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Antonio David Cattani[org.] RIQUEZA E DESIGUALDADE NA AMÉRICA LATINA

Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

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Page 1: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Antonio David Cattani[org.]

RIQUEZA E DESIGUALDADE NA AMÉRICA LATINA

Page 2: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Grandes discussões foram travadas sobre as condições do

crescimento económico desigual das nações, e pensadores foram

alçados à posição de referência incontornável na questão da justiça

e das capacidades individuais em sistemas económicos falsamente

livres e concorrenciais. Com frequência os estudos de estratificação

social desconsideram a importância dos segmentos abastados (os

ricos) por estes serem numericamente insignificantes.

O trabalho desenvolvido pelo grupo de pesquisa Riqueza e

Desigualdade na América Latina busca preencher este lapso. Os

pressupostos que animam essa busca de conhecimento sobre os

setores dominantes dizem respeito à estrutura social, a acumulação

de riqueza e à concentração das fortunas. As novas perspectivas

analíticas focadas na posse da riqueza substantiva e nos processos

relacionais decorrentes disto permitirão desvelar as raízes das

desigualdades e, sobretudo, entender como operam as forças que

estão impedindo a construção de um mundo mais justo e equânime.

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—editora^ VPq

Page 3: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

© 2010 Editora Zouk

© Damien Hirst. All rights reserved / Licenciado por ATJTVIS, Brasil, 2010. Photo: Prudence Cuming Associates Ltd.

Projeto gráfico.

Revisão gramatical.

Tradução.

Editoração.

Imagem da capa.

Eduardo de Souza Xavier

Júlia Carolina de Lucca

Ernani Ssó

Anna Cláudia Bueno Fernandes l de Souza Xavier

Fotosearch 2010

Eduardo

Por respeito a todos os profissionais que trabalharam neste livro (autores, tradutores, revisores, diagramadores, editores, impressores, distribuidores e livreiros), pedimos que não seja feito xerox de nenhum trecho. A compra do exemplar, além de prestigiar estes profissionais, permite à editora manter este livro em catálogo e publicar novas obras que beneficiarão o público leitor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ, Brasil)

R466

Cattani, Antonio David

Riqueza e desigualdade na América Latina / Antonio David Cattani (org.); Ernani Ssó) Porto Alegre, RS: Zouk, 2010. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8049-000-8

Ia edição

1. América Latina - Condições sociais. Latina. I. Cattani, Antonio David, 1952-

10-5097.

(tradução do espanhol

2. Riqueza - América Latina. 3. Desigualdade - América

CDD 980 CDU 94(8)

direitos reservados à Editora Zouk r. Garibaldi. 1329. Bom Fim. 90035.052. Porto Alegre. RS. f. 51.3024.7554

você também pode adquirir os livros da zouk pelo www.livrariazouk.com.br www.editorazouk.com.br

Page 4: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Sumário

Apresentação Desigualdades: construindo novas perspectivas analíticas 5 Antonio David Cattani

Expropriação de riqueza e neoiiberalismo na Argentina 11 Sonia Alvarez Leguizamón

A arquitetura politico institucional das desigualdades na Bolívia 35 Fernanda Wanderley

Brasil: os ricos desconhecidos 59 Marcelo Medeiros

Colômbia: bloco no poder e seletividade estratégica 79 Vilma Liliana Franco Restrepo

Paraguai: as opacas assimetrias 107 Milda Rivarola

Estado, mercado e desigualdades: um estudo comparativo Uruguai-Chile 121 Cristina Zurbriggen

A legitimação academica dos privilégios no Brasil 149 Jessé Souza

Page 5: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Riqueza: a dimensão ausente nos estudos sobre desigualdades 173 Pedro H. G. Ferreira de Souza

Clubes de golfe no México: espaços sociais, elites económicas e capital 199 Hugo Cerón Anaya

Tributação e reprodução da riqueza no Brasil: o caso do Imposto sobre Grandes Fortunas 227 Fabiano Burkhardt

Os executivos das transnacionais e a reprodução das desigualdades sociais 245 Marcelo Seráfico

For the Love of God: uma alegoria da riqueza contemporânea 263 Antonio David Cattani

Referências 269

Sobre os autores 295

Page 6: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Apresentação

Desigualdades: construindo novas perspectivas analíticas

Antonio David Cattani

A grandeza de uma nação não é medida pelo volume dos recursos

naturais extraídos ou pela quantidade de riqueza socialmente produzida,

mas pela sua justa repartição de forma a assegurar o bem comum.

Esta frase poderia ser extraída do pensamento de Montesquieu, de

Rousseau ou de outros Iluministas atentos às possibilidades do processo

civilizador. Diferentemente da filosofia elitista e do fatalismo cristão,

a filosofia política progressista sustenta que a pobreza é moralmente

inaceitável, pois ela atenta contra a dignidade dos indivíduos, degrada

a vida social e inviabiliza o desenvolvimento econômico equilibrado.

Ao longo dos últimos duzentos anos, incontáveis processos políticos

e econômicos buscaram coadunar crescimento econômico, democracia e

inclusão social de maneira a eliminar as carências materiais e simbólicas.

No início do século XXI, os resultados são gritantemente contrastantes.

De um lado, observam-se expressivos aumentos da produção de

mercadorias e serviços, da riqueza física, palpável, que amplia o conforto

e as possibilidades de realização humana. Uma virtuosa associação entre

engenhosidade, inovação e empreendedorismo faz com que, anualmente,

sejam extraídos e produzidos mais bens do que durante várias décadas

no passado recente ou, mesmo, ao longo de séculos no passado remoto.

O sucesso material do sistema capitalista é tão grande ao ponto de

representar uma séria ameaça à sobrevivência do planeta.

De outro lado, a pletora de mercadorias não beneficiou

equanimemente a população mundial. Os desequilíbrios ocorrem entre

nações, entre regiões e, de forma patente, entre indivíduos; a riqueza

em excesso e a pobreza extrema coabitam espaços comuns.

5

Page 7: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Expropriação de riqueza e neoliberalismo na Argentina

Sonia Alvarez Leguizamón

Pensar a desigualdade em termos do "polo" riqueza e não a partir

do "polo" pobreza na Argentina, como convida este livro, é um desafio

a que podemos chegar por diferentes caminhos. Por um lado remete

a mitos imaginários da construção da nação e a uma representação

da Argentina como um país rico que se expressa nos guias turísticos,

dicionários e enciclopédias. Entre os mitos que vinculam a Argentina

à riqueza está o da 'Argentina potência", expressão atribuída ao então

presidente Juan Domingo Perón em meados do século XX, vinculada

principalmente aos recursos energéticos e à bonança econômica que se

viveu nas décadas de 1940 e 1950. A 'Argentina, primeira do mundo" é

outro imaginário que se esgrimiu como o lugar de chegada para o qual

eram necessárias as reformas neoliberais, e que repetia o ex-presidente

Carlos Menem, autor da grande transformação neoliberal na década de

1990. O primeiro imaginário evoca um país que não só possui riquezas

materiais ou intangíveis de diferentes tipos, como também aquele

onde a grande maioria de sua população tem acesso a certo bem-estar.

No caminho para o "primeiro mundo", imaginário que sintetiza os

argumentos a favor das reformas neoliberais, ocorreu materialmente

uma das transformações mais profundas na estrutura social argentina,

inclinando-se as forças estruturais à concentração da riqueza e ao

empobrecimento de sua população. Este país, que é representado

continuamente como rico, viveu paradoxalmente, nestes últimos

trinta anos, um profundo processo de aumento da desigualdade, da

pauperização de sua população e uma diminuição relativa do bem-estar

que se havia conseguido em anos anteriores.

Os argumentos que sustentam o imaginário de riqueza são muitos.

Por exemplo, num estudo recente do Banco Mundial (World Bank, 2006)

11

Page 8: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

A arquitetura político-institucional das desigualdades na Bolívia

Fernanda Wandurley

Desde 2006, com a chegada ao poder do Movimiento ai Socialismo

(MAS) de Evo Morales, a Bolívia despontou no panorama internacional

como um exemplo da emergente agenda social na América Latina

diante dos sinais de esgotamento do paradigma neoiiberal, marcado

por modelos únicos de reformas modernizadoras e pobres resultados

econômicos e sociais: baixo crescimento, desemprego crónico, aumento

da desigualdade e incapacidade de uma redução significativa e

duradoura da pobreza. São grandes as expectativas nacionais e

internacionais sobre a possibilidade de gestão de modelos alternativos

de desenvolvimento económico e social que articulem crescimento

sustentável da riqueza e incremento do bem-estar social, através da

diminuição da desigualdade e da erradicação da pobreza, num contexto

democrático e intercultural de convivência social.

Durante muito tempo, a resposta aos problemas da pobreza e

da desigualdade na América Latina se centrou exclusivamente nos

níveis de crescimento económico. Uma ampla literatura mostra a

inter-relação e retroalimentação entre variáveis socioeconômicas e

políticas na geração de dinâmicas virtuosas para superar a pobreza e a

desigualdade (Cardoso; Foxley, 2009). Apesar de os níveis debem-estar

social estarem associados ao ritmo de crescimento económico, este não

é o único fator. O modelo de gestão do desenvolvimento associado ao

padrão de crescimento define um conjunto de fatores institucionais

e políticos que desenham os regimes laboral e de bem-estar social e,

consequentemente, os mecanismos diretos e indiretos de distribuição

da riqueza e promoção da inclusão social.

O governo de Evo Morales, em seu segundo mandato, promete

aprofundar as reformas políticas e econômicas guiadas pelo propósito

35

Page 9: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Brasil: os ricos desconhecidos

Marcelo Medeiros

Um país desigual

A distribuição dos rendimentos no Brasil tem uma característica

peculiar, a segmentação da população em uma grande massa

homogénea de famílias de baixos rendimentos e uma reduzida elite

rica. Esta partição da sociedade entre ricos e não ricos é resultado de

uma organização social que produz e mantém desigualdades ao longo

do tempo. Há boas razões para se crer que as várias dimensões em que

existem desigualdades na sociedade brasileira se inter-relacionam e são

influenciadas por alguns elementos comuns. Neste sentido, estudar as

origens da riqueza no Brasil é um meio para se compreender não só o

que está na fonte das diferenças de situação econômica, mas, também,

na raiz de muitas outras desigualdades sociais.

A combinação do nível e da forma da distribuição de renda

no país é bastante peculiar. Furtado já notava, no início da década

de 1980, que a sociedade brasileira é uma sociedade com recursos

relativamente abundantes, porém fortemente segmentada, na qual

reduções expressivas nos níveis de desigualdade podem ser obtidas

por transferências das elites mais ricas para a massa de baixa renda

(Furtado, 1981). Desigualdade mais baixa implica, entre outras coisas,

muito menos pobreza. Logo, a miséria no país pode ser entendida sob

a ótica de um conflito distributivo persistente.

A redução da desigualdade na distribuição da renda familiar

per capita pode ocorrer, por um lado, como resultado de mudanças na

composição das famílias e, por outro, por alterações na forma como a

renda é distribuída entre as famílias. Estas mudanças se relacionam, por

um lado, a políticas de controle de população e, por outro, a medidas

59

Page 10: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Colômbia: bloco no poder e seletividade estratégica

Vilma Liliana Franco Restrepo

Historicamente, a Colômbia é um país caracterizado por um

dos coeficientes mais altos de desigualdade no continente. Era 2005,

segundo a CEPAL, tinha um coeficiente GINI de 0.584, superado

apenas pelo Brasil e a Guatemala; mas, enquanto o Brasil apresenta,

entre 2001 e 2009, uma tendência à diminuição da brecha, segundo os

informes de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento, a Colômbia experimenta uma propensão ao

aumento da injustiça distributiva. Apesar desta condição, os governos

nacionais costumam dar todo ano as mais altas condecorações aos mais

abastados e poderosos empresários como mostra de agradecimento

por seu "sacrifício a favor da nação" e, no fundo, para reverenciá-los

por sua riqueza. Igualmente, o oligopólio dos meios de comunicação

produz e reproduz um relato que os exalta como honrados homens de

negócios e bons cidadãos, encarnação da generosidade e laboriosidade;

representa-os como superiores no sentido moral e destacados apenas

por causa de seus talentos (capacidade de discernimento, sensatez,

habilidade, astúcia), como homens que, sendo presumivelmente

modestos, "progridem" a partir de uma situação de igualdade de

oportunidades devido apenas à sua "inteligência superior", tenacidade

e sorte diferenciada. Mediante estas e outras ações se configuraram e

atualizaram o mito do acumulador, segundo o qual o enriquecimento

desses empresários além de legítimo é produto de um denodado

esforço individual; e a pobreza não é mais que a consequência da

vagabundagem ou do esbanjamento e falta de raciocínio de uma massa

de que sempre se suspeitará.

No entanto, como o entende Marx, "uma acumulação de miséria

é equivalente à acumulação de capital. Por isso, o que num polo é

79

Page 11: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Paraguai: as opacas assimetrias

Mllda Rivarola

Desigual como poucas - na região mais desigual do planeta

como é a América Latina - a sociedade paraguaia apresenta outra

característica infamante: ela continua negando a existência de suas

extremas pobrezas e riquezas, apesar da escandalosa visibilidade destas

assimetrias. Se as primeiras aferições de pobreza tiveram de esperar

a queda da ditadura do general Stroessner (1989) e a contribuição

financeira da cooperação internacional, a exígua literatura descritiva

ou analítica sobre as "classes opulentas" corrobora a frase do humorista

Noel Clarasó, segundo a qual "Deve haver alguma coisa ruim na riqueza

quando todo o mundo sente vergonha de confessar que a tem".

A histórica debilidade do Estado paraguaio contribui pouco

para salvar esta cegueira. País agroexportador - em que a terra é fonte

básica de renda e acumulação -, carece até hoje de um Cadastro de

propriedades rurais. Com uma carga tributária bem baixa para a região

(12,4% em 2008) e um alto nível de informalidade e evasão fiscal, as

estatísticas da Fazenda sofrem graves sub-registros e não têm caráter

serial, o que impede detectar ou seguir a evolução das grandes fortunas

no tempo.

A origem da riqueza

De acordo com análises recentes (PNUD, 2008), as desigualdades

baseadas na origem étnica são primordiais e persistentes: desde a

conquista, a elite espanhola (peninsular e crioula) "branca de linhagem"

se apropriou dos meios de produção (terra e índios) através da comenda,

submetendo a população de mestiços, índios e outras "gentes de cor"

à pobreza e à exclusão. Esta exploração foi dupla sobre as mulheres,

107

Page 12: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Estado, mercado e desigualdades: um estudo comparativo Uruguai - Chile

Cristina Zurbriggen

A elevada desigualdade de que padece a região se tornou um

tema de relevância nos estudos socioeconômicos da América Latina.

O Uruguai não foi a exceção. Apesar de o país apresentar níveis

relativamente baixos de concentração de renda em relação aos países da

região, é também um exemplo das dificuldades de se reverter a situação.

Isso põe em discussão a viabilidade dos modelos de desenvolvimento

levados adiante por estes países, ao mesmo tempo em que adquire

grande relevância neste contexto a importância do papel que deveriam

desempenhar o Estado e as políticas públicas em dito processo. No

entanto, há muitas interrogações abertas para se pensar uma estratégia

de desenvolvimento a partir da América Latina: qual é o caminho para

superar a estagnação econômica e a pobreza?, por que os países latino-

americanos não adotam as políticas públicas de que necessitam?, por

que não há políticas ativas em inovação?, e mais especificamente,

por que não há políticas sociais efetivas que revertam a desigualdade

social?, e como se articulam as relações de poder?

A partir dessas perguntas o presente artigo tenta analisar a situação

do Uruguai e a compara com a trajetória chilena nas últimas décadas

para colocá-la nos debates sobre as estratégias de desenvolvimento.

Uma das problemáticas mais debatidas hoje é como conciliar dinamismo

económico e igualdade, sobre a trilogia interdependente composta por

democracia e desenvolvimento, economia e desenvolvimento social. É à

luz desse olhar que se procura analisar os esforços e as dificuldades da

América Latina para se adaptar às mudanças do século XXI, construindo

sociedades capazes de reconstruir novas identidades que deem lugar a

maior desenvolvimento económico e bem-estar a seus cidadãos.

121

Page 13: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

A legitimação acadêmica dos privilégios no Brasil

Jesse Souza

O campo científico vive da ilusão da imparcial idade. O

"especialista" em qualquer assunto sempre fala do "não lugar da

ciência", senão lhe faltaria autoridade e legitimidade para falar com

pretensão de universalidade e imparcialidade, como se ele próprio não

estivesse envolvido em uma trama de interesses mundanos conscientes

e inconscientes. Mostrar a parcialidade e o comprometimento de visões

científicas com interesses particulares é, portanto, uma forma clássica e

fundamental de exercer, num contexto onde apenas o especialista possui

autoridade para falar com legitimidade no espaço público, crítica social.

Ainda que todo ponto de vista seja "interessado", nem todos os interesses

são do mesmo tipo. Existem interesses comprometidos com a crítica de

uma realidade iníqua e existem interesses envolvidos na manutenção

dessa mesma realidade. Os interesses dominantes de certa época são os

construtores do "senso comum" que é o pano de fundo de todas as ações

e práticas sociais e institucionais em uma sociedade dada.

A ciência dominante em uma sociedade é também sempre,

portanto, uma versão erudita do senso comum dominante. Essa não

é uma característica brasileira. Como estamos todos imersos no senso

comum apenas alguns temas de cada vez podem ser retirados do mundo

do hábito não refletido e tornar-se " reflexão com método" que é o que as

ciências fazem (ou pelo menos "deveriam" fazer) ao fim e ao cabo. Mas

refletir com método, usando os recursos à disposição de cada tradição

científica, exige "afastamento", distanciamento e, acima de tudo,

"crítica" dos hábitos e disposições em relação aos comportamentos

não refletidos do senso comum. A ciência é uma espécie de reflexão

duplicada, por que reflete sobre o tema e sobre a forma como se reflete

sobre o tema.

149

Page 14: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Riqueza: a dimensão ausente nos estudos sobre desigualdades

Pedro H. G. Ferreira de Souza

Quando o tema é desigualdade, imediatamente pensamos na

renda e talvez, em menor escala, em status ocupacional. Com efeito, a

tradição de estudos consolidada nas últimas décadas não só privilegiou

estas duas dimensões de análise como também consagrou uma espécie

de divisão informal do trabalho acadêmico: economistas estudam a

distribuição de renda, sociólogos estudam a estrutura ocupacional

e, no limite, ambos compartilham a tarefa de estudar a desigualdade

educacional, que é comumente tomada como a principal variável

explicativa para as desigualdades de renda e de inserção ocupacional,

embora também seja ocasionalmente tomada como uma dimensão

autónoma e relevante das desigualdades sociais.

Por mais caricata que seja tal classificação, ela ilustra um traço

fundamental da produção académica do século XX: como escreve

Thomas Shapiro (2001), as ciências sociais - em particular a academia

norte-americana - sempre se sentiram muito mais à vontade para

analisar as dimensões já mencionadas do que para examinar o pilar

fundamental das sociedades capitalistas, a propriedade privada, em

seu sentido mais amplo.

No Brasil a situação não é diferente. Por exemplo, quando

Medeiros (2005a) tentou responder a pergunta crucial acerca do que

"faz os ricos ricos", o parâmetro fundamental na delimitação do seu

objeto de estudos foi justamente a renda domiciliar per capita. Isso faz

perfeito sentido, afinal, quem há de negar a centralidade da renda - e,

mais especificamente, da renda do trabalho - para a sobrevivência e o

bem-estar das famílias? No entanto, como o próprio Medeiros admite,

173

Page 15: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Clubes de golfe eo México: espaços sociais, elites econômicas e cepitel

Hugo Cerón Anaya

Os setores economicamente privilegiados no México - também

chamados de grandes empresários, homens de negócios, elites econômicas

ou grande burguesia - não são um objeto novo de estudo. As ciências

sociais se interessaram pelo tema desde meados do século XX (Kling, 1961;

Vernon, 1964). No entanto foi apenas nos anos 1970 que, tanto no mundo

anglo-saxão (Shafer, 1973; Purcell e Kaufman Purcell, 1977; Aubrey, 1979)

como no de fala hispânica (Arriola, 1976; Cordero, 1977; Derossi, 1977),

os estudos sobre empresários adquiriram maior visibilidade. Nos últimos

trinta anos os trabalhos sobre grupos com poder económico cresceram até

criar um corpo considerável de obras (Maxfield e Anzaldúa, 1987; Ganido,

1998; Luna, 2004; Camp, 1989; Salas Porras, 2002; Hernandez Rodriguez,

1990; Puga, 1993; Zabludovsky, 1995).

Embora o número de estudos publicados sobre grupos e indivíduos

economicamente privilegiados seja amplo, uma parcela muito alta

destes trabalhos se aglutinou em torno de uma grande linha de

pesquisa, isto é, a política. Muitos pesquisadores buscaram destrinchar

a relação entre empresários e processos políticos, por exemplo, como

é que estes atores se vincularam a projetos democráticos (Story, 1987;

Mizrahi, 1994), que tipo de representação política os empresários

desenvolveram (Hernandez Rodriguez, 1991; Schneider, 2002) e como

é que os homens de negócios transformaram sua relação com o estado

mexicano em diversos momentos históricos (Carrera Montesinos, 1992;

Valdês Ugalde, 1994; Bensabet Kleinberg, 1999), para mencionar alguns

exemplos. Em termos gerais estes estudos procuraram explicar como é

que os grupos com poder económico atuam como sujeitos políticos nas

múltiplas esferas da vida pública mexicana.

199

Page 16: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Tributação e reprodução da riqueza no Brasil: o caso do Imposto sobre

Grandes Fortunas

Fabiano Burkhardt

O Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) foi criado pela

Constituição de 1988, mas jamais chegou a ser cobrado. Há diferentes

explicações para que esse instrumento de distribuição da riqueza,

existente há tempos em países como a França, por exemplo, tenha

continuado a ser letra morta no Brasil durante mais de 20 anos. Este

artigo propõe-se a investigar uma das razões - provavelmente a

principal - para que o IGF tenha permanecido tanto tempo à margem

do sistema tributário brasileiro: a recusa das classes dominantes,

particularmente as classes dominantes empresariais, em aceitar a

imposição de um tributo criado justamente para distribuir a riqueza e

reduzir a desigualdade social no país.

Os debates que precederam a aprovação do IGF durante a

Assembleia Constituinte e a dura batalha travada desde então em torno

dos projetos de regulamentação do novo imposto são reveladores do que

se poderia chamar de conflito distributivo no Brasil. Há, claramente,

uma disputa entre diferentes setores da sociedade brasileira a respeito

de questões tributárias e de distribuição de renda e património. Pelas

características do IGF - um imposto incidente apenas sobre o património

dos indivíduos mais ricos -, o estudo de sua trajetória na história recente

do país oferece ao pesquisador a oportunidade de conhecer alguns

dos aspectos mais interessantes do conflito tributário latente entre os

diferentes grupos sociais e políticos do Brasil.

A tributação é, no Brasil, um mecanismo que contribui para

manter, quando não acentuar, a desigualdade de renda e património.

Estudo divulgado em 2008 pelo Instituto de Pesquisa econômica

227

Page 17: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Os executivos das transnacionais e a reprodução das desigualdades sociais

Marcelo Seráfico

São várias as publicações, hoje, voltadas ao mundo corporativo. As

páginas de algumas delas são dedicadas às práticas características dos

executivos das grandes corporações. Você S.A., Exame, Negócios, dentre

outras no Brasil, descrevem com frequência as escolhas, os valores,

os princípios e os estilos de vida próprios dos indivíduos ocupantes

de funções decisórias fundamentais em empresas cujas atividades

se articulam em vários países do mundo. Buscam identificar as best

practices, aquelas práticas entendidas como adequadas e explicativas

para o sucesso das empresas.

Isso redunda na divulgação de uma espécie de ethos necessário

a todo e qualquer postulante a funções executivas e na difusão da ideia

de que esses agentes são emblemas do capitalismo contemporâneo,

uma espécie de tipo ideal de "burguês".

O protagonismo e a visibilidade adquiridos pelos executivos são

fenómenos estreitamente relacionados à emergência e desenvolvimento

das grandes corporações transnacionais; são agentes fundamentais

da reprodução ampliada do capital participam diretamente da

racionalização do processo produtivo e da reprodução e ampliação das

desigualdades sociais contemporaneamente.

A expansão das corporações transnacionais

O protagonismo dos executivos está associado à internacionalização

do capitalismo, tendo avançado com a multinacionalização e se

consolidado com a globalização. Michalet (2003) propõe a existência

de três configurações principais do capitalismo. Segundo ele, essas

245

Page 18: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

For the Love of God: uma alegoria da riqueza contemporânea

Antonio David Cattani

A ilustração utilizada para divulgar o seminário Riqueza e

Desigualdade na América Latina realizado em Porto Alegre em

novembro de 2009 causou um grande estranhamento e, em alguns

casos, reações de aversão. Uma caveira, mesmo cravejada de diamantes,

não traduz, para muitos, a ideia usual de riqueza e, menos ainda, de

desigualdade ou pobreza. O convencional seria um cartaz com imagens

de pessoas pobres ou de condições deploráveis de vida, tais como

moradias precárias, trabalhos insalubres ou situações de abandono.

O mundo da pobreza aparece sempre em cenas pungentes, por vezes

chocantes, em fotos nas quais, em alguns casos, o olhar não se sustenta.

No Brasil, esse universo corresponde ao registro gráfico do que é comum

observar-se nas ruas e nas favelas de todas as cidades.

As imagens da pobreza ilustrando cartazes e banners de

seminários e congressos sobre as desigualdades são de fácil obtenção.

As pessoas representadas não exigem direitos autorais e não estão

preocupadas em esconder sua situação; pelo contrário, deixando-se

capturar na foto, esperam dar visibilidade à sua condição e situação e,

assim, sensibilizar os outros.

A representação dos contrastes, da brecha social, dos abismos

que separam pobres e ricos também é fácil conseguir. Imagens com

mansões ao lado de barracos, com crianças esquálidas mendigando

próximo a carros de luxo ou com catadores de lixo em frente a lojas

para milionários reproduzem cenas comuns das metrópoles brasileiras.

As diferenças são imensas, mas são interpretadas como realidades

análogas a mundos distintos e desconectados, permitindo entender-se

que os diferentes grupos sociais não fazem parte do mesmo sistema de

dominação e dependência.

263

Page 19: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

Sobre os autores

Antonio David Cattani

Professor Titular de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em

Sociologia, UFRGS (Porto Alegre). Pesquisador 1-Ado CNPq (Brasília).

Pesquisador convidado no Latin American Center da Universidade de

Oxford 2010-2011. www.antoniodavidcattani.net

Cristina Zurbriggen

Doutora em Ciências Políticas pela Universidade Eberhard-Karls

de Tubingen (Alemanha). Professora de História, com licenciatura em

Sociologia pela Universidad de la República (Uruguai). Professora e

pesquisadora sobre Estado e Políticas Públicas no Instituto de Ciência

Política da Universidad de la República. Atualmente, é diretora do

Projeto Flacso-Uruguay. Autora de diversas publicações sobre Estado,

Governança, Gestão Pública e Políticas de Desenvolvimento.

Fabiano Burkardt

Graduado em Comunicação Social - Jornalismo, Mestre em

Sociologia pela UFRGS. Foi repórter e editor dos jornais Correio do

Povo e Zero Hora. Desde 2008, é diplomata e, atualmente, ocupa o

cargo de secretário da Embaixada do Brasil em Jacarta (Indonésia). É

doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande

do Sul (UFRGS).

Fernanda Wanderley

Doutora em Sociologia pela Universidade de Columbia na cidade

de Nova Iorque; é pesquisadora e catedrática na Pós-graduação em

Ciências do Desenvolvimento da Universidade Mayor de San Andrés

(CIDES-UMSA) em La Paz, Bolívia. Realizou pesquisas e lecionou nas

; • ' • • ' . ; •

Page 20: Cattani, A. Riqueza e Desigualdade Na América Latina

áreas de Sociologia econômica, Sociologia do trabalho, Género, Políticas

públicas, Redes sociais e Associatividade entre micro e pequenos

produtores. Autora de livros e artigos sobre estes temas.

Hugo Ceron-Anaya

Doutor em Sociologia pela Universidade de Essex (Inglaterra).

Foi professor visitante na Universidade de Manchester, Universidade de

Lehigh e no Washington College nos Estados Unidos. Seus principais

interesses estão voltados aos temas das Hierarquias sociais, Género,

Esportes, Elites e Globalização. Está preparando o livro Globalization

and Golf in Mexico, no qual analisa a relação entre o golfe, as redes

sociais e os negócios entre elites econômicas.

Jessé Souza Doutor em sociologia pela Universidade Heidelberg, Alemanha.

Pós-doutorado em sociologia pela New School for social reasearch de

Nova Iorque, EUA; e livre-docente em Sociologia pela Universidade

Flensburg, Alemanha. É professor titular de Sociologia da UFJF e autor de

diversos livros sobre Teoria social crítica e Análise da sociedade brasileira

contemporânea, dentre eles A Construção Social da Subcidadania (2003),

a Invisibilidade da desigualdade Brasileira (2006) e A ralé brasileira:

quem é e como vive (2009), todos pela editora da UFMG.

Marcelo Medeiros

Formado em Economia, Sociologia e Estatística. Tem publicações

nas áreas de Pobreza, Desigualdade e Mobilidade Social, Demografia,

Saúde, Educação, Género, Uso do Tempo, Teorias do Desenvolvimento,

Deficiência e Proteção Social. Atualmente é professor na UnB (Brasília).

Foi pesquisador do Ipea, International Poverty Centre - UNDP TCU,

Institute for Human Development, Indira Ghandi Institute e do Capability

and Sustainability Centre - Cambridge University.

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Marcelo Seráfico

Graduado em Ciências Sociais (UFAM/1995), Mestre em

Sociologia (UNICAMP/2002) e Doutor em Sociologia (UFRGS/2009),

professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal

do Amazonas e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da mesma

universidade.

Milda Rlvarola

Engenheira agrónoma, Socióloga, com especialização em

Mudança Social. Possui Diplome d'Etudes Aproííondies em História

pela École de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. Foi professora

universitária e publicou, entre outros, Obreros, Utopias y Revoluciones;

La contestación ai orden liberal, Vagos, Pobres y Soldados. Tem artigos

publicados em Ciências Sociais em diversas revistas americanas e

europeias. É membro da Academia Paraguaya de la Historia e consultora

das Nações Unidas.

Pedro H. G. Ferreira de Souza

Mestre em Sociologia pelo IUPERJ (2007) e doutorando no mesmo

instituto. Pesquisador da Diretoria de Estudos Sociais do Instituto de

Pesquisa econômica Aplicada (Ipea). Seu trabalho concentra-se nas

áreas de Estratificação e desigualdade social, com ênfase em mobilidade

e igualdade de oportunidades.

Sonia Alvarez Leguizamon

Doutora em Antropologia Social e Cultura, Mestre em Sociologia

do Desenvolvimento. Professora de Antropologia Urbana na Faculdade

de Humanidades da Universidad Nacional de Salta (Argentina). Suas

áreas de especialização incluem Políticas sociais, Teoria e História

dos processos de produção de pobreza e Desenvolvimento na América

Latina. Entre suas principais publicações destacam-se: Trabajo y

producción de la pobreza en Latinoamérica y el Caribe: estructuras,

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discursos y actores (2005); Pobreza y desarrollo en América Latina. El

caso de Argentina (2008); La producción de la pobreza masiva y su

persistência en el pensamiento social latinoamericano (2009).

Vilma Liliana Franco Restrepo

Socióloga, Mestre em filosofia pela Universidade de Antioquia

(Colômbia) e Estudos sobre a paz na Universidade de Lancaster (Reino

Unido). Associada ao Grupo de Pesquisa Regional - IPC, vinculado a

Colciencias. Autora dos livros: Poder regional y proyecto hegemónico: el

caso de la ciudad metropolitana de Medellín y su entorno regional 1970-

2000 (2006); Guerras civiles. Introducción ai problema de su justifícación

(2008) e Orden contrainsurgente y dominación (2009).

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