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CABEÇA DE CUIA O HOMEM ESPETÁCULO EM UM ATO VIOLEIRO: Zabelê, a filha do chefe da tribo dos Amanajós. Num se pode, mulher insinuante, assombração sedutora. Barba Ruiva, filho rejeitado de uma mãe solteira. Pé de Garrafa Morou! Tá na boca, Peba João, Veado Baião, Porca do Dente de Ouro, Velha do Peito Só, Cabeça de Cuia... Ah, o Cabeça de Cuica!Não queiram, meus amigos, convencer este contador, que é lenda a história que o mesmo acompanhou. Foi numa de minhas andanças que conheci Antonio, Francisco, José, Benedito, Pedro, Manuel, Paulo ou seria João? Os senhores me desculpem, mas no momento, o nome daquela criatura, marcada pela fatalidade, adormece em minha memória. Já perdi tantos nomes... Acontecimentos, nunca! Nomes, sempre. Re firo-me ao Cabeça de Cuia, cuja deformidade física acentuava-se a cada dia: a cabeça,estupidamente grande,equilibrava-se num corpinho ágil e doentio. Quantas vezes o vi? Uma ou duas vezes, ás margens do Rio Parnaíba. LAVADEIRA- (Coro)- Lava, lavadeira No rio Parnaíba Eu também quero lavar Rio abaixo, rio arriba Meu benzim num viva triste Viv alegre se puder Coração que vive triste Num logra o que quer Refrão Esta noite choveu ouro faz a sina o baião Eu não sei onde eu tava Meu bezim com o lantão Refrão Ò José não vá embora chega meu benzim o ‘cá Coação não lhe esquece só pode quem vai chegar Refrão LAVADEIRA I- Filho do demônio! LAVADEIRA II- De Deus é que não é! LAVADEIRA III- Deve ser expulsa da vila a D. Maria José! LAVADEIRA II- Ele assombra nossas crianças! LAVADEIRA III – Má influencia é o que é! LAVADEIRA I- Deve ser expulsa da vila a D.Maria José!

Cabeça de Cuia

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Page 1: Cabeça de Cuia

CABEÇA DE CUIA

O HOMEM

ESPETÁCULO EM UM ATO

VIOLEIRO: Zabelê, a filha do chefe da tribo dos Amanajós. Num se pode, mulher insinuante, assombração sedutora. Barba Ruiva, filho rejeitado de uma mãe solteira. Pé de Garrafa Morou! Tá na boca, Peba João, Veado Baião, Porca do Dente de Ouro, Velha do Peito Só, Cabeça de Cuia... Ah, o Cabeça de Cuica!Não queiram, meus amigos, convencer este contador, que é lenda a história que o mesmo acompanhou. Foi numa de minhas andanças que conheci Antonio, Francisco, José, Benedito, Pedro, Manuel, Paulo ou seria João? Os senhores me desculpem, mas no momento, o nome daquela criatura, marcada pela fatalidade, adormece em minha memória. Já perdi tantos nomes... Acontecimentos, nunca! Nomes, sempre. Re firo-me ao Cabeça de Cuia, cuja deformidade física acentuava-se a cada dia: a cabeça,estupidamente grande,equilibrava-se num corpinho ágil e doentio. Quantas vezes o vi? Uma ou duas vezes, ás margens do Rio Parnaíba.

LAVADEIRA- (Coro)- Lava, lavadeira No rio Parnaíba Eu também quero lavar Rio abaixo, rio arriba

Meu benzim num viva triste Viv alegre se puder Coração que vive triste Num logra o que quer Refrão Esta noite choveu ouro faz a sina o baião Eu não sei onde eu tava Meu bezim com o lantão Refrão Ò José não vá embora chega meu benzim o ‘cá Coação não lhe esquece só pode quem vai chegar Refrão

LAVADEIRA I- Filho do demônio!

LAVADEIRA II- De Deus é que não é!

LAVADEIRA III- Deve ser expulsa da vila a D. Maria José!

LAVADEIRA II- Ele assombra nossas crianças!

LAVADEIRA III – Má influencia é o que é!

LAVADEIRA I- Deve ser expulsa da vila a D.Maria José!

LAVADEIRA III -Órfão de pai, a cachaça matou ele!

LAVADEIRA I- A mãe é puta de cabaré!

LAVADEIRA II- Deve ser expulsa da vila a D.Maria José!

Pescadores

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PESCADOR I- Desde o dia em que Mazé pariu aquele menino que o céu virou inferno.Há anos não chove por estas bandas,os animais estão morrendo, as crianças estão magras, até os peixes desapareceram do rio.

PESCADOR II- As canoas, por encanto, afundam.As redes de pesca, no final d noite, estão todas rasgadas.Dizem os mais velhos que são os maus espíritos festejando o “tempo” do Menino-Cão.

VIOLEIRO – A pressão era muito forte, mas com o passar do “tempo”, a luta pela vida que se desenvolvia ao redor da aldeia miserável fez com que a criança fosse esquecida; sendo substituída pela dura realidade de uma existência escabrosa,de luta permanente contra fome ameaçadora, o frio inclemente e as mais árduas necessidades de uma via de sacrifícios.Seriam aquelas desgraças obras de maus espíritos?Não!Convenceram-se homens e mulheres .Não poderiam dar ouvidos a velhos supersticiosos!Cabeça de Cuia não era mais um monstro.

PROFECIA

VELHA- Enquanto o Menino-Cão

Por estas paragens viver

Homens,mulheres e crianças

Haverão de morrer

Quando o demônio m forma de menino

Devorara o vilarejo completo

Escutarei com certeza um hino

De morte e desgraças repleto

Enquanto o Menino-Cão

Por estas paragens viver

Homens,mulheres e crianças

Haverão de morrer

VIOLEIRO- A adolescência tornou-se o maior tormento de uma vida fadada ao sofrimento.Seu defeito físico estimulava o complexo de inferioridade que, não raro, manifestava-se em explosões incontidas de ódio e revolta.Meus senhores,convenhamos,aquele apelido ridículo irritaria o mais manso dos homens!Não pretendo assim,justificar os constantes espancamentos sofridos por aqueles que chamavam o menino de Cabeça de cuia.

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Zombaria

VOZ I- O Cabeça de Cuia chegou na feira e comprou uma melancia, dois mamões, uma abóbora e dois cocos.Vocês sabem como ele conseguiu levar isso tudo?

VOZES- Não!

VOZ I- No seu chapezinho!

Voz II- O que importa se em Teresina aparece assombração em forma de mulher?!Em Parnaíba,nós temos nossa própria assombração,o Cabeça de Cuia!

VOZES-Cabeça de Cuia! Cabeça de Cuia!Cabeça de Cuia!

VIOLEIRO- Refugiava-se nos matagais,ou nas coroas que se formavam no leito do rio, para onde sempre encontrava um jeito de se transportar.Os mais supersticiosos acreditavam que ele era capaz de voar... O que é isso, meus senhores, voar?! Que e Picos haja um peba cantador, ou mesmo um veado dançador de baião em Ribeiro Gonçalves... Mas um homem voador?!

O adolescente

CABEÇA DE CUIA- Essas mocinhas de hoje

Têm um costume ruim

Quando chegam no escuro

Dizem assim:

Me arroche meu bem

Me beije

Não tenha pena de mim

VIOLEIRO- Voltemos o drama: Aquele apelido grotesco desencadeava-lhe um ódio tremendo.Tornava-se capaz de tudo, e tudo...até mesmo matar.

(Vozes seguidas de morte)

VOZ I- O vento frio espalha o terror...

VOZES- Cabeça de Cuia!

VOZ II- Para as doenças não adianta chamar o doutor...

VOZES-Cabeça de cuia!

VOZ III- As barrigas roncam de fome como um motor...

VOZES- Cabeça de Cuia!

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VIOLEIRO- Homens e mulheres desculparam-se com os velhos. Cabeça de cuia é realmente o cão e forma de menino, gritavam alguns. Como pudemos desprezar sabedoria dos antigos , murmuravam os outros . A verdade é que ninguém se preocupou em averiguar o acontecido... Cabeça de cuia era um assassino e pronto.

O HOMEM É PRESO

DELEGADO- Apodrecerá na cadeia, filho do demônio! Deixarei que os ratos devorem teu corpo . Pegarás em vida, a vida que tiraste. Escuta as lamentações? São da família daquele que tu mataste. Assassino!

D. M º JOSÉ- Eu não mereço o inferno, seu padre! Não fui eu que ofendi o sexto mandamento da lei de Deus, não é justo que eu pague por um pecado alheio! Misericórdia , misericórdia!

PADRE- As repreensões, provocadas pelas travessuras tão peculiares à infância, levantaram cedo no ânimo desse menino, um sentimento de rebeldia contra tudo e contra todos, contra você, a própria mãe, que o repreendia em vez de consolá-lo, que o agredia em vez de dar-lhe carinho. Maldita seja, mulher! E por você, rapaz, eu só posso rezar.

VIOLEIRO- Meses depois, cabeça de cuia foge da cadeia. Passou a ser visto furtivamente, em pontos escusos, em lugares ermos, às margens do rio Parnaíba, sempre fugindo ao contrato humano. Por sua cabeça havia uma recompensa. Um povo que passava fome, meus senhores, dava-se ao luxo e oferecer dinheiro e mantimentos para aventureiros.

O HOMEM E O RIO

CABEÇA DE CUIA- Parnaíba, Parnaíba Rio. Rio amigo. Parnaíba amigo. Aqui estou ,Na mesma profissão de meu pai, a pescaria. Veja, Rio consegui linhas , anzóis e uma rede. Não foi fácil, a vila anda ,muito movimentada ultimamente. Vieram pessoas de todos os cantos, na esperança de capturar o cabeça de cuia. Por que que não me deixam em paz? Quantas precisarão morrer para que esta loucura chegue ao fim? Amanhã vou construir uma canoa...

VIOLEIRO-Não se exponha. Espere alguns dias. Quando perceberem que a vila não tem lá essas coisas para oferecer, certamente irão embora.

CABEÇA DE CUIA- Não será um trabalho pesado demais pra um homem só. Vou construir uma canoa daquelas feitas de tronco de árvore cavado ao meio, que o pessoal chama de desintera família, pelos riscos que sua navegação oferece.

VIOLEIRO- O perigo vem da terra... não é comigo que deve se preocupar ...

CABEÇA DE CUIA- A vila nunca esteve tão iluminada! Cheguei até a me perder em algumas calçadas. Só quando alcançava o rio é que conseguia nova orientação. São as fogueiras! Estamos em junho, Rio! Sabe o que vou fazer? Construir minha própria fogueira!

VIOLEIRO- Loucura! Quer que todo o povoado seja atraído pra cá? Não percebeu ainda a gravidade do caso? Aquelas pessoas que dançam quadrilhas, que alegres comemoram uma data tão festiva, mantêm um falso grau de civilidade. Se for capturado, sabe Deus o que farão para castigá-lo.

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CABEÇA DE CUIA- Já faz tanto tempo... ZAP! ZAP! ZAP! O chicote rasgava a minha carne ZAP! ZAP! ZAP! Minha mãe levantava e abaixava o braço muitas vezes! ZAP! ZAP! ZAP! Agredia-me até que eu desmaiasse. Só acordava no outro dia, com as marcas da agressão destruindo qualquer possibilidade de sonho. ZAP! ZAP! ZAP! Todos os dias! ZAP! ZAP! ZAP! Quando meu pai era vivo, isso não acontecia. Ele passava a maior parte do tempo embriagado, mas não me tratava como se fosse um animal, nem tinha vergonha de andar ao meu lado pelo povoado...que Deus o tenha em um bom lugar.

VIIOLEIRO- O vento frio anuncia a madrugada que se aproxima... é hora de dormir... de esquecer de lembrar...

CAÇADORES

CAÇADOR I- Quem descobriu a trilha fui eu, por isso mereço levar a pressa!

CAÇADOR II- Engano do senhor! Pertence a mim, quem o avisou primeiro

CAÇADOR III- A nenhum dos dois! Leva a fera quem a capturou, eu!

CAÇADOR I- Podemos resolver a questão com uma luta até a morte! Quem primeiro vai atacar?

CAÇADOR III- Tenho mulher e filhos, não quero minha vida arriscar! Mas numa disputa de violas posso até me acabar.

CAÇADOR II- Estou fora, não sei esse instrumento tocar.

CAÇADOR I- Eu aceito, já botando pra quebrar!

A DISPUTA

CAÇADOR I- Cabra comigo não incha nem carrega patuá pancada de vaca véia não derriba marruá.

CAÇADOR III- Quando vim da minha terra trouxe faca e facão pra cortar chifre de boi e topete de valentão

CAÇADOR I- Quando vim da minha terra trouxe faca e cuié pra cume pirão de home e sarapaté de muié

CAÇADOR III- Quem tem carneiro tem lá tem couro pra se deitá você morre mas não come a massa que eu penerá

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CAÇADOR I- A galinha e a mulher ninguém deixa passear a galinha raposa come a mulher dá o que falar

a galinha e a mulher são dois bicho interesseiro a galinha come o milho a mulher come o dinheiro

CAÇADOR III- Sou homem pra assumir que perdi a parada.Pode levar o bicho, violeiro camarada.

CAÇADOR I- Admiro teu comportamento, és tão raçudoQuanto um jumento.

(Cabeça de Cuia liberta-se e mata um dos caçadores)

ORAÇÕES

REZADEIRA- Uma incelença Da virgem da ConceiçãoRogai pr’ essa almaQue é nosso irmão

CAÇADORES- Socorrei Nossa SenhoraSocorrei nosso irmão

REZADEIRA- Já deu uma hora Que a cruz pendeuO sol incrisouA terra tremeu

CAÇADORES- Valei-me Nossa SenhoraValei-me Nosso Senhor

A MALDIÇÃO

CABEÇA DE CUIA- Minha mãe, eu não tive culpa! Pega o Cabeça de Cuia, pega! Aqueles gritos explodiram como bombas em meus ouvidos, gritos de incitamento, que bradavam a minha captura.

MÃE- Peixes, pássaros, mandioca... onde está? O que trouxe para a refeição?

CABEÇA DE CUIA- Não tive tempo , mãe... saí apressado...

MÃE- Desgraçado! Há tempos a fome se instalou neste lar miserável e tu vem me visitar e não trás sequer um pedaço de pão...

CABEÇA DE CUIA- A senhora não entende, não se trata de uma visita...

MÃE- Filho de um bêbado, vagabundo, parto infeliz!

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CABEÇA DE CUIA- Pare com isso, mãe...hoje não, mas amanhã trago o que comer para a senhora...

MÃE- Mentiroso, criminoso...

CABEÇA DE CUIA- Trago sim! Só não saio agora mesmo, por que devem estar à minha procura.

MÃE- Mentiroso! Criminoso! Cabeça de Cuia! Cabeça de Cuia!

CABEÇA DE CUIA- Não!

VIOLEIRO- Foi o bastante, meus senhores. Dessa vez o apelido doeu-lhe mais que as pancadas que sofreu quando esteve preso. Era sua mãe, aquela mesma que lhe dera o ser, que agora lhe lançava o apelido ridículo. Toldou-se lhe a vista, fugiu-lhe inteiramente a razão, emitiu sons incompreensíveis, porque não conseguiu falar. E possesso, “ levantou e abaixou o braço muitas vezes. “Quando veio dar acordo de si, espancara barbaramente a mãe, aquela que o embalara ao seio, que o lançara monstro à vida, que o desprezara na infância que hoje fazia coro com os que o ridicularizavam.

SUICÍDIO

CABEÇA DE CUIA- Rio Parnaíba, Rioamigo, Parnaíba amigo.Aqui estou com uma maldição no espírito, espanquei minha própria mãe.Ah, meu velho amigo, que sempre me afaga com a mesma carícia úmida de suas águas deslizantes, que me limpa a pele e mata a minha sede, recebe em seus braços esta pobre criatura, escondendo-a para sempre daqueles que a perseguem.

VIOLEIRO- Meus senhores, Cabeça de Cuia pulou no rio e nadou, nadou horas sem parar. Mergulhou uma vez, duas, três, e foi perdendo a noção do tempo, duas coisas, da vida...um pequeno redemoinho assinalou seu ultimo mergulho e nunca mais o viram, nem vivo, nem morto.

EPÍLOGO

VIOLEIRO- Hoje, receosos e cheios de superstição, os pescadores e remeiros do Rio Parnaíba, nas noites de escuridão, ouvem algumas vezes, ao longe um ruído surdo igual ao que se produz tamborilando uma cuia emborcada sobre uma porção de água. Persignam-se e rezam as rezas que sabem. Os que não fazem assim, diz a lenda, têm suas embarcações viradas e desaparecem irremediavelmente na correnteza do rio...

(música de João Ferry e Pedro Silva)

Remeiro valente do Rio ParnaíbaQue rema a canoa pra baixo e pra ribaQue brinca com a morte e tem pouca sorteDesprezando a vida contente a lidar.

Rameiro valente lá do meu torrãoQue afronta a corrente e sorri do trovãoQue rompe o balseiro, no mês de janeiroNas grandes enchentes que descem pro mar

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Já viste o Cabeça de Cuia apontarNo meio do rio e depois afundar?É o filho maldito, por pragas aflitosCastigo tremendo que a lenda sagrou

Se vires um dia a cojuba surgir No meio do rio e depois imergirNão é ilusão, é assombraçãoA alma maldita, Crispim pescador

Remeiro valente do rio Parnaíba Quem rema a canoa pra baixo e pra ribaQue brinca com a morte, e tem pouca sorte Desprezando a vida contente a lidar