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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM
CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO
JOÃO PESSOA
2008
1
ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM
CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade Federal
da Paraíba, como requisito para obtenção do
título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Literatura e Cultura
Linha de pesquisa: Tradição e Modernidade
Orientador: Prof. Dr. Juvino Alves Maia Júnior
João Pessoa
2008
2
A334c Albertim, Alcione Lucena de.
Catábase de Enéias: um ato piedoso/
Alcione Lucena de Albertim.- João Pessoa,
2008.
92p.
Orientador: Juvino Alves Maia Júnior
Dissertação (Mestrado) UFPB/CCHLA.
1. Epopéia. 2. Literatura Clássica. 3. Herói épico.
4. Pietas. 5. Virgílio.
UFPB/BC CDU: 82 – 132 (043)
3
ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM
CATÁBASE DE ENÉIAS: UM ATO PIEDOSO
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Letras, curso de Mestrado acadêmico, do Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba.
Orientador:
_________________________________________
Prof. Dr. Juvino Alves Maia Júnior
Examinadores:
____________________________________________
Prof. Dr. Milton Marques Júnior
____________________________________________
Prof. Dr. Henrique Murachco
João Pessoa, 03 de março de 2008.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, por tudo.
Ao Professor Juvino, pela confiança e pela orientação.
Ao CNPq, pelo suporte.
Aos meus amados pais, pela vida.
A Milton, pelo apoio e pelo incentivo.
Ao Professor Arturo, pela co-orientação.
Aos amigos, alunos, professores e demais familiares, pela compreensão e colaboração.
5
RESUMO
O presente trabalho é um estudo sobre o Livro VI da Eneida, de Virgílio, tendo em
vista a análise do herói no que concerne a Pietas - valor basilar da ideologia romana,
que consiste no respeito e devoção aos antepassados como deuses protetores - a partir da
representação desse valor dentro do poema. Partindo da tradição grega sobre o mito da
descida aos Infernos, buscamos analisar o caráter inovador de Virgílio ao retomar esse
mito. Enéias, em sua katábasis, corrobora seu caráter piedoso, fio condutor das suas
ações dentro da narrativa. Levado pelos apelos da alma de Anquises, seu pai, o herói
desce ao mundo dos mortos - o que simboliza a sua própria morte, visto ser um ritual de
passagem que promove a transformação do herói - a fim de receber dele a homologação
de sua função como pater familias, requisito indispensável para ser o edificador das
bases da futura Roma. Sacerdote, guerreiro e empreendedor, Enéias, metonimicamente,
representa a figura de Otávio Augusto, construtor da Pax Romana, cujo intento é
marcar, através de uma grande epopéia, a soberania e a inexpugnabilidade tanto do
império quanto a sua própria.
Palavras-chave: epopéia, literatura clássica, herói épico, pietas, Virgílio.
6
ABSTRACT
The present research is a study of the Aeneid‟s sixth book, by Virgil, looking
towards an analysis of the hero about Pietas – basilar worth of the roman ideology,
which means the respect and devotion to the forefathers as protector gods – from the
representation of this value inside the poem. Departing from the Greek tradition about
the myth of the descent to the Hell, we look for to analyse the Virgil‟s innovator
character as soon as he treats this myth in a complex way. Aeneas, in his katábasis,
corroborates his pious character, characteristic which conducts the actions of the hero
inside the narrative. Prompted by the callings of the spirit of Anquises, his father,
Aeneas descends to the world of the dead – what symbolizes his own death, as it is a rite
of passage that promotes the transformation of the hero – to receive from him the
homologation of his role as pater familias, essential requirement to be the constructor of
the basis of the future Rome. Priest, warrior and enterpriser (sovereign), Aeneas,
metonymically, represents the Octavian August‟s figure, builder of the Pax Romana,
whose purpose is to mark, through a great epic, the supremacy and the inexpugnability
of the empire as his own, as well.
Key-words: epic, classical literature, epic hero, pietas, Virgil.
7
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................. 8
Capítulo Primeiro: O Contexto Mítico e Religioso da Eneida ............ 11
Apresentação de Virgílio
Uma apresentação da Eneida
Estrutura da Eneida
Capítulo Segundo: A Tradição Greco-Romana do Mito ..................... 51
O ritual de catábase
Catábase de Enéias
Capítulo Terceiro: Análise do Mito ....................................................... 74
As figuras míticas
Predições de Anquises: a glória romana
Conclusão ................................................................................................ 87
Bibliografia
Apêndice I: Mapas
Apêndice II: Texto Latino
8
Introdução
A Eneida, de Virgílio, marco da Literatura Latina, visto ser não só a obra que
inaugura o Latim como língua literária no seu apogeu, mas também ser o poema que
confere à nação romana uma identidade cultural, faz parte do período clássico (80 a.C a
70 d.C.), a chamada Idade de Ouro de Augusto, ápice da produção cultural romana.
Trata-se de uma epopéia cujo intuito é não apenas enaltecer a civilização romana, mas
também eternizar a glória e a soberania dessa nação.
O trabalho apresentado consiste em uma tentativa de análise do Livro VI da Eneida,
tendo em vista a categoria do herói no que concerne a Pietas, valor basilar da ideologia
romana, buscando ver como esse valor é representado dentro da epopéia.
A escolha do tema e sobretudo do corpus ocorre devido à inexauribilidade da
Eneida respeitante ao seu conteúdo, permitindo ver dentro da obra novas possibilidades
de análise literária. O estudo do herói, sobretudo dentro do Livro VI, é bastante
profícuo, haja vista ser esse Livro o divisor de águas dentro da narrativa. Enéias, herói
troiano a quem os deuses atribuem a missão de fundar uma nova cidade, após sua
catábase aos Infernos, recebe a homologação de sua função como pater familias,
exercido por Anquises quando em vida, entretanto, é preciso ter em mente que a
dimensão do exercício dessa função, concernente a Enéias, atinge o âmbito da nação.
Tomando metonimicamente Enéias por Otávio Augusto, é possível inferir que a nação
referida é Roma, e o pater familias é, na realidade, Augusto, sobretudo quando se torna
pontífice máximo, reunindo em si além das funções de empreendedor e de guerreiro, a
sacerdotal.
Tendo contato, a princípio não tão profundo, com os poemas homéricos Ilíada e
Odisséia, seguido pela leitura da Eneida, de Virgílio, foi possível perceber, no processo
de maturação que as leituras constantes dos textos trazem, a ligação entre as obras.
Sabe-se que a Eneida é posterior aos poemas homéricos, entretanto, a própria estrutura
do texto corrobora essa convergência. Diante de tal comprovação, a correspondência do
tema da catábase do herói presente em ambos os poemas, Odisséia e Eneida, chamou a
nossa atenção. A partir de então, direcionamos os estudos e a pesquisa para a
9
compreensão e apreensão dessa correspondência, o que possibilitou a realização do
presente trabalho.
A utilização de Jean-Pierre Vernant como base teórica deve-se à sua acuidade
helenística na pesquisa sobre a antigüidade clássica, possibilitando-nos uma visão mais
cristalina acerca dos valores vigentes nesse mundo arcaico e clássico.
Mircea Eliade, por sua vez, vem contribuir para o entendimento do aspecto
religioso, mormente em relação a mito e a rito; e aos requisitos necessários para a
fundação de uma cidade.
A dissertação está dividida em três capítulos: I. O Contexto Mítico e Religioso da
Eneida; II. A Tradição Greco-Romana do Mito; III. Análise do Mito.
O primeiro capítulo trata da contextualização da Eneida, relacionando os fatos
históricos contemporâneos à obra representados dentro da narrativa, e àqueles
pertinentes à fundação mítica de Roma. Buscamos dar uma visão geral acerca dos
valores vigentes na sociedade romana, a saber, Pietas, Virtus e Fides; e também abordar
o conjunto de fatores necessários para a fundação de uma cidade, remetendo à fundação
da própria Roma. Em seguida, fazemos uma abordagem sobre a estrutura do poema,
partindo da etimologia do termo epopéia até o conteúdo pertencente a cada Livro.
O segundo capítulo estuda a tradição do mito da catábase dentro da cultura grega, a
fim de mostrar o caráter inovador de Virgílio ao retomar esse mito, desenvolvendo-o,
tratando-o com tal complexidade apenas vista treze séculos depois, na obra de Dante
Alighieri. A catábase representa um ritual de passagem, necessário à lapidação do herói
de modo a prepará-lo para a assunção de um novo posto, de uma nova função.
O terceiro capítulo aprofunda a análise do Livro VI, tratando das figuras míticas
presentes na tradição e que compõem a narrativa. Procuramos mostrar a visão dos
Infernos segundo a concepção latina do mundo dos mortos, a partir do itinerário da
Sibila e de Enéias através das regiões sombrias do reino subterrâneo. E por fim,
tratamos dos personagens da história romana presentes no Livro VI, e que compõem o
cenário da glória da futura Roma.
Na conclusão, elencamos os passos seguidos na composição do nosso trabalho, de
modo a ratificar o que foi proposto como objeto da nossa pesquisa, mostrando os
pontos, dentro do poema, nos quais encontramos os elementos necessários para formar a
base de discussão na nossa dissertação.
10
Quanto às traduções no decorrer do trabalho, elas têm caráter instrumental,
portanto, prima pela fidelidade ao texto latino e ao grego, dentro do limite em que isso é
possível.
Esperamos, com esse trabalho, contribuir para a pesquisa na área dos estudos
clássicos, abrindo novas possibilidades de estudo e de pesquisa concernentes à
genialidade inovadora de Virgílio, cuja obra representa um marco sem precedente
dentro da Literatura Latina.
11
I. O Contexto Mítico e Religioso da Eneida
1. Apresentação de Virgílio
1.1. Breves informações biográficas
Publius Vergilius Maro (70-19 a.C.) nasceu em Mântua1, cidade ribeirinha do rio
Pó, na Itália. Filho de fazendeiro, estudou em Cremona e Milão. Aos dezesseis anos foi
para Roma estudar filosofia e retórica. Dedicado a uma vida de estudo e meditação em
sua fazenda, começou a compor as Éclogas, em 41 a.C., mas teve suas terras
confiscadas. Asinius Pollio, comissário do governo para a distribuição das terras
confiscadas, e homem de cultura, tentou devolver-lhe as terras, mas não conseguiu.
Dedicou-lhe, então, proteção e incentivo a fim de que continuasse a composição das
Écoglas. Em 37 a.C., Virgílio estava em Roma, usufruindo os louros provenientes da
sua publicação. Foi introduzido no ciclo de Mecenas, conselheiro de Otávio Augusto e
patrono da cultura, que o estimulou a escrever as Geórgicas, cujo resultado maravilhou
tanto Mecenas quanto Otávio, a quem fora apresentado em 29 a.C.. Otávio Augusto, já
reinando absoluto em Roma, lhe conferiu a tarefa de escrever sobre a glória de Roma,
tomando como ponto de partida a suposta descendência divina do seu pai adotivo, Júlio
César, proveniente de Vênus e Anquises, por intermédio de Enéias e seu filho Iulo, o
que retrataria a sua própria divinização. O surgimento da Eneida ocorre por causa desse
acontecimento.
1.2. Uma apresentação do contexto da Eneida
A Eneida é um poema épico, com forte sentido religioso, que trata do mito de Enéias.
Herói troiano, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, Enéias não pertence à casa real
de Príamo, descendendo da raça de Dárdano através da linhagem de Assáraco, seu bisavô,
1CONTE, Gian Biagio. Latin literature, a history. Translated by Joseph B. Solodow. N.Y.: The Johns
Hopkins University Press, 1994.
12
pai de Cápis. Desde o seu nascimento, predições revelam que a Enéias está reservado o
poder, como se pode observar no Hino Homérico a Afrodite2 (versos 196-199). Ele é
escolhido para ser o edificador de um novo reino, construindo as bases da futura Roma, por
se tratar de um herói sem mácula, cuja piedade (Pietas), base da religião romana, conduz
suas atitudes. A Pietas diz respeito ao sentimento de dever, de devoção e de respeito pelos
antepassados e pelos deuses, vivenciada sobretudo através dos rituais e dos sacrifícios. Tal
princípio é imprescindível à caracterização do herói para uma missão desse porte.
Escrita no século I a.C., a relevância dessa obra dentro da Literatura Latina ocorre,
principalmente, por se tratar de um projeto político idealizado por Augusto, e partilhado por
Virgílio. Esse aspecto encontra-se bem enfatizado no Livro VI do poema, cujo ápice é a
descida de Enéias aos Infernos, a fim de se encontrar com a alma do pai, que lhe mostra
figuras ilustres da História de Roma, as quais comporão o cenário da futura glória da nação.
Construtor da Pax Romana, o imperador Augusto intenta eternizar a soberania do império, e
a sua própria, através da voz do poeta. Tendo como base o modelo homérico da epopéia,
Virgílio busca subsídios na tradição latina3, que considera a origem dos romanos como
sendo troiana, e tem Enéias como mito fundador, sobretudo das bases edificadoras de
Roma. O tempo em que se passa a história diz respeito ao momento subseqüente à
destruição de Tróia, que, segundo a arqueologia, data do século XII a.C., entretanto, a
narrativa tem respaldo nos fatos ocorridos no decurso do governo de Augusto, séculos I a.C
e I d.C. (29 a. C. – 14 a. D.), o que permite o uso abundante de prolepses pelo narrador,
através da fala profética dos personagens. É o que acontece, por exemplo, no Livro I, versos
257- 296, na entrevista entre Júpiter e Vênus. A deusa, acabrunhada pela desdita dos
troianos, perseguidos por Juno, reclama a seu pai o futuro glorioso prometido aos
Dardânidas. O deus, como resposta, discorre sobre o porvir, remetendo à descendência dos
reis romanos a partir de Iulo, filho de Enéias, até Otávio Augusto, responsáveis pela
construção do esplendor e da soberania de Roma sobre o mundo, a partir da concepção da
Pax Romana.
Considerando tais dados históricos, convém lembrar que as realizações artísticas, por
mais que tenham sua liberdade criadora, sempre são calcadas sobre experiências humanas.4
2 HOMÈRE. Hymnes; texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles Lettres, 1936.
3 Livy. History of Rome, books 1-2. translated by B. O. Foster. London: Harvard University Press, 2002.
4 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1982. Ver a esse respeito, o capítulo II, referente ao
objeto da literatura.
13
No caso da Eneida, em particular, não se pode perder esse vínculo entre a história romana,
no limiar do Império e a necessidade política e estética de estabelecer um marco épico.
O estabelecimento de tal marco encontra respaldo na Ilíada, de Homero, composta no
século VIII a.C., como uma das fontes fundamentais para a composição da Eneida,
especificamente o Canto XX, versos 293-3085:
5 Texto retirado da Bibliotheca Augustana (www.hs-augsburg.de)
6 O verbo ( ) possui a mesma raiz de , senhor, aquele que detém o poder
absoluto, e tem o sentido de força, poder caracterizado pela violência, portanto, , teria
um sentido mais de imposição do poder pela violência, o que soaria estranho dentro da tradução. Por isso
preferimos traduzir por “a força reinará”, tendo em mente, no entanto, que o Destino impõe que Enéias
seja o edificador das bases da futura Roma, o que condiz com os termos em grego.
14
Ó ! Pesar há para mim quanto a Enéias de grande coração,
que rapidamente desce para o Hades, domado pelo Pelida,
sendo persuadido pelas palavras de Apolo, o que atira de longe!
Tolo! Nem o deus (Apolo) o protegerá da morte funesta.
Mas por que sofrer ele dores em vão, no momento, sendo inocente,
por causa de sofrimentos alheios, ele, que sempre
oferece dons agradáveis aos deuses, os quais sustêm o vasto céu?
Vamos, pois, conduzi-lo para longe da morte,
assim o Cronida não venha a se enfurecer, ah, caso Aquiles o mate;
pois ele está destinado a escapar, a fim de que a raça de Dárdanos não
pereça sem fruto e aniquilada; ele (Dárdanos), que o Cronida amou acima
de todos os filhos, os quais ele engendrou de mulheres mortais.
Já a raça de Príamo, o Cronida detesta.
A força de Enéias, doravante, reinará sobre os troianos,
e os filhos dos seus filhos, os quais venham a nascer em seguida.7
Esse episódio do Canto XX da Ilíada enfoca o quase embate entre Aquiles e
Enéias. Zeus, após uma assembléia dos deuses, libera a sua participação na guerra, de
modo a tomarem o partido de quem melhor lhes aprouvesse. Em dado momento, Apolo,
tomando a forma de Licáone, um dos filhos de Príamo, incita Enéias a enfrentar
Aquiles. Posídon, ao ver a cena, cujo desfecho poderia ser a morte de Enéias, intervém,
atirando densa neblina na visão de Aquiles a fim de afastar o herói troiano. Eleva-o do
chão, atravessando-o por muitas fileiras de heróis, até alcançar longa distância. Em
seguida, aconselha-o a permanecer sempre longe de Aquiles, pelo menos até que este
morra, pois, caso contrário, poderia baixar ao Hades contra o Fado. Posídon remete ao
fato de que a linhagem de Enéias é muito querida de Zeus, pelo seu devotamento aos
deuses e pelo seu comedimento, visto nunca ter havido mácula da sua parte, o que é o
prenúncio da Pietas do herói.
A ascendência de Heitor é marcada pelo descomedimento ( ) dos seus
componentes, gerando a contaminação ( ) que atinge toda a sua linhagem
7 As traduções no decorrer do trabalho são nossas, salvo quando indicadas.
15
familiar, a começar pelo pai de Príamo, Laomedonte, antigo rei de Tróia, filho de Ilo e
neto de Trós, sendo este ancestral comum a Heitor e a Enéias. Laomedonte mandara
construir as muralhas da cidadela e, para isso, recorrera a duas divindades, Apolo e
Posídon, castigados por Zeus a servir os mortais, por armarem um complô contra ele8.
Quando a construção da muralha termina, Laomedonte recusa-se a pagar aos deuses, o
que acarreta uma série de males ao povo, dentre eles, um monstro marinho, enviado por
Posídon. Em seguida, ludibria Héracles, a quem prometera recompensar com os cavalos
divinos que possuía, em troca da morte dada ao monstro. O cumprimento dessa
promessa, por sua vez, também não é realizado, o que leva Héracles a promover o
primeiro saque de Tróia.9 Príamo, pai de Heitor, também comete descomedimento ao
acolher Páris quando este chega a Tróia com Helena, causa da guerra contra os gregos.10
Ao ser recebido como hóspede por Menelau, o príncipe troiano fora acolhido também
por Zeus ( ), deus hospitaleiro; e, ao trair seu anfitrião, fugindo com a sua
mulher, ofende ao deus, mais do que ao homem. Para melhor entendimento deste
contexto, segue o quadro genealógico da família real troiana11
:
8 Para o complô, v. Ilíada, I, 395-400; para a construção das muralhas, v. Ilíada, VII, 446-453, e XXI,
441-460. 9 GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Ttadução de Victor Jabouille. 4.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 10
HESIOD HOMERIC HYMNS HOMERICA; translation by Hugh G. Evelyn-White. London: Havard
University Press, 2002, p. 489-506 (The Loeb Classical Library) 11
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2000.
16
Electra ~ Zeus Teucro
(Córito)
Iásion Dárdano ~ Batieia
Erictônio ~ Astíoque
Trós
Cápis ~ Temiste Laomedonte
Afrodite ~ Anquises Príamo
ENÉIAS Heitor Páris
Nesse contexto, percebemos os critérios estabelecidos para a escolha de Enéias para
a edificação do novo reino. Seu caráter piedoso, já delineado na Ilíada,
(dons
agradáveis sempre oferece aos deuses, os quais sustêm o vasto céu), nos versos 298 e
299 do Livro XX, é o fio condutor das ações do herói na Eneida, visto ser Enéias o mito
fundador das bases de Roma. Sabe-se que tal incumbência é retratada não apenas pelos
mitos, que envolvem a liberdade artística, mas também por outros campos do
conhecimento, a exemplo da historiografia e da sociologia. Segundo Fustel de
Coulanges12
, por exemplo, o fundador da cidade era o responsável pela realização dos
atos religiosos, sem os quais a cidade não existiria. O detalhamento desse aspecto
religioso em relação à fundação de uma cidade, será feito mais adiante, na medida em
12
COULANGES, Numa Fustel de. The ancient city. translated by Arnaldo Momigliano and S. C.
Humphreys. N.Y.: The Johns Hopkins University Press, 1980.
17
que extrapola o momento presente da contextualização e está arraigado profundamente
no Livro VI, eleito para análise.
Na tradição grega encontra-se o alicerce da cultura romana, portanto, faz-se
necessário partir dessa tradição, para analisar o perfil de Enéias como herói, tendo como
base o conceito de Arete ( ). Werner Jaeger13
, por falta de um vocábulo
equivalente que defina com exatidão o conceito de Arete, aproxima o seu significado da
palavra “„virtude‟, como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta
cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro”. Tal „virtude‟ sedimenta-se na honra pessoal
( ) do herói a fim de consolidar a sua perenidade em relação às gerações futuras. A
diz respeito à distinção de si mesmo entre os pares, estes pertencentes à nobreza
aristocrática guerreira. Ela representa, ao mesmo tempo, o elo pactuante entre esses
pares, situando-os como os melhores. Portanto, ofender de algum modo a honra pessoal
do outro, significa colocar em risco o equilíbrio da estrutura unificadora dos próprios
heróis e senhores, aquilo que os faz ser melhores entre os demais homens. A
consagração da Arete daquele que em vida se destacou, ocorre com a sua morte física, a
“bela morte” ( ). A bela morte do herói, que para ser assim
considerada exige alguns requisitos, a saber, juventude plena e morte sanguinolenta em
combate com um igual, é responsável pela glória imperecível ( ). Essa
glória é ratificada pelos rituais fúnebres, e pela construção de um túmulo para o herói,
, símbolo da existência e da perenidade deste herói mas, a partir de então, com
o status de ausente entre aqueles que formam a sociedade da qual fazia parte em vida.
Ele será lembrado e reconhecido pelas gerações vindouras por sua excelência guerreira,
através dos cantos dos aedos.
Jean-Pierre Vernant14
aborda esse assunto de modo esclarecedor, dando uma exata
dimensão da sua importância no mundo arcaico grego:
13
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. 14
VERNANT, Jean-Pierre. A beautiful death. In: Mortals and Immortals: collected essays. Edited by
Froma I. Zeitlin. New Jersey: Princeton University Press, 1991, p. 69.
18
If the qualities that comprise a warrior‟s - ardor ( ), might
( ), the limbs ( ) – had this character of , the warrior hero
would be immune to old age. He would not gave to lose his youth and beauty in
a heroic death in order to acquire the definitively in the world beyond. In its
own way, by the immutability of its material and shape, and by the continuity of
its presence, the conveys the paradox of the values of life, youth, and
beauty, which one can ensure for oneself only by losing them, which become
eternal possessions only when one ceases to be.
Se as qualidades que formam a de um guerreiro – ardor ( ),
força ( ), membros ( ) – tivessem esta característica de , o
herói guerreiro estaria imune à velhice. Ele não teria dado a perder sua
juventude e beleza em uma morte heróica a fim de adquiri-las definitivamente
no além mundo. Neste mesmo sentido, pela imutabilidade da sua matéria e
forma, e pela continuidade da sua presença, a carrega o paradoxo dos
valores da vida, juventude e beleza, os quais podem ser assegurados apenas pela
perda destes, tornando-se posses eternas unicamente quando o herói deixa de
existir.
A de um guerreiro, a sua excelência quanto à bravura no campo de
batalha, requer alguns fatores. É preciso que o herói esteja em sua plena força física e
juventude, momento em que o corpo está no auge da beleza e do ardor. Tais
características são perecíveis. A medida que o tempo passa, a natural decrepitude as faz
fenecer, não sendo, portanto, constantes ( ). A obtenção da perenidade desses
atributos demanda a sua perda através da “bela morte”, de modo que a lembrança a
permanecer em relação àquele herói será a da sua última imagem quando vivo.
Juntamente com a , a memória, através da qual o herói tem sua glória
imortalizada, estando incluída nesta tanto a sua juventude, o seu ardor guerreiro e a sua
proeminência, quanto a Arete vivenciada durante a vida física, existe a construção do
túmulo, , no qual se encontra o símbolo divino representativo do herói, a marca
que lhe confere glória imorredoura entre as gerações futuras. O silêncio do
esquecimento seria a pior morte que poderia ocorrer para um herói.
Aquiles, na Ilíada, é o modelo perfeito para exemplificar a seriedade da negação da
honra devida a um herói, sobretudo, tratando-se de uma Arete do porte da sua, visto ser
ele considerado o melhor entre os aqueus. A usurpação do seu butim de guerra por
Agamêmnon representa grande ameaça à sua glória pessoal, levando-se em
consideração a importância do prêmio adquirido pela vitória em algum combate
19
guerreiro. , termo sem palavra equivalente em português quanto à sua
tradução, coaduna o sentido de superioridade respeitante à hierarquia, de supremacia na
guerra, de primazia em força, vigor e coragem, tudo representado no butim de guerra
devido ao herói pelos seus feitos belicosos. Portanto, negar o a um dos melhores,
significa negar-lhe a própria vida.
Na Odisséia, a Arete tem um aspecto diferenciado do acima referido. Concerne
mais ao lado humano da vida dos heróis, do que à proeminência guerreira. O cerne da
narrativa repousa na volta do herói, , para o lar e para a pátria, passados dez
anos de guerra, através de erráticas aventuras as quais servem para ratificar o caráter
humano de Odisseu. Sendo a inteligência o fulcro irradiador da sua força, ele a utiliza a
fim de enfrentar as vicissitudes na viagem de volta, cadinho burilador da sua
personalidade humana. Na guerra, a sua inteligência lhe serve de instrumento para a
obtenção da relevância como herói guerreiro, como combatente. No seu périplo de volta
ao lar, a astúcia molda-lhe as atitudes, possibilitando o enfrentamento dos perigos e o
triunfo sobre os inimigos. Nisto consiste a sua Arete, na utilização da astúcia para a
conquista da honra pessoal, respeitante agora a Odisseu homem, senhor em seu lar,
esposo, pai e filho.
No mundo clássico grego, com o advento da pólis, a Arete passa a ter uma
importância guerreira menor, residindo seu valor agora na moderação e na prudência
dos atos ( ), visto ser condizente com a manutenção do equilíbrio da cidade
e com os novos valores vigentes, a saber, a Lei Humana, a Democracia e a Filosofia. A
vivência da Arete passa a ser interior, a partir de disciplina severa e do controle sobre si
mesmo. A proeminência é da cidade, da coletividade, não mais do herói singularmente.
Considerando as transformações ocorridas na vida social e política, com o advento
da pólis, Jean-Pierre Vernant15
faz o seguinte comentário acerca da nova feição da
Arete:
15
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução Ísis Borges B. da Fonseca. 14.ed.
Rio de Janeiro: Difel, 2004, p. 87-88.
20
Os meios sectários puderam assim contribuir para fazer uma imagem nova da
Arete. A virtude aristocrática era uma qualidade natural ligada ao brilho do
nascimento, manifestando-se pelo valor no combate e pela opulência do gênero
de vida. Nos agrupamentos religiosos, não somente a Arete se despojou de seu
aspecto guerreiro tradicional, mas definiu-se por sua oposição a tudo que
representasse como comportamento e forma de sensibilidade o ideal de
habrosýne: a virtude é fruto de uma longa e penosa áskesis, de uma disciplina
dura e severa, a meleté; emprega uma epiméléia, um controle vigilante sobre si,
uma atenção sem descanso para escapar às tentações do prazer, à hedoné, ao
atrativo da moleza e da sensualidade, a malachía e a tryphé, para preferir uma
vida inteira votada ao pónos, ao esforço penoso.
O século VII a.C. é marcado por intensas transformações, sobretudo na Grécia. A
expansão do comércio marítimo para o Oriente trouxe o hábito ao luxo, à opulência e ao
requinte pela aristocracia, o chamado , o homem bem-nascido, cujo
perfil reunia características como a ostentação da riqueza, o valor guerreiro e a
qualificação religiosa. No cenário social, diferentes fenômenos religiosos, a saber, os
Mistérios de Elêusis, o Orfismo e o Dionisismo, convivem com a religião cívica.
Diferentemente desta, esses fenômenos permitiam a qualquer grego, independentemente
da hierarquia, o acesso à imortalidade bem-aventurada e a um contato mais direto com
os deuses. Mas isso só era possível para aqueles que haviam sido iniciados ( ), e
que, sem nenhuma modificação quanto à sua vida exterior, passavam a seguir certas
regras de conduta interior, visando à salvação individual. Outro acontecimento que
mudou a base em que a cidade se estabelecia foi a ocorrência de uma nova categoria
social de crescente importância, os artesãos. Eles passaram a ter grande influência pois
detinham substancial poder econômico. Um fator que contribuiu sobremaneira para o
novo perfil social foi a mudança da legislação em relação ao homicídio. A condenação
do crime passa a ter um caráter universal, não mais significando um ajuste de contas
entre as famílias. A impureza causada pelo assassínio não atinge apenas a família, mas a
cidade inteira, precisando ser purificada a partir de uma decisão coletiva. Neste contexto
entra em cena a dike ( ), a justiça aplicada a todos, a fim de conter o espírito de
hybris ( ) dos homens e manter o equilíbrio harmonioso da pólis, através da
eunomia ( ), da boa lei, do bom costume. Diante desse quadro, a Arete é
21
pautada por uma conduta cujo eixo é o equilíbrio e a disciplina de si mesmo, através de
uma prática constante da moderação, do comedimento.
No mundo romano, a Arete grega identifica-se com a Uirtus, que juntamente com a
Pietas e a Fides, forma o tripé do ideal romano. A Uirtus, segundo Ernout16
, tem a
mesma raiz de uir, termo denotativo do homem viril, e utilizado para designar o herói
guerreiro cuja figura encerra a coragem, a força física e moral. Portanto, a princípio,
Uirtus significa a força pura e simples. A Pietas expressa o respeito e a devoção aos
deuses e aos ancestrais, sobretudo através dos sacrifícios e oferendas. A Fides diz
respeito à confiança, à lealdade concernente à palavra dada. O perfil do herói, na
Eneida, coaduna esses três aspectos.
O poema começa in medias res, quando Enéias e um grupo de troianos
remanescentes da guerra contra os gregos estão indo, por mar, em busca da terra a eles
destinada pelos deuses. A voz poética propõe cantar os combates do herói ocorridos
durante sua errância desde a saída de Tróia, depois da destruição, até a sua chegada ao
Lácio, para a construção da glória romana. Para isso, invoca a Musa, a fim de que ela o
inspire a saber qual dos deuses persegue um varão, insigne pela piedade, a sofrer tantos
trabalhos. O procedimento metalingüístico que inicia o texto, tão comum à tradição
épica, recebe um tratamento mais peculiar na Eneida, no que respeita à caracterização
do herói e à clareza em relação à sua trajetória:
Musa, mihi causas memora, quo numine laeso
quidve dolens regina deum tot volvere casus
insignem pietate virum, tot adire labores
impulerit. tantaene animis caelestibus irae?17
Musa, lembra-me as causas, qual nume, ofendido,
ou por que a rainha dos deuses, dolente, impeliu um herói,
insigne pela piedade, a revolver tantas desventuras,
a incorrer tantos labores. Tão grandes iras há nos ânimos celestes?
16
ERNOUT, Alfred et MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine : histoire des
mots. Paris : Klincksieck, 2001. 17
VERGILIUS. Aeneis. Liber I, 8-11. (Bibliotheca Augustana)
22
Percebe-se, desde já, um direcionamento em relação à inexorabilidade da missão a
ser cumprida por Enéias, o que pode ser comprovado pelo emprego do verbo impellere
(= impelir, obrigar, constranger), no subjuntivo perfeito, denotando o acabamento, o
fechamento do processo verbal, da ação que fora projetada. A piedade (Pietas) do herói,
sua devoção e respeito aos deuses e ancestrais, ratificada através dos sacrifícios e dos
ritos direcionados a eles, a princípio, parece contraditória à perseguição da deusa Juno.
Entretanto, a utilização dos verbos volvere (= revolver) e adire (= suportar, submeter),
reitera a idéia de devoção e obediência concernente ao termo Pietas, visto que as
vicissitudes enfrentadas funcionam como um buril para a lapidação de Enéias, mito
fundador das bases da futura Roma. A sua exaltação representa a exaltação da própria
nação vindoura.
Na Ilíada, a invocação à Musa exalta a glória pessoal do herói em um momento
específico da guerra, o décimo ano do cerco a Tróia. O emprego, no imperativo
presente, do verbo (= cantar), cuja raiz é a mesma do substantivo (=
aedo, aquele que canta os feitos de um herói), apenas denota o que será cantado, a ira
funesta do Pelida Aquiles, , e suas
conseqüências. O uso pontual dos verbos, (aoristo indicativo do verbo )
e (aoristo indicativo do verbo ), para o apontamento dessas
conseqüências, reitera a especificidade do canto, a exaltação do herói, sobretudo em
relação aos seus feitos guerreiros:
18
HOMEROS. 1-7. (Bibliotheca Augustana)
23
Canta, ó deusa, a ira funesta do Pelida Aquiles,
que incontáveis sofrimentos trouxe aos Acaios,
e lançou para o Hades muitas almas valentes de heróis,
e fez destes, espólio para todos, cães e aves.
de Zeus cumpria-se a vontade,
desde quando primeiro cindiram, tendo ambos brigado,
o Atrida, senhor dos homens, e o divino Aquiles.
Enéias, no entanto, é exaltado pela sua Pietas, cuja função é advertir quanto às
obrigações para com a pátria e para com a família, mantendo, desse modo, a ordem
social. Colocada como alicerce para a ação do herói, como também para a construção da
narrativa, ela irá alcançar o seu ápice no momento em que Enéias, impulsionado pelos
apelos da alma de Anquises, seu pai, desce aos Infernos.
Mircea Eliade19
, um dos maiores estudiosos das religiões no século vinte,
desenvolve todo um pensamento complexo a respeito da significação da Pietas no
conjunto das mitologias:
Despite its relations with the verb piare (“to pacify, to do away with a
defilement, an evil omen,” etc.), Pietas means not only scrupulous observance
of the rites but also respect for the natural relationship (i.e., relationships in
conformity with norm) among human beings. For a son, Pietas consists in
obeying his father; disobedience is equivalent to a monstrous act, contrary to
natural order, and the guilty son must expiate the defilement by his own death.
Together with Pietas toward the gods, there is Pietas toward the members of the
groups to which one belongs, toward the city, and, finally, toward all human
beings.
Apesar das suas ligações com o verbo piare (apaziguar, apagar uma falta, um
mau presságio, etc.), a Pietas designa não apenas a observação escrupulosa dos
ritos, mas também o respeito pelos relacionamentos naturais (isto é, ordenados
segundo a norma) entre os seres humanos. Para um filho, a Pietas consiste em
obedecer ao pai; a desobediência equivale a um ato monstruoso, contrário à
ordem natural, e o culpado deve expiar essa falta com a própria morte. Ao lado
da Pietas para com os deuses, existe a Pietas para com os membros dos grupos
a que se pertence, para com a cidade e, finalmente, para com todos os seres
humanos.
19
ELIADE, Mircea. A history of religious ideas: from Gautama Buddha to the triumph of
Christianity.Chicago: University of Chicago Press, 1984, p. 116.
24
Na perspectiva do teórico, a observação a respeito da Pietas revela uma concepção
própria das religiões antigas, que ainda não separa rigidamente a humanidade da
natureza. Isso significa que o homem ainda é visto como uma extensão natural do
próprio cosmos, e o seu comportamento é regido pelas mesmas leis que presidem o
funcionamento do mundo. Na Eneida, a relação entre pai e filho repousa em uma
estrutura patriarcal, em que a obediência funciona como elemento ordenador da
hierarquia familiar. Essa obediência se estende além dos limites da vida, impulsionando
até mesmo um encontro em outra dimensão. A descida de Enéias ao mundo subterrâneo
retrata o ponto máximo da sua piedade. Mesmo colocando em risco a própria vida,
devido ao enfrentamento de tantos perigos, dentre eles, a travessia do Aqueronte,
afluente do Estige, principal rio dos Infernos, o herói atende à devoção religiosa ao pai.
A sua catábase, sendo determinada pelo destino, é reforçada pelos apelos de Anquises.
Ele morre em Drépano, região da Sicília, antes da chegada forçada de Enéias a Cartago
(Eneida, III, 707-715). Passado um ano, o herói volta à ilha e institui jogos em honra a
seu pai, não antes de ofertar-lhe libações e sacrifícios, reverenciando-o como um deus20
(Eneida, V). Anquises, depois da morte, passa a figurar entre os Di Parentes, os deuses
ancestrais, que protegem o núcleo familiar a que pertenceram em vida. Esse sentimento
religioso que vincula os familiares aos seus antepassados é alimentado através do culto
familiar, presidido pelo pater familias, o pai ou o avô pela linhagem paterna, imbuído
de total poder sobre os descendentes. Ele coexiste com o culto público, exercido por um
sumo sacerdote, cuja função, para o Estado, é similar à do pater familias para o seu lar.
Para melhor entendimento desse contexto, segue uma abordagem sobre o processo
religioso ocorrido durante o desenvolvimento da sociedade primitiva, familiar, até o
surgimento da urbe.
Como nos informa Fustel de Coulanges21
, havia, na cidade, um altar em que se
cultuavam divindades eleitas suas protetoras. Tratava-se, geralmente, de figuras
heróicas, cujos feitos, em vida, atribuíram-lhes tal função. Acreditava-se que a
existência e permanência de uma cidade só eram possíveis com a manutenção do fogo
sagrado e o culto às divindades que o protegiam, os Penates do Estado. Tal crença
20
VERGILIUS. op. cit., Liber V, v. 42-103. 21
COULANGES. op. cit., p.07-25.
25
remonta à antiga organização social, antes da formação da pólis, das tribos e das cúrias,
na qual as pessoas se vinculavam unicamente por laços familiares. Cada família
representava um núcleo particular, sem que houvesse ligação alguma entre eles. Cada
grupo possuía um altar em que se mantinha aceso o fogo sagrado, símbolo da
religiosidade sobre a qual se estruturava a família, e onde repousavam as cinzas dos
ancestrais, os deuses do lar. Alguém que não estivesse ligado pelos laços familiares
àquele culto, jamais poderia sequer ver o altar daquele lar, pois significava extrema
ofensa aos deuses, podendo essa mácula ser reparada apenas com sacrifícios de
purificação e libações.
No decorrer do tempo, famílias diversas se reuniram e formaram as cúrias, que
possuíam seus próprios altares e deuses protetores, e em que o ato religioso era da
mesma natureza do familiar. Consistia em um repasto compartilhado por todos,
enquanto hinos eram entoados e preces eram recitadas, a fim de que a divindade
presente também participasse do banquete. O alimento era preparado no próprio altar,
mantendo o seu caráter sagrado. Entretanto, tal reunião não extinguiu o culto individual
de cada uma das famílias que formavam a cúria.
Mais tarde, as cúrias formaram as tribos, que, por sua vez, reuniram-se para formar
as cidades. Assim como as famílias e as cúrias, as tribos e as cidades também possuíam
sua religião comum, com o altar sagrado e suas divindades protetoras. Tais divindades
eram homens deificados, os chamados heróis.
Jean-Pierre Vernant22
define o herói como um ser de natureza ontológica, haja vista
não pertencer nem à linhagem dos deuses, nem tão pouco à raça dos homens comuns.
Trata-se de um ser que se distingue pelo seu nascimento, pois provém da união de um
deus com um mortal, possuindo portanto uma natureza divina apesar de não ser imortal;
e pela sua morte, que o coloca acima da condição humana, pois ela possibilita a sua
entrada na ilha dos Bem-Aventurados, onde gozará de uma vida após morte apenas
comparável à dos deuses, diferentemente dos homens comuns, que mergulharão na
sombra do esquecimento ao adentrar o Hades. Na organização da pólis, os heróis “são
Potências „indígenas‟ ligadas àquele ponto do solo onde têm sua morada subterrânea;
sua eficácia adere à tumba e à ossada de cada um”.23
Portanto, o culto ao herói serve
22
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. Joana Angélica D‟Avila Melo. São
Paulo, 2006. 23
Idem, ibidem, p.50.
26
sobretudo para delimitar o espaço em que a pólis está situada. Respaldado no passado
mítico da Grécia, o herói simboliza o fundador lendário da cidade.
Na Eneida, portanto, Anquises é o pater familias, cujos descendentes diretos são
Enéias e Iulo, seu neto. Com a sua morte, o cumprimento dos ritos e dos sacrifícios aos
deuses passa a ser realizado por Enéias. Ele assume o papel de pater familias não
apenas do grupo familiar, mas também daqueles que, no futuro, constituirão o reino a
ser edificado. Seu encontro com Anquises nos Infernos homologa a permissão para a
sua missão de fundar uma cidade. O pai delega ao filho o poder sobre a pátria, e
assegura-lhe a glória futura da nação. Anquises desvenda a Enéias o porvir,
apresentando-lhe as gerações responsáveis pela construção da soberania do Império, a
partir de uma descendência do herói.
Maria Helena da Rocha Pereira24, em uma de suas reflexões sobre essa questão,
retrata a função da Pietas, mantenedora da ordem social respeitante à hierarquia tanto na
família quanto no Estado:
Estabelecendo assim um vínculo afectivo entre os membros de uma família, a
Pietas alargava-se à divindade e acaba por compreender também as suas
relações com o Estado.
Embora a literatura, conforme Aristóteles, não tenha que corresponder diretamente
à realidade, percebemos entrelaçamentos que não podem ser desprezados, sobretudo em
um canto épico que retrata, entre outras questões, a fundação de uma civilização, Roma.
O fundamento místico da ideologia que explicava o Estado antigo, visava à manutenção
do poder, servindo de justificativa para as segregações sociais. A busca da ascendência
divina pelas famílias dominantes, em sua genealogia, garantia a perenidade da
autoridade, por ser esta uma concessão divina. Enéias é filho da deusa Vênus, sua
ascendência divina lhe confere uma natureza ontológica que somada à sua
personalidade piedosa, forma o cenário adequado para a sua heroificação. O caráter
religioso e, sobretudo, político, da Eneida, busca sedimentar o presente, a Idade de Ouro
do Império de Augusto, através da recuperação do passado mítico-heróico, de modo a
perpetuar a Pax Romana para as gerações futuras. A exemplo de Homero, que, segundo
24
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica: cultura romana. II volume.
3.ed. Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 2002, p. 339-340.
27
Aristóteles, imitava homens superiores, possuidores de uma natureza ontológica,
própria dos heróis, Virgílio busca, na tradição, a figura de um herói, cujas ações
conduzem à glorificação, à sua ascensão.
Faremos, a seguir, uma apresentação dos conteúdos da Eneida, para melhor
direcionamento da análise do Livro VI. A base do poema é o mito da fundação de
Roma25
. Amúlio, décimo quinto rei de Alba Longa, é irmão de Numitor, e ambos são
filhos de Procas. Este, ao morrer, deixara como herança o reino e as riquezas. Numitor
escolhe o reino, enquanto Amúlio, as riquezas. Entretanto, agora senhor de muitas
posses, Amúlio não tarda a usurpar o poder do irmão. Expulsa-o do reino, mata o
sobrinho e consagra a sobrinha, Rhéia Sílvia, sob o pretexto de honrá-la, ao serviço de
Vesta, cujas sacerdotisas são obrigadas a se manter castas. No caso da violação desse
dever, a condenação à morte é inevitável. Desse modo, Amúlio acredita haver eliminado
qualquer possibilidade de vingança por parte dos descendentes de Numitor. Ocorre, no
entanto, que o deus Marte se encanta por Rhéia e a ama. Desse enlace nascem os
gêmeos Rômulo e Remo, que são expostos ao rio Tibre por ordem do tio-avô, mas não
morrem (v. genealogia baixo). O rio transborda do leito e as crianças são depostas no
sopé do Gérmalo, cume noroeste do Palatino. Os dois meninos são recolhidos por um
pastor, Fáustulo, que os entrega à mulher, Acca Larentia, para que cuide deles. Ao
crescer, exercem o mesmo ofício do pai adotivo, ao mesmo tempo em que praticam atos
próprios de salteadores. Um dia, os irmãos atacam as terras de Numitor, na Arcádia, a
fim de espoliar seus bens. Remo é aprisionado e levado à presença do avô, sem saber de
quem se trata. Numitor fica intrigado com a altivez do rapaz, pois o seu porte não
denota uma origem de família pobre, de pastores. Ao saber da existência de Rômulo, e
levando também em consideração a idade de Remo, Numitor conclui que são seus
netos. Fáustulo, que conhecia a origem dos irmãos (pois, quando os encontrara, havia
rumores sobre a história do abandono dos gêmeos pelo tio-avô, Amúlio, havendo uma
suposta coincidência entre o momento em que acolhera os meninos e a história do
abandono dos netos do rei), deduz que se trata das mesmas crianças. Fáustulo, depois de
informado sobre a prisão de Remo por Numitor, relata a Rômulo tudo que sabe. Ele
reúne o grupo de pastores que também participavam das pilhagens, e segue rumo ao
palácio de Amúlio. Remo, por sua vez, parte da casa de Numitor com outro grupo.
25 LIVY. History of Rome. Books 1-2. London: Harvard University Press, 2002, p. 02-25. (The Loeb
Classical Library)
28
Ambos, então, matam Amúlio, e restituem o poder a Numitor, seu avô. Depois que sobe
ao trono, ele cede terras aos netos, a fim de que constituam um novo reino. A decisão de
quem o governará é determinada por um augúrio. Rômulo escolhe o Palatino para a
revelação dos deuses, enquanto Remo, o Aventino, recebendo como augúrio o vôo de
seis pássaros, enquanto Rômulo, o de doze, o que lhe garante o direito de fundar a
cidade. Com um arado, ele cava um fosso ao redor do Palatino, representando uma
muralha, uma proteção. Remo, com o intuito de zombar do irmão, atravessa o fosso e é
morto por Rômulo.
Procas
Amúlio Numitor
Marte ~ Rhéia Sílvia
Rômulo Remo
Das informações acima, de ordem meramente parafrástica, é imprescindível extrair
dois aspectos para a compreensão do contexto necessário à fundação de uma cidade, na
concepção dos povos arcaicos, sobretudo o indo-europeu, de quem provém o ramo
latino: a delimitação do espaço sagrado e a realização do primeiro sacrifício.
Mircea Eliade26, a esse respeito, apresenta uma formulação teórica bastante
plausível para a problemática em questão:
26
ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno; tradução de Manuela Torres Lisboa: Edições 70, 2000, p.
24.
29
Correspondem a um modelo mítico, mas de outra natureza: todas estas regiões
selvagens, incultas, etc., estão consubstanciadas no caos; participam ainda da
modalidade indiferenciada, informe, anterior à Criação. É por isso que quando
se começa a explorar, se realizam ritos que repetem simbolicamente o acto da
Criação; a zona inculta é primeiro “cosmificada” e em seguida habitada.
Há um ambiente inóspito, simbolicamente correspondente ao caos primordial, que
precede a edificação das cidades. A fixação em um determinado território exige a sua
cosmificação, a sua transformação de caos em cosmos. Para que tenha um significado, é
preciso atribuir-lhe uma forma, torná-lo real, tendo como arquétipo a Criação do
Mundo. A cosmogonia, portanto, revela uma ontologia original, alcançada através de
um sacrifício primordial, imprescindível à fundação da cidade. Esse sacrifício
primordial, realizado pelo fundador, serve para transformar o espaço delimitado em uma
extensão natural do sagrado, única realidade existente.
O mito da fundação de Roma enquadra-se perfeitamente nesse contexto. Rômulo,
sendo piedoso, portanto, imbuído da religiosidade própria daqueles a quem cabe a
fundação de uma nova cidade, traça um fosso ao redor do sítio em que será edificada a
nova cidade. Essa atitude estabelece o caráter religioso do novo reino, que deverá ser
protegido pelas muralhas, símbolo delimitador do espaço sagrado, portanto, realidade
absoluta no caos do espaço exterior. Esse aspecto de Rômulo reitera a inexorabilidade
do cumprimento do seu destino, pois o caracteriza como sacerdote, função fundamental
ao edificador de uma nova cidade. Remo, ao contrário do irmão, mostra-se impiedoso,
pois além de não haver delimitado o espaço sagrado para a construção da nova cidade,
comete uma falta ainda maior. Com o intuito de zombar de Rômulo, Remo ultrapassa o
fosso, violando um espaço sagrado. Rômulo, irado e horrorizado pela falta cometida,
mata-o e passa a exercer o poder absoluto sobre a nova cidade, Roma.
A respeito do sacrifício primordial, Mircea Eliade.27
faz uma abordagem ainda mais
específica sobre o assunto:
As in so many other traditions, the founding of a city in fact represents a
repetition of the cosmogony. The sacrifice of Remus reflects the primordial
cosmogonic sacrifice… Immolated on the site of Rome, Remus insures the
27
ELIADE, Mircea. The sacred and the profane: The nature of religion. Translated by William R. Trask
Orlando: Harcourt, 1987, p. 108-109.
30
fortunate future of the city, that is, the birth of the roman people and accession
of Romulus to the kingship.
Como em tantas outras tradições, a fundação de uma cidade representa, de fato,
a repetição da cosmogonia. O sacrifício de Remo reflete o sacrifício
cosmogônico primordial...Imolado no sítio de Roma, Remo assegura o futuro
ditoso da cidade, ou seja, o nascimento do povo romano e a ascensão de
Rômulo à realeza.
A morte de Remo, além de simbolizar o sacrifício primordial necessário à
cosmogonização do espaço destinado à cidade, representa a instituição do culto sagrado
ao ancestral. Consangüíneo do rei, cujo assassínio representa, na realidade, o ápice da
sua Pietas (pois, matando até mesmo o irmão para a defesa da sacralidade do território,
põe em primeiro plano a devoção religiosa), Remo é o antepassado da cidade, o qual
deve ser cultuado como sua divindade protetora. A sua morte é aquiescida pelos deuses,
pois o sagrado e o humano são de naturezas ontológicas, e ao tocar o sacer (designa
aquilo ou aquele que não pode ser tocado sem ser conspurcado, ou sem conspurcar28
),
Remo se torna um ser abominável, não pertencendo a nenhuma das duas naturezas e,
portanto, passível de ser morto.
Referente a esse momento do enredo, é necessário lembrar as palavras proferidas
por Rômulo na ocasião em que mata o irmão. Trata-se da seguinte sentença: “Sic
deinde, quicumque alius transiliet moenia mea”29
, “Assim „pereça‟ de agora em diante,
outro qualquer que transponha minhas muralhas”. Com essas palavras, Rômulo,
primeiro rei de Roma, consagra a defesa da cidade nascente, conjurando o mau
presságio da vulnerabilidade e firmando a sua inexpugnabilidade.
Dentro da ordem cósmica, existe uma força maior que submete tanto os homens
quanto os deuses, o Destino, cujo cumprimento é inexorável.
Na Eneida, o trajeto da narrativa direciona os acontecimentos para esse fim
inexorável, desde o passado mais remoto de Roma, nascido de um empreendimento
mítico, até o futuro mais brilhante do Império, como se toda essa saga, da genealogia
fundadora à sucessão dos imperadores, fosse um desdobramento natural de todo um
destino preestabelecido.
28
ERNOUT. op. cit., p. 586. 29
LIVY. op. cit., p. 24.
31
Émile Benveniste, ao fazer um estudo sobre o vocabulário das instituições indo-
européias, torna mais clara a compreensão do contexto acima. A análise de
determinados termos feita por ele, a partir da etimologia, reiteram os significados dos
elementos necessários para a edificação de uma cidade. Segundo Benveniste:
Il faut partir de cette notion toute matérielle à l‟origine, mais prompte à se
développer au sens moral, pour bien entendre la formation de rex et du verbe
regere. Cette notion double est présente dans l‟expression importante regere
fines, acte religieux, acte préliminaire de la construction; regere fines siginifie
littéralement “tracer en lignes droites les frontières”. C‟est l‟opération à laquelle
procède le grand prêtre pour la construction d‟un temple ou d‟une ville et qui
consiste à déterminer sur le terrain l‟espace consacré. Opération dont le
caractère magique est visible: il s‟agit de délimiter l‟intérieur et l‟extérieur, le
royaume du sacré et le royaume du profane, le territoire national et le territoire
étranger. Ce tracé est effectué par le personnage investi des plus hauts
pouvoirs, le rex.30
É preciso partir desta noção inteiramente material na origem, mas pronta a se
desenvolver no sentido moral, para bem entender a formação de rex e do verbo
regere. Esta noção dupla está presente na importante expressão regere fines, ato
religioso, ato preliminar da construção; regere fines significa literalmente
“traçar em linhas retas as fronteiras”. É esta operação à qual procede o grande
sacerdote para a construção de um templo ou de uma cidade e que consiste em
determinar sobre o terreno o espaço consagrado. Operação cujo caráter mágico
é visível: trata-se de delimitar o interior e o exterior, o reino do sagrado e o
reino do profano, o território nacional e o território estrangeiro. Este traçado é
efetuado pelo personagem investido dos mais altos poderes, o rex.
O vocábulo latino rex, antes de designar a idéia de soberano, de rei, tem, em sua
etimologia, um significado mais concreto. Visto ter a mesma raiz do verbo regere, reg-,
que, em uma primeira acepção, significa, “traçar em linha reta”, rex, é aquele
responsável por traçar as fronteiras, regere fines. O ato religioso de traçar as fronteiras,
de modo a estabelecer o espaço sagrado, realidade absoluta, para a edificação e
permanência de uma nova cidade, cabe, portanto, ao rei. Esse atributo elevado, utilizado
ao longo da história como pretexto de superioridade divina das classes dominantes, se
expressa, no contexto da Eneida, de uma forma muito peculiar.
30 BENVENISTE, Émile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes (2. Pouvoir, droit, religion).
Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p. 50. (Tradução Milton Marques Júnior)
32
Rômulo, primeiro rei de Roma, é, em princípio, o sacerdote, encarregado de traçar a
linha divisória entre o espaço exterior e o terreno interno, entre o território estrangeiro,
portanto, profano, e o território nacional, sagrado. Como mito fundador, ele também é o
instituidor do culto aos deuses protetores da cidade, mantenedores do espaço que fora
consagrado pelo rei-sacerdote, no momento da fundação. Rômulo é descendente de
Enéias, cuja mãe é a deusa Vênus, portanto, tem origem divina.
Na narrativa, Enéias é designado como rei já no Livro I31
, sendo reiterada essa
denominação no decorrer da fabulação. Juno, indignada por causa da fuga dos troianos,
queixa-se de ser impedida pelos destinos de destruí-los, mesmo sendo a rainha dos
deuses, esposa de Júpiter. Refere-se, então, a Enéias, como rei dos teucros, assim
denominados por descenderem de Teucro:
“mene incepto desistere victam
nec posse Italia Teucrorum avertere regem!
quippe vetor fatis.”
Tendo eu iniciado, desistir, vencida?
Nem poder afastar o rei dos teucros da Itália?
Certamente sou impedida pelos destinos!
A referência a Enéias como rei, no decurso da história, caracteriza-o, também,
como aquele responsável por traçar a linha das fronteiras, o que reitera sua atribuição de
fundador das bases da futura Roma, permeada no decorrer da narrativa através dos
oráculos de Apolo, e homologada na sua descida aos Infernos no momento em que
encontra Anquises.
31
VERGILIUS. op.cit., Liber I, v. 37-39.
33
1.3.Estrutura da Eneida
O termo epopéia, proveniente do grego , cuja raiz é formada pela palavra
(= palavra, aquilo que é dito, cujo verbo correspondente é : dizer, chamar,
nomear), e pelo verbo (= fazer, produzir, criar intelectualmente), que possui a
mesma raiz de (= poesia/criação) e de (= poeta/criador), significa,
etimologicamente, “criar pela palavra”. A partir dessa definição, infere-se a finalidade
da epopéia em sua origem: cantar, transmitir oralmente aquilo que fora criado pelo
poeta. Tal é a estrutura dos poemas homéricos, o que é comprovado pela linguagem e
pela sintaxe simples que compõem esses poemas. A Eneida, apesar de também ser um
poema para ser cantado, foi produzida em forma escrita. Sua estrutura é complexa,
repleta de latinismos, e construída com um latim dito clássico, portanto, sintético.
Aristóteles delineia a estrutura da epopéia, sendo ela constituída por episódios
longos, conexos a uma ação principal. Tal ação diz respeito ao argumento do poema,
sustentado pela narração de episódios, alguns deles estando fora da narrativa, mas que
por algum motivo vinculam-se a ela. A Ilíada, de Homero, tem como ação principal a
ira funesta de Aquiles, o maior dos heróis gregos, desencadeada pela querela com o
senhor de todos, Agamêmnon, no início do décimo ano do cerco a Tróia, cuja
conseqüência é a retirada do Pelida da guerra. Como diz o autor da Poética, este é o
argumento do poema, o resto são episódios. Por exemplo, o Canto II, que trata do
Catálogo das Naus, há um episódio que está fora da narrativa, como acontece também
nos outros Cantos em relação a outros episódios. Diz respeito ao augúrio interpretado
por Calcas no momento em que a armada grega se encontra em Áulis. Os heróis estão
sacrificando ao deus, quando subitamente sai do mar uma serpente. A serpente avança
em direção a uma árvore em que está um ninho de pássaros com oito filhotes, e os
devora, juntamente com a mãe, depois ela é transformada em pedra. O adivinho então
revela que os nove pássaros representam os nove anos durante os quais os gregos
32
ARISTÓTELES. op. cit.
34
permanecerão lutando em Tróia, e que no décimo, representado pela serpente
petrificada, a cidadela será destruída33
.
Além dos elementos apontados por Aristóteles, há ainda a proposição, apresentação,
pela voz poética, do assunto a ser tratado no decurso do poema; e a invocação, pedido
dirigido aos deuses ou às musas, para que auxiliem na criação da poesia, o que pode
ocorrer mais de uma vez dentro do poema. Homero é o modelo para essa estrutura.
Virgílio, além das partes acima citadas, acrescenta mais um elemento, a nosso ver, a
dedicatória:
nascetur pulchra Troianus origine Caesar,
imperium Oceano, famam qui terminet astris,
Iulius, a magno demissum nomen Iulo.
hunc tu olim caelo, spoliis Orientis onustum
accipies secura; vocabitur hic quoque votis.34
De bela origem, nascerá o troiano César,
que estenderá a fama aos astros, e o império ao Oceano,
Júlio, nome descendente do grande Iulo.
Tu, confiante, um dia o receberás no céu, carregado com
espólios do Oriente; também ele será invocado com votos.
O trecho citado diz respeito à fala de Júpiter em resposta a Vênus, no momento em
que a deusa, chorosa, o interpela sobre o destino dos troianos. Para esses, fora
prometida a descendência romana, cujo império reinaria soberano. Entretanto,
perseguidos por Juno, sofrem infortúnios incessantes, sem conseguirem alcançar a terra
almejada. Júpiter, então, a tranqüiliza, discorrendo sobre as conquistas romanas que
elevarão o império à glorificação. Os versos acima correspondem à dedicatória feita a
Augusto. Refere-se, sobretudo, à sua divinização. Adotado por César como Júlio César
Otaviano, descende da Gens Iulia, cujo antepassado é Iulo, filho de Enéias. Aclamado
deus, é comparado ao próprio Júpiter. Instituidor da Pax Romana, é responsável pela
33
HOMERO. Ilíada, II, 299-332. 34
VERGILIUS. op. cit., I, v. 286-290.
35
expansão do Império romano, cujos domínios abrangem todo o Mediterrâneo e parte do
Atlântico Norte.
A dedicatória ocorre pelo dever de o poeta exaltar o promovedor financeiro da
empreitada, demonstrando, assim, o seu agradecimento. Além dela, há a invocação, já
abordada acima, e a proposição. Essa remete à ação principal da narrativa, ao argumento
do poema, ao qual estão ligados os episódios referentes a cada Livro.
Composta por 9.896 versos, divididos em doze Livros, a voz poética da Eneida
propõe cantar o mito de Enéias, fundador mítico das bases da futura Roma:
Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam fato profugus Lavinaque venit
litora – multum ille et terris iactatus et alto
vi superum saevae memorem Iunonis ob iram,
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque deos Latio; genus unde Latinum
Albanique patres atque altae moenia Romae.35
Canto as armas e o herói, que, primeiro, dos litorais de Tróia,
viria, impelido pelo destino, para a Itália e para os litorais Lavínios.
Muito, lançado ele foi, por terras e mar, pala força dos deuses,
por causa da lembrada ira da furiosa Juno,
e também, muitas coisas tendo sofrido na guerra, até que edificasse
a cidade e levasse os deuses para o Lácio, de onde provém a raça latina,
e os pais albanos, e as muralhas da altiva Roma.
O trecho acima diz respeito à proposição do poema, em que se encontra o
argumento. Trata-se da errância de Enéias e de seus companheiros desde a saída de
Tróia até a chegada ao Lácio, havendo, nesse ínterim, inúmeras vicissitudes, por causa
da ira de Juno. O estabelecimento do herói no Lácio só ocorre depois de muitas guerras.
Tal estabelecimento suscitará o surgimento de Alba Longa e, por conseguinte, de Roma.
Esses acontecimentos são mostrados através de falas proféticas, sobretudo na catábase
35
Idem, ibidem, I, v. 1-7.
36
de Enéias, no momento em que ele se encontra com a alma de Anquises. O pai lhe
desvenda o porvir através de um falar vaticinador. Aponta-lhe aqueles que hão de beber
do Letes, rio do esquecimento, a fim de retornar à vida, como ilustres personagens da
expansão romana.
O primeiro verso do poema, já revela esse caráter proléptico do enredo: Arma
virumque cano, “canto as armas e o herói”. Com essa sentença a voz poética abre o
Livro I, determinando, desde o princípio, o trajeto da narrativa. Arma, coletivo plural
neutro, diz respeito, especificamente, a “armas defensivas” que se ajustam ao corpo,
próprias para a luta face a face entre dois guerreiros. Corresponde à palavra grega
, da mesma raiz de (= hoplita), soldado da infantaria pesada, armado
com elmo, couraça, escudo, espada e lança. Metonimicamente, arma designa também a
guerra, o combate.36
Coadunando as duas definições acima, a etimológica e a
metonímica, infere-se o posicionamento de Enéias dentro do poema. Ele é o varão (vir =
homem, varão, em oposição à mulher) que, por sua virtude (virtus = a força pura e
simples; coragem), enfrentará uma luta pessoal e outra coletiva. A primeira consiste no
processo de lapidação pelo qual o herói passará durante a sua errância, a fim de se
tornar o pater potestas (homem varão, senhor de poder absoluto sobre os descendentes)
da pátria, o patriarca da nação. A segunda luta remete à guerra contra os latinos, após a
sua chegada ao Lácio. A descida aos Infernos representa, ao mesmo tempo, o ponto de
chegada e o ponto de partida do herói. Simbolizando um rito de passagem, a catábase,
seguida pela anábase, arremata as provações que o preparam para o enfrentamento dos
combates vindouros, necessários à fixação do novo reino.
A posição diferencial de Virgílio em relação à tradição está clara. No que diz
respeito ao Livro VI da Eneida, a singularidade com que retoma o tema da descida aos
Infernos, presente em mitos anteriores à época da narrativa sobre a errância de Enéias,
representa a maior catábase do mundo greco-romano. Os mitos de Orfeu, de Teseu e
Pirítoo, de Héracles, e de Odisseu, já tratam desse tema. Entretanto, Virgílio o faz com
maior profundidade atingindo uma complexidade que só será retomada, na literatura
ocidental treze séculos depois, na obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia, não
sendo à toa, portanto, que Virgílio será o condutor do Dante personagem pelo Inferno.
Essa diferença, um dos marcos inovadores da Eneida, será apreciada no capítulo da
36
ERNOUT, op.cit., p. 46, 738.
37
análise, para a qual torna-se imperativa a averiguação dos elementos retirados da
tradição para a constituição da catábase de Enéias, o que propiciará o reconhecimento
do caráter singular da construção do poeta.
É interessante notar também, a criatividade do poeta na utilização do mito para o
direcionamento do tema em questão. A catábase é a maior das profecias dentro do
poema, não apenas o falar de Anquises é enigmático, como o próprio cenário em que
ocorre a entrevista entre pai e filho é em outra dimensão, os Infernos. A escolha de
Apolo, deus oracular, para guiar Enéias em sua jornada coaduna-se com o propósito da
voz poética de revelar o futuro de Roma. O caráter místico enfatiza o sentido divino da
glorificação do império, sedimentando, portanto, a predestinação de Enéias e da nação
romana.
Quanto ao conteúdo dos Livros constitutivos da Eneida, segue uma explanação
sucinta dos episódios presentes em cada um, com o intuito de se obter uma visão mais
precisa do Livro VI, eleito para análise, a partir da contextualização:
Livro I
Os troianos, à deriva no mar, são perseguidos por Juno pelos seguintes motivos: o
julgamento no Monte Ida, o rapto de Ganimedes por Júpiter e as futuras guerras púnicas
entre Cartago e Roma. Após uma tempestade enviada pela deusa, eles abordam Cartago,
o reino da rainha Dido. Júpiter em resposta a Vênus, discorre sobre a descendência
troiana, remetendo à futura glória romana. Enéias e os troianos são acolhidos por Dido
após sete anos de errância desde a saída de Tróia.
Livro II
Enéias, na corte de Dido, narra sobre a destruição de Tróia: o episódio do cavalo de
madeira; a aparição da alma de Heitor a Enéias; a morte do rei Príamo; prodígio dos
deuses, o cabelo de Iulo incendeia; Enéias, levando o pai Anquises nas costas e o filho
Iulo pela mão, é impelido a sair de Tróia; Creúsa, sua esposa, morre; Enéias, Anquises,
Iulo e os remanescentes troianos partem sem rumo.
38
Livro III
Enéias continua a narração e discorre sobre sua errância por terra e mar depois da
destruição de Tróia, durante a qual ocorrem os oráculos de Apolo, a confirmação do
destino de Enéias como mito fundador, a morte de Anquises em Drépano, na Sicília, e a
chegada de Enéias e dos troianos em Cartago; fim da narração.
Livro IV
Dido fica impressionada com Enéias, e confessa à sua irmã que está encantada pelo
herói. Ana a incentiva a alimentar a paixão pelo herói. Juno faz proposta a Vênus a fim
de manter Enéias em Cartago. Cípria ludibria Juno, aquiescendo à proposta, mas
atentando apenas para a salvação do herói, e para a sua missão de fundar as bases da
futura Roma. Dido e Enéias tornam-se amantes, e ele permanece um ano em Cartago, já
esquecido do seu destino. Júpiter envia Hermes a fim de adverti-lo quanto à sua missão,
e Enéias parte, sem atender às súplicas da rainha. Ela lança imprecações ao troiano,
amaldiçoando e prenunciando as futuras guerras púnicas.
Livro V
Enéias e os troianos chegam à Sicília: honras prestadas a Anquises – rituais,
libações e jogos fúnebres; incêndio dos navios provocado pela deusa Íris a mando de
Juno. Júpiter extingue o fogo com uma tempestade. A alma de Anquises aparece a
Enéias e o aconselha a fundar uma cidade na Sicília. Anquises é divinizado. Enéias e os
troianos, após um ano de permanência na Sicília, seguem rumo à Itália.
Livro VI
Enéias chega a Cumas e se dirige ao bosque sagrado de Ártemis, onde se encontra o
antro da Sibila, sacerdotisa de Apolo, e a entrada para os Infernos. Lá, ele fala ao deus
Apolo, que desvenda o porvir. Enéias pede a Sibila que o leve ao encontro de Anquises
nos Infernos. Nesse encontro, a alma de Anquises mostra ao filho sua futura
descendência, os romanos, apontando para os ilustres nomes que estabelecerão a
soberania de Roma. Enéias e a Sibila saem dos Infernos pela porta de marfim.
39
Livro VII
Enéias e os troianos abordam a costa da Ausônia, chegam ao Lácio e reconhecem a
terra que lhes está destinada. Por outro lado, na corte do rei Latino, durante a realização
de oferendas e libações aos deuses do local, ocorre um prodígio que confirma o oráculo
do deus Fauno quanto à chegada do estrangeiro cuja descendência levaria glória aos
latinos, pois ele se casaria com a princesa Lavínia. Latino propõe aliança aos troianos,
entretanto, instigados por Juno, os povos do Lácio se armam contra os troianos. Turno,
rei dos rútulos e pretendente à mão da princesa, encabeça a marcha. Latino, incapaz de
impedir os acontecimentos, abandona o poder. Catalogação dos aliados de Turno.
Livro VIII
O Lácio está em guerra. Enéias, inquieto, deita-se na praia e adormece. O rio Tibre
lhe aparece, confirma-lhe o destino e lhe dá conselhos, entre eles, a aliança com
Evandro, grego que, fugido da Arcádia, estabelecera-se na Itália e fundara a cidade de
Palanteu. Segundo as advertências do rio, Enéias sacrifica uma porca branca e seus
filhotes que encontra pelo caminho à deusa Juno, a fim de aplacar sua ira. Enéias sobe o
Tibre e chega aos domínios de Evandro, no momento em que ele sacrificava aos deuses,
dentre eles, Hércules. Em entrevista, os dois reconhecem vínculo familiar e antigos
laços de amizade; celebram a aliança com sacrifícios. Evandro fala sobre as tradições da
sua gente e sobre os sacrifícios instituídos a Hércules. Celebração a Hércules: rito, mito
e canto. Evandro passeia com Enéias pelas paragens onde, no futuro, será Roma. Vênus
recorre a Vulcano e pede-lhe armas para Enéias. Despedida de Evandro e de seu filho
Palante. Enéias e os aliados marcham para a guerra. Vênus entrega as armas ao filho.
Descrição do escudo, no qual está representada a história de Roma desde Rômulo e
Remo até Augusto. Enéias admira as imagens grafadas no escudo de Vulcano, sem
saber que carrega nos ombros o futuro glorioso dos seus descendentes.
Livro IX
Juno envia Íris a Turno a fim de avisá-lo quanto à aliança de Enéias e Evandro,
insuflando-o a atacar, juntamente com os aliados, os troianos, que se resguardam atrás
das muralhas construídas ao redor dos navios. Turno incita incêndio aos navios dos
teucros, mas Júpiter os transforma em ninfas a pedido da mãe dos deuses, Berecíntia.
40
Messapo vigia as portas com sentinelas e cerca os muros gregos com fogueiras. Os
troianos observam tudo do alto da trincheira. Niso e Euríalo atacam os rútulos durante a
noite e provocam grande chacina, mas são flagrados pelos volscos e mortos. Messapo
derruba as paliçadas, rútulos e teucros se enfrentam, ocorrendo muitas mortes. Turno
mata Pândaro. Muitos troianos perecem por suas mãos. Os troianos, inflamados por
Mnesteu, perseguem Turno, que escapa precipitando-se no rio Tibre.
Livro X
Júpiter convoca assembléia dos deuses no Olimpo. Vênus lembra a Júpiter as
vicissitudes sofridas pelos troianos provocadas por Juno, que tomada de furor, defende-
se das acusações, lembrando a causa da guerra de Tróia: o rapto de Helena por Páris.
Júpiter entrega os latinos e os troianos à própria sorte mediante um juramento pelo
Estige. Os rútulos massacram os troianos. Enéias já se encontra a caminho do
acampamento troiano e tem Tarcão, rei etrusco, por aliado. Há uma invocação à deusa a
fim de catalogar as tropas etruscas que se uniram ao herói. As Ninfas do Ida advertem
Enéias sobre o cerco de Turno aos muros troianos. Ao vir Enéias e os aliados chegarem,
Turno insufla os italiotas a lutar contra eles. Enéias desembarca seus aliados; trava-se
grande luta, havendo muitas mortes. Palante, filho de Evandro, rei árcade e aliado de
Enéias, é morto por Turno, que espolia o corpo das armas. Enéias, com ingente ardor
guerreiro, inflama-se para a luta e mata muitos inimigos. Juno livra Turno da morte
iminente. Mezêncio ataca os troianos, mas é morto por Enéias.
Livro XI
Enéias providencia os funerais dos companheiros e depõe a armadura de Mezêncio
em um carvalho. O herói e seus aliados choram a morte de Palante, filho do rei árcade,
Evandro. Enéias concede aos inimigos que dêem sepultura aos seus mortos, e é exaltado
pelo velho Drances, por ser justo e piedoso. Troianos e Latinos dão uma trégua de doze
dias a fim de enterrarem seus mortos. Dor de Evandro pela morte de Palante e exaltação
à sua “bela morte”. Ocorrem os funerais dos mortos. Drances incita o povo contra
Turno. Diomedes recusa-se a se aliar aos latinos contra os troianos, lembrando os
castigos sofridos pelos gregos por haver destruído Tróia. Em assembléia, o rei Latino
propõe dar condições de paz aos Teucros, o que é aquiescido por Drances. Esse concita
41
Turno a enfrentar Enéias sozinho, fazendo-o explodir em cólera. Enquanto os latinos
estão em assembléia, um mensageiro entra no palácio advertindo-os de que os Teucros
cobrem toda a planície, formando uma frente de batalha. Turno se precipita para lutar. A
rouca trombeta dá o sinal cruento para a guerra. Camila, rainha dos volscos e aliada de
Turno, corre ao encontro do herói. Turno arma emboscada para Enéias. Latinos e
Troianos se enfrentam. Camila massacra os Teucros. O Tirreno Tarcão, aliado de
Enéias, incita os companheiros para a guerra, reagindo ao ataque de Camila, que é
morta por Arrunte. Os troianos, os tirrenos e os árcades precipitam-se cerrados para a
guerra. Receosos, os latinos fogem. Os troianos massacram os latinos diante da cidade.
Turno é avisado sobre a morte de Camila, abandona o local da emboscada que armara
para Enéias e segue rumo à cidade. Lá chegando, vê o herói, que se aproxima com seu
batalhão e acampa em frente da cidade.
Livro XII
Turno se abrasa para a luta, e Latino tenta dissuadi-lo de lutar, mas o herói se
inflama com as palavras do rei e envia mensageiro a Enéias propondo luta singular
disputando a mão de Lavínia. Amanhece e todos se preparam para assistir a luta. Os
dois reis, Enéias e Latino, fazem sacrifícios aos deuses para selar o pacto da luta. Em
forma de Camerto, Juturna incita os latinos a quebrar o pacto. Enéias tenta apaziguar os
ânimos, mas é ferido. Turno mata muitos heróis. Iápige tenta curar Enéias, mas não tem
êxito. Vênus o auxilia, depositando um remédio na água que serve para banhar a ferida.
O herói se recupera prontamente e volta para a luta. Os rútulos fogem. Juturna auxilia
Turno a fugir do troiano. Enéias, inspirado por Vênus, segue rumo à cidade a fim de
assaltá-la. Amata, ao vir o alvoroço na cidade, suicida-se, pois pensa que Turno morreu.
Esse, informado sobre a morte da rainha e sobre os acontecimentos, segue rumo à
cidade. Enéias e Turno se enfrentam. A espada do rútulo se quebra e ele foge do troiano,
que o persegue. Júpiter persuade Juno a desistir da sua perseguição aos troianos. A
deusa aquiesce, mas com a promessa do deus de que os latinos não terão o nome dos
teucros, nem mudarão sua língua nem seus costumes. Tróia sucumbiu, portanto, que seu
nome desapareça com a cidade, e que permaneça a raça romana, poderosa pelo valor
italiota. Júpiter envia uma das Fúrias a Turno a fim de aturdi-lo, enfraquecendo-lhe as
forças, e Juturna se afasta do irmão. Turno lança um rochedo contra Enéias mas não
42
consegue atingi-lo. Enéias o fere na coxa com a lança, e em seguida o mata, enfiando a
espada no seu peito.
Para o cumprimento de sua missão, Enéias é guiado por Apolo. Apolo é, entre
outros atributos, o deus oracular, que revela em seus oráculos as decisões infalíveis de
Júpiter aos homens.37
Seu epíteto Lóxias ( ), oblíquo, diz respeito exatamente ao
caráter ambíguo das suas profecias. Estas são transmitidas por intermédio das suas
sacerdotisas, entre as quais, a mais importante é a Sibila de Cumas, Deífobe, guia de
Enéias na descida ao reino de Plutão. A ambigüidade e a obscuridade das profecias
caracterizam a impossibilidade de o homem transpor o limite estabelecido pelos deuses
diante de uma ordem cósmica, em que não lhe é dado ultrapassar a sua condição
humana, perecível e mortal em relação à onipotência, eterna juventude e imortalidade
das divindades. Entretanto, dentro desta ordem cósmica existe uma força maior que
submete tanto os homens quanto os deuses, o Destino, cujo cumprimento é inexorável.
Cabe a Júpiter, deus ordenador do universo, impor esse cumprimento.
Os oráculos de Apolo estão presentes na narrativa, servindo de fio condutor às
ações de Enéias, haja vista o destino deste como empreendedor da soberania da futura
Roma. No que concerne à história de Roma38
, o interesse pelas sibilas ao longo do
Mediterrâneo, remonta a Tarquinius Priscus, quinto rei de Roma, século VI a.C.,
segundo a tradição. Ele, ao construir o templo de Júpiter no Capitólio, trouxe três livros
da Sibila de Cumas, e os colocou sob os cuidados de um colegiado de quinze
sacerdotes, os “quindecimviri”. Em um incêndio ocorrido em 83 a.C., os livros sibilinos
foram queimados, mas o senado providenciou uma expedição a fim de recolher outros
existentes em vários lugares, e desse modo formar uma nova coleção. Depois Augusto
remove esses livros para o templo do monte Palatino, construído durante o seu governo
para o deus Apolo. Sempre, em época de crise, os livros eram consultados por ordem do
senado. Na Eneida, o poeta retoma esse acontecimento histórico, representando-o na
fala de Enéias no momento em que este consulta o oráculo de Apolo sobre o destino dos
troianos, através da Sibila de Cumas:
37
Ver Primeiro Hino a Apolo, versos 131-32 (HOMÈRE, 1936). 38
HORNBLOWER,Simon e SPAWFORTH, Antony (orgs.): The Oxford classical dictionary. New York:
Oxford University Press, 2003, p. 1400-1.
43
«Phoebe, gravis Troiae semper miserate labores,
Dardana qui Paridis derexti tela manusque
corpus in Aeacidae, magnas obeuntia terras
tot maria intravi duce te penitusque repostas
Massylum gentis praetentaque Syrtibus arva:
iam tandem Italiae fugientis prendimus oras.
hac Troiana tenus fuerit fortuna secuta;
vos quoque Pergameae iam fas est parcere genti,
dique deaeque omnes, quibus obstitit Ilium et ingens
gloria Dardaniae. tuque, o sanctissima vates,
praescia venturi, da (non indebita posco
regna meis fatis) Latio considere Teucros
errantisque deos agitataque numina Troiae.
tum Phoebo et Triviae solido de marmore templum
instituam festosque dies de nomine Phoebi.
te quoque magna manent regnis penetralia nostris:
hic ego namque tuas sortis arcanaque fata
dicta meae genti ponam, lectosque sacrabo,
alma, viros. foliis tantum ne carmina manda,
ne turbata volent rapidis ludibria ventis;
ipsa canas oro.»39
“Febo, sempre compadecido dos graves trabalhos de Tróia,
que, de Páris, dirigiste a mão e a flecha dardânia ao
corpo do Eácida, por ti guiado, penetrei em tantos mares
que rodeiam grandes terras, e até o fundo das terras afastadas
da gente do Massilo; e nos campos circundados pelas Sirtes:
agora, finalmente, chegamos às margens da fugitiva Itália.
39
VERGILIUS. op.cit., Liber VI, v. 54-76.
44
Até aqui, fora seguido pela fortuna Troiana.
É justo, agora, vós também, todos os deuses e deusas,
aos quais resistiu Ílio e a ingente glória da Dardânia,
pouparem a gente de Pérgamo, E tu, oh! santíssima profetisa,
presciente do futuro, concede (não peço um reino indevido
aos meus destinos) aos teucros estabelecerem-se no Lácio,
aos deuses errantes e aos numes agitados de Tróia.
Então, instituirei a Febo e à Trívia um templo de sólido mármore
e dias festivos com o nome de Febo.
Em nosso reino, um grande santuário espera-te, também.
Lá, certamente, eu colocarei teus oráculos e fados secretos
ditos à minha gente, e te consagrarei, ó graciosa,
varões escolhidos. Tão somente, não confies as predições às folhas,
para que não voem revoltas, ludíbrio dos ventos rápidos.
Peço que cantes tu mesma.”
Como se pode depreender, a figura de Apolo é essencial para consolidar a grandeza
do império romano, sobretudo no governo de Augusto. O fato de ser um deus grego, e
de ter sido transportado para Roma, fundamenta a função de Apolo como guia de
Enéias na sua empreitada rumo à edificação da soberania do novo reino. Desse modo, é
de fundamental importância pontuar os episódios no decorrer da narrativa referentes ao
deus, que servem de fio condutor para as atitudes e decisões do herói, haja vista ser
através dos seus oráculos que Enéias sabe do próprio destino.40
Estando em Cartago, o herói narra as suas vicissitudes desde a destruição de Tróia
até a sua chegada ao norte da África. Na noite do incêndio da cidade, Enéias, que no
momento estava dormindo em seu palácio, vê em sonho a alma de Heitor. Esse lhe
recomenda-lhe os Penates, deuses protetores da cidade, a fim de que ele os salve do
inimigo grego e leve-os consigo para a edificação de uma nova cidade. Nesse episódio,
é revelada pela primeira vez a missão de Enéias:
40
VERGILIUS. op. cit., Liberes II, III, VI, VII.
45
“Heu fuge, nate dea, teque his” ait “eripe flammis.
Hostis habet muros ; ruit alto a culmine Troia.
Sat patriae Priamoque datum : si Pergama dextra
defendi possent, etiam hac defensa fuissent.
Sacra suosque tibi commendat Troia penatis;
hos cape fatorum comites, his moenia quaere
magna, pererrato statues quae denique ponto.”41
“Ah, foge, filho da deusa”, diz, “ e te livra destas chamas.
O inimigo possui os muros; Tróia rui do alto cume.
Assaz à pátria e a Príamo se tem dado: se Pérgamo, com a destra,
pudesse defender, ainda agora, com ela, teria sido defendida.
Tróia recomenda a ti seus Penates e os objetos sagrados.
Aceita-os, companheiros dos teus fados; procura para eles
grandes muralhas, as quais, depois de atravessado o mar, erijas.”
O ablativo pererrato, no último verso, proveniente do verbo pererrare (= errar
através, percorrer em todas as direções), já indica o destino errático de Enéias, que
deverá conduzir consigo os deuses Penates, pois não cabe mais a eles proteger a cidade.
O destino do herói será reiterado pelos oráculos de Apolo no decurso da narração da sua
errância por terra e mar.42
Episódio reiterativo da intervenção de Apolo nos destinos de Roma, é o prodígio
ocorrido com Iulo, filho de Enéias. A cidade está incendiando, e Anquises reluta em não
abandoná-la, desejando perecer com ela. Enéias então decide ficar e lutar contra os
gregos. É quando a cabeleira do menino é ateada por fogo abrasante, sem que a queime
por se tratar de uma chama sagrada, sanctos ignis:
41
VERGILIUS. op. cit., Liber II, v. 289-295. 42
VERGILIUS. op. cit., Liber III
46
Talia uociferans gemitu tectum omne replebat,
cum subitum dictuque oritur mirabile monstrum.
Namque manus inter maestorumque ora parentum
ecce levis summo de uertice uisus Iuli
fundere lumen apex, tactuque innoxia mollis
lambere flamma comas et circum tempora pasci.
Nos pauidi trepidare metu crinemque flagrantem
excutere et sanctos restinguere fontibus ignis.43
Com tais palavras clamando, ela enchia todo o palácio com gemido,
quando um súbito prodígio se manifesta, admirável de se dizer.
Pois que entre as carícias e os beijos dos infelizes pais,
eis que da cabeça de Iulo, é vista suave flama
inócua ao contato, lamber as comas e derramar luz,
e alimentar-se ao redor das têmporas.
Nós, cheios de temor, começamos a tremer de medo,
e sacudir a cabeleira flagrante,
e extinguir numa fonte os fogos sagrados.
O vocábulo metus (= pavor, medo religioso) denota o temor religioso dos que estão
presentes à cena do prodígio em que Iulo é personagem principal. Anquises, diante de
tal manifestação divina, suplica a Júpiter a confirmação do presságio, se, por sua
piedade, o merecer, de modo que possa seguir com o filho. O deus atende ao ancião,
enviando uma estrela cadente abundante de luz.
Esse episódio liga-se a outro acontecimento na narrativa, que repousa no mesmo
sentimento religioso designado pela palavra metus. Trata-se do momento em que Enéias
chega ao Lácio, e o rei Latino está sacrificando aos deuses do local, ao redor de um
loureiro, árvore consagrada a Apolo:
43
Idem, ibdem, v. 679-686.
47
Laurus erat tecti medio in penetralibus altis
sacra comam multosque metu seruata per annos,
quam pater inuentam, primas cum conderet arces,
ipse ferebatur Phoebo sacrasse Latinus
Laurentisque ab ea nomen posuisse colonis.44
Havia um loureiro, sagrado quanto à folhagem, preservado
por muitos anos com temor religioso nos recônditos recintos,
no meio do palácio, o qual o próprio pai Latino encontrando,
dizia-se ele mesmo ter consagrado a Febo e, como fundasse as primeiras
fortificações, a partir dele, ter posto o nome aos colonos Laurentes.
Nessa passagem há a explicação da origem do povo latino, os laurentes. Laurus (=
loureiro), árvore consagrada a Apolo, fora encontrada pelo rei Latino, quando ele
construía as primeiras bases da cidade, o Lácio. A partir do nome dessa árvore, passou
então a designar os habitantes da região. Essa referência justifica, dentro da narrativa, o
porquê de Apolo ser o deus destinado a guiar Enéias. O Lácio é a terra consagrada ao
deus. Cabe a ele, portanto, conduzir o herói predestinado a construir os fundamentos da
futura Roma, sendo o seu primeiro fundador.
A consagração do loureiro ao deus tem origem no mito de Apolo e Dafne45
( = loureiro), ninfa por quem Febo se apaixona. Perseguida pelo deus e sem
poder escapar-lhe das investidas, ela pede ao seu pai, o rio Peneu, da Tessália, que a
transforme, e assim ela é metamorfoseada em um loureiro, planta amada por Apolo.
Nesse mesmo núcleo narrativo, contíguo ao episódio acima, há o prodígio de
Lavínia. Trata-se da ocasião exata em que Enéias e sua frota abordam o Lácio. A
princesa está ao lado do pai, queimando os incensos nos altares. Nesse momento, sua
44
VERGILIUS. op. cit., Liber VII, v. 59-63. 45
OVÍDIO. Metamorfoses, I, 452 e s.
48
cabeleira incendeia, pressagiando o fulgor da sua futura fama como rainha, mas também
anunciando grande guerra ao povo. Enéias, portanto, parte de Tróia e chega ao Lácio
sob o mesmo auspício do fogo sagrado, concernente a Apolo, que, entre outras funções,
é o deus da luz e da cura, o que explica o seu nome Febo, , que significa ao
mesmo tempo, purificador e luminoso.46
Partindo de Antandro, após a destruição de Tróia, Enéias e os remanescentes
troianos se lançam ao mar em busca de novas terras para se estabelecer. Chegam à
Trácia, e lá começam a construir os primeiros muros de uma cidade. Mas são
surpreendidos por um mau presságio. Estão sacrificando aos deuses, quando descobrem
o corpo de Polidoro, filho mais novo de Príamo, assassinado pelo rei Licurgo no
momento em que Tróia fenece. Enéias é exaltado principalmente por ser piedoso.
Possuindo a mesma raiz do verbo piare, cujo significado é expurgar, apagar uma
mácula, o que era feito através dos sacrifícios, dos ritos, a Pietas caracteriza não só o
devoto aos antepassados, mas sobretudo aquele que cumpre os ritos. Desse modo,
Enéias realiza os funerais de Polidoro, o que permite a entrada da alma no mundo dos
mortos, por conta da purificação da mácula do não-sepultamento.
Saídos da Trácia, os teucros seguem rumo a Delos, ilha em que nasceram Apolo e
sua irmã gêmea, Ártemis. Leto,47
filha da primeira geração de deuses, os Titãs, é amada
por Zeus, e desse enlace, engravida das duas crianças. Prestes a dar à luz, Hera a
persegue, proibindo qualquer lugar no qual brilhasse a luz do sol de recebê-la. Contudo,
havia uma ilha, denominada Delos, a brilhante, que nada tinha a temer, pois era estéril e
errante. Ela recebe Leto para que as crianças nasçam. Depois do seu nascimento, Apolo,
em recompensa, torna-a fixa. Nesse lugar, reinava Ânio, sacerdote de Febo. Lá, Enéias
consulta o oráculo, que diz quais as terras que o herói deve buscar. Trata-se da região
dos primeiros antepassados, onde dominarão Enéias e os seus descendentes. Pela
primeira vez o herói ouve acerca do seu destino. Entretanto, por um engano na
interpretação do oráculo, Enéias e os demais rumam em direção a Creta. Lá, são
acometidos por uma peste. Em sonho, os deuses Penates de Tróia, enviados por Apolo,
aparecem a Enéias, indicando-lhe o local certo. Trata-se da Itália, antiga Hespéria, terra
de origem de Dárdano, antepassado troiano:
46
CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1999 47
HESÍODO. Teogonia. 404 e s.
49
“Dardanidae duri, quae uos a stirpe parentum
Prima tulit tellus, eadem uos ubere laeto
Accipiet reduces. Antiquam esquirete matrem.
Hic domus Aeneae cunctis dominabitur oris
Et nati natorum et qui nascentur ab illis. »48
Fortes Dardânidas, a terra que primeira sustentou-se
pela estirpe dos antepassados, aquela mesma
vos receberá de volta em solo fértil. Procurai a antiga mãe.
Lá a casa de Enéias dominará toda a margem,
e os filhos dos filhos, e os que nascerão deles.
A importância desse episódio é particularmente significativa para a vinculação dos
troianos, e conseguintemente dos romanos, a Apolo. Serve também para reiterar a
predestinação divina de Roma. A ilha de Delos está ligada ao Lácio através da figura do
deus, pois aquela diz respeito ao local de seu nascimento, enquanto este é designado
terra de Apolo, já referido acima, pela presença do loureiro do qual surgiu o nome dos
laurentes.
Saídos de Creta, rumam à Hésperia. No caminho, param nas Estrófades, ilhas do
mar Egeu, habitadas pelas Harpias, seres horrendos e imundos, com forma híbrida de
mulher e pássaro.49
Celeno, a mais velha delas, com o intuito de atemorizar os troianos,
profere-lhes mau-augúrio em nome de Apolo, dizendo-lhes que passarão uma grande
fome na sua chegada ao Lácio, o que provoca grande pavor nos teucros, levando-os a
oferecer votos e preces aos deuses. Seguem para o Ácio, onde encontram um templo de
Apolo, e lá permanecem por um ano. Depois chegam a Butroto e encontram uma
pequena Pérgamo, edificada por Heleno, irmão de Heitor e sacerdote de Apolo.
48
VERGILIUS. op. cit., Liber III, v. 94-98. 49
HESÍODO. op. cit., v. 265.
50
Consultado o oráculo, Heleno, inspirado pelo deus, revela a Enéias parte do seu destino.
Ele enfrentará inúmeras vicissitudes antes de chegar à Itália e lá fundar um novo reino.
Passará pelas terras trinácrias, pela ilha de Circe, e pelos lagos dos Infernos, até que
chegue a uma terra onde encontrará uma porca branca estendida no solo, com trinta
filhotes, brancos como a mãe, agrupados em volta das tetas. Lá será o termo da sua
viagem.
Apolo intervirá novamente no episódio da descida de Enéias aos Infernos, em que o
herói, em companhia da Sibila de Cumas, pratica com a alma do seu pai, Anquises, a
fim de que ele lhe desvende o porvir da futura civilização romana, cuja descendência
provém de Enéias.
51
II. A Tradição Greco-Romana do Mito
1. Catábase: um ritual de passagem
O vocábulo catábase50
( ), composto pela preposição , que
exprime um movimento para baixo, e pelo substantivo passo, seqüência,
proveniente do verbo , que quer dizer, afastar as pernas através do andar,
etimologicamente significa “caminhar no sentido para baixo”, denotando, portanto, uma
descida. Em contraponto, há a formado pela preposição , que exprime
um movimento para cima, e pelo verbo significando, desse modo, uma subida,
caminhar para cima. A , com a conseguinte , está presente na
tradição mítica grega, representando um ritual de passagem51
, que é caracterizado pela
transformação do herói submetido a esse ritual, passando ele por uma separação de um
status anterior, depois por uma fase limiar entre duas posições e em seguida, pela
incorporação a uma nova condição. Dentro desse quadro, encontram-se os mitos de
Héracles52
, Odisseus53
, Orfeu54
, Teseu e Pirítoo55
, todos eles protagonistas de uma
descida aos Infernos, cuja conseqüência foi a transformação desses heróis para uma
nova condição. Procede remeter a cada um desses mitos, haja vista a importância do seu
conhecimento para a análise do Livro VI, dentro da Eneida, concernente a
de Enéias ao mundo subterrâneo.
Héracles, herói pertencente a uma geração anterior à guerra de Tróia, coaduna
inúmeros mitemas, entre eles, os doze trabalhos. Estes estão ligados à figura da deusa
50
LIDDELL, Henry George and SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford University Press:
New York, 1996. 51
GENNEP, Arnold Van. The rites of passage. Translated by Monika B. Vizedon. Routledge Library
Editions: London, 2004. 52
www.perseus.tufts.edu (Apollodorus, Library and Epitomes, 2.5.12) 53
HOMERO. Odyssey. Translated by A. T. Murray. Harvard University Press: London, 2002. (Loeb
Classical Library), Book XI. 54
VIRGIL. Ecogles Georgics Aeneid. 2V. Translated by H. R. Fairclough. Harvard University Press
London, 2001. (Loeb Classical Library), Georgics, Book IV, 453 ss. 55
www.perseus.tufts.edu (Apollodorus, Library and Epitomes, 2.5.12)
52
Hera, cuja perseguição ao herói ocorre por causa da infidelidade de Zeus, seu esposo e
pai de Héracles. Segue a genealogia do herói para melhor entendimento do mito:
Zeus ~ Dânae
Perseu ~ Andrómeda
Astidamia ~ Alceu Estênelo ~ Nicipe
Zeus ~ Alcmena ~ Anfitrião EURISTEU
HÉRACLES Íficles
Conta o mito que Zeus, aproveitando a ausência de Anfitrião, rei de Tirinte, que
saíra em uma expedição, toma a sua forma e aspecto, a fim de enganar Alcmena. Une-se
então à rainha e engendra Héracles. Anfitrião retorna pela manhã, e faz-se reconhecer
pela esposa, concebendo um filho com ela, Íficles, irmão gêmeo de Héracles, apenas
uma noite mais novo que ele. Antes mesmo de o herói nascer, Hera, enciumada, começa
a persegui-lo. Zeus, inadvertidamente, afirma que a criança que ia nascer da raça de
Perseu, reinaria sobre Argos. No momento em que Alcmena está para dar a luz, Hera
impede que sua filha, Ilítia, deusa dos partos, ajude-a, e favorece Nicipe, que está com
sete meses de gravidez, esperando Euristeu, também descendente de Perseu. Desse
modo, este herda o poder sobre a Argólida56
. Hera continua sua perseguição a Héracles.
Já adulto, ela o enlouquece, fazendo-o matar os filhos que tem com Mégara. O herói
consulta o oráculo de Delfos a fim de saber como expiar o seu crime, e é aconselhado a
submeter-se à deusa. Esta o põe a serviço de Euristeu, que o sujeita a doze trabalhos,
irrealizáveis para um herói de menor valor que Héracles. O décimo segundo trabalho diz
respeito à sua ao Hades. Euristeu exige que ele desça ao reino de Dite e
56
Para a referência da astúcia de Hera, com relação a Zeus, fazendo de Euristeu o rei, quando Zeus
pensava em Hércules, v. Ilíada, XIX, 90-133.
53
traga o cão que guarda a entrada do mundo subterrâneo, impedindo os vivos de lá
entrarem, e os mortos de lá saírem. Cérbero era um monstro de três cabeças de cão,
cauda formada por uma serpente e, no dorso, inúmeras cabeças de serpente levantadas.
Héracles, acompanhado por Hermes, deus condutor das almas, , desce ao
Hades, mas não antes de ser iniciado nos mistérios de Elêusis. Lá, o deus permite que o
herói conduza o cão, mas sob a condição de não o machucar com suas armas. Héracles
luta com ele só com a força dos seus braços. Quase o sufocando, domina-o. Ao levar
para Euristeu, este tem medo e ordena que o herói o leve de volta. A descrição acima, de
caráter meramente parafrástico, visa comprovar a estrutura ritualística do mito.
Héracles, antes de descer ao Hades, é purificado por Eumolpo, rei da Trácia, pois havia
matado os Centauros. Em seguida, é iniciado nos Mistérios de Elêusis, desse modo,
ficando em condições apropriadas para entrar nos infernos, já que os mistérios
ensinavam precisamente aos fiéis os meios de chegar ao outro mundo com toda a
segurança, após a morte. Não é sabido o que eram os Mistérios, mas é notório que
aqueles iniciados participavam de experiências ritualísticas de modo a transcender a
condição humana e obter uma forma sobrenatural de ser ainda em vida57
. Mas além
disso, Héracles tem a companhia de dois deuses, Atena e Hermes, a fim de enfrentar,
com menor risco, as sombras e os monstros lá existentes, a qual permite, inclusive, a sua
passagem pelo rio Aqueronte na barca de Caronte. Héracles é denotado sobretudo por
sua força física descomunal e por sua coragem sem limites, únicas armas que utiliza
para encarar Hades e sua esposa Perséfone, e para dominar Cérbero. Tal fato mostra a
singularidade da de Héracles, do mesmo modo que ocorre com os demais
heróis que desceram aos infernos. Cada um possui uma peculiaridade que caracteriza a
sua personalidade, e conseqüentemente a sua descida ao mundo dos mortos, o que será
visto respectivamente. Retornar pela segunda vez a terra, depois que devolve Cérbero ao
Hades, enfrentando por duas vezes o caminho que leva ao mundo do esquecimento, dos
silenciosos, confere a Héracles a conquista da imortalidade, haja vista ter encarado a
morte duas vezes. Tal imortalidade será confirmada com a sua divinização por Zeus, ao
morrer envenenado, involuntariamente, por Djanira, sua esposa.
57
MIRCEA, Eliade. Rites and symbols of initiation: the mysteries of birth and rebirth. Translated by
Willard R. Trask. Putnam: Spring Publications, 2005, p. 112.
54
Odisseu, rei de Ítaca, destaca-se no cenário da guerra de Tróia sobretudo pela sua
inteligência e astúcia. Seu principal epíteto, , muito ardiloso, expressa bem
o atributo que faz do herói uma figura proeminente no combate, mais do que pela sua
força física. Tal característica já está presente no perfil dos seus antepassados. Seu avô
por parte de mãe, Autólico, herdou do pai, o deus Hermes, o dom de roubar sem nunca
ser surpreendido, por isso causou muitos ódios naqueles que foram suas vítimas. Desse
fato surge o nome Odisseu58
. Quando o herói nasce, Autólico, que na ocasião
encontrava-se em Ítaca, escolhe o nome da criança, proveniente do fato de haver,
durante a sua vida, provocado muita malquerença. Odisseu provém do verbo
que significa “odiar, estar irado contra”.
Déion
Hermes ~ Quíone
Céfalo
Autólico ~ Anfítea
Calcomedusa ~ Arcício
Laerte ~ Anticléia
ULISSES
Na Odisséia, Canto XI, Odisseu faz uma uma invocação às almas dos
mortos para saber sobre o futuro em relação à sua à sua volta para casa e para
o seu reino. Ele apenas bordeja a entrada do Hades, não chegando propriamente a entrar
nele. Os Infernos, segundo Homero, ficam nas paragens da cidade dos homens
Cimérios, povo fabuloso, cujo território situa-se nos limites do mundo. Lá, o herói
oferece libações às almas dos mortos e um sacrifício de duas reses de pêlo negro aos
deuses subterrâneos:
58
HOMER. op.cit., Book XIX, v. 399-409.
55
56
Lá, Perimedes e Euríloco seguraram as vítimas,
Eu, a pontiaguda espada, saco de junto da coxa.
Um fosso cavei, de um cúbito, aqui e acolá.
Ao redor, nele, libação verti, a todos os mortos,
Primeiramente, de leite e mel misturados, depois, de doce vinho,
e por terceiro, água; sobre ele, branca cevada espalhei.
Muito supliquei às cabeças exangues dos mortos,
tendo ido para Ítaca, uma vaca estéril, a melhor,
irei sacrificar no meu palácio, e uma pira cobrir
com as melhores coisas. À parte, irei consagrar só a Tirésias, toda negra,
uma ovelha, que se distingue entre as nossas crias.
E quando, com votos e preces, supliquei ao coro dos mortos,
e tendo tomado o gado, degolei rumo ao fosso,
e negro sangue escorreu. As almas daqueles
que estão mortos, afluíram do Érebo,
moças e moços solteiros, sofridos anciães, jovens donzelas
que têm o coração incipiente no sofrer,
e muitos heróis abatidos por Ares, que foram perfurados
com lança de bronze, segurando as armas manchadas de sangue.
Muitos, ao redor do fosso, chegavam, de uma parte e de outra
com grito ensurdecedor. O medo deixava-me verde.
Depois os companheiros exortei, tendo ordenado
queimar as reses esfoladas, que jaziam no chão
pelo bronze cruel abatidas, e orar aos deuses,
ao poderoso Hades e à terrível Perséfone;
e eu mesmo tendo puxado a pontiaguda espada
de junto da coxa, sento, não permitia que as exangues
cabeças dos mortos viessem mais perto, antes de ouvir Tirésias.
59
Idem ibidem, Book XI, v. 23-50.
57
Odisseu, saído de Tróia após sua destruição, defronta-se com inúmeras vicissitudes
a fim de chegar a Ítaca, entre elas está a descida ao Hades. É possível perceber o perfil
ardiloso do herói quando, depois que oferece o sangue sacrificial das reses depositado
no fosso primeiramente a Tirésias, adivinho tebano, com o intuito de questioná-lo sobre
a sua volta, usa-o como isca para atrair as almas daqueles pelos quais se interessa.
Depois que Tirésias discorre sobre os perigos com os quais Odisseu ainda se deparará,
outras almas se aproximam, e, após sorverem do sangue, relatam suas histórias. Entre
elas encontra-se a de Agamêmnon, que o adverte sobre o perigo de se confiar nas
mulheres, remetendo à traição da sua própria esposa, Clitemnestra, que o mata em um
banquete oferecido em comemoração à sua volta da guerra. Tal advertência condiz com
o encontro entre Penélope e o próprio Odisseu, este ainda disfarçado de mendigo. Alter
ego do esposo concernente à astúcia, Penélope, cujo epíteto ( = ao
redor de, + = ser sensato, prudente; ter conhecimento) faz jus a tal
característica, desconstrói sensatamente o discurso do herói, quando este tenta desviar a
atenção de Penélope sobre ele para si própria, insuflando-lhe a vaidade de maneira sutil
e inteligente. Entretanto, a rainha o contesta, dizendo que sua grandeza, tanto da forma
de ser quanto da beleza, foi destruída no dia em que o esposo seguiu com os argivos, e
que muito maior será com o seu regresso para o lar.60
A de Odisseu reitera a sua imortalidade. Já imortalizado pelo canto dos
aedos61
, visto ser sua façanha de herói guerreiro conhecida de todos, ao desprezar a luz
do sol e visitar os mortos nas sombras, ele conquista uma espécie de imortalidade física,
pois já não teme mais a própria morte. Tal conquista tem seu reflexo no momento em
que enfrenta os pretendentes que pilham a sua riqueza e desrespeitam o seu lar.
Disfarçado em mendigo, derrota os inimigos com força proveniente da sua destreza e da
sua coragem. Dado como morto por todos, Odisseu sai do anonimato, da sua aparente
morte e, através da sua habilidade particular com o arco e a flecha, mata,
destemidamente, todos os inimigos.
60
Idem ibidem, Book XIX, v. 124-129. 61
V. Canto VIII da Odisséia, na recepção a Odisseu entre os Feácios, em que Demódoco canta o episódio
do cavalo de Tróia.
58
Orfeu, filho do deus-rio Eagro e da musa da poesia lírica Calíope, apaixona-se por
Eurídice e se casa com ela. Mas Eurídice é tão bonita que, pouco tempo depois do
casamento, atrai um apicultor chamado Aristeu. Quando ela recusa suas atenções, ele a
persegue. Tentando escapar, ela tropeça em uma serpente que a pica e a mata.
Orfeu fica transtornado de tristeza. Levando a sua lira, vai até o Mundo dos Mortos,
para tentar trazê-la de volta. A canção pungente e emocionada de sua lira convence o
barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo Rio Estige. A canção da lira adormece Cérbero, o
cão de três cabeças que vigia os portões; seu tom carinhoso alivia os tormentos dos
condenados.
Finalmente Orfeu chega ao trono de Hades. O rei dos mortos fica irritado ao ver
que um vivo tinha entrado em seu domínio, mas a agonia na música de Orfeu o comove,
e ele chora lágrimas de ferro. Sua esposa, a deusa Perséfone, implora-lhe que atenda ao
pedido de Orfeu. Assim, Hades acolhe seu desejo. Eurídice poderia voltar com Orfeu ao
mundo dos vivos. Mas com uma única condição: que ele não olhasse para ela até que
ela, outra vez, estivesse à luz do sol.
Orfeu parte pela trilha íngreme que leva para fora do escuro reino da morte,
tocando músicas de alegria e celebração enquanto caminha, para guiar a sombra de
Eurídice de volta à vida. Ele não olha nenhuma vez para trás, até atingir a luz do sol, até
que se vira, para se certificar de que Eurídice o está seguindo.
Por um momento ele a vê, perto da saída do túnel escuro, perto da vida outra vez.
Mas enquanto ele olha, ela se torna de novo um fino fantasma, seu grito final de amor e
pena não mais do que um suspiro na brisa que saía do Mundo dos Mortos. Ele a havia
perdido para sempre. Em total desespero, Orfeu se torna amargo. Recusa-se a olhar para
qualquer outra mulher, não querendo se lembrar da perda de sua amada. Furiosas por
terem sido desprezadas, um grupo de mulheres Trácias, selvagens chamadas Mênades
cai sobre ele, frenéticas, atirando dardos. Os dardos de nada valem contra a música do
lirista, mas elas, abafando sua música com gritos, conseguem atingi-lo e o matam.
Depois, despedaçam seu corpo e jogam sua cabeça cortada no Rio Hebrus, e ela flutua,
ainda cantando, "Eurídice! Eurídice!"
Chorando, as nove musas reúnem seus pedaços e os enterram no Monte Olimpo.
Dizem que, desde então, os rouxinóis das proximidades cantam mais docemente do que
os outros, pois Orfeu, na morte, se uniu a sua amada Eurídice.
59
Zeus ~ Mnemósine
Eagro ~ Calíope
Orfeu ~ Eurídice
Orfeu, músico por excelência e poeta, tem como salvo-conduto para a entrada no
Hades, o som da sua lira, que é capaz de acalmar as feras e comover até mesmo o deus
terrível dos mortos. O amor por uma mulher é a causa da sua .
Experimentando a morte na figura da pessoa amada, ele mesmo quer conhecê-la, indo
até os infernos. Para resgatar a esposa e salvar a si mesmo do esquecimento da morte,
utiliza o atributo que lhe confere notoriedade no mundo dos vivos, a música. Entretanto,
não confia no próprio talento e, inadvertidamente, quer conferir se a sua amada o segue
de volta à luz. Momentaneamente a perde, e também a si mesmo, para em seguida
conquistar a imortalidade juntamente com Eurídice.
Teseu é o herói por excelência da Ática. Conta o mito que Egeu, seu pai, não
podendo ter filhos de mulheres sucessivas, interroga o oráculo de Delfos. O deus
responde-lhe que “abrisse o odre de vinho antes de chegar à cidade de Atenas”. Não
compreendendo, Egeu se afasta do seu caminho para consultar o rei de Trezénia, Piteu,
um dos filhos de Pélops, o qual compreende logo o sentido do oráculo. Consegue
embriagar Egeu e, durante a noite, deita ao seu lado a filha Etra. Dessa união nasce
Teseu. Outra tradição diz que o pai seria Posídon, que teria se unido a Etra na mesma
noite que Egeu, um dia em que ela teria ido oferecer um sacrifício numa ilha, e o deus a
possuíra à força.
Pirítoo é um herói da Tessália, filho de Zeus e Dia. A sua amizade com Teseu
ocorre de maneira singular. Ao ouvir falar dos feitos deste, decide pô-lo à prova, e rouba
gado dos rebanhos de Teseu. Os dois se vêem um dia frente a frente, e cada um deles é
seduzido pela beleza do outro. Selam então com um juramento a amizade que nascia, e
a partir desse instante, os dois vivem juntos todas as aventuras, entre elas, o combate
dos lápitas contra os centauros, e a descida aos infernos.
60
Zeus ~ Pluto Zeus ~ Dia
Tântalo ~ Eurianassa
Pirítoo
Pélops ~ Hipodamia Níobe
Piteu
Posídon ~ Etra ~ Egeu
TESEU
A de Teseu e Pirítoo ocorre quando cada um deles jura dar ao outro
uma filha de Zeus, como esposa. Pirítoo, então, ajuda Teseu a raptar Helena, filha de
Zeus e Leda, e em troca, recebe sua ajuda para ir ao Hades raptar Perséfone, filha de
Zeus e Deméter. Conta o mito que os dois conseguiram entrar no mundo dos mortos,
mas não conseguiram sair, ficando prisioneiros. Hércules, ao descer aos infernos,
encontra os dois e consegue libertar Teseu, mas ao tentar resgatar Pirítoo, a terra treme.
O herói percebe que não é da vontade dos deuses libertar Pirítoo, e desiste de salvá-lo.
A entrada de Teseu e Pirítoo no mundo dos mortos é aquiescida por Hades pela
intenção do deus de prendê-los no mundo subterrâneo. Aparentemente bem acolhidos,
foram recebidos com um banquete. Ao se sentar, ficaram presos nos assentos. Teseu foi
libertado, mas Pirítoo permaneceu eternamente sentado na Cadeira do Esquecimento.
Sua passagem pelos infernos lhe trouxe uma imortalidade anônima. Para Teseu, a volta
dos infernos lhe trouxe a derrocada. Regressando a Atenas, encontrou o poder
partilhado entre facções, e passou a ser rei apenas de nome. Foi morto pelo rei Licurgo.
Respaldando-se na tradição grega, Virgílio busca o mito da catábase para compor o
Livro mais importante da sua epopéia, pois confirma o que é prenunciado desde o início
61
da narrativa por Júpiter,62
e depois pelos oráculos de Apolo, a edificação da futura glória
romana. O Livro VI trata da descida de Enéias aos Infernos, que vem sendo anunciada
no decurso da narrativa. Primeiramente em Butroto, depois de, saídos de Tróia, haverem
os troianos parado na Trácia, em Delos, em Creta, nas ilhas Estrófades e no Ácio,
Heleno, filho de Príamo e sacerdote de Apolo, em transe, vaticina os destinos de Enéias,
e remete à sua visita aos lagos dos Infernos63
. Pela segunda vez há a referência à ida de
Enéias ao mundo dos mortos, agora através da alma de Anquises, que aparece ao filho
quando este se encontra na Sicília. É o momento em que estão sendo realizados os jogos
fúnebres em sua honra, pois morrera, havia um ano. Na modalidade do arco e flecha,
ocorre um prodígio que, só mais tarde, é anunciado pelos adivinhos. Quando Aceste
atira o dardo a fim de atingir a pomba, este incendeia no percurso, e esvanece antes de
atingir o alvo. Algum tempo depois, os navios troianos, que estão ancorados na praia,
são incendiados por Ísis, a mando de Juno. Considerando que o arco e flecha
representam Apolo na sua função de arqueiro, e, do mesmo modo, o fogo simboliza a
sua função de deus da luz, e que a pomba, a ave de Vênus, representa metonimicamente
o povo troiano, é clara a participação do deus no prodígio, na tentativa de alertar os
guerreiros quanto ao incêndio contra as naus. Tal episódio leva Enéias a seguir o
conselho do velho Nauta, de deixar na ilha o contingente excedente pela perda dos
navios, fundando uma cidade para que lá permanecessem. Entretanto, antes de anuir à
proposta do ancião, Enéias vê a sombra de Anquises, que o aconselha a fazê-lo, também
remetendo à necessidade da sua ida à morada das sombras, guiado pela Sibila, a fim de
conhecer a posteridade da sua descendência.64
A de Enéias simboliza a sua morte como homem mortal, perecível,
para que, na sua , seja imortalizado na memória de todos como herói,
semideus, alegoricamente simbolizando a imortalidade do império romano, e por
metonímia, a do próprio Augusto. É nesse episódio que ocorre a “bela morte” de Enéias.
Depois da entrevista com Anquises, que lhe garante o êxito do seu empreendimento, a
edificação do novo reino com a aquiescência dos próprios deuses, já percebida no
momento em que o herói consegue o salvo-conduto para a entrada no reino dos mortos,
62
VIRGIL. op.cit. Book I, v. 257-296. 63
VIRGIL. op. cit., Book III, v. 441-444. 64
VIRGIL. op. cit., Book V, v. 724-739.
62
a sua consagração e perenidade na das gerações vindouras está perpetuada. Do
mesmo modo, ao adentrar o seio da terra, símbolo de vida e de morte ao mesmo tempo,
Enéias tem o seu estabelecido, seu túmulo, monumento divino representativo da
existência do herói. O enfrentamento dos monstros e dos perigos que perpassam a
travessia pelo reino de Plutão, confirma-lhe a bravura e o desbravamento heróico,
terceiro requisito para se obter uma “bela morte”.
Mircea Eliade65, em suas reflexões, tece um pensamento profundo acerca da
simbologia da catábase ao reino dos mortos:
From one point of view, we may say that these myths and sagas have an
initiatory structure; to descend into Hell alive, confront its monsters and
demons, is to undergo an initiatory ordeal. I may add that similar flesh-and-
blood descend into Hell are characteristic of heroic initiations, whose goal is the
conquest of bodily immortality. Of course, these instances belong to initiatory
mythology, and not to ritual properly speaking; but myth are often more
valuable than rites for our understanding of religious behavior. For it is the
myth which most completely reveals the deep, and often unconscious, desire of
the religious man
A partir de um ponto de vista, nós podemos dizer que estes mitos e sagas têm
uma estrutura iniciatória; descer vivo ao Inferno, confrontar monstros e
demônios, é submeter-se a uma provação iniciatória. Podemos acrescentar que
similares descidas, em “carne e osso”, ao Inferno são características de
iniciações heróicas, cujo objetivo é a conquista da imortalidade física.
Naturalmente, esses exemplos pertencem à mitologia de iniciação, e não ao
ritual propriamente falando; mas mito é freqüentemente mais significativo do
que os ritos para nosso entendimento do comportamento religioso. Por isso, é o
mito aquilo que mais completamente revela o profundo, e freqüentemente
inconsciente, desejo do homem religioso.
O teórico circunscreve o ritual de catábase à categoria dos heróis, apontando uma
ordem em que ocorre uma provação iniciática, e uma conseguinte transformação. É
preciso passar por uma morte, para alcançar a imortalidade, finalidade propulsora do
homem religioso. Enéias atinge o ápice da sua Pietas ao descer aos Infernos, pois atende
ao chamado de Anquises. Tendo passado por muitas provações, a perda da pátria, o
65
ELIADE, Mircea. op. cit., p. 62.
63
longo exílio e a perda do pai, segue ao encontro do pai no reino de Dite, a fim de
encontrar nova pátria. Assim, formula Milton Marques Júnior:
Mais do que isso [mito fundador], ele é o pai da pátria, conforme se
anuncia ao final do Livro III, fazendo o seguinte itinerário: Enéias perde a
pátria, perde o pai, vai em busca do pai, para fundar a nova pátria, sendo,
portanto, o pai da pátria, que será a cabeça do mundo (MARQUES JÚNIOR,
2006: 44)
Após a sua e a sua chegada ao Lácio, Enéias tem seu status de herói
reconhecido e ratificado, no momento em que recebe da deusa Vênus, sua mãe, as
armas produzidas por Vulcano66
, episódio este respaldado no exemplo grego de
Aquiles67
, considerado o melhor dos guerreiros gregos, que também teve suas armas
forjadas pelo deus ferreiro. A armadura é ícone da excelência guerreira do herói, a
grega e a virtus romana. Dentro do conjunto em que figuram o elmo, as
cnêmides, a couraça, a lança e a espada, o escudo tem proeminência, pois carrega em si
a representação do universo em que o herói está inserido. O escudo é instrumento ao
mesmo tempo, de proteção e ataque, no campo de batalha. O herói, ao colocá-lo contra
o inimigo, põe diante de si seu próprio mundo, servindo-lhe este de anteparo e de
ofensiva. A descrição das imagens representadas no escudo de Enéias diz respeito à
história de Roma,68
desde Rômulo e Remo, alimentados por uma loba, até César
Augusto, portanto, todo um futuro desconhecido do herói. Carregar tal representação,
moldada exclusivamente para ele, significa ser o empreendedor da glória futura dos seus
descendentes.
A entrada de Enéias nos Infernos é aquiescida pelos deuses. O herói tem a proteção
de Apolo através da Sibila de Cumas, sacerdotisa de Apolo, que atua como guia no seu
itinerário. Ela estipula os requisitos necessários para que o herói possa realizar tal
66
VIRGIL. op.cit., Book VIII, v. 608-731. 67
HOMER. Iliad. Translated by A. T. Murray. Harvard University Press: London, 2003. (Loeb Classical
Library), 478-608. 68
VIRGIL. op.cit., Book VIII, v. 626-728.
64
empreendimento com segurança, a saber, o ramo de ouro, a purificação da frota pela
morte de um dos seus companheiros, e um sacrifício aos deuses subterrâneos.
2. Catábase de Enéias
A de Enéias requer três condições para que se realize: I) a anuência
das divindades; II) a purificação, necessária para o contato com o sagrado (sacer) ; III) a
oferenda aos deuses através do sacrifício animal.
A primeira diz respeito ao salvo-conduto que lhe garanta a passagem livre pelas
regiões inferiores, que consiste em um ramo, cujo aspecto se assemelha a um visco,
planta parasitária que cresce em torno do tronco de árvores, destacando-se sobretudo
pela sua resistência às intempéries climáticas e por sua coloração ativa:
Quale solet silvis brumali frigore viscum
Fronde virere nova, quod non sua seminat arbos,
Et croceo fetu teretis circumdare truncos,
Talis erat species auri frondentis opaca
Ilice, sic leni crepitabat brattea vento.69
Qual é comum nos bosques, com o frio sosticial,
Verdejar com nova folhagem o visco, que a árvore semeia, não sua,
e com cróceo ramo circundar os troncos.
Tal era o aspecto do frondoso ouro na sombria azinheira.
Assim a lâmina crepitava, com a leve brisa.
A explicação da escolha de Virgílio, segundo a crítica70
, teria raiz em uma crença
popular que atribuía ao visco o poder de neutralizar os perigos advindos da água e do
fogo, e mais tarde, teria também o poder de desmanchar magias e de expulsar demônios.
69
VIRGIL. op. cit. Book VI, v. 205-209 70
VOLPIS, Leone. Virgilio Eneide Libro sesto. Milano: Carlos Signorelli, 1953.
65
Outra razão, coadunada a esta, seria o fato de que o visco brota mesmo sem tocar a
terra, crescendo durante o inverno, quando o restante da natureza está imersa no sono da
morte. Tal característica faria dessa planta símbolo de vida para os homens. Suas folhas
sempre verdes davam ao homem a segura esperança de que a natureza sempre voltaria a
florescer e frutificar. No pensamento mítico, morte e vida formam uma única unidade.
Prosérpina, deusa da vegetação e do mundo subterrâneo, reúne em si a força da vida e
da morte. Metaforicamente, ela seria o próprio visco, pois, apesar da condição de deusa
dos mortos, ela também contém o atributo da germinação. O ramo que serve de
salvaguarda a Enéias, é caracterizado como sendo de ouro, fazendo menção à coloração
açafroada das suas bagas, as quais possuem propriedades medicinais. A cor concerne
também à construção poética, tendo em vista a localização da planta no meio do bosque
sombrio. É importante perceber que, mesmo reluzente, o ramo de ouro só pode ser
visto, e sobretudo colhido, com a aquiescência dos deuses. Não é à toa que Enéias o
encontra com o concurso de Vênus, sua mãe. Esta lhe envia duas pombas, suas aves,
para guiar o filho. Além disso, a facilidade com que o ramo se desprende no momento
em que o herói o colhe, denota tal anuência divina, pois, caso contrário, nem mesmo o
ferro seria capaz de removê-lo:
Talibus orabat dictis arasque tenebat,
cum sic orsa loqui vates: «sate sanguine divum,
Tros Anchisiade, facilis descensus Averno:
noctes atque dies patet atri ianua Ditis;
sed revocare gradum superasque evadere ad auras,
hoc opus, hic labor est. pauci, quos aequus amavit
Iuppiter aut ardens evexit ad aethera virtus,
dis geniti potuere. tenent media omnia silvae,
Cocytusque sinu labens circumvenit atro.
quod si tantus amor menti, si tanta cupido est
bis Stygios innare lacus, bis nigra videre
Tartara, et insano iuvat indulgere labori,
accipe quae peragenda prius. latet arbore opaca
66
aureus et foliis et lento vimine ramus,
Iunoni infernae dictus sacer; hunc tegit omnis
lucus et obscuris claudunt convallibus umbrae.
sed non ante datur telluris operta subire
auricomos quam quis decerpserit arbore fetus.
hoc sibi pulchra suum ferri Proserpina munus
instituit. primo avulso non deficit alter
aureus, et simili frondescit virga metallo.
ergo alte vestiga oculis et rite repertum
carpe manu; namque ipse volens facilisque sequetur,
si te fata vocant; aliter non viribus ullis
vincere nec duro poteris convellere ferro.
praeterea iacet exanimum tibi corpus amici
(heu nescis) totamque incestat funere classem,
dum consulta petis nostroque in limine pendes.
sedibus hunc refer ante suis et conde sepulcro.
duc nigras pecudes; ea prima piacula sunto.
sic demum lucos Stygis et regna invia vivis
aspicies.» dixit, pressoque obmutuit ore. 71
Enéias, com tais palavras, orava e ocupava o altar,
quando assim começou a falar a sacerdotisa: “Troiano,
gerado de sangue divino, filho de Anquises, fácil é a descida ao Averno:
noite e dia a porta do átrio de Dite está aberta,
mas retornar a marcha e subir rumo às brisas do alto,
este é o trabalho, esta a dificuldade. Poucos, descendentes dos deuses,
aos quais Júpiter, amou, ou a ardorosa coragem transportou ao éter,
puderam. Florestas ocupam todo o centro,
e o Cocito corrente circunda-o com negra sinuosidade.
Porque tua mente tem tanta ânsia e tanto desejo de,
por duas vezes, navegar o lago do Estige e ver o negro Tártaro;
71
VERGILIUS. op.cit., Liber VI, 124-170.
67
e agrada-te abandonar-se a um insano labor,
escuta o que primeiro deve ser realizado. De folhas e haste flexível,
em árvore opaca, um ramo de ouro permanece escondido,
consagrado a Juno infernal. Todo um bosque o oculta,
e as sombras o encerram em vale sombrio.
Mas não é dado a alguém penetrar o recesso da terra,
antes que tenha colhido o ramo de ouro da árvore.
Esta dádiva para si a bela Prosérpina ordena trazer.
Tendo arrancado o primeiro, outro de ouro
não falta, e de símil metal um ramo floresce.
Portanto, procura-o sutilmente com os olhos,
e colhe a descoberta, segundo os ritos, com a mão.
De fato, ele mesmo, propício, cede facilmente,
se os fados te chamam. De outra maneira, com força alguma
poderás vencer, nem arrancar com duro ferro.
Além disso, o corpo de um amigo teu jaz exânime
(Ai, tu que desconheces!), e mancha todo o exército com o
cadáver, enquanto pedes oráculos e pendes em nosso limiar.
Antes, entrega-o à sua morada e encerra-o no sepulcro.
Conduze negras reses, sejam estas as primeiras expiações.
Apenas assim, avistarás os bosques sagrados do Estige
e o reino inacessível aos vivos.” Disse e,
premendo a boca, calou-se.
O trecho acima descreve a entrevista entre Enéias e a Sibila, especificamente a
resposta dada ao herói, quando este lhe pede para ver Anquises, visto ser ali a entrada
para o mundo dos mortos. Ela, então, discorre sobre o que é necessário para a realização
do seu pedido.
Mesmo tendo a ajuda divina na busca do ramo de ouro, Enéias precisa agir com
acuidade ao procurá-lo. No verso 145, a sacerdotisa o adverte quanto a isso. Entretanto,
faz-se necessário ir um pouco além em relação ao sentido dessa advertência, a fim de se
68
ter uma compreensão mais profunda na interpretação do texto. A palavra oculis (= olho,
visão), em outra acepção possível, denota a visão com os olhos da mente, o que remete
ao verbo médio grego (= ver em espírito ou com o olho da mente).
Portanto, é preciso que Enéias busque o ramo de ouro, compenetrado em si mesmo, em
seu espírito piedoso. Isso lhe facultará o encontro com seu pai, haja vista ser este
sentimento de devoção e de respeito aos antepassados, o que impulsiona o herói a
enfrentar tamanho perigo.
Depois que sabe da morte de um dos companheiros, Enéias segue rumo ao
acampamento. Lá chegando, fica ciente que se trata de Miseno. Companheiro de Heitor,
junta-se a Enéias, depois que aquele morre pelas mãos de Aquiles. Era exímio
trombeteiro, mas comete um desatino ao desafiar Tritão, divindade marinha tocador de
búzio, dizendo-se mais habilidoso do que qualquer imortal. Para castigá-lo, o deus
surpreende-o com uma vaga, e o afoga. É a ele que a Sibila se refere como a causa de
contaminação para a frota. Por pertencer ao culto sagrado dos Penates troianos, o
descomedimento ( ) que comete contra Tritão atinge a todos. A hybris diz respeito
a um excesso cometido por um mortal, a qual sempre acarreta uma punição. A
ultrapassagem do , da medida, do limite a que os homens devem se submeter,
conscientes da sua inferioridade em relação aos deuses, provoca o , a mancha
que atinge aqueles vinculados por um mesmo laço religioso, por deuses em comum. É
necessária a purificação dessa contaminação através de rituais que expiem tal
procedimento.
A morte de um herói demanda que seja sepultado pelos companheiros. Caso não
ocorram os ritos fúnebres e o devido sepultamento, significa incorrer em ato de
impiedade, acarretando malefícios que contaminarão todos aqueles que estiverem
ligados pelos mesmos laços religiosos. Desse modo, Miseno é sepultado logo que
Enéias, retornando da entrevista com a Siblila, e percebe o companheiro morto:
72
GLARE. op.cit., p. 1238.
69
Nec minus interea Misenum in litore Teucri
flebant et cineri ingrato suprema ferebant.
principio pinguem taedis et robore secto
ingentem struxere pyram, cui frondibus atris
intexunt latera et feralis ante cupressos
constituunt, decorantque super fulgentibus armis.
pars calidos latices et aëna undantia flammis
expediunt, corpusque lavant frigentis et unguunt.
fit gemitus. tum membra toro defleta reponunt
purpureasque super vestis, velamina nota,
coniciunt. pars ingenti subiere feretro,
triste ministerium, et subiectam more parentum
aversi tenuere facem. congesta cremantur
turea dona, dapes, fuso crateres olivo.
postquam conlapsi cineres et flamma quievit,
reliquias vino et bibulam lavere favillam,
ossaque lecta cado texit Corynaeus aëno.
idem ter socios pura circumtulit unda
spargens rore levi et ramo felicis olivae,
lustravitque viros dixitque novissima verba.
at pius Aeneas ingenti mole sepulcrum
imponit suaque arma viro remumque tubamque
monte sub aërio, qui nunc Misenus ab illo
dicitur aeternumque tenet per saecula nomen.73
No meio tempo, os Teucros, na praia, choravam Miseno
e prestavam as últimas honras à cinza ingrata.
A princípio, erigiram uma enorme pira, abundante em carvalho seco
e madeira resinosa, cujas laterais cobrem com folhagem escura.
Erguem, na frente, ciprestes fúnebres
73
VERGILIUS. op.cit., Liber VI, 212-235.
70
e as adornam, no cume, com as armas fulgentes.
Parte prepara a água quente e os vasos de bronze que borbulham sobre as
chamas. Lavam e untam o corpo frio.
O pranto se faz. Então, põem o corpo sobre o leito fúnebre
e lançam em cima, as vestes púrpuras, traje familiar.
Parte levantou o pesado féretro, triste mister,
e, segundo o costume dos antepassados, voltando as costas, pegaram o
facho submetendo-o à pira. Todo o amontoado queima,
as oferendas de incenso, a carne dos sacrifícios, as crateras com o óleo
derramando. Depois que as cinzas caíram e a chama cessou,
lavaram com vinho os restos e a cinza sedenta.
Corineu, recolhendo os ossos, encerra-os em uma urna de bronze.
Três vezes passou água lustral em torno dos sócios,
aspergindo-os em leve orvalho, com um ramo de fecunda oliveira.
Purificou-os e disse as últimas palavras.
E o piedoso Enéias constrói um enorme túmulo para o companheiro
e põe as suas armas, o remo e a trombeta, ao pé de um alto monte,
que agora, por ele, é chamado Miseno, e que manterá,
através dos séculos, o eterno nome.
O funeral consiste em um ritual composto por etapas diversas. No Canto XXIII da
Ilíada,74
acontece o funeral de Pátrocles, morto por Heitor quando enfrentava as hostes
troianas vestindo as armas de Aquiles. Seu funeral tem a seguinte seqüência: construção
da pira com carvalho; deposição do corpo sobre a pira; sacrifício de ovelhas e de bois,
espalhando-se a gordura sobre o cadáver e dispondo a carne ao seu redor;
posicionamento de duas ânforas ao lado do leito, uma com óleo, outra com mel;
sacrifício de cães e de cavalos atirados à chama da pira; sacrifício de doze mancebos
troianos, mortos com o bronze e em seguida lançados à chama; lavagem dos ossos
depois de queimado o corpo para serem depositados em uma urna de ouro; construção
do túmulo para guardar os ossos; e realização dos jogos em homenagem ao morto.
74
HOMER. op. cit., , 117-897.
71
Comparando o funeral de Pátrocles com o de Miseno, é possível perceber poucas
diferenças entre o rito funerário grego e o latino. Com relação ao ritual latino, a
diferença consiste apenas no ato de virar o rosto no momento de atear fogo ao corpo,
apontado no verso123. Este costume dos antepassados repousava na crença de que, no
instante em que o corpo era submetido às chamas, a alma do morto se retirava, e para
não presenciar esse acontecimento, virava-se o rosto.
Após a realização do funeral, e já tendo encontrado o ramo de ouro, Enéias e a
Sibila seguem rumo ao Averno, lago que fica na entrada da caverna que leva ao mundo
subterrâneo, cujo odor pútrido impedia os pássaros de voarem sobre ele75
. Em lá
chegando, oferecem o sacrifício aos deuses infernais, a fim de abrandar-lhes a ira:
quattuor hic primum nigrantis terga iuvencos
constituit frontique invergit vina sacerdos,
et summas carpens media inter cornua saetas
ignibus imponit sacris, libamina prima,
voce vocans Hecaten caeloque Ereboque potentem.
supponunt alii cultros tepidumque cruorem
succipiunt pateris. ipse atri velleris agnam
Aeneas matri Eumenidum magnaeque sorori
ense ferit, sterilemque tibi, Proserpina, vaccam;
tum Stygio regi nocturnas incohat aras
et solida imponit taurorum viscera flammis,
pingue super oleum fundens ardentibus extis.76
Aqui, primeiro, quatro novilhos de pêlo negro a
sacerdotisa escolheu e verteu-lhes vinho na fronte,
e tirando os sumos pêlos entre os cornos,
deposita-os no sagrado fogo, primeiras oferendas,
invocando em alta voz Hécate, poderosa no céu e no Érebo.
75
Daí o significado do nome proposto pelo próprio Virgílio. Averno seria proveniente do grego ,
significando sem pássaro (VI, 236-242). 76
VERGILIUS. op. cit., 243-254.
72
Outros cravam as facas por baixo e recolhem
o tépido sangue em páteras. O próprio Enéias fere com a espada
uma ovelha de lã negra para a mãe das Eumênides, a Noite
e para a sua grande irmã, a Terra, e para ti, Prosérpina, uma vaca estéril.
Depois ergue altares noturnos ao rei do Estige, Plutão
e põe sobre o fogo o corpo inteiro dos bois,
vertendo óleo pingue sobre as vísceras ardentes.
O sacrifício feito às divindades pertencentes aos Infernos, difere daquele oferecido
aos deuses superiores,77
os quais recebem a oferenda de animais de pêlo branco,
ocorrendo o sacrifício, , sobre um altar, , durante a luz do dia. Consiste
em uma oferenda aos deuses e o mesmo tempo, um repasto de festa para os homens.
Quanto ao sacrifício da vítima, a cabeça do animal é levantada, e seu pescoço cortado
de modo que o sangue, a princípio, esguiche para o alto, e depois seja recolhido em um
recipiente. O animal é aberto, e suas vísceras extraídas, para que sejam consultadas.
Caso os deuses sejam propícios, a carne é logo devorada, depois de retalhada e assada.
Os ossos cobertos com a gordura, são queimados para que a fumaça suba em direção
aos deuses, seu alimento78
.
Já o sacrifício feito às divindades subterrâneas, demanda que a vítima tenha pêlo
negro e seja completamente carbonizada – holocausto79
, sendo vedado ao homem
consumir sua carne. Deve ser realizado durante a noite, e em lugar do altar, cava-se um
fosso, para que o sangue, após o corte no pescoço do animal, que tem a cabeça voltada
para baixo, escorra para dentro da terra.
Tanto o sacrifício feito por Odisseu80
, quanto o realizado por Enéias segue os
requisitos exigidos para o cumprimento do ritual de sacrifício aos deuses infernais, a
saber, libação de vinho; imolação de vítimas com pêlo negro; degola do animal,
77
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. Joana Angélica D‟Avila Melo. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. 78
V. Ilíada, Canto I, v. 37-42, na prece de Crises a Apolo, e v. 62-67, na fala de Aquiles, sugerindo a
consulta a um adivinho, para saber o motivo de Apolo ter enviado ao acampamento a peste que dizimava
o exército grego. 79
Queima por inteiro, no grego. 80
HOMER. op.cit. , 23-50.
73
direcionado para baixo de modo que o sangue escorra rumo ao fosso; combustão total
do animal e súplica às divindades infernais.
Enéais oferece o sacrifício a Hécate, deusa das encruzilhadas; às Eumênides,
comumente conhecidas por Fúrias, entidades vingadoras do crime parental; a
Prosérpina, identificada como Juno infernal, pois é a deusa soberana dessa região, assim
como Juno é soberana nas regiões superiores; e a Plutão, deus soberano dos Infernos.
Em seguida, queima o animal esfolado em uma fogueira [Eneida, VI, v.52, aras
nocturnas ( )] erigida a Estige,81
rio dos Infernos. Estige é a filha mais velho de
Oceano e Tétis. Durante a Titanomaquia, ela socorre Zeus, contribuindo para a sua
vitória. O deus a recompensa, tornando-o abonador dos juramentos solenes pronunciado
pelos deuses. Caso algum deles perjurasse, seria condenado a passar um ano inteiro em
estado cataléptico, sem beber do néctar, nem comer da ambrosia. Depois, por mais nove
anos, ficaria sem participar dos banquetes e festas do Olimpo, tal era o seu poder.
81
Ver Hesíodo, Teogonia, 383-403.
74
III. Análise do mito
1. As figuras míticas
As figuras míticas perpassam toda a Eneida, entretanto, no Livro VI, sua presença é
abundante, dado o perfil mítico, ritualístico e religioso da narrativa.
Antes de tratar das figuras míticas presentes no texto eleito para análise, façamos
uma contextualização, remetendo aos principais núcleos narrativos que compõem o
Livro VI. Chegando a Cumas,82
depois que parte de Drépano, onde realiza as honras
fúnebres ao pai, Anquises, Enéias alcança o antro da Sibila, sacerdotisa de Apolo. Lá,
ele admira as imagens gravadas nas paredes do templo: a terra de Gnosso, e a história
do Minotauro. Acates, companheiro de Enéias, chega acompanhado da Sibila, que
aconselha se faça uma sacrifício de sete novilhos de um rebanho indomado e outras
tantas ovelhas escolhidas. Depois de concluído os trabalhos, a sacerdotisa os leva para o
interior do templo. Ela é tomada pelo deus, que é questionado por Enéias sobre a terra
que lhe está destinada. Apolo prevê como será a chegada do herói ao Lácio. Em
seguida, ele pede a Sibila, já livre da posse de Febo, que o leve ao encontro de Anquises
nos Infernos, pois a sua alma o concita a ir vê-lo. Enéias faz o pedido apontando para
aqueles que também realizaram a , Orfeu, Pólux, Teseu, Héracles, pois,
assim como esses, ele também é descendente de Júpiter.
Eis a resposta da Sibila a Enéias:
“Sate sanguine divum,
Tros Anchisiade, facilis descensus Averno:
Noctes atque dies patet atri ianua Ditis ;
Sed revocare gradum superasque evadere ad auras,
Hoc opus, hic labor est….”83
82
Colônia de Calchis, cidade da Eubéia. 83
VERGILIUS. op. cit., Liber VI, 125-129
75
“Sangue gerado dos deuses,
Troiano filho de Anquises, fácil é a descida para o Averno:
noites e dias a porta do negro Dite está aberta;
porém, retornar o passo e chegar aos ares superiores,
este é o trabalho, este é o labor....”
Em seguida, ela lhe fala sobre os três requisitos necessários para que lhe seja
permitida a entrada no reino dos mortos, a saber, o ramo de ouro, dádiva para
Prosérpina; os funerais de Miseno; e um sacrifício, oferenda aos deuses dos Infernos.
Depois de cumpridas as tarefas e oferecido o sacrifício aos deuses infernais, já no
alvorecer do dia, Enéias e a Sibila se preparam para entrar no reino das sombras.
Ocorre, então, a invocação às sombras silenciosas (umbrae silentes); ao Caos (Chaos),84
Vazio primordial, anterior à criação, no tempo em que a ordem ainda não tinha sido
imposta aos elementos do mundo, mas, no poema, remete ao espaço tenebroso do
mundo subterrâneo; e a Flegetonte (Phlegethon), rio dos Infernos que, juntamente com
o Cocito, deságua no Aqueronte. O narrador os invoca, pois precisa da sua inspiração
para conseguir descrever as cenas que surgem à frente, haja vista o misto de admiração,
de temor e de pavor diante das maravilhas que se apresentam:
Di, quibus imperium est animarum, umbraeque silentes
et Chaos et Phlegethon, loca nocte tacentia late,
sit mihi fas audita loqui, sit numine vestro
pandere res alta terra et caligine mersas.
Ibant obscuri sola sub nocte per umbram
perque domos Ditis vacuas et inania regna:
quale per incertam lunam sub luce maligna
est iter in silvis, ubi caelum condidit umbra
Iuppiter, et rebus nox abstulit atra colorem.
vestibulum ante ipsum primisque in faucibus Orci
84
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2003.
76
Luctus et ultrices posuere cubilia Curae,
pallentesque habitant Morbi tristisque Senectus,
et Metus et malesuada Fames ac turpis Egestas,
terribiles visu formae, Letumque Labosque;
tum consanguineus Leti Sopor et mala mentis
Gaudia, mortiferumque adverso in limine Bellum,
ferreique Eumenidum thalami et Discordia demens
vipereum crinem vittis innexa cruentis.
in medio ramos annosaque bracchia pandit
ulmus opaca, ingens, quam sedem Somnia vulgo
vana tenere ferunt, foliisque sub omnibus haerent.
multaque praeterea variarum monstra ferarum,
Centauri in foribus stabulant Scyllaeque biformes
et centumgeminus Briareus ac belua Lernae
horrendum stridens, flammisque armata Chimaera,
Gorgones Harpyiaeque et forma tricorporis umbrae.85
Deuses, que tendes o império das almas, sombras silentes,
Caos e Flegeton, regiões que silenciam amplamente à noite,
seja permitido a mim, falar o que ouvi, e, com vosso consentimento,
revelar as coisas imersas na escuridão da terra profunda.
Obscuros, iam sob a solitária noite, através da sombra
e através das vagas moradias, vazio reino de Dite.
Tal é, através da incerta lua, sob luz escassa,
o caminho nos bosques, quando Júpiter mergulhou o céu
na sombra e a atra noite arrebatou a cor às coisas.
No mesmo vestíbulo, diante da entrada do Orco,
o Luto e os Tormentos vingadores puseram o leito.
As pálidas Doenças e a triste Velhice lá habitam,
o Medo e a Fome, indutora ao mal, e a torpe Pobreza,
85
VERGILIUS. op.cit., 264-289.
77
formas terríveis à vista, e a Morte e o Fadiga;
depois o Sono, irmão da Morte, e as Alegrias perversoras da mente,
e no limiar oposto, a mortífera Guerra,
e os tálamos férreos das Eumênides, e a Discórdia insensata,
a cabeleira de víbora, atada com fitas sangrentas.
No meio, um olmeiro opaco, ingente, estende seus ramos
e braços anosos, o assento que, comumente se diz,
os Sonhos vãos ocupam, e se fixam sob todas as folhas.
Além disso, muitas figuras monstruosas de várias feras,
os Centauros e Cilas biformes que habitam a entrada,
E o centímano Briareu e o monstro de Lerna,
guinchando horrivelmente, e a Quimera armada de chamas,
as Górgonas e as Hárpias, e a forma da Sombra com três corpos.
Após a invocação, Enéias e a Sibila iniciam sua caminhada através do mundo dos
mortos. A princípio, eles caminham pelo bosque sombrio, iluminado apenas pela luz
escassa da lua. Alcançam enfim, a entrada dos Infernos, metonimicamente denominado
aqui como Orco (Orcus)86
, pois este nome designa uma divindade infernal, ou até
mesmo Plutão. A estrutura do Orco assemelha-se a de uma construção romana, formada
pelo vestíbulo, 87
pátio externo de acesso à entrada principal de uma construção, e pelo
átrio,88
sala principal, situada logo em seguida à entrada das casas, no antigo mundo
romano. Era o lugar do fogo sagrado, dos altares dos deuses-lares e de distribuição dos
demais espaços.
No começo do vestíbulo Enéias e a Sibila encontram várias figuras representativas
da condição humana, alegorias dos males que assolam a existência do ser humano: o
Luto (Luctus), sofrimento, tristeza profunda por morte de alguém; os Temores
vingadores (ultrices Curae), remorso que atormenta a consciência sobretudo nos
últimos momentos de vida; as pálidas Doenças (pallentes Morbi), as doenças que
86
Para os gregos, orkos ( ) designa o grande juramento pelo Estiges, por determinação de Zeus,
segundo o que se encontra na Teogonia, 400. 87
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 88
Idem Ibidem
78
acometem os homens deixando-os fracos, e levando-os até mesmo à morte; a triste
Velhice (tristis Senectus), que traz a decrepitude do corpo; o Medo (Metus),
inquietação, receio angustiante diante de uma situação desconhecida ou de perigo; a
Fome indutora do mal (malesuada Fames), provocadora de males, que impele o homem
a cometer desatinos, e que o torna escravo das necessidades do corpo,89
a torpe Pobreza
(turpis Egestas), pobreza extrema, destituição total, repulsiva por levar o homem à
perda da dignidade, e da própria identidade; a Morte (Letum), portadora de destruição; o
Labor (Labos), causador de sofrimento pelo excesso de fadiga; o Sono (Sopor),
considerado um estado intermediário de morte, e por isso mesmo, irmão da Morte;90
as
Alegrias perversoras da mente (mala mentis Gaudia), a busca constante da satisfação
dos sentidos, dos prazeres do corpo, leva ao sofrimento da alma, pois é efêmera, e logo
surge a necessidade de mais. No limiar oposto à entrada, está a Guerra mortífera
(mortiferum Bellum), causadora do aniquilamento de muitos homens; o tálamo das
Eumênides (Eumenidum thalami), que recebem esse nome após o julgamento de
Orestes,91
em Atenas, mas anteriormente chamadas Erínias, identificadas com as Fúrias
romanas. Nasceram das gotas do sangue de Urano, mutilado por Cronos no episódio em
que lhe usurpa o poder.92
Eram elas que infligiam castigos àqueles que cometiam crime
parental, enlouquecendo-os. A Discórdia insensata (Discordia demens), identificada
com a Éris grega ( )93
, filha da Noite ( ), age sem refletir, levando o homem a
atos inconseqüentes. No átrio, encontra-se um olmeiro opaco (ulmus opaca), árvore
estéril,94
infrutífera ( ), sob cujas folhas pendem os Sonhos vãos (Somnia
vulgo), sonhos quiméricos enviados aos homens enquanto dormem. Também os
Centauros (Centauri),95
seres monstruosos, meio homem, meio cavalo; as Cilas
biformes (Scyllae biformes), monstros metade mulher, metade peixe; o monstro de
Lerna (belua Lernae),96
filha de Tífon e Equidna, é a serpente que Héracles matou em
89
Ver Homero, Odisséia, XVIII, 54-55, ( : estômago, produtor de males) 90
Ver Homero, Ilíada, XIV, 231, ( : Sono irmão da Morte) 91
ÉSQUILO. Orestéia, Eumênides. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2004. 92
HESÍODO. op. cit., v. 93
Idem ibidem, v. 225 94
Ver Homero, Odisséia, X, 510, ( : altas papoulas e
salgueiros que cedo perdem seus frutos) 95
Ver Homero, Odisséia, XXI, 295-304. 96
Ver Hesíodo, Teogonia, 306-318.
79
um dos seus doze trabalhos; a Quimera (Chimaera),97
monstro terrível, que solta
chamas pela bocae possui três cabeças, uma de leão, uma de cabra e uma de serpente.
Era filha, também, de Tífon e de Equida, foi morta por Belerofonte e seu cavalo Pégaso.
As Górgonas (Gorgones)98
, filhas de Fórcis e Ceto, divindades marinhas, eram três
seres com cabelos de serpente, entre elas Medusa, que foi morta por Perseu. As Hárpias
(Harpyiae),99
gênios alados, filhas de Taumas e Electra, uma oceânide. E Geríon,100
gigante de três cabeças, cujo corpo era triplo até as ancas, era filho de Crisaor e de
Calírroe. Foi morto por Hércules.
Diante dessas formas horrendas, Enéias desembainha a espada em sua direção, mas
a Sibila o adverte que se trata de almas sem corpos.101
Eles então avançam rumo ao
Aqueronte, onde se encontra um barqueiro chamado Caronte ( ), descrito como
um velho esquálido, com uma barba branca e maltratada caindo do queixo. Ele é o
responsável pela travessia das almas que foram sepultadas, a fim de que entrem no reino
de Plutão. Aqueles que não recebem sepultamento, permanecem nas margens do rio,
vagando por cem anos, até poderem fazer a travessia. São essas almas que Enéias
encontra às margens do Estige, e dentre elas está Palinuro, piloto da frota troiana, que
tivera o leme quebrado em uma noite de tempestade, caindo ao mar. Ainda não recebera
sepultamento, e ao vir Enéias, pede-lhe que o leve consigo na travessia, o que causa
horror à Sibila, fazendo-a interceder no diálogo dos dois, garantindo a Palinuro que em
breve seu corpo receberia as honras fúnebres, e o local de sepultamento chamar-se-ia
Palinuro em sua homenagem. Essa notícia causa alegria à alma do piloto, pois sabe que
será lembrado entre os vivos, remetendo tal episódio à importância concedida à
conquista do status de ausente entre aqueles com os quais conviveu, garantindo assim a
sua lembrança pelas gerações vindouras.
Quando Caronte percebe Enéias perto das margens, repreende-lhe a presença, visto
ser ali o lugar não para os vivos, mas onde imperam as Sombras, e diz que,
anteriormente, já havia transportado a seu malgrado, Hércules, Teseu e Piríto. A Sibila
tenta convencê-lo a atravessá-los, apresentando o caráter piedoso e o valor guerreiro de
Enéias, mas o barqueiro apenas aquiesce depois que ela lhe mostra o ramo de ouro. Ele 97
Ver Hesíodo, Teogonia, 319-325. 98
Ver Hesíodo, Teogonia, 274-286. 99
Ver Hesíodo, Teogonia, 266-269. 100
Ver Hesíodo, Teogonia, 287-294. 101
Ver Homero, Odisséia, XI, 48-50.
80
então aproxima a barca da margem e permite que eles subam. Chegados a outra
margem, encontram Cérbero (Cerberus),102
chamado “cão dos Infernos”, que protege a
entrada do mundo dos mortos, impedindo que lá os vivos entrassem, e que de lá os
mortos saíssem. A Sibila, para amansá-lo, joga-lhe bolos soporíferos, fazendo com que
ele adormeça. Enéias transpõe a entrada, e primeiramente vê o “campo dos inocentes”,
onde Minos, juiz dos Infernos, convoca a Assembléia dos Silenciosos. Em seguida, vem
o “campo das lágrimas”, lá está Dido, que o ignora e vive com Siqueu. Mais à frente, o
“campo dos heróis”, onde Enéias encontra Deífobo, filho de Príamo, marido de Helena
depois de Páris; o herói foi morto por ela na noite em que os gregos invadiram Tróia.
Enéias e a Sibila continuam a caminhar em direção ao ponto em que a estrada se
bifurca. À esquerda está o Tártaro; e à direita, os muros do palácio de Plutão, o qual
leva aos Campos Elísios,103
local situado nos confins da terra, onde nunca há frio nem
calor, mas sempre uma brisa suave que sopra constantemente. É o lugar em que se
encontra Anquises, pai de Enéias, e para onde vão poucos privilegiados, sobretudo os
heróis cuja /Uirtus foi proeminente durante a vida.
Quando Enéias passa em frente aos portais de Dite, o herói purifica-se, borrifando
água fresca sobre si, e deposita o ramo de ouro no limiar, presente para Prosérpina.
Chegam, enfim, ao local destinado. Enéias avista Anquises, em um vale verdejante,
contemplando a sua descendência, que formará a glória do império romano.
O encontro entre pai e filho liga-se a três momentos da narrativa para o
estabelecimento de Enéias como mito fundador das bases da futura Roma, todos já
referidos anteriormente. A fala de Júpiter104
em relação à soberania do futuro império
romano; e o passeio com Evandro através dos sítios em que Roma será construída,
juntamente com a representação no escudo de Enéias, feito por Hefestos, da história de
Roma.105
Júpiter profetiza, Anquises homologa e Evandro juntamente com a
representação no escudo confirma a destinação e a perenidade do herói,
metonimicamente, a do próprio império.
102
Ver Hesíodo, Teogonia, 310-312. 103
Ver Homero, Odisséia, IV, 563-569 (Primeira referência aos Campos Elísios. Eles são destinados a
Menelau, por ser marido de Helena e, conseqüentemente, genro de Zeus); e XI, 539 (Odisseu encontra o
de Aquiles no Hades, mas na verdade, ele reside nos Campos de Asfódelo,
lugar destinado aos heróis após a morte). 104
VIRGIL. op.cit., Book I, 254-296. 105
Idem ibidem, Book VIII, 626-728
81
2. As predições de Anquises: a glória romana
Enéias e a Sibila são conduzidos por Anquises até um grupo de almas que se
preparam para reencarnar, entre elas, encontram-se os descendentes de Dárdano, que
constituirão a raça itálica. Elas beberão da água do rio Letes, a fim de esquecer o
passado e poder voltar para corpos.
Anquises aponta cada um dos que comporá o cenário para a edificação da glória
romana, desde Alba Longa, fundada por Iulo, filho de Enéias com Creúsa, até o Império
de Augusto.
Creúsa ~ Enéias ~ Lavínia
Iulo Sílvio Sílvio Enéias Latino Alba
Cápeto Tiberino Agripa Alades Aventino Procas Amúlio
Númitor
Durante trezentos anos, a raça de Enéias exerce o poder sobre Alba Longa. Iulo
entrega o governo de Lavínio, cidade fundada por Enéias após seu casamento com
Lavínia, filha de Latino, rei do Lácio, a Silvio, seu meio-irmão, filho de Enéias e
Lavínia, e funda Alba Longa. Após sua morte, não tendo herdeiro, deixa o governo da
cidade para Silvio, dele provindo os reis que ali dominarão.
Procas, décimo quarto rei de Alba Longa, tem dois filhos, Amúlio e Númitor. Ao
morrer, deixa a herança real dividida em duas partes. A primeira consiste nos tesouros, a
segunda, no reinado. Númitor escolhe o poder, e Amúlio, os tesouros. Mas não demora
para que este usurpe o poder do irmão e o expulse do reino, matando, em seguida, o
sobrinho, e condenando a sobrinha, Rheia Silvia, a vestal, sacerdotisa de Vesta.106
Dela
provém Rômulo, fundador e primeiro rei de Roma. Ele a fará grande, e reinará por trinta
e sete anos (753 a.C-716 a.C.).
106
Quanto à explicação do mito sobre a fundação mítica de Roma, ver I Capítulo .
82
Numa Pompílio é o segundo rei de Roma (716 a.C-673 a.C). Esteve no poder por
quarenta e três anos e, segundo a tradição, seu reinado foi pacífico. Foi o organizador da
religião. Considerado sacerdote, os romanos lhe atribuem muitas das suas instituições
religiosas. Concede à cidade de Roma seus fundamentos místicos.
Tulo Hostílio é o terceiro rei de Roma (673 a.C.-641 a.C). Reinou por trinta e dois
anos e, segundo a tradição, seu governo foi um período de guerras constantes, inclusive
contra Alba Longa.
Anco Márcio é o quarto rei de Roma (641 a.C-617 a.C). Caracterizado como bom e
sensível ao favor popular. Reinou por vinte e quatro anos.
Tarquínio Prisco é o quinto rei de Roma (617 a.C-580 a.C). Reinou por trinta e sete
anos. É-lhe atribuída a construção do Templo de Júpiter no Capitólio. Ele foi
assassinado pelos filhos de Anco Márcio,
Sérvio Túlio é o sexto rei de Roma (580 a.C-536 a.C). Reinou por quarenta e quatro
anos e foi o primeiro rei sem ser eleito pelo povo, escolhido com o consentimento do
Senado. Criado como escravo, chegou ao reino, pela vontade de Tarquínio Prisco. Foi
assassinado por Lúcio Tarquínio, dito o Soberbo. Segundo a lenda, era filho de Vulcano
e de uma escrava.
Tarquínio Soberbo é o sétimo e último rei de Roma (536 a.C-511 a.C). Arrogante e
prepotente, é um rei abusivo. Seu filho, Sexto, ultrajou Lucrécia e esta suicidou-se,
depois de contar o fato ao marido, Lúcio Tarquínio Colatino, sobrinho de Tarquínio
Prisco. Este fato resultou em uma insurreição e na expulsão dos Tarquínios de Roma. É
o fim da Monarquia (520-509 a. C.).
Depois de se referir ao reis romanos, Anquises discorre sobre cônsules e demais
figuras eminentes que compõem o cenário da republica romana.
Bruto (Lucius Junius Brutus), sobrinho de Tarquínio Soberbo, é o fundador da
república. A fim de não ser morto pelo tio, fingiu-se de idiota. Depois do ultraje a
Lucrecia, chefiou o levante contra os Tarquínios e libertou Roma. Foi um dos primeiros
cônsules romanos. Segundo a tradição, matou os próprios filhos que queriam recolocar
os Tarquínios no poder. A monarquia durara duzentos e quarenta e quatro anos.
Há pelo menos dois Décios. Publius Decius Mus, cônsul romano na época da
Guerra Latina de 340 a. C. Fez a vitória pender para o seu lado, depois que se
comprometeu com o inimigo a lutarem ambos até a destruição. E seu filho, de mesmo
83
nome, que desempenha papel semelhante na batalha de Sentino (290 a. C.), contra os
Samnitas. Ambos foram famosos por sua devoção a Roma.
Também há dois Drusos. O primeiro, Marcus Livius Drusus, era Tribuno da Plebe
em 122 a. C. e partidário da Aristocracia contra Gaio Graco. O segundo, seu filho, foi
Tribuno da Plebe me 91 a. C., autor de várias medidas democráticas, dentre elas a
concessão do voto aos aliados italianos. A rejeição de sua proposta deu início à Guerra
Social ou Marsiana (90-88 a. C.). A guerra não teve vencedor, mas concedeu cidadania
a todos os povos italianos.
Torquato (Titus Manlius Imperiosus Torquatus) é o romano que resistiu à invasão
dos gauleses, em 361 a. C. Recebeu o nome de Torquato ao derrotar em um combate
singular um gaulês gigantesco e arrancar-lhe o colar (torquis) que usava como
ornamento. Na Guerra Latina de 340 a. C., os cônsules, Torquato um deles, proibiram o
combate singular. Tinha o sobrenome de Imperiosus por sua severidade, marca da
família.
Camilo (Marcus Furius Camillus) foi um grande estadista e general romano (séc. IV
a. C.). Conquistou Velos (395), mas foi exilado sob acusação de ter-se apropriado de
parte dos despojos. Ao ser chamado de volta a Roma, expulsou os gauleses de Breno107
,
subjugou os Volscos e os Equos, e pôs fim às guerras civis na época das Rogações
Licínias (367). Derrotou por duas vezes os gauleses invasores, foi por cinco vezes
Ditador e reformou a organização militar romana.
O Sogro faz alusão a Júlio César, cuja filha, Júlia (morta em 54 a. C.), era casada
com Pompeu Magno, um dos integrantes do Primeiro Triunvirato (60-48 a. C.). Os
outros dois eram o próprio César e Crasso (morto em batalha contra os Partos, em
Carras, no ano 53 a. C.).
O Genro remete a Pompeu Magno. Após dominar a Gália (58-50 a. C.), Júlio César
volta à Itália (50 a. C.) e marcha sobre Pompeu, que foge (49 a. C.). Em Roma, César é
nomeado Ditador (49 a. C.) e eleito Cônsul para o ano de 48. O cerco a Pompeu começa
em abril de 48, culminando com a sua derrota em Farsália, Grécia, em junho desse
mesmo ano. Em setembro de 48, Pompeu é assassinado no Egito, a mando de Ptolomeu
XIII, com a intenção de agradar a César, que recebe a cabeça do ex-mandatário numa
bandeja. Em outubro de 45 a. C., César está em Roma. Em janeiro do ano seguinte é
107
A tomada de Roma pelos gauleses de Breno se dá em 390 a. C.
84
Imperator (título conferido ao general vitorioso, dotado do imperium, o direito de
comando superior, militar e jurisdicional, durante um ano), Cônsul e Ditador pela quinta
vez. Em fevereiro de 44, lhe é conferida a Ditadura perpétua e, embora tenha recusado a
coroa real, por ocasião das Lupercais (15 de fevereiro), César é assassinado em 15 de
março de 44 a. C.
Júlio César acreditava ser descendente de Vênus, através de Iulo, o filho de Enéias.
Ele era, portanto, membro de uma das mais famosas famílias romanas, a Gens Iulia.
O triunfador sobre Corinto,108
seria Lucius Mummis, que destruiu Corinto, em 146
a.C. O outro109
mencionado, que destruirá as cidades gregas, seria Lucius Aemelius
Paullus, derrotou Perses, em 168 a.C., último rei da Macedônia, que clamava ser
descendente de Aquiles. Construiu a primeira biblioteca particular de Roma. Ele era o
pai de Cipião Emiliano.
Catão é Marcus Porcius Cato (234-144 a. C.), dito Catão, o Censor. Combateu na
segunda Guerra Púnica (218-202 a. C.), foi tribuno militar sob Fábio Máximo. Cônsul
em 195, veio-lhe a fama como Censor em 184 a. C. Propunha uma reforma moral, com
o combate ao luxo e à extravagância dos ricos, foi contra a disseminação da cultura
grega e pregou sistematicamente a favor da destruição de Cartago.
Cosso é Aulus Cornelius Cossus, romano que, em 437, matou o rei etrusco
Tolúmnio e conquistou os Spolia Opima (são os despojos de honra, armas tomadas por
um general romano ao comandante das tropas inimigas, após derrotá-lo em combate
singular).
Gracos remete aos irmãos Tibério Semprônio Graco (morto em 133 a. C.) e Gaio
Semprônio Graco (morto em 121 a. C.). Filhos de Tibério Graco, ilustre Pretor (o que
vai à frente na guerra, prae itor). Eram sobrinhos de Cipião, o Africano, por parte da
mãe, Cornélia. Buscaram solucionar a crise econômica resultante do fracasso da
administração de terras.
Cipiões (raios de guerra, flagelos da Líbia) refere-se aos dois Cipiões mais
importantes da história de Roma. Cipião Africano Maior (Publius Cornelius Scipio
Africanus Major, 236-189 a. C.), vencedor de Aníbal, o Cartaginês, na batalha de Zama,
em 202 a. C., o que determinou o fim da segunda Guerra Púnica.
108
VI, 836 109
VI, 837.
85
O segundo é Cipião Emiliano (Publius Cornelius Scipio Aemilianus, 185-129 a. C.),
dito Cipião Africano Menor. Filho de Emílio Paulo, com quem lutou em Pidna (168 a.
C.). Eleito Cônsul em 148, sitiou Cartago e a destruiu em 146 a. C. Tal fato determinou
o fim da terceira Guerra Púnica (148-146 a. C.) e permitiu a anexação da África.
Fabrício alude a Gaius Fabricius Luscinus (século III a. C.). Era o paradigma da
honestidade e da frugalidade. Resistiu a todas as tentativas de suborno de Pirro, rei do
Épiro, a quem foi mandado como embaixador (280-279 a. C.). Teria revelado a Pirro,
em 278, um complô de seu médico para envenená-lo.
Serrano (?): Marcus Atilius Regulus, Cônsul em 267 e 252 a. Em 252, foi um dos
comandantes da expedição romana à África, por ocasião da primeira Guerra Púnica
(264-241 a. C.). Derrotado pelo espartano Xântipos, foi capturado. Morto em Cartago
em 251 a. C.
Fábio e Máximo: Quintus Fabius Maximus, general romano famoso da época das
guerras Samnitas (343-304). Cônsul em 295, derrotou, em Sentino, Samnitas e
Gauleses. Era cognominado Rulo ou Ruliano.
Fabius Maximus, Cunctator, dito o Contemporizador. Recuperou Tarento aos
cartagineses, em 209 a. C. Tinha uma política de perseguir e molestar as forças de
Aníbal.
Marcelo faz referência a dois Marcelos. O primeiro, Marcus Claudius Marcellus,
situa-se no século III a. C., trata-se do famoso general romano que brilhou na vitória de
Clastidium contra os gauleses, em 222, o que permitiu a submissão da Gália Cisalpina
(219). Foi determinante na campanha de Canas (216), quando Roma foi derrotada por
Cartago, mas capturou Siracusa em 212. Emboscado pelos cartagineses, foi morto em
208 a. C.
Na vitória contra os gauleses, conquistou os Spolia Opima, por matar o rei gaulês
com as próprias mãos110
.
O segundo é Marcellus, filho de Gaius Marcellus e Octavia, irmã de Augusto.
Nasceu em 43 a. C. e foi adotado por Augusto em 25, casando-se com Júlia, filha do
110
Spolia Opima são os despojos de honra, armas tomadas por um general romano ao comandante das
tropas inimigas, após derrotá-lo em combate singular. Os spolia foram conquistados três vezes na história
de Roma: por Rômulo, na vitória sobre Acron, rei dos ceninenses, nas hostilidades supervenientes ao
rapto das sabinas (v. Tito Lívio, I, X); por Aulo Cornélio Cosso, que em 437 matou o rei etrusco
Tolúmnio, e por Cláudio Marcelo, que matou o gaulês Viridomaro, em 222.
86
imperador, sua prima. Morreu dois anos depois, em 23. Jovem promissor, sua morte foi
considerada uma perda nacional.
Depois que Anquises tranqüiliza Enéias acerca do futuro da nação vindoura,
adverte-o das guerras e vicissitudes que terá pela frente, quando chegar ao Lácio. Em
seguida, Enéias e a Sibila saem dos Infernos pela porta de marfim.111
Havia duas portas
dos sonhos, uma feita de chifre de boi, pela qual passavam os sonhos verdadeiros, e
outra de marfim, a dos sonhos falsos. Tal atribuição contradiz o argumento do Livro VI,
as predições de Anquises, que, juntamente com o Livro I, a fala de Júpiter, e o Livro
VIII, o passeio pelos sítios da futura Roma e a descrição do escudo de Enéias, reúne
elementos suficientes para comprovar a glória de Roma. Portanto, é preferível ver a
introdução de tal episódio por Virgílio, na narrativa, como fruto de uma crença popular
que dizia saírem os sonhos falsos, para os homens, até a meia-noite, e que depois disso,
os sonhos seriam verdadeiros. Saindo Enéias e a Sibila pela porta de marfim,
significaria que eles permaneceram nos Infernos até a meia-noite. 112
A viagem teria
durado um dia inteiro, desde a madrugada até a meia-noite, o que condiz com a
advertência da Sibila a Enéias113
em relação ao passar das horas, quando, tendo
encontrado a alma de Deífobo, marido de Helena depois que Páris morre, o herói leva o
tempo a conversar despreocupadamente.
111
Homer. op. cit., XIX, 562sgs 112
VOLPIS. op. cit., p.194. 113
VI, 537.
87
IV. Conclusão
A proposta do trabalho foi fazer um estudo sobre o Livro VI da Eneida, de Virgílio,
a partir da categoria do herói concernente à Pietas romana, tendo em vista a função de
Enéias como mito fundador, sobretudo das bases míticas da futura Roma, destinada a
ser soberana e senhora do mundo.
Tu regere imperio populos, Romae, memento
(hae tibi erunt artes), pacique imponere morem,
Parcere subiectis et debellare superbos.114
Tu, Romano, lembra-te de guiar os povos sob teu poder,
(estas serão tuas artes), impor o meio da paz,
Poupar os sujeitos e debelar os soberbos.
O trecho acima diz respeito ao fim da fala de Anquises no episódio em que, no
mundo dos mortos, ele descreve a Enéias a sua descendência, responsável pela
soberania e glória da futura Roma. Suas palavras reúnem a essência do império
idealizado por Otávio Augusto, e que o poema de Virgílio busca representar, apoiando-
se nas bases mítica, religiosa e histórica da tradição romana. Há três momentos
específicos dentro da epopéia, que dão suporte a essa idéia, e que formam o tripé sobre
o qual a narrativa está estruturada.
O primeiro diz respeito ao episódio em que Vênus, chorosa pelo fato de os troianos
estarem sofrendo tantas desditas, interpela Júpiter acerca do destino devido aos troianos,
de cujo sangue sairia uma raça soberana sobre outros povos, e de glória imorredoura.
Júpiter, então, tranqüiliza a deusa e profetiza o que irá acontecer à raça troiana,
discorrendo sobre a fundação mítica de Roma, a sua expansão e conquistas pelo
Mediterrâneo, até o estabelecimento a Pax Romana no império de Augusto.
O segundo momento diz respeito ao encontro de Enéias com Anquises nos Infernos.
Com o intuito de tranqüilizá-lo quanto ao futuro glorioso de Roma, o pai lhe mostra os
114
VI, 851-853.
88
personagens eminentes, que contribuirão para a conquista da soberania romana,
homologando-lhe, desse modo, a função de Pater Familias, de pai da pátria refletido na
figura de Augusto.
O terceiro momento diz respeito ao passeio de Enéias com Evandro, em que este lhe
mostra os sítios da futura Roma. Dentre os locais apontados estão a Porta Carmental,
uma das portas de Roma, ao sul do Capitólio; o Lupercal, caverna existente no Palatino,
onde se supunha que Rômulo e Remo haviam sido alimentados pela loba; e o Capitólio,
onde o templo de Júpiter foi construído. Evandro convida Enéias a aceitar a
simplicidade do seu reino, desprezando a opulência e a riqueza, o que remete à peculiar
simplicidade do próprio Augusto. Completando esse último episódio, há a representação
do escudo de Enéias, feito por Hefestos, deus artesão. Não ignorante do porvir, Hefestos
grava no escudo imagens representativas da história de Roma, sendo, portanto, delegada
a Enéias, a edificação das bases do futuro reino. Imagem bastante representativa dessa
idéia é o momento em que o herói, desconhecendo as figuras gravadas em seu escudo,
coloca-o nos seus ombros, sem saber que carrega o futuro dos seus descendentes.
A convergência desses quatro episódios confirma a glória soberana de Roma,
tomada como fim natural, proveniente de uma força maior, superior até mesmo a
Júpiter, o Destino. Enéias, mito fundador das bases da futura Roma, coaduna o ideal
romano da Pietas (Respeito pela devoção religiosa), da Fides (Confiança na palavra
dada) e da Virtus (Força guerreira), tripé sobre o qual se fundamenta o Império Romano.
Diante desse panorama, fica clara a inexauribilidade da Eneida quanto a estudos e
trabalhos, os quais contribuirão valorosamente para os estudos clássicos.
89
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