Carlos Heitor Cony - Palavras na Veia

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    sumriocarioquice

    N 46 JULHO/AGOSTO/SETEMBRO DE 2015ISS 1981-6049

    ExpeDiente

    REDAO E PUBLICIDADEInsight Engenharia de Comunicao & MarketingRIO DE JANEIRO

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    Afonso Arinos de Mello FrancoAncelmo GoisAmaro Enes VianaAna Arruda CalladoAnna LetyciaBernardo CabralBoniCelina Borges Torrealba CarpiChico CarusoCcero SandroniClaudia FialhoDarc CostaDaniel De PlEva MarianiFrancis HimeFrancisco HortaHenrique LuzHumberto Eustaquio MotaJaguarJernimo MoscardoJerson LimaJoo Maurcio de Arajo Pinho Joaquim Ferreira dos Santos Joel Nascimento (do bandolim)Jomar Pereira da SIlvaJos LouzeiroJos Viegas FilhoJlio BuenoJlio LopesLanLeonel KazLilibeth Monteiro de CarvalhoLucy BarretoLus FernandesLuiz Alfredo SalomoLuiz Antonio VianaLuiz Carlos Barreto

    Luiz Carlos Lacerda (Bigode)Luiz Cesar FaroLula VieiraMalvina TuttmanMarcelo CarnavalMarco Antonio BolognaMarcelo CaleroMarclio Marques MoreiraMarco Polo Moreira LeiteMarcos FaverMaria BeltroMrio PriolliMartinho da VilaNlida PionNeville dAlmeidaNoca da PortelaOctvio Melo AlvarengaVOlvia HimeOscar NiemeyerVPaulinho da Viola Paulo Fernando Marcondes FerrazPaulo Roberto Pereira Paulo Roberto Menezes DireitoPhilip Carruthers Raphael de Almeida MagalhesVRosiska Darcy de OliveiraRuy CastroRuy Garcia MarquesTito RyffVernica DantasVitor LemosVivi NabucoWagner Victer Wanderley Guilherme dos SantosZelito VianaZiraldo

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    DIRETORRicardo Cravo Albin

    DIRETORA-ASSISTENTEMaria Eugnia Stein

    EDITOR RESPONSVELLuiz Cesar Faro

    EDITORA EXECUTIVAMnica Sinelli

    REPRTERESJoo Penido

    Kelly Nascimento

    DESIGNERSMarcelo Pires Santana

    Paula Barrenne de Artago

    FOTOGRAFIAAdriana Lorete & Marcelo Carnaval

    PRODUO GRFICARuy Saraiva

    REVISOGeraldo Rodrigues Pereira

    Paulo Barros

    CAPAAdriana Lorete

    IMPRESSO

    Primil

    som, sal, mar

    4 Relquias radiofnicas

    8 O samba da mais alta patente

    Causos e letras

    14 O anarquista imortal

    22Artfice de filigranas

    Saga carioca

    28 Traos e letras

    32 Sonata de amor ao Rio

    Do bem comer e melhor beber

    40 Pro dia nascer feliz

    Magia do olhar

    44 A cor e a forma agradecem

    50O Rio de Niemeyer

    Embaixador do Rio

    56Pelos olhos do menino Por Alberto da Costa e Silva

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    Cachaa ecaipirinhas cariocas

    A cachaa hoje um produto de for te apelo mundial, no mesmo patamar decongneres como tequila, rum, eau-de-vie e poucas outras. Em recente reuniode escritores e intelectuais, fiquei muito espantado, e simultaneamente gratificado,quando a conversa derivou para observaes, nem to triviais, sobre a arte e osprazeres das bebidas, em especial a nossa cachaa. Ora, em um salo em que serespiravam livros e ar timanhas do esprito, o assunto veio mesmo a calhar. At peloinslito do papo.

    Que a nossa brasileirssima cachaa e seu derivado mais imediato, a caipirinha,so produtos que esto na mente, no corao e, sobretudo, na boca dos brasileiros,

    sempre eu soube. A caipirinha uma configurao da alma carioca, como essnciade alegria, descontrao e criatividade do Rio.

    Ainda recentemente, o Instituto recebeu, c na Urca, um grupo de jornalistas daFrana. Ofereci-lhes vinhos e usque, na certeza de que estava a propor o melhor.Quando um deles quebrou a cerimnia e perguntou se era possvel sorver umacaipirinha, todos os demais (eram seis) prontamente aderiram. Servi-me, presto,do mote. E aproveitei para exibir uma garrafa da boa cachaa do estado do Rio deJaneiro, destilando um a um dos seus dotes, da sua histria e de sua fabricao.

    A cachaa ejeta-se de sombrio passado de escrnio para alar-se a uma bebidapremium, de acolhimento universal. H que se comparar a antiga marvada, ou

    caninha, a um ativo cultural do Brasil, alm de commodity em ascenso.O Estado do Rio produz o que h de melhor no gnero. Alis, muito recentemente,

    soube de projeto irradiador: o governo fluminense pretende dar musculatura aosprodutores locais de cachaas, incentivando-lhes as exportaes. E, oh! maravilha,viabilizando a ideia de culturalizar-se cada vez mais o preciso lquido com umpossvel Museu da Cachaa. C no Rio.

    Ideia propulsionada pelo entusiasmo de Maria Lcia Jardim, uma intelectual quesabe das coisas da cultura e que dispe de intimidade suficiente junto ao governadordo Rio. sua mulher... Ademais, eu anotaria que a cachaa est a caminho de seombrear, como objeto de desejo, imbatvel luminosidade da nossa msica popular,que, como sabemos, talvez seja o principal item artstico do Brasil no exterior. Nacachaa, o paladar agua e faz aflorar o sabor, tal como o usque ou o conhaque.

    Mas h e importante que se observe absoluta necessidade de investirmosem campanhas publicitrias destinadas sua maior expanso, j que sua sequn-cia prioritria, a caipirinha, triunfa entre os drinques mais solicitados do planeta,como mojito, whisky sour, marguerita, blood mary, cuba libre. Afinal, a bebida tpicado pas porta agora a sobriedade (com trocadilho, por favor) da cultura dasgentes brasileiras.

    E

    sqUina

    do

    ricardo

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    linda Batista

    relquias radiofnicas

    Uma coleo de raridades do rdio. Assim pode ser resumido o acervo que

    acaba de ser doado ao Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA). Trata-se da

    coleo que at ento formava o Museu do Rdio Roberto Marinho. Entre

    as preciosidades, h relquias como uma vitrola de 1917 movida a corda e

    um rdio de galena aparelho pioneiro na transmisso de ondas sonoras.

    p o r kelly nascimento

    O acervo, integrado por cerca de 2 mil peas,conta um pouco da Era do Rdio no Brasil. So1.500 discos, LPs e 78 RPM, de msica erudita epopular; e grandes painis, com fotos de impor-tantes personalidades da poca, como Emilinhae Marlene, diz Ricardo Cravo Albin, fundadordo ICCA. Outra parte valiosa uma exposiocom cerca de 50 peas e painis explicativossobre radionovelas, radioteatro, programashumorsticos, primeiras transmisses de futeboletc. uma mostra pronta para correr o Brasil.Sem falar na bela coleo de rdios dos anos40 e 50, aparelhos de pilha dos anos 70 e 80 evitrolas originais da Casa Edson e da RCA Victor,destaca ele.

    Inaugurado em 2004, o museu tinha o objetivode lembrar as contribuies de Roberto Marinho cultura e arte no estado do Rio de Janeiro.

    At julho, estava instalado Rua da Constituio,

    num charmoso sobrado colonial reconstrudopor esforos do jornalista Augusto Ariston.Desativado para visitao pblica, o casarofoi requisitado h meses por seu proprietrio, ogoverno estadual. O museu foi mantido, por 11anos, pela colaborao de emissoras afiliadas

    Associao de Emissoras de Rdio e TV do Estadodo Rio de Janeiro (Aerj) e por meio de doaes decolecionadores e do pblico em geral, recorda.

    O ICCA foi procurado pela diretoria da Aerj,preocupada em conseguir um destino nobre aoacervo de peas radiofnicas da opulenta Era doRdio, como microfones, fotos, toca-discos rarose eleps. O primeiro aceno foi feito por FlvioCavalcanti Jr, diretor da Associao. Prontamenteassenti. Evidentemente, no poderia, diante doque esse material representa, dizer no, emboratendo pouqussimo espao no Instituto. Mas,como sempre, acolhemos preciosidades que no

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    linda Batista

    podem descer escada abaixo da destruio,explica Cravo Albin.

    Antes que as chaves do sobrado fossem en-tregues ao governo, ele levou a primeira-dama

    do estado, Maria Lcia Jardim, para conhecer omuseu. Quando vi o acervo, h meses, fiqueicerto de que sua destinao deveria ser a de umainstituio congnere. Por essa justa razo etambm na tentativa de preservar o lindo casaro

    , convidei a primeira-dama, rara e culta intelec-tual, a visitar o j desativado Museu do Rdio eseu espao portentoso.

    Parceria com a Unirio

    Como o ICCA no tem mais espao para abri-gar o acervo do Museu, a sada encontrada porRicardo Cravo Albin foi colocar, provisoriamente, omaterial num guarda-mveis. A medida tornou-senecessria para ganhar tempo a fim de encontraruma soluo altura da coleo. E a respostaestava ali pertinho, na Urca mesmo. Este enca-minhamento para o depsito e sua continuidadeesto sendo geridos pela nova diretora da Aerj,

    chegada a hora de o

    ICCA, pelo sucesso que vem

    tendo, sempre procurado

    por grandes colecionadores,

    compartilhar o acesso a

    essas preciosidades

    Ricardo Cravo Albin

    Priscila Crespo, jovem executiva muito bem articu-lada com cultura e com governana de Memria.

    As negociaes com a Universidade Federaldo Estado do Rio de Janeiro (Unirio) esto bem

    avanadas. Conversei com o reitor da Unirio, LuizPedro San Gil Jutuca, que tem sido um grandeparceiro. A Universidade, que conta com umaEscola de Msica, o local ideal para preservare compartilhar o acervo. chegada a hora de oICCA, pelo sucesso que vem tendo e como vemsendo procurado por grandes colecionadores,repar tir o acesso a essas preciosidades, afirma.

    A parceria viabilizar a catalogao necessriado material. Vamos tentar fazer o levantamento detodos os discos, separando-os por vertentes mu-sicais. Pretendemos firmar um convnio para queo acervo de msica erudita possa ser diretamentecompartilhado dentro da Unirio, onde passar porcatalogao e higienizao. A ideia fazer umaao conjunta. Trata-se de um acervo bem vasto,que ainda no pudemos transcrever, definindo-setudo intrprete, compositores, gravadoras etc.

    Ainda h muito trabalho pela frente.

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    Carioquice8

    4 estrelas

    Osamba damais alta patente

    Sargento apenas no apelido, mas general do verbete alentado do Dicionrio

    Cravo Albin on-line, Nelson Matos completou em julho passado 91 anos. Dono

    de uma memria prodigiosa, ele contou ao pesquisador musical Diogo Costa

    e ao historiador Andr Diniz histrias do arco da velha. Por elas, desfila um

    artista multifacetado msico, cantor, compositor, pintor, ator e escritor ,

    que disse ao parceiro Agenor de Oliveira ter acordo com Deus para viver at

    2050, quando far 126 anos.

    p o r Joo Penido

    Essas narrativas, que renderam 50 horas degravao ao longo de dois anos, deram origemao livro-perfil Nelson Sargento, o samba da maisalta patente. Os autores se impressionaram como personagem retratado. Nos surpreenderama lucidez, a inteligncia, a tranquilidade, o alto--astral e, sobretudo, a disposio de Nelson.

    Apesar da idade avanada, ele continua compon-do sambas, fazendo shows, pintando quadros econduzindo seu programa de rdio, Eles tmhistria para contar, na Roquette Pinto. Chegoua escrever um novo samba durante as nossasconversas, afirma Diogo.

    Tive uma infncia boa, fui criado numa casade famlia que me tratava muito bem, contaNelson. Ele nasceu a 25 de julho de 1924, naSanta Casa de Misericrdia, no Centro do Rio. Seu

    pai, Olympio Jos de Matos, era cozinheiro-mordo Armazm Drago Secos e Molhados, na ruaHaddock Lobo, na Tijuca, e tinha por hobby oamor por parte dele, Nelson contabiliza nadamenos que 18 irmos. Sua me, Rosa Maria daConceio, com quem residia, trabalhava comocozinheira e empregada domstica na residnciado comerciante portugus Manoel Ferreira Dias,tambm na Tijuca. Nos fins de semana, o levavapara visitar amigos no Morro do Salgueiro, paraonde se mudaram quando Nelson completounove anos.

    na verde e rosa

    A me passou a trabalhar como lavadeira.Ele a ajudava na entrega nas roupas, tornando--se um exmio conhecedor dos cantos, becos e

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    Fotos: Paulinho Muniz

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    4 estrelas

    ladeiras da rea. Rosa havia se unido a ArthurPequeno, tecelo da fbrica de tecidos BomPastor, que tocava violo em um quarteto queinclua Alfredo Loureno, mais conhecido como

    Alfredo Portugus, um ex-fadista que virou sam-bista e escreveu vrios sambas-enredo. Nosei como o Alfredo soube que o homem estavadoente. Foi visit-lo no Salgueiro, percebeu quens estvamos numa pior e nos levou, Arthur

    Pequeno, minha me e eu, para a Mangueira.Cresci na casa dele, narra Sargento. No barracode Alfredo ocorriam animadas reunies, das quaisparticipavam Cartola, Carlos Cachaa, NelsonCavaquinho, Geraldo Pereira e Alosio Dias, queo ensinou a tocar violo.

    Quando chegou Estao Primeira de Man-gueira, surgida no fim da dcada de 1920, pormeio da unio do Bloco dos Arengueiros e doRancho Prncipe da Floresta, a escola j era

    tricampe do carnaval carioca, arrematando osttulos de 1932, 33 e 34. Em 1936, com o faleci-mento de Arthur Pequeno, Rosa e Alfredo, vivosvivendo sob o mesmo teto, resolveram juntar ospanos. Nelson, ento aos 13 anos e dono de umextraordinrio ouvido musical, em pouco tempopassou a ser uma espcie de gravador daquelaturma. Guardava na memria sambas dos quaisnem os autores se lembravam. S de Cartola

    salvou trs, aos quais acrescentou uma segundaparte: Deixa, Cime doentio e Vim lhe pedir.

    poca, Nelson trabalhava na Fbrica deVidros Jos Scarrone, em Vila Isabel. Nos mo-mentos de folga, fazia hora extra na principalrival da Estao Primeira, a Unidos da Mangueira,fundada em 1933 e que tinha Alfredo Portugusna ala de compositores. Por influncia de CarlosCachaa, Alfredo se mudou para a verde e rosapor volta de 1942, levando Nelson junto.

    rei das tintas

    Aos 17 anos, Nelson passou a pintar paredes,habilidade bastante valorizada naquele tempo,trabalhando nas casas de Raphael de AlmeidaMagalhes, Elizete Cardoso, Cac Diegues, Do-mingos de Oliveira, Leila Diniz, Srgio Cabral (pai)e Armando Nogueira. Da a pintar quadros foi umpequeno passo. Estava emassando uma paredee a massa que caa no cho no poderia ser usa-da novamente. Mas servia para tapar buracos.Ento comecei a colocar esse resto de massa

    em cima de uma madeira para aproveitar maistarde. Depois, ao espalh-la, observei que havia

    Ao lado de Beth Carvalho, que lanou o clebresamba Agoniza, mas no morre, de Sargento

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    Aos 13 anos, dono

    de um extraordinrio

    ouvido musical, Nelson

    passou a ser uma

    espcie de gravador

    dos compositores

    da Mangueira

    formado um desenho. Resolvi pintar esse desenhoe mostrei-o ao Srgio Cabral, que me incentivoua produzir outros. Quando Nelson reuniu seisquadros, Cabral organizou uma reunio em suacasa, nos idos de 1973. O primeiro a compraruma tela foi Paulinho da Viola. Os trabalhos iniciaisde Nelson eram abstracionistas; posteriormente,a exemplo de Heitor dos Prazeres, passou a re-

    tratar favelas, palhaos e fantasias de carnaval.Ele estava esperando ser chamado para o serviomilitar, mas a classe de 1924 no foi convocada.Em 13 de maio de 1945, acabou a Guerra. Fuivoluntariamente servir ao Exrcito. Com apenasoito meses de praa, virei cabo e, logo depois,sargento. Em 1949, quando larguei a farda, ssabia fazer duas coisas: samba e pintar parede.

    No comeo dos anos 1950, Alfredo Portugus

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    4 estrelas

    assumiu a presidncia da ala dos compositores daMangueira. Ele e Nelson j haviam feito sambas--enredo juntos, como Apologia aos mestres,que deu o ttulo Mangueira em 1949, acabandocom um jejum de nove anos. Em 1955, a duplacomps Cntico natureza, considerado umdos sambas-enredo mais bem feitos de todosos tempos e o melhor da Mangueira. Tambmconhecido como As quatro estaes do ano ePrimavera, tinha como refro Oh! primaveraadorada/Inspiradora de amores/Oh! primaveraidolatrada/Sublime estao das flores. Esta foia primeira e mais gravada msica de Nelson,presente em 30 discos.

    Outra de suas memorveis composies Ago-niza, mas no morre, lanada por Beth Carvalhono LP De p no cho, em 1978, e que virou um

    hino dos sambistas tradicionais ou de raiz. A letracritica a transformao do gnero: Samba/Agoniza,mas no morre/Algum sempre te socorre/Antesdo suspiro derradeiro/Samba, inocente p nocho/A fidalgia do salo/Te abraou, te envolveu/Mudaram toda a sua estrutura/Te impuseram outracultura/E voc nem percebeu.

    ator e escritor

    Desde menino, Nelson gostava de cinema, o quelhe rendeu uma tirada impagvel: Todo mundo gal de seu drama; o resto bandido. Ele frequen-tava os poeirinhas da cidade com um amigo, evolta e meia os dois enforcavam o trabalho para verTom Mix nas telas. Seu filme predileto Casablan-ca, ao qual j assistiu umas 300 vezes. Sabe decor o nome de cada um dos personagens.

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    Sua estreia na tela grande foi no papel demsico em Simonal, de Domingos de Olivei-

    ra. O convite aconteceu quando ele pintava oapartamento do cineasta. Nelson atuou tambmem filmes de Estevo Pantoja, Luiz Guimares deCastro, Alice de Andrade, Walter Salles e DanielaThomas, Cac Diegues (na reedio de Orfeuda Conceio) e Flvio Tambellini, bem como naminissrie Presena de Anita, da Rede Globo.Em 1997, Pantoja dirigiu Nelson Sargento daMangueira, premiado em diversos festivais decinema brasileiros. Na trilha sonora, estava a

    msica A felicidade se foi, sobre o fim de umromance: O amor muitas vezes nos pe demente/Ou nos transforma num farrapo de gente.

    J a relao de Nelson com a literatura co-meou na juventude. Foi um leitor voraz. Suabiblioteca bem diversificada, incluindo Confcio,Castro Alves, Olavo Bilac, Gonalves Dias, Cruz e

    Souza, Fagundes Varela e Sidney Sheldon. Temquatro livros publicados. O primeiro, em parceria

    com Alice Campos, Francisco e Dulcinia Duarte,chama-se Um certo Geraldo Pereira, vencedorde um concurso de monografias promovido pelaFunarte, em 1981. Seguiram-se Prisioneiros domundo (poesias) em 1994, e Pensamentos,em 2005, definido como um haicai mangueirense.O ltimo, de 2007, uma fotobiografia de CacDiegues.

    O prprio Nelson acabou virando samba--enredo, de duas escolas. Em 2012, da Unidos

    do Jacarezinho O samba agoniza, mas nomorre: Nelson Sargento da Mangueira e do Jacartambm. A segunda, neste ano, da Inocentes deBelford Roxo Nelson Sargento: samba, inocentee p no cho. Ser homenageado por duas agre-miaes do carnaval carioca talvez tenha sidosua maior faanha at hoje.

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    oanarquista imortalAutor de uma extensa lista de romances, contos, crnicas, ensaios biogrficos,

    adaptaes e histrias infanto-juvenis e com uma folha corrida de flego naimprensa, Carlos Heitor Cony, aos 89 anos, segue com a palavra afiadssima. Ao

    longo da carreira, arrebatou quatro Jabutis a mais importante condecorao

    literria do Brasil e o Prmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, da

    Academia Brasileira de Letras (ABL). O trofu mais recente (2015) foi o Grande

    Prmio Cidade do Rio de Janeiro, conquistado por ampla votao promovida pela

    Academia Carioca de Letras. , ainda, o ilustre ocupante da cadeira n3 no Petit

    Trianon, o qual, ironicamente, considera um jardim de infncia s avessas.

    p o r mnica sinelli

    rua do russell

    Nascido a 14 de maro de 1926, no Lins deVasconcelos, Carlos Heitor um tanto diferentedos meninos da sua idade. A comear que nofala. Nada. Sua primeira emisso de voz, aos cincoanos, sai sob a forma de um grito de espanto,quando v um hidroavio pousar na praia deIcara, em Niteri, onde mora. De volta ao Lins, afamlia se muda para uma chcara, atravessadapor um rio que serve na fonte s guas mineraisNazareth. E povoada de rvores frutferas, al-faces, cenouras, rabanetes, coelhos e galinhas.Meu pai fazia escambo: trocava ovos frescos porcarne no aougueiro, recapitula Cony.

    Um problema de dico que lhe dificultaa pronncia de certas consoantes, trocando,por exemplo, o c pelo t, o faz passar por cons-trangedoras cenas de bullying poca, mais

    conhecido por atos de humilhao e tirania nasescolas regulares. Zombavam muito de mim,at os professores reclamavam. E os diretorespediam que me tirassem do colgio, porque euestava sofrendo com aquilo. Ernesto, o paiamantssimo, professor do Estado e jornalista,ensina ento o filho a ler e escrever. Bem mais queisso: prepara-o, aos 11 anos, para os rigorososexames admisso no Seminrio ArquidiocesanoSo Jos.

    Aprovado, entre os primeiros, na instituioeclesistica do Rio Comprido, o garoto cogitaabraar vera o sacerdcio. J me sentia umpadre em miniatura brinca o escritor, na salade seu apartamento com vista 180 da LagoaRodrigo de Freitas. Um deles, notando o meuproblema de fala, viu que eu no conseguiria

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    Carioquice16

    rua do russell

    articular de maneira correta a frmula da con-sagrao da hstia, o ponto alto das missas, emlatim hoc est enim corpus meum. Recomendou,portanto, que a substitusse pela equivalente emgrego, to est soma mou, escapando assim depronunciar a letra C.

    Carlos Heitor opera, enfim, o freio da lnguaem 1939, com o mdico Pedro Ernesto, amigo

    de seu pai e ex-prefeito do Rio de Janeiro, quelhe receita exerccios ps-cirrgicos com bolas degude na boca. A curiosa teraputica se inspiraem mtodo atribudo a Demstenes, o maiororador da antiguidade,que, antes do adventodas pequenas esferascoloridas de vidro, usavapedrinhas para aumentara mobilidade do msculo

    articulador de sons.Ao concluir os cursos

    de Humanidades e deFilosofia, o rapaz deixao Seminrio, sem passarpela tonsura que o leva-ria ao estudo superiorda Teologia. Descobrique no acreditava em

    Deus. Aceitava a Igreja em sua parte teatral,o altar, as velas, as flores, os cnticos. Aprendia tocar rgo e piano. Ainda sou muito ligadosentimentalmente a isso, como devoto de NossaSenhora, Santo Antnio e So Jos. Est comquase 20 anos em 1945.

    Camuflagem do Index

    Ao mesmo tempo em que cursa a Faculda-de Nacional de Filosofia, comea a ganhar osprimeiros salrios como pianista de uma boateem Copacabana. Para tristeza da me, Julieta,

    Com o cineasta italiano Franco Zeffirelli Ao lado do tenor espanhol Plcido Domingo

    No Seminrio, havia uma

    relao de livros que no

    podiam ser lidos pelos

    catlicos. Eu colocava a capa

    de uma edio religiosa para

    encobrir os ttulos proibidos

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    desgostosa de ver o filho, to preparado cultu-ralmente, em plena performance nas teclas deum inferninho da Rua Ministro Viveiros de Castro.Eis que, em 1946, Ernesto, redator do Jornal doBrasil, precisa levar a esposa, ento adoentada, estncia hidromineral de Lambari. Naquela

    poca, era moda a classe mdia debandar paraas estaes de gua mineiras em busca de cura.Meu pai negociou com os diretores que eu osubstitusse durante sua ausncia de 22 dias.

    Mas Cony vai permanecendo na redao doJB, cobre o dia a dia do gabinete da prefeiturae comea a escrever no suplemento dominical que tinha peculiaridade de circular aos sbados

    sobre literatura, bal e cinema. Ali passei a meinteressar por literatura de modo profissional. No

    Seminrio, lia escondido. Havia o chamado Index,relao de livros que no podiam ser lidos peloscatlicos, como Madame Bovary, de Flaubert, e

    A divina comdia, de Dante. At estraguei umpouco a minha vista por ler noite, na luz fracado banheiro. Colocava a capa de uma edioreligiosa para encobrir os ttulos proibidos. Em1958, publica seu primeiro romance, O ventre.No perodo, ganha por duas vezes consecutivas

    o Prmio Manuel Antnio de Almeida, com Averdade de cada dia e Tijolo de segurana.

    J no Correio da Manh, como editorialista,ocorre a primeira de uma srie de seis prises,quando Jnio Quadros renuncia presidncia daRepblica, em 1961. Havamos noticiado o fato,

    e o governador Carlos Lacerda apreendeu todaa edio. Resolvemos um grupo de seis ousete distribuir na rua parte dos jornais (cercade 120 mil) que no chegaram s bancas. Enchimeu carro de exemplares e fomos vend-los noLargo da Carioca. Mas a polcia nos levou paraonde funcionaria depois o Doi-Codi, na Rua daRelao. Ficamos l das 16h s 22h, no foi nadademais. A primeira priso realmente foi quandosaiu o AI-5, sete anos depois.

    Comea a escrever crnicas no Correio, sobo sugestivo ttulo de A arte de falar mal, e arevezar com Ceclia Meireles na pgina de opinioda Folha de S. Paulo. E, com o golpe militar de1964, passa a assinar artigos violentos contrao regime. O general Costa e Silva, ministro daGuerra, processa-o pela Lei de Segurana Nacio-nal. O artigo infringido provocar animosidadeentre civis e militares previa nada menos que

    Com D. Sarah Kubitschek Em Varsvia, em frente ao Sindicato Solidariedade

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    Carioquice18

    rua do russell

    30 anos de cadeia. Nelson Hungria, um grandepenalista que havia sido presidente do Supremo

    Tribunal Federal (STF), se ofereceu para medefender gratuitamente. Ele conseguiu que eufosse enquadrado na Lei de Imprensa em vigor,na qual constava o mesmo artigo, mas estipulan-do deteno de somente seis meses. Fui para oBatalho de Guardas e sa de l antes do prazo,por bom comportamento.

    Xadrex ilustrado

    Em 1965, pede demisso do Correio da Ma-

    nh. E, por ocasio de uma conferncia da Orga-nizao dos Estados Americanos (OEA), presonovamente, na porta do Hotel Glria, na maisfina companhia Antnio Callado, Flvio Rangel,Glauber Rocha, Mrcio Moreira Alves, Thiagode Mello, Joaquim Pedro de Andrade e MrioCarneiro (fotgrafo de Joaquim). Na OEA, haviaum princpio de que os pases no democrticosestavam proibidos de sediar reunies oficiais dainstituio. No entanto, o governo Castello Branco,

    por meio das relaes diplomticas, conseguiu

    demonstrar que o Brasil no era um pas ditato-rial. Como forma de provar isso, mandaram at

    crnicas minhas, que ofendiam os generais, paraeles. Foram, ento, realizadas aqui as sessesplenrias. E aquele grupo ao qual aderiu depoiso embaixador Jayme Azevedo Rodrigues decidiufazer um protesto na entrada do Glria. Como oBrasil, em plena ditadura, estava organizando umespetculo vetado pelas normas internacionais?

    Resultado: mais de um ms vendo o solnascer quadrado na Polcia Militar da Rua Barode Mesquita. Ficamos todos juntos numa sala

    grande, a que chamvamos de Hilton, porque,mesmo sendo uma priso, tinha banheiro bom,com chuveiros, refeies normais. No podamosreceber visitas nem produtos de casa. Mas nosdiver tamos muito. De noite, cada um de ns davauma palestra. Ningum ali era comunista. Caladolia Em busca do tempo perdido, de Proust. Glau-ber comeou a esboar o roteiro de Terra emtranse no papel higinico no o tradicional, masum papel de embrulhar po, cinzento. Joaquim

    estava preparando Macunama.

    Com Ana Arruda Calado, nio da Silveira, Antnio Houaiss eAbrao Koogan

    Com Otto Maria Carpeaux

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    O fato que a diverso no segue nadaengraada para um encalacrado Cony, sem em-prego fixo por conta de suas condutas polticasno jornalismo ele que nem adepto de FidelCastro era. Porm, ser na terra do coman-dante revolucionrio que encontrar uma sadapara o impasse profissional-financeiro que seinterpunha em seu caminho. Estava chateado,no podia trabalhar na imprensa. Sobrevivia defazer adaptaes de clssicos infanto-juvenis,

    que me faziam varar as madrugadas e no mesatisfaziam. Tinha dinheiro para o leite, no paraa manteiga, e j com duas filhas. Veio, ento, oconvite para ser jurado do concurso anual daCasa das Amricas de Cuba. No incio, recusei,mas, sem condies de continuar a bancar asdespesas no Brasil e sempre com a espadasobre mim no sentido de a qualquer momentoser de novo preso para responder a InquritoPolicial-Militar (IPM) , acabei aceitando ir paral em 1967. Pelo menos, teria cama, comida eroupa lavada por conta do Estado cubano. Minhaobrigao era ler os originais de autores de todaa Amrica Latina, sob a presso de no poderpremiar obras tidas como alienadas.

    Alimentos e roupas racionados para a po-pulao, frotas de nibus e txis caindo aospedaos, livros e televiso censurados e umnico jornal em circulao, o Granma. Esse o

    cenrio que encontra o convidado brasileiro.Mas, no elevador, o cabineiro estava lendoJorge Luiz Borges, Stendhal. A cultura de massafuncionava. Por outro lado, eu recebia quasediariamente um envelope debaixo da porta domeu quarto no hotel. Eram pessoas que estavamsofrendo duras represses, dizendo que ns, osestrangeiros em Cuba, tnhamos obrigao mo-ral de denunciar aqueles relatos de tortura. Osmais moos do jri foram convocados a plantar

    cana, uma atividade barra pesada. A mim, cou-be cultivar sementes para ajudar a Revoluo.

    Afinal, eu devia pagar de alguma forma a estadagratuita, as muitas lagostas que comia vindasdas fazendas de peixe criadas pelos russos ,o vinho horrvel importado da Bulgria e a cotasemanal de charutos, ri o ainda hoje adeptode umas boas baforadas.

    Regressa ao Brasil, para ser detido j dentrodo avio, ficando dois dias trancafiado no aero-porto do Galeo. E no fatdico 13 de dezembrode 1968, quando a ditadura baixa o AI-5, encarcerado, at os primeiros dias do novo ano,

    junto ao tambm jornalista e escritor Joel Silveirano Batalho de Guardas de So Cristvo. Ti-vemos que ameaar o oficial com a Convenode Genebra normas internacionais de Direitohumanitrio. Havia muita tortura, embora nocomigo. O comandante era at cordial. Na noite

    Ao lado de Jorge Amado e Me Menininha do GantoisNa poca em que escrevia O ventre, seuprimeiro romance

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    rua do russell

    de Natal, entraram na cela dois guardas commetralhadoras e dois garons com bandejas,

    trazendo nozes, castanhas, ameixas, um pedaode presunto e vinho da casa do coronel.

    Vem o convite de Adolpho Bloch para integraro grupo Manchete, sob a condio expressa deque Cony no toque em poltica. Em maio de1969, lana a revista masculina Ele & Ela, quepublica textos dos melhores contistas mundiais.Comea a trabalhar no projeto de memrias deJuscelino Kubitschek. Na vspera do carnaval de1970, ele e Joel Silveira voltam ao Batalho de

    Guardas para mais uma estadia forada de umasemana. Dois anos mais tarde, integra a redaode Manchete. Passa uma temporada, em 1976e 1977, na Europa, sobretudo Itlia, fazendocoberturas para a revista.

    Durante as aes preparatrias primeiravisita oficial do Papa ao Brasil, em 1980, o cardealD. Eugnio Salles, arcebispo do Rio de Janeiro,vai a Roma e diz ao secretrio de Imprensa doVaticano que tem muito interesse em trazer um

    amigo jornalista para viajar na comitiva queescoltar Joo Paulo II. Proposta aceita, Conyacompanha o Sumo Pontfice desde o avio atas vrias cidades includas nos trajetos em solonacional. Em decorrncia, publica o livro Nospassos de Joo de Deus, com tradues emingls e francs. Dirige a revista Fatos e Fotose edita JK: Memorial do exlio. J na funo desuperintendente de Teledramaturgia da RedeManchete, durante a dcada de 80, assina os

    roteiros das novelas Marquesa de Santos,Dona Beija e Kananga do Japo. Em 1991,acompanha novamente o Papa desde Roma emsua segunda vinda ao pas.

    Chevalier de France

    Aps 23 anos da publicao de Pilatos quando prometeu a si mesmo que este seria seultimo romance , lana em 1995 Quase Mem-

    ria, feito a bordo de um moderno computador,com a presena a seus ps de Mila, a cachor-

    rinha xod e j bastante adoentada do escritor.Quando terminei o texto, ela morreu. Dediquei olivro a ela para Mila, a mais que amada, contaemocionado. Quase memria considerado oLivro do Ano pela Cmara Brasileira do Livro eleva tambm o Prmio Jabuti de 1996, quandoCony ganha ainda o Prmio Machado de Assisda Academia Brasileira de Letras (ABL), peloconjunto da obra. Dois anos depois, convidadodo governo francs na Feira do Livro de Paris,

    recebe o grau de cavalheiro da Ordre des Artse des Lettres.

    A ABL o elege, aos 74 anos, ocupante dacadeira n3. No discurso de posse, enuncia noter convices firmes para ser de direita, discipli-na para ser de esquerda, nem a imobilidade docentro, que oportunista. Sou um anarquistainofensivo, autodefine-se. Ele explica porquechama a instituio de jardim de infncia savessas: No jardim de infncia, a pessoa no tem

    passado, mas tem futuro. Na Academia, a pessoatem passado, mas no tem futuro nenhum, a nosei ir para o mausolu. O fardo uma coisaabominvel. Fico parecendo um gafanhoto, comaquele traje verde, aquelas abas, faz a suagraa o imortal.

    Aos 89 anos, casado com Beatriz e pai deRegina Celi, Maria Vernica e Andr, Cony trazna bagagem uma extensa relao de romances,como A casa do poeta trgico, O adiantado

    da hora e O piano e a orquestra; ensaiosbiogrficos, a exemplo de Charles Chaplin,JK: Memorial do exlio e Quem matou Vargas;adaptaes de Viagem ao centro da terra, AliBab e os quarenta ladres, Viagens de MarcoPolo e Aladim e a lmpada maravilhosa; e di-versos livros de contos, crnicas e infantojuvenis.

    Atualmente, alm da coluna na Folha, participado quadro Liberdade de expresso, na rdio

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    CBN, em que aborda temas na ordem do dia.Ele revela um projeto que acalenta h mais de

    30 anos. Tenho, desde ento, um romance nacabea: Messa di papa Marcello, inspirado naobra polifnica de Giovani Pierluigi da Palestrina,compositor oficial do Vaticano, que introduziu aterceira dimenso na msica, o contraponto.Mas, como prova de que a msica popular tam-bm faz parte de seu sofisticado repertrio, sedeclara f de Ary Barroso. Compenetrado, chegaa cantarolar um trecho de Aquarela do Brasil:

    Quero ver essa dona caminhando,/pelos salesarrastando o seu vestido rendado...Esta cano

    um embrio dos sambas enredos das escolasde samba. E se eu tivesse que dar um exemplode msica do Rio, citaria Caixa Econmica, de

    Antnio Nssara, com os versos de Orestes Bar-bosa, nosso vizinho no Lins Meu av morreuna luta e o meu pai, pobre coitado, fatigou-se nalabuta, por isso nasci cansado. Acho isso genial,bem carioca, pontifica o incansvel Cony papadas letras.

    Quando terminei

    Quase Memria, minha

    cachorrinha, que j

    estava bem doente,

    morreu. Dediquei o livro

    a ela para Mila, a mais

    que amada.

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    artfice de filigranas

    Atriz, cengrafa, figurinista e artista plstica, Analu Prestes saiudiretamente do underground paulistano para cair nos braos do ensolarado

    Per de Ipanema, na efervescente dcada de 70. Ao longo de sua trajetria,

    vem trabalhando com a fina flor do teatro e do cinema brasileiros. E, aps

    a mudana para sua casa-ateli no buclico Horto, desenvolve tambm um

    minucioso trabalho fotogrfico, j abarcando milhares de delicadas joias

    registradas no Jardim Botnico.

    p o r mnica sinelli

    we are the world

    Em 1974, aos 23 anos, peguei meu jipe deSo Paulo para o Rio de Janeiro e nunca mais vol-tei a morar l, recapitula Ana Lcia Prestes Salesda Silva a, hoje carioqussima, Analu Prestes.Nascida em Santos, aos trs meses de idade foimorar com a famlia na capital paulista, onde cur-sou, dos 15 aos 19, a Fundao Armando lvaresPenteado (Faap). O objetivo inicial da adolescenteera estudar artes plsticas. Acontece que tambm

    tinha aulas de teatro com Naum Alves de Souza.Foi um arrebatamento. E a prosa mudou logo derumo. Dirigida por ele, protagonizou, em 1971, ocurta Jlia Pastrana, sua estreia na profisso.

    No mesmo ano, fundou, ao lado de LusAntnio Mar tinez Corra, o grupo Po&circo,encenando O casamento do pequeno burgus(de Bertold Brecht) no poro do Teatro Oficina.Iniciao mais underground, impossvel. Era o

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    auge da gerao hippie e da experincia lisrgica.Ganhei o prmio de atriz revelao criando,ainda, o cenrio e o figurino da Associao deProdutores de Espetculos Teatrais do Estadode So Paulo (Apetesp), e Lus, de melhor dire-

    tor. O espetculo foi convidado a representar oBrasil no festival mundial de teatro de Nancy, naFrana. Meu pai financiou as passagens areaspara todo o elenco, que reunia 23 jovens. Noestava ligado arte, era corretor de imveis,mas meio que se via em mim. Sempre me deutudo que eu quis. E fez esse gesto para me verfeliz. Na volta ao Brasil, depois de quatro mesesna Europa, os atores devolveram o emprstimo aele, que, mesmo assim, deve ter morrido numas

    quatro ou cinco passagens, ri a filha do grandeSeu Agenor, que foi igualmente um paizo paraaquela trupe inteira.

    Chegada ao Rio

    Em 1974, o cineasta brasileiro Luiz Rosem-berg Filho, que Analu havia conhecido em Paris,convidou-a a protagonizar seu filme Assuntinadas Amerikas, no Rio de Janeiro. Foi a que o tal

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    Em sentido horrio. Em Morte de um caixeiro viajante, ao lado deMarco Nanini; com Rodrigo Santiago, em O casamento do pequenoburgus; na pea As meninas, de Mait Proena; e no besteirol Pedra,a tragdia, com Thelma Reston e Stella Freitas

    we are the world

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    jipo pegou a estrada definitiva (at o momento)para a Cidade Maravilhosa. Ao chegar aqui, fiz

    em seguida no cinema Guerra conjugal, dirigidopor Joaquim Pedro de Andrade, e logo remon-tamos O casamento do pequeno burgus, emque conheci, por estar no elenco, minha grandeamiga, minha irm Marieta Severo. Ca de cabeano Rio, os artistas me acolheram, estava sempreno Per de Ipanema e no Frenetic Dancing Days.Conheci, tambm, Buza Ferraz, com quem vividurante cinco anos, relata. Juntos, fundaram, em1978, ao lado do ator Mrio Borges, a Companhia

    Jaz-o-corao, realizando as peas PolicarpoQuaresma (baseada no romance de Lima Bar-reto) e Mistrio bufo (de Dario Fo). Dois anosantes, havia participado da novela O casaro,de Lauro Cesar Muniz, na TV Globo.

    Na dcada seguinte, seria a vez de retomaro fio condutor inaugural, levando cena, coma amiga-irm Marieta, a antolgica trilogia domentor Naum Alves de Souza: No Natal a gentevem te buscar (1980), A aurora da minha vida

    (1982) e Um beijo, um abrao, um aperto demo (1985), sucessos retumbantes na cida-de. E veio a poca do besteirol, com Pedra,a tragdia, de Mauro Rasi, Miguel Falabella eVicente Pereira (1986), ao lado de Stella deFreitas e Thelma Reston, sob a direo de AryCoslov, que abarrotou o teatro Cndido Mendes,em Ipanema, por um ano e dois meses. Naqueleperodo, participou tambm de filmes como Comlicena, eu vou luta, de Lui Farias, e Romance

    da empregada, de Bruno Barreto.

    Isolamento e retomada

    O percurso solar, porm, seria intensamenteabalado pelo trgico assassinato do companheirode jornada Lus Antnio Martinez Corra, em1987. A morte dele me derrubou, fiquei muitomal. Comecei a me questionar como atriz. Travei,me isolei em Santa Teresa e resolvi mergulhar no

    trabalho de ateli, regressando s artes plsticas.Fiz minhas primeiras exposies em galerias

    oficiais, mas chegou um ponto em que percebique no conseguiria sobreviver apenas com essedinheiro. Depois de dez anos afastada, retomara carreira de atriz foi um luta difcil. As pessoasachavam que eu havia desistido mesmo.

    Mas foi s voltar s luzes da ribalta que o velhotablado reconheceu a filha prdiga. Em 1998,arrebatou logo dois prmios como cengrafa: oMambembe, por Clarice, um corao selvagem,com Aracy Balabanian, e o Sharp, por Uma noite

    na Lua, com Marco Nanini ao lado de quemintegraria o elenco de A morte do caixeiro via-

    jante (de Arthur Miller), em 2003. Na sequncia,participaria de As Meninas, pea escrita por MaitProena, e Um dia como os outros (direo deBianca Byington e Leonardo Netto), que lhe ren-deu o prmio da Associao dos Produtores deTeatro do Rio de Janeiro (APTR) de melhor atrizcoadjuvante em 2011. Dois anos depois, encenouo monlogo Emily, texto de William Luce adaptado

    e dirigido por Eduardo Wotzic. Em 2014, MaurcioFarias me chamou para fazer uma participaona srie Tapas e beijos, da Globo. Minha perso-nagem, a cabeleireira Shirley, namorada de SeuChalita, papel de Flvio Migliaccio, agradou, e mecontrataram para fazer o ltimo episdio, conta.

    Jardim secreto

    Enquanto brilhava nos palcos, Analu foi desen-volvendo uma nova atividade, aps mudar-se, h

    alguns anos, para a sua casa-ateli incrustadano buclico bairro do Horto: a de artfice de

    joias imagticas. Comprei uma cmera semi-profissional e passei a carreg-la em minhascaminhadas dirias no Jardim Botnico, que umencantamento da cidade. Tudo comeou quandoconfeccionei um barquinho de papel com umadobradura de mapa-mndi, em que escrevi apalavra world. Resolvi lev-lo para fazer uma

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    viagem na natureza, colocando-o em diferentessituaes: em cima de uma vitria-rgia, subindo

    uma rvore, sobre um cactus... Ao mergulharnesses pequenos mundos, teve incio um trabalhode poesia visual, que hoje j soma mais de 40mil registros diariamente, posto uma foto noFacebook com um ttulo potico. Produzi, tambm,uma srie com sementes, florzinhas, razes, folhase frutos que ia recolhendo enquanto caminhava.Trouxe esses materiais orgnicos para casa e osestendi num veludo preto, montando composiesa partir de sua transformao ao longo de vrios

    dias, expostos luz natural.Esta srie, chamada Jardim secreto, foi

    utilizada no Prmio da Msica Brasileira. Odiretor Jos Maurcio Machline, para a edioem homenagem a Joo Bosco (2012), pediu aoGringo Cardia que toda a cenografia empregasse

    Uso a foto como

    instrumento para criar

    poesia, a exemplo do que

    fao tambm com tintas,

    bordados e colagens

    we are the world

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    as minhas fotos. Gringo selecionou 150 15 paracada cantor , projetadas no fundo do TeatroMunicipal, numa gigantesca tela de led. Ficoumuito lindo, de chorar de emoo. No sou fot-grafa, no fiz curso tcnico: uso a foto como um

    instrumento para criar poesia, a exemplo do querealizo tambm com tintas, bordados e colagens.

    A craque multimdia se declara louca peloSaara, o famoso comrcio a cu aberto no Centroda cidade. Vou l pesquisar materiais. Gosto daonda de mercado popular, de feira. Acho o luxodo luxo ir ao Cadeg, em Benfica, comprar flores ecomer bolinho de bacalhau, revela Analu, que jteve dois jacars seus, confeccionados em madeira,arrematados por Mick Jagger. Os coloridssimos

    rpteis que integravam a exposio Animlia,uma fauna surreal inventada pela artista com cercade 350 bichos , haviam sido escolhidos paradecorar o camarim do roqueiro ingls durante oshow dos Rolling Stones no Rio. Jagger, que no bobo nem nada, tratou de levar para casa oswalligators pop que, assim, ganharam o mundo.No por acaso, nossa exuberante criadora tripulaum mgico barquinho chamado world.

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    trio ternura

    Dividir o quarto com os irmos durante a infncia e a adolescncia, nos

    anos 1960 e 1970, no gerou escaramuas ou disputas entre Reinaldo,

    Rubens e Cludio Figueiredo. A criao por pais nada severos apontada

    como determinante para a tranquilidade na convivncia dos trs, que hoje

    se destacam no cenrio cultural brasileiro por incurses no humor, na

    literatura e no jornalismo.

    A gente se entendia. ramos tranquilos.

    Uma infncia sem problemas, muito comum,afirmam, um completando a fala do outro. Portemperamento, os trs detestam exibir-se. Seriamintelectuais reclusos, dedicados ao trabalho norecolhimento de um ambiente onde as ideiasfluiriam sem interrupes da rotina. A vida, noentanto, no os deixou sossegar. Reinaldo, o maisvelho, hoje com 63 anos, pretendia ser msico,virou desenhista e acabou ator no programa deteleviso Casseta e Planeta, Urgente! Rubens,

    59, professor de lngua portuguesa, lanou oitolivros, ganhou dois prmios Jabuti de Literaturanas categorias contos, em 1998, por As palavrassecretas, e romance, em 2002, com Barco aseco, um dos mais conceituados tradutores derusso no Brasil. Cludio, 55, jornalista, depois deser reprter e editor em jornais, revistas e televi-so, escreveu uma biografia e trs livros sobre acidade, entre eles O Rio de Janeiro entre 1565

    e 1910, premiado com o Jabuti em 2006, na

    categoria Arquitetura, Fotografia, Comunicaoe Artes.

    Falar sobre a prpria trajetria um exercciorduo para os trs, que, por escolha, estariamsempre distncia de qualquer microfone, cme-ra ou refletor o que ficou impossvel para Rei-naldo. Antes de irmos para a televiso, participei,com o pessoal do Casseta e Planeta, de um showhumorstico-musical no extinto Jazzmania. Eu eraum problema, no queria falar nada, gostaria de

    interpretar o Harpo Marx (comediante norte--americano que tinha como persona artsticaum harpista mudo). Virei o baixista da banda,aquele que fica l no fundo do palco. Acabei meacostumando a atuar, seguindo as orientaesdo diretor, mas era muito cansativo, lembraReinaldo.

    Nenhum dos trs foi aluno brilhante, semque isso chegasse a incomodar muito os pais, o

    traos e letrasp o r Olga de mello

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    comercirio Cndido e a dona de casa Darthclea,que no se abalaram nem quando Reinaldo e

    Cludio repetiram o ano, no Colgio de Aplicao.O nico incidente a entrar para a histria da fam-lia como travessura de criana, quando Reinaldo,aos dez anos, provocou um curto-circuito em salade aula, nem chegou a render castigo. Papai foichamado, mas compreendeu que eu no tinhainteno de tacar fogo no colgio. Causei umpequeno incndio, logo debelado. S juntei aspontas de um fio desencapado por curiosidade.Coisa de criana, explica.

    Bola e jacar

    Crescendo em Copacabana nos anos 1960,eles tinham a praia e as ruas para brincarem li-vremente. Nas frias, o programa dirio era pegar

    jacar ou jogar futebol de boto, nas caladas,

    Falar sobre a prpria

    trajetria um

    exerccio rduo para

    os trs, que, por

    escolha, estariam

    sempre distncia de

    qualquer microfone,

    cmera ou refletor

    Claudio, Rubens e Reinaldo

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    trio ternura

    e com bola para valer, na pista dos carros. ARua Cinco de Julho era o estdio no oficial dosgarotos do bairro, porque no havia quase carrocirculando por ali, lembra Rubens, titular dos

    times de pelada de ento, como Cludio, ambostorcedores do Botafogo.

    Reinaldo ficava de fora das partidas, semnenhum interesse por futebol, voltando todasas atenes para o desenho e a msica. Nocolgio, sua primeira incurso no jornalismofoi ao criar uma edio desenhada mo, comnotcias e ilustraes. Os diversos nmerostiveram tiragem bastante limitada, de apenas

    um exemplar, que circulava entre os colegas.No sobrou nenhum. Imagino que acabassem

    em frangalhos, diz Reinaldo, que, ao terminar osecundrio, matriculou-se no Instituto Villa-Lobos,pensando em profissionalizar-se como msico.Os pais sugeriram que ele tambm fizesse umcurso preparatrio para professores de inglsno Instituto Brasil-Estados Unidos (Ibeu). Aca-bou deixando os dois ao passar a trabalhar nosemanrio O Pasquim, onde permaneceu por15 anos, quando j havia fundado o jornal humo-rstico Planeta Dirio, que mantinha uma rixa

    falsa com o concorrente, o Casseta Popular.Tudo aconteceu comigo meio de improviso,intuitivamente. Do Planeta, fui fazer roteiro parao programa TV Pirata, da Rede Globo, e, dalisurgiu o embrio do Casseta e Planeta, contaReinaldo.

    O acaso tambm apontou o destino de Ru-bens. Em dvida sobre qual carreira seguiria, nochegou a considerar a sugesto do pai, de queestudasse algo ligado hotelaria. Ele acreditava

    na consolidao da vocao da cidade para o tu-rismo, mas eu preferi tentar um caminho prximo literatura, pensando j em escrever, recordaRubens. s vsperas do vestibular, em 1973,descobriu o Departamento de Letras Orientais eEslavas da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ) e resolveu candidatar-se a uma vaga naespecialidade portugus-russo. Eu gostava dosescritores russos e achava que a concorrnciapara o curso seria menor, explica. Depois de

    formado, foi lecionar portugus em colgios darede pblica, na Cidade de Deus e na Gvea,combinando as aulas com tradues de inglspara editoras e seus prprios textos de fico.

    O russo ficou esquecido por mais de 15 anos,at recusar-se a traduzir um romance inglsde 700 pginas, do sculo 17. Nada contra oautor, Henry Fielding, eu s no queria enfrentaraquele calhamao. E perguntei ao editor por que

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    no lanava uma coletnea de contos de AntonTchecov, traduzidos direto do texto original. Eletopou. Eu andava bastante afastado do russo,mas tinha feito uma traduo de poemas paraoutra editora. Rapidamente, voltou tudo o que euaprendi na faculdade. Sinal de que o curso era

    muito bom, conclui Rubens, que talvez aproveitea recente aposentadoria para conhecer, finalmen-te, a Rssia: No sou muito de viajar.

    atolado no pntano

    O caula Cludio tambm tinha dvidas sobreos rumos profissionais, porm deixou de lado asinclinaes para desenho e ingressou na Escolade Comunicao da UFRJ. Como repr ter, teve umcotidiano de aventuras, aos olhos dos irmos.

    Ele ficou pendurado num avio da Aeronuticaporque o piloto fazia acrobacias em cima da selvaamaznica, passou uma noite atolado dentro deum pntano em Rondnia. S nunca escreveu issonos artigos, lamenta Rubens, enquanto Cludiominimiza as experincias, parte do trabalho demostrar diferentes localidades do Brasil, em s-ries para a revista Manchete. Jornalista no objeto de interesse, essas dificuldades so partedo trabalho, observa Cludio, que desenvolveu

    uma carreira paralela de escritor, iniciada coma biografia As duas vidas de Apparcio Torelly,em 1987. Retomou o tema 20 anos depois, am-pliando a pesquisa sobre Torelly, um dos maisdestacados jornalistas de humor brasileiros,com Entre sem bater A vida de ApparcioTorelly, o Baro de Itarar. Antes, foi roteiristado programa Casseta e Planeta, Urgente! (nopor indicao de Reinaldo, mas de outro amigo).

    Hoje, trabalha mais com traduo e pesquisa doque em jornalismo. Pai de duas filhas os irmosdizem preferir a categoria de tios , tornou seuapartamento em Laranjeiras o local das reuniesde famlia, desde a morte do pai, h um ano. A

    me faleceu em 2000.Atualmente, os trs irmos comeam a deixar

    de lado o aspecto meio multitarefas, comodiz Reinaldo. Rubens diz que no tem escrito,dedicando-se mais s tradues. Diariamente,sai de Copacabana, onde mora, para nadar napiscina do Botafogo. Cludio, tambm envolvidoem tradues e pesquisas, tambm faz nataoe aprimora a boa forma deslocando-se, prefe-rencialmente, de bicicleta. Reinaldo, morador da

    Lagoa, ficou mais sedentrio devido a um problemade articulaes, mas mantm o ritmo intenso ematividades profissionais. Com o fim do Casseta ePlaneta, Urgente!, que permaneceu no ar durante18 anos, alm de viajar pelo pas, dando palestrassobre humor grfico e seu livro A arte de zoar,reunindo cartuns publicados em diversas revistas,ele toca baixo no quarteto de msica instrumentalCompanhia Estadual de Jazz.

    Atualmente, o trio

    comea a deixar

    de lado o aspecto

    meio multitarefas

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    rafa

    Um Rio de Janeiro pequeno, em que todos conviviam sem temer a

    insegurana, nos oferecia tempo e tranquilidade para desfrutar a cidade.

    Um Rio que deixou saudade, mas que se renova naturalmente, mantendo

    cativos os cariocas de nascimento e adoo. O Rio pode deixar saudade,

    jamais melancolia. Ele bonito demais para inspirar melancolia, acredita

    Mitzi de Almeida Magalhes.

    A vida era bem mais simples. Hoje d trabalho

    viver numa cidade em transformao. As obrasno Rio, com labirintos, tapumes, ruas bloqueadase deslocamento difcil, deixam seus moradoresmais vulnerveis impacincia. Mas, na contra-mo desses obstculos, sobressai o amor pelacidade. Um amor que inspira tolerncia, virtudeque conseguimos administrar com xito, porque aesperana no horizonte uma certeza. No trocoo Rio por lugar algum do mundo, afirma essacuritibana, radicada no Rio definitivamente desdeos anos 1960, quando se casou com o advogadoe poltico carioca Raphael de Almeida Magalhes.

    O destino dos cidados que sofrem diretamen-te com a violncia preocupa Mitzi. Cita um filmeproduzido pelo genro, o cineasta Cac Diegues,casado com sua filha Renata, para apontar asquestes sociais dos moradores de favelas. Oproblema da segurana no Rio , entre todos,o mais complexo. O filme 5 X UPPs, feito pelos

    prprios moradores das comunidades, nos mostra

    a necessidade de que outros rgos administrati-vos, alm das Unidades de Polcia Pacificadora daSecretaria de Segurana, atendam as demandasda populao desassistidas, ressalta.

    O encantamento pela cidade comeou em1946, quando seu pai, Bento Munhoz da RochaNetto, foi eleito deputado Constituinte pelo Para-n. A famlia se mudou para o Rio, ento DistritoFederal. Mitzi estudou nos colgios Sacr Coeure Jacobina, onde fez amizade com Teresa, irmde Raphael. Ele se dispunha a ajudar as duasnas dificuldades que tinham com as matrias defsica e matemtica.

    As distncias da cidade aumentaram. Quandoela era menor, amos de patins de Copacabanaat Ipanema em ruas quase sem carros. Noexistia a Barra da Tijuca, como um bairro re-sidencial, So Conrado, s para comer milhoverde, lembra.

    sonata de amor ao riop o r Olga de mello

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    33Jul/ago/set 2015

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    Ao lado de Raphael de Almeida Magalhes, seu marido, em Miami

    Passeio em Nassau

    rafa

    Alunos de colgios vizinhos, na Rua So Cle-mente, em Botafogo, ela e Raphael, algumas ve-zes, tomavam o mesmo bonde para a escola. Eleficava no Colgio Santo Incio, eu, pouco adiante,no Jacobina. Estvamos sempre nas reunies dos

    fins de semana, com banho de piscina e cantorias

    de violo. Diferentemente de hoje, tudo luz dodia. Existia, entre ns, um encantamento calado,mas era fcil perceb-lo. Ele danava feliz pelosnossos olhos. Desde o tempo do Santo Incio,Raphael era considerado um dolo do futebol.

    Quando comeou o futebol de areia, vinhamadmiradores de todos os bairros para ver o fa-moso Rafa atuar, na cer teza que iriam assistir abelos passes e belos gols. Sob a ameaa de quese tornasse um profissional, a famlia resolveuafast-lo daquele altar. Mandou-o estudar emBelo Horizonte, onde morava grande parte dosparentes. Antes de partir, Raphael me deu umacaixa com medalhas do Colgio Santo Igncio,prmios como bom aluno: Pra voc guardar.

    Emocionou-me aquele gesto de confiana. Era acoisa mais preciosa que ele tinha. Depois de umapausa, falou com muita ternura: Ainda teremosuma vida juntos.

    Esperando sempre por voc

    O reencontro s se deu 11 anos mais tarde.Estava casada, com dois filhos. Foi na festado casamento da irm Teresa, no apartamento

  • 7/21/2019 Carlos Heitor Cony - Palavras na Veia

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    35Jul/ago/set 2015

    Na contramo dos

    obstculos, sobressai

    o amor pela cidade. A

    esperana no horizonte

    uma certeza

    onde eu moro hoje, na AvenidaAtlntica. A vida era realmente maissimples. Ningum fazia casamentossuntuosos como hoje. Apenas acerimnia religiosa na igreja e,depois, recepo na casa dos paisda noiva. Encontrei um Raphaelbonito e solteiro. Comeamos aconversar naquela ocasio e parecia

    que estvamos presos um ao outro.Ningum conseguia se aproximarda gente. Parecia que estvamosblindados por uma conspiraocsmica. Aquele passado de senti-mentos ternos voltou a nos envolver.Percebemos que o encantamentoestava vivo. Quando fui embora,ele me falou: Ficarei esperandopor voc, sempre. A frase entrou

    pelos meus poros e ficou gravadano corao. Perturbou e mudouminha vida, rememora Mitzi, quese separou do primeiro marido, ini-ciando uma jornada de 50 anos aolado de Raphael, que foi secretrio evice-governador do Estado da Gua-nabara durante a administrao deCarlos Lacerda depois, deputado

    Raphael "driblando Garrincha"

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    rafa

    federal e ministro da Previdncia Social, alm demanter uma carreira como advogado.

    A obra da represa do Guandu resgata aex-primeira dama do estado , sob a respon-sabilidade do engenheiro Veiga Brito, foi, delonge, o trabalho mais complexo e importante dogoverno. Graas a ela nos livramos, h mais de

    meio sculo, dos problemticos banhos de cuia.Diferentemente das guas do Guandu, que cor-rem escondidas dos nossos olhos, os jardins do

    Aterro, obra grandiosa, festa permanente paraa viso de qualquer um. A ampliao da orla e aabertura de tneis, ligando bairros, desafogou otrnsito. Outra iniciativa interessante foi a criaodas administraes regionais, onde subprefeitosresolviam dificuldades locais, sem muita buro-cracia. O governo do Estado deu muita ateno

    ao ensino. Flexa Ribeiro, secretrio da Educao,criou o segundo turno, construiu escolas pelaspraas pblicas. Na sade, o secretrio MarceloGarcia, com a preocupao de prevenir doenas,programou a distribuio de vacinas. A mais im-portante foi a Sabin, que erradicou a poliomieliteem todo o Brasil. Na Secretaria de Obras, EnaldoCravo Peixoto foi excepcional liderana.

    Raphael dedicava suas tardes de sbado a

    Existia, entre ns,

    um encantamento

    calado, mas era

    fcil perceb-lo. Ele

    danava feliz pelos

    nossos olhos

    No batizado da filha Renata

  • 7/21/2019 Carlos Heitor Cony - Palavras na Veia

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    Acompanhando o marido em seu ltimo dia de governo

    um sagrado futebol, em Correias, na serra flu-minense. O campo era cuidado como joia porseu dono, Jos Luiz Ferraz. L jogaram mitos,como Nilton Santos e Garrincha. Lembro, entreos jogadores, Armando Nogueira e Luiz CarlosBarreto. Raphael deixava no campo os problemase o cansao do trabalho exaustivo que o governoexigia. Os domingos eram sempre junto famlia.

    Quando o tempo estava bom, saamos de lancha.s vezes, passvamos os fins de semana emPetrpolis, na casa dos pais dele. Nem cinema,nem jantares em restaurantes. Lugares pblicos,s vezes, traziam certo desconforto. Olharescuriosos, confidencia Mitzi.

    Filha e neta de polticos, ela diz que esse meiosempre foi parte de sua vida. O momento maispenoso remete priso de Raphael, durantesua festa de aniversrio de 38 anos, assim que

    entrou em vigor o Ato Institucional n 5, em1968. A famlia e os amigos estavam reunidos noapartamento do casal, na Rua Assis Brasil, emCopacabana, quando chegou a notcia que o ex--presidente Juscelino Kubischek havia sido presonuma cerimnia em que era paraninfo no TeatroMunicipal. E Raphael seria o seguinte. Comeouum burburinho. Alguns achavam que Raphael de-veria fugir. Chegaram uns homens altos e pediram

    que ele os acompanhasse. Ficou 15 dias presona Vila Militar. No dia seguinte, eu, minha sogra eRenata, com dois anos, apenas, fomos at a Vila,levando o bolo de aniversrio. Sem problemas,mas nem os abraos calorosos, acompanhadosde bolo, conseguiram dar uma atmosfera festiva

    Com Raphael e Renata

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    rafa

    ao aniversrio. Posteriormente, ativo na cam-panha pela redemocratizao do pas, Raphaelconvenceu o general Euler Bentes a disputar apresidncia da Repblica contra o tambm gene-ral Joo Figueiredo. Todos sabiam que era umacandidatura derrotada no Colgio Eleitoral. Masestaria lanada uma semente de desaprovaono meio das Foras Armadas. Misso cumprida,Figueiredo foi o ltimo presidente militar.

    Viver enquanto estamos vivos

    Por 25 anos, o casal viveu numa casa no Altoda Boa Vista, antes de ocupar o apartamentoonde se reencontrou em 1962. Hoje, fotografiasdele se destacam na ampla sala do aparta-mento na Atlntica. Desde que enviuvou, em

    2011, Mitzi mantm uma rotina intensa. Hoje,o Rio oferece uma vida cultural dinmica. Bonsconcertos no Teatro Municipal, cinema de boaqualidade, teatro com excelentes profissionais.Ver a famlia, filhos, netos, bisnetos e amigos,prioridade nmero um. Jogo bridge e biriba. Amente precisa se exercitar, dizem. S no con-sigo mais viajar para o exterior. Sem Raphael,nenhuma viagem me seduz. Gosta de fazercursos sobre arte e histria. Ultimamente, temparticipado da oficina Literria Ivan Proena.Pretende lanar um livro de contos e crnicasno prximo ano. No momento, est revisandoos textos. Viver enquanto estamos vivos umaepgrafe que devemos seguir, diz Mitzi, ao fimdesta entrevista.

    Brinde com Fernando Henrique Cardoso

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    39Jul/ago/set 2015

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    Quem sabe Caetano Veloso no acabou finalmente vendo a menina do anel

    de lua e estrela na noite do Baixo? O hipottico encontro, deixado ao acaso

    na cano de 1981, poderia muito bem ter ocorrido num bar e restaurante

    que ele frequenta at hoje. Como todos se referiam ao local como aquele

    bar na diagonal do Real Astria, o Porto Mar logo mudou seu nome para

    Diagonal Grill e, depois, simplesmente Diagonal.

    D mais um

    pro dia nascer felizp o r Joo Penido

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    41Jul/ago/set 2015

    Uma vez que o Real Astria o lendrio RA fechou as portas em 1994, o Diagonal quemantm, juntamente com a Pizzaria Guanabara,localizada em frente, a tradio de ser ponto deencontro de artistas e moradores daquela partefinal do Leblon, na esquina da Rua Aristides Es-

    pnola com a Avenida Ataulfo de Paiva.O Porto Mar nasceu em 1952 ou 1953. O

    documento mais antigo sobre o restaurante emmo dos atuais proprietrios data de 1958. Foiuma dcada depois que Victor Manuel MoradoRico entrou para a sociedade. Hoje com 89 anos,ele ainda aparece por l para matar as saudades.Quem dirige o negcio o filho e nico scio,Victor Augusto Domingues Morado, frenteda casa desde 1990. O pai, ento corretor de

    imveis comerciais, volta e meia era convidado acomprar participao em restaurantes. Quandoingressou no Porto Mar, j havia sido scio doMondego e do Cabral 1500, em Copacabana;do Laguna Bar, na Praia Vermelha; e do Umas eOstras, na Tijuca.

    Instalado em uma pequena casa, o futuroDiagonal servia frutos de mar, mas era maisbar que restaurante. Foi crescendo junto com o

    O forte da casa

    a picanha

    brasileira, com

    farofa que leva ovos,

    presunto e cebola,

    acompanhada por

    duas guarnies

    escolha do fregus

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    D mais um

    bairro. Pertinho dele, logo surgiram outros es-tabelecimentos, como o Real Astria, em 1959,

    a Pizzaria Guanabara e o BB Lanches, ambosem 1964. Na dcada de 1970, a noite do quepassou a ser chamado de Baixo Leblon j atraamultides, levando-os a funcionar madrugadaadentro, s fechando quando o dia estavaprestes a nascer.

    Todos eles, porm, sofreram um grande baquea partir do Rio Cidade, programa urbansticolanado em 1993 pelo ento prefeito Cesar Maia

    O gerente Rocha com Caetano Veloso Victor Manuel Morado Rico e Victor Augusto Domingues Morado,pai e filho, em 1995

    e que se prolongou at 2001. O Leblon, um dosbairros afetados, tornou-se intransitvel comas obras, as ruas repletas de buracos, barro epoeira. Ficamos praticamente sem calada. Para

    entrar aqui, as pessoas tinham de passar de ladosobre uma rampinha de madeira, colocada emcima de um buraco enorme, de uns dez metrosde profundidade por cinco de largura, abertopara a execuo de uma caixa de passagem deeletricidade, recorda Victor Augusto.

    Foi o fim de uma era. Os frequentadores setransferiram para o bairro vizinho, ocupandobares e restaurantes em frente ao Jockey Club,dando incio ao Baixo Gvea. Porm, o Diagonal

    no s sobreviveu como cresceu e melhorou. Em1993, retirou-se um enorme balco na AristidesEspnola para a ampliao do nmero de mesas.

    A casa virou mais restaurante que bar. Foi intro-duzido um diversificado cardpio. Nele, h detudo carnes, frangos, frutos do mar, peixes,massas, pizzas, saladas, sanduches e petiscos.Nova reforma, em 2001, deixou o salo internomais clean. As mesas antigas foram substitudas

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    por novas, com borda de madeira e tampo degranito. Hoje, h lugar para 98 pessoas.

    Fartura e bom atendimento

    O forte da casa a picanha brasileira, comfarofa que leva ovos, presunto e cebola, acompa-nhada por duas guarnies escolha do fregus.

    Anteriormente, a carne fatiada era esquentadana mesa, sobre uma chapa. Como o cheiro degordura e a fumaa incomodavam os clientes,passou a ser preparada na cozinha. Os petiscosque mais saem so o fil aperitivo, o frango a

    passarinho, os diversos pastis e a casquinhade siri. Em breve, haver tambm bolinho defeijoada, croquete de carne, palitos de provolonee batata com parmeso. Uma das caractersticasdo Diagonal a fartura dos pratos, que servemtranquilamente a duas pessoas e at trs ouquatro, dependendo da fome.

    Outro ponto alto est na qualidade do servio.Os garons e copeiros tm grande experincia,

    com pelo menos 12 anos de casa um dos cozi-nheiros chega a quase 30. Uma figura marcante o gerente noturno, Jos Edlardo Rocha, ali h18 anos, vindo do Real Astria, onde passououtros 15. Ele reencontra hoje no Diagonal mui-tos artistas a quem atendia no RA, como AlceuValena, Fagner e Baby Consuelo, sem falar noprprio Caetano, que atualmente costuma apare-cer em companhia do filho. E relata uma situaoinusitada, envolvendo os sertanejos Cesar Menotti

    e Fabiano. Os dois comeram o prato principale pediram duas pizzas de frango com catupiry.

    At a tudo bem. Acontece que quiseram duaslatas de leite condensado para derramar sobreas pizzas. Relutei muito, mas os dois insistiram.

    Aquilo era uma espcie de sobremesa para eles,explica Rocha.

    Nos ureos tempos do Baixo

    As lembranas mais extraordinrias do gerente noturno do Diagonal, o Rocha, vm da poca em que

    trabalhava no RA. Eis algumas:

    Ainda no existia o Baixo Leblon. O Real Astria fechava no mximo meia-noite, nas sextas, sbados

    e domingos. O Cazuza foi o piv de tudo. Ele chegava de jipe com uma turma grande quando estvamos

    fechando. O patro mandava reabrir a casa s por causa dele. Cazuza subia nas mesas e colocava uma

    toalha na cabea de um touro que ficava na frente do piano-bar. As pessoas aplaudiam. Tambm costumava

    ir ao banheiro para enrolar um baseado. E discutia muito, depois parava. Isso era todo santo dia.

    Acender um baseado era normal. Raul Seixas fumava tranquilamente, encostado na rvore em frente ao

    restaurante. Na poca, as pessoas no iam cheirar cocana no banheiro. A moda era injetar a droga na veia.

    Cansei de achar seringas na lixeira.

    Baby Consuelo chegava ali e gritava: R! R! E todo muito respondia, gritando de volta: R! R! R! Era umabaguna gostosa. (Baby era seguidora do mdium Thomaz Green Morton, que criou uma espcie de culto

    paranormal conhecido como R.)

    Havia tambm tapas e beijos. Cansei de ver Vera Fischer dar bofeto em Felipe Camargo. Os culos dele

    iam parar longe. Eu catava os culos, devolvia e pedia por favor para eles pararem de brigar. Neuzinha

    Brizola sempre vinha com uma galera e igualmente se desentendia com o namorado.

    Paula Lavigne estava numa mesa grande com o namorado Caetano, que comeou a se engraar com outra

    pessoa. Ela se levantou e jogou um guardanapo no cantor, que pedia: Para, Paulinha, para. E pediu a conta.

    Tom Jobim, quando saa da churrascaria Plataforma, vinha tomar conhaque, com um charuto desse

    tamanho. Eu estava tirando o pedido de uma mesa grande quando ele me chamou. Solicitei que aguardasse

    um pouco. Com a demora, veio mesa, pegou na minha gravata, me arrastou at a porta e disse. Senta

    aqui. Quero meu conhaque e um caf agora.

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    FAYGAOSTR OWER

    CURADORIA/CURATOR

    ANNABELLAGEIGER

    margaret mee

    Ela trabalhou para que as artes plsticas fossem acessveis a um grande

    nmero de pessoas. Nessa linha conceitual, a Insight Comunicao est

    lanando Fayga Ostrower, com curadoria de Anna Bella Geiger. O livro traz

    uma seleo das obras mais emblemticas da artista, no perodo de 1940

    a 2001. O charme que, das 51 reprodues, 48 podem ser destacadas da

    publicao. A edio, em verso bilngue (portugus e ingls) e distribuda

    gratuitamente, apresenta a exuberncia das criaes de Fayga, celebrada por

    sua versatilidade no uso de variadas tcnicas.

    acor e a forma agradecemp o r Kelly nascimento

    Xilogravuras, ilustraes, serigrafias, litogra-fias, gravuras em metal, pinturas em tecidos,aquarelas. Todas essas expresses foramdominadas com requinte por Fayga Ostrower,que nasceu na Polnia, em 1920, e, aos 14anos, desembarcou no Rio de Janeiro, fugindoda perseguio nazista. Sua primeira viso foi ado Cristo Redentor, que descreveu como umacruz flutuando no cu. Depois de se hospedarnuma penso carioca, instalou-se em Nilpolis,na Baixada Fluminense.

    Mas acabaria voltando para o Rio, cidade emque passou boa parte da vida. Foi no bairro deBotafogo, na Fundao Getulio Vargas (FGV), quese inscreve num curso livre decisivo em sua esco-lha profissional. Teve aulas com grandes mestres,como os professores Axl Leskoschek, Carlos

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    Fayga no ateli de Santa Teresa, em 1958

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    margaret mee

    Sem ttulo, linoleogravura sobre papel, 1944

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    Oswald, Hanna Levy-Deinhard, entre outros. Anecessidade de ampliao do conhecimento para

    o prprio desenvolvimento intelectual e ar tsticofaz com que Fayga, em 1946, por meio de seusestudos com a historiadora e sociloga da artealem, Hannah Levi Deinhardt, na FGV, passe ase dedicar a um exerccio prtico de arte base-ado nos princpios do expressionismo figurativoalemo. Foi uma iniciao muito semelhante,nessa primeira fase, de Oswaldo Goeldi, comquem manteve um profundo dilogo, no apenasde ordem esttica, mas de identidade poltica e

    social, alm de cultural e lingustica, pelo usocomum da lngua alem, recorda a curadora

    Anna Bela Geyer.Fayga comeou a trabalhar com gravuras para

    ilustrar livros. Um dos primeiros foi o clssico OCortio, de Alusio Azevedo. Ao atribuir gravura

    Casas, xilogravura com pochoir sobre papel, 1947

    Lavadeiras, linoleogravura sobre papel, 1947

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    Carioquice48

    margaret mee

    um valor essencial como meio de arte, dizia queera isso que lhe dava sentido, o de tornar a arteda gravura acessvel a um grande nmero de pes-soas, afirma Anna Bela. Mundialmente conhecidapor suas gravuras, o metal foi o meio preferidopela polonesa para estampar suas criaes. No toa, seu trabalho inspirou versos de CarlosDrummond de Andrade. No poema que leva o

    nome da artista, ele sada: Fayga faz a formaflutuar e florir na pauta musicometlica. Suaspremiadas obras se encontram nos principaismuseus brasileiros, da Europa e das Amricas.

    O Instituto

    Noni Ostrower, filha de Fayga, lembra da mecomo, antes de tudo, uma trabalhadora incans-vel. Fazer arte requer um pouco de inspirao

    e muito trabalho fsico, principalmente para ela,que mexia com gravura. Para se chegar simpli-cidade, preciso muito empenho, tanto intelectualquanto fsico. E o que minha me passou para nsfoi exatamente a mensagem do valor do trabalho,independentemente de qual seja, ressalta.

    Ela est frente do Instituto Fayga Ostrower,fundado em 2002 para preservar e difundir as

    ideias e a obra da artista. Um dos objetivos,alm de conservar o acervo, que se escrevasobre ela. A vida inteira ela deu aulas e palestras,falando de arte, mas no abordava seu traba-lho. Achava que no precisaria explicar, que aspessoas deveriam gostar ou no, a partir de suasensibilidade. Nesse sentido, esse livro editadopela Insight superimportante, ao expor a tra-

    jetria de Fayga.

    9406, xilogravura sobre papel, 1994

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    Noite, aquarela sobre papel, 1996

    Noni aponta um belo trabalho do acaso emrelao ao livro: O lanamento coincidiu com o

    dia 14 de setembro em que ela completaria95 anos. Uma feliz coincidncia. A arte para elaera a vida. Trabalhava direto, no tinha fim desemana, e sempre com muita paixo. Outracoincidncia foi o livro acabar nas mos de umaamiga e admiradora de Fayga, Angela Merkel. Emsua passagem pelo Brasil, em agosto, a chanceleralem foi presenteada com um exemplar, peloministro Joaquim Levy. De fato, Fayga e Angelatinham um relacionamento prximo, se encon-

    traram vrias vezes. Achei bacana que tenharecebido o livro.

    No texto Arte e artistas do sculo XX, in-cludo na publicao, a artista instiga: Quandose proclama que hoje no existem mais critrios

    artsticos, quando qualquer coisa passa; portan-to, quando no se consegue mais distinguir entre

    arte e no arte, ento tambm no se conseguesaber quem so os bons ar tistas que existem emtodos os pases. Raramente eles so encontradosnas galerias do grande circuito internacional.Estas inventaram seu prprio Olimpo e realmenteacham que, atravs de jogadas de marketing,adquiriram poderes supremos para criaremartistas e decretarem o que arte leia-sea grife, a ltima moda da estao. Eu conheoalguns bons artistas. No foram considerados

    bastante interessantes para o marketing das ga-lerias. Mas e da? Isto no os torna menos srios,menos criativos, menos artistas. Penso que, nosdias de hoje, Czanne no teria a menor chance.Ele srio demais. Um convite reflexo.

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    Carioquice50

    orio de niemeyer

    Gaudi

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    51Jul/ago/set 2015

    ensaio fotogrfico de

    marcelo Carnaval

    Passarela da Rocinha

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    Gaudi

    Carioquice52

    Auditrio da FGV, Praia de Botafogo

    REC Sapuca, Cidade Nova

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    53Jul/ago/set 2015 53Jul/ago/set 2015

    Prdio dos Dirios Associados, Sade

    Prdio da Vale, Centro

  • 7/21/2019 Carlos Heitor Cony - Palavras na Veia

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    Carioquice54

    GaudiGaudi

    Carioquice54

    Hospital da Lagoa

    Edifcio-sede da Manchete, Glria

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    55Jul/ago/set 2015 55Jul/ago/set 2015

    Obra do Bero, Lagoa

  • 7/21/2019 Carlos Heitor Cony - Palavras na Veia

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    da Frana para o Brasil. Vizinho a ele, um grandeterreno com palmeiras imperiais e um casaro delinhas portuguesas.

    Saa da Avenida Rio Branco e ganhava a Sete deSetembro, a Alfndega, a Quitanda. Via uma fileira decasas, que dava a impresso de que se estava noPorto, em Portugal. Eram sobrados colados uns aosoutros, riquezas de formas e sacadas em ferro batido.

    Dezenas e dezenas de cinemas. S na Praa Sa-ens Pea havia cinco. E todos os bairros tinham suaslivrarias. A Cinelndia era um esplendor. Havia muitagente andando pelas ruas. Homens de palet, gravatae chapu. Mulheres de luvas, chapus e salto.

    Tinha o bonde do Theatro Municipal, que levava osfrequentadores de seus bairros direto para l. Certavez, vi um bonde de casamento, com noivo, noiva,convidados. O bonde era todo forrado de fazendabranca e decorado com flores. Era nos bondes quese passava tambm o carnaval popular. As pessoasvinham fantasiadas, pulavam para as ruas, voltavama subir nos bondes. Uma festa.

    Foi uma poca curiosa

    Os anos 1943,1944 e1945 foram uma pocacuriosa. Perodo da redemocratizao do Brasil. pocados grandes comcios, em 1945. Havia um interesseenorme pela poltica. Vi, uma vez, na Rio Branco, emfrente ao Hotel Avenida, o Baro de Itarar e suaenorme barba branca fazendo a campanha de suacandidatura a vereador, com o pblico aplaudindo.

    Naquela poca no fazia tanto calor quanto hoje.As ruas tinham menos asfalto, o solo respirava. Nohavia o paredo de edifcios impedindo que a brisa

    do mar circulasse para o restante da cidade. Ou serque foi o corpo do menino que sentia menos calor?

    Envelheci acompanhando o caminhar da cidade emdireo modernidade. s vezes me pergunto: o quepensaria um menino que dormisse na noite de 1943

    EmBaIXadOr do rio

    Em 1943, vim de Fortaleza para o Rio de Janeiro.Tudo era muito diferente para mim. O Rio era uma

    cidade com um sabor especial, sobretudo para ummenino vindo da provncia, que ficava espantando comos prdios da Avenida Rio Branco, que eu via comouma reproduo de Paris.

    Voc pegava um bonde da Tijuca para a Praa

    Alberto da Costa e SilvaDiplomata, poeta, historiador e

    membro da Academia Brasileira de Letras (ABL)

    pelos olhos

    do menino

    Beth Santos