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Antonio David Cattani[org.]
RIQUEZA E DESIGUALDADE NA AMÉRICA LATINA
Grandes discussões foram travadas sobre as condições do
crescimento económico desigual das nações, e pensadores foram
alçados à posição de referência incontornável na questão da justiça
e das capacidades individuais em sistemas económicos falsamente
livres e concorrenciais. Com frequência os estudos de estratificação
social desconsideram a importância dos segmentos abastados (os
ricos) por estes serem numericamente insignificantes.
O trabalho desenvolvido pelo grupo de pesquisa Riqueza e
Desigualdade na América Latina busca preencher este lapso. Os
pressupostos que animam essa busca de conhecimento sobre os
setores dominantes dizem respeito à estrutura social, a acumulação
de riqueza e à concentração das fortunas. As novas perspectivas
analíticas focadas na posse da riqueza substantiva e nos processos
relacionais decorrentes disto permitirão desvelar as raízes das
desigualdades e, sobretudo, entender como operam as forças que
estão impedindo a construção de um mundo mais justo e equânime.
8858011490008 / KJ U L L X sociolc
—editora^ VPq
© 2010 Editora Zouk
© Damien Hirst. All rights reserved / Licenciado por ATJTVIS, Brasil, 2010. Photo: Prudence Cuming Associates Ltd.
Projeto gráfico.
Revisão gramatical.
Tradução.
Editoração.
Imagem da capa.
Eduardo de Souza Xavier
Júlia Carolina de Lucca
Ernani Ssó
Anna Cláudia Bueno Fernandes l de Souza Xavier
Fotosearch 2010
Eduardo
Por respeito a todos os profissionais que trabalharam neste livro (autores, tradutores, revisores, diagramadores, editores, impressores, distribuidores e livreiros), pedimos que não seja feito xerox de nenhum trecho. A compra do exemplar, além de prestigiar estes profissionais, permite à editora manter este livro em catálogo e publicar novas obras que beneficiarão o público leitor.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ, Brasil)
R466
Cattani, Antonio David
Riqueza e desigualdade na América Latina / Antonio David Cattani (org.); Ernani Ssó) Porto Alegre, RS: Zouk, 2010. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8049-000-8
Ia edição
1. América Latina - Condições sociais. Latina. I. Cattani, Antonio David, 1952-
10-5097.
(tradução do espanhol
2. Riqueza - América Latina. 3. Desigualdade - América
CDD 980 CDU 94(8)
direitos reservados à Editora Zouk r. Garibaldi. 1329. Bom Fim. 90035.052. Porto Alegre. RS. f. 51.3024.7554
você também pode adquirir os livros da zouk pelo www.livrariazouk.com.br www.editorazouk.com.br
Sumário
Apresentação Desigualdades: construindo novas perspectivas analíticas 5 Antonio David Cattani
Expropriação de riqueza e neoiiberalismo na Argentina 11 Sonia Alvarez Leguizamón
A arquitetura politico institucional das desigualdades na Bolívia 35 Fernanda Wanderley
Brasil: os ricos desconhecidos 59 Marcelo Medeiros
Colômbia: bloco no poder e seletividade estratégica 79 Vilma Liliana Franco Restrepo
Paraguai: as opacas assimetrias 107 Milda Rivarola
Estado, mercado e desigualdades: um estudo comparativo Uruguai-Chile 121 Cristina Zurbriggen
A legitimação academica dos privilégios no Brasil 149 Jessé Souza
Riqueza: a dimensão ausente nos estudos sobre desigualdades 173 Pedro H. G. Ferreira de Souza
Clubes de golfe no México: espaços sociais, elites económicas e capital 199 Hugo Cerón Anaya
Tributação e reprodução da riqueza no Brasil: o caso do Imposto sobre Grandes Fortunas 227 Fabiano Burkhardt
Os executivos das transnacionais e a reprodução das desigualdades sociais 245 Marcelo Seráfico
For the Love of God: uma alegoria da riqueza contemporânea 263 Antonio David Cattani
Referências 269
Sobre os autores 295
Apresentação
Desigualdades: construindo novas perspectivas analíticas
Antonio David Cattani
A grandeza de uma nação não é medida pelo volume dos recursos
naturais extraídos ou pela quantidade de riqueza socialmente produzida,
mas pela sua justa repartição de forma a assegurar o bem comum.
Esta frase poderia ser extraída do pensamento de Montesquieu, de
Rousseau ou de outros Iluministas atentos às possibilidades do processo
civilizador. Diferentemente da filosofia elitista e do fatalismo cristão,
a filosofia política progressista sustenta que a pobreza é moralmente
inaceitável, pois ela atenta contra a dignidade dos indivíduos, degrada
a vida social e inviabiliza o desenvolvimento econômico equilibrado.
Ao longo dos últimos duzentos anos, incontáveis processos políticos
e econômicos buscaram coadunar crescimento econômico, democracia e
inclusão social de maneira a eliminar as carências materiais e simbólicas.
No início do século XXI, os resultados são gritantemente contrastantes.
De um lado, observam-se expressivos aumentos da produção de
mercadorias e serviços, da riqueza física, palpável, que amplia o conforto
e as possibilidades de realização humana. Uma virtuosa associação entre
engenhosidade, inovação e empreendedorismo faz com que, anualmente,
sejam extraídos e produzidos mais bens do que durante várias décadas
no passado recente ou, mesmo, ao longo de séculos no passado remoto.
O sucesso material do sistema capitalista é tão grande ao ponto de
representar uma séria ameaça à sobrevivência do planeta.
De outro lado, a pletora de mercadorias não beneficiou
equanimemente a população mundial. Os desequilíbrios ocorrem entre
nações, entre regiões e, de forma patente, entre indivíduos; a riqueza
em excesso e a pobreza extrema coabitam espaços comuns.
5
Expropriação de riqueza e neoliberalismo na Argentina
Sonia Alvarez Leguizamón
Pensar a desigualdade em termos do "polo" riqueza e não a partir
do "polo" pobreza na Argentina, como convida este livro, é um desafio
a que podemos chegar por diferentes caminhos. Por um lado remete
a mitos imaginários da construção da nação e a uma representação
da Argentina como um país rico que se expressa nos guias turísticos,
dicionários e enciclopédias. Entre os mitos que vinculam a Argentina
à riqueza está o da 'Argentina potência", expressão atribuída ao então
presidente Juan Domingo Perón em meados do século XX, vinculada
principalmente aos recursos energéticos e à bonança econômica que se
viveu nas décadas de 1940 e 1950. A 'Argentina, primeira do mundo" é
outro imaginário que se esgrimiu como o lugar de chegada para o qual
eram necessárias as reformas neoliberais, e que repetia o ex-presidente
Carlos Menem, autor da grande transformação neoliberal na década de
1990. O primeiro imaginário evoca um país que não só possui riquezas
materiais ou intangíveis de diferentes tipos, como também aquele
onde a grande maioria de sua população tem acesso a certo bem-estar.
No caminho para o "primeiro mundo", imaginário que sintetiza os
argumentos a favor das reformas neoliberais, ocorreu materialmente
uma das transformações mais profundas na estrutura social argentina,
inclinando-se as forças estruturais à concentração da riqueza e ao
empobrecimento de sua população. Este país, que é representado
continuamente como rico, viveu paradoxalmente, nestes últimos
trinta anos, um profundo processo de aumento da desigualdade, da
pauperização de sua população e uma diminuição relativa do bem-estar
que se havia conseguido em anos anteriores.
Os argumentos que sustentam o imaginário de riqueza são muitos.
Por exemplo, num estudo recente do Banco Mundial (World Bank, 2006)
11
A arquitetura político-institucional das desigualdades na Bolívia
Fernanda Wandurley
Desde 2006, com a chegada ao poder do Movimiento ai Socialismo
(MAS) de Evo Morales, a Bolívia despontou no panorama internacional
como um exemplo da emergente agenda social na América Latina
diante dos sinais de esgotamento do paradigma neoiiberal, marcado
por modelos únicos de reformas modernizadoras e pobres resultados
econômicos e sociais: baixo crescimento, desemprego crónico, aumento
da desigualdade e incapacidade de uma redução significativa e
duradoura da pobreza. São grandes as expectativas nacionais e
internacionais sobre a possibilidade de gestão de modelos alternativos
de desenvolvimento económico e social que articulem crescimento
sustentável da riqueza e incremento do bem-estar social, através da
diminuição da desigualdade e da erradicação da pobreza, num contexto
democrático e intercultural de convivência social.
Durante muito tempo, a resposta aos problemas da pobreza e
da desigualdade na América Latina se centrou exclusivamente nos
níveis de crescimento económico. Uma ampla literatura mostra a
inter-relação e retroalimentação entre variáveis socioeconômicas e
políticas na geração de dinâmicas virtuosas para superar a pobreza e a
desigualdade (Cardoso; Foxley, 2009). Apesar de os níveis debem-estar
social estarem associados ao ritmo de crescimento económico, este não
é o único fator. O modelo de gestão do desenvolvimento associado ao
padrão de crescimento define um conjunto de fatores institucionais
e políticos que desenham os regimes laboral e de bem-estar social e,
consequentemente, os mecanismos diretos e indiretos de distribuição
da riqueza e promoção da inclusão social.
O governo de Evo Morales, em seu segundo mandato, promete
aprofundar as reformas políticas e econômicas guiadas pelo propósito
35
Brasil: os ricos desconhecidos
Marcelo Medeiros
Um país desigual
A distribuição dos rendimentos no Brasil tem uma característica
peculiar, a segmentação da população em uma grande massa
homogénea de famílias de baixos rendimentos e uma reduzida elite
rica. Esta partição da sociedade entre ricos e não ricos é resultado de
uma organização social que produz e mantém desigualdades ao longo
do tempo. Há boas razões para se crer que as várias dimensões em que
existem desigualdades na sociedade brasileira se inter-relacionam e são
influenciadas por alguns elementos comuns. Neste sentido, estudar as
origens da riqueza no Brasil é um meio para se compreender não só o
que está na fonte das diferenças de situação econômica, mas, também,
na raiz de muitas outras desigualdades sociais.
A combinação do nível e da forma da distribuição de renda
no país é bastante peculiar. Furtado já notava, no início da década
de 1980, que a sociedade brasileira é uma sociedade com recursos
relativamente abundantes, porém fortemente segmentada, na qual
reduções expressivas nos níveis de desigualdade podem ser obtidas
por transferências das elites mais ricas para a massa de baixa renda
(Furtado, 1981). Desigualdade mais baixa implica, entre outras coisas,
muito menos pobreza. Logo, a miséria no país pode ser entendida sob
a ótica de um conflito distributivo persistente.
A redução da desigualdade na distribuição da renda familiar
per capita pode ocorrer, por um lado, como resultado de mudanças na
composição das famílias e, por outro, por alterações na forma como a
renda é distribuída entre as famílias. Estas mudanças se relacionam, por
um lado, a políticas de controle de população e, por outro, a medidas
59
Colômbia: bloco no poder e seletividade estratégica
Vilma Liliana Franco Restrepo
Historicamente, a Colômbia é um país caracterizado por um
dos coeficientes mais altos de desigualdade no continente. Era 2005,
segundo a CEPAL, tinha um coeficiente GINI de 0.584, superado
apenas pelo Brasil e a Guatemala; mas, enquanto o Brasil apresenta,
entre 2001 e 2009, uma tendência à diminuição da brecha, segundo os
informes de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, a Colômbia experimenta uma propensão ao
aumento da injustiça distributiva. Apesar desta condição, os governos
nacionais costumam dar todo ano as mais altas condecorações aos mais
abastados e poderosos empresários como mostra de agradecimento
por seu "sacrifício a favor da nação" e, no fundo, para reverenciá-los
por sua riqueza. Igualmente, o oligopólio dos meios de comunicação
produz e reproduz um relato que os exalta como honrados homens de
negócios e bons cidadãos, encarnação da generosidade e laboriosidade;
representa-os como superiores no sentido moral e destacados apenas
por causa de seus talentos (capacidade de discernimento, sensatez,
habilidade, astúcia), como homens que, sendo presumivelmente
modestos, "progridem" a partir de uma situação de igualdade de
oportunidades devido apenas à sua "inteligência superior", tenacidade
e sorte diferenciada. Mediante estas e outras ações se configuraram e
atualizaram o mito do acumulador, segundo o qual o enriquecimento
desses empresários além de legítimo é produto de um denodado
esforço individual; e a pobreza não é mais que a consequência da
vagabundagem ou do esbanjamento e falta de raciocínio de uma massa
de que sempre se suspeitará.
No entanto, como o entende Marx, "uma acumulação de miséria
é equivalente à acumulação de capital. Por isso, o que num polo é
79
Paraguai: as opacas assimetrias
Mllda Rivarola
Desigual como poucas - na região mais desigual do planeta
como é a América Latina - a sociedade paraguaia apresenta outra
característica infamante: ela continua negando a existência de suas
extremas pobrezas e riquezas, apesar da escandalosa visibilidade destas
assimetrias. Se as primeiras aferições de pobreza tiveram de esperar
a queda da ditadura do general Stroessner (1989) e a contribuição
financeira da cooperação internacional, a exígua literatura descritiva
ou analítica sobre as "classes opulentas" corrobora a frase do humorista
Noel Clarasó, segundo a qual "Deve haver alguma coisa ruim na riqueza
quando todo o mundo sente vergonha de confessar que a tem".
A histórica debilidade do Estado paraguaio contribui pouco
para salvar esta cegueira. País agroexportador - em que a terra é fonte
básica de renda e acumulação -, carece até hoje de um Cadastro de
propriedades rurais. Com uma carga tributária bem baixa para a região
(12,4% em 2008) e um alto nível de informalidade e evasão fiscal, as
estatísticas da Fazenda sofrem graves sub-registros e não têm caráter
serial, o que impede detectar ou seguir a evolução das grandes fortunas
no tempo.
A origem da riqueza
De acordo com análises recentes (PNUD, 2008), as desigualdades
baseadas na origem étnica são primordiais e persistentes: desde a
conquista, a elite espanhola (peninsular e crioula) "branca de linhagem"
se apropriou dos meios de produção (terra e índios) através da comenda,
submetendo a população de mestiços, índios e outras "gentes de cor"
à pobreza e à exclusão. Esta exploração foi dupla sobre as mulheres,
107
Estado, mercado e desigualdades: um estudo comparativo Uruguai - Chile
Cristina Zurbriggen
A elevada desigualdade de que padece a região se tornou um
tema de relevância nos estudos socioeconômicos da América Latina.
O Uruguai não foi a exceção. Apesar de o país apresentar níveis
relativamente baixos de concentração de renda em relação aos países da
região, é também um exemplo das dificuldades de se reverter a situação.
Isso põe em discussão a viabilidade dos modelos de desenvolvimento
levados adiante por estes países, ao mesmo tempo em que adquire
grande relevância neste contexto a importância do papel que deveriam
desempenhar o Estado e as políticas públicas em dito processo. No
entanto, há muitas interrogações abertas para se pensar uma estratégia
de desenvolvimento a partir da América Latina: qual é o caminho para
superar a estagnação econômica e a pobreza?, por que os países latino-
americanos não adotam as políticas públicas de que necessitam?, por
que não há políticas ativas em inovação?, e mais especificamente,
por que não há políticas sociais efetivas que revertam a desigualdade
social?, e como se articulam as relações de poder?
A partir dessas perguntas o presente artigo tenta analisar a situação
do Uruguai e a compara com a trajetória chilena nas últimas décadas
para colocá-la nos debates sobre as estratégias de desenvolvimento.
Uma das problemáticas mais debatidas hoje é como conciliar dinamismo
económico e igualdade, sobre a trilogia interdependente composta por
democracia e desenvolvimento, economia e desenvolvimento social. É à
luz desse olhar que se procura analisar os esforços e as dificuldades da
América Latina para se adaptar às mudanças do século XXI, construindo
sociedades capazes de reconstruir novas identidades que deem lugar a
maior desenvolvimento económico e bem-estar a seus cidadãos.
121
A legitimação acadêmica dos privilégios no Brasil
Jesse Souza
O campo científico vive da ilusão da imparcial idade. O
"especialista" em qualquer assunto sempre fala do "não lugar da
ciência", senão lhe faltaria autoridade e legitimidade para falar com
pretensão de universalidade e imparcialidade, como se ele próprio não
estivesse envolvido em uma trama de interesses mundanos conscientes
e inconscientes. Mostrar a parcialidade e o comprometimento de visões
científicas com interesses particulares é, portanto, uma forma clássica e
fundamental de exercer, num contexto onde apenas o especialista possui
autoridade para falar com legitimidade no espaço público, crítica social.
Ainda que todo ponto de vista seja "interessado", nem todos os interesses
são do mesmo tipo. Existem interesses comprometidos com a crítica de
uma realidade iníqua e existem interesses envolvidos na manutenção
dessa mesma realidade. Os interesses dominantes de certa época são os
construtores do "senso comum" que é o pano de fundo de todas as ações
e práticas sociais e institucionais em uma sociedade dada.
A ciência dominante em uma sociedade é também sempre,
portanto, uma versão erudita do senso comum dominante. Essa não
é uma característica brasileira. Como estamos todos imersos no senso
comum apenas alguns temas de cada vez podem ser retirados do mundo
do hábito não refletido e tornar-se " reflexão com método" que é o que as
ciências fazem (ou pelo menos "deveriam" fazer) ao fim e ao cabo. Mas
refletir com método, usando os recursos à disposição de cada tradição
científica, exige "afastamento", distanciamento e, acima de tudo,
"crítica" dos hábitos e disposições em relação aos comportamentos
não refletidos do senso comum. A ciência é uma espécie de reflexão
duplicada, por que reflete sobre o tema e sobre a forma como se reflete
sobre o tema.
149
Riqueza: a dimensão ausente nos estudos sobre desigualdades
Pedro H. G. Ferreira de Souza
Quando o tema é desigualdade, imediatamente pensamos na
renda e talvez, em menor escala, em status ocupacional. Com efeito, a
tradição de estudos consolidada nas últimas décadas não só privilegiou
estas duas dimensões de análise como também consagrou uma espécie
de divisão informal do trabalho acadêmico: economistas estudam a
distribuição de renda, sociólogos estudam a estrutura ocupacional
e, no limite, ambos compartilham a tarefa de estudar a desigualdade
educacional, que é comumente tomada como a principal variável
explicativa para as desigualdades de renda e de inserção ocupacional,
embora também seja ocasionalmente tomada como uma dimensão
autónoma e relevante das desigualdades sociais.
Por mais caricata que seja tal classificação, ela ilustra um traço
fundamental da produção académica do século XX: como escreve
Thomas Shapiro (2001), as ciências sociais - em particular a academia
norte-americana - sempre se sentiram muito mais à vontade para
analisar as dimensões já mencionadas do que para examinar o pilar
fundamental das sociedades capitalistas, a propriedade privada, em
seu sentido mais amplo.
No Brasil a situação não é diferente. Por exemplo, quando
Medeiros (2005a) tentou responder a pergunta crucial acerca do que
"faz os ricos ricos", o parâmetro fundamental na delimitação do seu
objeto de estudos foi justamente a renda domiciliar per capita. Isso faz
perfeito sentido, afinal, quem há de negar a centralidade da renda - e,
mais especificamente, da renda do trabalho - para a sobrevivência e o
bem-estar das famílias? No entanto, como o próprio Medeiros admite,
173
Clubes de golfe eo México: espaços sociais, elites econômicas e cepitel
Hugo Cerón Anaya
Os setores economicamente privilegiados no México - também
chamados de grandes empresários, homens de negócios, elites econômicas
ou grande burguesia - não são um objeto novo de estudo. As ciências
sociais se interessaram pelo tema desde meados do século XX (Kling, 1961;
Vernon, 1964). No entanto foi apenas nos anos 1970 que, tanto no mundo
anglo-saxão (Shafer, 1973; Purcell e Kaufman Purcell, 1977; Aubrey, 1979)
como no de fala hispânica (Arriola, 1976; Cordero, 1977; Derossi, 1977),
os estudos sobre empresários adquiriram maior visibilidade. Nos últimos
trinta anos os trabalhos sobre grupos com poder económico cresceram até
criar um corpo considerável de obras (Maxfield e Anzaldúa, 1987; Ganido,
1998; Luna, 2004; Camp, 1989; Salas Porras, 2002; Hernandez Rodriguez,
1990; Puga, 1993; Zabludovsky, 1995).
Embora o número de estudos publicados sobre grupos e indivíduos
economicamente privilegiados seja amplo, uma parcela muito alta
destes trabalhos se aglutinou em torno de uma grande linha de
pesquisa, isto é, a política. Muitos pesquisadores buscaram destrinchar
a relação entre empresários e processos políticos, por exemplo, como
é que estes atores se vincularam a projetos democráticos (Story, 1987;
Mizrahi, 1994), que tipo de representação política os empresários
desenvolveram (Hernandez Rodriguez, 1991; Schneider, 2002) e como
é que os homens de negócios transformaram sua relação com o estado
mexicano em diversos momentos históricos (Carrera Montesinos, 1992;
Valdês Ugalde, 1994; Bensabet Kleinberg, 1999), para mencionar alguns
exemplos. Em termos gerais estes estudos procuraram explicar como é
que os grupos com poder económico atuam como sujeitos políticos nas
múltiplas esferas da vida pública mexicana.
199
Tributação e reprodução da riqueza no Brasil: o caso do Imposto sobre
Grandes Fortunas
Fabiano Burkhardt
O Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) foi criado pela
Constituição de 1988, mas jamais chegou a ser cobrado. Há diferentes
explicações para que esse instrumento de distribuição da riqueza,
existente há tempos em países como a França, por exemplo, tenha
continuado a ser letra morta no Brasil durante mais de 20 anos. Este
artigo propõe-se a investigar uma das razões - provavelmente a
principal - para que o IGF tenha permanecido tanto tempo à margem
do sistema tributário brasileiro: a recusa das classes dominantes,
particularmente as classes dominantes empresariais, em aceitar a
imposição de um tributo criado justamente para distribuir a riqueza e
reduzir a desigualdade social no país.
Os debates que precederam a aprovação do IGF durante a
Assembleia Constituinte e a dura batalha travada desde então em torno
dos projetos de regulamentação do novo imposto são reveladores do que
se poderia chamar de conflito distributivo no Brasil. Há, claramente,
uma disputa entre diferentes setores da sociedade brasileira a respeito
de questões tributárias e de distribuição de renda e património. Pelas
características do IGF - um imposto incidente apenas sobre o património
dos indivíduos mais ricos -, o estudo de sua trajetória na história recente
do país oferece ao pesquisador a oportunidade de conhecer alguns
dos aspectos mais interessantes do conflito tributário latente entre os
diferentes grupos sociais e políticos do Brasil.
A tributação é, no Brasil, um mecanismo que contribui para
manter, quando não acentuar, a desigualdade de renda e património.
Estudo divulgado em 2008 pelo Instituto de Pesquisa econômica
227
Os executivos das transnacionais e a reprodução das desigualdades sociais
Marcelo Seráfico
São várias as publicações, hoje, voltadas ao mundo corporativo. As
páginas de algumas delas são dedicadas às práticas características dos
executivos das grandes corporações. Você S.A., Exame, Negócios, dentre
outras no Brasil, descrevem com frequência as escolhas, os valores,
os princípios e os estilos de vida próprios dos indivíduos ocupantes
de funções decisórias fundamentais em empresas cujas atividades
se articulam em vários países do mundo. Buscam identificar as best
practices, aquelas práticas entendidas como adequadas e explicativas
para o sucesso das empresas.
Isso redunda na divulgação de uma espécie de ethos necessário
a todo e qualquer postulante a funções executivas e na difusão da ideia
de que esses agentes são emblemas do capitalismo contemporâneo,
uma espécie de tipo ideal de "burguês".
O protagonismo e a visibilidade adquiridos pelos executivos são
fenómenos estreitamente relacionados à emergência e desenvolvimento
das grandes corporações transnacionais; são agentes fundamentais
da reprodução ampliada do capital participam diretamente da
racionalização do processo produtivo e da reprodução e ampliação das
desigualdades sociais contemporaneamente.
A expansão das corporações transnacionais
O protagonismo dos executivos está associado à internacionalização
do capitalismo, tendo avançado com a multinacionalização e se
consolidado com a globalização. Michalet (2003) propõe a existência
de três configurações principais do capitalismo. Segundo ele, essas
245
For the Love of God: uma alegoria da riqueza contemporânea
Antonio David Cattani
A ilustração utilizada para divulgar o seminário Riqueza e
Desigualdade na América Latina realizado em Porto Alegre em
novembro de 2009 causou um grande estranhamento e, em alguns
casos, reações de aversão. Uma caveira, mesmo cravejada de diamantes,
não traduz, para muitos, a ideia usual de riqueza e, menos ainda, de
desigualdade ou pobreza. O convencional seria um cartaz com imagens
de pessoas pobres ou de condições deploráveis de vida, tais como
moradias precárias, trabalhos insalubres ou situações de abandono.
O mundo da pobreza aparece sempre em cenas pungentes, por vezes
chocantes, em fotos nas quais, em alguns casos, o olhar não se sustenta.
No Brasil, esse universo corresponde ao registro gráfico do que é comum
observar-se nas ruas e nas favelas de todas as cidades.
As imagens da pobreza ilustrando cartazes e banners de
seminários e congressos sobre as desigualdades são de fácil obtenção.
As pessoas representadas não exigem direitos autorais e não estão
preocupadas em esconder sua situação; pelo contrário, deixando-se
capturar na foto, esperam dar visibilidade à sua condição e situação e,
assim, sensibilizar os outros.
A representação dos contrastes, da brecha social, dos abismos
que separam pobres e ricos também é fácil conseguir. Imagens com
mansões ao lado de barracos, com crianças esquálidas mendigando
próximo a carros de luxo ou com catadores de lixo em frente a lojas
para milionários reproduzem cenas comuns das metrópoles brasileiras.
As diferenças são imensas, mas são interpretadas como realidades
análogas a mundos distintos e desconectados, permitindo entender-se
que os diferentes grupos sociais não fazem parte do mesmo sistema de
dominação e dependência.
263
Sobre os autores
Antonio David Cattani
Professor Titular de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, UFRGS (Porto Alegre). Pesquisador 1-Ado CNPq (Brasília).
Pesquisador convidado no Latin American Center da Universidade de
Oxford 2010-2011. www.antoniodavidcattani.net
Cristina Zurbriggen
Doutora em Ciências Políticas pela Universidade Eberhard-Karls
de Tubingen (Alemanha). Professora de História, com licenciatura em
Sociologia pela Universidad de la República (Uruguai). Professora e
pesquisadora sobre Estado e Políticas Públicas no Instituto de Ciência
Política da Universidad de la República. Atualmente, é diretora do
Projeto Flacso-Uruguay. Autora de diversas publicações sobre Estado,
Governança, Gestão Pública e Políticas de Desenvolvimento.
Fabiano Burkardt
Graduado em Comunicação Social - Jornalismo, Mestre em
Sociologia pela UFRGS. Foi repórter e editor dos jornais Correio do
Povo e Zero Hora. Desde 2008, é diplomata e, atualmente, ocupa o
cargo de secretário da Embaixada do Brasil em Jacarta (Indonésia). É
doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS).
Fernanda Wanderley
Doutora em Sociologia pela Universidade de Columbia na cidade
de Nova Iorque; é pesquisadora e catedrática na Pós-graduação em
Ciências do Desenvolvimento da Universidade Mayor de San Andrés
(CIDES-UMSA) em La Paz, Bolívia. Realizou pesquisas e lecionou nas
; • ' • • ' . ; •
áreas de Sociologia econômica, Sociologia do trabalho, Género, Políticas
públicas, Redes sociais e Associatividade entre micro e pequenos
produtores. Autora de livros e artigos sobre estes temas.
Hugo Ceron-Anaya
Doutor em Sociologia pela Universidade de Essex (Inglaterra).
Foi professor visitante na Universidade de Manchester, Universidade de
Lehigh e no Washington College nos Estados Unidos. Seus principais
interesses estão voltados aos temas das Hierarquias sociais, Género,
Esportes, Elites e Globalização. Está preparando o livro Globalization
and Golf in Mexico, no qual analisa a relação entre o golfe, as redes
sociais e os negócios entre elites econômicas.
Jessé Souza Doutor em sociologia pela Universidade Heidelberg, Alemanha.
Pós-doutorado em sociologia pela New School for social reasearch de
Nova Iorque, EUA; e livre-docente em Sociologia pela Universidade
Flensburg, Alemanha. É professor titular de Sociologia da UFJF e autor de
diversos livros sobre Teoria social crítica e Análise da sociedade brasileira
contemporânea, dentre eles A Construção Social da Subcidadania (2003),
a Invisibilidade da desigualdade Brasileira (2006) e A ralé brasileira:
quem é e como vive (2009), todos pela editora da UFMG.
Marcelo Medeiros
Formado em Economia, Sociologia e Estatística. Tem publicações
nas áreas de Pobreza, Desigualdade e Mobilidade Social, Demografia,
Saúde, Educação, Género, Uso do Tempo, Teorias do Desenvolvimento,
Deficiência e Proteção Social. Atualmente é professor na UnB (Brasília).
Foi pesquisador do Ipea, International Poverty Centre - UNDP TCU,
Institute for Human Development, Indira Ghandi Institute e do Capability
and Sustainability Centre - Cambridge University.
296
Marcelo Seráfico
Graduado em Ciências Sociais (UFAM/1995), Mestre em
Sociologia (UNICAMP/2002) e Doutor em Sociologia (UFRGS/2009),
professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal
do Amazonas e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da mesma
universidade.
Milda Rlvarola
Engenheira agrónoma, Socióloga, com especialização em
Mudança Social. Possui Diplome d'Etudes Aproííondies em História
pela École de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. Foi professora
universitária e publicou, entre outros, Obreros, Utopias y Revoluciones;
La contestación ai orden liberal, Vagos, Pobres y Soldados. Tem artigos
publicados em Ciências Sociais em diversas revistas americanas e
europeias. É membro da Academia Paraguaya de la Historia e consultora
das Nações Unidas.
Pedro H. G. Ferreira de Souza
Mestre em Sociologia pelo IUPERJ (2007) e doutorando no mesmo
instituto. Pesquisador da Diretoria de Estudos Sociais do Instituto de
Pesquisa econômica Aplicada (Ipea). Seu trabalho concentra-se nas
áreas de Estratificação e desigualdade social, com ênfase em mobilidade
e igualdade de oportunidades.
Sonia Alvarez Leguizamon
Doutora em Antropologia Social e Cultura, Mestre em Sociologia
do Desenvolvimento. Professora de Antropologia Urbana na Faculdade
de Humanidades da Universidad Nacional de Salta (Argentina). Suas
áreas de especialização incluem Políticas sociais, Teoria e História
dos processos de produção de pobreza e Desenvolvimento na América
Latina. Entre suas principais publicações destacam-se: Trabajo y
producción de la pobreza en Latinoamérica y el Caribe: estructuras,
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discursos y actores (2005); Pobreza y desarrollo en América Latina. El
caso de Argentina (2008); La producción de la pobreza masiva y su
persistência en el pensamiento social latinoamericano (2009).
Vilma Liliana Franco Restrepo
Socióloga, Mestre em filosofia pela Universidade de Antioquia
(Colômbia) e Estudos sobre a paz na Universidade de Lancaster (Reino
Unido). Associada ao Grupo de Pesquisa Regional - IPC, vinculado a
Colciencias. Autora dos livros: Poder regional y proyecto hegemónico: el
caso de la ciudad metropolitana de Medellín y su entorno regional 1970-
2000 (2006); Guerras civiles. Introducción ai problema de su justifícación
(2008) e Orden contrainsurgente y dominación (2009).
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