta informática para que o preenchimento das fichas de avaliação, bem como todo

o processo, seja feito electronicamente.

As propostas supracitadas e as que foram sendo lançadas no decorrer da investigação

influenciarão, de forma marcante, a cultura e as práticas de gestão do Exército, podendo contribuir

para o surgimento de determinadas resistências senão for assumida pelos líderes estratégicos,

implicando que esta integração seja comunicada, assumida e interiorizada como uma ferramenta

de desenvolvimento individual e, por consequência, colectivo e organizacional.

Através deste estudo foi-nos possível investigar, discutir e propor um sistema de Gestão do

Desempenho adaptado ao Exército Português e à sua especificidade, que, de uma forma

sintética, comungue das orientações, perspectivas e filosofia do SIADAP. Procurámos contribuir

para a constituição de um sistema que motive, avalie e desenvolva os militares na Organização.

Julgamos que todo o conhecimento inerente a esta investigação é imprescindível

para se poder constituir uma base de trabalho para a gestão, formação, selecção,

recompensas e deve ser objecto de posterior actualização.

BIBLIOGRAFIA

Behn, R. (2003). Why measure performance? Different purposes require different measures.

Public Administration Review, 63, 5: pp 588-606.

Bilhim, João (1997) – Gestão por Objectivos na Administração Pública. Lisboa: ISCSP. Caetano,

A. (1998). Avaliação de Desempenho: Metáforas, Conceitos e Práticas. Lisboa: Editora RH.

Caetano, A. & Vala, J. (2002). Gestão de Recursos Humanos: Contextos, Processos e Técnicas.

Lisboa: Editora RH.

Caetano, António (2007) – Avaliação do Desempenho. Lisboa: Oeiras: Celta Editora. Caetano, A.

(2008). Avaliação de Desempenho: O Essencial que Avaliadores e Avaliados precisam de

saber. Lisboa: Livros Horizonte.

Câmara, Pedro B., Guerra, Paulo.B, Rodrigues, Joaquim, V., 2007, Novo Humanator: Recursos

Humanos e Sucesso Empresarial, 3ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote.

Cascão, F. & Cunha, N. (1998). Gestão de Competências: Novas perspectivas na Gestão de

Recursos Humanos. Porto: Edições IPAM.

Cascão, Ferreira (2004) – Entre a Gestão de Competências e a Gestão do Conhecimento: Um

Estudo Exploratório de Inovações na Gestão das Pessoas. Lisboa: Editorial Presença.

Ceitil, Mário, 2006, Gestão e Desenvolvimento de Competências, Lisboa, Edições Sílabo.

Page 25: Boletim 3 - Exército

Gestão do Desempenho dos Militares do Exército

20

Chiavenato, Idalberto (2003) – Desempenho Humano nas Empresas: Como Desempenhar Cargos

e Avaliar o Desempenho. São Paulo: Editora Atlas.

Chiavenato, Idalberto (2004) – Gestão de Pessoas: O Papel dos Recursos Humanos nas

Organizações. Rio de Janeiro: Editora Campus. ISBN 85-352-0427-10.

Costa, António Firmino da (1986) – “A Pesquisa de Terreno em Sociologia”, em SILVA, Augusto

Santos; PINTO, José Madureira (orgs.) (1986) – Metodologia das Ciências Sociais. Porto:

Edições Afrontamento.

Cunha, M., P.; Rego, A.; Gomes, J.F; Cabral-Cardoso, C.; Marques,C.,A.; Cunha,R.C, 2010,

Manual de Gestão de Pessoas e do Capital Humano, 2ªEdição, Lisboa, Edições Sílabo.

Dooren, W. (2005). What Makes Organizations Measure? Hypotheses on the Causes and

Conditions for Performance Measurement. Financial Accountability & Management, 21, 3:

pp 363-383.

Drucker, P. F. (1954). The Practice of Management. Oxford: Elsevier Butterworth Heinemann.

Fernandes, (2007). Avaliação de Desempenho por Objectivos. Recursos Humanos Magazine,

Jan-Fev, 48: pp 26-34.

Gonçalves, Rui (2008) – Entre a Avaliação e o Desempenho Considerações Adaptativas.

Coimbra: Quarteto Editora.

Marras, J. 2000, Administração de Recursos Humanos: do estratégico ao estratégico. Futura. São

Paulo.

Mintzberg, Henry, (2010) Estrutura e Dinâmica das Organizações, 4.ª Edição, Publicações D.

Quixote, Lisboa.

Peretti, J. (2001). Recursos Humanos. 3ª Edição. Lisboa: Edições Sílabo.

Quivy, R, Campenhoudt, I (1992) Manual de Investigação em Ciências Sociais, Lisboa: Gradiva.

Rocha, J. Oliveira (1999) – Gestão de Recursos Humanos. Lisboa: Editorial Presença.

Rocha, J.A, Oliveira, Dantas, J.Costa, 2007, Avaliação de Desempenho e Gestão por Objectivos,

Editora Rei dos Livros, Lisboa

Silva.A., Lavado, Cruz, P. Silva, Bastos, Rosinha, Antão, 2006, Estudo do Modelo De

Competências Do Oficial Do Exército Oriundo Da Academia Militar, Centro de Psicologia

Aplicada do Exército.

Sousa, M. T.; Duarte, T.; Sanches, P. G. e Gomes, J. , (2006), Gestão de Recursos Métodos e

Práticas, Lidel, Lisboa.

Vaz, Rui Pedro Ferreira Vaz, Subsistema de Avaliação do Desempenho dos Trabalhadores da

Administração Pública (SIADAP3): da teoria à (boa) prática, Universidade de Coimbra,

http://www.uc.pt/depacad/gee/siadap3_NPF, consultado a 3 de Fevereiro de 2011.

Yemm, G. (2005). Getting the most from appraisals: from both sides of the desk. Management

Services, Spring 2005: pp 36-37.

Page 26: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

21

LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho de 1999, Estatuto Dos Militares Das Forças Armadas

(EMFAR).

Decreto-Lei nº 66-B/2007, 28 de Dezembro de 2007, sistema integrado de gestão e avaliação do

desempenho na Administração Pública (SIADAP).

Portaria n.º 1246/2002, 7 de Setembro, Regulamento de Avaliação do Mérito dos Militares do

Exército (RAMME).

Page 27: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º 3 – 2012

PP. 22 a 65

22

Do Uniforme Militar ao Desvio e à Reclusão – Um Olhar sobre o

Estabelecimento Prisional Militar.

Alexandre Moura*

Helena Carreiras**

RESUMO

O Estabelecimento Prisional Militar tem determinadas especificidades que lhe configuram uma singularidade própria no panorama nacional das prisões. Esta "micro-sociedade" possibilita que determinadas identidades exteriores sejam transpostas para o interior da prisão conferindo uma hierarquia formal que é induzida pelas instituições de origem. Por conseguinte, é nosso objetivo determinar quem é o cidadão-recluso que se encontra no EPM, em função de um conjunto de características sócio-demográficas e jurídico-prisionais, designadamente a idade, posto, habilitações literárias, situação na profissão, instituição de origem, duração e tipo de pena. Pretendemos, inclusivamente, perceber quais as condições de vida dos reclusos – tipo de tratamento dado pelo staff, horários, fardamento, rotinas, comportamentos, alojamentos e habitabilidade, alimentação. Procurámos analisar, entre outros fatores, as situações penais e prisionais, designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente militar, que comungam de orientações semelhantes. Analisámos as preocupações, avaliações, comportamentos, rotinas, horários, condições de vida dos reclusos. Foram objeto de apreciação as condições gerais da prisão, o tratamento dado pelo «staff prisional», o acesso à saúde, as principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos perceber se as hierarquias internas decorrem das patentes que cada um possui e se os diferentes estatutos, papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as posições e as interações locais.

Palavras Chave: Reclusão Militar, Preso Militar, Comportamentos a Atitudes.

ABSTRACT

The Portuguese Army Prisoner Facility has certain aspects that makes it unique in the national prisons environment. This “imprisoned micro-society” with military uniforms allows that certain exterior aspects appear inside prison walls. The present study aimed to explore and describe the military prisoners regarding their socio-demographic and juridical characteristics such as rank, age, unit, sentences and type of crime committed. We wanted to understand the military prisoner’s daily routine – kind of treatment given by Staff, internal schedules,

routines, concerns, behaviors, food quality, facility conditions, criminal and imprisoned dynamics.

Keywords: Military Prison, Military Prisoner, Behaviors and Attitudes.

* Major de Cavalaria, Mestre em Sociologia, Chefe do Gabinete de Estudos e Formação do Centro de Psicologia Aplicada do Exército. **

Ph.D., Professora do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE).

Page 28: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

23

NOTA INTRODUTÓRIA

O presente Artigo surge como corolário de um Mestrado em Sociologia

efetuado no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE),

especialidade em Família, Educação e Políticas Sociais e incide sobre a população

prisional encarcerada no único Estabelecimento Prisional Militar (EPM) nacional -

sendo, por conseguinte, um estudo de caso. Decorre da actividade profissional

desenvolvida pelo autor no meio castrense desde há alguns anos a esta parte,

cruzando-se com o seu interesse pelas instituições totais (em termos Goffmanianos),

tendo consciência que falar de punições e encarceramentos são temas que, sobretudo

no meio militar, se evitam abordar, discutir e comentar.

É nossa intenção caracterizar sociologicamente o cidadão-recluso-militar que

se encontra no EPM. Perceber quais as suas condições de vida, rotinas,

comportamentos, o que pensam, que aspectos mais os preocupam e qual o tipo de

tratamento dado pelo «Staff». Constituem o «Staff Prisional» o comando do

estabelecimento e o seu estado-maior, os técnicos de saúde e reeducação, elementos

constituintes do pelotão de guarnição e segurança (PGS) (não são designados de

guardas pois, efectivamente, não o são. São militares com o curso de Polícia do

Exército (PE), pessoal administrativo e de manutenção. A reclusão é muitas vezes

entendida como um intervalo na vida dos indivíduos sendo encarada como uma

suspensão, um parênteses ou uma fragmentação no tempo, representada como se de

uma outra vida paralela se tratasse e que terminará dentro de algum tempo mais ou

menos longo.

Além de procurar responder a estas questões, a nossa pesquisa procurou

conhecer a realidade de outras prisões portuguesas, de forma a comparar e tornar

mais inteligíveis os resultados obtidos. São estes factores específicos e as suas

interconexões que se procuram evidenciar neste trabalho.

O artigo é constituído por uma nota introdutória, quatro capítulos e a conclusão.

No primeiro capítulo, faremos alusão a algumas referências teóricas fundamentais que

enquadram este estudo. No segundo, a par de uma explicitação metodológica sobre

os procedimentos, métodos e técnicas utilizados, procederemos a uma

contextualização e caracterização do objecto de estudo. No terceiro capítulo, inicia-se

a apresentação dos resultados através da caracterização demográfica e social dos

reclusos. Analisa-se, entre outros factores, as situações penais e prisionais,

designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a

particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente

Page 29: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

24

militar1, que comungam de orientações semelhantes. No quarto capítulo, são

analisadas as preocupações, avaliações, comportamentos, rotinas, horários,

condições de vida dos reclusos militares. São objecto de apreciação as condições

gerais da prisão, o tratamento dado pelo «Staff» prisional, o acesso à saúde, as

principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos perceber se as hierarquias

internas decorrem das patentes que cada um possui e se os diferentes estatutos,

papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as posições e as interacções

locais. Tendo consciência da estigmatização social provocada pela prisão, das

vulnerabilidades societais que estes cidadãos-reclusos apresentam, exponenciadas

pelo uniforme que usam e poderão continuar (apenas alguns, dependendo da

natureza do crime) a envergar, torna-se imprescindível determinar como os internos se

relacionam com estas questões, que noções orientam as suas atitudes,

comportamentos e emoções. Apresenta-se, ainda, algumas notas conclusivas.

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO PRINCIPAL

1.1. Dos Cárceres à Prisão

As prisões são, de acordo com alguns teóricos, os locais que, por excelência,

permitem aliar o sofrimento que a perda da liberdade implica com a possibilidade de

regeneração do delinquente pelo trabalho/ocupação, pela educação e pela auto-

reflexão e auto-crítica. Porém, vozes discordantes afirmam o contrário, defendendo

que as prisões propiciam outros riscos e ameaças. Os abolicionistas imaginam uma

sociedade sem prisões, sem privação da liberdade, sem exclusões institucionais,

considerando que os cárceres podem não ser a forma “...institucional ideal para

cumprir os desígnios modernizadores desejados...” (Dores, 2003: 80). Desde sempre,

houve registos de torturas, abusos e desrespeito pelos direitos humanos mais

elementares no interior destes locais. Com efeito, mesmo no século XIX, adverte Maria

João Vaz (2003), a prisão não executava o papel que lhe era atribuído e “...em vez de

contribuir para a regeneração dos que eram condenados pela prática do crime, ela era

antes de mais considerada como uma verdadeira “escola” do crime...” (Vaz, 2003 :

12). Foi essencialmente durante os últimos trinta anos do século XIX que se

começaram a procurar concretizar as principais medidas reformadoras do sistema

penal Português, transformações estas que procuraram respeitar as formulações

teóricas defendidas desde o iluminismo 2. Nos finais do século XIX, os principais

estabelecimentos prisionais existentes na cidade de Lisboa eram as cadeias do Aljube

1 Forças Armadas (Marinha, Exército, Força Aérea) e Guarda Nacional Republicana.

2 Confiança nas capacidades da razão acreditando-se que era possível a regeneração dos indivíduos desviantes

através do pensamento, meditação, reflexão interna, ajudado com as benéficas influências da educação e do trabalho, forças disciplinadoras de corpos e mentes.

Page 30: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

25

e do Limoeiro. Maria João Vaz (2003) salienta que no distrito de Lisboa existiam cerca

de 40 cadeias, tratando-se na sua grande maioria de pequenos cárceres e não de

prisões adequadas para o cumprimento de penas de longa duração. Apenas em 1885

surgiu o primeiro estabelecimento prisional - a Cadeia Geral Penitenciária do Distrito

da Relação de Lisboa - considerada como o modelo mais adequado para se

alcançarem os objectivos essenciais das penas - a recuperação dos indivíduos

delinquentes para o convívio em sociedade. As prisões impuseram-se, por inerência,

como elementos centrais dos sistemas penais. Surgiram, neste contexto, problemas

por demais conhecidos, como a sobrelotação, a falta de higiene, corrupção,

promiscuidade, exploração de uns sobre os outros, inexistência de separação por

idade, grau de perigosidade, tipo e duração da pena. Surgem também revoltas

prisionais como a do Limoeiro em 1891, a obrigatoriedade do uso de capuz que cobria

o rosto dos condenados de modo a não serem identificados nem haver diálogo entre

pares, surgindo a loucura e a tuberculose como principais doenças, dando a

impressão de que se contribuía mais, segundo cronistas da época, para o desarranjo

mental e enfraquecimento dos reclusos do que para a sua regeneração. Quando

acabavam de cumprir a suas penas (...) não pareciam mais do que cadáveres

galvanizados que se restituem à sociedade, que se colocam além do portão e se

mandam caminhar para a cidade... (Vaz, 2003: 18). No virar para o século XX, pouco

se tinha alterado no débil estado das prisões nacionais, até que em 6 de Fevereiro de

1913 foi alterado o regime penitenciário, passando os reclusos a trabalhar em comum

durante o dia, mantendo-se em isolamento nas suas celas durante a noite.

Mais recentemente, no período do Estado Novo, era frequente haver a

aplicação de uma outra pena denominada de transportação - o chamado «degredo» -

para as colónias Portuguesas em África, fundamentalmente, para o Tarrafal em Cabo

Verde. Esta ocorria ora como alternativa ao insuficiente número de estabelecimentos

prisionais que não conseguiam acolher toda a «população condenada», ora como

complemento após o cumprimento do período da pena de prisão em território nacional.

1.2. A Prisão

A investigação sobre prisões não é um campo desenvolvido das ciências

sociais, em parte causada pela dificuldade no acesso a estas instituições por parte do

público. Os estudos realizados por Michel Foucault proporcionaram uma maior

visibilidade do panorama prisional, aliado aos inúmeros problemas mediáticos que,

nas últimas décadas, têm surgido no interior e em torno destes estabelecimentos.

Como salienta Pedro Dores (2003), a persistência de queixas sobre atentados aos

direitos dos reclusos em todos os sistemas prisionais conhecidos, a selectividade

Page 31: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

26

social que acolhe nas prisões fundamentalmente os indivíduos das classes sociais

mais baixas e os mais desprotegidos socialmente - o acesso à justiça é, ele próprio,

fortemente condicionado pela situação socio-económica do cidadão - os mecanismos

de estigmatização eficazes e inflexíveis, as maiores taxas de doenças e mortes nas

prisões do que no seu exterior, a idade precoce da população encarcerada, as

elevadas taxas de reincidência, permite-nos retirar, segundo este autor, algumas

ilações: a necessidade de estudos científicos mais aprofundados e alargados, o facto

das prisões limitarem fortemente as condições de habitabilidade dos reclusos, não se

devendo esperar que sejam elas a resolver eventuais conflitos sociais.

No década de 60 do século passado, Erving Goffman debruçou-se sobre as

“instituições totais 3 “ (onde os estabelecimentos prisionais se incluem) e salientou que

nestes universos isolados se encontram removidas as barreiras que habitualmente

separam as várias esferas da vida do indivíduo – lúdica, familiar, residencial,

ocupacional, privada, íntima – estando estas submetidas a uma autoridade e a uma

gestão comuns e onde existem outros participantes que partilham destas condições.

Daí a faceta totalizante que contrasta com as sociedades urbanas e complexas,

dotadas de diferenciação social e espacial nos mais variados domínios de relações, de

pertenças e de identidades.

Efectivamente, todos os aspectos da vida dos indivíduos reclusos são

conduzidos no mesmo local, sob a mesma vigilância e autoridade. As rotinas diárias

de cada interno são realizadas em co-execução com todos os demais companheiros

de reclusão, submetidos a idêntico tratamento e exigência. As tarefas são rigidamente

escalonadas, estruturadas, impostas, suportadas por um sistema rígido de normas

formais (e informais, como veremos mais adiante), cujo cumprimento é legalmente

fiscalizado por agentes dotados de autoridade. A iniciativa, o livre-arbítrio, a

criatividade são balizadas, reguladas e delimitadas.

Apesar de supostamente estas considerações pretenderem ser factos

incontestáveis, o tratamento prisional é, defende Pedro Dores (2003), marcadamente

diferenciado consoante o estatuto de cada cidadão. Este autor recorre a Pierre

Bourdieu ao afirmar que as prisões não foram concebidas para acolher outras classes

sociais que não as menos desfavorecidas – a dos marginais marginalizados.

Goffman afirma que os actores sociais na qualidade de actuantes e de seres

racionais dotados de razão, preocupam-se em manter a impressão de que cumprem

as normas intrínsecas pelas quais são julgados (até pelo que os seus maiores ou

menores «direitos reclusos», dependem desta aceitação e do cumprimento latente das

3 ”...lugar de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos, separados do mundo exterior por um período

relativamente longo, levam em conjunto uma vida reclusa cujas modalidades são explícita e minuciosamente reguladas.” (Goffman, 1987: 62)

Page 32: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

27

regras internas, enfim, para alcançarem o «almejado bom comportamento» que é

decisivo para se implementarem as saídas precárias, o RAVI, o RAVE 4, a liberdade

condicional). Reiterando estas considerações, a acção social, no sentido Weberiano,

pode ser racional por relação a fins, condicionado pelas expectativas dos

comportamentos de outrém, utilizando estas mesmas expectativas como condições ou

meios para a prossecução de objectivos próprios, racionalmente estruturados e

reflexivos, o que demonstra que, não poucas vezes, os reclusos «actuam no palco dos

comportamentos», realizando acções, cumprindo normas, regras que, na ausência de

controlo institucional, seriam incumpridas. Parafraseando mais uma vez Erving

Goffman (1987), os actores sociais estão despreocupados com a questão moral de

cumprir as normas, focalizando-se, em vez disso, com o “...o problema amoral de

construir a impressão convincente de que satisfazem as normas...” (Goffman, 1987:

221). Na mesma linha de pensamento, Tom Burns (2000) salienta que toda a

actividade humana é gerida, em grande parte, por sistemas de regras sociais. Todavia,

os actores sociais, dada a sua inteligibilidade, interpretam e accionam essas mesmas

regras de acordo com os seus intuitos. Além de um constrangimento, as regras sociais

normativas são também oportunidades de acção. Articulando o pensamento à acção,

o indivíduo pode permitir-se alterar as regras já existentes. De facto, é inegável que os

actores sociais, no âmbito da sua acção, tentam manter ou modificar as normas que

encontram estabelecidas nas instituições. Na opinião de Tom Burns (2000), se os

indivíduos não tentassem adaptar ou transformar as regras com que se deparam nas

instituições, não haveria possibilidade de existir inovação normativa e institucional. As

prisões não constituem excepção.

O intuito dos estabelecimentos prisionais é, em última análise, o da punição

com o encarceramento das pessoas, garantindo a protecção dos bens jurídicos

ameaçados, entendidos como essenciais à vida em sociedade dos que estão em

liberdade e com a finalidade, sempre reiterada mas quase nunca cumprida, de

regeneração e reinserção dos delinquentes após a pena. A prisão pretende evitar os

“contactos funestos dos condenados com os modos de vida social degradados que

sustentaram a sua delinquência...” (Dores, 2003: 63), procurando reunir todos os

condenados em espaços de execução de penas de cariz industrializado, afastando-os

de todas as tentações que a situação em liberdade estimulava, controlando-se os

custos orçamentais que provêm dos impostos públicos.

A prisão apresenta-se, por inerência das suas condições, como uma instituição

invulgarmente abrangente, dotada de dinâmicas específicas que a constituem como

4 RAVI – Regime Aberto Virado para o Interior; RAVE – Regime Aberto Virado para o Exterior.

Page 33: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

28

uma «micro-sociedade». É uma tecnologia social feita por medida, com uma finalidade

delimitada e delineada. Por conseguinte, uma prisão constitui uma comunidade

artificial, dada a separação que impõe à pessoa-reclusa, privando-a do seu meio

natural e obrigando-a a permanecer nesse ambiente ao qual terá de se adaptar. Neste

novo meio, o cidadão é submetido a um rigoroso controlo formal e informal do tempo e

do espaço, onde a maioria das actividades se transformam em rotinas e se igualizam.

Espaço e tempo confundem-se em adjectivações locais que restringem a autonomia

individual dos internos.

Anthony Guiddens (1994) refere-nos que em instituições do tipo prisional, as

esferas de competência e os níveis de autoridade do Staff, além de se desenvolverem

numa base regular, encontram-se claramente demarcadas e delimitadas por uma

hierarquia de funções. Todavia, como o reconheceu Goffman (1987), as dinâmicas

recriadas na prisão não anulam nem substituem as exteriores, permanecendo estas

como referências para os internados. As cadeias não existem isoladas e, de algum

modo, as lógicas internas reenviarão para dinâmicas extra-prisionais, quer nos

preocupemos apenas com o núcleo recluso, quer abrangendo a instituição como um

todo.

Michel Foucault (2004), por seu turno, transmite-nos que ”...se conhecem todos

os inconvenientes das prisões e sabe-se o quanto são perigosas quando não inúteis.

E entretanto não vemos o que pôr no seu lugar. Elas são a detestável solução de que

não se pode abrir mão...” (Foucault, 2004: 191). Em termos Durkheimianos, o aumento

do número de prisões e prisioneiros numa determinada sociedade é um sintoma de

«Anomia».

A instituição prisional, segundo Pedro Dores (2003), poderá ser um refúgio de

ressocialização para os actores sociais que coloquem em causa as normas societais

que possibilitam a vida quotidiana. É a garantia da igualdade formal como resposta às

“...transgressões e aos transgressores, através de um sistema de transformação em

tempo de prisão da culpa abstracta dos crimes cometidos em concreto; (...) espaço de

investimento filantrópico e de espírito de solidariedade para com os seres humanos

caídos...” (Dores, 2003: 77).

Loic Wacquant (2000), fala de uma sub-cultura prisional que se desenvolveria

no interior das prisões e que permitiria o crescimento de ideologias desviantes,

enaltecendo o tema recorrente de «prisão como escola do crime». Menciona inúmeras

vezes D. Clemmer que introduziu o conceito de “Prisonization” (teoria da prisionização

retomada por S. Messinger e G. Sykes em 1960), no qual todos os reclusos seriam

afectados pelas influências criminosas inerentes à própria cultura prisional, ainda que

este processo não ocorra de modo uniforme. Factores como a solidariedade entre

Page 34: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

29

reclusos, a oposição ao Staff, a duração da pena, os laços de convivialidade afectiva

com o meio exterior, a inclusão em determinados grupos desviantes, originam

diferenças neste processo “tanto mais ténues e tardias quanto menos intenso e

exclusivo se revele o contacto com os valores desviantes da sub-cultura

penitenciária...” (Wacquant, 2000: 28). Os membros da população reclusa não

constituem um mero agregado de indivíduos. Comunicam, interagem, reflectem, num

quadro temporário de vida comunitário distinto do anterior. Esta sub-cultura tenderia a

desenvolver-se como reacção às «pains of imprisonment» (dores da prisão),

designadamente privações de ordem material, afectiva, autonómica, sexual,

degradação do estatuto e papel do cidadão. A cultura penitenciária surgiria como uma

adaptação às novas condições do internamento, funcionando como uma plataforma

para a recuperação da auto-estima e da auto-imagem que constituiria um entrave à

reintegração e regeneração societal dos delinquentes.

Todavia, trabalhos posteriores como os de Stanton Weeler (1961), demonstram

que no período inicial o recluso conforma-se com as normas e valores do

estabelecimento prisional. No intermédio, constata-se uma adopção sustentada,

voluntária e estruturada da sub-cultura prisional. Porém, nas etapas que antecedem a

libertação iniciar-se-ia uma «desprisionação», abandonado-se gradualmente os

valores do código-recluso, procurando retomar-se as regras, atitudes, práticas em uso

no exterior. Estas três fases descreveriam uma trajectória em «U», tendo ficado

conhecido como o Padrão U (Teoria U ou da privação). Outros autores colocaram em

causa a ideologia de Weeler, afirmando que os “comportamentos em U» apenas foram

verificados em instituições cuja tónica se baseava na segurança e disciplina, sendo

diminutos nas que privilegiavam o tratamento e a regeneração. Contudo, é inegável a

importância dos seus estudos para aclarar as teorias sobre as prisões.

Posteriormente, surgiram várias outras perspectivas salientando-se a que ficou

conhecida como o «modelo da importação directa», onde o prévio estilo de vida dos

internos (em pré-reclusão) constituiria um factor fundamental para se poder

compreender os comportamentos durante a reclusão, os quais seriam reflexos de

várias conjugações, práticas e representações antes da condenação. Enquanto no

«modelo da privação» as representações e valores dos reclusos surgiam como

reacção às privações de vária ordem originadas pelo cárcere, na perspectiva do

«modelo da importação directa», as atitudes e condutas dos reclusos são transpostas

do meio extra-prisional para intra-muros, devendo olhar-se também para os factores

extrínsecos nas abordagens institucionais sobre a prisão.

Page 35: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

30

Procurámos evidenciar nas páginas anteriores algumas correntes de

pensamento sobre as instituições prisionais que suportaram teoricamente o nosso

trabalho.

2. O ESTABELECIMENTO PRISIONAL MILITAR

2.1. Breve Contextualização Histórica 5

O EPM foi criado pelo despacho n.º 12555/2006 de 24 de Maio do Ministro da

Defesa Nacional que determinou a mudança de designação de Presídio Militar para a

actual designação. Assume-se o EPM, deste modo, como herdeiro do Presídio Militar

criado por Decreto-Real de 7 de Fevereiro de 1895, em Santarém, numa Cadeia

Penitenciária do Ministério da Justiça então cedida à Secretaria de Estado dos

Negócios da Guerra para o cumprimento de pena de presídio militar, medida coerciva

inovadora criada pelo Código de Justiça Militar, a qual obrigava a um regime

penitenciário que envolvia segregação celular durante a noite e comunidade de

trabalho durante o dia.

No dia 8 de Maio de 1895 assumiu o Comando do Presídio Militar, o General

de Brigada João Batista da Silva e em 25 de Maio desse mesmo ano deu entrada o

primeiro condenado – o Soldado António de Campos, aprendiz de músico. O Presídio

Militar funcionou em Santarém durante 105 anos, ao longo dos quais cumpriram pena

5.435 presos, sendo 484 da Marinha, 4.537 do Exército, 328 da Força Aérea e 86 da

Guarda Nacional Republicana (GNR).

Em 1998, as instalações foram desafectadas do domínio Militar e restituídas ao

Ministério da Justiça. Por consequência, em Janeiro de 2001, o Presídio Militar foi

transferido de Santarém para Tomar, instalando-se definitivamente nas instalações da

Casa de Reclusão desta cidade, desactivada para possibilitar a realização de obras de

remodelação e ampliação. Este facto, obrigou a que os reclusos da Casa de Reclusão

de Tomar e do Presídio Militar fossem transferidos para a Casa de Reclusão de Elvas,

de onde viriam sucessivamente a ser transferidos entre 2002 e 2005, ano em que

também foi desactivada aquela Casa de Reclusão. Extintas as Casa de Reclusão de

Elvas e de Tomar, o EPM passou a ser o único Estabelecimento Prisional Militar em

Portugal.

5 Adaptado de Estado Maior do Exército (1997) – História do Encarceramento Militar Português. Lisboa: Estado Maior do

Exército.

Page 36: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

31

2.2. A Singularidade do EPM

O Estabelecimento Prisional Militar tem determinadas especificidades que lhe

configuram uma singularidade própria no panorama nacional das prisões. É dirigido e

controlado única e exclusivamente por militares do Exército - e não por civis ou por

militares de outro qualquer ramo - está na dependência do Ministério da Defesa

apesar de alguns reclusos serem da GNR que é tutelada pelo Ministério da

Administração Interna. Os presos são exclusivamente militares das Forças Armadas

ou da GNR, já que a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Judiciária, os Guardas

Prisionais, Florestais ou membros de outras instituições policiais de “cariz civil" são

encaminhados para outros estabelecimentos.

Por conseguinte, esta "micro-sociedade" dotada de uma faceta específica e

totalizante, induz a que determinadas identidades exteriores sejam transpostas para o

interior da prisão – até pelo que os reclusos continuam a envergar os seus uniformes 6

com as patentes militares explícitas que todos conhecem e são obrigados a continuar

a aceitar – conferindo uma hierarquia formal que é induzida pelas instituições extra-

prisionais de origem. É interessante verificar que esta hierarquia formal é

aparentemente respeitada, na maioria das ocasiões, apesar de todos terem

consciência que muitos dos guardas são soldados cuja função é vigiar, controlar,

estabelecer regras e emanar ordens que têm de ser seguidas e cumpridas por

reclusos Sargentos ou Oficiais 7 (portanto, com um posto mais elevado na hierarquia

formal militar). Deste modo, as lógicas internas reenviam (como veremos mais

adiante) para realidades extra-prisionais que constrangem a diminuta liberdade dos

reclusos e o seu livre-arbítrio.

Do ponto de vista institucional, o universo em questão faz constantemente

apelo a um referente que pode ser considerado como identitário, no qual se funda

desde o início – a componente militar. Mais propriamente, uma ideologia militarista de

virtudes e de honra, que se acentua e polariza quando conjugamos o desvio, a

delinquência com o uso de uniforme representativo de uma qualquer instituição ou

país. A relação da prisão com esta ideologia, que se manifesta em inúmeros sentidos

materiais, simbólicos e organizacionais (desde as formaturas, o cabelo aparado, a

barba escanhoada, os sapatos engraxados, o uso de símbolos militares, a prática da

continência e da ordem-unida), nem sempre é pacífica e apaziguadora. Como afirma

Pedro Dores (2003), as prisões seriam melhor “...observadas se fossem tratadas

6 Continuam a usar o seu uniforme se estiverem no activo, o que abrange a quase totalidade dos reclusos. Se os militares

estiverem na situação de reserva ou reforma, trajam à civil. 7 Ver hierarquia formal militar no anexo C.

Page 37: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

32

através de uma análise institucional, (...) observando os detidos mas também todos os

outros agentes sociais envolvidos, como guardas, funcionários, técnicos, autoridades

judiciais e penitenciárias, agentes sociais exteriores, familiares e amigos, organizações

não governamentais. Observando-os não como quem observa um aquário ou uma

jaula de jardim zoológico ...” (Dores, 2003: 84).

Deste modo, as relações de pertença, a estratificação social, os diferentes

papéis e estatutos sociais, a patente e a classe militar a que cada um pertence, a

reduzida ou elevada formação académica, originam clivagens e demarcações que se

acentuam com a ideologia e cultura militar. Para estes homens militares para os quais

a ordem, a disciplina, o respeito, a hierarquia, os deveres cívicos sociais e militares

são (ou foram em tempos) primordiais e respeitados acima de qualquer outro

sentimento, é difícil aceitar e compreender o seu novo estatuto social que lhe configura

um inovador papel e uma nova posição na sociedade.

Com efeito, esta prisão apresenta particularidades que a demarca das demais.

Não só pelos reclusos que não pertencem ao universo generalista prisional – onde as

fracas qualificações abundam e a taxa de reincidência é enorme – como também eles

não pertencem a profissões ou estratos da sociedade económica e socialmente pouco

valorizados, nem a classes sociais mais desfavorecidas normalmente situadas na

base da estrutura social. Efectivamente, há um afastamento dos padrões da

população reclusa. Até a própria prisão militar não compadece de sobrelotação.

Por outro lado, como se trata do único estabelecimento prisional central para

militares (não existe outro local para onde se possa pedir transferência), muitos dos

reclusos encontram-se demasiado afastados dos locais de residência e dos parentes o

que fragiliza, ainda mais, a ligação com o meio familiar e social.

Para preencher os dias e as horas, os reclusos podem efectuar, caso assim o

desejem, algumas tarefas que estão ao seu dispor. Como não podem ser obrigados a

trabalhar, aderem voluntariamente a serviços na lavandaria, na cozinha, jardinagem,

carpintaria, mecânica automóvel, biblioteca (e outros inopinados e expontâneos). A

este pseudo-voluntarismo, não será alheio o facto de contribuir para acesso a saídas

precárias (evidentemente, após decisão do conselho técnico, formado pelo núcleo de

apoio ao Comandante 8 (NAC), pelo Juiz responsável do Tribunal de Execução Penal 9

(TEP) e por Técnicos da Direcção Regional de Inserção Social). Todos sabem para

que locais se devem dirigir após o pequeno-almoço e a formatura de início de

trabalhos pelas nove da manhã, à excepção de um interno que optou por não efectuar

8 O NAC é constituído pelo Comandante, 2º Comandante, Chefe da Secção de Pessoal, Oficial de Justiça, Psicólogo,

Comandante da Companhia de Comando e Serviços (em representação do Comandante do PGS) e o Sargento-mor do Estabelecimento. 9 Existem Tribunais de Execução Penal em Lisboa, Porto, Évora e Coimbra.

Page 38: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

33

quaisquer actividades. Estão permanentemente acompanhados por um militar PE do

PGS, caso se encontrem em Grau de Confiança limitado 10 ou se estiverem em locais

que possuam materiais perigosos (contudo, todos os reclusos, por decisão do actual

Comandante, são acompanhados permanentemente quando se encontram no exterior

do bloco prisional).

Todavia, estas tarefas efectuadas pelos internos contribuem,

fundamentalmente, para a manutenção e reprodução do sistema prisional assumindo

apenas uma dimensão mecânica e elementar, não se revestindo de um carácter

formativo e qualificativo que seja facilitador de uma futura reinserção ou

ressocialização profissional, aumentando as hipóteses de empregabilidade (para os

internos que não possam ser re-inseridos nas suas instituições profissionais de

origem). Deste modo, num contexto desta natureza torna-se difícil a um cidadão-

recluso, dadas as vulnerabilidades sociais de que é detentor, exponenciadas pela

estigmatização que a prisão confere, garantir a sua empregabilidade se, na prisão, não

existir uma dinâmica direccionada para esse objectivo. Esta é uma temática que

poderá gerar futuras investigações e que não será abordada no decorrer desta

dissertação.

O EPM está fisicamente dividido em dois grandes sectores: o bloco Prisional,

onde co-habitam os reclusos e a ala do Comando, Estado-Maior e Serviços, onde

funcionam todas as áreas de apoio, suporte e sustentabilidade do estabelecimento.

Estas duas alas apenas têm comunicação através de uma enorme porta que se

encontra vigiada presencialmente por um militar do PGS vinte e quatro horas por dia

(apenas a ala do Comando, Estado-Maior e dos Serviços tem ligação aos pátios

exteriores). Curiosamente, o comandante e o 2º comandante não podem estar

simultaneamente no interior do bloco prisional, devido a condicionalismos de

segurança.

O EPM tem capacidade para 78 reclusos sem, contudo, haver qualquer

sobrelotação, dividido em ala prisional para reclusos condenados e ala prisional para

preventivos. Nestas duas áreas existem alojamentos específicos para Oficiais,

Sargentos e Praças e, dentro destes, separação entre militares masculinos e

femininos 11. A dimensão das celas, os materiais utilizados, as camas e os armários

mudam conforme visitamos cada um destes locais. Passamos de camas de ferro para

10

Os reclusos envergam junto ao galão ou divisa do ombro direito uma “braçadeira” com uma cor específica. Reclusos com “grau de confiança reservado” – cor vermelha; não podem sair do bloco prisional; “grau de confiança limitado” – cor amarela; estão autorizados a sair do bloco prisional com vigilância física permanente; “grau de confiança pleno” – verde; estão autorizados a circular sozinhos, dentro de determinados locais que não possuem materiais considerados perigosos. A alteração do grau de confiança é da responsabilidade do NAC, é proposto à consideração do Comandante e, em caso afirmativo, é publicado em Ordem de Serviço Interna. 11

A Constituição Portuguesa obriga a que haja separação física entre reclusos preventivos e condenados. Não existem militares femininos em situação de reclusão. Porém, os alojamentos destinados para este efeito estão libertos e prontos a serem ocupados a qualquer momento. Também existe uma cela preparada para receber um Oficial-general.

Page 39: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

34

camas de madeira. O chão deixa de ser mosaico para passar a ser também de

madeira. A alimentação, todavia, é igual para todas as pessoas, sejam elas reclusas

ou funcionários do estabelecimento. É confeccionada pelos mesmos indivíduos (com

auxílio de alguns reclusos), utilizando-se os mesmos géneros alimentícios e os

mesmos utensílios e quantidades.

Como não há necessidade de aumentar a lotação de cada cela que deverá

estar sempre pronta para inspecção (pronta para revista), cada preso tem o seu

próprio quarto com casa de banho, não havendo necessidade de partilha de quaisquer

bens desta natureza. “...As camas devem estar sempre feitas e a área da casa de

banho limpa e agradável.(...) Os reclusos devem deixar a porta da cela fechada

quando se ausentam por qualquer motivo. Pode ser efectuada revista a qualquer hora

do dia ou da noite...” (Estabelecimento Prisional Militar - Normas de Execução

Permanente, 2004: 3). O convívio deverá fazer-se no bar dos reclusos ou nos

corredores, devendo evitar-se a entrada na cela de outros internos.

Encontrámos dispositivos organizacionais que marcam de maneira recorrente o

seu quadro de vivência. Por um lado, há a constante preocupação com o bem-estar

físico e mental dos reclusos. Consultas médicas com periodicidade no local ou no

hospital militar (existe ainda a possibilidade de haver deslocamentos a clínicas

privadas na área da cidade, desde que seja o recluso a suportar os seus custos), um

enfermeiro que faz parte do quadro orgânico, possibilidade diária da prática de

desporto, acompanhamento psicológico e jurídico. Desta forma, existiam indícios que

o estabelecimento, aparentemente, tinha adoptado um modelo que se orienta por

aspectos terapêuticos, tendo por objectivo o tratamento dos delinquentes, como

salienta Stanton Wheeler (1991), relegando para segundo plano outra tendência que

se centra na disciplina, controle e segurança. O EPM estaria mais próximo do

denominado modelo terapêutico, em declínio desde os anos setenta do século

passado dado não haver produzido os resultados esperados. Contudo, à medida que

se desenvolvia a “observação” 12 e fomos notando um aumento considerável na

quantidade e qualidade de informação contida nas pequenas conversas informais,

concluímos que seria inevitável não haver uma componente de segurança, controle e

disciplina que não se sobrepusesse ao teor terapêutico, ainda mais sabendo que se

trata de um estabelecimento de cariz essencialmente militar.

Estes argumentos servem de base a que um vasto leque de actividades

quotidianas sejam sujeitas a uma gestão minuciosa que estabelece formalmente a

restrição da autonomia individual dos reclusos. Mesmo no meio exterior, a fronteira

que delimita o domínio privado do público é flexível e não se estabelece de maneira

12

Passagem da fase de identificação e de adaptação, à fase de integração, segundo António Firmino da Costa (1986).

Page 40: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

35

idêntica para todos os indivíduos. Na prisão, ela é institucionalmente diluída e

legitimada pelo argumento da segurança. A regulamentação variada e minuciosa

através de “normas de execução permanente” (NEP) é um destes dispositivos que

contribui para que outros regulamentos vão aparecendo a um nível inferior,

procurando responder a novas situações da vida prisional.

No EPM conseguimos encontrar certos aspectos apontados na literatura sobre

a sub-cultura prisional de que falámos nas primeiras páginas deste trabalho. Porém,

apresentam-se mais fluídos e sem organizar os quadros extremos que foram

apresentados. Existe alguma coesão e formação de grupos entre alguns reclusos,

havendo uma nítida demarcação de uns para com outros. Julgamos que a

aproximação é fundamentalmente baseada no interesse e não induzem à constituição

de grupos com grande intensidade (excepção feita a um pequeno grupo de três

elementos de que falaremos mais adiante), providos de alguma identidade colectiva e

funcionando em regra de forma coesa. Neste sentido, existe um fenómeno de

“ausência de solidariedade generalizada” já que os reclusos pouco mais têm em

comum do que serem militares e estarem recluídos. E no EPM, esta circunstância não

se manifesta no sentido de os unir. Ela significa o facto de terem delinquido, avaliado

de modo diverso consoante seja questão do próprio recluso ou dos restantes (todos os

reclusos são sabedores, por via directa ou indirecta, do crime dos outros e da sua

extensão). A desqualificação mútua é modulada pela gravidade do tipo de crimes que

varia com o ponto de vista de quem os avalia (excepto pedofilia e violação que reúne a

reprovação geral, não existindo nenhum recluso a cumprir pena desta natureza).

Vinculado ao tipo de acto desviante cometido pela pessoa que se pronuncia sobre os

de outrém, os modos de hierarquização são múltiplos e por isso nem sempre

coincidem com a hierarquia formal militar ou a ordenação jurídico-penal (contudo,

quando pretendem fazer chegar algum pedido especial ao comandante é respeitada a

hierarquia militar e é o recluso com patente mais elevada que dirige esse pedido em

nome de todos os outros). No capítulo quatro, teremos oportunidade de abordar estes

condicionalismos de maneira mais pormenorizada.

De seguida, iremos debruçar-nos sobre questões de índole metodológico.

2.3. Explicitação Metodológica

A finalidade deste capítulo reside na justificação do caminho percorrido no

âmbito dos métodos e técnicas utilizadas no decorrer da investigação. Por

conseguinte, é nosso objectivo determinar quem é o cidadão-recluso que se encontra

no EPM, em função de um conjunto de características sócio-demográficas e jurídico-

prisionais, designadamente a idade, posto, habilitações literárias, situação na

Page 41: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

36

profissão, instituição de origem, duração e tipo de pena. Pretendemos, inclusivamente,

perceber quais as condições de vida dos reclusos – tipo de tratamento dado pelo

staff/guardas, horários, fardamento, rotinas, comportamentos, alojamentos e

habitabilidade, alimentação.

Procurámos analisar, entre outros factores, as situações penais e prisionais,

designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a

particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente

militar, que comungam de orientações semelhantes. Analisámos as preocupações,

avaliações, comportamentos, rotinas, horários, condições de vida dos reclusos. Foram

objecto de apreciação as condições gerais da prisão, o tratamento dado pelo «staff

prisional», o acesso à saúde, as principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos

perceber se as hierarquias internas decorrem das patentes que cada um possui e se

os diferentes estatutos, papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as

posições e as interacções locais.

Tendo consciência da estigmatização social provocada pela prisão, das

vulnerabilidades societais que estes cidadãos-reclusos apresentam, exponenciada

pelo uniforme que usam e poderão ou não continuar a envergar, torna-se

imprescindível determinar quem é o cidadão-recluso-militar. Quais as vulnerabilidades

a que estão sujeitos? Como são tratados pelo staff prisional? Quais as condições em

que co-habitam? Que direitos e deveres possuem? Serão reclusos com

especificidades próprias? A natureza dos seus crimes é singular? Que noções

orientam as suas atitudes, comportamentos e emoções?O estudo visa a população do

EPM, sendo portanto, um estudo de caso. Salientamos o facto de termos optado por

uma estratégia metodológica traduzida numa pesquisa de carácter quantitativo,

recorrendo fundamentalmente a técnicas de pesquisa “não documentais” como a

“observação participante”. Apenas desta forma conseguimos alguma profundidade de

análise ao observar os locais, os objectos, símbolos, as pessoas, actividades,

comportamentos e interacções, acontecimentos, situações, ritmos e dinâmicas sociais.

Assim, conseguimos alguma flexibilidade e permitiu-nos alternar de estratégia e seguir

novas pistas que entretanto apareceram. Apenas deste modo conseguimos ter acesso

oportuno a determinados espaços sociais que se revelaram de extrema pertinência.

Procurámos sempre ter presente o risco de envolvimento do observador que algumas

vezes se tornou excessivo, não se salvaguardando o necessário distanciamento

científico-metodológico. Admitimos que nem sempre conseguimos manter esse

distanciamento. Todavia, julgamos que as desvantagens e os riscos desta estratégia

metodológica foram superados face aos resultados obtidos.

Page 42: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

37

Utilizámos também a “observação não participante” recorrendo à “entrevista

não directiva, semi-directiva e directiva” e ao “inquérito por questionário” de modo a

aumentar a intensidade de análise. Efectuámos, inicialmente, uma “entrevista não-

directiva” ao Comandante do Estabelecimento quando ainda nos encontrávamos numa

fase exploratória. Posteriormente, à medida que o conhecimento se foi intensificando,

realizámos “entrevistas semi-directivas” ao Comandante do Pelotão de Guarnição e

Segurança, ao Sargento deste Pelotão e à Psicóloga do Estabelecimento. Numa fase

mais avançada da investigação, voltámos a entrevistar estes três últimos

intervenientes, recorrendo à “entrevista directiva”, onde se intensificou o grau de

directividade das questões, procurando-se estruturar e descodificar alguns sentidos.

Pareceu-nos igualmente útil, para o melhor conhecimento da realidade

prisional, inquirir todos os reclusos, apesar de termos consciência, como nos adverte

Pedro Dores (2003), que também deveríamos inquirir outros protagonistas como o

estado-maior, os elementos do posto de socorros e outros agentes sociais envolvidos

como os familiares e amigos, técnicos do instituto de reinserção social e organizações

não governamentais, de modo a poder compreender os comportamentos e a

especificidade reclusa de uma forma mais abrangente e completa, tendo por base

também factores extrínsecos que não podem ser dissociados das abordagens

institucionais sobre as prisões. Todavia, tivemos consciência, desde a primeira hora,

que não conseguiríamos ser tão ambiciosos. Não houve recusas, em parte devido à

acção do comandante que, pessoalmente, explicou aos reclusos os objectivos que se

pretendiam alcançar.

Formulámos algumas hipóteses, nomeadamente:

H1 - O tratamento dado pelos guardas/staff aos reclusos-militares terá

especificações e orientações diferentes, tornando-se mais respeitoso, formal e cordial

à medida que se sobe na hierarquia militar. Este factor será preponderante

relativamente aos demais, designadamente a duração da pena e tipo de crime;

H2 - as rotinas, fardamentos, alimentação, horários serão idênticos para todos

os reclusos. Admitimos, contudo, que a hierarquia militar formal corresponderá à

hierarquia informal/subterrânea no relacionamento entre pares;

H3 - partimos do pressuposto que a quantidade de reclusos será inversamente

proporcional ao seu escalão etário, ou seja, haverá uma maior percentagem de

reclusos jovens e solteiros;

H4 - acreditamos que os reclusos apresentam habilitações literárias baixas,

sendo maioritariamente pertencentes à classe de praças.

Procurámos desenvolver conversas informais com praticamente todos os

reclusos em variadíssimas situações e em distintas horas do dia. Ouvimos as suas

Page 43: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

38

Sexo

Masculino

Figura 1 – Sexo dos Inquiridos

N=26

histórias de vida, apesar de alguns não quererem abordar nem a sua vida pessoal

nem a da sua família, refugiando-se na evasão e no silêncio. Alguns destes indivíduos

possuem grandes conhecimentos ainda que a maioria não tenha frequentado mais do

que os primeiros ciclos do ensino básico - conhecimentos que não foram aprendidos

nem nas escolas nem nas bibliotecas e que nem sempre são positivos ou benéficos.

As habituais preocupações de fiabilidade e validade dos dados obtidos na

realização de inquéritos tiveram de ser reforçadas, garantindo de forma especialmente

cuidadosa a total confidencialidade das condições de inquérito e o anonimato das

respostas, bem como prevenir a utilização da informação para outros fins que não o

meio académico. De realçar a fuga quase sistemática a questões abertas que

requeriam a opinião dos internos, especialmente quando se referiam aos co-reclusos,

ao PGS e ao comando do EPM. O meio prisional é, com efeito, um contexto muito

específico, contribuindo para situações de fechamento e de defesa, a começar pelo

próprio acesso a esta realidade.

Todos, porém, não se inibiram de dar a sua opinião sincera, honesta, de uma

forma directa ou não, sobre as instalações, comida, injustiças, mágoas,

ressentimentos, resignações, meditações.

3. ANÁLISE SOCIO-DEMOGRÁFICA DOS RECLUSOS 3.1. Feminilidade Ausente, Escalão Etário Mediano A amostra é composta pela totalidade dos reclusos do EPM à data da

aplicação do questionário, não tendo havido quaisquer recusas. A análise da figura 1

permite observar a dimensão verdadeiramente assimétrica que existe entre os dois

sexos. De facto, a população é totalmente

composta por homens não tendo havido, na

história das prisões militares portuguesas, a

ocorrência de quaisquer encarceramentos de

militares do sexo feminino. A esta ausência de

mulheres militares encarceradas ao longo da

história nacional não será alheio o facto do seu

ingresso nas FA ter ocorrido praticamente na

última década do século passado 13. De facto,

as FA têm secularmente desempenhado um

papel normativo de masculinidade que tem

13

A primeira experiência militar de mulheres portuguesas ocorreu com as enfermeiras paraquedistas da Força Aérea Portuguesa (FAP) em 1961, apesar desta colaboração ter sido circunscrita ao desempenho de tarefas fundamentalmente de apoio.

Page 44: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

39

vindo a sofrer alterações nos últimos anos. Com efeito, “... a presença da mulher

(...)tem vindo a constituir um elemento estruturante do universo simbólico-cultural

sobre o qual se desenham, em contexto militar, valores e representações sobre os

papéis socialmente adequados a homens e mulheres...” (Carreiras, 1997: 49). Esta é

uma matéria aliciante que poderá ser desenvolvida em futuros trabalhos.

A idade dos inquiridos está compreendida entre os 26 e os 56 anos e a média

de idades é de aproximadamente 46. Como podemos depreender pela análise da

figura 2, a maioria dos internos situa-

se no escalão etário dos 46-55 anos

(17 indivíduos), enquanto os restantes

dividem-se, sensivelmente, por

categorias mais jovens (4 elementos

em cada), havendo apenas um interno

que possui mais de 55 anos. Ao

compararmos estes dados com os da

população reclusa masculina

portuguesa 14 que ocupa as prisões

civis, verificamos que a maioria situa-se no escalão etário dos 26-35 anos (38,0%)

enquanto apenas 8,7% se encontra no grupo dos 46-55 anos. Deste modo, assistimos

a uma diferenciação entre os reclusos militares e os civis. Os primeiros são, de uma

forma geral, mais velhos que os segundos. Esta evidência coloca em causa uma das

nossas hipóteses de partida, uma vez que pressupúnhamos a existência de uma maior

percentagem de reclusos militares jovens, o que não se verifica.

A população do EPM apresenta baixos níveis de escolarização, apesar de

todos terem completado o 1º ciclo do ensino básico. Porém, ter o 1º ciclo incompleto

ou não saber ler e escrever eram factores de exclusão, mesmo na altura em que os

indivíduos mais velhos passaram pelo processo de admissão na instituição respectiva.

Se somarmos os que possuem o 1º e o 2º ciclos, a frequência aumenta para 13

indivíduos (50,0%). À medida que vamos subindo no escalão etário, vamos tendo uma

maior frequência de indivíduos que apenas possuem o 1o ou 2º ciclos do ensino

básico. Inversamente, nos reclusos mais jovens verificámos uma subida da

escolarização que se situa, todavia, ao nível do secundário, havendo apenas um

recluso que possui frequência universitária (pós-graduação). O facto da frequência

escolar variar na razão inversa da idade, traduz o incremento da escolarização na

sociedade portuguesa dos últimos anos. Estas baixas qualificações têm uma intima

14

Para mais informações consultar TORRES, Anália; GOMES, Maria do Carmo (2002) – Droga e Prisões em Portugal. Lisboa: CIES/ISCTE. p. 29.

26-35 Anos

36-45 Anos

46-55 Anos

Mais de 55 Anos

Frequências

20151050

17

4

4

Figura 2 – Escalões etários dos inquiridos

Page 45: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

40

relação com a predominância das patentes que se situam nos postos mais baixos da

hierarquia militar. Apenas dois elementos não pertencem à classe de praças (1 oficial

superior e um sargento). Os restantes vinte e quatro internos apresentam o posto de

soldado (dezasseis), marinheiro (três) e cabo (cinco). Por consequência, uma das

nossas hipóteses de partida foi corroborada, ou seja, os reclusos apresentam

habilitações literárias baixas pertencendo maioritariamente à classe de praças.

Quando comparamos as habilitações

literárias dos presos militares com as da

população reclusa civil, temos consciência que

existem cerca de 11,7% de presos civis que

nunca frequentaram a escola, apesar de 4,6%

destes saberem ler e escrever. Como

mencionado anteriormente, os militares não

podem ser admitidos nestas condições, pelo

que, à partida, estamos a efectuar

paralelismos com condições prévias

dissemelhantes. Todavia, excepção feita a

estes, cerca de 27,3% têm o 1o ciclo e 29,3%

o 2º ciclo do ensino básico (somam 56,6%

enquanto os militares se situam nos 50%), não existindo uma clara demarcação neste

ponto. No que se refere ao secundário, assistimos a uma nítida desvantagem dos

reclusos civis (7,5%) contra os 30,8% dos militares que possuem este nível de ensino.

Os baixos níveis de escolarização atingidos pela população reclusa aproximam-se dos

valores existentes na generalidade da população residente. Este reduzido capital

escolar característico da população reclusa permite antecipar algumas dificuldades de

re-integração social - pelo menos para aqueles que não serão re-incluídos nas suas

instituições de origem - tendo em consideração as exigentes condições do mercado de

trabalho em termos de competências e qualificações.

A maioria dos internos militares pertence à GNR (19 elementos), seguido da

Marinha (4 internos) e do Exército (3 reclusos). A Força Aérea, presentemente, não

está representada neste universo recluso.

3.2. Classe Social, Nacionalidade, Residência

O agregado familiar de ascendência dos reclusos pertence maioritariamente ao

«Operariado» 15, como podemos verificar na figura 4.o que se refere à nacionalidade,

15

Segundo António Firmino da Costa (1999), existem variáveis primárias de categorização de classe (profissão e situação na profissão), as variáveis primárias complementares de categorização de classe (meios de vida, situação perante o trabalho,

20

Figura 3 – Classe Social de ascendência

Classe social de ascendência

OOEETIEDL

Fre

quê

ncia

14

12

10

8

6

4

2

0

12

7

3

4

Page 46: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

41

dezoito internos nasceram em Portugal, o que perfaz a grande maioria, tal como

verificado nas prisões civis. Seis reclusos declararam nascer nas ex-colónias

portuguesas - Angola, Moçambique e Guiné-Bissau com três, dois e um elemento

respectivamente – e dois inquiridos nasceram em países da União Europeia. De

salientar que por exigência de admissão às respectivas instituições, todos os militares

possuem nacionalidade portuguesa. Por outro lado, relativamente ao distrito de

nascimento e residência, assistimos a uma distribuição geográfica relativamente

assimétrica, não havendo indícios de estarmos em presença de uma tipologia que

relacione o sujeito ou acto desviante a determinada região do país. O distrito de

residência mais representado é Faro com cerca de cinco indivíduos, seguido de Lisboa

e Leiria, ambos com quatro e Setúbal com três internos. Esta especificidade contraria

o que observamos nas penitenciárias civis, onde existe uma sobrerepresentação das

regiões de Lisboa, Vale do Tejo, Porto e Algarve. Os recluídos militares não residem,

de uma forma geral, em grandes centros urbanos devido à grande dispersão

geográfica das unidades e postos militares, o que lhes proporciona outras alternativas

de residência que não as grandes metrópoles. Neste pressuposto, as características

sociais, culturais, económicas, típicas dos grandes centros urbanos e que

normalmente se constituem como catalisadores para a prática de actos desviantes não

parecem, neste universo militar, contribuir de forma directa para o aumento do número

de prevaricadores.

Outro pormenor que necessita de realce é o elevado número de presos

preventivos, sendo cerca de doze num universo reduzido de reclusos militares. Esta

situação penal incerta, indefinida, origina situações de alguma ansiedade pois reflecte

uma indefinição jurídico-penal que poderá levar a uma eventual condenação ou

libertação. Esta angústia da incerteza leva a que muitos dos preventivos se

mantenham pseudo-ausentes, pensativos, abstraídos nos seus pensamentos e

tarefas, preocupando-se quase exclusivamente com a sua defesa jurídica. Nas prisões

civis, de acordo com Anália Torres e Maria do Carmo Gomes (2002), o número de

preventivos ronda os 28% enquanto o de condenados situa-se nos 72%, havendo um

grupo residual de 0,3% que acumula as duas situações. O número de condenados é

substancialmente superior ao de preventivos, o que não acontece no EPM, havendo

quase uma sobreposição ou replicação destas duas quantidades.

escolaridade, posição hierárquica, dimensão da empresa, ramo de actividade) e as variáveis adicionais de categorização de classe (idade, sexo, residência, naturalidade, composição e dimensão do agregado doméstico). Na construção do indicador socioprofissional de análise (Costa, 1999: 276), levou-se em linha de conta as variáveis primárias “situação na profissão” e “profissão” tendo-se chegado a uma matriz de construção do indicador socioprofissional individual (ISPI) e familiar de classe (ISPF). Com efeito, no primeiro caso temos cerca de sete lugares de classe distintos: EDL (empresários, dirigentes e profissionais liberais), PTE (profissionais técnicos e de enquadramento), TI (trabalhadores independentes), AI (agricultores independentes), EE (empregados executantes), O (operários), AA (assalariados agrícolas); no segundo caso, temos a acrescentar mais três lugares de classe: os TIpl (trabalhadores independentes pluri-activos), AIpl (agricultores independentes pluri-activos) e os AEpl (assalariados executantes pluri-activos).

Page 47: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

42

Os casados representam a quase totalidade da amostra com cerca de

dezanove indivíduos, seguido dos divorciados/separados com cinco, dos solteiros e

viúvos, ambos com apenas um caso (não existem casos de vivência em «união de

facto/juntos»). Esta singularidade distancia-se da predominância de solteiros que

representam quase 51% da amostra de reclusos que se encontram a cumprir pena em

estabelecimentos prisionais civis. Mesmo que somemos aos casados (20,0%) a

percentagem dos que declaram viver em união de facto/juntos (14,4%) obtemos

apenas 34,4% diferindo substancialmente do valor percentual dos solteiros. O que

sobressai de forma mais evidente é o facto dos laços formais, como o casamento, ter

uma expressão elevada no EPM, o que não será alheio ao facto dos reclusos terem a

vida relativamente estável, sólida e organizada, apresentando idades superiores aos

46 anos e mais de vinte e um anos de trabalho desenvolvidos na instituição respectiva.

Efectivamente, dezassete internos declaram estar na instituição há mais de vinte e um

anos, havendo três reclusos, inclusivamente, que ultrapassam os trinta e um anos de

serviço.

Por conseguinte, a realidade

reclusa militar difere da civil na

medida em que no EPM

predominam os casados, enquanto

nas prisões civis os solteiros estão

substancialmente em maior

quantidade. Tendo em

consideração o tipo de agregado

familiar, cerca de quatorze internos

declaram viver em família nuclear e

seis numa família nuclear alargada;

doze assumem ter apenas um filho

enquanto nove têm dois. A grande maioria habita em casa própria (vinte e um

internos), apesar de dois pernoitarem na unidade onde prestam serviço e outros dois

viverem em casa dos progenitores. Em termos do número de elementos que compõem

o agregado familiar, dezoito indivíduos estão incluídos em agregados compostos por

duas ou três pessoas (nove internos quer no primeiro quer no segundo caso). De

destacar a elevada frequência de indivíduos (dezanove) que declaram viver com a sua

companheira/esposa antes da reclusão. Por conseguinte, podemos concluir que a

maioria dos reclusos estava inserida em redes familiares e sociais relativamente

próximas e estáveis. Tal facto não difere substancialmente do que encontramos nas

penitenciárias civis. Efectivamente, de acordo com Anália Torres e Maria do Carmo

Agregado familiar

outr modelo familiar

Fam.nuclear alargada

Família monoparental

família nuclear

Fre

quê

ncia

16

14

12

10

8

6

4

2

0

5

6

1

14

Figura 4. Tipo de agregado familiar

Page 48: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

43

Gomes (2002), apenas 21,6% dos reclusos civis admitem viver sozinhos ou com

terceiras pessoas não afectivas, 46% vivia em casa própria e 39% na companhia dos

pais.

O tempo médio de permanência na prisão militar é de 1 ano e três meses.

Nove elementos encontram-se entre o primeiro e o segundo ano de reclusão,

enquanto seis internos situam-se no segundo semestre da pena. Apenas um elemento

se encontra no estabelecimento há mais de três anos (mais concretamente há quatro

anos e um mês). Nas prisões civis, o tempo médio de permanência é 29 meses e

meio, encontrando-se 38,9% entre o primeiro e o terceiro ano da pena e 31,9%

recluídos há menos de um ano, perfazendo quase 71% dos internos que se encontram

encarcerados há menos de três anos. No EPM, se somarmos todos os militares com

menos de três anos de permanência atingimos os 96% (cerca de vinte e cinco

elementos), o que comprova que as duas realidades apresentam algumas diferenças

neste pormenor.

3.3. Avaliação do EPM, Adaptação, Diferenciação de Tratamento Vejamos então, como se distribuem as opiniões sobre o EPM relativamente a vários

domínios. Ao serem convidados a posicionarem-se numa escala de «Mau, insuficiente,

razoável» até ao «bom» 16, verificamos pela análise das figuras que a alimentação, a saúde,

o relacionamento entre reclusos, a relação com o PGS e com o comando do estabelecimento

reúnem o maior desagrado por parte dos internos. Deste conjunto, destaca-se a relação com

o comando que reúne a

opinião de vinte e três internos

que a classificam como

«insuficiente ou má». O

mesmo poderá ser dito em

relação à alimentação com um

rácio de vinte e um para cinco.

Em contraposição, o sistema

de visitas, as condições de

higiene gerais, a sala de convívio e o alojamento reúnem o consenso em torno do

«razoável/bom».

Ao serem interrogados sobre se estariam ou não adaptados à vida prisional, apenas

três elementos responderam afirmativamente. Praticamente todos admitem ter saudades da

família e não ter acesso a determinados bens materiais que lhe causam alguma necessidade,

16

Esta variável foi recodificada e aglutinou-se as respostas em «insuficiente/mau e razoável/bom».

26 0

26 0

7 19

22 4

20 5

5 21

Higiene

Visit as

Saúde

Act ividades

Desport o

Aliment ação

Bom/ razoável

Insuf icient e/ mau

Figuras 5 e 6. Como avalia cada um dos aspectos sobre o EPM?

Page 49: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

44

o que seria de esperar. Todos, sem excepção, afirmam não sofrer qualquer tipo de maltrato.

Contudo, é de ressalvar o elevado número que declaram «não se dar bem com outros

reclusos», o que nos permite antever o ambiente vivido em co-reclusão. No capítulo seguinte

falaremos mais em pormenor deste assunto.

Procurámos saber se, na opinião

dos reclusos, haveria diferenças de

tratamento institucional no EPM. Cerca

de vinte e três responderam

afirmativamente. Uma análise de

conteúdo dos questionários permitiu

concluir, curiosamente, que dois dos

três internos que declararam «não haver

diferenças de tratamento» possuem os postos mais elevados, o que poderá proporcionar uma

falsa percepção dos favorecimentos a que eventualmente estejam sujeitos. A patente e «ser

graxista» são os dois factores que, na opinião dos reclusos, mais contribuem para a diferença

de tratamento (ambos com vinte e três respostas afirmativas e três não-respostas), seguido

da familiaridade com o PGS (dezanove) e o bom comportamento (dezassete). Em oposição,

o tempo de pena, a instituição de origem e a idade, são os pontos que menos contribuem

para alterações no tratamento institucional. Parece ser claro que, tendencialmente, estamos

em presença de uma inequívoca analogia entre os postos dos reclusos, o modo como

reagem às ordens e solicitações do PGS e as relações sociais e institucionais que daí

resultam.

Ao serem interrogados sobre a sua percepção de actividade/inactividade apenas um

elemento se assumiu como «inactivo». Com efeito, vinte reclusos classificam-se como

«activos» e dois assumem-se mesmo como «muito activos». Nas actividades de livre

iniciativa desenvolvidas pelos reclusos nas horas livres, destacam-se tarefas como a leitura, a

prática do desporto e a visualização de programas televisivos. O coleccionismo, o estudo e a

escrita são as actividades que menor adesão têm entre os recluídos, seguido das práticas

religiosas e do uso do computador.

4. SITUAÇÕES PRISIONAIS – PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES

4.1. Modos de Vida Encarcerados – a Chegada As fronteiras materiais e imateriais da prisão delimitam um quadro temporário

de vida específico dotado de relativa autonomia e, cumulativamente, um corolário de

relações sociais com dinâmicas próprias. A nossa própria permanência no interior dos

locais de lazer e de habitabilidade causava alguns constrangimentos que foram

Alojamento

Sala convívio

Relacão entre reclusos

Relacão com PGS

Relacão com Comando

24

24

11

10

3

2

2

14

16

23

Bom/razoável

Insuficiente/mau

Page 50: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

45

sofrendo alterações ao longo das semanas. Da desconfiança inicial silenciosa e quase

absoluta, onde os reclusos procuraram por à prova a nossa fiabilidade, supondo que

trabalhávamos de acordo com orientações do Staff, dada a nossa razoável liberdade

de circulação, deparámo-nos com alguns relatos (muitas vezes próximos da calunia

que na maioria das vezes, sabemo-lo agora, eram infundados) de actividades ilícitas

quer de militares do PGS quer de alguns co-reclusos. Fomos ouvindo uma série de

lamentos e argumentações contra a má alimentação, a falta de actividades

ocupacionais mais dinâmicas, a ausência de reinserção social, saídas precárias para

uns e não para outros, a repressão, o tipo de desvio de uns e de outros, as injustiças

do PGS, as diferenças de tratamento e de condições, as excessivas formaturas, o

desmesurado atavio, as horas de desporto insuficientes. Deste modo, as primeiras

situações mais formais de entrevista foram algo desapontantes. A permanência no

terreno e as sucessivas conversas individuais (ou em grupo) foram contribuindo para

que a deambulação inicial, onde pouco se apurou e produziu, desse lugar a uma maior

precisão das questões (e também das respostas), demonstrando algum interesse sub-

reptício de que as suas queixas chegassem além-muros ou fossem, efectivamente,

escutadas.

Em praticamente todos os momentos que estivemos mais próximos, sentimos

uma necessidade premente de afirmação de uma identidade não desviante e de clara

demarcação face aos demais co-internos. Apesar de não se falar abertamente do teor

e da duração das penas, denotámos uma inequívoca tentativa de recomposição de um

carácter ou de uma identidade positiva (porventura, perdida ou enfraquecida) e de

requalificação da sua ordem social legítima em que se pretendem re-inscrever. Uma

das facetas preponderantes do dispositivo estigmatizante que encontrámos no interior

da cadeia foi, precisamente, este processo de demarcação individual face ao conjunto

de co-internados, a par de outros aspectos como o repúdio e a condenação dos

crimes alheios.

Quando um cidadão militar entra no EPM e se «transforma» em recluso, após

decisão do TEP, é recebido pelo graduado de serviço e inicia um período de

«quarentena» (que poderá durar, no máximo, até 72 horas) numa cela individual e

específica para esse fim. Ali, afastado dos demais reclusos e despojado dos seus

pertences que ficam à guarda do PGS, recebe apoio psicológico e médico (pela

psicóloga e pelo médico do estabelecimento), tendo em vista avaliar o estado físico e

mental do indivíduo. Nesse período, são-lhe transmitidas as regras básicas que lhe

balizarão os próximos tempos. Horas de formaturas, refeições, fardamentos, enfim,

restrições e liberdades. São lidas e relidas as NEP do EPM.

Page 51: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

46

Após algum tempo de observação e de conversas informais, chegámos à

conclusão que houve alguns casos em que o período de 72 horas se alargou por

vários dias a mais, sob justificação de que os outros reclusos não gostavam do tipo de

desvio que tinha sido cometido pelo novo interno. Com receio de algumas represálias,

os responsáveis alargaram este período de clausura individual. Outros casos houve

em que, devido ao mau comportamento, à revolta interior que se materializava em

injúrias contra os militares do PGS e a algumas acções, porventura, irreflectidas -

como o próprio veio a admitir - foi tomada a decisão de perpetuar esta condição até

que os ânimos esfriassem. De realçar que nesta «quarentena» inicial, é permitido ao

novo recluso apenas algumas horas no pátio interior.

Algumas queixas contradiziam, contudo, aquilo que me tinha sido assegurado,

apesar de, no início, não se revelaram como tendo muita credibilidade. Porém, com a

insistência vindo de diferentes internos, resolvi não negligenciar estas

considerações:“...assim que entramos, tiram-nos tudo e põem-nos no buraco. Estive lá

5 dias e uma noite. Já estava farto. Não via ninguém, só o soldado da guarda. Queria

ir-me embora, mas não podia. Chamei alguns nomes aos soldados – vinha com a

cabeça perdida. Estava lixado. Nunca vi o médico nesses dias. A Alferes Drª.

[referindo-se à psicóloga] vinha muitas vezes falar comigo. É boa pessoa e ajuda-nos.

Só falei com o sargento-enfermeiro na 2ª ou 3ª manhã (já não me lembro bem). Só

queria saber se consumia drogas ou se era alcoólico. Disse que não, que só fumava

tabaco, mas ele continuava a perguntar o mesmo e a olhar-me de cima para baixo...”.

Confirmámos presencialmente que o médico deveria vir ao estabelecimento um dia

por semana e sempre que chegam novos reclusos. Muitas vezes não o faz. Aparece

quando tem indicações do staff para o fazer. É um médico civil que exerce a profissão

na cidade e que, por avença, ministra consultas na prisão. Quanto às funções de

enfermeiro, previstas como permanentes no EPM, são asseguradas pelo sargento-

enfermeiro de uma unidade militar das proximidades, fazendo, por inerência e em

acumulação, também serviço no estabelecimento.

Após o período de quarentena, é colocada a todos os novos reclusos a

braçadeira vermelha no ombro direito (símbolo do grau de confiança reservado),

sendo alojados na parte do bloco prisional que se adequa à sua situação jurídica-penal

e à sua patente. Presos preventivos separados dos condenados e ala prisional

respectiva consoante se trate de um Oficial, Sargento ou Praça. Fala-se de um caso

que, todavia, já não se encontra no EPM, em que um sargento manifestou o desejo de

ser alojado junto dos seus camaradas soldados, pois o desvio tinha sido consumado

em conjunto. Apesar dos pedidos verbais e escritos, o comandante em exercício não

autorizou a mudança de instalações, afirmando que “...não ajudaria na manutenção da

Page 52: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

47

auto-imagem, postura e conduta-militar do sargento e que iria abrir um precedente que

a meu ver [no do comandante] seria injustificável e imprudente...” (retirado do dossier

de despachos do antigos comandantes).

As alas destinadas a condenados e preventivos não diferem substancialmente

uma da outra. O mesmo não poderá ser dito quando comparamos as celas de Oficiais,

Sargentos e Praças. Enquanto que as destinadas a estes últimos têm camas de ferro,

chão em mosaico e, caso a lotação seja máxima, poderão alojar seis reclusos

dividindo a utilização da casa de banho, as clausuras destinadas a Sargentos e

Oficiais possuem o chão, camas e armários de madeira. Um interno, comparando as

instalações, salientava:“...o chão deles é em madeira. Eles deviam por os pés neste

chão durante o inverno. A humidade é tanta que o chão nunca seca. O meu armário

está empenado e não fecha há um ano. Ainda não o vieram consertar. Mas o armário

do ............. foi logo arranjado...”. Em caso de lotação máxima, as celas destinadas a

Oficiais e Sargentos ocupam, no máximo, dois internos 17, diferindo apenas no seu

tamanho – a de oficiais é ligeiramente maior. A ala feminina que se encontra vazia por

inexistência de reclusas, é sensivelmente semelhante à destinada aos Oficiais. O

bloco de Oficiais-Generais possui apenas uma cela que é composta por um quarto e

uma pequena sala de estar. De salientar que as celas de praças ocupam todo o rés de

chão, enquanto os restantes blocos situam-se no primeiro andar: “...é impossível não

ter humidade aqui em baixo. O sol não bate aqui. Até nisso eles pensaram. O sol

apenas bate nas celas deles. Porque é que não nos deixam ocupar as celas que estão

vazias no 1º andar? Se entrar alguém, nós descemos. Todas as celas, sem excepção,

têm televisão por cabo. Porém, queixavam-se alguns, não podem ligar qualquer tipo

de aquecimento sendo difícil aquecer nos dias de inverno. Acusavam o PGS de deixar

ligar aquecedores no bloco dos graduados 18 : “...eles fecham os olhos. Fazem que

não vêm. Mas para nós estão sempre com má cara e não permitem nada. Os

graduados têm as celas sempre quentes e nós temos de vir para a sala de convívio,

se queremos aquecer...” Esta proibição, como outras, não se encontra escrita em lado

algum. As NEP são omissas relativamente a este ponto. Todavia, é do conhecimento

de todos que é estritamente proibido utilizar aquecedores que não seja nas salas de

convívio. Apurámos junto do PGS e do estado-maior a razão de tal proibição.

Disseram-nos que, antigamente (não se sabendo bem quando), alguns reclusos teriam

deixado o aquecimento ligado vinte e quatro horas por dia, estando ou não na cela,

originando-se gastos exagerados de electricidade. Um dos militares do PGS dizia

17

Para evitar situações do foro homossexual, é evitado a colocação de apenas dois elementos numa mesma cela. Deste modo, as clausuras são ocupadas por um só indivíduo ou por três ou mais. 18

Oficiais e Sargentos.

Page 53: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

48

“...trabalho aqui há seis anos e já existia essa proibição. Eu não deixo ligar os

aquecedores mas nunca ninguém me disse para fazer isso. Eu faço aquilo que ouço

dizer e não quero problemas com ninguém. Ao princípio, eu perguntava e os meus

colegas não me diziam nada. Brincavam comigo. Agora já sei como é que isto

funciona. São os outros que me vêm perguntar a mim”. Depois de constatarmos que

um dos aquecedores estava muitas vezes ligado na cela do recluso mais graduado,

questionámos o PGS sobre esta alegada irregularidade: “...não queremos arranjar

problemas com o ....Ele fala muitas vezes com o comandante e não sabemos do que

falam. Como ele está noutra ala, os outros presos não sabem disso. Ninguém deles lá

pode ir. É melhor assim. Ninguém sabe e não há problemas com ninguém.”

Para além das normas e regulamentações reunidas nas NEP e das inúmeras

ordens de serviço interno que anulam outras ordens anteriores, são produzidas outras

proibições a outros escalões inferiores que vão reduzindo o livre-arbítrio e as

liberdades individuais dos reclusos. Assim, por exemplo, a existência de um recluso

com uma doença terminal obrigou a que a quantidade de medicamentos consumidos

fosse exponencialmente maior do que até então. Havendo a necessidade de se tomar

mais medicamentos, a quantidade de dinheiro semanal gasto por este interno foi

maior. Foi dada autorização para se aumentar a cedência de dinheiro para este

indivíduo. O sentido desta ordem é claro para todos mas o mesmo não acontece

quando é descoberto um telemóvel no interior de uma cela (é proibida a posse de

equipamentos desta natureza pois os internos têm cabinas telefónicas no interior do

bloco prisional que funcionam com cartões pré pagos) o que justificou o aumento

exponencial de revistas exaustivas a todas as clausuras, especialmente aos internos

que não adquiriram cartão pré-pago. A interdição de dispor de um telemóvel é também

objecto de especulação, dividindo-se as opiniões quanto ao seu sentido: impedir que a

bateria e fios sejam utilizados para outros fins ou que seja usado para comércio

interno e favorecimentos. Estas e outras especificações não constam das normas

internas, fazendo com que os reclusos (e também os militares mais novos do PGS) se

vão inteirando das normas à medida que as infringem. Em contrapartida, o

conhecimento da rotina, a antiguidade, a velhice, proporcionam estratégias para

contornar algumas delas. Por conseguinte, a proliferação de normas e regulamentos

constrangem tanto os internos como os militares do PGS, ainda que de forma distinta.

Para estes, a margem de conhecimento dos regulamentos, as ilações que retiram

deles e a própria experiência pessoal aliada à maior ou menor capacidade de

improvisação e decisão, originam situações de alguma imprevisibilidade e flexibilidade,

de modo a que se cumpra o que está escrito e não se contradiga o que não está. A

inexistência de um código ou regulamento que descreva todas as regras e normas em

Page 54: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

49

uso, faz depender do «costume e do hábito» a gestão, decisão e resolução de muitos

dos problemas diários, pelo que a autoridade dos militares do PGS mais antigos e

«com mais tempo de casa» é inequivocamente superior.

4.2. A Cadeia de Comando e os Grupos Sabendo das diferenças de atitude e de resposta às solicitações, os internos

dirigem-se a determinados militares da vigilância para fazerem alguns pedidos ou

aguardam que certa pessoa esteja de serviço para executar determinadas acções que

não fariam com outros. Por conseguinte, a tradição, o hábito e o costume não

uniformizam os métodos utilizados, havendo discrepâncias entre diferentes militares

do PGS que, desconhecendo uma ordem prévia de um colega, permitem o que

anteriormente já havia sido interditado.

Para os pedidos de maior envergadura, que englobam o bem estar de todos

(ou pelo menos o da maioria), os reclusos utilizam a cadeia de comando formal e

dirigem-se verbalmente e numa primeira fase ao comandante do PGS que, por norma,

consulta o comando do estabelecimento. Se as intenções não forem satisfeitas,

procuram comunicar directamente com o comandante (muitas vezes modificando o

teor do pedido ainda que o produto final seja o mesmo) que, de uma forma geral,

sempre se mostrou comunicativo e receptivo. Nas alturas em que houve necessidade

de dar resposta a estes pedidos mais formais, o comandante utilizou sempre a cadeia

de comando reclusa: solicitou a presença do interno com maior patente ao seu

gabinete, na companhia do estado maior e do comandante do PGS e transmitiu-lhe as

considerações que julgou pertinentes, sabendo que seriam relatadas aos demais.

Contudo, verificámos que a cadeia de comando entre os presos era quase

sempre desrespeitada, apesar dos reclusos o negarem e não o assumirem

abertamente É um facto que eles encontram-se sujeitos ao Código de justiça Militar

(CJM) e ao Regulamento de Disciplina Militar (RDM), como se permanecessem no

serviço activo. E eles sabem-no perfeitamente. Como tal, para evitar problemas do

foro disciplinar, afirmam respeitar a hierarquia esquecendo que os seus actos não

estão em sintonia com as afirmações. Em primeiro lugar, existem pequenas

conversas, mexericos, relatos, novidades que não são transmitidas entre ramos das

Forças Armadas e, mais especificamente entre os diferentes grupos, o que contraria a

lealdade e a frontalidade que deve existir entre militares quer da mesma patente, quer

de patentes distintas. Os elementos da GNR guardam para si algumas informações e

não as transmitem aos militares da marinha. O mesmo se passa com os do exército e

vice-versa. Um pequeno sub-grupo de 3 fuzileiros que prevaricaram em conjunto e que

Page 55: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

50

se encontram no estabelecimento há apenas dois meses, evitam mesmo falar com

todos os restantes - inclusive com o interno mais graduado que pertence ao mesmo

ramo - apenas executam os cordiais cumprimentos «obrigatórios». Um destes três

elementos dizia: “não tenho vontade de falar com ninguém. Aqui somos todos iguais.

Somos todos presos. Apenas confio nos meus dois amigos. Fiz a recruta com eles. Sei

quem são e o que valem. O ...........[referindo-se ao interno mais antigo 19] está na sua

cela a ler e eu estou aqui a ver televisão. Ele é intelectual [sorriso em tom jocoso] e eu

sou do povo. Não gosto dele. Já o conheço do Alfeite. Tem a mania; mas aqui somos

iguais. Não tenho de falar com ele. Digo bom dia e mais nada”. Um dos fuzileiros

destaca-se nitidamente quando o comparamos com os outros dois. É excessivamente

educado, cordial e protocolar. Tem habilitações literárias mais elevadas e preocupa-se

com a imagem e com as respostas que fornece. Reflecte muito, “mede” as suas

palavras ao milímetro, sabendo o que deve e não deve dizer. Os outros dois estão

dependentes do que este decide sendo facilmente manipuláveis, o que os leva a

aceder às suas orientações. Antevemos uma eventual competição com o recluso

considerado como líder. Seria interessante, caso o tempo disponível o permitisse,

verificar a alteração de identidades, representações, rotinas, diálogos e os focos de

tensão que certamente se processarão entre estes dois protagonistas.

Outros elementos deixaram transparecer que não confiam no interno mais

graduado para defender os seus interesses junto do comando do estabelecimento,

afirmando que este apenas está preocupado em defender a sua imagem junto do

comando e do estado maior, não se preocupando com os outros. Realçam que

preferiam que fosse o ............. a dirigir-se ao comando em nome de todos eles mas o

comandante não permite, pois só recebe o mais antigo. Referem-se a um elemento da

GNR que já havia sido referenciado pela psicóloga e pelos militares do PGS, como

sendo o recluso que domina todos os outros. Calmo, sereno, ponderado, reservado,

perspicaz, observador, confiante, foram alguns dos termos utilizados para o descrever.

A este propósito, a psicóloga salientava: “ele é meticuloso, frio, calculista e os outros

seguem-no quase inconscientemente. Ele é o verdadeiro porta-voz do grupo pelo à-

vontade e pela maneira como se exprime. Consegue manipulá-los e eles, cordeirinhos,

seguem-no”. De facto, apurámos que os outros elementos, de uma forma geral,

aceitam as suas ideias à excepção do recluso mais antigo que se mantém neutro,

refugiando-se nas leituras e na meditação no interior da sua cela. O nível de

habilitações do recluso considerado como líder situa-se ao nível do secundário, sendo

superior à média da classe de praças. Tem um negócio legal, na área hoteleira, que

gere à distância através do telefone, sendo alvo de alguns comentários que envolvem

19

Militar com patente mais elevada.

Page 56: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

51

um misto de admiração e inveja. Não se expõe demasiadamente. Conversa com os

outros internos, sobretudo nas áreas de lazer e em períodos de actividade reduzida 20,

quando o estabelecimento tem menos militares de serviço e poucos «olhares

indiscretos», mantendo o silêncio quando subitamente aparecem elementos do PGS

em redor. Esta atitude, juntamente com outras, levou a que um outro recluso o

apelidasse de cobarde, originando-se algumas agressões verbais (e alguns

empurrões) que foram interrompidos pela entrada do graduado de serviço. Transmite

as suas opiniões, procura convencê-los através da persuasão e da argumentação e

geralmente consegue-o. Porém, na hora de se empregarem medidas que envolvam a

consciência colectiva, ele permanece calado na retaguarda deixando que os outros se

envolvam, a não ser que os motivos sejam remuneradores para a conservação do

status e do poder acumulado.

Por conseguinte, podemos assumir que a hierarquia formal militar é respeitada

pelo comando do estabelecimento. Porém, o mesmo não acontece com os reclusos

que preferem, ainda que de uma forma não assumida e camuflada, valorizar uma

outra hierarquia informal e subterrânea no relacionamento entre pares, privilegiando

outros valores que não a antiguidade ou o posto.

Após uma observação mais cuidada, conseguimos apercebermo-nos de alguns

grupos que se mantém a uma «distância de segurança» dos outros. Não partilham

informação (a não ser que ela seja desprovida de qualquer valor de troca),

praticamente não dialogam e evitam permanecer muito tempo sem estar na

companhia dos que têm afinidades. Julgamos que não se sentem seguros quando

estão isolados e não há outro elemento do grupo à vista, apesar de não se

conhecerem episódios de agressões violentas no EPM. Os três fuzileiros são os que

mais se isolam, não procurando esconder essas intenções solitárias mesmo na altura

das refeições em que o espaço é exíguo e há a necessidade obrigatória de partilha de

mesas. Os militares da GNR, enquanto grupo mais numeroso e provavelmente o

menos coeso, não procuram problemas tentando, de uma forma geral, apaziguar

certos focos de tensão. Assim, por exemplo, um dos elementos deste grupo está a ser

acompanhado clinicamente no sentido de deixar de consumir álcool, estando

autorizado a beber apenas uma pequena porção a cada refeição. Ao princípio

verificámos que essa proibição não era cumprida e que procuravam esconder esse

facto da nossa observação. Porém, quando finalmente concluíram que não

trabalhávamos ao serviço do estabelecimento, multiplicaram por três ou quatro o

número de copos permitidos, chegando mesmo a oferecer-nos uma garrafa de vinho

20

Nas Unidades Militares e relativamente ao teor das tarefas, existem dois períodos, designadamente os de actividade plena (normalmente coincidente com os dias úteis) e os de actividade reduzida (fins de semana e feriados).

Page 57: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

52

do estabelecimento que se encontrava sub-repticiamente escondida no interior de um

blusão do uniforme. A embriaguez originou alguns desacatos envolvendo,

especialmente, o interno que se encontrava em recuperação alcoólica, chegando a

haver injúrias e empurrões contra elementos de outros grupos. Alguns reclusos da

GNR separaram os militares em disputa e pediram prontamente desculpa aos demais

em nome do seu camarada que não se encontrava nas «melhores condições», não

necessitando de haver intervenção formal do PGS. Este incidente originou que todas

as celas fossem inspeccionadas minuciosamente e todos os presos consumissem

apenas um copo a cada refeição, estando ou não em abstinência alcoólica. Este facto

contribuiu para esfriar, ainda mais, as fracas relações entre grupos.

No interior dos internos da GNR, há um relacionamento relativamente forte

entre aqueles que provêm do Algarve (cerca de cinco elementos), chegando mesmo a

haver algumas famílias que trazem alimentos e outros bens para entregar a terceiros.

Este pormenor apenas acontece neste sub-grupo. Não é algo que seja considerado

usual, já que os internos não partilham os artigos que são trazidos pelas famílias, nem

mesmo dentro de cada grupo.

Um dos reclusos é, de certa maneira, discriminado pelos outros, não por ser o

mais velho ou ter a pena com maior duração mas por ter cometido um «crime de

sangue», como alguns resolveram denominar. Este interno vive para ser reconhecido

socialmente pelo staff prisional. Deseja ser visto como um elemento apaziguador,

respeitador das normas e regulamentos. Aparenta ser educado, cordial, simpático,

formal, humilde, muitas vezes aproximando-se do exagero. É voluntário para tudo o

que é sugerido, desde pintar alguns compartimentos do estabelecimento até cuidar

dos animais e das plantas que preenchem os espaços tornando-os mais aprazíveis e

acolhedores. Por estas razões é apelidado de «graxista e lambe-botas» pelos co-

reclusos. É um indivíduo excessivamente meticuloso apresentando, segundo a

psicóloga, elevados índices de psicopatia. É apontado como tendo a «mania das

limpezas». Tem a cela sempre arrumada e ordenada, sendo dos poucos que tem a

roupa da cama impecavelmente esticada e engomada, chegando a tomar vários

banhos por dia. Não cria conflitos com os restantes internos nem com o staff. Procura

dar igual atenção a todos os que o rodeiam. Respeita as ordens sem murmurar e

apresenta-se sempre com um dinamismo e uma energia interior que incomoda os

internos que o observam. Cumprimenta todos com igual consideração, apesar de

poucos lhe devolverem igual sinergia. É um dos principais denunciantes. Comenta

com o staff que os outros internos não limpam convenientemente os corredores e as

celas, discriminando os nomes de quem prevarica. Numa ocasião, ao ver passar o

comandante e após pedir para falar em particular, queixou-se que não suportava tanto

Page 58: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

53

fumo nas salas e nos corredores, o que ia contra as normas internas (só se pode

fumar no pátio). Esta faceta denunciante é sobejamente conhecida pelos demais, o

que lhe exponencia o abandono a que é sujeito. Porém, com o passar do tempo não

demonstrou indícios de estar afectado por este pseudo-isolamento, mantendo-se

convicto nas suas decisões.

No interior do estabelecimento, desaparecer um pouco de manteiga ou

algumas bolachas é motivo para zangas e amuos. Ali dentro, os mais pequeno

incidente assume proporções gigantescas e não é esquecido com facilidade. A

diminuição da autonomia individual, tendo em consideração as restrições directas de

determinados bens por imposição do sistema (restrições que não existem além-muros)

originam perturbações e obsessões por pequenos pormenores. Um dos militares mais

novos do PGS dizia-nos: “não sei porque é que eles são tão invejosos. Não partilham

nada uns com os outros. Contam as bolachas que têm no pacote, põem marcas na

manteiga para saberem se alguém a utilizou. Estão sempre a ver o que cada um tem;

o que as visitas trouxeram. Não percebo...”

Acreditamos que a pseudo aproximação entre indivíduos não é desprovida de

interesse, a não ser a do pequeno sub-grupo de três fuzileiros que confiam e

protegem-se mutuamente. Julgamos que estamos perante um fenómeno de «ausência

de solidariedade generalizada e abrangente» já que os reclusos pouco mais têm em

comum do que envergarem um uniforme - que até difere consoante o ramo das FA a

que pertencem - e estarem recluídos. Paradoxalmente, esta ausência de

camaradagem e solidariedade viola um dos princípios militares.

À medida que os reclusos interiorizam os limites e os detalhes da rotina, zelam

por ela de maneira minuciosa. Qualquer facto susceptível de a alterar gera

perturbação e ganha uma importância inusitada, produzindo comentários para vários

dias. O anúncio de mudanças nos modos de vida - como a alteração da hora das

formaturas e do uniforme – são recebidas com desconfiança e receio, pondo em risco

a «segurança e a previsibilidade» que a rotina proporciona.

4.3. Os objectos, as Visitas, a Correspondência Existem dois bares e duas salas de estar onde os reclusos podem conviver

(bar e sala para preventivos e condenados). Nestes locais, existe uma convivência, à

primeira vista, salutar entre reclusos. Nos primeiros dias, chegámos a pensar que não

haveria quaisquer atritos ou diferenças de opinião e que estes reclusos seriam um

exemplo de tolerância e de gratidão. Alguns viam televisão, outros liam os jornais,

jogavam às cartas ou às damas. Um deles bordava e mostrou-nos, prontamente,

alguns trabalhos que já havia concluído. O bar e a sala são geridos pelos próprios

Page 59: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

54

presos, exceptuando os materiais à responsabilidade do estabelecimento (móveis,

cadeiras, jogos, computador sem acesso à internet, aquecedores). Os jornais, o leite,

o café, as revistas, as bolachas, enfim, tudo o que é material de consumo, é comprado

com o dinheiro dos reclusos ou então trazido pelas visitas. Como já foi referido, os

internos não mexem nos artigos de outros, apesar de estarem reunidos no interior do

mesmo armário ou frigorífico.

Verificámos que durante alguns períodos de actividade reduzida havia uma

completa convivência entre preventivos e condenados. O «muro» que separa os dois

bares podia, afinal, ser «facilmente transposto», bastando para isso que os militares

de serviço o permitissem. E esta permissão era dada quase todas as noites. Um dos

graduados de serviço do PGS dizia-nos: “...é melhor deixá-los estar assim. Falam uns

com os outros e aliviam a cabeça. Dão-nos menos problemas, andam mais calmos...”

As visitas decorrem no horário fixado para o efeito, havendo uma diferenciação

entre os preventivos e os condenados. Dizem as NEP que os primeiros podem ter

visitas todos os dias das 10h00 às 12h00 e das 14h00 às 16h00, enquanto os

segundos apenas recebem familiares e amigos às quartas-feiras, sábados, domingos

e feriados no mesmo horário. Porém, constatámos que esta diferenciação não se

efectua na realidade. Todos os presos estão autorizados a receber visitas todos os

dias, mesmo fora destes horários. Algumas vezes verificámos que era permitido aos

reclusos almoçar com os familiares numa sala para o efeito, desde que a refeição

ficasse a seu cargo e fosse solicitada autorização nesse sentido. Todos os visitantes

estão sujeitos a uma revista pessoal efectuada através de um detector de metais, de

palpação ou, no limite, por desnudação. A sua não colaboração inviabiliza a

concretização da visita. Os seus objectos pessoais ficam guardados num cacifo

próprio existente na sala de revista cuja chave apenas é manuseada pelo próprio.

Todos os produtos oferecidos pelos familiares (existe uma lista que discrimina os

alimentos autorizados e a sua quantidade – ver anexo E) não podem ser entregues

directamente ao recluso, pois necessitam de ser inspeccionados pelos militares do

PGS. Alguns presos manifestaram o seu desagrado ao lhes serem entregues,

alegadamente, alguns artigos completamente destruídos após a inspecção. Um deles

afirmava: “...eles fazem de propósito. Se um queijo tem bom aspecto, eles amassam-

no e cortam-no. (...) Desaparece metade dos bolos. O mel fica com um sabor

estranho. Não vale a pena dizer nada...” Ao ser confrontado com estas acusações, o

comandante do PGS, mostrando-se indignado, transmitiu-nos que antigamente teriam

havido alguns abusos. Disse-nos que as revistas aos alimentos passaram a ser feitas

na presença dos reclusos que observam o modo como são inspeccionados. Frisou

que não tem havido queixas, não percebendo como essa informação teria chegado até

Page 60: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

55

nós. Presenciamos as inspecções aos alimentos e, efectivamente, os reclusos

estavam presentes e verificavam in loco, o que era efectuado. Após algum tempo,

soubemos que o recluso que se tinha lamentado sobre o mau tratamento dos

alimentos, tinha tentado que entrasse, algumas semanas antes da nossa conversa,

uma quantidade de alimentos superior ao permitido. Por consequência, tiveram que

diminuir as quantidades recorrendo ao corte de bolos e de queijos pela metade, tendo

o resto sido devolvido às visitas, o que deixou o interno profundamente revoltado.

Após a revista pessoal, os visitantes são dirigidos à sala de visitas. Sala ampla,

arrumada, com mesas e cadeiras de madeira onde as famílias podem conversar com

alguma privacidade. Os soldados do PGS aguardam no exterior, apesar de poderem

visualizar e controlar as interacções através dos vidros. Nesta sala também existem

alguns brinquedos e um pequeno escorrega (material oferecido pelos militares que ali

prestam serviço) para que as crianças, durante o período da visita, possam brincar e

divertir-se, tornando o ambiente mais descontraído e relaxante. Se o recluso assim o

entender, pode solicitar autorização para dar um passeio nos jardins do

estabelecimento, apesar da vigilância, neste caso, passar a ser mais estreita e rígida.

Se o interno for casado ou viver em união de facto, pode receber a sua companheira

numa «visita íntima», havendo um alojamento para esse efeito. Namoradas, «ligações

extra-conjugais 21» ou outro tipo de conquistas não estão autorizadas a ser

consideradas como «íntimas». A este propósito, um dos internos dizia-nos:“...nunca

colocarei a minha esposa numa situação deste género. Não há intimidade nenhuma.

Os soldados olham para as mulheres dos reclusos e sabem para o que vêm. Falam,

comentam. Não quero que a minha mulher se sujeite a isso...”

Como se trata do único estabelecimento prisional para militares, muitos

reclusos encontram-se afastados dos seus locais de residência e dos seus familiares

para que possam receber, com regularidade, a sua visita. Este constrangimento de

ordem geográfica foi largamente mencionado no decorrer das entrevistas e das

conversas informais. Todos os reclusos que não recebem visitas regulares encontram-

se privados de um fundamental suporte afectivo e material. A inexistência de visitas

repercute-se nas relações sociais internas e na maior ou menor dependência de uns

reclusos em relação a outros. A própria reinserção social é enfraquecida por este

afastamento familiar e comunitário.

As visitas trazem produtos que, de outro modo, teriam de ser comprados com

dinheiro de cada recluso que é administrado por um graduado do PGS. Os internos

estão autorizados a levantar da instituição de crédito onde têm dinheiro depositado,

21

Entende-se por relações extra-conjugais como sendo as ligações amorosas que são mantidas em paralelo com a da esposa ou da companheira com quem se vive.

Page 61: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

56

cerca de 50€ por mês 22. São levados sob escolta a um multibanco, levantam a

quantia autorizada e entregam-na na totalidade à guarda de um graduado do PGS que

anota num registo a quantidade de dinheiro que cada preso possui. É estritamente

proibido a posse de qualquer tipo de valores no interior do bloco prisional (dinheiro,

ouro, anéis – excepto aliança – fios, etc). Quando o interno pretende adquirir um

jornal, tabaco, um medicamento que não seja da responsabilidade do posto de

socorros ou comprar alimentos para saborear entre refeições, solicita estes préstimos

ao PGS que, numa primeira oportunidade, adquire esses produtos, descontando o seu

valor à quantia que estava amealhada. Quando o dinheiro atinge os 10 €, os reclusos

são informados da situação e, no mês seguinte (caso assim o decidam), repete-se a

operação no multibanco com o levantamento de mais 50 €. Se esta quantia não for

suficiente, terão de solicitar por escrito a razão de tal insuficiência e apenas o

comando do estabelecimento tem autoridade para alterar esta rotina.

De um modo geral, aplica-se à correspondência controlo idêntico ao dos

visitantes. As cartas são fechadas e abertas pelo PGS na presença do recluso

respectivo, salvo as que se destinam e provenham do seu advogado ou de outras

entidades previstas na lei. Não existe interdição de destinatários, podendo o interno

receber e enviar cartas a quem desejar. Todavia, o conteúdo da correspondência é

examinado em ambos os sentidos. Esta tarefa é executada unicamente pelo sargento

e pelo comandante de PGS, tendo em vista a preservação da segurança do

estabelecimento e questões de reinserção social, uma vez que esta acção não visa

apenas controlar determinados projectos de fuga, exercendo-se igualmente sobre

queixas várias a respeito do estabelecimento. Comentários sobre o tratamento dado

pelo staff, a qualidade da comida ou das celas, rotinas ou comportamentos de

terceiros são alvo de censura, obrigando a uma reformulação dos conteúdos. Alguns

reclusos mantêm uma relação de influência, fundamentalmente, devido ao seu posto,

facto que lhes proporciona uma examinação menos cuidada e um controlo mais fraco

(algumas vezes mesmo inexistente). Por este e outros acontecimentos, onde a

diferença de alojamentos e de condições entre categorias assume um ponto fulcral,

acreditamos que o tratamento dado pelos staff aos reclusos tem especificações e

orientações diferentes, tornando-se mais respeitoso, distante, receoso à medida que

se sobe na hierarquia militar. Este factor é preponderante relativamente a outros como

a duração da pena e tipo de crime, tal como mencionámos numa das nossas

hipóteses.

22

Este valor foi alterado para o recluso que se encontra com uma doença terminal, tendo sido acrescido aos 50 € o valor dos medicamentos. Os reclusos em prisão preventiva têm direito à totalidade do vencimento. Os condenados recebem um quarto do vencimento, conjuntamente com os descontos decididos em tribunal.

Page 62: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

57

Julgamos que esta censura não se limita apenas aos princípios defendidos

pela instituição, designadamente a segurança e a reinserção social. Defendemos que

por detrás destas acções, existe uma tentativa mais lata e abrangente, ainda que sub-

reptícia e camuflada, de promover a disciplina, a moralização para as boas práticas e

o encaminhamento para escolhas e decisões onde predomine o legal em detrimento

do desviante. As sucessivas censuras, inspecções e revistas onde tudo é observado

cuidadosamente, induz a uma descaracterização da personalidade, procurando

originar seres desprovidos de iniciativa que acatem as ordens de um modo

inconsciente, sem recorrer a contestações, murmúrios ou reivindicações.

4.4. O Fardamento e o Atavio Quando um interno se encontra no período de «quarentena», é-lhe transmitido

que deverá usar uniforme e manter hábitos de higiene que promovam a auto-imagem

do militar e da instituição que representa. Os reclusos não devem usar, em qualquer

circunstância, roupas de índole civil como calças de ganga ou outro vestuário similar.

A limpeza e a correcta apresentação dos uniformes (tal como do seu alojamento, do

bar e da sala de convívio, excepto a roupa da cama) é da sua directa

responsabilidade.

O uso obrigatório de uniforme é defendido como medida preventiva destinada a

facilitar a sua identificação no interior e no exterior do estabelecimento, como factor

personalizador e uniformizador, como recondução dos desviantes à sua normalidade e

como continuidade da sua condição militar. Todavia, independentemente da sua

patente, os reclusos perdem a acção de comando, mesmo se tiverem um posto

superior ao do comandante do estabelecimento. Como já foi mencionado, os reclusos

em situação de reserva ou reforma trajam à civil, havendo apenas um nestas

condições. Esta indumentária civil obedece a algumas considerações: “...deve ser

discreta, sóbria, respeitosa e adequar-se às situações respectivas...” (Estabelecimento

Prisional Militar - Normas de Execução Permanente, 2004: 19).

Existem formaturas nas quais devem comparecer todos os reclusos. Formatura

do pequeno-almoço (7h30), início de trabalhos da manhã (9h00), almoço (12h30),

início de trabalhos da tarde (14h00), jantar (19h00) e recolher (21h30), salvo outras

entendidas como pertinentes. Às 22h00 recolhem às celas que são fechadas pelo

PGS, permanecendo nesta situação até às 7h00 do dia seguinte. Às 02h00 todas as

luzes são apagadas no interruptor central ficando apenas as de emergência no interior

das clausuras, permitindo o controlo visual através da janela de vigia das portas.

Page 63: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

58

Os internos devem apresentar-se com os uniformes engomados 23, limpos,

botas ou sapatos devidamente engraxados, cabelo e barba aparados. Esta é uma

situação que, salvo casos pontuais, não origina qualquer atrito pois não constituem

novidade, tratando-se apenas de um prolongamento da sua atividade laboral, embora

noutra situação e com constrangimentos diferentes. Às terças e quintas-feiras, dias em

que têm educação física, podem comparecer à formatura do pequeno-almoço e da

manhã com o fato de treino em uso em cada instituição. Nas alturas em que se

encontram a executar tarefas ocupacionais voluntárias, podem vestir uma bata

protectora ou despir algum tipo de fardamento que dificulte estas acções.

Quando nos deslocámos no primeiro fim-de-semana ao estabelecimento,

verificámos que alguns dos reclusos envergavam roupa civil, outros encontravam-se

meio uniformizados, envergando chinelos, sapatilhas, etc. O nivelamento dos reclusos

estabelecido pelo carácter estereotipado do uso do uniforme e pela estandardização

do corpo a que estávamos sobejamente habituados durante a semana, contrastava

agora com esta imagem aparentemente desordenada e desorganizada, fazendo

relembrar, ainda que por breves momentos, o teor e o carácter das penas. Após o

nosso espanto inicial, tentámos descortinar a razão de tal desiderato ao que nos foi

dito pelo graduado de serviço que ao fim de semana os reclusos têm autorização para

andar assim e aliviar o fardamento. Podem lavar e passar a ferro as fardas para que

não hajam desculpas durante a semana...

Os reclusos não podem ser obrigados a trabalhar. Aderem voluntariamente a

serviços na lavandaria, jardinagem, na cozinha, carpintaria, mecânica, biblioteca. A

esta voluntariedade, não será alheio o facto de contribuir para o acesso a saídas

precárias. A psicóloga argumentava que ... se um interno não coopera, não se mostra

interessado nas actividades ocupacionais, é um foco de tensão e de ansiedade, o que

resulta numa informação negativa...

O recluso identificado como líder é o único que se recusa a desempenhar

qualquer tarefa. Este é um facto que contribui para o aumento da sua credibilidade

junto dos co-reclusos, ao verem nele um indivíduo que não tem problemas em assumir

as suas escolhas mesmo quando essa situação lhe pode trazer profundas

desvantagens pessoais. Ao ser questionado sobre a razão de tal escolha, retorquiu em

tom irónico...pensei que vinha para a prisão apanhar sol e dormir. Não quero trabalhar.

Isso é uma segunda pena...

Após autorização do conselho técnico e do NAC, o comandante tem autoridade

para conceder duas saídas precárias por trimestre para a sua área de residência, com

23

Existe uma máquina de lavar e outra de secar roupa, com os respectivos detergentes cedidos pelo estabelecimento e algumas tábuas de passar a ferro, para que não haja impedimentos ao bom estado e conservação dos uniformes.

Page 64: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

59

a duração de um fim de semana 24. Se a situação o justificar, o comandante pode

autorizar um recluso condenado a ausentar-se do estabelecimento até 12 horas - não

o pode fazer para os preventivos que apenas podem ser autorizados pelo Juiz do TEP.

Dois reclusos encontram-se matriculados em estabelecimentos de ensino próximos do

EPM, na esperança de poder assistir às aulas tendo em conta essa possibilidade de

ausência. A este propósito, o comandante afirmou que, além das saídas precárias que

são fundamentais para a reinserção familiar e social, não concedia outro tipo de

autorização a nenhum recluso, defraudando as expectativas de assistência das aulas

e futuro aproveitamento escolar, originando alguma frustração e irritação que se

materializa em constantes amuos e desabafos entre pares.

É dado aos reclusos a possibilidade de personalizarem as suas celas,

tornando-as lugares mais acolhedores e familiares, estando longe de constituir um

espaço próprio e reservado. Podem colocar cachecóis, fotografias, posters, desde que

não perfurem a parede nem danifiquem o material que se encontra à carga de cada

cela. Evidentemente que não poderá constituir um espaço privado dado as constantes

entradas de soldados do PGS e as revistas inopinadas que são efectuadas como

rotina de segurança. É, inclusivamente, um espaço inseguro, tendo em conta uma

potencial transferência de cela por ordem superior. A autonomia individual é reduzida,

havendo uma fragilização das fronteiras individuais dadas as restrições de tempo e de

espaço impostas pela rotina do estabelecimento, aliadas aos condicionalismos

monetários e à privação do livre-arbítrio nas mais variadíssimas ocasiões. Estas

regulações integram um processo de “Mortificação do Eu” de que nos fala Erving

Goffman (1987), em favor de uma consciência colectiva de obediência que tende para

o servilismo, ainda que a instituição defenda que se enquadram em objectivos

puramente institucionais auto-disciplinares que visam uma futura reinserção societal

sólida e adequada.

5. PONTO DE CHEGADA - NOTAS CONCLUSIVAS

A reclusão militar tem particularidades distintivas e específicas que a distingue

das demais. Esta é uma das principais conclusões da pesquisa. Conclusão também

relevante é a que identifica, claramente, uma tentativa premente de afirmação de uma

identidade não desviante e de diferenciação face aos co-internos. Em todas as

conversas, esteve sempre presente uma tentativa, poucas vezes sub-reptícia, de

recomposição de uma identidade positiva e de reposicionamento numa ordem social

legítima onde se pretendem re-inscrever. Trata-se de procurar convencer que não

24

Cumulativamente, o Juiz do TEP pode conceder até dezasseis dias por ano e o General Director do Serviço de Justiça e Disciplina pode conceder até seis dias.

Page 65: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

60

houve prevaricação, que se cometeram injustiças, tentando-se revisitar, ainda que por

breves momentos, situações e episódios vividos de modo a originar-se um

afastamento ou desvinculação do seu novo papel social. Identidades e sociabilidades

que se articulam em oposição a um carácter desviante que a grande maioria procura

afastar. O sentido improvisado em que evitam uma solidariedade e uma consciência

colectiva é disso um sinal inequívoco, alicerçado num conjunto de práticas,

representações e rotinas quotidianas que se antagonizam com o estigma desviante

que os une e contratualiza. A cooperação quando existe é estratégica, não sendo

isenta de favorecimentos e intenções.

Outro factor a ter em consideração é o afastamento dos padrões hierárquicos

formais entre os reclusos. Foi inequivocamente identificado que os internos não são

fiéis à cadeia de comando imposta pelos vínculos institucionais exteriores e preferem

seguir, ainda que não o assumam claramente, ideias, opiniões, ideologias, opções que

lhes forneçam confiança, mesmo que para isso tenham que reformular determinados

valores militares como a lealdade, a camaradagem, o espírito de corpo, a frontalidade.

Identificam e seguem quem lhes pareça proporcionar melhores condições de sucesso,

independentemente de patentes ou escalão etário. Aliás, o recluso identificado como

líder é dos que possui patente e idade mais reduzida, contrariando certas ideologias

de senso comum que procuram aliar a uma maior idade, uma maior capacidade de

persuasão e maiores conhecimentos e experiência. Consequentemente, umas das

minhas hipóteses não foi corroborada, isto é, a hierarquia militar formal não

corresponde à hierarquia informal subterrânea no relacionamento entre co-internados.

Apenas funciona de maneira irrepreensível no sentido comando-reclusos.

Outro pormenor a ter em consideração é a proliferação de ordens e proibições

escritas ou não, que originam zonas dúbias de decisão, quer para os reclusos quer

para os elementos do PGS, constituindo-se o hábito, a rotina, a antiguidade e o

costume como factores decisores na conduta e livre-arbítrio dos actores sociais em

causa.

O tratamento institucional dado pelo staff aos reclusos não é idêntico. A

começar pelas condições de alojamento que são distintas consoante a classe a que se

pertence, a conivência do PGS para com os reclusos-graduados ao deixar passar

algumas proibições que são impostas a outros, são indícios que possibilitam a

confirmação de uma das hipótese de partida. A diferença nas condições dos

alojamentos é um factor, por si só, perturbante e causador de afastamento entre os

internos. O respeito e o receio dos militares do PGS pela graduação dos reclusos é

inequívoca, diminuindo a sua exigência e rigor à medida que se sobe na hierarquia

militar. Em suma, o tratamento dado pelo staff tem orientações e especificações

Page 66: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

61

diferentes, tornando-se mais permissivo, benevolente, respeitoso à medida que se

sobe na hierarquia formal militar, sendo um factor preponderante relativamente aos

demais.

Em traços gerais foi ainda possível identificar outras características dos

reclusos. A grande maioria pertence à classe de Praças e apresentam qualificações

escolares relativamente baixas ao nível do 1º e 2º ciclos do ensino básico, o que

confirma uma das hipótese de partida. Trata-se de uma população de indivíduos

masculinos a rondar os 47 anos de idade e casados, o que a distingue das populações

maioritariamente jovens e solteiras que se encontram recluídas nas penitenciárias civis

nacionais. A esmagadora maioria está presa pela primeira vez, sendo quase marginal

o número de reincidentes. O tempo médio de permanência na prisão é de um ano e

três meses havendo apenas um indivíduo que se encontra detido há mais de três

anos. Não se encontram indícios da tríade «homossexualidade, drogas, violência»,

contrapondo-se aos números que encontramos mencionados na literatura sobre as

prisões civis. A inexistente presença de mulheres, corresponde também à diminuta

quantidade de elementos do sexo feminino que, percentualmente e em comparação

com os homens, se encontram recluídas em Portugal. Este facto não poderá ser

dissociado dos modelos de construção da identidade masculina e feminina. A

socialização dos rapazes tende a ser mais desregrada, mais afirmativa e identitária,

apelando a uma maior consciencialização de aspectos exteriores ao domicílio - como

os grupos ou a violência física entre pares - e a um menor controlo dos progenitores

como meio de expressão da masculinidade. O género feminino tende a ser socializado

em torno de práticas que favorecem a organização, as regras, a obediência, o

retraimento, a docilidade e o fechamento doméstico.

A maioria dos crimes está relacionado com o roubo e o furto, seguido do tráfico

de droga, havendo quase uma replicação com o tipo de crimes que prevalecem na

sociedade civil. A instituição mais representada é a GNR, não sendo irrelevante a sua

proximidade a actos e acções desviantes devido à natureza da sua missão, factores

que contribuem para a permeabilidade e susceptibilidade dos agentes a situações

marginais.

As tarefas ocupacionais efectuadas pelos internos, apesar de se constituírem

como actividades facilitadoras de interacções sociais e relacionais, não são

verdadeiros espaços de aquisição de competências profissionais com vista a uma

futura reinserção laboral. Elas contribuem, essencialmente, para a manutenção e

reprodução do sistema prisional, assumindo apenas uma dimensão mecânica e

repetitiva. Este poderia ser um ponto de partida para novos e futuros trabalhos.

Page 67: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

62

Com efeito, a especificidade do papel social desempenhado pelos reclusos é

ainda agravado por estarem em causa longos anos de encarceramento e de, não raro,

as visitas dos familiares serem pouco assíduas uma vez que se trata da única cadeia

para militares. Os poucos pedidos de transferência ou são indeferidos pelo general

director de justiça e disciplina ou são interrompidos pelos próprios ao se aperceberam

das condições de habitabilidade que os esperariam, caso fosse aceite a transferência.

Os relatos pouco abonatórios dos que perderam a «condição militar» e foram

transferidos para estabelecimentos civis e o próprio conhecimento destas realidades

pelos internos da GNR, configuram e auxiliam a formulação de imagens que os levam

a reflectir sobre as boas condições de habitabilidade que usufruem no EPM.

A cadeia militar parece ser um meio particular dotado de códigos e papéis

sociais constituintes de uma micro sociedade que potencia diferenças e distâncias

sociais, não contribuindo para a união, reforço ou solidariedade entre os recluídos que

não se revêm nesta micro cultura encarcerada, enfatizando sentimentos de estranheza

e ausência. Sobre os internos recai um estigma que se intensifica quer pelo uso de

uniforme quer pelo peso das estruturas sociais militares que continuam a organizar a

vida intra-muros. A este propósito não esqueçamos, como salienta Pedro Dores

(2003), que“...os sistemas prisionais não são entidades estranhas às sociedades a que

estão associados. (Dores, 2003: 9) e como tal, a vida na prisão militar não pode ser

dissociada das realidades que continuam a ocorrer nas instituições de origem dos

reclusos.

BIBLIOGRAFIA

Almeida, João Ferreira de (1986) – Classes Sociais nos Campos. Camponeses

Parciais numa Região do Noroeste. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da

Universidade de Lisboa, 1986.

Barreto, António (2000) – A Situação Social em Portugal. Lisboa: Instituto de Ciências

Sociais.

Beleza, Teresa Pizarro (1993) – “A Reinserção Social dos Delinquentes: Recuperação

da Utopia ou Utopia da Recuperação?”, em Cidadão Delinquente, Reinserção

Social? Lisboa: Instituto de Reinserção Social. p. 159-173.

Bell, Judith (1997) – Como Realizar um Projecto e Investigação. Lisboa: Gradiva

Editora.

Biscaia, Pedro Tenreiro (2001) – “Prisões Muito Preventivas”. In Boletim da Ordem

dos Advogados. Lisboa: Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados. N.º

17. p. 50, 51 e 52.

Page 68: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

63

Bourdieu, Pierre (1985) – “A Génese dos Conceitos de Habitus e de Campo”, em

Poder Simbólico. Lisboa : Difel.

Burns, Tom; FLAM, Helena (2000) – “Sistemas de Regras Sociais: Teorias e

Aplicações”. Oeiras: Celta Editora.

Cabral, Manuel Villaverde; PAIS, José Machado (coords) (2002) – Jovens Portugueses

de Hoje. Oeiras: Celta Editora.

Carreiras, Helena (1997) – Mulheres nas Forças Armadas Portuguesas. Lisboa:

Edições Cosmos.

Costa, Alfredo Bruto da (2001) – Exclusões Sociais. Colecção Fundação Mário

Soares. Lisboa: Editorial Gradiva.

Costa, António Firmino da (1986) – “A Pesquisa de Terreno em Sociologia”, em SILVA,

Augusto Santos; PINTO, José Madureira (orgs.) (1986) – Metodologia das

Ciências Sociais. Porto: Edições Afrontamento.

Costa, António Firmino da (1999) - Sociedade de Bairro. Dinâmicas Sociais da

identidade Cultural. Oeiras: Celta Editora.

Costa, António Firmino da [et al] (2000) – “Classes Sociais na Europa”. In Sociologia:

Problemas e Práticas. CIES/ISCTE. Oeiras: Celta Editora. N.º 34. p 8-39.

Dores, Pedro (org.) (2003) – Prisões na Europa – Um Debate que Apenas Começa.

Oeiras: Celta Editora. Janeiro de 2003. ISBN 972-774-158-4.

Eco, Umberto (1997) – Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas. Lisboa:

Editorial Presença.

Estabelecimento Prisional Militar (2004) – Normas de Execução Permanente

[reservado]. Tomar: Estabelecimento Prisional Militar

Estado Maior do Exército (1997) – História do Encarceramento Militar Português.

Lisboa: Estado Maior do Exército.

Foddy, William (1996) - Como perguntar. Teoria e Prática da Construção de Perguntas

para Entrevistas e Questionários. Oeiras: Celta Editora.

Foucault, Michel (2004) – Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 26.ª Edição.

Ghiglione, R. e matalon, B. (1992) - O Inquérito – Teoria e Prática. Oeiras: Celta

Editora.

Goffman, Erving (1987) – Estigma. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

Gonçalves, Rui (2001) – Delinquência, Crime e Adaptação à Prisão. Coimbra:

Quarteto Editora.

Guiddens, Anthony (1994) – Capitalismo e Moderna Teoria Social. Lisboa: Editorial

Presença.

Howard, Keith e John A., Sharp (1989) - The Management of a Student Research

Project. Aldershot,: Gower.

Page 69: Boletim 3 - Exército

Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar

64

Instituto Nacional de Estatística (2001) – Recenseamento à População Portuguesa.

Lisboa: Instituto Nacional de Estatística.

Medeiros, Carlos (1992) – “Do Desvio à Instituição Total, Subcultura, Estigma,

Trajectos”. In Cadernos do Centro de Estudos Judiciários. Lisboa: Ministério da

Justiça. N.º 2/1992.

Moreira, José Semedo (1996) – Um Universo Recluso – Organização das Relações

Instituídas. Tese de Licenciatura. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Pires, Rui Pena (1999) – “Uma Teoria dos Processos de Integração”. In Sociologia

Problemas e Práticas. N.º 30. p. 11-61.

Provedor de Justiça (2003) – Relatório Sobre o Sistema Prisional do Ano 2003. Lisboa:

Gabinete do Provedor de Justiça, Provedoria da Justiça.

Rafter, Nicole (1995) – “Gender, Prisons and Prison History”. Social Science History.

Vol. 9. N.º 3.

Torres, Anália Cardoso (coord) (2001) – Trajectórias e Consumos de Drogas nas

Prisões: Um Diagnóstico. Lisboa: CIES/ISCTE.

Torres, Anália Torres; GOMES, Maria do Carmo (2002) – Droga e Prisões em

Portugal. Lisboa: CIES/ISCTE.

Vala, Jorge; cabral, Manuel Vilaverde; ramos, Alice (2003) - Valores sociais: mudanças

e contrates em Portugal e na Europa. Lisboa: ICS.

Vaz, Maria João (2003) – “Prisões de Lisboa no Último Quartel do Século XIX.

Elementos para o seu Estudo”, em dores, Pedro (org.) (2003) – Prisões na

Europa – Um Debate que Apenas Começa. Oeiras: Celta Editora. Janeiro de

2003. ISBN 972-774-158-4.

Viegas, José Manuel Leite; costa, António Firmino da (orgs.) (1998) – Portugal, Que

Modernidade? Oeiras: Celta Editora.

Wacquant, Loíc (2000) – Prisões da Miséria. Oeiras: Celta Editora.

Wheeler, Stanton (1991) – “Socialization in Correctional Communities”. In American

Sociological Review. N.º 26.

OUTRAS FONTES BILIOGRÁFICAS

http://www.dgsp.mj.pt - Direcção Geral dos Serviços Prisionais

http://www.exercito.pt - Exército Português

http://www.fap.pt - Força Aérea Portuguesa

http://www.gnr.pt - Guarda Nacional Republicana

http://www.ine.pt - Instituto Nacional de Estatística

Page 70: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

65

http://marinha.pt - Marinha Portuguesa

http://mdn.gov.pt - Ministério da Defesa nacional

Page 71: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º3 – 2012

PP. 66 a 85

66

Gestão de Carreiras no Exército Português:

Uma Proposta de Modelo Aplicado

Helena Jerónimo*

Isabel Ribeiro**

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal compreender a forma como as carreiras militares são geridas no Exército Português. Em termos metodológicos, realizámos entrevistas semiestruturadas a interlocutores-chave, com o intuito de compreender a situação atual do Exército Português em matéria da gestão das carreiras. Com base na análise de conteúdo a essas entrevistas, é apresentada uma proposta de modelo de intervenção ao nível da gestão de carreiras passível de ser implementado no Exército Português. Palavras-chave: Exército Português, Carreiras Militares, Gestão de Carreiras, Planeamento de Carreiras.

ABSTRACT

The aim of this work is to understand how the military careers are managed in the Portuguese Army. Therefore, in methodological terms, we made semi-structured interviews with key interlocutors, in order to understand the current situation of the Portuguese Army regarding the management of careers. Furthermore, based on these interviews, we have prepared an intervention which integrates a career management model that can be implemented in the Portuguese Army. Keywords: Portuguese Army, military careers, career management, Career planning.

INTRODUÇÃO

As organizações desenvolvem as suas atividades num ambiente marcado pela

incerteza e turbulência, no qual os recursos humanos (RH) se constituem como um

dos seus ativos mais valiosos (Carvalho, 2003). Nesta era de informação e de

conhecimento, a gestão das pessoas assume um papel central no sucesso,

desenvolvimento e progresso das organizações.

A Instituição Militar, enquanto estrutura social e agregadora de pessoas,

enquadra-se naquele contexto geral (Nunes, 2004). Ainda que a motivação principal

das Unidades Orgânicas não seja a mesma que a generalidade das organizações, a

sua estratégia organizacional e os desafios que diariamente se lhe colocam assumem

grandes similaridades. A gestão de RH numa Unidade, Estabelecimento ou Órgão

(U/E/O) começa a assumir, cada vez mais, que os militares são “clientes internos”. Ou

seja, as suas necessidades e aspirações são essenciais para que se identifique uma

* Profª. Doutora do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).

** Mestre em Gestão de Recursos Humanos, Socióloga no Centro de Psicologia Aplicada do Exército

Page 72: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

67

resposta adequada para atrair, reter e desenvolver este recurso estratégico (Câmara,

Rodrigues e Guerra, 2010).

As pessoas são, cada vez mais, exigentes no que respeita à sua carreira

profissional, devido aos desequilíbrios constantes e imprevisíveis que ocorrem entre o

mercado de recursos humanos1 e o mercado de trabalho2 (Chiavenato, 2002), pelo

que atrair, reter e desenvolver os colaboradores torna-se numa tarefa complexa e num

desafio constante para os gestores de RH. O Exército Português é uma organização

que desde sempre teve como preocupação a gestão dos seus recursos humanos,

procurando desenvolver-se e adaptar-se às novas exigências e condicionalismos civis

e militares. No que diz respeito à gestão de carreiras, esta assume-se, contudo, como

uma gestão meramente administrativa, baseando-se em promoções automáticas com

base na antiguidade.

Verificamos que o modelo de gestão de carreiras aplicado no Exército

Português é o modelo tradicional de carreira que tem por base o princípio da ascensão

vertical na estrutura da organização (Câmara et al, 2010), associando-se às

características de lealdade, dedicação, defesa da pátria, emprego para toda a vida,

entre outros. Este modelo é atualmente questionado, se não mesmo ultrapassado.

Enquanto colaboradores do Centro de Psicologia Aplicada do Exército – como

é o caso de uma autora deste estudo – apercebemo-nos quer da importância da

gestão de carreiras para os trabalhadores do Exército, quer da ausência de uma

estrutura específica que se ocupe de uma gestão de carreiras ancorada na análise e

descrição das funções, garantindo não só a identificação do potencial dos militares,

como também a sua adaptação a novas funções, assegurando, consequentemente, a

sua motivação e satisfação. Desta forma, com o presente estudo pretendemos

compreender a forma como as carreiras militares são geridas no Exército Português, e

do mesmo passo, entender como é que o Exército desenvolve e retém os seus RH.

Este estudo visa contribuir para um maior conhecimento da realidade do

Exército e preencher uma lacuna e propor um modelo de gestão de carreiras para os

Oficiais do Quadro Permanente.

DEFINIÇÃO DE CARREIRA O conceito de carreira tem vindo a ser usado de forma muito diversificada e

ampla, pelo que emergiram diversas conceções sobre o mesmo. No entanto, a aceção

mais comum é a de carreira como caminho, i.e., um trilho que se segue de forma

1 Mercado de Recursos Humanos constitui-se pelo conjunto de indivíduos munidos de capacidades e de aptidões que

se encontram aptos para o trabalho, num determinado tempo e lugar (Chiavenato, 2002). 2 Mercado de Trabalho refere-se ao conjunto das oportunidades de trabalho existentes num determinado momento e

lugar (Chiavenato, 2002).

Page 73: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

68

segura e visível (Tieppo, Gomes, Sala e Trevisan, 2011). Esta aceção integra a noção

de mobilidade, ascensão ou estabilidade profissional de algumas funções, como por

exemplo, a carreira de executivo para caraterizar a mobilidade e a carreira militar,

como profissão (Dutra, 1996).

Segundo Hall (2002), a carreira é apresentada como sendo uma sequência de

atitudes e de comportamentos, que se encontram associados às experiências e

atividades que o indivíduo exerceu e que estão relacionadas ao trabalho. No fundo,

esta definição de carreira assume-a como resultante das opções do indivíduo e exclui

as variáveis não controladas que dizem respeito às necessidades das organizações.

Por isso, segundo Hall (2002) a carreira possui, basicamente, quatro sentidos

diferentes:

a) Carreira como avanço – que integra a noção de mobilidade vertical

numa organização;

b) Carreira como profissão – que se liga com determinadas profissões de

prestígio, que possuem algum estatuto na sociedade (e.g., médicos, advogados);

c) Carreira como sequência de trabalhos realizados – conceito que acolhe

como carreira qualquer trabalho realizado pelo indivíduo. Esta é uma conceção

objetiva de carreira;

d) Carreira como sequência de experiências relativas a uma função – tida

como a forma como a pessoa experimenta a sequência de trabalhos e de atividades

que constituem a sua história profissional. Esta assume uma dimensão subjetiva de

carreira.

No entanto, uma carreira desenvolve-se em função de dois prismas de análise:

de um lado, as expectativas pessoais do indivíduo e do outro, da organização (Dutra,

1996). Todos temos a noção de que o indivíduo não é estático. Ele desenvolve-se em

função das necessidades de adaptação aos contextos e situações. Todos sabemos,

também, que face às situações de incerteza e de desenvolvimento, as organizações

têm que encontrar formas ajustadas de se adaptarem às necessidades emergentes da

sociedade. Neste sentido, o conceito de carreira ao nascer da relação entre a pessoa

e a organização, acaba por admitir a noção de movimento, já que perspetiva não só o

ponto de vista do indivíduo e da organização, como também da relação entre estes

(Tieppo et al, 2011).

Por conseguinte e tal como refere Hall (2002), o conceito de carreira deve ser

focalizado na experiência subjetiva de carreira do indivíduo, na forma como este

constrói a sua carreira, nas relações que estabelece com cada trabalho na vida,

observando os aspetos subjetivos e objetivos em conjunto e na forma como assume

Page 74: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

69

os up and down, como parte natural do processo de carreira. Daí que as suas

aspirações, motivações e expectativas sejam importantes no decurso do processo.

O CONCEITO DE CARREIRA MILITAR E O SEU QUADRO LEGAL

O conceito de carreira militar encontra-se definido no art.º 27 do Decreto-Lei n.º

236/99 de 25 de Junho (que se constitui como o Estatuto dos Militares das Forças

Armadas - EMFAR). Nesse artigo, carreira militar é “o conjunto hierarquizado de

postos, desenvolvida por categorias, que se concretiza em quadros especiais e a que

corresponde o desempenho de cargos e o exercício de funções diferenciadas entre si”.

No art.º 28 desse mesmo documento, verifica-se que os militares se agrupam por

ordem decrescente de hierarquia, nas categorias de Oficiais, Sargentos e Praças.

As subcategorias referem-se ao subconjunto de postos que se diferenciam em

função da autonomia, da complexidade funcional e da responsabilidade (art.º 28,

Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). O posto refere-se à posição que, na respetiva

categoria, o militar ocupa no âmbito da carreira militar fixada de acordo com o

conteúdo e qualificação da função ou funções. Os cargos militares são definidos como

“lugares fixados na estrutura orgânica das Forças Armadas, a que correspondem as

funções legalmente definidas” e também os “lugares existentes em qualquer

departamento do Estado ou em organismos internacionais a que correspondem

funções de natureza militar” (art.º 33, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). As

funções militares são as que implicam o exercício de competências legalmente

estabelecidas para os militares, agrupando-se estas em: Comando, Direção ou Chefia;

Estado-maior e Execução (art.º 34, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).

A Lei n.º 11/89 de 1 de Junho instituiu as Bases Gerais do Estatuto da

Condição Militar, estabelecendo os direitos e os cumprimentos dos deveres pelos

militares dos quadros permanentes em qualquer situação e dos restantes militares

enquanto na efetividade de serviço, definindo os princípios orientadores das respetivas

carreiras.

O art.º 2 desse documento define que a condição militar se carateriza pela

subordinação ao interesse nacional; pela permanente disponibilidade para lutar em

defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; pela sujeição aos

riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação,

instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz quer em tempo de

guerra; pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei; pela aplicação de um

regime disciplinar próprio; pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que

com sacrifício dos interesses pessoais; pela restrição, constitucionalmente prevista, do

Page 75: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

70

exercício de alguns direitos e liberdades; pela adoção, em todas as situações, de uma

conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e

valorização moral das Forças Armadas; pela consagração de especiais direitos,

compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social,

assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação.

Nesse documento, nomeadamente no seu art.º 11, está explicito que é

garantido a todos os militares o direito de progressão na carreira, nos termos fixados

nas leis e orientando-se o desenvolvimento das carreiras em função dos seguintes

princípios básicos: relevância de valorização da formação militar; aproveitamento da

capacidade profissional, avaliada em função da competência revelada e da

experiência; adaptação à inovação e transformação decorrentes do progresso

científico, técnico e operacional e; harmonização das aptidões e interesses individuais

com os interesses das Forças Armadas.

Da mesma forma, verifica-se no art.º 12 (Lei n.º 11/89 de 1 de Junho) que os

militares têm o direito e o dever de receber formação de atualização, reciclagem e

progressão, com vista à valorização humana e profissional e à sua progressão na

carreira.

O EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho), originalmente aprovado

pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro, já sofreu diversas alterações e aplica-

se a todos os militares das Forças Armadas (art.º 2), independentemente do posto, da

carreira, da forma de prestação de serviço, do ramo ou da situação administrativa em

que se encontram. Este é o documento que regula a gestão das carreiras militares.

O EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho) no seu Preâmbulo define

objetivos fundamentais: “Reequacionar o desenvolvimento da carreira militar através

da introdução de mecanismos reguladores que permitam dar satisfação às legítimas

expectativas individuais e assegurem um adequado equilíbrio da estrutura de pessoal

das Forças Armadas”. Alguns dos mecanismos foram “o estabelecimento de tempos

máximos de permanência em alguns dos postos da hierarquia militar, a exclusão da

promoção por efeitos de ultrapassagens, durante certo período, por um ou mais

militares da mesma antiguidade, a possibilidade de passagem à reserva por

declaração do militar ao ter completado 55 anos de idade e ainda a adoção da norma

de aumento geral de serviço em 25% para efeitos de passagem à reserva ou à

reforma”.

As formas de prestação do serviço efetivo são: serviço efetivo nos quadros

permanentes (QP); serviço efetivo em regime de contrato (RC); serviço efetivo em

regime de voluntariado (RV) e serviço efetivo decorrente de convocação ou

mobilização (art.º 3, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).

Page 76: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

71

No art.º 4 do EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho) é referido que o

serviço efetivo nos QP compreende a prestação de serviço pelos cidadãos que, tendo

ingressado voluntariamente na carreira militar, adquirem vínculo definitivo às Forças

Armadas.

O serviço efetivo em RC compreende a prestação de serviço voluntário por um

período de tempo limitado, com vista à satisfação das necessidades das Forças

Armadas ou ao seu eventual ingresso nos QP. Também o serviço efetivo em RV

compreende a prestação de serviço militar voluntário por um período de 12 meses,

com vista à satisfação das necessidades das Forças Armadas, ao ingresso ao RC ou

ao eventual recrutamento para os QP (art.º 5, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).

O serviço efetivo decorrente de convocação ou mobilização compreende o

serviço militar prestado na sequência do recrutamento excecional, nos termos

previstos na Lei do Serviço Militar, sendo que o conteúdo e a forma de prestação do

serviço efetivo por convocação ou mobilização são regulados por diploma próprio (art.º

6, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).

PLANEAMENTO DAS CARREIRAS MILITARES

Quando falamos de desenvolvimento de carreiras temos que ter em conta o

planeamento de recursos humanos. A organização tem de prever que movimentos

poderão ocorrer, quais as funções que serão necessárias ocupar, quantas vagas

existirão ao longo do tempo e quais os recursos humanos disponíveis para as ocupar.

Aqui, a organização terá que ter atenção a uma perspetiva integrada de recursos

humanos, bem como uma visão estratégia e proativa, como o recrutamento interno e a

descrição de funções para cada cargo.

O planeamento das carreiras militares é realizado com base na avaliação,

constituindo-se esta como uma importante fonte de dados no planeamento dos RH.

Assim, toda e qualquer avaliação deve ter como principal preocupação os objetivos

propostos, devendo estes ser flexíveis, claros e adequados aos meios disponíveis

(Oliveira, 2009).

Os objetivos de carreira devem reunir certas características de forma a

poderem ter uma utilidade. É comum usar-se a sigla SMART para os definir, que

significa:

Específicos (Specific) – não devendo ser vagos e devem ser definidos em

pormenor. Os objetivos generalistas tendem a ser menos eficazes;

Page 77: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

72

Mensuráveis (Measurable) – devem ser definidos de forma a poderem

ser medidos e analisados em termos de valores ou volumes. Os objetivos

devem ser quantificáveis;

Atingíveis (Attainable) – devem ser formulados de forma a serem

alcançáveis, por isso devem ser propostos em consonância com os

intervenientes para que estes possam sentir-se motivados para os atingir;

Realistas (Realistic) – devem permitir alcançar metas tendo em

consideração a disponibilidade dos recursos existentes;

Temporizáveis (Time bound) – devem ser definidos em termos de

duração e de prazos.

O Plano de RH (PRH) de uma Unidade Orgânica pretende desenvolver

militares que se encontram ao serviço, traçando-lhes planos de carreira,

reconvertendo-os ou dando-lhes formação para que possam adquirir as competências

que se anteveem como fundamentais. Trata-se de um exercício complexo, mas

fundamental para o desenvolvimento estratégico da instituição militar (Nunes, 2004).

O PRH pode ser visto como um palco no qual se situam os interesses e

perspetivas organizacionais e as aspirações e desejos de desenvolvimento dos

militares, sendo que só a articulação perfeita destes dois polos, permite uma

compatibilização dos objetivos individuais e organizacionais (Nunes, 2004).

De facto, é unanimemente aceite que só concedendo aos militares uma

perspetiva de desenvolvimento pessoal e profissional, é que se consegue que uma

U/E/O possa aspirar a construir uma opção de permanência mais ou menos

prolongada para os seus quadros. No fundo, revela a sua capacidade para reter e

desenvolver os RH (Câmara et al., 2010). Se o PRH for desajustado, terá

repercussões nos planos de carreira dos quadros. Se esses planos não forem ao

encontro dos desejos e aspirações dos militares, existe uma forte probabilidade de

estes abandonarem a sua U/E/O ou mesmo a instituição (Ribeiro, 2010).

Por conseguinte, um dos objetivos das U/E/O é projetar as necessidades

futuras de RH, a sua calendarização, o perfil, o número e a sua localização nessa

estrutura. No fundo, é permitir a identificação antecipada dos pontos críticos em que é

mais provável que ocorram falhas, excessos ou uso ineficiente de militares (Ribeiro,

2010).

Neste sentido, a responsabilidade pela construção de um PRH tem que ser

centralizada na Secção de Pessoal, para permitir o desenvolvimento equilibrado e

harmonioso, garantindo a coordenação e sinergias interfuncionais que se encontram

implícitas nele. Trata-se pois, de um processo dinâmico e em constante

aperfeiçoamento (Ribeiro, 2010).

Page 78: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

73

O planeamento das carreiras operacionaliza o princípio de um recrutamento

interno, ao procurar identificar no interior de uma U/E/O pessoas capazes de

satisfazerem as necessidades projetadas. O planeamento de carreiras deve permitir a

satisfação das necessidades da U/E/O pelo desenvolvimento das pessoas que a

compõem. São, no fundo, um conjunto de ações programadas que têm por objetivo

permitir o desenvolvimento pessoal e profissional do militar, de modo a que o mesmo

consiga atingir o potencial que lhe foi detetado (Oliveira, 2009).

Por outro lado, quando um militar se candidata para uma nova função na

organização, significa que manifesta um desejo de mudança do lugar que naquele

momento ocupa. A principal vantagem do processo de recrutamento interno será o

facto de permitir o desenvolvimento das pessoas que já pertencem à organização e de

lhes proporcionar perspetivas de carreira (Chiavenato, 2002), mas existem outras

vantagens, como: a diminuição dos custos do processo; a oferta de oportunidades e

de planos de carreira promovendo a motivação dos militares; índice de validade e de

segurança superior, já que se conhecem os militares e pode ser um processo de

identificação mais rápido do que o recrutamento externo (Cherrington, 1995).

Nunes (2004) assinala que as principais razões para se optar por um

recrutamento interno são normalmente focalizadas no cumprimento dos planos de

carreira para o qual o candidato está preparado; utilização do talento disponível na

organização e retenção, na organização, de elementos-chave considerados

indispensáveis, concedendo-lhes oportunidades de progredirem na organização. Por

conseguinte, neste processo, devem ser consideradas todas as candidaturas de forma

igual, procurando-se que a condução seja feita de forma mais transparente possível,

para não haver distorções ou emergência de sentimentos de injustiça.

Neste sentido, o recrutamento interno no Exército pode albergar três soluções:

uma escolha direta, um concurso interno ou o método do tipo “recomendar um

amigo”3. A escolha direta é aquela que tem normalmente mais reações negativas

dentro da organização, pelo facto de ser percecionada como uma ação de favoritismo,

em detrimento de outras candidaturas igualmente valiosas, não abrindo a

oportunidade para todos os potenciais interessados (Ribeiro, 2010).

Não obstante as vantagens deste procedimento, existem desvantagens. Uma

das primeiras é aquela que poderá levantar algumas questões éticas, que se prendem

com a transmissão do potencial individual atribuído a um militar, que poderá criar

expectativas que podem ser impossíveis de satisfazer, levando à desmotivação

(Nunes, 2004). Cherrington (1995) assinala ainda o facto de ser necessário a

existência de colaboradores que possuem potencial de desenvolvimento para

3 Correspondente ao método de Referências em Recrutamento.

Page 79: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

74

poderem ser movimentados; o facto deste tipo de recrutamento poder constituir-se

como uma fonte de conflito entre os colaboradores e o facto de não permitir a entrada

de novos saberes e competências na instituição.

O planeamento de carreiras é um exercício limitado na medida em que

depende da estrutura da própria U/E/O e da pequena percentagem de militares que

esta pode albergar. Para além deste aspeto, ainda se sublinham os custos associados

e a complexidade relativamente a determinadas necessidades das U/E/O. Se não se

transmite essa informação, pode-se também perder um argumento que permite reter e

motivar um militar e; por outro lado, a justiça face ao facto de se ter que excluir uma

parte elevada de militares das oportunidades de carreira (Nunes, 2004).

De facto, o grau de exigência dos militares é cada vez maior, quer para com a

instituição, esperando que esta lhes proporcione os direitos que estão consignados na

Lei, quer para com as U/E/O a que pertencem, que se encontram condicionadas pelas

missões que têm que cumprir (Nunes, 2004).

Paralelamente, a gestão de carreiras está ainda associada à rotação de

pessoal, que se constitui como um fenómeno complexo, no qual radicam inúmeras

causas, nomeadamente salariais. Na instituição militar, a solicitação voluntária de

rotação de pessoal encontra-se associada a fatores de motivação, às condições de

trabalho, satisfação na função, nível de stress, estilo de gestão, reconhecimento,

oportunidade de desenvolvimento pessoal, acesso à formação, entre outros (Nunes,

2004).

Esta rotação pode ainda dever-se a causas naturais, tais como a incapacidade

para o trabalho, a morte, atingir a idade da reserva, o fim do contrato, por iniciativa da

U/E/O (geralmente por questões disciplinares), ou ainda, por iniciativa do próprio

militar. Pode, também, ser decorrente de causas endógenas, relativas a aspetos

particulares da vida da unidade (e.g., motivos de promoção, formação), ou causas

exógenas (e.g., natural desenvolvimento da carreira dos militares).

No entanto, a taxa de rotação dos militares constitui-se como uma poderosa

condicionante do PRH, pelo que deve ser tida em consideração, uma vez que: a

rotação dos militares baixa à medida que a idade ou anos de serviço aumentam e é

maior nos militares com nível de qualificação mais baixo (Ribeiro, 2010). Por outro

lado, a rotação de efetivos nas U/E/O é um problema que o Comandante/Diretor/Chefe

e o seu conselheiro na área de pessoal (Chefe da Seção de Pessoal ou equivalente)

se debatem, no sentido de conciliarem as necessidades de serviço e os interesses

individuais dos militares. Cada vez mais se verifica a multiplicidade e a polivalência de

funções por parte dos militares, procurando fazer face às restrições orçamentais e aos

condicionamentos relacionados com a falta de RH (Nunes, 2004).

Page 80: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

75

O DIAGNÓSTICO: ETAPAS E PROCEDIMENTOS

Procuramos com o presente estudo compreender a forma como as carreiras

militares são geridas no Exército Português, com o intuito final de apresentar uma

proposta de intervenção a este nível. Por conseguinte, o diagnóstico que serviu de

base ao presente estudo constitui-se com uma natureza qualitativa. A abordagem

qualitativa foi preconizada com base em entrevistas semiestruturadas, conduzidas a

três colaboradores do Exército, que são interlocutores e fontes de informação

privilegiadas: Major General, Coronel e Tenente Coronel, detentores de sólidos

conhecimentos ao nível da Gestão de Recursos Humanos4.

Estes militares foram convidados a responder a sete questões relacionadas

com a gestão de carreiras e que fazem parte do guião de entrevista. Este guião

permitiu recolher dados para uma análise compreensiva sobre a gestão de carreiras

em contexto do Exército.

Com intuito de utilizar de forma adequada o guião de entrevista, garantindo

uma recolha de informação pertinente ao presente estudo, revisitámos vários autores

com intuito de preparar, adequadamente, os momentos que precederam o início da

entrevista, o decurso e o seu término (Lessard-Hébart, Goyette e Boutin, 1994). A

confidencialidade e o anonimato das respostas foram garantidos através do uso de

codificações para a análise das respostas às questões.

Para se analisar e tratar a informação recolhida através das entrevistas

realizadas, o procedimento eleito foi a análise de conteúdo (Bogdan e Biklen, 1999).

Após a análise das respostas dos entrevistados, foi possível realizar-se uma

análise SWOT5 da situação do Exército Português, com a qual se pretendeu

consolidar as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças existentes na gestão de

carreiras. A análise SWOT é apresentada na Figura 1.

Pela análise da Figura 1, verificamos que as respostas dos entrevistados

forneceram pistas interessantes para a elaboração de uma análise SWOT, que nos

permitiu caraterizar a situação atual que define o Exército Português. Após a análise

das entrevistas exploratórias e leitura de alguns estudos realizados no âmbito militar

verificamos que, a par do que acontece em várias organizações, também no Exército

Português emerge a necessidade de repensar os modelos de gestão de carreiras dos

militares.

4 Inicialmente estava previsto serem realizadas mais entrevistas (a três Generais e a três Coronéis) no entanto, devido

a constrangimentos temporais, e a alguma burocracia, fomos forçados a conduzir apenas três entrevistas. 5 A análise SWOT (Strenght, Weaknesses, Oportunities, Threats) consiste no estudo da envolvente interna (forças e

fraquezas) e externa (ameaças e oportunidades) de uma organização.

Page 81: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

76

Figura 1. Análise SWOT

A

mb

ien

te In

tern

o

Forças

Modelo atual é um modelo simples que permite a promoção do máximo de oficiais aos postos mais elevados da hierarquia

Modelo legislado ao pormenor (cf. detalhe normativo do EMFAR), transmite uma ideia de grande transparência e objetividade

Fraquezas

Ausência de um sistema eficaz de gestão de carreiras

Escassez de RH

Ausência de perfis funcionais totais, de um sistema de avaliação de potencial e de análise de funções

Antiguidade – inibe as pessoas de serem escolhidas em função das competências;

Limitação geográfica – economia financeira. Oficiais escolhidos conforme a área geográfica

Financeira

Quebra de expetativas

Am

bie

nte

Exte

rno

Oportunidades

Abertura à sociedade civil e às práticas de gestão de carreiras realizadas em outras instituições

Protocolos com centros de formação;

Pressão externa poderá proporcionar uma implementação de um novo sistema com menor resistência à mudança

Ameaças

Conjuntura económica (congelamento das promoções).

Crescente constrição orçamental poderá originar uma diminuição dos postos superiores

Fonte: Análise das Entrevistas

PROPOSTA DE INTERVENÇÃO

O principal objetivo deste projeto é desenvolver um plano de carreiras, tendo

em conta, os objetivos e expetativas de carreira dos militares e as perspetivas da

própria instituição, promovendo-se a compatibilização dos interesses institucionais e

individuais.

O modelo de intervenção proposto pode ser dividido em dois pontos de análise

essenciais: (i) o ponto de vista da instituição e (ii) o ponto de vista do militar. Apesar

destes dois pontos de análise numa primeira instância surgirem separadamente na

verdade são interdependentes, isto é, o desenvolvimento de um está intimamente

condicionado com o desenvolvimento do outro.

A Figura 2 apresenta, de forma esquemática, o modelo de Gestão de Carreiras

que propomos. Por conseguinte, abordaremos os diversos aspetos propostos para

cada um dos prismas de análise e procuraremos conciliá-los numa perspetiva comum.

Page 82: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

77

Assim sendo, como já vimos anteriormente, o modelo de gestão de carreiras

que se encontra em vigor é um modelo tradicional, onde a tónica é colocada na

carreira vertical. Este modelo é, atualmente, ultrapassado, já que os imperativos e as

necessidades emergentes sublinham aspirações e expectativas de carreiras

congruentes com as motivações de cada um dos colaboradores em função dos seus

próprios objetivos individuais, fortalecendo a necessidade de compatibilização entre os

interesses individuais e organizacionais.

Apesar da necessidade de compatibilização destes dois interesses, não existe

ainda um consenso relativamente a quem pertence a responsabilidade da gestão da

carreira, se ao individuo, se à organização. De acordo com a literatura, parece

razoável propor que a gestão de carreiras seja uma responsabilidade partilhada pelos

indivíduos e pelas organizações (Cunha et al, 2010, p. 616). O desenvolvimento de

carreira organizacional não «morreu», parecendo antes assistir-se a uma espécie de

«dança organizacional» - isto é, um processo de influência mútua entre indivíduos e

organizações, em que cada parte é simultaneamente agente e alvo de influência (Herr,

2001, in Cunha et al, 2010, p. 616).

Neste sentido, sob o ponto de vista organizacional emergem os objetivos, as

oportunidades e as necessidades da organização, na sua íntima relação com o meio

envolvente. Do outro lado, emergem igualmente os objetivos individuais dos militares,

as suas expectativas e desejos ao nível da carreira, em função dos contextos onde se

inserem.

Entre estas duas lógicas de ação, aparentemente contraditórias, é necessário

estabelecer-se uma ponte que permita a troca de sinergias entre ambas as partes.

Essa troca é possível ser realizada se for criada uma figura mediadora entre as duas

partes, cuja missão se insere não só na defesa dos objetivos organizacionais, mas

também na orientação dos objetivos individuais face às oportunidades existentes na

instituição. Essa figura é assumida por nós como um Gestor de Carreiras, que deverá

exercer a sua função dentro do Gabinete de Apoio às Carreiras, a ser criado para o

efeito. No Exército existe a Repartição do Pessoal Militar onde se gerem as carreiras

militares. No entanto, este apoio é meramente administrativo.

Page 83: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

78

Figura 2. Modelo Proposto

General

Tenente-General

Major-General

Brigadeiro-general

Coronel

Tenente-Coronel

Major

Tenente

Alferes

Aspirante a Oficial

Soldado Cadete

Dar a conhecer a cada Capitão

as áreas funcionais em que

poderá vir a ser empregue e as

respetivas perspetivas de

carreira

Depois do Curso de Promoção

a Capitão o militar decide a

sua orientação de carreira.

Carreira Horizontal

Carr

eira

Vert

ical

(Mo

del

o e

xis

ten

te a

tual

men

te)

~ M

Capitão

Focus on Growth

Gabinete de

apoio às

carreiras: Gestor de Carreiras

Vagas

Objetivos da Organização

Desejos e expetativas do militar

Objetivos do militar

Necessidades e oportunidades

da Organização

Competências

Desempenho e performance do

militar

Identificar o potencial do

colaborador

Mentoring e Coaching

Manager as career coach

Questionário

de expetativas de

carreira

- Avaliação de

desempenho

- Formação

Funções

Análise dos recursos humanos

disponíveis

- Recrutamento e

Seleção;

- Análise de

Funções

Planos de evolução na carreira

Durante o

4º ano da

AM

Âncoras

de carreira

Candidato

Fase de

admissão/Entrada na

AM

Testes Psicológicos;

conhecer o potencial

de cada candidato

Page 84: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

79

Por conseguinte, quando falamos de desenvolvimento de carreiras, a

organização deverá ter em conta o planeamento de RH, os movimentos que podem

ocorrer, as funções que serão necessárias ocupar, o número de vagas existentes,

quais os RH disponíveis, seu potencial, entre outros. Neste sentido, a organização

deverá preconizar uma perspetiva integrada de RH, socorrendo-se dos subsistemas

de gestão de RH ao dispor, nomeadamente, o recrutamento interno e a descrição de

funções para cada cargo.

O recrutamento permitirá a identificação das vagas e a análise dos RH

disponíveis, enquanto a descrição de funções, permite ter um perfil previamente

configurado e determinado, que inclui as hard e as soft skills necessárias ao

desenvolvimento do cargo em análise.

Por outro lado, a organização deve também atender aos objetivos pessoais de

carreira dos militares e, para tal, é necessário recolher informação relativa à avaliação

de desempenho do militar e ao plano de formação delineado. Estes indicadores

permitem recolher informações sobre as competências e sobre o desempenho do

militar, identificando o seu potencial.

Em suma, consideramos que a gestão de carreiras em contexto militar deve

albergar os vários subsistemas de RH existentes, para que possa assumir-se como

eficaz.

Tendo estes aspetos em consideração, entendemos que a gestão de carreira

deve constituir uma preocupação desde o início da admissão na Academia Militar. Por

conseguinte, a instituição deve desde o início, registar em base de dados, os testes

psicológicos que permitem dar a conhecer o estado cognitivo atual do militar e o seu

potencial de desenvolvimento.

Já vimos que a gestão da carreira atual no Exército é a vertical, caraterizando-

se pela sucessão de postos. No entanto, devemos ter em conta que os militares,

sendo colaboradores da Instituição militar, não se regem pelas mesmas motivações,

aspirações nem pelos mesmos desejos de carreira. Neste sentido, propomos

igualmente uma gestão horizontal. A proposta indicada sugere que a partir do posto de

Capitão, o militar, juntamente com o seu “aconselhador” ou gestor de carreira, escolha

o seu percurso de carreira. A carreira horizontal implicaria uma progressão mais lenta

nos postos, até ao posto de Tenente-Coronel mas em contrapartida, o militar estaria a

desempenhar funções do seu agrado, sem mobilidades geográficas. Neste sentido, o

militar poderá escolher o que mais o motiva, ou a componente operacional, ou então,

uma estabilidade emocional, familiar e geográfica.

O desenvolvimento de uma carreira horizontal encontra-se intimamente

relacionada com o desenvolvimento de competências que devem ser transversais a

Page 85: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

80

toda a organização. Por esse motivo, consideramos aqui fundamental o papel da

formação profissional e dos development centres, com o objetivo de potenciar

competências nos militares que possam ser uma mais-valia no desenvolvimento de

uma carreira horizontal.

Durante o 4º ano da Academia Militar, propomos a administração de um

questionário de Âncoras de Carreira, para que antes de iniciar a sua carreira

propriamente dita, tanto o militar como a instituição se comecem a aperceber das

orientações de carreira daquele.

Este conceito de Âncora de Carreira foi desenvolvido a partir dos estudos de

Schein, que explora a forma com que alguns aspetos pessoais podem ser

determinantes nas escolhas profissionais, criando assim, uma padronização (1990a).

Dos seus estudos resultou uma descrição de um conjunto de autoperceções

relativas a talentos e habilidades, motivações e atitudes, necessidades e valores,

baseadas nas experiências efetivas de cada sujeito, criando-se, assim, rumos que

norteiam as escolhas desse profissional. A este conjunto Schein (1990a), designa de

Âncoras de Carreira e estas afetam a forma com que o indivíduo acolhe e percebe o

seu trabalho e a sua carreira. As Âncoras de Carreira apresentam características

diferentes, segundo Schein (1990b):

Competência Técnica/Funcional – nesta âncora o profissional adquire sentido

de identidade através da aplicação das suas habilidades técnicas. A realização

profissional vem através da possibilidade de enfrentar desafios;

Competência de Gestão Global – o profissional orientado para a gestão global

possui a capacidade de realizar um contrato psicológico com a organização,

para que o sucesso da organização seja o seu sucesso;

Autonomia e Independência – aqui encontram-se as pessoas que possuem um

nível reduzido de tolerância pelas regras estabelecidas por outras pessoas, por

procedimentos e outros tipos de controlo que venham a cercear a sua

autonomia;

Segurança e Estabilidade – a principal preocupação é a sensação de bem-

estar gerada pela baixa volatilidade na sua carreira. Para isso, o profissional

aqui ancorado irá guiar as suas decisões de carreira na segurança e

estabilidades oferecidas;

Criatividade Empreendedora – aqui encontramos os profissionais focados na

criação de novas organizações, serviços ou produtos;

Serviço/Dedicação a uma causa – integram os indivíduos que não estão

dispostos a renunciar, em nenhuma hipótese, aos seus valores pessoais.

Executam, assim, atividades profissionais que possam integrar esses valores;

Page 86: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

81

Desafio – a superação de obstáculos aparentemente impossíveis e a solução

de problemas ‘insolúveis’ definem o sucesso para os profissionais aqui

ancorados.

Estilo de Vida – nesta âncora, o profissional procura encontrar uma forma de

integrar as necessidades individuais, familiares e as exigências de carreira.

Grande parte das pessoas, possivelmente, preocupa-se com várias destas

questões, mas em diferentes graus. Uma Âncora de Carreira poderá fazer todo o

sentido hoje e amanhã emergir uma outra (Schein, 1990a). O reconhecimento da

Âncora de Carreira possibilita ao profissional o desenvolvimento de estratégias de

carreira que combinem as suas habilidades e valores, com as oportunidades que a

organização possui.

Como referido inicialmente, acreditamos que a figura de um Gestor de

Carreiras faz todo o sentido no Exército Português, na medida em que este deverá

preocupar-se, essencialmente, com três procedimentos de desenvolvimento

fundamentais:

Figura 3: Procedimentos de intervenção

Fonte: Baseado em van de Ven (2007).

Neste sentido, a sua atuação deverá ser vista como um “manager as career

coach”, atuando como um coach, realizando discussões construtivas com o militar e

atuando como seu “advogado” de carreira, tal como sugere van de Ven (2007).

Focus on growth Preocupações de carreira Mentoring e Coaching

A focalização deve ser nos valores, aspirações e interesses pessoais, com vista ao crescimento;

É necessário identificar as competências pessoais e as oportunidades de desenvolvimento e de melhoria;

Consolidar a informação recolhida num plano de desenvolvimento de carreira estruturado e consonante com as orientações estratégicas da organização;

Implementação de uma entrevista anual de avaliação dos projetos de carreira.

As pretensões e objetivos de carreira alteram-se constantemente, por isso a gestão das preocupações/expectativas de carreira pode ser realizada em vários momentos ao longo da vida militar: na avaliação de desempenho; questionários e inquéritos de motivação, clima e satisfação no trabalho.

Coaching consiste no desenvolvimento de competências e de habilidades para que resultados planeados possam ser alcançados com êxito. Um coach, auxilia e apoia o coachee (cliente) a sair do seu estado atual e atingir um estado desejado.

Mentoring é uma espécie de tutoria onde um profissional mais velho e mais experiente orienta e partilha com profissionais mais jovens, experiências e conhecimentos no sentido de dar-lhes orientações e conselhos para o desenvolvimento das suas carreiras.

Page 87: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

82

Para tal, deverá preconizar papéis diversos como: (a) desafiar e ajudar o militar

sobre as suas aspirações de interesses em matéria da carreira, por forma a testar que

as mesmas são robustas, realistas e fortalecidas; (b) deve proporcionar feedback ao

militar e discutir com ele o desempenho, o potencial, as forças e as oportunidades de

melhoria; (c) comunicar aberta e francamente com o militar sobre o facto de as suas

expectativas serem ou não realistas; (d) motivar e ajudar o militar a gerar opções e a

traduzi-las num plano de ação exequível (van de Ven, 2007).

Após esta análise individual realizada pelo Gestor de Carreira, torna-se

imperativo a existência de uma reunião de revisão global do desenvolvimento de

carreira, a ser preconizada pelos diversos Gestores de Carreira, com intuito de

combinar as oportunidades de desenvolvimento (e.g., vagas em aberto, rotação das

funções, missões especiais, etc.), com as aspirações e necessidades dos militares.

Desta reunião, deverá resultar um plano de desenvolvimento integrado, que contém as

ações a realizar para cada militar, as suas responsabilidades e orientação necessária.

As decisões inicialmente tomadas nesta reunião devem ser comunicadas, em

forma de partilha com o militar, procurando que este dê a sua opinião sobre a opção

encontrada. Todos os procedimentos devem ser claramente expressos e todos os

colaboradores devem ter acesso a toda a informação de igual forma.

Em suma, apresentamos na Figura 4 os instrumentos que podem ser utilizados

na gestão de carreiras dos militares do Exército Português.

Figura 4. Instrumentos de Gestão de Carreiras

CONSIDERAÇÕES FINAIS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Avaliação das Expectativas

Avaliação de desempenho

Questionário/Inventário das preocupações de carreira

Âncoras de Carreira

Instrumentos de Ação

Mentoring

Coaching

Planos de desenvolvimento pessoal

Planos de Carreira

Mobilidade Horizontal

Mobilidade Vertical

Recrutamento Interno

Desenvolvimento de Competências

Formação

Development Centres

Page 88: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

83

O presente trabalho teve como principal objetivo compreender a forma como as

carreiras militares são geridas no Exército Português. Da auscultação que realizámos

através das entrevistas, concluímos que:

A gestão de carreiras no Exército não é realizada com base numa análise de

funções, por forma a orientar melhor os desempenhos dos militares para

funções de maior responsabilidade e adequação;

O Exército Português carece de uma estrutura específica que se dedique à

gestão de carreira dos militares;

Durante o processo de gestão de carreiras (entendido pelo Exército como uma

movimentação vertical decorrente da antiguidade) não são auscultadas as

expectativas, aspirações e motivações dos militares perante a sua carreira.

Por conseguinte e atendendo a estas constatações, consideramos ser possível

avançar com a proposta de um modelo de gestão de carreiras, passível de ser

implementado no Exército Português.

Este modelo coloca a tónica na existência de um Gestor de Carreiras e de um

Departamento para o efeito, no qual haverá uma preocupação de conciliação e

compatibilização dos interesses individuais dos militares e os da organização. Neste

processo, serão auscultadas as expectativas, aspirações e motivações dos militares,

bem como será considerada uma movimentação horizontal de carreira que permita

desenvolver competências transversais a toda instituição.

É nossa expectativa que este trabalho se venha a constituir como uma mais-

valia para o Exército Português ao nível da gestão de carreiras. Em termos pessoais,

este trabalho assumiu-se como um grande desafio, na medida em que nos levou a

procurar informação que fosse pertinente para o Exército, refletir sobre a mesma e

sistematizá-la num modelo de carreiras que possa ser útil e aplicável. Alguns

obstáculos e constrangimentos surgiram (dificuldades na obtenção das entrevistas;

dificuldade em se aceder a determinados documentos do Exército, entre outros), e

cujos efeitos tentámos minimizar sem prejuízo para o trabalho final. Esperamos, por

conseguinte, que este trabalho possa servir de ponto de partida para novas

investigações relativas à avaliação da implementação deste modelo de gestão de

competências.

Page 89: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

84

REFERÊNCIAS BLIOGRÁFICAS

Bogdan, R. e Biklen, S. (1999). Investigação qualitativa em educação. Uma introdução

à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora.

Câmara, P.B., Rodrigues, J.V. e Guerra, P.B. (2010). Novo Humanator: Recursos

humanos e sucesso empresarial. Lisboa: Dom Quixote

Carvalho, J. (2003). Sistema de Avaliação do Mérito do Pessoal Militar: Suporte do

Sistema de Promoções. Sintra: Instituto de Altos Estudos da Força Aérea.

Cherrington, D.J. (1995). The management of human resources (4th edition). New

Jersey: Prentice Hall.

Chiavenato, I. (2002). Recursos Humanos (7ª Ed.). S. Paulo: Editora Atlas.

Cunha, M. P., Rego, A., Cunha, R. C., Cabral-Cardoso, C., Marques, C. A. & Gomes,

J. F. S. (2010). Manual de gestão de pessoas e do capital humano (2.ª edição).

Lisboa: Sílabo.

Dutra, J. (1996). Administração de Carreiras: uma proposta para repensar a gestão de

pessoas. São Paulo: Atlas.

Hall, D. (2002). Careers In and Out of Organizations. London: Sage Publications.

Lessard-Hébart, M., Goyette, G. e Boutin, G. (1994). Investigação qualitativa:

Fundamentos e práticas. Lisboa: Instituto Piaget.

Mintzberg, H. (2011). Managing. San Francisco: Berrett-Koehler Publishers.

Nunes, P. (2004). O Dia-A-Dia de uma Unidade Regimental. Dificuldades e Desafios

da Gestão de Recursos Humanos. Lisboa: Revista da Academia Militar.

Oliveira, U. (2009). Institucionalização de um sistema de acompanhamento e

aconselhamento permanente das carreiras militares, com previsão de pontos

de aferição e eventual saída da organização. Lisboa: Instituto de Estudos

Superiores Militares (IESM).

Quivy, R. e Campenhoudt, L. (2008). Manual de investigação em ciências sociais.

Lisboa: Gradiva.

Ribeiro, J. (2010). A Gestão de Recursos Humanos na Força Aérea. Lisboa: Instituto

de Estudos Superiores Militares (IESM).

Schein, E.H. (1990a). Career anchors and job planning: The links between career

pathing and career development. Cambridge: MIT Review.

Schein, E.H. (1990b). Career anchors (revised edition). San Diego: University

Associates.

Tieppo, C., Gomes, D., Sala, O. e Trevisan, L. (2011). Seriam as âncoras de carreira

aderentes às carreiras inteligentes? Estudo comparativo entre alunos

Page 90: Boletim 3 - Exército

Gestão de Carreiras no Exército Português

85

formandos do curso de administração de empresas e turismo. Revista Gestão

Organizacional, 4 (2), 274-293.

van de Ven, F. (2007). Fulfilling the promise of career development: Getting to the

“heart” of the matter. Organization Development Journal, 25(3), 45-50.

Fontes jurídicas

Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho, Diário da República, I Série, n.º 146

Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro, Diário da República, I Série, n.º 20

Lei n.º 11/89 de 1 de Junho, Diário da República, I Série, n.º 125

Portaria n.º 1246/2002 de 7 de Setembro, Diário da República, I Série, n.º 207.

Page 91: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º3 – 2012

PP. 86 a 120

86

GESTÃO E DESENVOLVIMENTO DE CARREIRAS

- O caso da Marinha Portuguesa -1

Adelino Costa Cabral*

RESUMO

A Gestão e Desenvolvimento de Carreiras assumem, numa sociedade em constante mutação, onde o paradigma deslocou o centro da acção da organização para o indivíduo, papel preponderante na sustentação e desenvolvimento das organizações. As pessoas, ao longo do último século, preponderaram como charneira dinamizadora do acto organizacional e principal factor de competência a uma adaptação, consequente, às alterações da envolvente, assumindo, progressivamente, uma gestão individual da carreira. A Marinha Portuguesa, como instituição inserida numa sociedade global, não pode estar desatenta perante as melhores práticas, de modo a manter competitividade num mercado de trabalho onde todos querem conservar, nas suas fileiras, indivíduos satisfeitos e motivados, que concorram de forma indelével para o cumprimento da missão. O propósito deste estudo referenciou-se numa aspiração da Marinha de “conceber um sistema generalizado e sistemático para o acompanhamento individualizado dos Recursos Humanos e o aconselhamento de percursos funcionais coerentes, motivadores e com potencial de carreira”. Para esse fim, adoptou-se a metodologia “Estudo de Caso”, ajustada a uma situação em contexto real, tendo-se recorrido, para um eficaz diagnóstico, a diferentes técnicas de recolha e análise de dados. Para responder à questão base, desenhou-se um plano de intervenção, assente no evidenciado e consubstanciado num conjunto de acções que perfilhem a edificação de um programa de Gestão e Desenvolvimento de Carreiras participado e cooperativo, onde a conciliação de interesses, individuais e organizacionais, seja um desiderato a alcançar. Palavras-Chave: carreiras; acompanhamento; evolução; sucesso

ABSTRACT

The career’s management and development, inside a constantly moving society, where the paradigm have changed the organizational action centre to the individual, assume a preponderant role in the organization’s maintenance and development. During the last century the people has the dynamic strength of the organization’s activity and was the main factor of a skilled adaptation to the environment changes. Furthermore, they assumed, in a progressive way, the management career as an individual task. The Portuguese Navy, as an institution integrated in a global society, have to to maintain the competitiveness level in the labour market where all (institutions/organizations/enterprises) want to have motivated and satisfied collaborators who guarantee the accomplishment of the mission. Because of that, the Portuguese Navy could not have an attitude of inattention to the best practises. This study took as reference the Portuguese Navy’s ambition of “creating a generalized and methodical system to allow the human resources’ individualized attendance and the specialized career consulting”. The adopted methodology was the “Case Study”, adjusted to a real context, and to efficacy diagnostic, different techniques of analyses and gathering data were used. The structure of the conceptual framework was essentially based on the literature’s review, which sustained all the study. In order to answer to the central question, it was elaborated a plan of action to implement an interactive management and development career’s program. The proposal of action assumes the organizational and individual interest’s conciliation as a goal to achieve during the program implementation. Key-words: careers; monitoring; evolution; success

1 Este artigo é baseado num projeto, defendido pelo autor, em 23 de janeiro de 2012, no ISCTE, no

âmbito do Mestrado em Gestão de Recursos Humanos. * Capitão-de-fragata da Marinha.

Page 92: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

87

1. INTRODUÇÃO

A sustentação das organizações, na sociedade contemporânea, torna

premente a adopção e edificação de políticas, modelos e práticas de Gestão de

Recursos Humanos (GRH) potenciadores na atracção, manutenção e

desenvolvimento dos activos humanos mais bem preparados, tendo em conta que são

os únicos actores capazes de responder, em tempo e de forma eficiente, a qualquer

alteração da envolvente.

Com a globalização e evolução tecnológica, as organizações adaptaram-se à

realidade da sociedade económica e posteriormente do conhecimento, ficando mais

flexíveis e permeáveis à entrada e saída dos colaboradores (Hall, 1996; Sullivan,

1999; King, 2004; Baruch, 2004a e 2004b).

Este fenómeno tem vindo a passar a responsabilidade da gestão da carreira da

organização para o trabalhador, que hoje procura no trabalho motivações e

recompensas distintas do passado. O trabalho para a vida já não é uma ambição de

todos, o importante será, a título de exemplo, a realização pessoal, o desenvolvimento

de aptidões e competências e o equilíbrio entre o trabalho e a família (Baruch, 2004b e

2006; Ng et al., 2005)

Se a capacidade de gestão de carreiras passou da organização para o

indivíduo, a responsabilidade também. Contudo, as organizações continuam a

necessitar de pessoas que lhe permitam alcançar os objectivos estratégicos e a

potenciação da sua imagem e implementação de produtos num mercado, que advindo

da globalização, apresenta níveis de incerteza bastante elevados, onde existem cada

vez mais actores e concorrência.

Desta forma, a gestão e desenvolvimento de carreiras que respondam a essas

questões base são práticas de extrema relevância para o progresso das organizações

e para o alcançar do sucesso de cada um e de todos, num principio colectivista em

que a organização é a potenciação da soma do valor dos seus membros. Não existe

satisfação individual separada do sucesso organizacional (Greenhaus, Callagan e

Godshalk, 2010; Tams e Arthur, 2010).

No contexto militar essa necessidade é premente e contínua, devido ao fim do

serviço militar obrigatório, no final do século passado. Essa alteração fez diminuir o

número de elementos disponíveis, que levou a que as Forças Armadas fossem para o

mercado de trabalho recrutar os seus activos em concorrência directa com os

restantes intervenientes do tecido empresarial. Mas o fenómeno de trazer as pessoas

para o contexto castrense é apenas o inicio do processo de atrair, manter e

desenvolver pessoas. Após a contratação dos indivíduos torna-se necessário

Page 93: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

88

consagrar uma cativante opção de carreira, de forma a manter os melhores nas

fileiras.

A realidade tecnológica que hoje constituí as plataformas militares carece de

especificidades, comportamentos e competências exigentes, tornando necessárias

práticas de gestão de desenvolvimento de carreira que acomodem os interesses

individuais, numa conciliação, na maior expressão possível, com os da organização.

A evolução das carreiras militares assente em dois eixos – progressão

horizontal e promoção vertical, conforme estatuído no Estatutos dos Militares das

Forças Armadas (EMFAR), carece de ser contemplada de forma a permitir uma

clareza de definição na responsabilidade e participação de cada elemento na definição

da sua carreira que poderá progredir de forma mais ou menos linear, considerando a

participação do indivíduo e as circunstâncias de oportunidade.

Nestes pressupostos, um processo efectivo de gestão de carreiras, no âmbito

da Marinha, é algo a prosseguir e fortalecer de modo a permitir manter e desenvolver

os que evidenciem melhores capacidades e valências, num enquadramento dos

valores e cultura organizacional vigentes e objectivos estratégicos projectados.

Podemos aferir que todas as organizações necessitam de indivíduos para a

sua actividade. Em contrapartida, a maioria dos indivíduos necessitam das

organizações para desenvolverem o seu trabalho. O desafio nesta interacção emerge

na procura do equilíbrio entre as solicitações individuais e a oferta institucional. As

organizações querem os melhores para os seus quadros e os indivíduos pretendem

integrar as organizações mais conceituadas. O cruzamento destas aspirações será o

factor crucial para o sucesso das carreiras e para o êxito das actividades

organizacionais. A carreira é um percurso de vida e cada um é construtor do seu

caminho. Como proferia Peter Drucker “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo.”

As carreiras dos militares regem-se por normativo legislativo, determinado

superiormente, que enquadra formalmente e com alguma rigidez a sua gestão e

desenvolvimento. Nessa decorrência, torna-se necessário proceder a alguma

agilização deste processo com vista a torná-lo mais participado e efectivo,

nomeadamente por recurso às novas tecnologias de informação e comunicação.

Partindo deste pressuposto, que existe necessidade de uma avaliação e

reestruturação, importa identificar os factores críticos do actual sistema de gestão de

carreiras na estrutura castrense da Marinha, com o propósito de debelar as falhas

identificadas, visando uma gestão mais eficiente do desenvolvimento de carreiras, que

propicie um desempenho ajustado do potencial humano e articulado acréscimo de

valor em sentido biunívoco.

Page 94: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

89

Conforme relevado, torna-se necessário intervir ao nível das práticas de

Gestão de Carreiras da Marinha, de modo a ir ao encontro do propósito traçado

superiormente, através dos documentos estruturantes, de determinação interna para a

execução das políticas de Recursos Humanos perspectivadas para esta matéria, e

que se materializa em “Conceber um sistema generalizado e sistemático para o

acompanhamento individualizado dos RH da Marinha e o aconselhamento de

percursos funcionais coerentes, motivadores e com potencial de carreira” (DSRH). É

com este objectivo que iniciámos o desenho do presente projecto numa perspectiva de

colmatar uma necessidade da organização numa dimensão de adaptação das políticas

instituídas às boas práticas organizacionais.

Desta forma, propusemo-nos desenhar um modelo aplicado, no âmbito da

gestão e desenvolvimento de carreiras, na estrutura da Marinha Portuguesa, assente

numa perspectiva de sucesso individual e organizacional, numa participação colectiva

e com a maior conciliação de interesses possível.

O trabalho desenvolvido estrutura-se a partir de uma revisão de literatura sobre

a temática em causa de gestão e desenvolvimento de carreiras, que permite conhecer

a grandeza teórica enquadrante desta matéria e as práticas preconizadas para a

envolvente contemporânea na perspectiva pessoal e da organização.

Para se atuar é necessário conhecer a realidade vigente de forma a gizar um

eficiente e eficaz rumo da intervenção. Assim, procedeu-se a um estudo de caso, cujo

método e técnicas de recolha de dados necessários ao diagnóstico se evidenciam e

explanam no capítulo três deste trabalho.

Para que uma intervenção seja efectiva, é fundamental analisar o

diagnosticado, a fim de projectar um plano baseado no patenteado e contribuinte para

a resolução da questão evidenciada. Assim, estruturou-se o plano de intervenção que

se pretende adequado na forma, aceitável na estrutura e exequível na dimensão.

Em suma, a estruturação do trabalho assenta numa metodologia de

identificação do problema através de um diagnóstico ajuizado nos dados evidenciados

no estudo de satisfação efectuado aos elementos da Marinha, complementado por

uma análise de conteúdo às contribuições abertas que os respondentes poderiam

colocar no âmbito do questionário elaborado.

Finalmente, compôs-se o caminho que poderia colmatar a necessidade

patenteada, propondo-se um plano de intervenção que vá de encontro à política da

organização para este área funcional e tenha o patrocínio do vértice estratégico para a

sua implementação, contribuindo para essa factor a entrevista efectuada ao vice-

almirante superintendente dos serviços do pessoal, que permitiu ter presente a

vontade para a acção, numa perspectiva que enquadrasse todos os parâmetros da

Page 95: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

90

questão, tendo em conta a dimensão da instituição, cultura organizacional vigente e

capacidade de implementação do plano, na conjuntura atual.

2. ENQUADRAMENTO TEMÁTICO

2.1. Definição e caracterização de carreira

As questões sobre a definição de carreira têm obtido resposta, pelos

estudiosos desta matéria, de acordo com várias perspectivas. Em alguns campos de

estudo, a carreira é tida como o conjunto de experiências, relacionadas com o

trabalho, ocorridas ao longo da vida de uma pessoa (Greenhaus, Callanan e

Godshalk, 2010). Outras ópticas atribuem como significado de carreira uma sequência

evolutiva da experiência do trabalho ao longo do tempo (Arthur, Hall e Lawrence,

1989). Podemos, no entanto, considerar que uma carreira é a sequência de papéis e

experiências, em ambiente de trabalho, na vida das pessoas, que ocorrem numa

envolvente social específica, nomeadamente em organizações (Baruch, 2004a).

Logramos então aferir que a carreira pode ser olhada sob quatro referenciais

distintos (Hall, 2002):

a) Como desenvolvimento profissional, numa mobilidade interna que

possibilita uma ascensão hierárquica na organização;

b) Como ocupação profissional, que pressupõe uma série de movimentos

verticais ascendentes, ao longo do tempo de trabalho, independentemente

da organização em que ocorrem;

c) Como uma sequência de empregos e funções ao longo da vida, em que

todas as pessoas com uma história de trabalho, possuem uma carreira;

d) Como uma sequência de experiências profissionais ao longo da vida, cuja

carreira representa um conjunto de vivências nos empregos e actividades

que constituem a sua história de trabalho.

Neste desígnio, o desenvolvimento de carreiras constitui-se em dois patamares

indissociáveis (Hall, 1996):

a) Planeamento de carreira: numa auto-consciência individual, das

oportunidades com que se deparam, das escolhas que efectua, dos

condicionamentos e consequências que daí advêm; da definição dos

objectivos de carreira e do planeamento que giza do trabalho, da formação

e outras experiências vivenciadas para parametrizar o sentido,

oportunidade e a sucessão das acções a adoptar para atingir os objectivos

de carreira;

Page 96: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

91

b) Gestão da carreira: método de preparação, promoção e monitorização do

planeado para a carreira de forma individual ou em conjunto com os

sistemas de carreiras da organização em que se insere.

Para Greenhaus, Callanan e Godshalk (2010), a gestão da carreira de um

sujeito pressupõe um conjunto de acções que passam por diversos estádios e que

facilitam observar a complexidade dos actos que concorrem para a carreira individual:

Também a evolução do conceito de carreira, tem vindo a ajustar-se ao longo

dos tempos. No passado a imagem era de as organizações possuírem estruturas

hierárquicas rígidas que operavam num ambiente estável. O plano de carreiras, neste

contexto, era previsível, seguro e linear. Em contraste, o actual sistema organizacional

está caracterizado num modo de total mudança, dinamismo e fluidez. As carreiras são

imprevisíveis, vulneráveis e multidimensionais. Estes dois cenários estão em extremos

opostos. No entanto nenhum reflecte uma representação completa, verdadeira e justa

do estado vigente (Baruch, 2006).

Deste modo, alguns autores definem modelos que habilitam uma abordagem

plural no conceito de carreira, Brousseau, Driver e Eneroth (1996) enunciaram quatros

hipóteses fundamentais de experiências de carreira. Os padrões definidos diferem,

basicamente, em termos de direcção e frequência do movimento dentro e entre

diversos tipos de trabalho ao longo do tempo.

Ainda segundo os mesmos autores, os indivíduos que adoptem carreiras de

perito ou lineares têm vantagem em organizações burocráticas com estruturas

mecanicistas. Enquanto que os indivíduos que desenvolvam carreiras em espiral ou

transitórias não se enquadrarão neste tipo de organizações.

A caracterização dos modelos de carreiras emergentes distingue-se pelas

competências de cada elemento, necessárias no contexto de trabalho em que se

insere ou num incremento da sua empregabilidade. As valências conseguidas pela

passagem em várias organizações, a identificação com o trabalho que desenvolve, a

aprendizagem em ambiente organizacional, o estabelecimento de redes sociais de

suporte e a responsabilidade individual de gestão da sua carreira (Sullivan, 1999). A

escolha, da actividade ocupacional e decorrentes resultados, têm como principal factor

os valores culturais e de trabalho de cada indivíduo (Brown, 2002).

Todavia, só uma decisão intuitiva não é efectiva, carecendo do

acompanhamento de uma decisão racional. Por outras palavras, os indivíduos

necessitam de usar a sua “cabeça” (racionalidade) e o seu “coração” (intuição) para

tomarem uma decisão de carreira efectiva. Esta conjunção tende a produzir diferentes

tipos de percepções complementares entre si (Singh e Greenhaus, 2004).

Page 97: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

92

O compromisso que um individuo desenvolve no seio da empresa e que pode

ser: afectivo, reflectindo um desejo de continuar membro da organização,

desenvolvido em grande parte como resultado de experiências de trabalho que

criam sentimentos de conforto e competência pessoal; de continuidade, espelhando

uma necessidade de se manter na organização, devido aos custos associados à

saída (e.g. falta de alternativas); ou normativo no sentido de uma obrigação

de permanecer, resultante da interiorização de uma preceito de fidelidade ou o

recepção de favores que exigem um determinado reembolso. A intenção de sair da

organização diminui em correlação com o aumento do factor compromisso. Contudo, o

comportamento do indivíduo será distinto em função da componente compromisso

mais evidenciada (Meyer e Allen, 1991)

O desenvolvimento desta temática, tem mostrado que o controlo da carreira se

presencia, cada vez mais, sobre a influência do individuo do que da organização

(Baruch, 2004b e 2006). Esta tendência para a gestão de carreiras individualizada

pode decorrer em vantagens para as organizações e para os sujeitos. Para os

elementos identifica-se na hipótese de poderem ter um leque alargado de opções de

carreira. As organizações concentram-se na possibilidade de externalizar serviços, em

vez de efectuarem despedimentos, contratando ex-colaboradores como consultores

(Baruch, 2004b). Mas deve-se ter sempre como principio a criação de compromisso

nos indivíduos que potencie um bem-estar pessoal e uma vontade de trabalhar em

conjunção de critérios com os objetivos organizacionais (Meyer e Allen, 1991).

Como se observou, existe no contexto actual uma necessária auto-gestão da

carreira que se relaciona com os comportamentos dos indivíduos e que de acordo com

King (2004) se dividem em três grandes grupos: de posicionamento, focados no

alcançar dos objectivos de carreira através da uma escolha criteriosa nas

oportunidades de mobilidade, num investimento estratégico no desenvolvimento do

seu capital humano e numa rede social desenvolvida e activa; de influência, no sentido

de influenciar as decisões dos elementos chave, para alcançar os resultados

desejados; de gestão de fronteiras, num balanço de solicitações entre o domínio

laboral e a vida extra-trabalho.

Em contraste com as anteriores gerações, actualmente os membros das

organizações são responsáveis pelas suas próprias carreiras, não considerando

qualquer hipótese de uma carreira para a vida numa só organização (Kuijpers, Schyns

e Scheerens, 2006). Existindo, possibilidade, de em conjunto com a ambição e astúcia

individual, alcançar o topo da carreira, independentemente de onde se começa. Com a

oportunidade vem a responsabilidade, sendo que o sucesso, na actual sociedade,

baseada na economia, é induzido pelo conhecimento que cada um tem de si mesmo,

Page 98: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

93

os seus factores de competitividade, valores e forma de alcançar bons resultados

(Drucker, 2005). Muito do que se apelida de desenvolvimento de carreira deveria, com

mais acuidade, ser caracterizado como comportamento vocacional, as escolhas

individuais são mais do foro educacional e vocacional do que, efectivamente, uma

escolha de carreira, onde a interacção coma envolvente está, permanentemente,

presente (Savickas, 2002).

A abertura dos mercados e da competição à escala global, à beira do século

XXI, criou a necessidade de organizações em rede e consequentemente carreiras

muito mais flexíveis (Hall, 1996). A principal modificação verifica-se na mudança de

carreiras que ofereciam emprego seguro para todos, para carreiras que proporcionam

oportunidades de desenvolvimento (Baruch, 2004a). Contudo, no presente, as

perspectivas profissionais parecem ser muito menos definíveis e previsíveis, sendo a

transição entre empregos mais frequente e difícil. Estas mudanças requerem dos

trabalhadores o desenvolvimento de aptidões e competências, substancialmente,

diferentes das requeridas no século XX, necessitando as pessoas de enfatizar a

capacidade de flexibilidade humana, a adaptabilidade e a aprendizagem ao longo da

vida (Savickas et al., 2009).

Entre estas novas carreiras podemos identificar as proteanas, auto-

determinadas e definidas pelos valores do indivíduo em contraposição às

recompensas organizacionais, servindo a pessoa, a família e o propósito de vida (Hall,

2004). Este padrão de carreira assente na individualidade enfatiza a adaptabilidade do

próprio e a definição da direcção que deseja seguir surgindo em contraposição à

carreira sem fronteiras (boundaryless) que se encontra numa perspectiva

organizacional de maior permeabilidade à entrada e saída dos colaboradores

(Sullivan, 1999). A predisposição individual para uma carreira tipo proteana é um

antecedente significativo para uma carreira de sucesso (Vos e Soens, 2008). Mas não

devemos descurar, que as pessoas permanecem mais tempo nas firmas que

apresentam boa reputação, num princípio de identidade interna (Chun, 2005).

2.2. Sucesso na carreira

De acordo com Baruch (2004b), a organização deve ser capaz de proporcionar

aos seus colaboradores opções que lhes permitam ter sucesso nas suas carreiras. No

entanto, se a essência das carreiras tem vindo a mudar, também o significado de

sucesso têm evoluído, diferenciando-se conforme o referencial:

O factor satisfação na carreira, assim como o relacionado com benefícios

tangíveis, como altos salários e promoções frequentes estão relacionados com uma

postura proactiva (Seilbert, Crant e Kraimer, 1999). Os comportamentos de

Page 99: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

94

proactividade que contribuem de forma intrínseca e extrínseca para criar condições

para uma carreira de sucesso consubstanciam-se: em ser inovador, em vez de manter

uma orientação para o status-quo; em assumir princípios de astúcia política e

empenho activo no planeamento de carreira, procurando um retorno. Estas acções

específicas aumentarão a probabilidade de uma maior recompensa extrínseca e

intrínseca (Seibert, Kraimer e Crant, 2001).

Os indivíduos, que se mobilizam numa perspectiva de mudança de carreira,

aumentam as suas possibilidades se construírem relações em variados contextos

sociais. Devendo edificar uma alargada matriz de relações de aconselhamento.

Incrementando dessa forma o grau de acesso à informação, mas mais importante, a

flexibilidade cognitiva e a capacidade para ponderar de forma alargada e criativa um

amplo campo de possibilidades (Higgins, 2001).

A relação entre satisfação na carreira e conflito trabalho-família é uma

mediação que poderá evidenciar-se como moderador negativo, devendo ter em conta

diversos factores como são o género, o estado parental e marital, as fontes de

suporte, a comunidade em que se está inserido e os recursos financeiros. Sendo a

retenção de talentos um importante objecto para as organizações, compreender os

factores que influenciam a satisfação individual com a carreira é de extrema

importância (Martins, Eddleston e Veiga, 2002).

A questão de como efectuar o balanceamento das actividades e interacções

trabalho-família, torna-se saliente na reflexão sobre as competências e aspirações de

cada indivíduo. Gerir as interacções entre os diferentes domínios da vida tornou-se

uma preocupação primordial para os trabalhadores periféricos, cujo trabalho é

contingencial, free-lance, temporário, externo, part-time ou casual (Savickas et al.,

2009).

O modo como sempre foi pedido o incremento de capacidades, competências e

enfrentar estratégias para estar num mercado de trabalho flexível, é agora

suplementado por um entendimento profundo e alargado de como as pessoas devem

agir de forma a serem as escolhidas. O pensamento do novo século deve entender a

carreira como uma questão de autonomia pessoal num mercado de trabalho livre

(Law, Meijers e Wijers, 2002).

As pessoas podem recorrer a múltiplos pontos de referência para avaliarem o

seu sucesso na carreira, medindo-o relativamente às expectativas que têm com o seu

trabalho e em relação ao resultado das outras pessoas (Heslin, 2003). Sendo as

variáveis de reconhecimento de sucesso distintas para cada indivíduo (Ng et al.,

2005).

Page 100: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

95

Podemos então notar que, o sucesso na carreira é resultado das práticas

individuais interiorizadas de forma subjectiva, podendo ser definido como o alcançar

dos resultados desejados ao longo da experiência de uma pessoa, no tempo dedicado

ao trabalho. As pessoas têm diferentes aspirações de carreira, considerando distintos

factores de realização, como são exemplo, a segurança no trabalho, a localização do

trabalho, o status, a progressão através de diferentes funções, acesso à formação, a

importância do trabalho versus tempo para si e para a família. Por outro lado,

encontra-se a perspectiva externa que considera, em maior ou menor dimensão,

indicadores tangíveis de forma objectiva e reflecte o entendimento social partilhado em

contraposição ao sentimento individual (Arthur, Khapova e Wilderom, 2005).

Considera-se, então, que, existe uma “grande divisão” entre factores

subjectivos e objectivos no evidenciar do sucesso de carreira. Os objectivos podem

verificar-se através de manifestações exteriores de sucesso, como por exemplo: a

remuneração; a posição hierárquica que a pessoa atingiu com uma determinada

idade, ou que quantidade de recursos a pessoa tem sobre a sua coordenação.

Alternativamente, podemo-nos concentrar nas questões subjectivas como as pessoas

sentem a sua experiência de trabalho ao longo da vida profissional (Gunz e Heslin,

2005). Na mesma linha de pensamento Seibert e Kraimer (2001) definem sucesso

extrínseco como o aferido em termos de salário e promoções, associados a resultados

de recompensas instrumentais que advêm do trabalho ou ocupação e que são

objectivamente observáveis.

O sucesso extrínseco é então o medido em termos de satisfação no âmbito dos

factores que estão inerentes no trabalho ou ocupação e dependem de uma avaliação

subjectiva, do próprio relativamente aos seus objectivos e expectativas. No entanto, ter

uma personalidade proactiva contribui para o sucesso na carreira, com um efeito

significativo na satisfação, no salário auferido e no número de promoções conseguidas

ao longo da carreira (Seibert, Crant e Kraimer, 1999).

2.3. Acompanhamento e aconselhamento

Na forma de as organizações ajudarem os seus colaboradores a terem

sucesso na carreira, é crucial considerar os seus desejos e planos. Embora as

carreiras estejam, presentemente, nas mãos dos colaboradores, as organizações

podem ter como objectivo aconselhar os seus elementos no desenvolvimento de

carreira, com incidência nos factores associados às características pessoais como a

motivação, reflexão e redes sociais em que se inserem, atendendo à situação no

trabalho e à dinâmica do ambiente em correlação com os factores de sucesso interno

e externo da carreira (Kuijpers, Schyns e Scheerens, 2006). Todavia, a tutoria poderá

Page 101: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

96

não ser directamente relacionável com o sucesso ao longo da carreira, no respeitante

ao sucesso objectivo, os profissionais com aconselhamento relevam altos índices de

produtividade no início e no fim da carreira, sendo assim positiva a intervenção nessas

fases, já no estádio intermédio da carreira, não é tão evidente. Relativamente ao

sucesso subjectivo, os colaboradores com tutores apresentam sentimentos de

sucesso ao longo de toda a carreira (Peluchette e Jeanquart, 2000).

Afirmar às pessoas que são os responsáveis pelas sua carreira, pode ser mais

fácil de dizer do que de fazer. As pessoas precisam de suporte, e nem sempre têm o

conhecimento e a força mental para se dirigirem sem aconselhamento e orientação. É

aqui que entra o aconselhamento de carreira, que pode ajudar as pessoas a identificar

a sua vocação e percurso, assim como o contexto em que a pessoa está mais

preparada para prosperar. O aconselhamento é um canal de comunicação de dois

sentidos com o empregado e pode ocorrer de duas formas. A primeira é através do

seu supervisor directo, ou de um elemento hierarquicamente superior que conheça as

atitudes, comportamentos e aptidões do colaborador, a segunda é pelo responsável

pela Gestão dos Recursos Humanos. Dependente da complexidade da organização e

dos seus recursos financeiros, o aconselhamento externo pode ser uma opção

(Baruch, 2004a).

Nas organizações onde os colaboradores são orientados para alcançarem

objectivos ambiciosos, atingem mais facilmente esses propósitos do que aqueles que

têm tutores que não compartilham um elevado nível de ambição. Esses princípios

potenciam os factores de motivação, a interligação entre o orientado e o orientador e o

sucesso na carreira (Godshalk e Sosik, 2003), devendo existir um reconhecimento da

alargada matriz dos pontos referenciais que se podem adoptar para avaliar as

carreiras, por recurso a um elevado grau de controlo das experiências relacionadas

com a falha e com o sucesso (Heslin, 2003).

O aconselhamento de carreira pode acontecer, de forma mais comum, através

de quatro métodos: aconselhamento individual; aconselhamento de grupo; orientação

de grupo; em interactividade através de ferramentas informáticas e através de páginas

electrónicas via internet. O primeiro é o mais dispendioso, mas é igualmente o mais

utilizado, estando implantado na tradição de potenciação de apetências. O contexto

destas entrevistas inclui tópicos como auto-conceito, interesses, valências, valores,

regras de vida e objectivos. O aconselhamento de grupo está, normalmente, mais

limitado às questões da carreira. A orientação de grupo está mais interligada ao

encontrar de uma vocação de carreira. As ferramentas informáticas e o recurso à

internet, pressupõe uma utilização individual, sendo efectivos quando é efectuado um

registo das interacções e das expectativas do colaborador ou se torna necessário um

Page 102: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

97

apoio profissional à distância. No futuro deve-se ter em conta a realidade tecnológica

existente, conhecendo que colaboradores podem ser aconselhados desta forma, que

tópicos podem ser endereçados e que eficiência tem este método (Bowlsbey, 2003).

Para Eby (1997) o aconselhamento será uma valiosa fonte de informação para

os indivíduos sobre as mudanças na natureza das carreiras (e.g. menor segurança no

trabalho; necessidade de ser mais proactivo no desenvolvimento da sua carreira). Na

posse desta informação, os colaboradores estarão mais aptos para participar e

encontrarem o apoio necessário para o desenvolvimento da sua carreira.

2.4. O futuro

O pandemónio que, presentemente, se vive nas carreiras, cria alguma

confusão e frustração para muitas pessoas, mas pode ser gerador de um ímpeto de

oportunidades para desenvolver sistemas de carreiras inovadores, que vão além dos

do passado, motivando comportamentos estratégicos que correspondam às

necessidades da maioria e não só de alguns (Brosseau, Driver e Eneroth, 1996). As

organizações e os indivíduos desempenharão um papel relevante na gestão de

carreira, devendo partilhar informação sobre oportunidades e possibilidades,

contribuintes para o benefício comum (Baruch e Peiperl, 2000).

As carreiras contemporâneas são bastante diferentes das carreiras tradicionais,

mas nem tudo mudou. Os padrões desenvolveram-se, de sistemas de carreiras

estáveis e lineares para sistemas transaccionais e dinâmicos. Todavia, a mudança

nem sempre fez evoluir para melhor. Um sistema de carreiras deve estar balanceado

entre o instrumentalismo do sucesso dos indivíduos e das organizações onde

trabalham (Baruch, 2006). Contudo, há muito a ganhar se tivermos, sempre, presente

a expansão do conceito de carreira para além dos modelos tradicionais (Sullivan,

1999). Devem-se projectar trajectórias nas quais os indivíduos progressivamente

desenham e constroem as suas próprias vidas, incluindo a carreira (Savickas et al.,

2009).

Mas não podemos escamotear os efeitos directos e os de longo termo, que o

actual estado da economia mundial tem sobre o desenvolvimento das carreiras dos

indivíduos e concomitantemente nas suas vidas, podendo tornar a definição de

progressão de carreira, ao longo de diversos estágios, um conceito obsoleto. Mas ao

longo do século XXI, iremos manter a premência de carreiras estruturadas e

evolutivas, porque as experiências, necessidades e situações dos indivíduos mudam

com o tempo em correspondência como a sua idade. O que pode tornar apropriado

ver a carreira como uma série de estágios ou fases únicos. É facilmente aceitável que

as questões e expectativas de um indivíduo de 25 anos, em inicio de carreira, sejam

Page 103: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

98

diferentes de um colaborador com 45 anos, a meio da sua carreira ou com 65 anos no

fim da sua vida activa. Os indivíduos encaram ao longo da vida um conjunto de

diversas e múltiplas situações, tarefas e factores de motivação. O entendimento desta

evolução e associadas necessidades e implicações nos diferentes estágios da carreira

pode contribuir para uma gestão mais efectiva da carreira pelo indivíduo, ajudando,

igualmente, as organizações a gerirem e desenvolverem os seus recursos humanos

(Greenhaus, Callanan e Godshalk, 2010).

É impossível antecipar como irão evoluir as carreiras nos próximos anos. Os

desafios, tais como os riscos sistémicos dos mercados financeiros globais, as

mudanças na provisão dos serviços sociais e a delapidação dos recursos naturais,

aumentam a vulnerabilidade das carreiras, que estão incorporadas nos modelos de

produção económica estabelecidos. No entanto, emergem oportunidades para

carreiras associadas à inovação social (incluindo a sustentabilidade no uso dos

recursos). Estes desenvolvimentos podem tornar algumas áreas de especialização

profissional obsoletas, mas criam possibilidades para novas valências e colaborações.

Existem bastantes questões sobre a adaptabilidade individual e organizacional em

resposta a estas transições (Tams e Arthur, 2010).

Como disse Drucker (2005), se os bulldozers movem montanhas, as ideias

mostram onde é que as máquinas devem actuar. O importante, são as mentes

brilhantes.

2.5. A particularidade das carreiras militares – o caso da Marinha

A definição, nacional, de carreira militar encontra-se no artigo 27.º do Estatuto

dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), sendo definido como “o conjunto

hierarquizado de postos, desenvolvida por categorias, que se concretiza em quadros

especiais e a que corresponde o desempenho de cargos e o exercício de funções

diferenciadas entre si”.

A descrição do desenvolvimento da carreira militar encontra-se estatuído nos

artigos 125.º e 126.º do EMFAR, orientando-se pelos seguintes princípios: primado da

valorização militar; universalidade; profissionalismo; igualdade de oportunidades;

equilíbrio; flexibilidade; mobilidade; credibilidade.

Traduzindo-se, em cada categoria, na promoção dos militares aos diferentes

postos, de acordo com as respectivas condições gerais e especiais, tendo em conta as

qualificações, a antiguidade e o mérito revelados no desempenho profissional e as

necessidades estruturais das Forças Armadas. Deve possibilitar uma permanência

significativa e funcionalmente eficaz nos diferentes postos que a constituem.

Page 104: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

99

No inerente aos direitos dos militares o EMFAR no seu artigo 25.º refere que “O

militar tem, nomeadamente, direito: A ascender na carreira, atentos os

condicionalismos previstos no presente Estatuto, e à progressão no posto, nos termos

do respectivo estatuto remuneratório”.

Temos assim, uma perspectiva de evolução horizontal e vertical que conforme

Baruch (2004a) as pessoas têm que evidenciar o seu melhor para uma progressão na

carreira. Na sociedade anteriormente vigente a promoção era um acto administrativo,

hoje é uma recompensa de desempenho.

Ao nível da Marinha, o documento estruturante da estratégia de topo, a Diretiva

de Política Naval de 2011 (DPN), define como prioridade para a gestão: a valorização

permanente dos recursos humanos, em especial ao nível da liderança, da formação

académica dos quadros superiores e da qualificação e certificação técnico-profissional,

promovendo um ensino de qualidade e reforçando a individualidade dos órgãos de

base com essa missão, para dispor de quadros mais bem preparados, elevar os níveis

de motivação e influenciando positivamente o recrutamento e a retenção; o

envolvimento dos escalões intermédios de chefia nos processos de tomada de decisão

utilização dos sistemas e das competências, para optimizar o emprego dos recursos

humanos e das respectivas competências, numa lógica de desconcentração criteriosa

dos processos, como factores contribuintes para uma carreira de sucesso numa

instituição que conhece o valor dos seus membros e defende o seu desenvolvimento e

reconhece a particularidade dos seus activos humanos.

No inerente à política de gestão de pessoal, nomeadamente, no relativo à

informação de carreira de todos os indivíduos, militares, militarizados e civis, que

prestam serviço na Marinha, o Despacho do vice-almirante superintendente dos

Serviços do Pessoal n.º 09/2006, de 19 de Abril, determina que tendo presente os

princípios estatutários da carreira militar e os gerais da gestão do pessoal cria o

Gabinete de Gestão de Carreiras, a que incumbe, particularmente, a promoção de

sessões de atendimento e aconselhamento do pessoal no âmbito do desenvolvimento

das respectivas carreiras. A acção deste Gabinete será proporcionar informação, com

o objectivo de os elementos da Marinha obterem, em tempo oportuno, um melhor

conhecimento acerca das respectivas carreiras, em termos de oportunidades

prováveis de desenvolvimento. Estas indicações devem, em regra, ser prestadas uma

vez em cada posto e/ou sempre que julgado conveniente.

Os militares que prestam serviço na Marinha têm, ainda, a capacidade de

aquando do processo inerente à sua Avaliação Individual, de acordo com o normativo

constante na Portaria n.º 502/95 de 26 de Maio, de opinar sobre a forma como

gostariam que fosse orientada a sua carreira, referindo a área funcional onde

Page 105: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

100

gostariam de desempenhar funções, tais como: Estado-Maior; Gestão de Pessoal;

Navios; Instrução; Autoridade Marítima; Manutenção/Reparação;

Abastecimento/Logística.

Na Directiva Sectorial de Recursos Humanos, que se assume como um

documento estruturante da estratégia da organização, considera-se a evolução de um

ambiente externo cada vez mais exigente e dos novos desafios emergentes nos

planos internos e externos, com incidência nos Recursos Humanos (RH) e na sua

gestão. Constituindo-se, esta diretiva, como um elemento central da definição do

desenvolvimento e da concretização da política de RH da Marinha, referenciando-se

que gestão dos RH, deve assumir-se como um referencial no domínio das Forças

Armadas e no universo da Administração Pública, refletindo elevadíssimos níveis de

comprometimento e satisfação, por parte dos militares e dos comandos, direcções e

chefias das unidades e organismos aos quais aqueles estão alocados, definindo,

ainda, que a GRH, na Marinha deve pautar-se por elevados padrões de qualidade e

por uma melhoria contínua, na conciliação e consecução, permanentes, dos requisitos

estratégicos da Instituição e das necessidades e dos objectivos individuais do seu

pessoal.

No contexto dos objetivos estratégicos sectoriais para a área funcional do

pessoal é identificada como prioridade: “Proporcionar ao pessoal da Marinha carreiras

equilibradas, atrativas e motivadoras. Tornando-se necessário desenvolver um

trabalho que responda a esta questão de forma organizada e metódica.

3. MÉTODO E TÉCNICAS DE RECOLHA E ANÁLISE DE DADOS

3.1. Método

O método a perseguir neste projecto é o estudo de caso, relevando-se nos

seguintes pontos, de acordo com a definição de Yin (2003) o estudo de caso baseia-se

nas características do fenómeno em estudo e num conjunto de características

associadas ao processo de recolha de dados e às estratégias de análise dos mesmos.

Foi neste conceito que baseamos o nosso estudo num princípio de parametrização da

informação que nos diagnosticasse de forma precisa a situação que carecia de

intervenção, para desenharmos, com os alicerces do quadro teórico de referência

evidenciado um projecto de intervenção capaz de debelar a necessidade patenteada.

3.2. População/Amostra

Para realização do presente estudo, e considerando a população de todos os

indivíduos que prestam serviço na Marinha (cerca de 12500), tomou-se como amostra

Page 106: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

101

o conjunto restrito de oficiais com o posto de primeiro-tenente (1TEN); capitão-tenente

(CTEN) e capitão-de-fragata (CFR), cuja carreira média expressa-se em cerca de

dezoito anos no conjunto dos três postos, com diversas progressões horizontais e

promoções verticais, sendo desse modo representativo da carreira organizacional em

estudo e cujas conclusões obtidas podem ser transportadas para outros postos e

categorias.

A amostra, em causa, foi constituída por 746 elementos, distribuídos por 279

1TEN, 254 CTEN e 213 CFR.

De acordo com as tabelas de Arkin e Colton (“Tables for Statisticians”), para

esta população finita (abaixo de 15000), assumindo uma margem de erro de 5% e um

intervalo de confiança de 95,5%, a amostra requerida fixa-se em 390, pelo que a de

746 indivíduos é adequada para o objectivo em causa.

Obtiveram-se 501 respostas (193 1TEN; 183 CTEN; 116 CFR; 9 NR),

representando 67,16% do universo. Dos respondentes, 21 elementos são do género

feminino e 448 do género masculino (32 NR). Encontram-se, igualmente,

representadas todas as classes de oficiais existentes na amostra. Relativamente ao

tempo de permanência nos quadros da Marinha, estamos perante indivíduos entre os

dez anos e os quarenta anos de serviço, com idades entre os 28 e os 61 anos, com

uma média de 40,06 anos (s.d. 6,628). As habilitações literárias evidenciadas

encontram-se num espectro abrangente do ensino básico (1) ao mestrado (25), com

maior frequência ao nível da licenciatura (347).

A amostra advém de diversas áreas funcionais da Marinha2, com maior

incidência nas áreas do Material (78), Pessoal (99) e Operacional (139).

3.3. Técnica de recolha de dados

3.3.1. Questionário

A base para o diagnóstico da situação vigente na Marinha ao nível da

dimensão da Gestão e Desenvolvimento de Carreiras, assenta num estudo efectuado

aos militares que prestavam serviço na organização e decorreu nos anos de

2008/2009, por aplicação de um questionário de satisfação, desenvolvido no âmbito do

projecto de Certificação do Sistema de Gestão de Recursos Humanos da Marinha de

acordo com a Norma Portuguesa (NP) 4427:20043, que estabelece na sua cláusula

2 Autoridade Marítima (47); Cultura (6); Estado-Maior (45); Financeira (28); Formação (1); Instituto

Hidrográfico (1); Material (78); Operacional (139); Pessoal (99); Tecnologias da Informação (38); Fora

da matriz interna da Marinha (1); NR (18). 3 O Sistema de Gestão de Recursos Humanos da Marinha (SGRHM), encontra-se certificado pela APCER

(Associação Portuguesa de Certificação) desde 31 de Agosto de 2009.

Page 107: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

102

normativa 8.1.2 - Satisfação interna, que “A organização deve medir, periodicamente,

o nível de satisfação interna, estabelecendo a metodologia e os instrumentos

adequados”.

Para esse fim foi elaborado um questionário, que medisse a satisfação interna

em várias dimensões, a partir da definição de satisfação de Locke (1976: 1304) “um

estado emocional positivo ou de prazer, resultante da avaliação do trabalho ou das

experiências proporcionadas pelo trabalho”. Podendo as facetas da satisfação serem

agrupadas de forma lógica, proporcionando uma compreensão das suas causas e

natureza, permitindo entender como e porquê certos eventos/agentes assumem um

carácter positivo ou negativo.

As questões foram elaboradas de forma que fossem claras e percebidas

correctamente pela população a inquirir e fossem ao encontro do que se pretendia

averiguar, tendo sido construída uma versão preliminar do Questionário. Esta versão

preliminar foi pré-testada, visando verificar as seguintes proposições: todas as

questões são compreendidas da mesma forma pelos inquiridos? As listas de respostas

abrangem todas as respostas possíveis? Há alguma questão que origina recusa na

resposta? A ordem das questões é aceitável? Qual a reacção dos inquiridos

relativamente à extensão do questionário e nível de dificuldade? Qual a duração do

tempo de resposta ao questionário? Da análise das sugestões apresentadas foi

elaborada a versão definitiva.

O questionário apresenta dez dimensões de observação, sendo que para o

presente projecto centramo-nos na correspondente ao desenvolvimento de carreira

que se consubstancia nos seguintes cinco itens:

I 1. As oportunidades para progressão na carreira;

I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira;

I 3. As possibilidades que tem de intervir na progressão de carreira;

I 4. A forma como tem progredido na carreira;

I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira.

Foi utilizada uma escala de Likert de quatro níveis (Nada Satisfeito; Pouco

Satisfeito; Satisfeito; Muito Satisfeito), existindo, ainda, a possibilidade de resposta de

não aplicável.

Em cada dimensão foi, ainda, solicitado aos respondentes que indicassem

algumas sugestões para que a Marinha pudesse melhorar a satisfação nesta área.

3.3.2. Entrevista à Gestão de Topo

De forma a aferir a aceitação da gestão de topo para acomodar a intervenção

que se preconizava, e cumulativamente recolher uma opinião, sobre esta matéria,

Page 108: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

103

abalizada pela experiência de algumas dezenas de anos de Marinha, em diversos

cargos de relevo, em unidades em terra e navios no mar, solicitou-se uma entrevista

situacional ao vice-almirante António José Bonifácio Lopes que desempenha,

actualmente, o cargo de superintendente dos Serviços do Pessoal, responsável

máximo pela esta área funcional na organização.

3.3.3. Análise Documental

Para um conhecimento mais adequado do normativo enquadrante deste

processo, na Marinha, procedeu-se a uma análise de todos os documentos

estruturantes desta matéria.

3.4. Técnica de tratamento de dados

Para o tratamento dos dados obtidos, no âmbito das questões fechadas

procedeu-se a uma análise estatística descritiva com recurso à ferramenta informática

SPSS4, para determinação das médias e desvio padrão dos itens em questão, e

índices de satisfação evidenciados.

Na decorrência do solicitado na questão aberta do questionário de satisfação

interna, no inerente aos itens relativos à Gestão e Desenvolvimento de carreira, no

sentido da melhoria contínua do sistema em concordância com as melhores práticas.

No inerente à entrevista à Gestão de Topo, procedeu-se a uma análise de conteúdo,

que permitiu enquadrar os aspectos mais relevantes que poderão ser objecto de uma

estratégia de intervenção que os diminua ou elimine.

Nesse sentido, procedeu-se de acordo com o método de inferições sequenciais

expresso por Bardin (2008), tendo-se agrupado os contributos obtidos por parâmetros

correlacionáveis com os itens associados às questões fechadas, modelando-se numa

desconstrução da unidade de análise inicial (frase) para um indicador de tema

(expressão ou palavra) que permitisse, por discriminação quantitativa, aferir áreas de

intervenção preferencial.

4 Statistical Package for the Social Sciences

Page 109: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

104

4. RESULTADOS

4.1. Questionário – Questões fechadas

Os resultados apurados no questionário são os abaixo explanados (Tabela 1),

relevando-se que numa escala de quatro níveis, se consideram positivos os valores

superiores a 2,5 de média, que correspondem a 50% de satisfação absoluta:

Tabela 1 - Resultados da dimensão satisfação com as promoções/carreira

Item Média Desvio Padrão

I 1. As oportunidades que lhe são oferecidas para progressão na

carreira 2,43 0,80

I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira 2,60 0,71

I 3. As possibilidades que tem para intervir na progressão na

carreira 2,09 0,75

I 4. A forma como tem progredido na carreira 2,72 0,82

I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira 2,39 0,86

No entanto, importa referir, que foi considerado, superiormente, avaliar como

valor mínimo aceitável um índice de satisfação - IS = (n.º de satisfeitos + n.º de muito

satisfeitos) / n.º de respondentes), adequado aos objetivos estratégicos da

organização, aquele que se apresentasse igual ou superior a 70%. Este nível de

ambição, que desloca a distribuição normal para a direita, intenta que a maioria dos

elementos se encontre numa faixa de satisfação superior.

Tabela 2 - Índice de Satisfação da Dimensão Satisfação com as promoções/carreira (em %)

Itens IS

I 1. As oportunidades que lhe são oferecidas para progressão na

carreira 50,6

I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira 62,4

I 3. As possibilidades que tem para intervir na progressão na

carreira 29,6

I 4. A forma como tem progredido na carreira 67,5

I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira 49,2

Page 110: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

105

Pela análise dos dados obtidos e presentes na Tabela 2, não se verificam

índices de satisfação superiores a 70% em relação aos itens analisados. Pelo que

todos são identificados como críticos e com potencial de análise e intervenção.

Os itens com mais baixo nível de satisfação - o item I 3., inerente à satisfação

para com “as possibilidades que tem para intervir na progressão na carreira” (29,6%),

deverá ser alvo de uma, mais aturada, análise.

Não se podendo, ainda, descurar como factores de análise, nesta dimensão, o

Item I 1. e I 5., que apresentam resultados inferiores a 60%.

Neste articulado, afere-se a necessidade de elaborar um projecto que eleve o

índice de satisfação nesta dimensão, o qual deverá incidir na possibilidade de as

pessoas intervirem de forma mais dilatada na sua progressão de carreira, utilizando o

mérito como factor de diferenciação e criando oportunidades de carreira

multidisciplinares e preditoras de sucesso, evidenciando-se que os indivíduos com

posto mais elevado na hierarquia (CFR) apresentam maiores índices de satisfação,

com excepção do I 4. – A forma como tem progredido na carreira.

4.2. Questionário – Questão Aberta

Da análise de conteúdo efectuada à questão aberta de sugestões para elevar o

nível de satisfação nesta dimensão, releva-se, em correlação com o parâmetro aferido

em cada item das questões I. 1 a I. 5, o seguinte (Tabela 3):

Tabela 3 - Análise de Conteúdo às Questões Abertas

Parâmetro Indicador (expressão ou palavra)

Oportunidades para

Promoção/Progressão

Não atendimento de pretensão de diversificar a carreira;

Comandos no mar, quem necessita de horas de navegação;

Diferença de carreiras;

Nivelar condições de progressão;

Classe, factor impeditivo;

Requisitos e

exigências

Carreiras planeadas no médio/longo prazo;

Requisitos não claramente identificados;

Divulgação dos critérios usados, e do peso relativo;

Divulgar as possibilidades de carreira;

Definir "Carreira”;

Regras transparentes, objectivas;

Comandos no mar a quem necessita de horas de navegação;

Homogeneizar os quadros;

Equilibrar os diversos quadros;

Estabilidade de regras;

Quadros alterados;

Aumentar o tempo de permanência nos postos, subindo os

vencimentos e incrementando a diferenciação para o mesmo

posto;

Page 111: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

106

Parâmetro Indicador (expressão ou palavra)

Possibilidade de

intervir

Intervenção na carreira casuística e fruto da oportunidade;

Carreiras discutidas com cada um;

Envolvidos os elementos;

Escolhas passar pelo próprio;

O próprio tem de ter capacidade de intervir;

Promoção/Progressão

na carreira

Uniformizar o acesso a cargos por nomeação, escolha;

Não à simples antiguidade na carreira.

Promoções por escolha todos os postos;

Progressão não por antiguidade;

Promoção para a função;

Promoções nos períodos de tempo previstos;

Classe, factor impeditivo de progressão na carreira;

Minimizar a discrepância promoções diferentes classes;

Clarificação das regras;

Atraso na progressão das carreiras;

Progressão na carreira mais célere;

Aumentar o tempo de permanência nos postos, subindo os

vencimentos e incrementando a diferenciação para o mesmo

posto;

Normalização nas promoções das classes;

A classificação da EN, não deveria perdurar para toda a vida;

Concorre a um lugar do posto acima;

Mérito demonstrado

Valorização do mérito relativo;

Mais importância ao desempenho de mérito;

Maior peso ao mérito relativo;

Mais aptos e capazes, acelerada a sua progressão;

Progressão por mérito;

Mérito sobrepor;

Mérito relativo não é usado;

Promover o mérito relativo;

O não mérito não é usualmente reprovado;

Considerando o desempenho individual dos militares;

Podemos, assim, apreciar um conjunto de factores contribuintes para o projecto

de intervenção, no sentido de incrementar o Índice de Satisfação nesta dimensão.

O modelo a estruturar deverá evidenciar as acções necessárias para responder

às questões levantadas.

4.3. Entrevista à Gestão de Topo

Da entrevista realizada à gestão de topo da Marinha, na pessoa do

superintendente dos Serviços do Pessoal, vice-almirante António José Bonifácio

Lopes, que consistiu num conjunto de 16 questões, podemos evidenciar alguns

factores que cimentam o diagnóstico preconizado pelos restantes instrumentos de

recolha de dados, assim como um levantamento indicadores de acção passíveis de

Page 112: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

107

implementação e suportados pelo vértice estratégico da organização, cujas grandes

áreas evidenciadas se consubstanciam no quadro seguinte (Tabela 4):

Tabela 4 - Análise de Conteúdo à Entrevista à Gestão de Topo

Parâmetro Indicador de acção

Oportunidades para

Promoção/Progressão

Incrementar o processo de comunicação sobre as oportunidades

de carreira, informando o individuo sobre as suas possibilidades,

num contexto de caracterização e posicionamento na sua

categoria e classe;

Potenciar a identidade organizacional, num princípio de

envolvimento individual.

Requisitos e

exigências

Desenvolver processos de comunicação, nomeadamente, no

referente ao planeamento perspectivado;

Alicerçar as melhores práticas de forma transparente e

cooperativa;

Elaborar um estudo que permita avaliar a ampliação do

actualmente implementado.

Possibilidade de

intervir

Estruturar um sistema de Aconselhamento e Acompanhamento

que permita uma orientação sistémica dos indivíduos, através da

criação de um Órgão de Acompanhamento e Aconselhamento de

Carreira (OAAC);

Instituir a figura do tutor de carreira;

Incrementar as acções de participação das pessoas, no processo

de carreira.

Parametrizar uma ferramenta informática para interacção

pessoa/organização;

Desenvolver estratégias de conciliação entre os interesses

pessoais e organizacionais, de forma a permitir pontos de

avaliação e, eventual, saída da organização.

Promoção/Progressão

na carreira

Estruturar carreiras diversificadas que permitam uma superior

empregabilidade, ao nível interno e externo;

Divulgar o exemplo como factor de motivação conjunta.

Mérito demonstrado

Avaliar as actuais regras de promoção e progressão, centradas na

meritocracia.

Perspectivar canais de promoção, progressão e desenvolvimento

de carreira que permitam valorizar o mérito.

Desta forma, aprecia-se um conjunto de acções que poderão ser

implementadas na organização em convergência com a questão base de

implementação de um modelo sistémico de gestão e desenvolvimento de carreiras

sustentadas e motivantes que permita um envolvimento de todos os meios humanos e

pondere uma definição de objectivos comuns e tendentes para um rumo único de

todos os intervenientes nesta acção. A convergência de interesses será o fator chave,

para um aumento do índice de satisfação percebido de modo a atingir valores

consentâneos com o nível de ambição desejado pela organização.

Page 113: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

108

5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Tendo-se concluído o levantamento dos dados definidores do diagnóstico

organizacional vigente, através dos índices de satisfação evidenciados, assim como as

hipóteses de intervenção patenteadas por recurso à questão aberta de sugestões,

para potenciação do índice de satisfação, torna-se necessário sistematizar um plano

de intervenção, consistente e enlevado de níveis de eficiência e eficácia, que permita

desenvolver as acções de intervenção de forma substantiva e contribuintes para o

propósito traçado, com base numa análise sistematizada e progressiva do

evidenciado.

Este processo encontra-se devidamente sustentado pelo vértice estratégico da

organização, conforme verificado através da Entrevista à Gestão de Topo, de onde se

infere um conjunto de acções passíveis de serem promovidas no sentido do objectivo

macro de obtenção de elevados padrões de satisfação, transversais a todas as

categorias dos militares da Marinha.

5.1. Áreas/Acções de Intervenção

Da análise de conteúdo, efectuada à questão aberta, das sugestões para

elevar o nível de satisfação nesta dimensão, releva-se abaixo exposto em interligação

com cada item das questões I. 1 a I. 5, permitindo um levantamento das hipotéticas

áreas de intervenção para inclusão no plano de implementação, que habilite como

referiram Greenhaus, Callanan e Godshalk (2010) uma gestão da carreira com um

conjunto de acções que passam por diversos estádios e que facilitam observar a

complexidade dos actos que concorrem para a carreira individual

Podemos, assim, considerar um conjunto de factores que deverão ser alvo do

projecto de intervenção, com o objectivo de incrementar o Índice de Satisfação nesta

dimensão. Num significado de desenvolvimento profissional e numa mobilidade interna

que proporcione uma ascensão hierárquica na organização (Hall, 2002).

O modelo de projecto de intervenção a delinear deve estruturar-se a partir das

acções evidenciadas que permitam responder, de forma consistente, às questões

levantadas. Esta tendência para a gestão de carreiras individualizada decorre em

vantagens para as organizações e para os sujeitos (Baruch, 2004b).

Da análise efectuada à entrevista à gestão de topo, infere-se um conjunto de

Acções de Intervenção, no âmbito do universo definido como Áreas, passíveis, de

Intervenção, susceptíveis de sustentação e patrocínio de implementação pelo vértice

estratégico da organização. Na forma de as organizações ajudarem os seus

Page 114: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

109

colaboradores a terem sucesso na carreira, é crucial considerar os seus desejos e

planos (Kuijpers, Schyns e Scheerens, 2006).

Nesta sequência, parametrizamos, através da evolução do diagnóstico

efectuado, um conjunto analítico e evolutivo com origem nos aspectos críticos

identificados, áreas de intervenção modeladas pelos respondentes ao Inquérito de

Satisfação e decorrentes acções derivantes para o desiderato em causa, em

convergência com a vontade estratégica da organização, vertida nos documentos

estruturantes da política de Recursos Humanos e demonstrada na entrevista à gestão

de topo.

Esta estrutura, de resposta, consubstancia-se no arrolado na Tabela 5:

Tabela 5 – Ações de Intervenção

Objetivando-se, nesta configuração, um aumento dos índices de satisfação

evidenciados, por recurso a um conjunto de acções que se consideram adequadas,

aceitáveis e exequíveis, para alcançar o nível de ambição patenteado para esta área.

Considerando que o entendimento da evolução e associadas necessidades e

implicações nos diferentes estágios da carreira pode contribuir para uma gestão mais

efectiva da carreira pelo indivíduo, ajudando, igualmente, as organizações a gerirem e

desenvolverem os seus meios humanos (Greenhaus, Callanan e Godshalk, 2010).

Page 115: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

110

Nestes termos e em conjunção com a estratégia organizacional observado,

permitirá desenvolver um plano de intervenção consonante e delineador de acções

que prossigam o objectivo traçado.

6. FORMA DE IMPLEMENTAÇÃO

6.1. Acções de Intervenção

Concluído o diagnóstico organizacional da matéria identificada e tendente

processo de sustentação por parte da gestão para o desenho de um mecanismo

sistémico que permita abranger na maior extensão exequível as questões identificadas

nesta dimensão da satisfação com as promoções e carreiras.

Desta forma, torna-se necessário projectar um conjunto de acções que

permitam contribuir para os objectivos organizacionais nesta matéria, conforme nos

propusemos efectuar com a feitura deste projecto no sentido de incrementar o índice

de satisfação colectivo nesta dimensão, patrocinando modernas práticas de Gestão de

Recursos Humanos tendo como linha de rumo as melhores práticas identificadas na

teoria como sendo as potenciadoras da satisfação e criadoras de motivos para que

todos os elementos que prestam serviço na instituição aumentem o seu compromisso

organizacional e se sintam envolvidos como parte de uma engrenagem em que todos

são peças basilares para um desenvolvimento sustentado e coerente na senda da

eficácia organizacional, sem descurar a optimização e a necessária, cada vez mais,

economia de meios num produto operacional constante.

O perspectivado tende a cobrir todos os parâmetros teóricos identificados –

Possibilidade de Intervir; Mérito Demonstrado; Oportunidades para

Promoção/Progressão; requisitos e exigências; Promoção/Progressão na carreira, sem

descurar o nível crítico de índice de satisfação evidenciado. Foram, igualmente, tidas

em conta as áreas de intervenção identificadas nas sugestões analisadas, assim como

as acções de intervenção sustentadas pela gestão de topo, sem envolvimento da

gestão num processo de mudança organizacional como este, o sucesso estará

sempre pendente.

Neste contexto, assume-se que o ora perspectivado poderá criar novas

condições e oportunidades, num envolvimento de todos os elementos, concebendo

capacidades de intervenção e comunicação que possibilitem uma conciliação de

interesses a todos os níveis e nos diversos patamares de decisão, num processo de

apoio à gestão enleante e motivante, onde todos tenham o seu papel.

Page 116: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

111

6.1.1. Órgão de Aconselhamento e Acompanhamento de Carreira

Numa sociedade concorrencial em que as instituições dependem dos seus

colaboradores numa simbiose de conciliação de interesses, a prática de Gestão de

Pessoas elevadas nas organizações onde, como se verificou na análise teórica,

afirmar às pessoas que são os responsáveis pelas sua carreira, pode ser mais fácil de

dizer do que de fazer. As pessoas precisam de suporte, e nem sempre têm o

conhecimento e a força mental para se dirigirem sem aconselhamento e orientação

(Baruch, 2004a).

Nessa envolvente e no sentido de alavancar os objectivos estratégicos

delineados num paradigma organizacional contemporâneo, preconiza-se como

contribuinte para o sucesso cooperativo a existência de um órgão específico, de

aconselhamento e acompanhamento de carreiras, que assegure os regimentos de

acompanhamento e aconselhamento sistémico da carreira, em pressuposto de

convergência dos interesses organizacionais, em soberania, e dos pessoais na maior

dimensão possível. Sem descurar a necessária proactividade que deve ser incentivada

a cada elemento como parte da sua gestão de carreira.

Neste envolvente, potencia-se o parâmetro de participação das pessoas, que

assim têm possibilidade de intervir directamente no processo, conhecendo a sua

realidade, oportunidades, requisitos e exigências traçadas.

6.1.2. Tutoria de Carreira

Conforme acima plasmado, o OAAC deve ser complementado, no âmbito das

responsabilidades atribuídas, pela figura do Tutor de Carreira.

Estes elementos deverão ser identificados num espectro restrito de militares

que pelo seu exemplo, factor primordial neste processo, como evidenciou o

superintendente dos Serviços do Pessoal na sua entrevista, atribuindo-lhe ponderação

relevante no seu próprio sucesso, podendo proceder como factores de motivação

conjunta, que possibilitem aos mais jovens um referencial de experiência e

competência, promotor de dinâmicas de carreira.

6.1.3. Portal Intranet (www.marinha.pt/carreiras)

A interacção institucional deve explorar todas as possibilidades existentes de

modo a que as decisões organizacionais assentem em informação precisa, actual e

correspondente, na maior sobreposição possível com o interesse evidenciado pelas

pessoas. A Marinha possui, há alguns anos, uma plataforma de comunicação interna

que permite veicular um conjunto de informação de forma célere e eficaz, assumindo

como público-alvo todos os elementos da organização – a Intranet. Esta ferramenta

Page 117: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

112

tem a capacidade de, igualmente, servir para recolher informação dos militares,

militarizados e civis que prestam serviço na Marinha, no sentido do individual para o

organizacional.

No contexto do actual plano, preconiza-se a criação e implementação de uma

ferramenta informática, na plataforma tecnológica da Intranet, avalizando uma eficaz

interacção entre as pessoas e a organização, de acordo com os adequados requisitos

de segurança da informação e baseado num princípio de confiança e probidade de

processos. Não descurando uma definição de conteúdos ajustada ao fim em causa e

em processo de fácil acção do utilizador.

As ferramentas informáticas e o recurso à internet pressupõem uma utilização

individual, sendo efectivos quando se realiza qual o conjunto de tópicos que podem

ser endereçados e que eficiência tem este método (Bowlsbey, 2003).

6.1.4. Programa “PARTICIPE”

Neste contexto, não é suficiente edificar mecanismos que possibilitem uma

interacção entre os actores deste processo. É determinante desenvolver instrumentos

de mobilização colectiva que possibilitem afectar graus de sucesso, contribuintes para

uma dinâmica constante que rentabilize o investimento da organização.

Nesse âmbito, estruturou-se uma campanha promocional para potenciação da

participação das pessoas na actividade organizacional, nomeadamente, nesta fase, na

aderência e sensibilização para a exploração das capacidades disponibilizadas na

página electrónica das carreiras (www.marinha.pt/carreiras), a qual assenta numa

visão inspiradora de envolvimento de todos os elementos, que se apelidou de

programa “PARTICIPE”.

6.1.5. Regras de promoção e progressão / selectividade e mérito

Conforme aferido no questionário de satisfação interna um dos itens com

menor índice de satisfação é o associado à questão da utilização do mérito relativo na

progressão de carreira (49,2%). Igualmente, nas respostas recolhidas pela questão

aberta de observa uma grande preocupação com a valorização do mérito nos

processos de promoção. Aquando da entrevista à gestão de topo, o superintendente

dos Serviços do Pessoal foi peremptório em sublinhar a carência perspectivar canais

de promoção, progressão e desenvolvimento de carreira, sendo premente revisitar as

actuais regras de promoção, designadamente em alguns dos postos intermédios, onde

a promoção não ocorre por escolha, assim como as inerentes à colocação,

nomeadamente, nos cargos de referência para a organização.

Page 118: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

113

Neste envolvimento, torna-se necessário criar um Grupo de Trabalho, que

revisite a estrutura mestra deste parâmetro (promoção e progressão), ponderando

uma apreciação que suceda numa proposta de alteração do vigente, em consonância

com os factores de sucesso pessoal e organizacional, atentos os seguintes preceitos:

6.1.6. Interligação de sistemas

Para um apoio à decisão, de cada elemento da organização, informado e

avisado torna-se fundamental que a informação esteja disponível a todos os níveis e

contribua para uma eficaz análise e assuma princípios de qualidade e transparência

considerando que, pessoas permanecem mais tempo nas firmas que apresentam boa

reputação, num princípio de identidade interna (Chun, 2005).

Os sistemas de informação arrogam na sociedade actual um papel

preponderante no exercício das organizações, assumindo-se como uma base de

trabalho contínua para o desenrolar da acção produzida.

Noutro ângulo, a actual difusão de sistemas, de forma desgarrada, não

habilitará a um consenso harmónico no obtido, podendo enviesar a análise e ulterior

decisão.

Neste enquadramento, considera-se fundamental que a organização explore os

seus sistemas num molde de interligação e consonância que potencie a firmeza no

modelo, perspective a confiança e apresente a celeridade adequada, sem descurar

como envolvente de fundo a indispensável característica de fiabilidade.

Por outro lado, as ferramentas tecnológicas devem ter presente uma

indispensável facilidade de operação, baseada no nível inferior dos utilizadores finais.

Presente o que precede, intentou-se como uma das acções de implementação,

neste campo de actuação, a interligação do existentes no âmbito do Sistema de

Gestão de Recursos Humanos da Marinha, preferencialmente, em plataforma única de

exploração directa e numa uniformização de processos e procedimentos.

De referir que, este objectivo encontra-se identificado, no âmbito do Ministério

Defesa Nacional, através do projecto do Sistema de Informação de Gestão (SIG-DN),

que inclui uma parte dedicada aos Recursos Humanos – Carreiras.

7. CONCLUSÕES

A questão de gestão e desenvolvimento de carreiras nas Forças Armadas é

algo que, desde que existem corpos militares, com carácter regular, tem sido encarado

como um desígnio enquadrante da promoção e progressão na sociedade castrense.

No entanto, na sociedade contemporânea onde a prestação do serviço militar

deixou de ser obrigatório, sendo agora o mercado de trabalho o universo de aquisição

Page 119: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

114

de elementos para as fileiras, fez com que esta matéria assumisse uma vertente

central no desenvolvimento da organização e na sua sustentação ao nível das

características e capacidades inerentes às pessoas como parte de um corpo

organizacional autoproduzido e auto-sustentado, onde o elemento humano é o factor

diferenciador da acção produzida, num ambiente em constante alteração e evolução.

Neste enquadramento, a Marinha identificou como premente uma intervenção

construtiva, que habilitasse a concepção e implementação de um sistema

generalizado e sistemático para o acompanhamento individualizado dos recursos

humanos, em consonância com o aconselhamento de percursos funcionais coerentes,

motivadores e com potencial de carreira.

O evidenciado permitiu referenciar uma organização baseada e estruturada

com base num normativo/legislação com alguma rigidez, mas com aptidão e vontade,

conforme demonstrado nos diversos documentos estruturantes e na entrevista à

gestão de topo, de acolher e patrocinar novos processos e modelos que provejam

assolar o problema em causa. Há espaço e empenho para uma intervenção de

adaptação à sociedade.

Nesta decorrência, reconheceu-se que o paradigma de carreira mudou, na

actual sociedade do conhecimento, as pessoas são parte activa do processo, num

princípio de auto-satisfação e motivação, onde os valores de envolvimento entre o

indivíduo e a organização mudaram e evoluíram para um compromisso biunívoco de

comprometimento e acompanhamento mútuo. As pessoas necessitam das

organizações para se realizarem e as organizações carecem dos indivíduos para

desenvolverem valor e alcançarem objectivos estratégicos sustentados.

A análise da realidade institucional revelou-nos que existem índices de

satisfação bastante positivos, mas com valores abaixo do nível de ambição

ambicionado, o que levou à necessidade de esquematizar um plano de intervenção,

alicerçado nos princípios teóricos patenteados e que correspondesse ao pretendido,

sem colapsar, mas em harmonia com a cultura e liderança organizacional

identificadas. Sabendo-se que só com o envolvimento do vértice estratégico pode ser

edificado um plano com capacidade, efectiva, de implementação, estando essa ideia,

sempre, presente na proposta elencada.

Se o nível de pretensão organizacional é elevado, o plano de implementação

têm que ser ambicioso de modo a alcançar os objectivos delineados, de forma

evolutiva e consonante com as sugestões enlevadas. No presente estudo tomou-se

esta questão como central e determinante, num futuro participado e cooperativo,

potenciado em elevados índices de satisfação e compromisso organizacional.

Page 120: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

115

Neste domínio, elaborou-se um plano de implementação, que derivasse do

evidenciado na recolha de dados efectuada. As hipóteses de intervenção estruturadas

derivaram do apresentado na questão fechada de sugestões para melhorar o índice de

satisfação numa plataforma de acção convergente e demonstrada, obtendo-se desta

forma uma conjectura de trajecto. Através da entrevista à gestão de topo, cimentou-se

o anteriormente obtido e identificaram-se as acções de intervenção passíveis de

sustentação e adopção pela organização.

Este exercício levou-nos a um conjunto de seis acções de intervenção base,

contribuintes para os aspectos subsequentes à meta considerada: uma acepção da

transparência e compreensão das regras e requisitos; elevar as oportunidades,

incrementar a possibilidade de intervir, acentuar o mérito como base selectiva da

promoção e progressão esperada, numa dimensão de acompanhamento e

aconselhamento autêntico e perspicaz, onde o exemplo seja tomado como padrão e a

participação, individual e grupal, seja o princípio geral orientador, numa plataforma de

interligação de sistemas e práticas e incremento da comunicação organizacional

ascendente e descendente.

O planeado segue o estruturado nas melhores práticas referidas na sociedade

civil e militar. Desta maneira espera-se contribuir para um incremento da qualidade do

sistema e facilitar os propósitos de satisfação, comprometimento e motivação de todos

os elementos.

O delineado pressupôs, ainda, um conjunto de acções que permitissem compor

um plano, onde o sujeito seja a pessoa e assuma o centro do acto, este plano tende a

estar em consonância com o modelo Baruch e Peiperl (2000) que sobressaiu num

conjunto de práticas de gestão de carreiras num modelo bidimensional, que

correlaciona a sofisticação das mesmas com o envolvimento dos indivíduos. Numa

conciliação de interesses individuais e organizacionais, onde o objecto trabalho-

família, não pode ser descurado, como não tem vindo a ser na Marinha, na maior

extensão possível.

A exploração das capacidades estruturais e tecnológicas existentes, por

recurso, nomeadamente à plataforma intranet disponível, esteve sempre presente no

arquitectar do plano.

Espera-se que esta acção potencie o envolvimento da área funcional do

pessoal com as diferentes direcções, comandos e chefias, num programa participado

e cooperativo, centrado numa intervenção conjunta e destinado a todos, num intento

de corpo unívoco, onde os diferentes órgãos só se vivenciam com a contribuição de

todas as suas células - homens e mulheres.

Page 121: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

116

Perspectivando-se que o ora idealizado seja acolhido pela organização como

resposta ao problema identificado e concorra para um eminente nível de satisfação,

onde a presença no local de trabalho seja um factor de agrado e envolvimento com a

organização, numa perspectiva de carreira com intuitos e recompensas.

Estando o processo desenvolvido de forma una, inevitavelmente, existirá uma

forte relação entre as dimensões, que importa aferir e ponderar. A focalização apenas

numa das dimensões poderá não coincidir com os resultados, eventualmente,

evidenciados numa análise substantiva de todas as dimensões em presença. Em

consonância, enlevar cada dimensão num estudo singular será benéfico para um

conhecimento preciso da realidade existente e habilitar a parametrização de planos de

intervenção que relevem cada dimensão e facultem uma evolução sustentada, caso se

verifique a necessidade, a fim de alavancar os índices de satisfação para os

ambicionados pela gestão superior da Marinha.

Por outro prisma, uma das limitações evidenciadas, centra-se na escassez de

hábitos de participação activa dos elementos que prestam serviço na Marinha,

evidenciado no reduzido número de respostas à questão aberta de sugestões para

uma melhoria na dimensão “carreiras”. Esta acepção decorrerá da imagem, que ainda

perdura, de as Forças Armadas serem uma organização de princípios e hierarquia

rígida e não convivente com a participação de todos os indivíduos em todos os níveis.

Esta representação mental tem que ser debelada de modo a permitir um envolvimento

de todos perante a organização e da organização para com todos.

Algumas das acções de intervenção supracitadas, concorrerão para este

objectivo, mas não se esgotam em si, é necessário ao longo de toda a estrutura

organizacional continuar a erguer métodos e processos de participação cooperativa e

trabalho colaborativo. Só nestes moldes poderão as organizações enfrentar um futuro

incerto e de mutação constante.

Esta matéria, do envolvimento das pessoas, poderá ser alvo de futuros

projectos que permitam evidenciar programas e práticas potenciadores e

determinantes de uma participação mais activa de todos em conceito de envolvimento

estrutural e grupal.

Releve-se, que a convicção interiorizada arroga que o ora apresentado

contribuirá para um incremento dos índices de satisfação, com custos de investimento

limitados. Por reorganização dos recursos existentes, num princípio de optimização e

perspectivação de eficiência e eficácia, onde a economia resultante da edificação do

plano, colmatará o investimento, sem necessidade de alocação de novos recursos

subsidiários.

Page 122: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

117

Neste domínio, embora se possa afirmar que o facto dos custos, da operação,

não se encontrarem contabilizados poderá ser objectivada como uma limitação do

produzido, aquilata-se que esta opção poderá evidenciar o núcleo do perspectivado na

extensão inerente às alterações prescritas para as práticas de gestão de recursos

humanos, em detrimento dos custos financeiros daí decorrentes, sem perda de uma

focalização precisa nos objectivos estratégicos a alcançar na organização.

Uma organização optimizada, eficiente e eficaz, pressupõe elementos

envolvidos e prontos para desempenharem a sua missão com sucesso e desejarem

estar, sempre, presentes como actores de um desenvolvimento sustentado e

participado.

BIBLIOGRAFIA

Arthur, M. B., D. T. Hall, e B. S. Lawrence (1989), Generating New Directions in Career

Theory: The Case for a Transdisciplinary Approach, in M.B. Arthur, D.T. Hall e

B.S. Lawrence (Ed.), Handbook of Career Theory, Cambridge: Cambridge

University Press, 7–25.

Arthur, M. B., S. N. Khapova, e C. P. M. Wilderom (2005), Career success in a

boundaryless career world, Journal of Organizational Behavior 26, 177-202.

Bardin, L. (2008), Análise de Conteúdo, Lisboa, Edições 70.

Baruch, Y. (2004a), Managing Career: Theory and Practice. Harlow: FT-Prentice

Hall/Pearson.

Baruch, Y. (2004b), Transforming Careers: from linear to multidirectional career paths.

Organizational and individual perspectives, Career Development International 9

(1), 58-73.

Baruch, Y. (2006), Career development in organizations and beyond: Balancing

traditional and contemporary viewpoints, Human Management Review 16, 125-

138.

Baruch, Y. e M. Peiperl (2000), Career Management Practices: an empirical survey

and implications, Human Resource Management 39(4), 347-366.

Brousseau, K. R., M. J. Driver, K. Eneroth e R. Larsson (1996), Careers

Pandemonium: realigning organizations and individuals, Academy of

Management Executive 10(1), 52-66.

Brown, D. (2002), The role of work and cultural value in occupational choice,

satisfaction, and success: a theoretical statement, Journal of Counseling and

Development 80, 48-56.

Chun, R (2005), Corporate Reputation: Meaning and Measurement, International

Journal of Management Reviews 7 (2), 91-109.

Page 123: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

118

Decreto-Lei n.º 236/99, de 25 de Junho, com as alterações e rectificações introduzidas

até ao Decreto-Lei n.º 59/2009, de 04 de Março, (EMFAR - Estatutos dos

Militares das Forças Armadas). DR I-A Série 146 (25-06-99) 3792-3843.

Drucker, P. (2005), Managing Oneself, Harvard Business Review January, 100-109.

Eby, L. T. (1997), Alternative Forms of Mentoring in Changing Organizational

Environments: A Conceptual Extension of a Mentoring Literature, Journal of

Vocational Behavior 51, 125-144.

Godshalk, V. M. e J. Sosik (2003), Aiming for career success: The role of learning goal

orientation in mentoring relationships, Journal of Vocational Behavior 63, 417-

437.

Greenhaus, J. H. (2008), Innovations in the study of the work–family interface:

Introduction to the Special Section, Journal of Occupational and Organizational

Psychology 81, 343–348.

Greenhaus, J. H., G. A. Callanan, e V. M. Godshalk (2010), Career Management. 4th

Edition. SAGE Publications, Inc.

Gunz, H. e M. Peiperl (2007), Handbook of Career Studies. SAGE Publications, Inc.

Gunz, H. P. e P. A. Heslin (2005), Reconceptualizing career success, Journal of

Organizational Behavior 26, 105–111.

Hall, D. T. (1996), Protean Careers of the 21st Century, Academy of Management

Executive 10(4), 8-16.

Hall, D. T. (2002), Careers in and out organizations. Thousand Oaks, Ca: Sage.

Hall, D. T. (2004), The protean career: A quarter-century journey, Journal of Vocational

Behavior 65, 1-13.

Harris-Bowlsbey, J. (2003), A Rich Past and a Future Vision, The Career Development

Quarterly 52, 18-25.

Heslin, P. A. (2003), Self- and other criteria of career success, Journal of Career

Assessment 11, 262-286.

Heslin, P. A. (2005), Conceptualizing and evaluating career success, Journal of

Organizational Behavior 26, 113–136.

Higgins, M. C. (2001), Changing careers: the effects of social context, Journal of

Organizational Behavior 22, 595-618.

King, Z. (2004), Career self-management: Its nature, causes and consequences,

Journal of Vocational Behavior 65, 112-133.

Kuijpers, M. A. C. T., B. Schyns, e J. Scheerens (2006), Career Competencies for

Career Success, Career development Quarterly 55, 168-178.

Law, B., F. Meijers e G. Wijers (2002), New perspectives on career and identity in

contemporary world, British Journal of Guidance and Counselling 30, 431-449.

Page 124: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

119

Lei Orgânica n.º 1-A/2009 de 7 de Julho (Lei Orgânica de Bases da Organização das

Forças Armadas). D. R. I Série, 129, Suplemento (07-07-09) 4344-(2) a 4344-

(9).

Locke, E. A. (1976), The nature and causes of job satisfaction. In M. D. Dunette (Ed.),

Handbook of industrial and organizational psychology. Chicago: RandMcNally,

1297-1349.

Marinha (2006), Despacho do VALM Superintendente dos Serviços do Pessoal, nº

9/2006, 19 ABR - Politica de Gestão de Pessoal. Informação de Carreira do

Pessoal Militar, Militarizado do QPMM e civis do QPCM.

Marinha (2007), Despacho do Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada, n.º 16/07,

de 9 de Abril – Nomeação e Colocação. Regras.

Marinha (2009), Directiva Sectorial de Recursos Humanos.

Marinha (2011), Directiva de Política Naval.

Marinha (2011), Directiva Sectorial de Recursos Humanos.

Martins, L. L., K. A. Eddleston e J. F. Veiga (2002), Moderators of the relationship

between work-family conflict and career satisfaction, Academy of Management

Journal 45(2), 399-409.

Meyer, J. P. e N. J. Allen (1991), A Three-Component Conceptualization of

Organizational Commitment, Human Resource Management Review, 1(1), 61-

89.

Ministério da Defesa Nacional (2007), Grupo de Trabalho para a Reestruturação das

carreiras dos Militares das Forças Armadas – Relatório Final, Lisboa.

Mintzberg, H. (1993), Structure in fives. Design Effective Organizations, Englewood

Cliffs, NJ, Prentice Hall.

Moreira, P. S. (2006), Gestão de Pessoas em Portugal – tendências, qualificações e

formação. Lisboa: IQF.

Ng, T. W. H., L. T. Eby, K. L. Sorensen e D. C. Feldman (2005), Predictors of objective

and subjective career success: a meta-analysis, Personnel Psychology 58, 367-

408.

Oliveira, U. J. (2009), Institucionalização de um sistema de acompanhamento e

aconselhamento permanente das carreiras militares, com previsão de pontos

de aferição e eventual saída da organização, Lisboa, IESM, CPOG-TII.

Página oficial da Marinha na internet (www.marinha.pt), acedida em diversas datas no

período de Março a Junho de 2011.

Peluchette, J. V. E. e S. Jeanquart (2000), Professionals´ Use of Different Mentor

Sources at Various Career Stages: Implications for Career Success, The

Journal of Social Psychology 140(5), 549-564.

Page 125: Boletim 3 - Exército

Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa

120

Portaria n.º 502/95, de 26 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º

1380/2002, de 23 de Outubro, (RAM – Regulamento de Avaliação do Mérito

dos Militares da Marinha). D. R. I Série-B 122 (26-05-95) 3331-3342.

Savickas, M. L. (2002), Reinvigorating the Study of Careers, Journal of Vocational

Behavior 61, 381-385.

Savickas, M. L., L. Nota, J. Rossier, J. P. Dauwalder, M. E. Duarte, J. Guichard, S.

Soresi, R. V. Esbroeck, A. E. M. V. Vianen (2009), Life Design: A paradigm for

career construction in 21st century, Journal of Vocational Behavior 75, 239-250.

Seibert, S. E. e M. L. Kraimer (2001), The five-factor model of personality and career

success, Journal of Vocational Behavior 58, 1-21.

Seibert, S. E., J. M. Crant e M. L. Kraimer (1999), Proactive personality and career

success, Journal of Applied Psychology 84, 416-427.

Seibert, S. E., M. L. Kraimer e J. M. Crant (2001), What proactive people do? A

longitudinal model linking proactive personality and career success, Personnel

Psychology 54(4), 845-874.

Singh, R. e J. H. Greenhaus (2004), The relation between career decision-making

strategies and person-job fit: A study of job changers, Journal of Vocational

Behavior 64, 198-221.

Sullivan, S. E. (1999), The changing nature of careers: A review and research agenda,

Journal of Management 25, 457-484.

Tams, S. e M. B. Arthur (2010), New directions for boundaryless careers: agency and

interdependence in a changing world, Journal of Organizational Behavior 31,

629-646.

Vos, A. D. e N. Soens (2008), Protean attitude and career success: The mediating role

of self-management, Journal of Vocational Behavior 73, 449-456.

Yin, R. (2003), Case Study Research: Design and Methods (3ª Ed), Thousand Oaks,

CA: SAGE Publications.

Page 126: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º3 – 2012

PP. 121 a 141

121

Porque os homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?

Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

Thiago Perez Bernardes de Moraes*

RESUMO

A violência é uma constante em todas as diversas sociedades, em maior ou menor medida. Entretanto, em todas elas, os homens apresentam maior comportamento agressivo do que as mulheres. Nesse sentido, há evidencias de que essa realidade tenha correlação com o passado evolutivo de nossa espécie. Assim esse trabalho atua com duas hipóteses explicativas para tal disparidade. Uma diz respeito à divisão sexual do trabalho e outra a seleção sexual, no que diz respeito ao ônus parental e a seletividade das fêmeas. Ambas parecem ter exercido pressões no sentido de compor tendências psicológicas agressivas. Palavras Chave – Violência masculina, antropologia evolucionaria, seleção natural, seleção sexual.

ABSTRACT

Violence is something that several societies carry among its cultures as a common characteristic, some in larger ways, and some in smaller measures. However, in all of them, men show a more aggressive behavior than women. In that way, there are evidences, that this reality has a correlation with the evolutionary past from our specie. So, this studies, acts with two explanatory hypotheses for this case. One concern to the labor sexual division; the other to the sexual selection in the parental charge and the selectivity of the females. Both seem to have exercised pressures in a way of composing psychological aggressive tendencies.

Key-words: Male violence, evolutionary anthropology, natural selection, sexual selection.

1 – INTRODUÇÃO

A violência na sociedade contemporânea é um dos mais graves problemas

sociais, atingindo em maior ou menor medida todas as sociedades e todos os estratos

sociais. Apesar de alguns autores apontarem para uma relativa diminuição da

violência ao longo dos últimos séculos é inegável que a violência ainda espanta, não

só pelo volume, mas também em muitos casos, pelos requintes de crueldade.

Um dado interessante é que, ao que tudo indica, os homens estão muito mais

inclinados, do que as mulheres, ao comportamento agressivo. Essa propensão é

visível numericamente quando analisamos os dados demográficos dos cárceres do

mundo todo. Segundo dados das Nações Unidas de 2002, dos 8.570.051 presos

recentes, apenas 4,4% são mulheres enquanto uma esmagadora maioria de 95,6%

são homens. Apesar da variação cultural, essa proporção desigual entre homens e

mulheres em cárcere se reflete em todo mundo. Nesse sentido, as ciências sociais

* O autor é cientista político, e doutorando em psicologia social pela Universidade Argentina John Kennedy.

Page 127: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

122

não tem dado uma grande inteligibilidade para essas singularidades entre gênero e

comportamento feminino. No limite, as ciências sociais tradicionalmente se aportam

num determinismo cultural onde a estrutura social molda o comportamento dos

diferentes indivíduos. Mas nesse caso as ciências sociais geralmente não explicam de

onde surgem as estruturas sociais, e nem por que homens e mulheres recebem de

maneira distinta tais influências estruturantes.

Nesse sentido, esse artigo caminha no rumo de uma antropologia

evolucionária, onde o comportamento dos diferentes sexos varia por conta das

disposições psicológicas distintas, que foram construídas em resposta a problemas

adaptativos distintos. Trabalhamos com duas hipóteses explicativas para elucidar a

diferença entre os sexos, para a prática do comportamento violento. A primeira é de

que a divisão sexual do trabalho, no passado evolutivo humano, gerou adaptações

físicas e psicológicas distintas em homens e mulheres. A segunda hipótese diz

respeito à seleção sexual, nesse caso, como o cuidado parental gera um ônus muito

maior a mulher, do que ao homem, esta tende a ser sexualmente mais seletiva. Nesse

caso, os homens desenvolveram estratégias para competir pelas mulheres, para

indicar aptidão e também para afastar possíveis rivais.

Esse artigo se divide em cinco partes. Na segunda parte desse trabalho,

abordamos algumas deficiências das ciências sociais e introduzimos o debate sobre

teoria evolucionária em antropologia. Na terceira parte realizamos uma breve

abordagem teórica sobre comportamento agressivo. Na quarta parte discorremos

sobre a disparidade entre homens e mulheres no que diz respeito o comportamento

agressivo, e também trabalhamos com nossas hipóteses explicativas. Na última parte

do trabalho fazemos algumas considerações finais.

2 - A LIMITAÇÃO DA ANTROPOLOGIA E DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Cultura é por tradição a basilar central da antropologia. Entretanto a

antropologia tem adotado uma abordagem onde questões sobre a universalidade da

cultura, ou por que elas apresentam uma grande variedade não se tornam inteligíveis,

sobretudo no que diz respeito às causas proximais dos indivíduos. Os antropólogos

(assim como a maior parte dos cientistas sociais, infelizmente), tem feito uso do

determinismo infra estrutural, nesse sentido, o materialismo cultural tende a exagerar

quanto o peso de variáveis como estrutura social, meio ambiente, condições

ecológicas. É inegável que essas variáveis oferecem um bom ponto de partida,

entretanto a antropologia tem feito deles um fim em si mesmo, a revelia de outras

explicações, como a biológica. A antropologia pode nesse sentido, por exemplo,

Page 128: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

123

explicar o porquê algumas pessoas em determinadas culturas comem carne e vaca, e

em outra apenas de porco, entretanto, ela não consegue explicar o porquê a carne é

consumida em praticamente todas as culturas (Kanazawa, 2006).

Há três mitos filosóficos plantados nas cátedras de séculos atrás que ainda

permeiam as ciências sociais, a psicologia, e outras ciências pautadas no estudo do

comportamento humano, como a economia. O primeiro é o de Descartes, do fantasma

na mente; o segundo é o plantado por Locke, o da távola rasa e o terceiro foi

promulgado por Rousseau, o bom selvagem. O primeiro mito postula que no interior de

cada individuo há uma entidade metafisica que direciona o sujeito para a capacidade

de viver e interagir com o mundo. Dito de outra forma, a filosofia de Descartes propõe

que dentro de cada cérebro, hás uma alma, e essa sempre é capaz de tomar decisões

acertadas. Foge do escopo dessa discussão espraiar todas as arestas dessa

discussão mas a neurobiologia, assim como a genética comportamental, a

antropologia, a primatologia, e outras ciências cognitivas já postularam que o cérebro

é um instrumento adaptado para resolução de problemas específicos e que sua

estrutura guarda uma relação simbiótica com o nível comportamental (Pinker, 2004).

O segundo mito, levantado por John Locke, entende que o homem é fruto de

suas experiências. Ou seja, todo seu comportamento, gostos, vontades, enfim, todos

os processos psicológicos que colocam todas as ações em curso são advindos das

impressões posterizadas pelo ambiente. É indubitável o poder de influencia que o

meio exerce sobre nós humanos, as diferenças culturais tendem ora a incentivar, ora a

reprimir nossos gostos e anseios. Entretanto, a psicologia evolucionaria ancorada nas

demais ciências cognitivas vêm postulando que o cérebro já tem em si um

background, pois o mesmo é nada mais que a síntese de muitos cérebros que em

escala evolutiva se adaptaram para melhor se adaptar frente a problemas seletivos

(Pinker, 2004).

O terceiro mito, foi promulgado por Rousseau, segundo ele todos os homens

são bons por natureza, entretanto, é o meio sombrio e infértil quanto à bondade que

degrada a essência humana. Ele propunha, em parte baseado na noção de távola

rasa, que a criança no desenvolvimento de seus sentidos devia ser privada do contato

social afim de não ter suas qualidades comportamentais degradadas. Novamente,

podemos concordar que o meio tem efeitos expressáveis sobre o comportamento e a

personalidade; entretanto, é duvidoso que o romântico bom selvagem da literatura de

Rousseau realmente tenha existido. Como já mencionado, somos influenciados por

uma serie de variáveis, boa parte delas são biológicas e ligadas aos problemas

adaptativos. No modus operandi promovido pela ética evolucionaria a logica biológica

criou padrões totalmente antagônicos aos promulgados conceitualmente na leitura do

Page 129: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

124

bom selvagem. A violência aqui é um paradoxo interessante, pois comumente

explicações advindas das ciências sociais colocam esta como um fruto do meio, uma

degradação do bom selvagem. Isso por que os intelectuais tendem a ignorar os

ditames evolucionistas. É indubitável que a violência seja um problema de ordem

social, e representa um grande problema politico, mas não podemos esquecer que ela

se manifesta e advêm de vias psicologias e biológicas. A violência, antes de ser

somente um fruto da logica social, decorre de razoes evolutivas, onde no limite, ela foi

útil no contexto evolutivo (Pinker, 2004).

Todas essas noções, somadas as noções advindas dos preceitos religiosos,

em maior ou menor medida permeiam toda a sociedade. Esses modelos teóricos

levam a crer que o individuo não tem características inatas, propensões, e que todos

os indivíduos tendem a serem iguais. Para além dessas afirmações, Steven Pinker

realiza algumas postulações, com base no resultado de suas pesquisas, referente às

bases biológicas do comportamento humano. A primeira é a de que todas as

características comportamentais humanas são essencialmente hereditárias, em todas

as circunstancias. A segunda lei se ancora na primeira, e diz que o fato de ser criado

em uma mesma família tem uma influencia menor do que a advinda do efeito genético.

A terceira lei é a de que uma parte significativa das variações comportamentais

complexas entre humanos não pode ser entendida nem pelo efeito genético, nem pelo

efeito socializante.

O estruturalismo assim como a analise de redes sociais e também a teoria de

redes de troca, são perspectivas dominantes nas ciências sociais1, e também na

antropologia. Essas teorias explicam como se formam os laços sociais (ou a ausência

desses), em um ambiente onde o comportamento individual é emoldurado por

variáveis exógenas. Essas teorias tem tido relativo sucesso em explicar o

comportamento como fruto da estrutura social, entretanto, essas teorias não avançam

em igual medida no sentido de esclarecer de onde surgem as estruturas sociais

(Kanazawa, 2001, 2005).

Apesar de o estruturalismo representar um sucesso acadêmico empírico, ele é

dotado de uma serie de falhas teóricas. Primeiro, ele assume que o comportamento é

moldado pela estrutura social, entretanto, ele não explica de onde vem à estrutura

social e também não avança no sentido de determinar quais são as causas

psicológicas do sujeito para que ele se deixe moldar pelo meio social. Nesse sentido, o

1 Como na sociologia de Parsons. Nela, as ações são conjuntos de estruturas pelas quais os seres humanos formam

suas preferencias e intenções e que, com maior ou menor êxito conseguem concretizar suas intenções, nesse caso é afirmar que ações humanas são ações culturais, pois são balizadas pelos valores advindos dos sistemas simbólicos, onde são formadas as intenções (Parsons, 1968, p.5-9). Nesse caso, ação, não pode ser entendida como um reflexo de resposta ad hoc em relação a algum estimulo, mas sim como um agente, ativo na formação de interesses e expectativas. Nesse sentido, o eixo da teoria da ação é o cidadão individual, nesse caso aqui entendido como ator, e sua ação e relação para com seus pares, os outros atores (Parsons, 1968, p40-2).

Page 130: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

125

estruturalismo trabalha com algumas suposições, muito pobres, onde ele assume

algumas tendências sociopsicologicas dos indivíduos, mas não explica o porquê

destas inclinações. Outro problema é que o estruturalismo não atribui características

sociais ou psicológicas individualmente aos humanos, ignorando as diferencias

biopsicossociais entre os homens onde em um limite eles são teoricamente tratados

como “estruturalmente equivalentes”. Nesse caso os intervenientes são tratados como

equivalentes e intercambiáveis dentro de um modelo de rede social, nesse caso, os

atores tendem a se comportar todos de maneira parecida. Mesmo as estruturas sendo

as principais razões causais do estruturalismo, esta, e as preferencias (como as do

individualismo metodológico da escolha racional) são deixadas como variáveis

exógenas (Kanazawa, 2001, 2004).

No mesmo sentido o estruturalismo não faz distinção entre os indivíduos, nesse

caso não importa sexo, idade, etnia. Assim como ele também não leva em conta as

variáveis sociodemograficas, como a própria linguagem. Aqui devemos lembrar que

para muito além das esforças estruturantes, as diferenças inerentes entre os atores

influenciam o comportamento dos mesmos, nesse caso, mesmo os indivíduos sendo

“estruturalmente equivalentes” segundo a teoria, eles tendem a desenvolver

comportamentos diferentes (ex: homens e mulheres convivem na mesma estrutura e

desenvolvem gostos e comportamentos distintos) (Browne, 1998; Miller, 2000;

Kanazawa, 2001).

Há pelo menos quatro pontos críticos que devemos nos ater em relação à

condução de experimentos comportamentais contemporâneos. Primeiro, a rotulagem

“aprendido” não é mais satisfatória que a rotulagem “evoluída”, nesse sentido há de se

considerar que o ambiente fornece um input causal que influencia o organismo, de

alguma forma. Em segundo lugar, essas duas rotulagens não devem ser postas em

competição, vide que a aprendizagem exige componentes psicológicos evoluídos sem

os quais não poderia ocorrer. O terceiro ponto, os mecanismos de aprendizagem são

mais complexos qualitativamente e mais numerosos quantitativamente do que a

psicologia tradicional faz parecer ser, para muito além das teorias como a do

condicionamento operante clássico, há de se considerar o design especializado dos

domínios gerais cognitivos. Por fim, para além da simples ideia de socialização como

único vetor do comportamento, num cenário de tabula rasa, a psicologia evolucionaria

vem sinalizando que o desenvolvimento dos mecanismos de aprendizagem fora uma

resposta evolutiva aos distintos dilemas adaptativos (Confer et al., 2010; Mace, 1996ª;

Mithen, 1998).

Page 131: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

126

2.1 POR UMA ANTROPOLOGIA EVOLUCIONARIA

A antropologia evolucionaria é um ficheiro interdisciplinar que tem como

principal foco a evolução fisiológica e comportamental do homem. Nesse sentido, ela

não se concentra apenas no estudo do homo sapiens, mas também em outros

primatas não humanos. Ela por excelência é uma convergência entre as ciências

naturais e sociais e por isso recebe contribuições de diversos campos como a

genética, a neurociência cognitiva, a primatologia, a etologia, a paleontologia, a

arqueologia, a psicologia social e outras.

Pode se dizer que a teoria evolucionaria evolutiva é uma disciplina emergente

interessada, sobretudo em entender como os mecanismos psicológicos e as

estratégias comportamentais evoluíram frente aos problemas adaptativos que nossa

espécie enfrente a milhões de anos. A teoria evolutiva vem trazer para a teoria da

personalidade um novo fôlego se ancorando na natureza humana (e nas causas

proximais2) entendendo que os seres humanos, assim como os demais seres vivos,

certamente, não estão e nunca estiveram longe das forças organizadoras da seleção

natural (Buss, 1991, p.459-460).

A teoria evolucionista introduz duas grandes generalizações nas ciências

sociais. A primeira é a de que o homo sapiens não tem nada de especial em relação

às outras espécies biológicas. Humanos são únicos, entretanto, não são os únicos.

Cada espécie evoluiu de maneira singular, no intuito de resolver os desafios

ambientais. Os seres humanos são como os outros animais, e estão sujeitos a todas

as leis da natureza, em especial estão dependentes da dinâmica própria da seleção

natural e sexual. A segunda grande generalização é em relação a nosso cérebro3 e

nossas capacidades cognitivas. Em perspectiva evolutiva, nosso cérebro nada mais é

do que um substrato das forças e pressões evolutivas, um órgão, que assim como

qualquer outro, evoluiu por milhões de anos, até o período Pleiostoceno na savana

africana, onde os serres humanos viveram a maior parte da historia evolutiva. Nesse

ponto, entendemos que o cérebro humano, assim como o dos outros organismos é

dotado de capacidades, mas também de limitações. No caso de humanos, parece

claro que temos dificuldades cognitivas de exercermos funções que não exercíamos

no período Pleistoceno (Kanazawa, 2001, 2004, 2005).

2 Definimos causa proximal como o conjunto de fatores ligados ao background do funcionamento biológico dos

organismos, incluindo, por exemplo, as vias metabólicas, fisiológicas e comportamentos a nível molecular, celular, e também populacional. Como causa final em outro ponto entendemos os fatores evolutivos responsáveis pela origem ou proposito de um sistema biológico (Hickman, Robert & Larson, 2004, p797). 3 Em seu modelo de estruturação de mente, Mithen propõe que nossos ancestrais, primeiro acumularam conhecimento

comum através de uma inteligência genérica e a posteriori desenvolveram módulos mentais que o permitiram obter mais conhecimentos. Mithen divide em três as principais capacidades humanas que propiciaram o desenvolvimento social: 1)a de ter conhecimento natural, 2)a de conseguir fabricar instrumentos, e 3)a de produzir artefatos culturais e a capacidade de viver balizado por regras sociais. (Mithen, 1998).

Page 132: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

127

É importante que entendamos que todo comportamento observável é fruto de

mecanismos que estão alocados no organismo e que combinado com influencias

ambiental e orgânico definem como esses mecanismos agiram. Esses mecanismos

foram criados pela seleção natural, que cria respostas fisiológicas, anatômicas e

psicológicas. Há pelo menos duas direções em estudos que confirmam essas

hipóteses evolutivas, uma de cunho empírica, outra teórica. Primeiro 25 anos de

experimentos vêm mostrando que a psicologia humana envolve muitos mecanismos

complexos e de domínios específicos que tem funções especificas; a segunda ordem

de cunho empírica nos remete a analogia em relação aos animais, pois todos eles

desenvolveram mecanismos para seus problemas adaptativos, como por exemplo,

para doenças (desenvolveram sistema imunológico), para o calor (glândulas

sudoríparas), nesse diapasão os psicólogos evolutivos entendem a mente como

também provida de especialidades (Buss, 1991, p.461).

As diversas ciências que hoje compõem o universo do que se entende como

ciências psicológicas abrangem uma serie de ferramentas úteis para a compreensão

do comportamento. Nesse sentido podemos analisar o comportamento á partir da

analise de quatro basilares básicos: 1)como o comportamento se desenvolve, 2)quais

mecanismos fisiológicos agem para tirar o comportamento exequível, 3)se o

comportamento guarda relação positiva com o sucesso reprodutivo, 4)se o

comportamento originou-se ou foi alterado ao longo da historia evolutiva. Esses quatro

níveis de analise oferecem instancias úteis seja para a formulação de novas hipóteses,

seja para a equipação metodológica para testes empíricos de hipóteses evolutivas.

Podemos segmentar esses quatro níveis de analise em dois grupos sendo o primeiro o

aquele que guardam relação com as causas proximais ou imediatas do

comportamento e o segundo com os que guardam relação com as causas distais. O

primeiro grupo se concentra nos sistemas de desenvolvimento interno e nas bases

fisiológicas; enquanto o segundo grupo lida com as perspectivas evolutivas de longo

prazo do comportamento, ou seja, analisam sobretudo o valor adaptativo dos

processos e também as modificações em perspectiva histórica. Ambas as causas,

distais e proximais estão inter-relacionadas em um ciclo interrupto. (Alcock, 2011,

p.11-57).

A base mental de toda teoria evolucionaria4 são os preceitos de Darwin e a

teoria sintética da evolução biológica. Aqui, os traços variantes podem ser herdados

4 A teoria evolutiva aplicada ao comportamento é como uma tendência sumariamente interdisciplinar. Ela é por assim

dizer um resultado bem sucedido da agregação de valores da filosofia, com os preceitos da psicologia, com os conhecimentos da antropologia, da linguística e também das ciências biológicas, como a biologia evolutiva, a neurociência e também a matemática e as ciências da computação. A antropologia, em particular vem oferecendo uma base teórica consistente aos preceitos da psicologia evolutiva, ao trazer a campo uma serie de estudos empíricos sobre a evolução natural e cultural da humanidade. Nesse ponto, a psicologia evolutiva é inovadora, ao estudar o

Page 133: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

128

pelos pais, essas variantes por sua vez auxiliam no desenvolvimento funcional, na

reprodução e na sobrevivência, consequentemente, mais gerações vão herdar tais

características, a revelia de outras. Esse processo resulta em três produtos;

1)adaptações5 relacionadas aos problemas ancestrais, 2)produtos não funcionais, que

persistem pois foram acopladas como adaptações (exemplo medo de cobras e

escorpiões sem veneno) e 3)ruídos, são variações dadas a eventos aleatórios

ambientais ou mutações genéticas. Historicamente esses preceitos vêm sendo

aplicados para a compreensão da fisiologia e das adaptações funcionais corporais. E

mais recentemente esses preceitos vêm fornecendo elementos “de ponta” para a

condução teórica a epistemológica de estudos sobre comportamento psicológico.

Adaptações psicológicas são circuitos de armazenamento e processamento de

informações, com saídas funcionais arquitetadas para a resolução de uma gama de

problemas adaptativos (Miller, 2007; Confer et al., 2010).

Os seres humanos indubitavelmente tem capacidades culturais, nos últimos

anos uma serie de pesquisadores através de modelos de co-evolução estão

descrevendo e testando hipóteses sobre a herança genética e cultural. Ao expormos a

discussão em um nível mais técnico, podemos definir em 4 pontos relevantes para a

compreensão da transmissão cultural via memes: 1)a transmissão na verdade orienta

o comportamento, 2)esta transmissão está susceptível a integração hierárquica, 3)os

memes são transmitidos através das interações sociais. A interação social permite

transmissão, recepção e assimilação cultural, pois os seres humanos possuem

adaptações cognitivas especificas que permitem a comunicação entre mentes, pois

toda cultura para ser assimilada demanda de uma grande capacidade de

aprendizagem, num diapasão onde as informações são extraídas do ambiente e

interpretadas na mente. As adaptações cognitivas evoluíram ao longo das gerações,

pois ela sofreu graduais alterações (Boyer, 2000).

Dito de outra forma é bem verdade que é o ambiente que oferece as principais

variáveis referencias para os indivíduos, entretanto, os mesmos só podem assimilar

tais estímulos se tiverem plenas capacidades cognitivas. Estas capacidades tornam

possíveis que os humanos através de crenças, símbolos e convenções criem e

manifestem as mais diversas representações culturais. Isso permite que nós seres

humanos, para muito além de reproduzirmos alguns poucos hábitos ao longo da vida,

comportamento, e o próprio cérebro, á partir de uma perspectiva integrada com a teoria da evolução (Buss, 2005; Cosmides & Tobby, 2005). 5 É importante destacarmos que toda adaptação deve ser enxergada dentro de suas limitações, sob o viés de seu

problema adaptativo e, sobretudo, há de se entender que a adaptação é um sinal um adicionamento de um equipamento para resolução de problemas outorgadas pela seleção natural, entretanto, não podemos dizer que todas as adaptações são do tipo ótimas, todas guardam relação com o período específico, com problemas específicos. E não é qualquer mudança que a seleção natural promove, mas, sobretudo aquelas ligadas ao “fitness darwiniano” (Buss, 1989, 2008).

Page 134: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

129

sejamos capazes de extrair informações através de praticas já vivenciadas, técnicas

ensinadas, por meio de rituais, por normas e outros meios diversos. Em suma a

cultura adquirida, e suas representações parecem se desencadear por meio de

episódios vivenciados, como as interações sociais e atividades comunicativas. E por

mais interessante que são as diferenças e os gostos humanos, resultados do

multiculturalismo, é mais impressionante ainda as semelhanças encontradas entre os

hábitos, preferencias e atitudes. Podemos dizer que cada cultura traz para seus

indivíduos uma serie de singularidades sobre a construção do que é atraente,

entretanto, mesmo a construção social sendo um dos pilares fundamentais para a

fundamentação das preferencias, podemos identificar traços universais, quanto à

preferencias. Logo, para além das capacidades de modulação cultural, entendemos

que as preferencias também guardam relação todas com o passado evolutivo (Boyer,

2000; Miller, 2000; Haviland et al, 2011).

Podemos dizer que a mente humana é um complexo integrativo de funções

especializadas, onde as adaptações psicológicas evoluíram como soluções para

problemas qualitativamente distintos, quantitativamente numerosos. Essa máxima é

valida tanto para humanos e não humanos. É enorme a lista de adaptações

psicológicas, para muito além de medo de cobras a animais perigosos, outros

problemas que enfrentamos são a seleção de alimentos, o investimento parental,

relações de parentesco, amizades, coalizões, agressividade seletiva, negociação

hierárquica, e muitos outros (Confer et al., 2010).

3 - COMPREENDENDO A AGRESSÃO

Em quase todo reino animal (exceto na sociedade humana) a agressão guarda

uma relação positiva com demandas, ou seja, ela é sumariamente de caráter

instrumental e não um fim em si mesmo. Ela é um meio, seja para a obtenção de

parceiros, suprimentos alimentares, defesa territorial e outras demandas afins. No

reino animal há pouca propensão por parte da maioria dos animais para se

envolverem em lutas sem sentido, por vezes, as diversas espécies executam meios

ritualísticos para evitar conflitos perigosos. A maioria dos animais não demonstra

inclinação em humilhar seu adversário e nem demonstra sentir prazer em derrota-lo

(Johnson, 1972, 33-4).

Devemos entender que a agressão em si é um processo muito complexo e esta

sob gerencia multifocal. Tanto a caça, quanto a luta pela sobrevivência são processos

distintos que podem levar a violência. Mas são distintos, tanto quanto a motivação,

quanto aos fins. Tais motivações podem ser proximais como a fome, a sede, a

Page 135: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

130

vontade de fazer sexo ou distais, como um potencial adversário. Ela pode derivar de

um comportamento genético, aprendido, pode ser de ordem instrumental como um

meio para se atingir um fim. O termo agressão desafia definições simples, por conta

de sua dinâmica e complexidade, sendo assim um fenômeno que demanda analise em

diferentes níveis. A agressão não é um acidente do século XX, tão pouco fruto de

alguma intervenção de ordem teológica. Ela representa uma adaptação

comportamental evolutiva, pautada na necessidade de sobrevivência e de reprodução

das diferentes espécies. Mas claro que como as espécies são diferentes, os processos

de agressão também variam entre as diferentes espécies (Johnson, 1972, p.31-2;

Alcock, 2011).

Há de se considerar que mesmo em um ambiente largamente cooperativo, há

sempre um nível de competição mais ou menos mensurável entre os organismos que

tende a gerar conflitos que por vezes são resolvidos por vias de hostilidade.

Entretanto, a maior parte das lutas, entre os organismos biológicos são mais de

caráter simbólico do que fisicamente nocivas, tem mais a intenção de machucar do

que propriamente matar. Com exceção da espécie humana, poucos organismos

demonstram satisfação em ter que matar um individuo da mesma espécie, ou de

outra; e quando fazem, geralmente não o fazem como um fim em si mesmo, mas

como uma via funcional para obtenção de um fim, como alimento. Por vezes, a

agressão também é uma via utilitária entre os organismos para o estabelecimento de

estratificações hierárquicas de dominância social, por vezes, estabelecendo preceitos

de territorialidade, mais ou menos expressáveis e mensuráveis (Hickman, Robert &

Larson, 2004).

3.1 - DESAFIOS DO PASSADO, AGRESSÃO NO PRESENTE

No que diz respeito aos problemas adaptativos reprodutivos, nossa espécie6

enfrentamos pelo menos oito problemas distintos, sendo eles: 1) a competição

intrasexual, 2)a seleção dos parceiros, 3)engajamento bem sucedido na via social e

sexual, 4)preservação do companheiro, 5)formação de alianças de reciprocidade,

6)manutenção de coalizões, 7)cuidados parentais e socialização e 8)investimento

6 Uma relação interessante, quando estudamos as relações proximais do comportamento humano, é entender o seu

próprio passado evolutivo, e também nesse sentido, o tamanho do cérebro. O primeiro primata da nossa cadeia evolutiva fora o ardipithecus, e seu cérebro tinha pouco mais de 300 gramas, pouco depois temos o australopithecus com um cérebro variando de 310 gramas até 530 gramas. Mais tarde na cadeia evolutiva temos o homo erectus, com um cérebro variando entre 775 gramas e 1.225 kg e depois temos o homo sapiens arcaico, o neandertal com um cérebro variando entre 1.2 kg e 1.450 kg. Por fim temos o homo sapiens moderno com um cérebro de 1.350 kg que gasta em media 1/5 de toda a energia consumida por nosso corpo. Assim o homo sapiens possui um cérebro grande, cerca de seis vezes maior do que se espera de um mamífero comum e com áreas corticais associativas maiores, em comparação a primatas antropoides e não antropoides. Há também de se considerar que o cérebro humano não é só grande, mas também bastante compacto, ou seja, possui mais neurônios por regiões em vista de outras espécies (Dalgalarrondo, 2011, p.170-184).

Page 136: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

131

extra-parental. Cada um desses dilemas trouxe consigo uma serie de subproblemas

que provocaram adaptações evolutivas (Buss. 1991, p.645).

Muitos vestígios arqueológicos apontam que a violência entre homens vem de

uma longa trajetória. Por exemplo, um cemitério em Jebel Sahaba, note de Sudão, que

se remonta a mais ou menos 13 mil anos atrás fornece uma grande quantidade de

evidencias sobre forte violência e talvez guerra entre os primeiros seres humanos.

Para se ter ideia, dos 59 corpos dispostos nesse cemitério, mais da metade apresenta

sinais de morte por violência (por exemplo, continham pedaços de farpas de flechas

entre os ossos. Os corpos de criança encontrados também indicam que essas foram

assassinadas, com violentos golpes no pescoço. Mais vestígios arqueológicos na

Alemanha, Baviera e França sinaliza que também lá houveram violentos assassinatos,

destacamos aqui que muitos foram mortos com violentos golpes no crânio.

Infelizmente, temos uma limitação quanto aos vestígios arqueológicos, seja na

quantidade, seja na dificuldade de seu trato. Talvez, a violência entre os primeiros

humanos seja ainda mais comum do que faz crer a arqueologia (Liddle, Schackelford

& Shackelford, 2012).

Mas fora os restos mortais há outras evidencias arqueológicas interessantes,

como os machados de pedra e madeira, e lanças confeccionadas a mais de 40 mil

anos atrás, mas evidente que essas ferramentas foram uteis para outras finalidades

como a caça. Pinturas do período Paleolítico na França, Espanha, e Itália descrevem

com precisão seres humanas morrendo através de violência e conflito, como por

exemplo, com flechas. Podemos dizer também que desde o inicio da civilização

também se presenciam relatos de violência, como por exemplo, no Egito, Suméria,

Grécia, Roma, índia, e Mesopotâmia. Finalmente, na transição de vida do estilo

nômade para assentamentos permanentes que começaram no período neolítico

(impulsionada pela agricultura e pela criação de animais) a mais ou menos 10 mil anos

também encontraram evidencias de violência entre humanos. Os assentamentos

permanentes7 trouxeram a acumulação de recursos8, tecnologia e também a violência.

Dado os esforços que foram demandados no passado em construir paredes e

proteções destes assentamentos contra outros indivíduos, é provável que os ataques

7 No decorrer da historia da nossa espécie houveram diversos sistemas sociais, desde os mais simples em períodos

muito remotos, até sistemas altamente complexos como os que vemos na sociedade contemporânea. Em períodos remotos, os sistemas sociais aos poucos influenciaram os rumos da seleção natural, impuseram novos problemas adaptativos, e consequentemente, sofremos adaptações por conta desses novos problemas, sejam elas psicológicas ou fisiológicas. A cultura, apesar de não ser uma única determinante, exerce uma pressão muito forte sobre o comportamento humano e ao que tudo indica, essa capacidade de se influenciar pela cultura guarda relação com um subproduto do desenvolvimento das inteligências. (Mace, 1996a,b). 8 Uma serie de psicólogos evolutivos postulam que a agricultura é tão recente que, em perspectiva evolutiva, pode-se

dizer que não houve tempo desta mudança cultural ter gerado mudanças adaptativas evolutivas. Entretanto, há evidencias de adaptações genéticas relacionadas à agricultura e a pecuária, por exemplo, a tolerância ao consumo da lactose parece ser uma adaptação genética de menos de 10.000 atrás, relacionada com a criação de gado (Mace, 1996a,b).

Page 137: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

132

de outros seres humanos constituíssem uma ameaça. Podemos em alguma medida

dizer que existem evidencias de violência entre homens durante toda nossa historia

evolutiva, o que é um lembrete interessante de que a violência humana de hoje, não é

um fenômeno novo (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012).

Mas não podemos falar de violência entre homens sem nos remetermos ao

fenômeno da guerra. Entretanto, é difícil precisar com exatidão em que momento os

humanos passaram a se envolver em guerra. Nesse ponto a primatologia oferece

interessantes insigts, por exemplo, o comportamento belicista e politico dos

chimpanzés, sinalizam que ao que tudo indica os humanos se envolvem em conflitos a

muito tempo. Com a migração do estilo nômade para os assentamentos permanentes,

a acumulação de recurso parece ter sido um dos pivôs para guerras no passado, vide

que as evidencias arqueológicas aponta que a maioria das edificações para proteção

no passado coincidiu com períodos de incerteza climática e de escassez de recurso.

Assim, entendemos que esses períodos foram fartos em guerras, e furtos de recursos

(Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012; Waal, 2000, 2001).

Quanto aos crimes, em perspectiva evolutiva podemos lançar três máximas

úteis para a compreensão das barreiras e dos vetores psicológicos que se criaram

aqui através do processo de evolução e co-evolução: 1)provavelmente, o crime era

recorrente no ambiente ancestral, 2)as estratégias criminosas se desenvolveram em

padrões previsíveis e 3)por conta de tal previsibilidade, provavelmente, houveram

adaptações especificamente para motivar o crime e também combater o mesmo.

Nesse sentido quanto ao design mental, podemos dizer que o processo de co-

evolução formatou também mecanismos mentais para a defesa contra crimes (Duntley

& Shackelford, 2008).

4 - POR QUE HOMENS SÃO MAIS VIOLENTOS QUE MULHERES?

De acordo com a interpretação evolucionaria, existe diferença

comportamental entre os gêneros sexuais, pois ambos têm disposições psicológicas

distintas que presumivelmente foram construídas em nossa espécie por meio da

adaptação mediada geneticamente para as condições ancestrais de vida (Buss &

Kenrick, 1998).

Nesse diapasão, coletamos dados sobre a população carcerária

mundial e analisamos a disparidade numérica entre homens e mulheres que cumprem

penas. Apesar de haver uma relativa diferença entre os números, nos diversos países,

em todos eles a proporção de homens que cometeram crimes é muito maior do que a

de mulheres.

Page 138: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

133

Os números impressionam, segundo o oitavo levantamento das Nações Unidas

sobre tendências de crimes, de 2002, nos 159 países em que se coletaram os dados,

existe uma população carcerária (de presos recentes) de aproximadamente 8.570.051.

Deste montante, estima-se que apenas 4,4% sejam mulheres, e o restante, 95,6% são

homens (Shaw, Van Dijk & Rhomberg, 2003). Abaixo, com base dos dados das

Nações Unidas de 2002, formulamos um gráfico com os 5 países que tem maior

população carcerária, e estratificamos de forma ilustrativa a enorme desproporção

existente entre homens e mulheres que cumprem pena.

Dados adaptado pelo autor com base em: Shaw M, Van Dijk J, Rhomberg W (2003) Determining global trends in crime and justice: an overview of results from the United Nations surveys of crime trends and operations of criminal justice systems. In: Forum on crime and society, vol III, no. 1 &2.

4.1 - A PRESSÃO DA SELEÇÃO SEXUAL: HOMO SAPIENS COMO UM ANIMAL

POLÍTICO E SOCIAL

Estudos recentes apontam que homens, mais do que mulheres, são mais

susceptíveis a serem racistas e xenofóbicos. Essa propensão parece guardar relação

evolucionaria com as demandas dos homens que se envolviam em conflito. Quanto a

esta propensão psicológica por guerras podemos definir quatro basilares condicionais:

1)a crença de que o grupo pode ser vitorioso, 2)a expectativa de que os ganhos da

guerra superem seus custos, 3)a expectativa dos beneficiários receberem igual

contribuição (e assumirem iguais riscos) e 4)A incapacidade de prever com exatidão

qual membro irá ou não morrer (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012).

Não devemos desconsiderar as variáveis individuais, mas o papel da

abordagem interdisciplinar evolucionaria esta em desvendar os traços universais dos

homens. E nesse sentido ao que tudo indica os homens são mais propensos a se

0 500000 1000000 1500000 2000000

Brasil

India

Russia

China

Estados Unidos

Mulheres

Homens

Page 139: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

134

envolverem em violência do que as mulheres. Em especial quando o futuro

demonstra-se incerto. Ao que parece ambientes insalubres com alta incidência de

parasitas induzem a condutas violentas, como também a pobreza e também grande

competição intersexual (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012)

Uma empresa que sempre esteve presente no passado, e mais do que nunca

hoje, é a competição por status. A psicologia evolucionaria, a antropologia, a ecologia

comportamental humana produziram uma serie de trabalhos teóricos e empíricos que

apontam que os homens que possuem mais status social são os que têm maior

acesso sexual a um numero maior de mulheres. O potencial reprodutivo ligado ao

status gerou pressões por parte da seleção natural que por sua vez estruturou

adaptações cognitivas que levam a ascensão social dentro da estratificação

hierárquica. Nesse sentido há uma correlação desproporcional entre os indivíduos,

pois para um individuo subir de status, quase que como um jogo de soma zero, algum

outro individuo deve perder status. Agora, se levarmos o alto ônus de se perder status

podemos concluir que os indivíduos são adaptados não só em adquirir status, mas

também há lutar pela manutenção do mesmo. No que diz respeito aos recursos

sexuais, podemos afirmar que em alguma medida o custo parental e biológico da

gravidez é muito maior para a mulher, do que para o homem. E também é possível

dizer que as mulheres podem ter um numero limitado de filhos9, enquanto os homens

se tiverem mais parceiras, podem ter um numero absurdamente maior. Nesse caso, a

pressão da seleção natural estruturou homens para serem mais propensos a terem um

numero maiores de parceiras e as mulheres a serem mais seletivas. Nessa dicotomia

onde o homem é inclinado a desejar um grande numero de parceiras em vista das

mulheres, sugerimos que essa discrepância ente os sexos seja o subsidio da

prostituição feminina (Browne, 1998, 2005; Duntley & Shackelford, 2008)

O mundo de nossos ancestrais forçava este a conviver com um numero muito

reduzido de pessoas, em vista de hoje. Nesse sentido, é provável que as ações

sociais neste período desencadeassem maior repercussão e consequentemente maior

sustentamento da reputação ao longo prazo. Assim, sugerimos que humanos

desenvolveram também como estratégias para galgar status, e também para ter mais

acesso ao sexo, à agressão. A violência nesse contexto proposto não é só uma

medida eficaz para combater outros competidores (e no limite tira-los da competição),

mas também poderia render possíveis ganhos de recursos com furtos e também

aumentar o prestigio social. Pesquisas em psicologia evolucionaria apontaram como

correlação positiva a competição intrasexual e a violência, nos dias atuais (e

9 Isso porque, enquanto a mulher produz ao longo da vida uma media de 400 óvulos, o homem produz por minuto 50

mil espermatozoides (três milhões por hora) (Waal, 2000).

Page 140: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

135

provavelmente no passado). Tais disputas são comuns por desencadearem conflitos

violentos que podem chegar até em homicídio (Duntley & Shackelford, 2008).

As pressões evolutivas distribuem de forma desigual entre homens e mulheres

o custo do investimento parental, o que implica nesse sentido que fêmeas, em

comparação com homens, maximizam mais suas chances de sobrevivência, e de sua

prole, se forem mais seletivas na seleção sexual. Nesse caso, a uma maior inclinação

por parte dos homens para competir. Duas estratégias dicotômicas entre si são vias

comuns nesse sentido. Uma primeira diz respeito à exibição de características

apreciadas pelo sexo oposto (por exemplo, bom físico, que indicam para além da

saúde também bons genes, status social, recursos financeiros). Outra estratégia é

vencer a concorrência de maneira direta, seja através de conflitos reais ou simbólicos

dentro das diversas estruturas sociais que expressão meios diferente de dominância

social. Em ambas as estratégias, a possibilidade de que fenômenos agressivos sejam

postos em curso é bastante alta. Essa logica, parece ser uma das importantes vias

explicativas para se compreender a diferença dramática existente entre os homens e

mulheres, no que diz respeito ao comportamento físico violento, em uma via

observável em todas as sociedades humanas ao longo do tempo, durante todos os

períodos históricos (Neuberg, Kenrick & Schaller, 2010, p.28-32, Wood & Eagly, 2002).

A agressão pode ser uma via eficiente em alguma medida para o

comportamento de cúpula de curto prazo, entretanto, pode se tornar uma via não tão

eficiente para o estabelecimento de relacionamentos á longo prazo. Comparações

interespécies nesse sentido apontam que há uma correlação positiva entre poligamia e

comportamento violento, ou seja, quanto mais polígamo é o comportamento de

determinado organismo, maior são suas propensões á violência. Isso também foi

observado em sociedades humanas. Algumas espécies manifestam com maior

intensidade comportamentos violentos quando estão entrando na puberdade, quando

estão iniciando suas capacidades reprodutivas. O mesmo já foi observado em diversos

experimentos em psicologia social. Homens na puberdade tendem a manifestar mais

comportamento agressivos, maior nível de competitividade do que em qualquer outra

fase da vida (Neuberg, Kenrick & Schaller, 2010,p.31-34).

Em suma, o auto custo parental debilitava a mulher para o exercício de uma

serie de atividades. Nesse sentido, a fêmea é quem realiza a seleção. Aqui, homens

ancestrais competiam com outros homens pelo acesso sexual as mulheres, e também

pela tentativa de monopolização das mesmas. Nesse sentido, o homem desenvolveu

maior propensão adaptativa a violência do que a mulher. Podemos também aqui nos

referir as preferencias, estudos transculturais recentes demonstram que as atuais

preferencias, mesmo em modulações culturais diferentes, guarda relação com o

Page 141: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

136

contexto evolutivo. Nesse caso, em todo mundo a maioria das mulheres sente maior

atração por homens mais velhos, que possuam mais recursos e/ou sejam mais

socialmente estabilizados enquanto em outro diapasão homens preferem mulheres

mais jovens, com suas capacidades reprodutivas comprovadas e confiáveis (Wood &

Eagly, 2002; Buss, 1989,2008).

4.2 - A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Em praticamente todas as sociedades de coletores e caçadores do presente,

se observa uma nítida divisão sexual do trabalho, onde os homens se dedicam quase

que exclusivamente a caça e as mulheres a coleta (e também ao cuidado parental).

Como essas sociedades tradicionais são consideradas os melhores modelos para a

compreensão do estilo de vida dos nossos antepassados evolutivos supõem-se que

no passado também houve tal divisão também ocorria. Os homens nesse sentido

podiam ir à caça e percorrer por vezes longas distancias até obterem uma presa e a

posteriori retornarem ao acampamento. Enquanto, as mulheres não podiam se afastar

muito do acampamento, por conta do cuidado de sua prole, assim, dedicava-se a

coleta. Nesse ponto é importante destacar que as atividades reprodutivas das

mulheres criam restrições de tempo e energia, impossibilitando no passado que estas

participassem de guerras, caça, e outras atividades que demandavam muitos recursos

endógenos. (Dalgalarrondo, P. 2011, p.168-178; Wood & Eagly, 2002).

Alguns arqueólogos apontam que tal estratificação fora tão funcional que, caso

não houvesse existido, talvez nosso cérebro não tivesse se desenvolvido tanto. Isso

porque essa estratificação trouxe benefícios tangíveis para os humanos, vide que os

mesmos passaram a dispor de uma dieta alimentar muito rica contendo grandes

quantidades de proteína, gordura, carboidratos e fibras. Nessas sociedades os

homens desenvolveram complexos sistemas de distribuição de alimentos entre todos

os indivíduos10.

Em perspectiva evolucionaria, podemos dizer que as atividades de caça do

homem do período Pleistoceno exerceram uma pressão seletiva, onde o homem

adquiriu um diformismo físico e psicológico em relação às mulheres: 1)maior força,

2)maior coragem, 3)maior impulsividade, para citar apenas algumas. Todas essas

características ofereciam vantagens no período pleistoceno, onde homens, mais do

10

O exame mais critico das diversas sociedades do mundo, sobretudo as tradicionais de caçadores e coletores (usados com frequência para modelos de nosso estio de vida no período pleistoceno) nos leva a perceber que de fato existe evidencias que o compartilhamento de recursos, em especial alimentos, é bastante comum, assim como também é comum o comercio seguro entre tribos vizinhas de caçadores e coletores. Entretanto, em nenhuma destas sociedades de caçadores e coletores é presenciado o fenômeno de se dividir livremente recursos com membros de outras tribos. Isso nos leva a crer que há barreiras mais ou menos definidas quanto à propensão do comportamento altruísta, como já descrito (Kanazawa, 2010).

Page 142: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

137

que mulheres, tinham de conviver com as incertezas da caça, e também se defender

de predadores. Tais adaptações forneceram traços positivos no passado, entretanto,

no contexto socioinstitucional contemporâneo representam em alguma medida uma

fonte de desvantagem, vide que o homem, mais do que a mulher, é

biopsicosocialmente mais propenso ao comportamento agressivo, conduta tida hoje

como antissocial e que pode levar o individuo ao encarceramento, ou até a morte.

Entretanto há evidencias de uma flexibilização contemporânea da divisão

sexual do trabalho, impulsionada pelo avanço tecnológico e pela mudança cultural.

Numa base onde a divisão do trabalho e o próprio patriarcalismo se ancorava na

reprodução feminina, temos uma inclinação no eixo na medida em que as mulheres

passam a exercer maior controle da reprodução através de métodos anticonceptivos,

abortos, e também pela dinâmica da produção e distribuição de alimentos, onde o

homem deixa de ser o pivô. Nessa guinada, a mulher vem conquistando espaço no

mercado de trabalho, nas lideranças e também na academia (Browne, 1998, 2005;

Wood, W. & Eagly, A., 2002). Entretanto, o background psicológico humano, e também

convenções sociais, em maior ou menor medida ainda faz existir o patriarcalismo em

todas as sociedades.

4.3 - O PAPEL DA TESTOSTERONA

Os hormônios funcionam associados aos mecanismos neurais de

estabelecimento de prioridades. Nesse sentido as mudanças ambientais (tanto no

físico, quanto no social) são detectadas pelo organismo e codificadas em respostas

hormonais. Os sinais químicos resultantes desse processo podem desencadear uma

cadeia de acontecimentos fisiológicos e comportamentais, estratificando e

estabelecendo prioridades. Mas cada hormônio efetiva mudanças fisiológicas e

comportamentais distintas em cada espécie, entretanto, o mecanismo de organização

comportamental destas diferentes espécies apresenta similaridades. Isso reflete a

natureza da mudança evolutiva (Alcock, 2011, p.170-180).

Em algumas espécies a testosterona ativa o comportamento territorial como é o

caso do Pardal Cantor e da Escrevedeirada-lapônia. Em muitas espécies, assim como

o homem, é apontada uma alta correlação entre níveis de testosterona e

comportamento agressivo. Podemos citar os cervos, que vivem pacificamente em seus

grupos, entretanto, durante todo o verão quando seu nível de testosterona aumenta, o

seu comportamento agressivo também aumenta, causando sempre episódios

violentos (Alcock, 2011, p.173; Johnson, 1972).

Page 143: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

138

Pesquisas apontam que indivíduos que tem antecedentes violentos, e que

praticam condutas antissociais geralmente (mais do que a media) possuem níveis

mais altos de testosterona. Nesse sentido podemos dizer que há uma correlação

positiva entre o inicio da adolescência e o inicio das condutas antissociais, vide que

nesse período da vida os homens possuem mais testosterona do que em qualquer

outro (Aromäki, Lindman & Erikson, 1999). Há estudos também que apontam uma alta

correlação entre altos índices de testosterona (acima da media) em mulheres, e maior

inclinação a condutas violentas (Dabbs & Hargrove, 1997; Dabbs et al. 1988). Outros

estudos corroboraram ainda mais a correlação entre testosterona e agressividade em

humanos, ao analisarem o uso de anabolizantes a base de testosterona em homens e

mulheres. No geral, há uma tendência em aumentar os níveis de excitação sexual e

também o nervosismo (Hoaken & Stewart, 2003).

Aqui concluímos que, como em geral homens possuem maiores níveis de

testosterona, eles tendem também a manifestar maior comportamento violento. Nesse

sentido, essa é uma importante variável que parece guardar relação com as duas

hipóteses deste texto. Nesse caso, o nível de testosterona em homens parece guardar

tanto relação com a seleção natural, tanto com a seleção sexual.

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência é um fenômeno universal e a disparidade quanto à inclinação a este

comportamento, entre homens e mulheres, é igualmente universal. Em todo mundo,

homens se demonstram mais violentos, praticam mais crimes, vão para guerra, tem

maior gosto por esportes violentos. Para além da antropologia cultural estruturalista,

trabalhamos com a antropologia evolucionaria e com as hipóteses que dela derivam.

Nesse sentido, entendemos que as ciências sociais possuem déficits e estes por sua

vez podem ter resposta dentro da teoria evolucionaria que tem um grande valor

heurístico no que diz respeito à compreensão das causas proximais do

comportamento (causas praticamente ignoradas dentro das ciências sociais, ou

permeada por noções muito pobres).

No que diz respeito à tendência masculina ao comportamento agressivo,

acreditamos que haja uma correlação positiva entre os desafios adaptativos do

período ancestral. Ao que parece, os desafios que mais exerceram pressão foram a

divisão sexual do trabalho e a seleção sexual.

Page 144: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

139

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alcock, J. (2011). Comportamento animal: Uma abordagem evolutiva. Porto Alegre:

Artmed.

Aromäki, A. S., Lindman, R. E. & Eriksson, C.J. P. (1999), Testosterone,

aggressiveness, and antisocial personality. Aggressive Behavior, 25(2), 113-

123.

Asch, S., (1977). Psicologia social. (4a ed.). São Paulo: Companhia editora nacional.

Boyer, P. (2000). Evolutionary Psychology and Cultural Transmission. American

Behavioral Scientist, 43(6), 987-1000.

Browne, K.R. (1998). An evolutionary account of women’s workplace status.

Managerial and Decision Economics, 19(7/8), 427–440.

Browne, J. (2002). Charles Darwin: The power of place. New York: Knopf.

Browne, K. R. (2005). Evolved sex differences and occupational segregation. Journal

of Organizational Behavior, 26, 1-20.

Buss, D. M. (1989). Sex differences in human mate preferences: Evolutionary

hypotheses tested in 37 cultures. Behavioral and Brain Sciences, 12, 1–14.

Buss, D. M., & Schmitt, D. P. (1993). Sexual strategies theory: An evolutionary

perspective on human mating. Psychological Review, 100, 204–232.

Buss, D. M., & Kenrick, D. T. (1998). Evolutionary social psychology. In D. T. Gilbert,

S. T. Fiske, & G. Lindzey (Eds.). The handbook of social psychology (Vol. 2, 4a

ed., pp. 982–1026). Boston: McGraw-Hill.

Buss, D. M. (2008). Evolutionary psychology: The new science of the mind. (3a ed.).

Boston: Allyn & Bacon.

Confer, J. C., Easton, J. E., Fleischman, D. S., Goetz, C., Lewis, D. M., Perilloux, C., et

al. (2010). Evolutionary psychology: Controversies, questions, prospects, and

limitations. The American Psychologist, 65, 110–126.

Cosmides, L., & Tooby, J. (2005). Neurocognitive adaptations designed for social

exchange. In D. M. Buss (Ed.) The handbook of evolutionary psychology (pp.

584–627). New York: Wiley.

Dabbs, J. M., & Hargrove, M. F. (1997). Age, testosterone, and behavior

among female prison inmates. Psychosomatic Medicine, 59, 477–480.

Dabbs, J. M., Ruback, R. B., Frady, R. L., Hopper, C. H., & Sgoutas, D. S.

(1988). Saliva testosterone and criminal violence among women. Personality

and Individual Differences, 9, 269–275.

Dalgalarrondo, P. (2011). Evolução do Cérebro: Sistema nervoso, psicologia e

psicopatologia sob a perspectiva evolucionista. Porto Alegre: Artmed.

Page 145: Boletim 3 - Exército

Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo

140

Duntely, J. D., & Shackelford, T. K. (2008). Darwinian foundations of crime and law.

Aggression and Violent Behavior, 13, 373-382.

Haviland, W., Prins, H., Walrath, D. & Mcbride, B. (2011). Princípios de Antropologia.

(2a ed.). São Paulo: Cengage Learning.

Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Larson, A. (2004). Princípios Integrados de Zoologia.

(11ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara Kogan.

Hoaken, P. N., & Stewart, S. H. (2003). Drugs of abuse and the elicitation of human

aggressive behavior. Addictive Behaviors, 28(9), 1533–1554.

Johnson, R. (1972). Agressão no homem e nos animais. Interamericana: Rio de

Janeiro.

Kanazawa, S. (2001). Where do social structures come from? Advances in

GroupProcesses, 18, 161-183.

Kanazawa, S. (2004). The Savanna Principle. Managerial and Decision Economics, 25,

41–54.

Kanazawa, S. (2005). Is ‘discrimination’ necessary to explain the sex gap in earnings?

Journal of Economic Psychology, 26, 269–287.

Kanazawa, S. (2006). ‘First, kill all the economists…’: The insufficiency of

microeconomics and the need for evolutionary psychology in the study of

management. Managerial and Decision Economics, 27, 95–101.

Kanazawa, S. (2010). Evolutionary psychology and intelligence research. American

Psychologist, 65, 279–289.

Liddle, J.R., Shackelford, T.K. & Weekes-Shackelford, V.A.(2012). Evolutionary

perspectives on violence, homicide, and war. Review of General Psychology,

16, 24-36.

Mace, R. (1996a). When to have another baby: A dynamic model of reproductive

decision-making and evidence from the Gabbra pastoralists. Ethology and

Sociobiology, 17, 263–273.

Mace, R. (1996b). Biased parental investment and reproductive success in Gabbra

pastoralists. Behavioral Ecology and Sociobiology, 38, 75–81.

Miller, G. (2000). The mating mind. New York: Penguin.

Miller, G. F. (2007). Sexual selection for moral virtues. Quarterly Review of Biology, 82,

97–125.

Mithen, S. (1998). A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião

e da ciência. São Paulo: Editora da UNESP.

Neuberg, S.L., Kenrick, D.T., Schaller, M., 2010. Evolutionary social psychology. In:

Fiske, S.T., Gilbert, D., Lindzey, G. (Eds.), Handbook of Social Psychology.

John Wiley & Sons, New York, pp. 761–796.

Page 146: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

141

Parsons, T. et al. (1968). Hacia uma teoria general de la accion. Buenos Aires:

Editoral Kapelusz.

Pinker, S. (2004). Tábula Rasa. A negação contemporânea da natureza humana. São

Paulo: Companhia das Letras.

Putnam, R. (2000). Bowling alone: The collapse and revival of american community.

New York: Simon and Schuster.

Riddley, M. (2004). O que nos faz humanos. Genes, natureza e experiência. São

Paulo: Editora Record.

Shaw M, Van Dijk J, Rhomberg W (2003) Determining global trends in crime and

justice: an overview of results from the United Nations surveys of crime trends

and operations of criminal justice systems. In: Forum on crime and society, vol

III, no. 1 &2

Waal, F. (2000). The ape and the sushi máster. New York: Basic Books.

Waal, F. (2001). Primates – A natural heritage of conflict resolution. Scice, 28, 586-

590.

Wood, W., & Eagly, A. H. (2002). A cross-cultural analysis of the behavior of women

and men: Implications for the origins of sex differences. Psychological Bulletin,

128, 699–727.

Page 147: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º3 – 2012

PP. 142 a 151

142

A Incerteza do Risco: Ensaio relativamente ao tema Sociedade

de Risco de acordo com Ulrich Beck e Anthony Giddens

Rui Eusébio*

Resumo

Uma leitura diferenciada do lugar da ciência e da tecnologia no quadro institucional das sociedades contemporâneas parece estar na base de definições divergentes de modernidade reflexiva por parte de Ulrich Beck e de Anthony Giddens. Para ambos os autores, a noção de modernidade reflexiva constitui, como é sabido, noção central para caracterizar o quadro contextual da crise ecológica actual. Este artigo visa uma apresentação dos traços fundamentais das teorias destes autores e os fundamentos dessa divergência. Palavra-chave: sociedade de risco, sociedade industrial, modernidade reflexiva

Abstract

A different reading of the place of science and technology in the institutional framework of contemporary societies seems to be the basis of differing definitions of reflexive modernity by Ulrich Bech and Anthony Giddens. For both authors, the notion of reflexive modernity is, as is known, central notion to characterize the contextual framework of the current ecological crisis. This article aims at presenting the basic features of the theories of these authors and the reasons for the divergence. Key-words: risk society, industrial society, reflexive modernity

INTRODUÇÃO

Dia 26 de 1986, um dia que ficará enterrado na memória de todos, Pripyat, uma

cidade localizada na Ucrânia, não muito distante da fronteira com a Bielorrússia é alvo

de um acontecimento que viria não só a marcar a narrativa de um país como também

a história do planeta.

Informações apontam que durante uma operação de rotina, foram realizados

testes ao interior do núcleo do reator com o intuito de aumentar a capacidade de

produção energética. Contudo, os técnicos que se encontravam encarregues destes

testes, não seguiram as normas de segurança e por conseguinte o reator nº4 acabou

por entrar numa situação de instabilidade.

* Capitão de Infantaria Licenciado em Sociologia (ISCTE), E-mail: [email protected]

Page 148: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

143

Pelas 01 horas e 23 minutos ocorrem as primeiras explosões, grandes

quantidades de radiação à base de urânio e grafite são libertadas para a atmosfera, tal

como sucedera em Hiroshima, mas neste caso com efeitos bem superiores, estima-se

que o acidente em Chernobyl emitiu quatrocentas vezes mais radiação que a bomba

atómica lançada sobre a cidade japonesa.

Estávamos perante um novo inimigo, invisível mas potencialmente devastador1.

Foram momentos como este, que nos fazem pensar, não só indivíduos como eu, que

acabo de iniciar a minha carreira de “aprendiz em sociologia”, como também os

grandes teóricos que se têm debruçado no estudo destas questões.

Actualmente as “questões ambientais começaram nos últimos anos a captar

cada vez mais a atenção da sociologia, especialmente nos debates sobre a

modernidade, sobretudo a partir do momento em que a escala dos problemas

ambientais assumiu uma dimensão global incontornável.” (Schmidt, 1999, p.194)

Este ensaio tem como objectivo, ainda que de uma forma sucinta possibilitar ao

leitor, inteirar-se acerca da reflexão social contemporânea, sobre a perspectiva da

sociedade de risco do ponto de vista de Ulrich Beck e Anthony Giddens.

Mas, o que levou estes autores a “olhar a sociedade desta forma”, o que levou

estes criadores a assumirem uma leitura diferenciada, do lugar da ciência e da

tecnologia no quadro institucional das sociedades contemporâneas relativamente à

noção de modernidade reflexiva?

Será com base nestas questões, que iniciarei o meu desenvolvimento sobre os

traços fundamentais das teorias destes autores.

A SOCIEDADE DE RISCO

De acordo com Beck “ a sociedade de risco significa que vivemos na idade dos

efeitos secundários, isto é, habitamos num mundo fora do controlo, onde nada é certo

além da incerteza” (Beck, 2000:166)

Do seu ponto de vista, a noção de risco encontra-se associada a um estádio

preciso do processo de modernização, incorporando a dimensão de incerteza, embora

o autor não refute a existência do conceito de risco noutros períodos da história. Para

ele, o risco também se encontra interligado aos danos produzidos pelo processo

civilizacional (modernização) (Areosa,2008), nas suas palavras “risck may be defined

as systematic way of dealing with hazards and insecurities induced and introduced by

modernization itself. Risks, as opoposed to older dangers, are consequences which

1 Documentário da BBC “Chernobyl Nuclear Disaster – Surviving Disaster (BBC Documentary)

Page 149: Boletim 3 - Exército

A Incerteza do Risco

144

relate to the threatening force of modernization and to its globalization of dout. They

are politically reflexive” (Beck,1992, p.21).

Foi após o acidente de Chernobyl (já anteriormente abordado), que Ulrich Beck

desenvolve a conceptualização de sociedade de risco, com o intuito de alertar dos

possíveis riscos que se encontram inerentes á comunidade, realçando de uma forma

particular os efeitos dos meios tecnológicos sobre o ambiente biofísico.

Do seu ponto de vista, Chernobyl é o principal marco de um “choque

antropológico”, pois foi a partir deste momento que se dá uma alteração ao nível

perceptual do ser humano sobre as possíveis consequências da ciência nos seus

modos de vida.

Pripyat2 tornara-se num evento onde foi passível identificar o seu início, mas

não o seu fim, a população só tomou conhecimento da realidade dos factos 30 horas

após o desastre, e ainda hoje é alvo de marcas físicas deixadas por este

acontecimento (este foi o resultado de algumas instituições continuarem a funcionar

numa lógica semi moderna, embutida no secretismo e na confidencialidade, que não

só predominava na altura “em plena guerra fria”, como ainda hoje predomina de

alguma forma a incomunicabilidade entre a ciência, a política e a sociedade).

Esta invisibilidade e a intangibilidade dos riscos ecológicos demonstram bem o

motivo de ansiedade e angústia (Valadas, 2012) permanente em todos nós.

Pela primeira vez é sentida a necessidade de uma intervenção que supera o

conhecimento científico até ao momento desenvolvido, ocorrendo “a

institucionalização da dúvida e da angústia, no qual se acentua com o crescimento da

desconfiança e da insegurança proveniente da dependência em relação aos sistemas

periciais” (Valadas,2012). Este foi o ponto decisivo na demarcação de um período de

consciencialização acerca dos prováveis efeitos da tecnologia sobre o meio ambiente,

contrariando assim a baixa probabilidade que era atribuída a instalações desta

natureza.

Entramos num período de deslegitimação da ciência e da tecnologia, começam

a surgir as primeiras dúvidas nas mentes internacionais sobre as particularidades dos

riscos ambientais. Pela primeira vez um problema local ameaça o global como um

todo, desencadeando ações de ansiedade e de reflexividade.

SOCIEDADE INDUSTRIAL VS. SOCIEDADE DE RISCO

Do ponto de vista de Beck, esta presença invasora associada ao risco deriva

essencialmente do desenvolvimento da sociedade industrial. Contudo, o autor não

2 De acordo com o documentário da BBC

Page 150: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

145

desconsidera o facto da existência do risco em sociedades anteriores tal como fora o

caso das pestes, das catástrofes naturais, entre outras, que também elas eram

dotadas de um poder assolador comparável até aos poderes destrutivos actuais,

porém e ao contrário do que se sucedia no passado, o conceito de risco

contemporâneo deve-se sobretudo a deliberações de índole económico. Para Beck, o

termo risco, não provém de decisões tomadas por elementos singulares, mas sim de

opções levadas a cabo por entidades económicas e políticas organizadas (Mela,

Belloni, Davico, 2001).

“Os riscos pressupõem decisões e análises industriais, isto é, técnico-

económicas, das vantagens. Distingue-se das consequências das guerras pelo seu

“nascimento normal”, ou melhor, pelo facto de “nascerem de forma amigável” nos

centros da racionalidade e do bem-estar, com a bênção dos garantes do direito e da

ordem; distinguem-se das catástrofes pré industriais pela sua génese decisória, que

nunca é realmente apenas dos indivíduos, mas de inteiras organizações e

associações políticas.” (Beck, 1994, p. 50)3

Numa fase inicial, esta abordagem efetuada por Beck relativamente à

sociedade de risco, teve fortes influxos na comunidade internacional, este conceito

assumia-se como resposta à obsolescência da sociedade industrial (Beck,2000).

De acordo com Areosa “A terminologia de sociedade de risco designa

essencialmente uma condição das sociedades contemporâneas, nas quais os riscos

sociais, individuais, políticos e económicos tendem, de forma crescente, a escapar à

proteção, controlo e monitorização da sociedade industrial. Segundo Beck, existem

dois estádios distintos para estas duas realidades sociais, isto é, a sociedade de risco

sucede à sociedade industrial. A transição da sociedade industrial para a sociedade de

risco é irreversível e Beck vai designar este período como modernidade reflexiva”

(Areosa,1998, p. 6).

Esta transição é dada pelo “envelhecimento” da modernidade industrial

resultante de um processo de inovação autónomo, no qual acaba por gerar a

“sociedade de risco” (adaptado de Lash et al., 1996,pp.27-230, citado por Schmidt

1999, p. 200).

Na opinião de Beck, a sociedade industrial tinha como função resolver os

problemas da escassez, assegurando as necessidades básicas e a produção de bem-

estar, desprovendo de certa forma os efeitos residuais remanescentes da actividade

produtiva, imperava a “lógica de produção de riqueza sobre a lógica de produção dos

riscos”, ao qual não era atribuída qualquer tensão entre as partes envolventes. Com o

3 Beck, U. (1994), “Dalla società industriale alla società del rischio. Questioni di sopravvivenza, struttura sociale e

illuminismo ecologico”, in Teoria Scoiologica, 2, 4 pp. 49-75

Page 151: Boletim 3 - Exército

A Incerteza do Risco

146

aparecimento da sociedade de risco4, tudo se altera, as consequências provenientes

do processo de desenvolvimento acabam por fazer oscilar os pilares do progresso,

mergulhando instituições públicas, políticas e financeiras, no questionamento sobre os

possíveis riscos da sociedade industrial. Este tipo de sociedade foi perdendo

lentamente as suas “certezas”, sabendo que estas constituíam um dos seus principais

alicerces (Areosa, 1998).

De acordo com Valadas (2012) este momento simboliza a passagem de um

processo positivo (distribuição de riqueza) para um processo negativo (distribuição do

risco), este é o momento que marca a mudança da modernidade simples (apogeu da

sociedade industrial) para a modernidade reflexiva (emergência da sociedade de

risco).

É no choque entre estes dois momentos, que Beck edifica o conceito de

“modernidade reflexiva”, no sentido contrário da dialética entre o conceito de

“modernidade” e “modernidade reflexiva”, ele acaba por afirmar que “ modernidade

reflexiva significa acima de tudo confrontação […] autoconfrontação com as

consequências da sociedade de risco e não podem ser [adequadamente] encaradas e

ultrapassadas no sistema da sociedade industrial” (Lash et al., citado por Schmidt

1999, p.201)

Hoje, as preocupações em torno da sociedade já não recaem sobre a produção

massificada, mas sim na necessidade de resolver os problemas causados por este

sistema.

Beck identifica ainda, outro ponto muito importante na sua análise, referindo

que no decorrer da sociedade industrial a oscilação entre a desigualdade social e a

vulnerabilidade aos perigos ambientais variavam numa relação direta em favor aos

que detinham mais posses, ou seja, os habitantes das classes sociais mais altas

tinham sempre a possibilidade de contornar situações críticas ao nível ambiental

(poluição por exemplo), contrariamente ao que se verifica na atual sociedade de risco.

Neste tipo de sociedade os riscos adoptam uma postura “democrática”, isto porque

podem afetar um maior número de pessoas, independentemente da sua condição ou

classe social. Luísa Schmidt acaba mesmo por afirmar que “na sociedade de risco, a

hierarquia social e o perigo desarticulam-se, pois o risco emerge, “democratiza-se” e

estende-se a todas as classes socias, culturas, raças e nações…” (Schmidt, 1999, p.

202)

A dissolução de certezas da sociedade industrial acaba por originar as

incertezas da sociedade de risco.

4 A ameaça nuclear é um dos exemplos paradigmáticos de situação, visto que, virtualmente, paira sobre todas as

regiões do globo. Em simultâneo, o risco transformou-se num fenómeno global e globalizante.

Page 152: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

147

Contudo, na opinião de Ulrich Beck continua a prevalecer uma lógica de

distribuição desigual dos danos tanto ao nível social como ao nível geográfico. Na fase

atual, os riscos multiplicam-se, adquirem um alcance cada vez mais profundo, e

sobretudo assumem uma dimensão global, já não delimitável. A ameaça de

contaminação atómica e química, o efeito de estufa e outras potenciais catástrofes não

se detêm perante limites administrativos dos Estados, nem permitem que qualquer

grupo social se sinta seguro. Devemos ter em atenção que as ameaças globais

conferem propriedades catalisadoras ao aumento das desigualdades entre povos

sendo que, os mais ricos acabam por deter uma maior capacidade de atenuação

relativamente aos efeitos dos riscos ambientais, no entanto, o autor acaba por

sublinhar que “nestes casos, os países ricos não escapam – invadidos que serão

pelos “ecorefugiados”… daí a inegável “democratização” potencial dos riscos e seus

“efeitos de boomerang” ou a falta de imunidade de todos face às ameaças globais,

embora a velocidades diferentes”. (Beck,1992ª, p.23, citado por Schmidt, 1999, p.

202).

Na opinião de Beck a ciência contribuiu fortemente para o desenvolvimento do

progresso económico do mundo ocidental, contudo e com base neste desenvolvimento

nascem novos riscos, o conhecimento torna-se assim a principal fonte geradora da

instabilidade que de certa forma acaba por perdurar nos dias de hoje, traduzindo uma

noção de incontrolabilidade sobre o meio científico, técnico e social. É um facto, que a

probabilidade de acontecer algo catastrófico é muito baixa, porém Fukushima5 não

fora um acontecimento no passado, levando sempre a recordar que acidentes como

este realmente acabam por ocorrer.

Como síntese, Ulrich Beck, exporta uma imagem de um futuro ensombrado

para as sociedades modernas, afirmando que “ a sociedade de risco é então uma

sociedade catastrófica pois nela, a excepção ameaça tornar-se a norma”(Beck,1992,

p.24).

Contudo, existem mais autores que partilham desta opinião, embora de uma

forma um pouco diferente, Anthony Giddens é um deles. Este será o próximo ponto de

abordagem na prossecução do meu ensaio.

5 “Vários funcionários da central nuclear de Fukushima, fortemente atingida pelo sismo e tsunami que atingiram o

Japão neste mês, foram evacuados depois de ter sido detectado fumo a sair do reactor número três. Mesmo assim, o governo japonês diz que a situação na central avança de forma lenta mas positiva.” Fonte: http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1811257&seccao=%C1sia “Alguns indivíduos de uma espécie de atum do oceano Pacífico capturados em Agosto de 2011 na costa da Califórnia, nos Estados Unidos, estavam contaminados com radiação da central nuclear de Fukushima, no Japão, libertada depois do sismo de 11 de Março do ano passado.” Fonte: http://www.publico.pt/Ci%C3%AAncias/atum-capturado-na-california-tinha-radioactividade-de-fukushima-1548062

Page 153: Boletim 3 - Exército

A Incerteza do Risco

148

GIDDENS E O CONCEITO DE MODERNIDADE

O impacto cultural da globalização foi alvo de muita atenção para Giddens.

Imagens, ideias, produtos e estilos disseminam-se hoje em dia pelo mundo inteiro de

uma forma muito rápida. As consequências da globalização acabam por ter uma

dispersão em todos os sentidos, no qual afecta todos os aspectos do mundo social, no

entanto, dado a globalização ser um processo aberto e intrinsecamente contraditório,

as suas consequências são difíceis de prever e mesmo controlar, representando uma

outra forma de pensar esta dinâmica assente no risco. Muitas destas alterações

provocadas pela globalização resultam em novas formas de risco, cada uma delas

associada à sua época. Ao contrário dos riscos do passado, que tinham causas

estabelecidas e efeitos conhecidos, os riscos hoje em dia são incalculáveis e de

consequências indeterminadas. (Giddens,2001)

Anthony Giddens refere, que os seres humanos sempre se depararam

directamente com riscos de várias espécies, mas, actualmente incorporam uma

natureza diferente das anteriores. Anteriormente as sociedades humanas estavam sob

a ameaça de riscos externos, como, as secas, os terramotos, as pestes, entre outros,

onde não existia uma influência por parte da acção do homem, ao qual denominava de

riscos externos. Nos dias de hoje a sociedade é confrontada por riscos que resultam

do impacto da acção da tecnologia e da ciência sobre o mundo biofísico, ao qual

advém a intitulação de riscos manufacturados (Giddens, 2001).

As questões ambientais tem vindo a ocupar um lugar de progressiva evidencia

na Teoria de Modernidade no qual acaba por surgir sempre articulada a outras, tais

como, a globalização, a alocação de recursos no âmbito do domínio militar

transnacional e a perturbação trazida pela modernidade à vida pessoal e íntima, como

sejam o medo e a ansiedade face ao risco (Schmidt, 1999).

Giddens tem vindo ao longo das suas obras a associar os problemas

ambientais com conceitos como globalização, para ele o ser humano encontra-se

rodeado por uma panóplia de escolhas e de muitas incertezas, estando de certa forma

em concordância com a teoria apresentada por Ulrich Beck, ele acaba por reconhecer

que fora na era do industrialismo capitalista que ocorrera a explosão dos problemas

ambientais como fruto do desenvolvimento da ciência que por sua vez, acabou por

levar a um conjunto de riscos elevados.

O autor tal como Beck reconhece que a passagem da sociedade industrial para

a sociedade actual assenta sobretudo num conceito de Modernidade Tardia, contudo a

sua visão não se revela tão pessimista como a de Beck, nem o seu grau de

insegurança tão elevado. Tal como irei apresentar mais a frente, Giddens reconhece

que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia perderam a sua legitimidade com os

Page 154: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

149

casos já anteriormente referidos, no entanto Giddens acaba também por observar que

poderá ser através da ciência e da tecnologia que se poderá contornar esta

desconfiança.

Na opinião de Giddens a sociedade acaba por “olhar” para a ciência e

tecnologia com alguma desconfiança, é o resultado das consequências sobre o meio

ambiente provocadas pelo capitalismo industrial, contudo, o autor não assume uma

posição extrema tal como Beck, mas reconhece que é devido à conjugação entre

estes dois elementos que ocorre um processo reflexivo do conhecimento, conduzindo

à dúvida e à incerteza.

De acordo com este autor, o grau de insegurança que é gerado em torno da

sociedade, encontra-se muitas das vezes associado ao impacto social e cultural dos

riscos de elevadas consequências e baixa probabilidade, associados não só ao

ambiente, como também a outros fenómenos marcantes da realidade social

contemporânea (Valadas,2012).

Para ele, tal como fora para Beck, a perca da legitimidade por parte da ciência

e da tecnologia acabou por influenciar fortemente o sentimento de dúvida no universo

dos mais leigos. Giddens reconhece que fora o mundo industrial (capitalismo

industrial) o principal catalisador dos problemas ambientais, porém também ressalva

que poderá ser através dos fatores originários (ciência e tecnologia), que reside a

solução a essas mesmas contrariedades.

Atualmente, os meios de comunicação social assumem um papel fundamental

no processo de intermediação entre a ciência e a sociedade, “funcionando também

como formas e/ou rotinas de securização.” (Schmidt,1999, p.198) tal como o sistema

“pericial”6, No qual se encontram associados entidades como os peritos, especialistas

e técnicos que avocam, organizam e sistematizam as informações, desta forma os

“indivíduos transferem a sua confiança daquilo que eram os saberes tradicionais e

interacção com pessoas que conheciam” (Schmidt, 1999, p. 198), para um novo tipo

de sistema.

A este processo Giddens apelidava de “sistemas abstractos” sendo algo que

funciona como uma nova rede de confiança. Assim e de acordo com Valadas a

complexidade da gestão dos problemas da modernidade tardia obriga a uma acrescida

transferência de poder para os sistemas abstractos cuja lógica de funcionamento e

racionalidade é opaca à maioria dos leigos.

Outro dos pontos abordados por Giddens consistiu na importância dos

movimentos ambientalistas e nos seus efeitos sobre o discurso político, estes

movimentos que surgiram entre a década de 70 – 80 ainda que fora de uma forma

6 Por exemplo o nosso Infarmed, ao nível nacional, a organização mundial de saúde a uma escala mundial

Page 155: Boletim 3 - Exército

A Incerteza do Risco

150

marginal, acabam por auxiliar a compreensão sobre a natureza ou seja, esta já não é

só vista como um recurso produtivo, possibilita ainda instalar-se como uma referência

para a experiência perturbada das vidas pessoais na condição moderna.

Giddens identificou que o indivíduo ao viver num grau de insegurança elevado

acaba por ganhar consciência sobre os riscos globais.

Do surgimento desta contraposição da perca da legitimidade pela parte da

ciência e da tecnologia, e da possível resposta de estes mesmos factores, a

modernidade tardia ou radicalizada acaba-se por definir como uma “juggernaut

Society” (de futuro incerto) (Valadas, 2000). Giddens concebe o conceito de

“juggernaut society” como resposta à sociedade de risco.

CRÍTICAS A ESTES MODELOS

Estas teorias acabaram como qualquer teoria por ser alvo de críticas, entre as

quais e de acordo com Areosa, os críticos de Beck defendem que o sucesso de

conceito de sociedade de risco deve-se mais a circunstâncias históricas (por exemplo,

Luhmann vê este conceito como uma moda) do que uma verdadeira teoria social

consistente, isto é, defende que a teoria de Beck circula entre a verdade e a profecia.

Beck foi também apelidado como o teórico da catástrofe ou apocalíptico. Uma das

críticas recorrentes à sua teoria está relacionada com o próprio conceito de risco. Na

perspetiva dos críticos de Beck, a sua noção de risco é redutora, visto que esta é

simplesmente apresentada como uma resposta às consequências imprevistas da

industrialização, particularmente no âmbito dos riscos técnicos e ambientais. São

também apontadas insuficiências nas estratégias para gestão de riscos” (Areosa,2008,

p. 4).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, foi possível visualizar o desenvolvimento da teoria de

sociedade de risco sob a perspectiva de Ulrich Beck e Anthony Giddens.

Foi para mim um enorme prazer desenvolver esta temática, pois além de ser

uma área da qual eu partilho um especial interesse, trata-se também de um território

extremamente desafiante em contextos futuros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Areosa, João, (2008), “ O risco no âmbito da teoria Social” in Modernidade, Incerteza e

Risco – VI Congresso Português de Sociologia, Mundos Sociais: Saberes e

Page 156: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

151

Práticas, Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas, Lisboa.

Beck, Ulrich (1992), Risk Society. Towards a new modernity. London: Sage.

Beck, U. (1994), “Dalla società industriale alla società del rischio. Questioni di

sopravvivenza, struttura sociale e illuminismo ecologico”, in Teoria Scoiologica,

2, 4 pp. 49-75.

Beck, Ulrich (1999), World risk society. Cambrige: Polity Press.

Mela, Alfredo, Maria Carmen Belloni e Luca Davico (2001), “O Ambiente na reflexão

sociológica”, A Sociologia do Ambiente, Lisboa, Editorial Estampa, pp. 168-172.

Giddens, Anthony, (1992), As consequências da modernidade, Oeiras, Celta Editora.

Giddens, Anthony,(2001), Sociologia, 7ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Av.

Berna, Lisboa.

Schmidt, Luísa, (1999), “Sociologia do Ambiente: genealogia de uma dupla

emergência”, in Análise Social, nº 150, pp.175 – 210.

Publico “Atum capturado na Califórnia com radioactividade de Fukushima” disponível

em:http://www.publico.pt/Ci%C3%AAncias/atum-capturado-na-california-tinha-

radioactividade-de-fukushima-1548062 consultado a 12-06-2012.

DN Globo “Fukushima : fumo no reactor 3 obriga a evacuar trabalhadores” disponível

em:

http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1811257&seccao=%C1si

a consultado a 12-06-2012.

Youtube, “Chernobyl Nuclear Disaster – Surviving Disaster (BBC Documentary)”

disponível

em:http://www.youtube.com/results?search_query=Chernobyl+Nuclear+Disaste

r+%E2%80%93+Surviving+Disaster+%28BBC+Documentary%29&oq=Chernob

yl+Nuclear+Disaster+%E2%80%93+Surviving+Disaster+%28BBC+Documentar

y%29&aq=f&aqi=&aql=&gs_l=youtube.12...2432.2432.0.3833.1.1.0.0.0.0.82.82.

1.1.0...0.0.xonXw-vL9Q8 Consultado a 13-06-2012.

Page 157: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º 3 – 2012

PP. 152 a 162

152

DOIS OLHARES SOBRE A MESMA PERSPECTIVA – SOCIEDADE DO

RISCO - ULRICH BECK E ANTHONY GIDDENS

Andreia Filipa Duarte Pires*

RESUMO

É inevitável falar em sociedade do risco, sem fazer um enquadramento sobre modernidade e pós-modernidade, assim como consequentemente do processo de globalização e risco, e por fim a sociedade do risco em si mesma. Ao pensarmos no desenvolvimento das sociedades não o podemos dissociar da modernidade, que segundo Giddens, se refere aos modos de vida e organização social que surgiu no século XVII na Europa e subsequentemente teve influência mais ou menos global. É relevante enquadrar o tema da globalização, termo este que se refere ao processo de interdependência e relações sociais a um nível mais alargado, no qual se pode afirmar que vivemos num “mundo único”. Associado a esta ideia, estão os fenómenos que lhe são intrínsecos, e a emergência do risco em sociedade. Palavras-chave: Modernidade, Globalização, Sociedade do Risco

ABSTRAT

It is inevitable to talk about risk society without referring modernity and post modernity, which led we can say to the process of globalization and risk, and obviously the risk society itself. When we think of the development of societies we can’t dissociate it from modernity, which , according to Giddens, gave rise to different ways of life and social organization that emerged in Europe, in the XVII century , and globally had a gradual increase as consequence. It’s important talk about globalization as a frame of reference, since it is connected to the process of interdependence and social relations to a wider level, once we live in a “one world”. Related to this process are the intrinsic events and the rising risk in society.

Keyword: Modernity, Globalization, Risk Society

I – MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE

São diversos os autores que falam em modernidade e pós-modernidade relativamente à

sociedade.

Um destes autores é Featherstone (1989), defende que o pós-modernismo é um reflexo do

mundo Ocidental, mostrando um corte ou ruptura com a modernidade, contrapondo-se a esta.

Relativamente aos conceitos de modernidade e pós-modernidade, cito Featherstone em

que este diz: […]. A modernidade é definida geralmente como tendo surgido com o Renascimento

e foi definida em relação à Antiguidade […]. Na perspectiva da teoria sociológica Alemã dos finais

do século XIX, princípios do século XX, da qual deriva em grande parte o nosso sentido comum

* Licenciada em Sociologia pela Universidade da Beira Interior, E-mail: [email protected]

Page 158: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

153

do termo modernidade é contraposta à ordem tradicional e implica a progressiva racionalização e

diferenciação económica e administrativa do mundo social […] (Featherstone, 1989, p.95).

No entanto, Featherstone (1989) quando fala em pós-modernidade sugere uma mudança

de paradigma ou ruptura com a modernidade envolvendo a emergência de uma nova totalidade

social com princípios próprios de organização. Todavia o conceito pós-moderno deve integrar o

moderno.

Evocando Lyotard (1984) (in Featherstone, 1990, p.96) quando fala de modernidade, diz

que esta deve ser vista como qualidade da vida moderna, da qual produz um sentido de

descontinuidade no tempo. Tal como defende Giddens (1996) quando fala na descontinuidade da

modernidade, para este autor, a modernidade refere-se aos modos de vida e à organização social

que emergiu na Europa por volta do século XVII exercendo influência a nível global.

Apesar de muitos defenderem a ideia de estarmos a entrar numa nova era – a pós-

modernidade, ou como alguns preferem designar esta transição, sociedade da informação ou

sociedade de consumo, pelo facto de nos encontramos a caminhar para um sistema centrado na

informação. Neste sentido, Giddens (1996) sustenta a ideia de que se está longe da época pós-

moderna – pós-modernidade, mas sim no começo de uma época de consequências da

modernidade, portanto fala das descontinuidades da modernidade em que os modos de vida

nesta alteram-se tanto em extensividade como em intensividade. Em extensividade, as

transformações na modernidade criaram formas de interligação social à escala global e em termos

de intensividade, transformaram-se as características mais íntimas e pessoais da nossa vida.

As descontinuidades da modernidade apresentadas por Giddens (1996) assentam em três

factores:

a) Primeiramente o ponto a focar é o ritmo da mudança, onde na era da modernidade é

mais dinâmica do que noutros sistemas tradicionais anteriores no qual a rapidez da

mudança é extrema e é mais visível no que respeita à tecnologia mas estando presente

em todas as outras esferas;

b) O alcance da mudança é o segundo ponto a mencionar, do qual à medida que

globalmente se interligam diferentes regiões do mundo leva a que surjam

transformações sociais à escala global;

c) Por último, o terceiro ponto a referir é a natureza das instituições modernas, isto é, ao

contrário de períodos históricos anteriores, a modernidade não se vê representada em

alguns modelos sociais modernos como é o caso do sistema político de Estado-Nação,

a dependência generalizada da produção do recurso a fontes de energia inanimadas e

ainda a completa transformação dos produtos e do trabalho assalariado em

mercadorias, enquanto noutros modelos sociais modernos preexiste uma continuidade

ilusória.

Page 159: Boletim 3 - Exército

Sociedade do Risco

154

Acerca da modernidade, Giddens (1996) faz também referência ao dinamismo desta,

apresentando três factores que caracterizam as instituições modernas:

- a separação do tempo e do espaço, esta separação é a condição do distanciamento

espacio-temporal de alcance indeterminado;

- o desenvolvimento de mecanismos de descontextualização, estes mecanismos

reorganizam as relações sociais através de grandes distâncias espaço-tempo; e por último,

- a apropriação reflexiva de conhecimento, esta apropriação afasta-se da tradição, pelo

facto de a produção de conhecimento sobre a vida social ser parte integrante da reprodução do

sistema (Giddens, 1996, pp.36-37).

II – GLOBALIZAÇÃO

A globalização implica olharmos para o mundo de uma forma global. Esta apresenta-se-

nos de uma forma diferente, passamos a estar interdependentes das relações entre países, o

local transforma-se em global, onde as nossas acções locais se repercutem ao nível global.

Tornamo-nos mais conscientes dos problemas que se passam à nossa volta a nível mundial, dado

que estes podem exercer influência nas nossas vidas, isto é, o local pode condicionar o global,

assim como o inverso.

Fazendo alusão a Giddens (2004), a globalização é um fenómeno que se transpõe para a

esfera mais íntima da vida pessoal através de meios impessoais como a internet, os media, que

nos dão a conhecer mais rapidamente, muitas vezes quase em “tempo real”, as situações que

acontecem no mundo, salientando também o contacto pessoal com indivíduos de outros países e

culturas, transformando definitivamente as experiências pessoais quotidianas dos indivíduos.

Importa frisar que as transformações que a globalização acarreta implicam uma redefinição

ao nível pessoal e mais íntimo das nossas vidas tais como os papéis de género, as interacções

com os outros, a identidade pessoal, a família e a sexualidade. Citando o autor, […]. Graças à

globalização, a forma como nos concebemos a nós próprios e a relação com as outras pessoas

estão a ser profundamente alterados (Giddens, 2004, p.61).

II.I – GLOBALIZAÇÃO, RISCO E MODERNIDADE

Como mencionado acima, a globalização é um processo caracterizado pela intensificação

das relações sociais à escala global, regiões interligadas entre si, em que os acontecimentos

locais são moldados influenciando outros locais mais distantes – cite-se aqui Giddens quando diz:

a modernidade é inerentemente globalizante (Giddens, 1996, p.44).

Voltando o discurso para o risco, o risco em sociedade surge com o “ajustar” das

sociedades à globalização em todos os seus aspectos e todas as transformações ocorridas a nível

institucional pelo advento da modernidade.

Page 160: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

155

Hoje quando se fala em risco, muitos dos quais estamos expostos têm origem na criação

humana e não tanto primordialmente do mundo natural como outrora.

Citando Lasch, este autor esquematiza o risco do mundo contemporâneo, olhando com

mais pormenor para a modernidade, da seguinte forma:

“1 – Globalização do risco no sentido da intensidade: por exemplo, a guerra nuclear pode

ameaçar a sobrevivência da humanidade;

2 – Globalização do risco no sentido do crescente número de acontecimentos contingentes

que afectam todas as pessoas ou, pelo menos, um elevado número de pessoas no planeta: por

exemplo, mudanças na divisão global do trabalho;

3 – Risco decorrente do ambiente criado, ou natureza socializada: a infusão de

conhecimento humano no ambiente material;

4 – Desenvolvimento de ambientes de risco institucionalizado que afectam as

oportunidades de vida de milhões de pessoas: por exemplo, os mercados de investimentos;

5 – Consciência do risco enquanto risco: as “falhas de conhecimento” sobre os riscos não

podem ser convertidas em “certezas” através do conhecimento religioso ou mágico;

6 – Consciência bem difundida do risco: muitos dos perigos que enfrentamos

colectivamente são conhecidos de vastos públicos;

7 – Consciência das limitações da pericialidade: nenhum sistema pericial o pode ser

totalmente em termos das consequências da adopção de princípios de pericialidade.” (Lasch cit.

por Giddens, 1996, pp.87-88).

Ao falar-se de globalização e risco, reporta-nos irremediavelmente para as consequências

de largo alcance e de como estas são de certo modo imprevisíveis, indeterminadas, incalculáveis

e difíceis de controlar afectando todos os aspectos do mundo social. Uma das consequências que

a globalização traz são a multiplicação dos riscos manufacturados – isto é, estes riscos dependem

do impacto da acção do nosso conhecimento e da tecnologia sobre o mundo natural, ou seja,

resultam da nossa acção sobre a natureza.

O indivíduo nas sociedades humanas sempre esteve perante a ameaça de riscos, mas

estes eram externos – sucedidos de terramotos, tempestades, secas e fome, não estando

dependentes da acção do homem. Actualmente são os riscos manufacturados que estão

presentes e ameaçam as populações. Dentro destes riscos manufacturados, são-nos

apresentados por exemplo os riscos ambientais e os de saúde. Em relação aos riscos ambientais,

o crescente aumento da intervenção do homem sobre a natureza através do desenvolvimento

industrial e tecnológico aumentou o risco a nível ambiental, de tal forma que umas das causas

maiores, será a crescente preocupação com o aquecimento global, do qual se sabe que provêm

diversos problemas globais, entre os quais: o degelo dos glaciares, o aumento do efeito de estufa,

aumento da camada de ozono. Comparativamente, os riscos de saúde também tem assumido

uma preocupação crescente por parte dos meios de comunicação e campanhas para a saúde

Page 161: Boletim 3 - Exército

Sociedade do Risco

156

devido às pessoas estarem cada vez mais expostas ao sol sem se lembrarem nos malefícios do

mesmo, ignorando por exemplo o risco elevado de sofrer de cancro da pele, também estes riscos

advêm do aumento do volume de emissões químicas produzidas pela indústria e mais uma vez

pela actividade humana.

Para Beck (1992) (in Giddens, 2004, pp.68-69), a globalização é a “responsável” pelo

surgimento de uma sociedade de risco global, o autor não considera apenas os riscos ambientais

e de saúde como ameaça, mas antes todas as mudanças na vida social contemporânea que

estão a surgir, os indivíduos vêem-se “obrigados” a pensar a sua posição em relação ao mundo,

isto é, temos que nos ajustar e responder constantemente a estas mudanças, desde a alteração

dos padrões de emprego à democratização das relações sociais.

Segundo Beck (1995) um aspecto importante da sociedade de risco é que os seus perigos

não são limitados espacial, temporal ou socialmente (cit. por Giddens, 2004, p.69).

O fenómeno da globalização, como é referido por Giddens (2004) também se desenha sob

a forma de desigualdade, ou seja, os países encontram-se diferenciadamente expostos a este

fenómeno, sendo sentido assimetricamente o impacto desta nos diferentes países. Os países

“desenvolvidos” ou industrializados têm maior poder e desenvolvimento económico estando este

concentrado num pequeno número de países sobre os países de “terceiro mundo”, onde persiste

um fosso de disparidade cada vez maior, vejamos que é aqui que se sofre de generalizada

pobreza, sistemas de prestação de cuidados de saúde e educação deficientes e obsoletos,

pesadas dívidas externas e sobrepopulação.

A globalização é um processo em aberto, de forma rápida e assimétrica com

consequências inesperadas e difíceis de controlar, que resulta da conjugação de diferentes

factores sociais, políticos, económicos e culturais. Caracteriza-se fortemente pelo avanço das

tecnologias de informação e comunicação e intensificação das relações sociais.

No que respeita à disparidade entre países ricos e pobres, pode dizer-se que é nos países

ricos que se concentram os recursos e o consumo, a riqueza e o rendimento, no entanto

inversamente a esta perspectiva encontra-se a dívida externa, a fome e a doença e naturalmente

a crescente situação de pobreza associada aos países mais desfavorecidos que acabam por ser

marginalizados ou mesmo acabando por ser excluídos do processo de modernização e

globalização já que se acentua a sua dependência para com os países mais ricos.

Seria um desafio para o mundo global, que neste século XXI, o processo de globalização

chegasse de forma igualitária a todos com as mesmas oportunidades ou que a cooperação

transnacional entre os países permitisse um mundo social melhor para todos, já que os que mais

necessitam de ajuda são os que correm risco de continuar no processo de exclusão global se

assim se pode dizer. Actualmente é “impensável” agir localmente sem pensar globalmente.

Page 162: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

157

III – A SOCIEDADE DO RISCO – CONFRONTAÇÃO ENTRE BECK E GIDDENS

O risco é transversal a todos os sectores da sociedade como afirma Queirós, Vaz e Palma

(2006), autores como Beck (1992, 1994, 1999) e Giddens (1991, 1998, 1999) (in Queiróz, Vaz,

Palma, 2006, p. 1) centram a sua tese no facto de vivermos numa sociedade onde a

industrialização, os avanços tecnológicos emergem em prol do desenvolvimento e progresso,

modificando a natureza dos riscos e a capacidade da sociedade os gerir e compreender.

O grande paradigma da sociedade moderna é o “risco” uma vez que temos hoje uma maior

consciência dos riscos que nos ameaçam. Queirós, Vaz e Palma (2006) afirmam que as

sociedades sempre estiveram expostas ao risco mas de modos diferenciados, isto é,

primeiramente o risco estava presente como produto da acção não humana – os riscos não são

controlados pelo Homem – e actualmente os riscos são produto da acção humana dado

resultarem do processo de modernização e das alterações das estruturas de organização social.

No seguimento desta perspectiva podem esquematizar-se as características de Beck

(1992) e Giddens (1996) relativamente à evolução das sociedades. Beck fala na evolução das

sociedades composta por três períodos: sociedades tradicionais, primeira modernidade e segunda

modernidade representada no Quadro I, Giddens por sua vez fala do risco nas sociedades pré-

modernas e modernas representadas no Quadro II.

Quadro I – Características das sociedades tradicionais, da primeira modernidade e

segunda modernidade, segundo Beck (1992).

SOCIEDADES TRADICIONAIS PRIMEIRA MODERNIDADE SEGUNDA MODERNIDADE

- Estruturas comuns;

- Influência da família na

construção da individualidade;

- Tradição;

- Religião/Crenças

- Peso do Estado-Nação;

- Estrutura de classes sociais;

- Pleno Emprego;

- Rápida Industrialização;

- Reflexividade;

- Destradicionalização;

- Individualização;

- Globalização;

- Desemprego;

- Revolução de género;

-Progresso tecnológico/ Poder

tecnocrático;

- Segurança;

- Previsibilidade;

- Confiança;

- Norma

- Dúvida quotidiana;

- Incerteza;

- Fragmentação Cultural;

- Insegurança

FONTE: adaptado de Beck (1992), cit. por Queirós et. al (2006)

Assim, ao analisarmos o quadro, notamos que Beck vai ao encontro de Giddens no sentido

de se privilegiar nas sociedades tradicionais a tradição como influência da construção da

identidade, em que se vive o ambiente dos riscos previsíveis, confiança e a seguranças nas

Page 163: Boletim 3 - Exército

Sociedade do Risco

158

instituições sociais ao invés do que se assiste actualmente na passagem da primeira para a

segunda modernidade – aqui é desprivilegiada a tradição, existindo uma maior individualização da

sociedade dado que a globalização de certo modo causou uma fragmentação da “essência” das

sociedades tradicionais, citando o autor, este entende pela segunda modernidade o facto de as

instituições modernas se estarem a tornar globais, enquanto a vida quotidiana se está a libertar do

jugo da tradição e dos costumes (cit. por Giddens, 2004, p.679), ainda Beck (1992) refere o

processo de perda de tradições como forma dos indivíduos tomarem as próprias decisões

resultando desse modo, novos estilos de vida. Contudo com o crescente desenvolvimento do nível

tecnológico e industrial, também se revolucionaram os papéis de género. Observe-se que com o

risco, surge a insegurança relativamente às instituições sociais uma vez que se fala sobre a

capacidade de resposta aos problemas que advêm da globalização e modernidade, a incerteza e

a dúvida, e também a crescente interacção com outras culturas e países levando à fragmentação

da própria cultura.

Complementando a ideia de Beck, Giddens (1996) faz também uma análise do risco nas

sociedades pré-modernas e modernas. Observe-se o Quadro II.

Quadro II – Ambiente de Risco nas sociedades pré-modernas e modernas segundo

Giddens

AM

BIE

NT

E D

E R

ISC

O

SOCIEDADES PRÉ-

MODERNAS

(Primeira Modernidade)

SOCIEDADES MODERNAS

(Segunda Modernidade)

- Ameaças e perigos

provenientes da natureza, tais

como a prevalência de doenças

infecciosas, insegurança

climatérica, cheias ou outras

catástrofes naturais;

- Ameaça de violência humana

por parte de exércitos de

saqueadores, senhores da

guerra locais, ladrões;

- Risco da perda da graça

religiosa.

- Ameaças e perigos emanados

da reflexividade da modernidade;

- Ameaça de violência humana à

industrialização da guerra;

- Ameaça de perda de sentido

pessoal, derivada da

reflexividade da modernidade

aplicada ao self.

FONTE: adaptado de Giddens, 1996, p.70.

Parafraseando Beck (1992), sobre a evolução das sociedades representadas no Quadro I,

as sociedades tradicionais podem considerar-se as existentes na Europa até ao início da

Revolução Industrial, caracterizadas pela forte influência da família e forte religiosidade. A primeira

Page 164: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

159

modernidade afirmou-se na Europa nos séculos XVII e XVIII, aqui a Igreja perde poder e a família

passa a ser nuclear, substituindo a família alargada. O modelo da primeira modernidade assenta

na rápida industrialização, pleno emprego e pela grande influência do Estado-Nação, ainda assim

com todas estas alterações prevalece um ambiente de confiança, segurança e previsibilidade.

A segunda modernidade teve início no século XX permanecendo até aos dias de hoje.

Beck (1992) afirma que os riscos são uma causa do processo de modernização, em que a

industrialização não se pode dissociar da produção de risco e onde o avanço tecnológico é

apontado como um índice de causa-efeito deste processo, do qual Beck defende a ideia de que

[…] os riscos ultrapassam os limites temporal e territorial, e são produto dos excessos da

produção industrial. […] (Castiel, 2001, in Navarro e Cardoso, 2005 cit. por Queirós et al., 2006,

p.8). Já Giddens defende a perspectiva de que […] os riscos na sociedade reflexiva extrapolam as

realidades individuais e até mesmo as fronteiras territoriais e temporais em resultado do processo

de globalização (Giddens, 2001, cit. por Queirós et al., 2006, p.7). […] Na era da modernidade

reflexiva uma acção independentemente da escala – individual, social e internacional – tem

consequências a uma escala imprevisível (Slattery, 1991, cit. por Queirós et al., 2006, p.7).

Ambos os autores põem em foco o debate sobre o risco como questão fundamental das

sociedades modernas, particularmente os riscos tecnológicos e ambientais. Eles defendem que a

sociedade contemporânea se caracteriza pela radicalização dos princípios que orientam o

processo de modernização industrial, que marcam a passagem da sociedade moderna para a

sociedade de risco – onde com o início da modernidade, os riscos ambientais e tecnológicos são

complementares das sociedades industrializadas dado ser o progresso do desenvolvimento da

tecnologia e ciência que produz novos riscos de carácter global, riscos em que as consequências

são imprevistas como é o caso do já mencionado aquecimento global, escassez e poluição dos

recursos hídricos, efeito estufa. A origem da sociedade do risco é marcada pela catástrofe de

Chernobyl.

Uma das propostas de Giddens (1998) (in Guivant, 1998, pp. 26-27) para enfrentar os

riscos da modernidade, passa por uma redefinição das políticas pressupondo uma reorientação

nos valores e nas estratégias, designando este processo como “política da vida”, isto é, a

discussão assenta no modo como iremos viver as escolhas sobre o que no passado era visto

como natural e inevitável. O impacto global do desenvolvimento industrial sobre os ecossistemas

é um dos quatro tipos de crises globais diferenciais de Giddens (1994b) (in Guivant, 1998, p.27),

sendo os outros, o desenvolvimento da pobreza, a propagação de armas de destruição maciça e a

proibição dos direitos democráticos, diz ainda que não há possibilidade de pensar a natureza

excluindo-a dos ecossistemas sociais, uma vez que este é o parâmetro base dos riscos

ambientais e tecnológicos.

Beck (1994) (in Guivant, 1998, p.28) também centraliza a questão do risco no eixo político,

identificando a segunda fase da modernidade como favorável a novas estratégias políticas, onde à

Page 165: Boletim 3 - Exército

Sociedade do Risco

160

primeira fase da modernidade, corresponde a passagem da sociedade industrial para a sociedade

de risco, emergente de uma dinâmica de radicalização da modernidade. À segunda fase da

modernidade, corresponde uma reflexividade sobre as consequências da modernidade industrial

sendo estas questionadas política e socialmente por organizações de interesse e pelo sistema

político.

No domínio do risco, considera-se importante citar o autor Franklin (1998), este afirma que

[…] a forma com que interpretamos os riscos, negociamos os riscos, e vivemos com as

imprevisíveis consequências da modernidade estruturará a nossa cultura, sociedade e política

pelas próximas décadas (cit. por Guivant, 1998, p.35).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em jeito de conclusão, pode afirmar-se que o risco passou a ser a questão e o debate

fundamental das sociedades modernas.

A modernidade acarretou muitas mudanças positivas como o desenvolvimento da ciência e

da tecnologia, a industrialização (mais avançada), o debate sobre questões que até então não

tinham tanta relevância tal como o inevitável debate nas agendas políticas e sociais do risco.

Beck e Giddens são dois autores incontornáveis quando se fala em sociedade do risco.

Beck foi o autor que alertou para a temática do risco a que as sociedades estão sujeitas

actualmente, tal como Giddens.

Este autor – Beck (2000) –, diz que a sociedade de risco surge como resposta à sociedade

industrial, pois “[…] a terminologia de sociedade de risco designa essencialmente uma condição

das sociedades contemporâneas, nas quais os riscos sociais, individuais, políticos e económicos

tendem, de forma crescente, a escapar à protecção, controlo e monitorização da sociedade

industrial. […]” (Beck (2000) cit. por Areosa, 2008:6), parafraseando ainda o autor, este afirma

que hoje o risco provém das incertezas criadas pelo nosso próprio desenvolvimento social tal

como o desenvolvimento da ciência e da tecnologia do que dos perigos naturais como acontecia

anteriormente.

Os autores Douglas e Wildavsky (1982) dizem que o risco é socialmente construído, e, por

vezes, afigura-se como algo incontrolável visto que nós nem sempre conseguimos saber se aquilo

que estamos a fazer é suficientemente seguro […]. Assim, a visão dos actores sociais sobre os

riscos aos quais estão sujeitos é sempre parcial ou incompleta (cit. por Areosa, 2008, p.3).

O risco é pautado pela incerteza – uma das suas dimensões – esta é vista como

omnipresente e condicional, pois não temos a possibilidade de conhecer e controlar todos os

riscos a que estamos expostos, tanto hoje – presente – como no futuro, sendo esta uma

característica da contemporaneidade como afirmam os autores Douglas e Wildavsky (1982) (in

Areosa, 2008:4). Logo, pode olhar-se para a modernidade, moldada e ajustada a um novo padrão

Page 166: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

161

– o risco, a emergência de novos riscos que se transformaram num fenómeno global capaz de nos

transformar relativamente aos riscos a que nos encontramos expostos. Alguns exemplos destes

riscos “invisíveis” mas “reais e presentes” são: a diminuição da camada de ozono, a poluição

ambiental, o crime organizado, os ataques terroristas, a proliferação de arsenal bélico sofisticado,

a modificação genética dos alimentos (transgénicos). São estes os riscos contemporâneos na

nossa sociedade e aos quais devemos ter a percepção que nos podem vir a afectar.

É a partir desta “era da modernidade” em que vivemos hoje que podemos questionar, um

pouco em jeito de afirmação, que vivemos condicionados pelo medo, com a percepção do risco

sempre presente no nosso comportamento, tendo a percepção da influência que a nossa acção

individual ou colectiva poderá causar danos à escala local ou global, em que muita das vezes não

se tem poder de controlo sobre essas mesmas acções.

Não se esquecem acontecimentos, como o 11 de Setembro (2001), e 11 de Março (2004)

na Estação de Atocha em Madrid, que marcaram e iniciaram uma fase de terrorismo. Salientando

também os fenómenos ecológicos/naturais como o Tsunami na Indonésia (2004), o sismo no Haiti

(2010) e mais recentemente a erupção do vulcão da Islândia (2011). Tudo isto incentivou a

reestruturação das agendas globais tanto a nível político como social.

São fenómenos como estes que de alguma forma nos fazem ter uma percepção diferente

do mundo em que vivemos actualmente, um mundo repleto de ameaças e riscos muitas vezes

imperceptíveis mas “reais”.

BIBLIOGRAFIA

Areosa, João (2008), O risco no âmbito da teoria social, comunicação apresentada no VI

Congresso Português de Sociologia, Lisboa, Mundos Sociais: Saberes e Práticas;

Beck, Ulrich (2000), What is globalization?, Politic Press;

Beck, Ulrich, GIDDENS, Anthony., LASH, Scott. ([1994] 2000), Modernização Reflexiva: Política,

Tradição e Estética no Mundo Moderno, Volume XXXVI (Outono), Análise Social, pp. 1015-

1020;

Castles, Stephen (2002), Estudar as transformações sociais, Revista Sociologia – Problemas e

Práticas, N.º 40, pp.123-148;

Featherstone, Mike (1989, Junho), Moderno e Pós-Moderno, Definições e interpretações

sociológicas, comunicação apresentada na Conferência do ISCTE, a convite da Revista

Sociologia – Problemas e Práticas e da Revista Crítica das Ciências Sociais, Lisboa,

Revista Sociologia – Problemas e Práticas, N.º 8, 1990, pp. 93-105;

Giddens, Anthony (2004), Sociologia, 4ª Edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian;

Giddens, Anthony (1996), As Consequências da Modernidade, 3ª Edição, Oeiras, Celta Editora;

Page 167: Boletim 3 - Exército

Sociedade do Risco

162

Guivant, Julia, S. (1998), A Trajectória das Análises de Risco: da periferia ao centro da teoria

social, Revista Brasileira de Informações Bibliográficas ANPOCS, N.º 46, pp. 1-40;

Queirós, Margarida, VAZ, Teresa, PALMA, Pedro (2006), Uma reflexão a propósito do Risco,

Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 1-23.

Page 168: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar

N.º 3 – 2012

PP. 163 a 176

163

O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011): dois conceitos em

conflito, devido às mudanças da economia política

Cândido Peixoto Fernandes*

RESUMO

Devido às transformações da economia política na derradeira década, ocorreu uma mudança radical de interpretação socioeconómica de um conceito operativo fundamental, como é o “Emprego”. Esta mutação neo-clássica liberal, implicou, em primeiro lugar, a eclosão de condições depressivas únicas e a mutação de perspectiva do Estado Democrático, quanto ao fenómeno do Emprego. Assim, desta dupla transformação, negativa, segundo todos os dados disponíveis, se gerou o seu abandono em simultâneo, por parte do Estado e do Mercado, levando ao aparecimento de algo de novo e trágico em Portugal – e na Europa - que é o “Desemprego Estrutural”. Palavras-chave: emprego, desemprego, estrutural, neo-clássico

ABSTRACT

Due to the transformations of political economy at the last decade, there has been a radical change in socio-economic interpretation of a key operative concept, as is the "job". This mutation neo-classical liberal, implied, first, the emergence of depressive conditions unique and changing perspective of the democratic state, as the phenomenon of job. Thus, this double transformation, negative, according to all available data, its abandonment was generated simultaneously by the state and the market, leading to the emergence of something new and tragic in Portugal - and Europe - which is "Structural unemployment”. Keywords: employment, unemployment, structural, neo-classical.

1. QUAL A DEFINIÇÃO ADEQUADA DE DESEMPREGO ESTRUTURAL?

O Desemprego Estrutural em Portugal caracteriza-se por ser um género de desemprego

massivo, involuntário e de longo prazo, que fundamenta o sistema capitalista neo-liberal, quanto à

política salarial e condições laborais, mesmo a nível de Estado, quanto mais, em termos de

Mercado. Já que passando a haver uma massa tão grande de trabalhadores disponível no

desemprego, sem qualquer possibilidade de sair dessa condição, estes se irão revelar dispostos a

aceitar um salário abaixo do SMN (Salário Mínimo Nacional), para poder trabalhar.

Então, o patronato pode impor o salário e as condições laborais e contratuais que

entender, com o fito, sempre, de obter maiores lucros e maior produtividade, com maiores cargas

horárias e menores condições de remuneração e para o trabalhador e menos direitos.

* Licenciado em Comunicação Social, pela Universidade do Minho (Braga, Portugal) e jornalista de profissão.

E-mail: [email protected]

Page 169: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

164

Com a actual Depressão Económica, que eclodiu em 2007, o Desemprego Estrutural

tornou-se em Portugal dir-se-ia que necessário e "naturalizado", essencial à manutenção

económica do sistema capitalista neoliberal, embora já houvesse um nível alarmante de

desemprego conjuntural a partir do ano 2001, com cerca de 4,1%.

O Desemprego Estrutural caracteriza-se, assim, em traços gerais: 1º por ser um género de

desemprego de longa duração (mais de 2 anos), muito duradouro e estável; 2º por ser massivo e

sem solução à vista; 3º um desemprego involuntário, em que a grande maioria dos cidadãos

nessa condição não tem culpa, são alheios às suas causas e não desejam continuar

desempregados.

Os desempregados caíram nessa condição socioeconómica altamente desfavorável contra

vontade, já que viram os seus contratos de trabalho rescindidos pela entidade patronal, fosse por

limite de tempo contratual, desnecessidade ou por despedimento simples, individual e colectivo.

Com tão grande número de casos comprovados, logo se confirma esta característica de

“involuntário”, quanto ao recente Desemprego Estrutural. E este deve-se à enorme quantidade de

unidades de produção encerradas, por falência e bancarrota, durante o processo de

“desindustrialização” e de “destruição de emprego”, por via especulativa financeira e por decisão

administrativa.

O Governo português, dada a adopção de políticas neo-clássicas (ou ultraliberais),

abandonou deliberada e conscientemente, a anterior política de "Pleno Emprego", consagrada

constitucionalmente, para passar a confiar em exclusividade, no Mercado livre. Segundo

defendem os seus mentores, este Mercado irá alcançar um novo ponto de equilíbrio e superar a

crise a prazo, através dos seus mecanismos automáticos de auto-ajustamento (preços, salários e

taxas de juro), afastada a hipótese de intervenção do Estado, em nome do Bem Comum.

Nestas condições adversas, sem uma política de "Pleno Emprego", irá cristalizar-se o

trágico fenómeno do Desemprego Estrutural durante tempo indeterminado, na Sociedade e

Economia portuguesas, a que se deve seguir uma pauperização e precarização crescente das

condições de vida entre a População Activa.

1. DESEMPREGO ESTRUTURAL VERSUS PLENO EMPREGO

Uma das primeiras ilações a retirar da tentativa de redefinir o que seja o Desemprego

Estrutural, é que a oposição ideológica entre duas correntes, como sejam o neo-keyneseanismo e

o neo-classicismo, corresponde a dois conceitos divergentes de “Pleno Emprego”, logo à partida.

Mais do que em relação ao antigo conceito, o que o novo “Desemprego Estrutural” está a

confrontar, é o “Pleno Emprego”.

O “Pleno Emprego” era entendido como uma Economia que utilizava ao máximo a sua

capacidade tecnológica e todos os factores de produção - o trabalho, o capital e os inputs

Page 170: Boletim 3 - Exército

O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)

165

(investimento, matéria-prima e bens de capital ou maquinaria). Este ponto de equilíbrio não

admitia mão-de-obra desempregada, acima dos 3% da População Activa. Devido à Depressão

Económica, essa situação de equilíbrio rompeu-se.

A interpretação sociológica do que se pode considerar legitimamente como “Desemprego

Estrutural” mudou e não no sentido progressivo, em termos científicos. O que deve alterar a

consciência social por veiculação ideológica da nova superstrutura.

Um problema tão grave deixou de ser considerado como prioritário, a nível de Estado. É,

aliás, o maior perigo subjacente, a nível teórico e na realidade concreta. Essa fracção da

População Activa deve ver-se “legalmente” abandonada – como se o “desemprego” fosse um

problema irresolúvel e não houvesse ciência para focar e atacar tal contrariedade, sequer.

Existe um grave problema de interpretação sobre o que está em causa, na actualidade,

quando vivemos no meio da mais grave fusão de crises desde a Grande Depressão de 1929. Este

problema deriva da falta de memória histórica e da ausência de uma boa interpretação política

sobre as duas grandes correntes ideológicas, o neo-classicismo liberal e o neo-keyneseanismo –

a que se pode unir a falta de um instrumento de análise tão elementar, como o “Desemprego”,

visto de forma correcta, dentro do âmbito da Sociologia.

Dado que a base teorética em causa se identificou como sendo neo-clássica, com o seu

maior fundamento na Escola Austríaca (von Mises e Hayek), nasceu uma confrontação política

muito profunda entre os ultraliberais e os ainda neo-keyneseanos. Cuja maior contribuição prática

foi a Época da Prosperidade que o Ocidente viveu a partir de 1945, o Welfare State - e a Escola

Institucional (cuja obra maior é a "Economia" de Paul Samuelson, uma síntese entre os princípios

neo-clássicos e keyneseanos, tendo aceite parte das teses do economista J. M. Keynes).

A separação entre estas duas grandes correntes continuou, havendo uma cisão entre

economistas e sociólogos, que viraram as costas à teoria contrária. Eles separaram-se,

entrincheirando-se em posições irreconciliáveis e ignorando os argumentos da outra parte.

Por esta razão, apesar dos neo-clássicos terem vencido de forma surpreendente no inicio

deste século, e construído uma nova economia de cariz regressivo e anti-democrático, os neo-

keyneseanos, como Krugman, Stiglitz e Roubini, apenas para citar os mais famosos - continuam a

seguir a regra de desclassificar totalmente o adversário, persistindo em dar a sua interpretação

dos factos e recusando-se a explicar o porquê da sua atitude.

A desclassificação académica dos neo-clássicos apoia-se no pressuposto que é uma

obviedade, desta corrente não funcionar. E essa condenação nasce da sua ética académica e

profissional e também, da profusão de dados negativos de cariz socioeconómicos, relacionados

com a Depressão actual e a anterior.

Eles condenam a teoria oponente e colocam-lhe o catálogo de "fuzzy economics".

Recusam-na e não a explicam: baseiam-se apenas no ensino e interpretação da realidade, a partir

dos seus próprios princípios. Se nasce ou não uma confusão deste confronto, não cabe aos

Page 171: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

166

teóricos ir mais longe, pois eles estão cristalizados nas suas posições, confirmadas pela

experiência prática – a sociedade contemporânea. Romper com esta atitude é romper com a sua

ética.

O que se pode fazer, então, para tentar compreender este conflito teórico insanável? Uma

proposta seria agir como um advogado em tribunal. Ou seja, para entender um caso judiciário, e

se houver oportunidade disso, deve-se assumir alternadamente a defesa e a acusação do caso,

de modo a conhecer com profundidade as motivações, as causas e os preceitos jurídicos que

ambos utilizam para resolver o caso. Aquilo que a defesa e a acusação dizem. Apenas assim se

pode entender o que se passa na globalidade – e sociologicamente, também.

E o mesmo se aplica às duas escolas económicas em confronto - depois de conhecer as

causas que movem cada uma delas, deve-se confrontá-las, até poder formar uma opinião mais

consciente. Este esclarecimento ideológico e teórico é fundamental para criar conceitos operativos

na Sociologia. Um dos mais importantes, senão o mais importante na área – dado o enorme

impacto socioeconómico que tem e deriva, como um estilhaço, da Depressão, é o Desemprego

Estrutural. O flagelo que se está a gerar, a avolumar e a instalar na Sociedade Portuguesa devido

a causas políticas e não científicas.

2. AS MUDANÇAS OPERADAS NO CONCEITO DE “DESEMPREGO ESTRUTURAL”

A questão passou a ser a linha política de fundo, adoptada pelos países ditos "avançados",

é uma versão extrema do Liberalismo Económico Clássico. Pela chamada “terceirização”, a

Economia e o Estado continuam subjugados pelo capital financeiro.

O mais premente dos problemas actuais é, sem dúvida, desde o ponto de vista sociológico

- o Desemprego Estrutural. E para compreender a absoluta inacção dos actuais Governos e a

carência prolongada de qualquer programa, salvo medidas residuais, como manter os Centros de

Emprego abertos - ou a ligação com a Segurança Social, apenas para contabilizar os

trabalhadores ou no sentido de os ir eliminando, quando cancelados os subsídios de emprego, os

subsídios sociais, o RSI (Rendimento Social de Inserção), os abonos de família e outros

benefícios "cortados"?

Repete-se o padrão do novo Liberalismo Clássico como argumento central: apenas

revendo os seus standards atávicos, como o "desemprego friccional", se pode entender o que se

passa. Ou seja, um género de desemprego que resulta do desajustamento passageiro entre os

mecanismos automáticos de auto-ajustamento do mercado (preços, salários e taxa de juros).

Para os neo-liberais, o desemprego "não existe", em grande parte, pois é da exclusiva

competência dos agentes do Mercado - e dai não haver necessidade do Governo se mover nesse

sentido. O mercado irá resolver os atritos - dizem eles. Dai a necessidade de confirmar quais são

os conceitos operativos do liberalismo clássico agora reeditado, na área. Também não existe uma

Page 172: Boletim 3 - Exército

O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)

167

crise global, é sempre sectorial e não global – e refere-se apenas ao sector da Divida. E daí

advêm, em consequência, o não reconhecimento oficial de que exista qualquer crise verdadeira,

sequer.

Alguns neo-clássicos, como Milton Friedman, tentaram moderar este conceito de

"desemprego friccional" dos clássicos, que ignorava este fenómeno - por ex. nos anos 20 do

passado século - quando os sindicatos ingleses lutavam para que se reconhecesse oficialmente o

estatuto de "desempregado".

Os monetaristas propuseram, por ex., a "taxa natural de desemprego" - a Economia tende,

a longo prazo, a criar tal taxa, ligado, entre outras coisas, a expectativas negativas em relação à

subida dos salários, que coligados à taxa de inflação, anulavam o lucro dos empresários - e por

conseguinte, iriam criar mais desemprego.

Mas, agora, nem estas explicações arrevesadas concedem: os ultraliberais vêm a público

esclarecer com naturalidade, instalada a sua ideologia a nível sistémico - que um aumento de

1,3% da Taxa de Desemprego (cerca de 50 mil novos desempregados) - se deve à descida do

Deficit Público em -3%. Estes ignoram tudo porque tais problemas não cabem no seu modelo:

especulação financeira, desemprego, crise...

A primeira é um negócio como os outros, o desemprego não existe ou de atrito e

passageiro, a Economia funciona sempre no "pleno emprego", (dentro das possibilidades do

momento, talvez?), a crise apenas pode ser parcial e não global, etc.

Os dados são contundentes: no 4º trimestre de 2011, a Taxa de Desemprego atingiu 14%

em Portugal e 10,4% na Zona Euro. A estruturação sociológica (entendida como criar uma

estrutura persistente), deste género de Desemprego é simples de comprovar, por simples ilação

percentual e se a sobrepomos ao factor tempo.

No 4º trimestre de 2001, 4,1% da População Activa permanecia no Desemprego – e

portanto, cerca de 200 mil pessoas podem, embora seja uma simplicidade estatística, estar nessa

condição há 12 anos. Enquanto, no 4º trimestre de 2005, o dobro dessa percentagem, 8%, que

corresponde a cerca de 400 mil pessoas, devem permanecer assim há 6 anos.

Depois, olhando-se para o aumento súbito do Desemprego, entre o 4º trimestre de 2010 e

o 4º trimestre de 2011, que corresponde a 2,9%, então pode-se suspeitar que a Taxa de

Desemprego oficial ainda esconde uma larga percentagem de desemprego “oculto” ou não

“declarado”.

Tudo isto indica, que se trata de um flagelo, uma estruturação social do Desemprego, que

atingirá mais de 1 milhão de portugueses, dentro de uma estimativa conservadora. E que esse

fenómeno tem as características de longa durabilidade e de ser involuntário – quando não

automático, dentro do sistema neo-clássico.

Page 173: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

168

TAXA DE DESEMPREGO

Ano Portugal Zona Euro

2000 3,7% 8,4%

2001 4,1% 8,2%

2002 6,1% 8,7%

2003 6,5% 9,1%

2004 7,1% 9,3%

2005 8,0% 9,1%

2006 8,2% 8,2%

2007 7,8% 7,5%

2008 7,8% 8,0%

2009 10,1% 10,0%

2010 11.1% 10,1%

2011 14% 10,4%

A estruturação deste género de desemprego pode ser consciente e ter uma utilidade

política e até ser provocado – daí se falar em “destruição de emprego”, por parte do Mercado e do

Estado.

Nenhuma classificação sociológica do fenómeno do Desemprego actual descreve com

exactidão o fenómeno de desemprego massivo, insolúvel e involuntário verificado na última

década, salvo o Desemprego Estrutural, como se Portugal tivesse descido à condição de país

subdesenvolvido e ocorresse uma quebra e uma insuficiência de infra-estruturas industriais e

comerciais, que levariam à criação cumulativa de Desemprego. Ou seja, a sucessivas fases de

desocupação profissional não resolvidas.

O Desemprego Tecnológico tampouco se aplica, pois não ocorreu uma substituição de

bens de capital mais eficientes na Indústria, que levasse à especialização e o fim do trabalho

manual ou braçal (os programas tecnológicos não vieram substituir a maquinaria, e sim, a própria

Indústria…). O desemprego conjuntural ou cíclico prolongou-se além da crise oficial e vai mais

além da habitual ascendente da curva do ciclo económico.

O próprio Desemprego Friccional também parece ter desaparecido, absorvido pela grande

massa de desempregados, que se transformou num exército (pós) industrial de reserva,

Page 174: Boletim 3 - Exército

O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)

169

classificado como excedentário. Este género de desemprego resulta da fricção dos mecanismos

automáticos de reajustamento económico – e daí a mudança de emprego ou actividade dos

indivíduos (é o menor dos problemas dentro do Desemprego).

Por último, o desemprego temporário, ligado à sazonalidade do trabalho, sobretudo, nos

sectores agrícolas, e à crescente precariedade laboral, ainda não foi alvo de demasiados estudos

por parte dos institutos de estatística, pelo que deve ocupar uma fracção muito significativa da

População Activa.

3. A DESMONTAGEM DA TEORIA CLÁSSICA LIBERAL POR KEYNES

Vivemos já em plena Economia Clássica. A grande maioria da população é estrangulada

pela nova "garra invisível" do ressuscitado modelo de Liberalismo Clássico. É uma tenebrosa

forma de organização social e económica, tão regressiva como o corporativismo, apossou-se do

nosso país e dos países ditos "avançados". Mais: este novo e retrógrado classicismo adquire tons

de "czarismo" e pretende reduzir a população portuguesa a servos da gleba.

A Depressão Económica fundiu-se num encadeamento de crises ininterruptas, sem apelo

nem agravo, aprofundadas por "políticas de austeridade" desajustadas, com consequências

socioeconómicas gravosas, que vêm em sequência ao Desemprego Estrutural: a pobreza

persistente, as carências alimentares, a anomia, a instabilidade social, a delinquência, o abandono

de idosos e crianças, entre tantas outras.

A melhor definição do que consiste a "Economia Clássica" encontra-se na "Teoria Geral",

de J.M. Keynes, no segundo capitulo, intitulado "Os Postulados da Economia Clássica". Nesta

obra, o economista inglês tentou com êxito, desmontar o antigo modelo liberal clássico, peça a

peça, sobretudo, o Desemprego. Este modelo prevaleceu durante o séc. XIX, até 1929, e ficou

comprometido pela gravíssima crise que se instalou em todo o mundo, após o Crash da Bolsa de

Valores de Nova Iorque.

Após a Grande Depressão, o keyneseanismo acabou por prevalecer, de uma forma mais

ou menos liberal, ainda, depois de servir de base teórica, maioritária pelo menos, ao Presidente

Roosevelt, nos EUA ou ao primeiro-ministro Clement Atlee, na Grã-Bretanha, no pós-guerra.

Muitos outros países prosperaram segundo esta teoria económica e científica, desde a social-

democracia nórdica, até ao mais recente dos casos, o Brasil do PT, após o ano 2000.

Keynes, tal como qualquer economista do seu tempo, partia do estudo do classicismo

económico e portanto, não admira que se debruçasse sobre as eternas questões da teoria do

valor ou da produção e sobretudo, sobre o volume de recursos utilizados numa dada economia.

Esta quantidade de recursos era a preocupação fundamental dos clássicos. Com o seu livro,

Keynes acrescenta dois pontos novos - qual "a aplicação efectiva" destes recursos e as

"flutuações do emprego", tema este, que hoje, tal como nos anos trinta, é de capital importância.

Page 175: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

170

Na área do Emprego, a teoria clássica arrumava-o para um canto, com uma simplicidade

"sublime" e sem discussão, com duas leis:

"i. O salário é igual ao produto marginal do trabalho". Ou por outra, "o salário de um

trabalhador é igual ao valor que estaria perdido, se o emprego fosse reduzido numa unidade" -

após a dedução de custos da redução. Mas se a concorrência dos mercados fosse imperfeita,

esta "igualdade pode ser perturbada".

E depois,

"ii. A utilidade do salário, quando um determinado volume de trabalho foi aplicado, é igual à

não-utilidade (desutility) marginal da quantidade de emprego". Então, o salário real do trabalhador

assalariado é apenas suficiente para a sua subsistência, estando sujeito à qualificação da unidade

de trabalho - o indivíduo - pelo que a unidade das unidades empregáveis fica sujeita "às

imperfeições da concorrência". Os indivíduos podem suspender o trabalho, "em vez de aceitar um

salário que tinha para eles um valor utilitário abaixo de um determinado mínimo".

A teoria Clássica apenas admite, nestas condições, o "desemprego friccional". O Pleno

Emprego clássico não é atingido por razões colaterais e alheias ao mercado, e gera-se

desemprego devido "devido a uma temporária falta de equilíbrio entre as quantidades relativas de

recursos especializados, como resultado de erro de cálculo ou procura intermitente. Ou ao espaço

de tempo na sequência de alterações imprevistas, ou ao facto da passagem de um emprego para

outro, não pôde ser concretizada sem um certo atraso". Então, segundo o classicismo, deverá

ficar de fora sempre uma parte dos recursos humanos, pela natureza das coisas.

Aliás, para estes, o que existe é o "desemprego voluntário" por causa de uma "recusa ou

impossibilidade de uma unidade de trabalho", devido às leis laborais, por exemplo, a contratação

colectiva, de aceitar o salário conveniente à sua "produtividade marginal", quanto ao valor do

produto. Como nunca admitem o "desemprego involuntário", para os Clássicos, tanto o

"desemprego friccional" como o "desemprego voluntário" estão abrangidos na mesma categoria.

Dentro destes parâmetros, o volume de recursos utilizados é fixado pelas duas leis. A

primeira dá-nos o quadro da procura de emprego e a segunda lei, a maneira de a satisfazer.

Então, a quantidade de trabalho é fixada no ponto onde se equilibram as utilidades:

Produto marginal/ Emprego marginal

Daqui, que os Clássicos apenas previssem um crescimento do emprego, quando, citando:

"(a) A melhoria na organização ou na previdência diminuem o desemprego “friccional";

(b) Uma diminuição na não-utilidade marginal do trabalho, expressa pelo salário real, para

o qual o trabalho restante está disponível, de modo a diminuir o desemprego “voluntário";

(c) Um aumento na produtividade física marginal do trabalho nas indústrias de bens de

consumo;

Page 176: Boletim 3 - Exército

O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)

171

(d) O aumento do preço de bens de não-consumo, em comparação com os bens de

consumo, o preço dos bens de consumo, associada a uma mudança nas despesas de bens de

não consumo - vistos como simples Mercadorias".

Esta simplicidade advém, aliás, da única teoria de emprego existente entre os Clássicos, já

que se tratava de um tema muito secundário para eles.

Os Clássicos partem do princípio que é um facto indiscutível, a não-existência de trabalho

suficiente para toda a população de um país, com base num dado salário. Pois a população

gostaria, não apenas, de ter o trabalho que sempre desejasse, mas também ganhando aquilo que

exigissem os sindicatos, por ex.

A escola Clássica argumenta, baseada na segunda lei, que "que, embora haja procura de

trabalho existente pelo salário nominal (ou salário em dinheiro), apenas pode ser preenchida antes

que todos os que estão dispostos a trabalhar por esse salário, sejam empregados". E que, a

existir, este ponto de equilíbrio se deve a "um acordo tácito", entre os trabalhadores, para não

trabalharem por menos deste salário. De outro, modo os trabalhadores apenas podem esperar

mais Emprego, se aceitarem "uma redução de salários" (!). Caso contrário, caem na situação de

"desemprego voluntário".

Keynes denuncia a falácia dos Clássicos, pois acontece que "dentro de uma determinada

procura de emprego, haja uma quantidade de dinheiro prevista para o salário mínimo e não para

um salário mínimo real". Este factor da existência legal de um salário mínimo nacional veio a

contribuir para equilibrar o problema produção-emprego-salários, já que "se a oferta de trabalho

não é uma função dos salários reais como única variável, o seu argumento decompõe-se

totalmente e deixa pendente a questão que o emprego real será sempre indeterminado".

Os Clássicos trabalhavam segundo um modelo de Concorrência Perfeita, considerado um

caso especial, com óbvias e muito mensuráveis flutuações de emprego no caso geral. O outro

factor que pode deslocar a curva da oferta de emprego é a do preço dos bens de consumo.

Page 177: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

172

Quando ocorre um aumento no preço dos bens de consumo, os trabalhadores tem de

aguentar uma "redução dos salários nominais", mas não abandonam logo o emprego, como

propõe os Clássicos. Pois acreditavam "que seria ilógico que o trabalho resistisse a uma redução

dos salários nominais, mas não resistisse a uma redução dos salários reais". Keynes concluía, no

tempo da Grande Depressão, que a enorme taxa de Desemprego, que atingiu os 25 milhões de

pessoas nos EUA, não se devia a tais causas clássicas. Mas, sim, a outras, bem diferentes.

Daí uma das suas asserções: "São frequentes grandes variações no volume de emprego,

sem qualquer alteração aparente, quer nas exigências mínimas reais da força de trabalho ou da

sua produtividade".

Aqui, o economista inglês questiona a relação entre as mudanças reais no dinheiro e as

mudanças nos salários reais. Ou seja, entre salário nominal e salário real. E ele verifica que estes

vão quase sempre "no sentido oposto". Por uma simples razão cambial: quando a divisa sobe, os

salários reais caem e quando a divisa desce, os salários reais crescem.

Mais: pode acontecer que "a força de trabalho esteja mais disposta a aceitar cortes

salariais, quando o emprego está a cair". Mas os salários reais irão aumentar depois, devido ao

investimento feito em Bem de Capital, devido ao retorno que se ocasiona, mesmo se a produção

diminui. "Para obter mais trabalho do que é actualmente utilizado, geralmente, o capital fica

disponível para pagar salários, embora o preço dos bens de consumo esteja a aumentar e,

consequentemente, o salário real entre em queda".

Daqui se deduz que "o salário equivalente à mercadoria em divisa existente", não seja uma

indicação precisa da "não-utilidade marginal do trabalho". E a segunda lei fique sem validade.

Page 178: Boletim 3 - Exército

O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)

173

"Utiliza-se o salário nominal para determinar o salário real". E a partir daqui, a teoria

Clássica assume que a força de trabalho deve estar sempre disposta a aceitar uma redução do

salário nominal e por conseguinte, do salário real. Pelo que "a força de trabalho está em

condições de decidir o salário real pelo qual trabalha, mas não a quantidade de emprego criado a

esse nível salarial". E que é a negociação entre os empresários e os trabalhadores, o que

determina o salário real.

Aliás, a partir do princípio da livre concorrência entre os empregadores e sem "nenhuma

combinação restritiva entre os trabalhadores", estes podem combinar o seu salário real - conforme

a "não-utilidade marginal do volume de emprego oferecido pelos empregadores".

Os Clássicos acreditavam também que estas leis não se alteravam, fossem quais fossem

as condições do mercado, como legislação diferente, abertura ou fecho do sistema económico, as

condições bancárias de crédito, etc. E que nem sempre a redução nominal dos salários implicava

uma redução real dos mesmos.

Segundo Keynes, o nível geral dos salários reais não podia ser obtido pela negociação

entre trabalhadores e empregadores. Os Clássicos entravam em contradição com a sua teoria,

por uma série de motivos:

i. Os preços são regulados pelo custo marginal, calculado em termos de capital;

ii. Os salários nominais apoiam primeiro no custo marginal.

Então, seria de supor que se o salário mudasse, os preços iriam mudar na mesma

proporção - deixando o salário real e o nível de Desemprego na mesma. "Então, qualquer

pequeno ganho ou perda de emprego não afectariam a despesa ou o lucro, e outros elementos de

custo marginal permaneceriam inalterados".

Mas não, os Clássicos acreditavam que os preços dependiam do capital e que a força de

trabalho determina o salário real. E que o Pleno Emprego se pode definir pela seguinte lei: a

quantidade máxima de emprego que é compatível com determinado salário real.

Para Keynes, a segunda lei da teoria Clássica cai por terra pelas objecções quanto ao

comportamento real da força de trabalho e o pressuposto que o salário real é directamente

determinado pela negociação salarial.

Primeiro, porque uma queda dos salários reais devido ao aumento dos preços, mesmo

mantendo os salários nominais iguais, não leva à "provisão de mão-de-obra", antes pelo contrário.

E que "Não existe, portanto, nenhum expediente pelo qual a força de trabalho, como um todo,

possa calcular o seu salário real, para um valor dado pela tabela e fazendo, em simultâneo,

negócios com os empresários". Essa era a tese keyneseana.

Keynes tem um objectivo diferente dos clássicos: ele pretende resistir à baixa dos salários

nominais ou reais como método de balançar a economia. Mas não o pretende “resistir como regra”

e antes, optando por novas regras, já que constata que se os salários em geral não descem, isso

não vai afectar em nada o Pleno Emprego (o emprego total). Ao contrário do que afirmam os

Page 179: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

174

clássicos. Portanto, mesmo que ocorresse “uma resistência organizada”, não haveria qualquer

descida do Pleno Emprego.

Este “branqueamento dos salários” afecta, isso sim, “a distribuição do salário real

agregado, entre os diferentes grupos de trabalho, e não o seu montante médio por unidade de

emprego”. Então, “O nível geral dos salários reais depende das outras forças do sistema

económico”.

Para Keynes, nestas condições particulares, os clássicos deixavam o factor “sorte” aos

trabalhadores, na sua busca de um emprego com melhores salários ou mesmo, em encontrar um

simples emprego. E isto, devido à regra imutável da “não-utilidade marginal do emprego”, que

tudo estipula. Os próprios sindicatos, ao não calcularem o que tal significa em termos de “custo de

vida”, não iriam oferecer demasiada resistência a esta.

Esta norma implica que, em condições de livre mercado, os empresários não tem de se

preocupar com o Emprego e antes com o lucro. A Escola Clássica descrê da utilização plena dos

recursos disponíveis e podem por de parte muitos negócios, se estes não lhes garantirem os

benefícios que pretendem. Ou se os trabalhadores exigirem salários que os empresários não

estão dispostos a pagar. E ai surgiria o “desemprego friccional”, também.

Keynes rompe com a teoria clássica, ao propor esta categoria de desemprego, o

desemprego “involuntário”. A sua nova definição é: “Os homens caem no desemprego involuntário

se, no caso de um pequeno aumento no preço dos bens de consumo em relação ao salário

nominal, tanto a oferta agregada de força de trabalho disposta a trabalhar pelo salário corrente ou

combinado e da sua oferta agregada, com o mesmo salário, seria maior do que o volume de

emprego existente”.

Os clássicos continuam a insistir na sua fórmula do “salário real e a não-utilidade marginal

do emprego” da segunda lei. Não passa de um “atrito” temporário e passageiro – e o “desemprego

involuntário” não existe, quanto a eles. Podem ocorrer surtos de desemprego, por efeitos

colaterais, como a falta de “trabalhadores especializados” ou a pressão de “trabalhadores

especializados”, ao não aceitar determinado salário pela sua “produtividade marginal”.

Para Keynes, então “... se a "Teoria Clássica" só é aplicável ao caso de Pleno Emprego, é

falacioso aplicá-la aos problemas de desemprego "involuntário" – se é que existe tal coisa (…)”.

Para ele os teóricos clássicos “parecem geómetras euclidianos num mundo não-euclidiano que,

descobrem pela experiência, numa linha recta, outra linha aparentemente paralela; e que muitas

vezes, elas se encontram, traçam linhas de repreensão para não manter nessa linha as infelizes

colisões que vão ocorrendo... No entanto, na verdade, não há solução, a não ser conjugar o

axioma das linhas paralelas e elaborar uma geometria não-euclidiana”.

Não obstante o facto concreto de haver uma óbvia correlação entre “organização,

equipamento e técnica, os salários e o volume de produção (e consequentemente, o emprego” e

Page 180: Boletim 3 - Exército

O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)

175

por norma, “um aumento do emprego só pode ocorrer acompanhado de um declínio na taxa de

salários reais”.

Então, para os clássicos, “ se aumenta o emprego, então, no curto prazo, a recompensa

por unidade de trabalho em termos de salários e bens deve, em geral, entrar em declínio e

aumentar os lucros”. Pois, “o produto marginal do lucro (que regula os salários reais) diminui

necessariamente o emprego, e cresce”. E segundo esta perspectiva clássica, qualquer método de

aumentar o emprego deve levar, em simultâneo, a uma “diminuição do produto marginal” – e que

então, a taxa de salário deve ser medido em termos de produto e lucro.

Aqui surgem questões anexas, não apenas quanto ao lucro, mas também ao consumo, por

parte dos trabalhadores – que no caso dos clássicos, se devia manter estritamente ao nível da

subsistência. E quanto ao lucro, este cresceria intocado. E segundo a acusação de Keynes,

“impõe-se a vontade por parte dos trabalhadores de aceitar menores salários nominais”.

Era norma clássica inatacável, que “a oferta cria a sua própria procura” no sentido “que

todos custos de produção devem necessariamente ser aplicados, no total, directa ou

indirectamente, na hora de comprar as matérias-primas.” Quanto ao rendimento que os

trabalhadores “consomem ou poupam, como resultado da sua produtividade” é apenas, “o output

em espécie dessa actividade”. Pois “A totalidade dos rendimentos de um homem é gasta na

compra de serviços e de mercadorias”, segundo Marshall. E do lado do trabalhador, não cabe a

“poupança”, portanto, a não ser na “produção de capital”. Mais capital.

E então surge “o pressuposto da igualdade entre a quantidade da procura e da produção

como um todo e a sua quantidade de oferta” que é um dos axiomas máximos da Teoria Clássica,

para o economista inglês. E que funcionam como as linhas paralelas euclidianas. Nesta base

teórica tão dogmática, se fundamenta a visão clássica da “poupança privada e nacional”, da “taxa

de juros” tradicional, “a teoria clássica do desemprego”, a sua “teoria quantitativa do dinheiro”, as

vantagens do laissez-faire quanto ao comércio exterior, etc. Tudo pressupostos que Keynes vai

desmontar na sua “Teoria Geral”, qualificando-os como “errados”.

Esta situação tão estranha sucedeu por razões exógenas? Ou o novo modelo Liberal

Clássico funcionou como sempre, ao longo do tempo? Tudo leva a crer que S=f(i) se converteu

numa falácia dentro da Economia Clássica, apesar de não o ser no quadro keyneseano. Portanto,

a questão reside no Investimento (I).)

Assim, o economista inglês aborda a Clássica de uma perspectiva nova, democrática e

progressista, contestando que:

“(1) Que o salário real é igual à não-utilidade marginal do trabalho existente;

(2) Que não existe tal coisa como desemprego "involuntário", no sentido estrito;

(3) Que a oferta cria sua própria procura, no sentido que a quantidade de procura

agregada é igual à quantidade da oferta agregada, para todos os níveis de produção e emprego.”

E quando cai uma destas leis, todas as outras são invalidadas.

Page 181: Boletim 3 - Exército

Boletim de Sociologia Militar n.º 3

176

5. A VISÃO MARXISTA DO DESEMPREGO ESTRUTURAL

Por último, last but not least, aparece Marx, com uma “lei capitalista do desemprego”. O

desemprego entre os trabalhadores é consequência directa da propriedade privada dos meios de

produção e segundo ele, o processo de acumulação do capital na sociedade burguesa leva

automaticamente a que parte dos trabalhadores se tornem supérfluos. E assim, tem de ser

eliminada da produção e condenada ao desemprego e a carestia de via.

Na linguagem marxista, esta “superpopulação relativa” assume várias classificações, como

“flutuante”, que perde o trabalho durante algum tempo, até que haja novos incrementos da

produção, sem que esta a absorva por completo; “latente”, constituída pelos camponeses, a que o

progresso técnico vêm reduzir a exigência de mão-de-obra; “estagnada”, constituída por aqueles

que perderam definitivamente o emprego e se ocupam em trabalho irregular ou ocasional. Esta

visão marxista era lúcida, se olharmos para as tristemente célebres teorias demográficas

malthusianas.

BIBLIOGRAFIA

Donário, A., 2003, Economia Politica, Universidade Autónoma de Lisboa, Notas pessoais de

António Filipe Garcez José, recuperado em Maio, 2012, de

http://cogitoergosun.no.sapo.pt/ecopol2sem.pdf.

Keynes, J., M., 2002, Os Postulados da Economia Clássica in M.I.A, The General Theory of

Employment, Interest and Money, (Rev.Ed.).Recuperado em Maio, 2012, de marxists.org

2002.

Page 182: Boletim 3 - Exército