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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 27, n. 2, p. 181 - 192, (2005) www.sbfisica.org.br Certezas e incertezas sobre as rela¸c˜oes de Heisenberg (Certainties and uncertainties about the Heisenberg relations) Silvio Seno Chibeni 1 Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp, Campinas, SP, Brasil Recebido em 4/10/2004; Aceito em 21/11/2004 O objetivo deste artigo ´ e apresentar e discutir as famosas rela¸c˜ oes de Heisenberg, usualmente denominadas de “princ´ ıpio da incerteza”. A abordagem adotada ´ e primordialmente conceitual, embora referˆ enciashist´oricas sejam feitas para auxiliar a exposi¸c˜ ao. Distinguem-se trˆ es interpreta¸ oes principais das rela¸c˜ oes, cada uma derivando de bases inteiramente distintas e conduzindo a conseq¨ encias f´ ısicas e filos´oficas igualmente diferentes. Palavras-chave: rela¸c˜ oes de Heisenberg, princ´ ıpio de incerteza, indetermina¸c˜ao quˆantica, Heisenberg, Bohr, Einstein, Popper. This article offers a conceptual analysis of the famous Heisenberg relations, usually referred to as “the un- certainty principle”. After a brief historical introduction, it is pointed out that the relations can be interpreted in three entirely different ways. It is shown in some detail how each interpretation derives from a distinct basis, and leads to distinct physical and philosophical consequences. Keywords: Heisenberg relations, uncertainty principle, quantum indeterminacy, Heisenberg, Bohr, Einstein, Popper. 1. Introdu¸c˜ ao: Pano de fundo hist´orico- conceitual A an´alise inicial do assunto que constitui o objeto central deste trabalho foi apresentada por Heisenberg num artigo publicado na Zeitschrift f¨ ur Physik em 1927 [1]. Menos de dois anos haviam passado desde a formula¸ ao, pelo pr´oprio Heisenberg, da primeira vers˜ ao da mecˆanica quˆantica. Esse intervalo teste- munhou n˜ao apenas o surgimento da outra vers˜ ao da teoria quˆantica, devida a Schr¨ odinger, mas tamb´ em o recrudescimento das discuss˜oes conceituais sobre o significado dos fenˆomenos quˆanticos e seu tratamento te´orico. Como salienta Heisenberg no par´agrafo inicial do referido artigo, embora a nova teoria tenha ganhado aceita¸c˜ ao imediata, sua interpreta¸c˜ ao f´ ısica ainda es- tava “repleta de discrepˆancias internas, que se manifes- tam nos argumentos sobre continuidade versus descon- tinuidade, e part´ ıcula versus onda” (p. 62 da tradu¸c˜ ao inglesa). Essas “discrepˆancias” eram as mesmas que vinham assolando a f´ ısica quˆantica desde o in´ ıcio do s´ eculo, agravadas agora pelo fato de o novo formalismo – cujo poder preditivo se reconhecia prontamente – n˜ao con- tribuir para sua solu¸c˜ ao, muito pelo contr´ ario. Numa situa¸c˜ ao aparentemente ´ ımpar na hist´oria da f´ ısica, tal formalismo n˜ao vinha acomodado em nenhum quadro ontol´ ogico claro. Curiosamente, embora na formula¸ ao de sua vers˜ ao da teoria Heisenberg tivesse mesmo de- liberadamente evitado qualquer comprometimento on- tol´ ogico – seguindo, pois, a onda filos´ofica anti-realista positivista da ´ epoca –, era evidente que at´ e ele se ressen- tia da secura formal da teoria. Por mais que Bohr j´a viesse procurando justificar, por meio de argumentos diversos, a ruptura com a perspectiva realista t´ ıpica da ciˆ encia at´ e ent˜ ao, sentia-se difusamente que a elu- cida¸c˜ ao do conte´ udo f´ ısico da nova teoria n˜ao se pode- ria restringir ao mero fornecimento de regras de cor- respondˆ encia diretas com os fenˆomenos, requerendo, ao menos a t´ ıtulo de apoio heur´ ıstico, a introdu¸c˜ ao de ele- mentos ontol´ ogicos m´ ınimos. Tal exigˆ encia se manifestava, em particular, quando da an´alise da quest˜ao central da “revis˜ao dos con- ceitos cinem´aticos e mecˆanicos” ([1], p. 62). A press˜ ao por essa revis˜ao vinha, por um lado, da di- ficuldade de aplica¸c˜ ao de tais conceitos na explica¸c˜ ao dos fenˆomenos quˆanticos, associada `a famosa “duali- dade onda-part´ ıcula”, e, por outro, do fato de que o novo formalismo n˜ao acomodava simultaneamente to- dos esses conceitos. Este ´ ultimo ponto havia sido salien- tado tanto por Dirac como por Jordan, em 1926. Dirac, por exemplo, afirmou, acerca das grandezas f´ ısicas con- jugadas, comoposi¸c˜ ao e momento: “Na teoria quˆantica ao se pode responder a nenhuma quest˜ao que se re- 1 E-mail: [email protected]. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

Certezas e incertezas sobre as relaç˜oes de Heisenberg

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Page 1: Certezas e incertezas sobre as relaç˜oes de Heisenberg

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 27, n. 2, p. 181 - 192, (2005)www.sbfisica.org.br

Certezas e incertezas sobre as relacoes de Heisenberg(Certainties and uncertainties about the Heisenberg relations)

Silvio Seno Chibeni1

Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp, Campinas, SP, BrasilRecebido em 4/10/2004; Aceito em 21/11/2004

O objetivo deste artigo e apresentar e discutir as famosas relacoes de Heisenberg, usualmente denominadasde “princıpio da incerteza”. A abordagem adotada e primordialmente conceitual, embora referencias historicassejam feitas para auxiliar a exposicao. Distinguem-se tres interpretacoes principais das relacoes, cada umaderivando de bases inteiramente distintas e conduzindo a consequencias fısicas e filosoficas igualmente diferentes.Palavras-chave: relacoes de Heisenberg, princıpio de incerteza, indeterminacao quantica, Heisenberg, Bohr,Einstein, Popper.

This article offers a conceptual analysis of the famous Heisenberg relations, usually referred to as “the un-certainty principle”. After a brief historical introduction, it is pointed out that the relations can be interpretedin three entirely different ways. It is shown in some detail how each interpretation derives from a distinct basis,and leads to distinct physical and philosophical consequences.Keywords: Heisenberg relations, uncertainty principle, quantum indeterminacy, Heisenberg, Bohr, Einstein,Popper.

1. Introducao: Pano de fundo historico-conceitual

A analise inicial do assunto que constitui o objetocentral deste trabalho foi apresentada por Heisenbergnum artigo publicado na Zeitschrift fur Physik em1927 [1]. Menos de dois anos haviam passado desdea formulacao, pelo proprio Heisenberg, da primeiraversao da mecanica quantica. Esse intervalo teste-munhou nao apenas o surgimento da outra versao dateoria quantica, devida a Schrodinger, mas tambemo recrudescimento das discussoes conceituais sobre osignificado dos fenomenos quanticos e seu tratamentoteorico. Como salienta Heisenberg no paragrafo inicialdo referido artigo, embora a nova teoria tenha ganhadoaceitacao imediata, sua interpretacao fısica ainda es-tava “repleta de discrepancias internas, que se manifes-tam nos argumentos sobre continuidade versus descon-tinuidade, e partıcula versus onda” (p. 62 da traducaoinglesa).

Essas “discrepancias” eram as mesmas que vinhamassolando a fısica quantica desde o inıcio do seculo,agravadas agora pelo fato de o novo formalismo – cujopoder preditivo se reconhecia prontamente – nao con-tribuir para sua solucao, muito pelo contrario. Numasituacao aparentemente ımpar na historia da fısica, talformalismo nao vinha acomodado em nenhum quadro

ontologico claro. Curiosamente, embora na formulacaode sua versao da teoria Heisenberg tivesse mesmo de-liberadamente evitado qualquer comprometimento on-tologico – seguindo, pois, a onda filosofica anti-realistapositivista da epoca –, era evidente que ate ele se ressen-tia da secura formal da teoria. Por mais que Bohr javiesse procurando justificar, por meio de argumentosdiversos, a ruptura com a perspectiva realista tıpicada ciencia ate entao, sentia-se difusamente que a elu-cidacao do conteudo fısico da nova teoria nao se pode-ria restringir ao mero fornecimento de regras de cor-respondencia diretas com os fenomenos, requerendo, aomenos a tıtulo de apoio heurıstico, a introducao de ele-mentos ontologicos mınimos.

Tal exigencia se manifestava, em particular, quandoda analise da questao central da “revisao dos con-ceitos cinematicos e mecanicos” ([1], p. 62). Apressao por essa revisao vinha, por um lado, da di-ficuldade de aplicacao de tais conceitos na explicacaodos fenomenos quanticos, associada a famosa “duali-dade onda-partıcula”, e, por outro, do fato de que onovo formalismo nao acomodava simultaneamente to-dos esses conceitos. Este ultimo ponto havia sido salien-tado tanto por Dirac como por Jordan, em 1926. Dirac,por exemplo, afirmou, acerca das grandezas fısicas con-jugadas, como posicao e momento: “Na teoria quanticanao se pode responder a nenhuma questao que se re-

1E-mail: [email protected].

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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fira aos valores numericos [simultaneos] de ambos p eq” (apud [2], p. 326.). Outro fator explicitamente evo-cado por Heisenberg para a mencionada revisao con-ceitual sao as “descontinuidades” tıpicas dos processosque ocorrem em regioes muito pequenas e intervalostemporais muito breves. Trata-se, pois, daquilo queBohr popularizaria sob a denominacao de “postuladoquantico” (ver p. ex. [3]). Heisenberg pondera queessas descontinuidades podem ajudar a compreender a“contradicao entre os conceitos de ‘posicao’ e ‘veloci-dade’ ” ([3], p. 63), na medida em que, por exemplo,este ultimo claramente nao se aplica a uma partıculaque ocupe posicoes discretas, considerando-se cada umadessas posicoes isoladamente (como ilustra a Fig. 2 doseu artigo).

Juntando todos esses ingredientes, Heisenbergchegou as famosas relacoes, por dois caminhos dis-tintos. Embora o tenha criticado mesmo antes desua publicacao, Bohr reconheceu imediatamente a im-portancia do trabalho de Heisenberg, e preparou eleproprio um longo texto sobre o assunto, que saiu na Na-ture no ano seguinte [3]. Nele, apresentou uma versaosimplificada, pouco rigorosa, de um dos argumentos deHeisenberg, que ate hoje e apresentada nos livros-textosde mecanica quantica. Ao re-elaborar seu trabalho comvistas a uma serie de conferencias dadas em 1929 naUniversidade de Chicago (depois publicadas em formade livro [4]), Heisenberg inicia justamente com esse ar-gumento simples.

Como veremos, os dois argumentos de Heisenbergconduzem, na verdade, a versoes conceitualmente dis-tintas das relacoes (secoes 2 e 3). Veremos tambemque um deles motivou, subsequentemente, o desen-volvimento de uma terceira via para a obtencao dasrelacoes, que tambem assumem, neste caso, um sig-nificado fısico completamente distinto das outras duasversoes (secao 4).

Embora a distincao entre as duas primeiras versoestenha sido assinalada tanto por Bohr como por Heisen-berg, eles proprios nao foram capazes de manter umainvariavel atencao quanto a isso, dando inıcio a per-niciosa confusao de pressuposicoes, argumentos e con-sequencias fısico-filosoficas das relacoes que perdura emamplos setores da literatura ate nossos dias2. Tal con-fusao engloba tambem a terceira versao das relacoes deHeisenberg, nao obstante os pesquisadores que a desen-volveram tenham sido os primeiros a perceber clara-mente as diferencas entre as tres versoes. O presentetrabalho tem como objetivo central explicar didatica-mente essa situacao, por meio de uma analise conceitualdessas versoes.

2. Versao ontologica: “Indefinicao”

Esta primeira versao corresponde a que, no artigoclassico de Heisenberg, e apresentada em segundo lu-gar e que, como ele diz a p. 69, “deriva da formulacaode Dirac-Jordan” da mecanica quantica, conhecida hojecomo “teoria da transformacao”. Ao inves de me ateraos detalhes dessa demonstracao3, seguirei (de formaaproximada) a formulacao simplificada apresentada porBohr [3]. Ela deixa claro que a demonstracao sebaseia na ideia da dualidade “onda-partıcula”, forte-mente sugerida pelos peculiares fenomenos quanticosinvestigados desde o inıcio do seculo XX. Do pontode vista formal, a nocao central aqui e a de pa-cotes de onda, ou, como prefere Bohr, campos ondu-latorios (“wave-fields”), que seriam formas de repre-sentacao matematica dos estranhos objetos quanticos.Os experimentos de difracao e interferencia de luz, co-nhecidos desde o inıcio do seculo XIX, nao deixavamduvida quanto ao carater ondulatorio da luz. Poroutro lado, as surpreendentes observacoes experimen-tais recentes de Davisson e Germer, e de G.P. Thom-son e Reid mostravam que os eletrons, tidos ate entaocomo partıculas diminutas, tambem apresentavam essecarater ondulatorio, confirmando-se assim a ideia de“ondas de materia” proposta em 1924 por de Broglie. Aversao da teoria quantica desenvolvida por Schrodingerpartia exatamente dessa perspectiva. Por algum tempo,Schrodinger chegou mesmo a defender que as “ondas”de sua teoria seriam a imagem simbolica quase literal darealidade quantica. Nao me aterei aqui a exposicao dasdificuldades a que essa proposta levou4. Basta obser-var que mesmo depois de serem devidamente reconheci-das, a ideia geral de que, de uma forma ou de outra,os objetos quanticos sao algo ondulatorio (“wave-like”)nao pode ser inteiramente descartada, dados os efeitosde difracao e interferencia que exibem.

Partindo pois da suposicao de que os objetosquanticos, qualquer que seja sua natureza exata, saorepresentaveis por pacotes de onda, chega-se facilmentea uma versao das relacoes de Heisenberg. Conforme no-tou Bohr, um pacote espacial de ondas pode ser obtidopela superposicao de ondas planas sinusoidais de com-primentos de onda distribuıdos em uma determinadafaixa. Agora constitui uma propriedade matematicageral de tais pacotes que quanto mais estreita essa faixa,mais largo sera o pacote; e quanto mais larga, mais lo-calizado no espaco sera o pacote. A Fig. 1 ilustra essarelacao, em termos do numero de onda k, que e o in-verso do comprimento de onda.

A relacao de dependencia recıproca entre a larguraδx do pacote de ondas e a faixa δk de numeros de ondadas ondas que o compoem nao e somente qualitativa:

2Para um exemplo, ver [5]; para um exame crıtico desse artigo, ver Chibeni [37].3Para uma analise historica e conceitual detalhada, ver [7], secao 3.2.4Por exemplo, conceber a existencia em espacos com mais do que tres dimensoes, dar conta do aspecto corpuscular da luz e da

materia ponderavel, etc.

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Certezas e incertezas sobre as relacoes de Heisenberg 183

na situacao mais favoravel (espalhamentos mınimos),expressa-se pela relacao δx δk = 1/2π; em geral tem-se:

δxδk > 12π

. (1)

Figura 1 - Ilustracao da relacao entre pacotes de onda no espacode coordenadas (x) e no espaco dos numeros de onda (k) (repro-duzida de Pessoa Jr. [9], p. 74).

Evocando-se agora a relacao de de Broglie entreo momento e o comprimento de onda dos objetosquanticos,

p =h

λ= hk, (2)

a relacao (1) da:

δxδp > h

2π, (3)

que e a relacao de Heisenberg para posicao e momento.Explorando outros aspectos dos pacotes de onda e em-pregando a relacao de Planck-Einstein entre energia efrequencia dos quanta,

E = hν, (4)

pode-se obter tambem uma relacao entre energia etempo:

δEδt > h

2π. (5)

Nao me aterei aqui aos detalhes desses argumentos5.Passo diretamente a questao do significado fısico dasrelacoes obtidas por meio deles. No artigo original deHeisenberg a discussao desse significado fısico mistura-se a da versao que apresentarei na secao seguinte, demodo que e preferıvel aqui examinar o que diz Bohrno artigo de 1928 [3]. Segundo Bohr, as relacoes deHeisenberg, tais quais explicadas pelo raciocınio acima,devem ser entendidas “como determinando a precisaomaxima possıvel na definicao da energia e momento dos

indivıduos associados ao campo ondulatorio” (p. 59-60).A palavra que grifei indica que se trata aqui de umlimite na possibilidade de se definirem de modo pre-ciso algumas das propriedades dinamicas dos objetos.Na abordagem adotada esses objetos seriam, como jafoi dito, entes ondulatorios, de modo que e facil perce-ber que nao possuem em si proprios uma posicao euma velocidade bem definidas. Na expressao clara deBohm, “o momento e a posicao nao podem nem mesmoexistir simultaneamente com valores perfeitamente bemdefinidos” ([8], p. 100-101). Parece, pois, adequadoclassificar a presente versao das relacoes de ontologica:ela diria respeito a uma indeterminacao intrınseca aosentes fısicos. Voltarei a comentar essa interpretacaoapos haver exposto as outras duas versoes das relacoesde Heisenberg.

3. Versao epistemologica: “Incerteza”

Muito embora a questao da dualidade onda-partıculaesteja presente no pano de fundo do artigo originalde Heisenberg, a perspectiva pela qual inicia a dis-cussao enfatiza um ponto diferente, que ainda nao co-mentei. Trata-se da concepcao operacionalista dos con-ceitos fısicos, que Heisenberg sintetiza nestes termos:

Quando queremos ter clareza sobre o quese deve entender pelas palavras ‘posicao doobjeto’, por exemplo do eletron (relativa-mente a um dado referencial), entao e pre-ciso especificar experimentos definidos como auxılio dos quais se pretenda medir a‘posicao do eletron’; caso contrario, a ex-pressao nao tera nenhum significado ([1]p. 64).

Assim, segundo essa concepcao, o que confere legiti-midade fısica a um conceito, e significado ao termo queo designa, e a existencia de uma operacao experimentalclaramente especificada por meio da qual se estabelecaa aplicacao do conceito e, no caso dos conceitos quanti-tativos, se lhe possa atribuir um valor numerico preciso.Essa interpretacao operacionalista estava naturalmenteassociada a perspectiva filosofica positivista que domi-nou o cenario intelectual da primeira metade do seculoXX.

Pois bem: logo apos esse trecho Heisenberg se dedi-ca a mostrar que embora para cada conceito mecanicotomado individualmente nao haja, nem mesmo nodomınio quantico, falta de experimentos capazes de lheconferir legitimidade fısica, a quantizacao caracterısticadesse domınio impede que a posicao e o momento pos-sam ser determinados experimentalmente ao mesmotempo com precisao ilimitada. Para isso, Heisenbergintroduz o seu famoso experimento de pensamento do

5Para isso consulte-se, por exemplo, o livro-texto de David Bohm [8]. Ver tambem [9], caps. 11 e 12, para uma analise atuale acessıvel, que cobre diversos pontos que nao foram mencionados aqui, como por exemplo as complicacoes adicionais envolvidas naderivacao das relacoes para energia e tempo.

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microscopio de raios gama6. A analise que faz e poremexcessivamente qualitativa, e passa por cima de um as-pecto crucial, notado por Bohr antes mesmo de o artigoser publicado. (Para detalhes, ver [7], p. 64-65.) Dessemodo, e preferıvel seguir a apresentacao mais completafeita por Heisenberg no seu livro de 1930 [4]. Nele, oexperimento e ilustrado pelo seguinte diagrama:

Figura 2 - Esquema do experimento de pensamento do mi-croscopio de raios gama. (Reproduzido de Heisenberg [4], p. 21.)

O que se quer e determinar a posicao de umapartıcula livre (um eletron, por exemplo). Para tanto,ela devera ser iluminada. Ora, sabe-se que a precisaode uma medida desse tipo sera tanto maior quantomenor for o comprimento de onda λ da radiacao uti-lizada; daı a sugestao da utilizacao de radiacao gama.Seja entao a partıcula iluminada por um feixe de raiosgama na direcao xindicada na figura. Eventualmente,um foton de raios gama sera espalhado pela partıculae capturado pela lente do microscopio. De acordo comas leis opticas, a imprecisao dessa medida e dada por

δx =λ

sen ε. (6)

Ocorre porem que ao ser espalhado o foton trans-fere a partıcula um momento da ordem de h/λ (efeitoCompton). Esse momento nao pode ser exatamenteconhecido, visto que a direcao do foton espalhado ficaindeterminada dentro do angulo ε. Assim, existira umaincerteza no momento final da partıcula ao longo de xdada por

δpx =h

λsen ε. (7)

Heisenberg conclui entao que “para o movimentoapos o experimento”

δxδpx ≈ h. (8)

Como qualquer outro fator ligado as situacoes ex-perimentais reais so pode contribuir para aumentar taisincertezas, esse raciocınio mostra que de fato seu pro-duto esta limitado por um mınimo da ordem da cons-tante de Planck:

δxδpx > h. (9)

Essa rota para a derivacao da relacao de Heisen-berg e muito diferente da considerada na secao anterior.La, partia-se da suposicao de que os objetos quanticossao entes ondulatorios, representados quase literal-mente por pacotes de onda. A relacao obtida era umarelacao de indeterminacao ou indefinicao intrınseca dasgrandezas conjugadas, tomadas em pares. Aqui, parte-se, ao contrario, da suposicao de que o objeto quese esta procurando observar (o eletron, no caso) euma partıcula, intrinsecamente caracterizavel por umaposicao e momento bem definidos. O problema, se oraciocınio for aceito, e que tais grandezas nao poderaoser determinadas experimentalmente com precisao ar-bitrariamente grande. Trata-se pois de incertezas, nosentido proprio do termo. Nesta versao, e somente nela,a denominacao usual de “princıpio da incerteza” e jus-tificada. Ora, incerteza e uma nocao epistemica, ouseja, relativa ao nosso conhecimento. Nesta versao,as relacoes de Heisenberg nao expressariam, pois, umacaracterıstica fısica dos objetos (como na versao prece-dente), mas uma caracterıstica de nosso conhecimentoacerca dos objetos. Portanto, e pertinente classificar apresente versao como epistemologica. Vejamos os ter-mos em que o proprio Heisenberg expressa suas con-clusoes a partir do experimento do microscopio:

Os experimentos que fornecem tal definicao[dos conceitos mecanicos] sofrem, elesproprios, de uma indeterminacao intro-duzida puramente pelos procedimentos ex-perimentais que utilizamos para a deter-minacao simultanea de duas quantidadescanonicamente conjugadas. A magnitudedessa indeterminacao e dada pela relacao(8) [na numeracao do presente trabalho],generalizada para quaisquer quantidadescanonicamente conjugadas ([1], p. 68; ogrifo e meu).

Qual a relevancia desse resultado para o objetivocentral de Heisenberg, de dar conta das “discrepanciasinternas” da interpretacao fısica da mecanica quantica?Como vimos na secao 1, essas discrepancias dizem re-speito principalmente as “contradicoes” resultantes dautilizacao de concepcoes irreconciliaveis dos objetosquanticos, utilizacao essa requerida pelo conjunto dosdiversos experimentos na base da fısica quantica ([1], p.63). Heisenberg mantem, entao, que a “relacao de in-certeza” ([4], p. 15) mostra como evitar os conflitos, na

6Para o caso da relacao entre tempo e energia, Heisenberg discute outro experimento, envolvendo um ıma de Stern-Gerlach. Para ospropositos deste artigo, podemos restringir nossa analise ao experimento do microscopio.

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medida em que “especifica os limites dentro dos quaisa concepcao de partıcula pode ser aplicada. Qualqueruso das palavras ‘posicao’ e ‘velocidade’ com uma pre-cisao que exceda aquela dada pela Eq. (3) [na presentenumeracao] e tao desprovida de significado como o usode palavras cujo sentido nao seja definido” ([4], p. 15).

Este ultimo comentario e feito a proposito da relacaoobtida por meio do argumento simples desenvolvidopor Bohr, apresentado na secao 2, acima. No en-tanto, e claro, pelo que ja vimos, que a relacao estabele-cida por esse argumento nao deve ser entendida comouma relacao de incerteza, mas de indeterminacao ou in-definicao. Estamos, pois, diante de uma das tıpicas pas-sagens em que Heisenberg falha em distinguir as duasnocoes, a ontologica e a epistemologica. De qualquermodo, o comentario que vem de ser transcrito e in-teiramente pertinente as relacoes estabelecidas por meiodo argumento do microscopio de raios gama. Nessecaso, o que Heisenberg faz e evocar os alegados limitesno nosso conhecimento possıvel dos valores precisos si-multaneos de pares de grandezas conjugadas para justi-ficar a falta desses valores no formalismo quantico (faltaessa apontada por Dirac e Jordan, conforme ja nota-mos), bem como, em um nıvel mais fısico e intuitivo, acoexistencia dos aspectos corpuscular e ondulatorio dosobjetos quanticos.

O raciocınio de Heisenberg se dirige, assim, a umso tempo a questao da completude da teoria quantica,que ja comecava a se apresentar como um dos pon-tos centrais das discussoes, e a da estranha dualidadeonda-partıcula. Segundo sua perspectiva, a teoria seriacompleta, apesar de nao fornecer valores precisos si-multaneos para certas grandezas fısicas, na medida emque os valores nao fornecidos seriam em princıpio im-possıveis de obter experimentalmente, e portanto semsignificado fısico. E a dualidade nao implica uma con-tradicao, desde que se tenha o cuidado de aplicar osconceitos potencialmente conflitantes dentro das faixasde imprecisao estabelecidas pelas relacoes. O raciocınioparece perfeito, e exerceu, como se sabe, poderosa in-fluencia em todo o futuro das discussoes sobre os fun-damentos da mecanica quantica. No entanto, veremosna secao final deste trabalho que apresenta algumasdeficiencias conceituais e formais bastante serias.

4. Versao estatıstica: “Dispersao es-tatıstica”

Nao obstante as diferencas assinaladas, as duas versoesdas relacoes de Heisenberg examinadas nas secoesprecedentes tem um elemento em comum: em ambos

os casos elas dizem respeito a um objeto ou situacaoexperimental individual. No primeiro caso, cada ob-jeto quantico exibiria uma certa forma de indefinicaode propriedades; no segundo, nosso conhecimento depares de grandezas conjugadas de cada objeto estarialimitado a uma determinada faixa de precisao. Masna re-exposicao do argumento para a primeira dessasversoes feita em seu livro de 1930 [4] Heisenberg faz,efetivamente, uso de um conceito – o de desvio padrao– que viria a ser a semente de uma terceira versao desuas relacoes, como veremos agora.

No tratamento original, assim como no artigo deBohr [3], as nocoes que simbolizamos acima por δx eδpx sao explicitamente caracterizadas em termos dalargura do pacote de onda (no espaco de coordenadase momento, respectivamente). A rigor, como os pa-cotes tıpicos se estendem por todo o espaco, o de quese trata e da regiao em que o pacote, ou campo on-dulatorio, “difere apreciavelmente de zero” ([4], p. 69).Como salienta Jammer [2], p. 327, em termos quantita-tivos o que Heisenberg efetivamente usa em sua prova euma funcao de onda cujo modulo quadrado e uma curvagaussiana, a faixa de indefinicao sendo tomada como ametade do intervalo fora do qual essa quantidade cai ae−1 de seu valor maximo.

Ora, essa demonstracao claramente precisava sertornada mais geral, em varios sentidos. O primeiroa ressaltar isso em uma publicacao parece ter sido E.H. Kennard, ainda em 1927. Alem de procurar obteruma versao valida para quaisquer quantidades canoni-camente conjugadas, Kennard mostrou que o uso depacotes gaussianos dava as indeterminacoes mınimaspossıveis7. Esse trabalho de Kennard foi explicitamenteaproveitado por Heisenberg na reformulacao de seu ar-gumento, para as conferencias de Chicago. O pontoque mais nos interessa aqui e o fato de que, seguindoKennard e Weyl, Heisenberg passou a caracterizar asindefinicoes (ou, impropriamente, “incertezas”) em ter-mos dos desvios padroes das distribuicoes de probabili-dades fornecidas pelo modulo quadrado das funcoes deonda8.

Ora, desvio padrao e uma nocao estatıstica. O queestava, pois, por detras de sua utilizacao neste contextoe a famosa interpretacao estatıstica das funcoes de ondaquanticas devida a Max Born, segundo a qual a proba-bilidade de se encontrar, numa medida de posicao, apartıcula quantica entre x e x + dx e dada pelo moduloquadrado da funcao de onda: |Ψ(x)|2 dx 9. Assim,a interpretacao remete naturalmente a uma situacaoem que se considera, nao um objeto individual, masum conjunto, ou ensemble, de objetos preparados nummesmo estado quantico. Medidas realizadas sobre cada

7Outro tratamento das relacoes que visou a um maior rigor e generalidade foi oferecido por Hermann Weyl em importante livro de1928, Gruppentheorie und Quantenmechanik. Para referencias e comentarios adicionais sobre esses trabalhos de Kennard e Weyl, ver[2], p. 333.

8Mais especificamente, as indefinicoes sao definidas por√

2 vezes o desvio padrao. O termo ‘desvio padrao’ nao e usado no texto deHeisenberg, embora o conceito efetivamente o seja.

9A regra pode ser generalizada para uma grandeza fısica qualquer, mas nao precisamos aqui adentrar esse ponto.

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um dos membros do ensemble revelarao, tipicamente,valores diferentes e aleatorios, mas que se distribuemsegundo uma curva dada pela funcao de onda. O novotratamento dado por Heisenberg as suas relacoes (naporcao do texto que estamos examinando!), insere-se,pois, dentro desse referencial conceitual, e nao mais naperspectiva ontologica dos pacotes de onda como repre-sentacoes diretas dos objetos quanticos individuais.

Se essa linha tivesse sido consistentemente desen-volvida por Heisenberg ela o teria conduzido a terceiraversao das relacoes. Quem primeiro fez isso de formasistematica foi o filosofo da ciencia Karl Popper, em seulivro de 1934, Logik der Forschung, que permaneceuvirtualmente ignorado ate que fosse traduzido para oingles, no final da decada de 1950 [10]. A razao princi-pal do desprezo nao foi a lıngua, e claro, mas o fato deo livro desenvolver uma analise filosofica da ciencia quediscrepava fortemente das que predominavam a epoca.Isso vale igualmente para a analise feita por Popper dediversos topicos relativos aos fundamentos da mecanicaquantica, entre os quais uma nova interpretacao dasrelacoes de Heisenberg.

O que Popper propos e que as relacoes fossem enten-didas como “relacoes de dispersao estatıstica” ([10], p.225). A motivacao para isso e, naturalmente, a referidainterpretacao de Born das funcoes de onda. SegundoPopper, essa interpretacao mostra que “a teoria on-dulatoria pode tambem ser tomada como uma teoriade partıculas; pois a equacao de ondas de Schrodingerpode ser interpretada como fornecendo a probabilidadede encontrar a partıcula em uma dada regiao qual-quer do espaco” (ibid., p. 222). A utilizacao dateoria de Schrodinger e da interpretacao de Born damaneira sintetizada por Popper nessa passagem naoera nenhuma novidade. Todo mundo sabia que a de-teccao individual dos objetos quanticos invariavelmenteexibe um padrao corpuscular; as “ondas” introduzidaspor Schrodinger nunca sao vistas experimentalmente deforma direta (mesmo porque, na maioria dos casos, sosao definidas em espacos com mais de tres dimensoes).Para aqueles que, como o proprio Schrodinger, de al-guma forma acreditavam que a realidade fısica era on-dulatoria, esse ponto representava um intrigante pro-blema. Schrodinger iria explora-lo a fundo no seu artigode 1935, em que aparece o famoso exemplo do “gato”[11]. Mas nao e isso que nos interessa agora, neminteressava diretamente a Popper naquela epoca. Doponto de vista operacional, nao havia duvidas quantoa correcao das predicoes estatısticas feitas a partir dasfuncoes de onda, regidas pela equacao de Schrodinger,e da formula de Born que as conectava ao plano experi-mental.

Pois bem: nesse quadro teorico e conceitual a in-terpretacao correta das relacoes de Heisenberg e a daespecificacao de um limite mınimo para a dispersao es-tatıstica nos resultados de medida de grandezas conju-gadas. Classicamente, nao haveria nenhum tal limi-

te, visto que qualquer dispersao teria origem pura-mente nas imperfeicoes experimentais, contingentes ecapazes de em princıpio serem melhoradas indefinida-mente. Na mecanica quantica, porem, ha uma dis-persao mınima ineliminavel, radicada na teoria, quandose trata de pares de grandezas conjugadas. Isso podeser demonstrado rigorosamente a partir do formalismomatematico, sem nenhuma interpretacao filosofica adi-cional, ontologica ou epistemologica. O que se requere simplesmente uma generalizacao ulterior do resul-tado exposto no livro de Heisenberg (que, como vimos,se apoiava em investigacoes anteriores de Kennard eWeyl). Diversos autores contribuıram nesse empreendi-mento. Uma demonstracao bastante precisa, simplese elegante foi oferecida por H.P. Robertson [12]. Aotomar conhecimento desse trabalho, Schrodinger perce-beu que podia ser generalizado ainda mais. Mostrou, noano seguinte (ver [7], p. 73), que, para dois operadoresauto-adjuntos quaisquer, A e B, os desvios padroes ∆Ae ∆B das respectivas quantidades fısicas obedecem arelacao:

(∆A)2(∆B)2 > | < 12(AB −BA) > |2 +

(12

< AB + BA > − < A >< B >)2, (10)

onde ‘<A>’ denota o valor esperado de A para o es-tado quantico em questao, e analogamente para as ou-tras grandezas. Para grandezas canonicamente conju-gadas, o comutador de A e B (i.e., o fator AB – BA) eih/2π; e para estados como o estudado por Heisenberg,que levam a uma dispersao mınima, o ultimo termoquadratico e zero, para grandezas conjugadas, ficando-se pois com

∆A∆B > h

4π, (11)

que e a versao estatıstica da relacao de Heisenberg. AFig. 3 ilustra essa relacao, para o caso de posicao emomento. A relacao significa que, qualquer que sejao objeto quantico, e quaisquer que sejam o seu estadoe a situacao experimental de medida, os histogramasnao podem ser indefinidamente estreitados ao mesmotempo.

Figura 3 - Histogramas que ilustram a dispersao estatıstica daposicao e momento: ∆q e ∆p sao os desvios padroes de q e p,enquanto que δq e δp sao os erros experimentais da determinacaodessas grandezas (Adaptada de Ballentine [13], p. 365.).

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Certezas e incertezas sobre as relacoes de Heisenberg 187

E importante notar que a relacao estatıstica (11) esua demonstracao independem completamente nao ape-nas de qualquer hipotese acerca da natureza do objetoquantico, como tambem acerca de eventuais limitacoesde nosso conhecimento a seu respeito10.

5. Esboco de analise crıtica das tresversoes das relacoes

A interpretacao estatıstica das relacoes de Heisenberge uma interpretacao mınima, que pode – e deve – seraceita por todas as partes em disputa, facultando-sea cada uma delas acrescentar-lhe elementos adicionais.A posicao de Popper em 1934 era a de que nada fosseacrescentado, ao menos ate que investigacoes ulteri-ores esclarecessem uma serie de questoes ontologicase epistemologicas suscitadas pela mecanica quantica.Isso estava inteiramente alinhado com o pensamentode Einstein, que a epoca ja insistia que a mecanicaquantica nao deveria ser entendida como uma teoriasobre objetos individuais, e sim sobre ensembles es-tatısticos. Como se sabe, ate o final de sua vidaessa interpretacao nortearia seu tratamento de virtual-mente todos os problemas conceituais e teoricos susci-tados pela mecanica quantica. Tal atitude de cautelamotiva-se por dois fatores. Primeiro, conforme ilustrao caso das relacoes de Heisenberg, tudo o que o for-malismo teorico propriamente dito autoriza e contem-plado pela interpretacao estatıstica. Depois, os diversosacrescimos interpretacionais propostos parecem todosenvolver problemas teoricos e filosoficos bastante serios.Vejamos como se pode argumentar a favor deste ultimoponto a partir do estudo das relacoes de Heisenberg11.

Comecemos pela interpretacao ontologica ondu-latoria exposta na secao 2. Como vimos, a propostaneste caso e de que os entes quanticos tem uma na-tureza ondulatoria, estendendo-se pelo espaco. A mo-tivacao experimental dessa interpretacao e, natural-mente, o conjunto de fenomenos que indicam que osobjetos quanticos (luz, eletrons, etc.) sofrem difracao einterferencia, como as ondas macroscopicas ordinarias.Do ponto de vista teorico, a motivacao liga-se ao forma-lismo quantico desenvolvido por Schrodinger, baseadonas chamadas “funcoes de onda”. Ora, a esse arrazoadose contrapoem diversas consideracoes.

Primeiro, quanto ao aspecto puramente experimen-tal, os mencionados fenomenos coexistem com outros,como o efeito fotoeletrico, o efeito Compton e o movi-mento browniano, que sugerem que os entes quanticossao partıculas. Esse e, naturalmente, o grande enigmaque intrigou os fısicos desde o inıcio do seculo XX, e queate hoje nao encontrou solucao satisfatoria. Uma ten-

tativa de soluciona-lo foi a ideia de que, embora essen-cialmente ondulatorios, os objetos quanticos parecempor vezes se comportar como partıculas porque nes-sas situacoes as “ondas” se concentram numa regiaomuito pequena do espaco, formando como que “singu-laridades”. Porem o mecanismo pelo qual isso ocorrerianao so nao esta contido no formalismo de Schrodinger,mas tambem nunca pode ser elucidado adequadamentedo ponto de vista fısico, envolvendo, ao contrario, umaserie de graves dificuldades teorico-conceituais, comoo famigerado “problema da medida”, ou, mais geral-mente, do “colapso da funcao de onda”, cuja exposicaonao cabe no escopo deste trabalho12.

Em segundo lugar, a tentativa de conceber a reali-dade quantica em conformidade literal com o formalis-mo ondulatorio de Schrodinger esbarra na dificuldadede que, a nao ser para o caso de uma unica “partıcula”,as funcoes de onda nao sao descritıveis em espacos comtres dimensoes. Que realidade seria essa, que “existe”em espacos com inumeras (e ate mesmo infinitas) di-mensoes? Por que a realidade percebida e sempre tridi-mensional? Esse problema foi notado logo no inıcio, eacabou levando o proprio Schrodinger ao abandono daideia, ou a busca de uma versao mais sofisticada paraela13.

Passemos agora a versao epistemologica das relacoesde Heisenberg. Como vimos na secao 3, a ideia centralaqui e que as relacoes nao dizem respeito a nenhumaindefinicao intrınseca dos objetos quanticos, mas sim-plesmente as limitacoes cognitivas sobre eles, devidasa um suposto disturbio incontrolavel e ineliminavelintroduzido quando da mensuracao das propriedadesdinamicas dos objetos. Deve-se enfatizar, no entanto,que embora no cerne dessa interpretacao esteja umatese de natureza epistemologica, a analise dos argumen-tos avancados a seu favor revela que eles pressupoemuma ontologia de partıculas. Tais argumentos apoiam-se em diversos experimentos de pensamento, o maisfamoso dos quais sendo o do microscopio de raios gama.Ja temos aqui os ingredientes para varias crıticas im-portantes a essa interpretacao.

Primeiro, ha o problema epistemologico de se de-fender um princıpio fısico que se supoe de aplicacaogeral por meio de consideracoes sobre situacoes ex-perimentais particulares. Esse problema nao e ex-clusivo desse caso, e claro, abrangendo na verdadepraticamente todo o domınio das ciencias naturais,como salientam as analises pioneiras de Locke e Humenos seculos XVII e XVIII. Mas no caso presente areferida generalizacao assume contornos especialmenteproblematicos, visto que pretende abarcar uma classeinteira de processos fısicos inteiramente diversos en-

10Mas os erros experimentais δq e δp devem, evidentemente, de ser razoavelmente menores que os desvios padroes, para que o estudoestatıstico da situacao seja possıvel.

11Para uma defesa mais abrangente da interpretacao estatıstica, veja-se o classico artigo de Ballentine [13].12Para uma analise atualizada desse problema, ver, por exemplo, [14].13Ver, a esse respeito, [15] e [16].

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tre si. As generalizacoes empıricas mais aceitaveis naciencia sao aquelas em que se parte de observacoes par-ticulares para uma lei geral que subsuma somente oscasos do mesmo tipo. Mas nos argumentos para as“relacoes de incerteza” pretende-se que o que (aparente-mente) vale para aquele tipo o microscopio vale paraqualquer outro, e para qualquer processo de observacaode qualquer grandeza dinamica em geral. Ora, nao epreciso muito tino epistemologico para perceber queessa inferencia e arriscada. O problema e agravadopela inexistencia de um suporte teorico adequado paraa generalizacao, em que pese a suposicao de que a exis-tencia do chamado “quantum de acao” poderia ser essesuporte.

Outro problema liga-se ao fato de os argumentosexperimentais para a presente versao das relacoes deHeisenberg se basearem em experimentos de pensa-mento. Numa analise bastante lucida do papel dessesexperimentos na ciencia, Popper defendeu a tese de queos experimentos de pensamento podem ter um papelimportante na crıtica de teorias e princıpios, mas naoem sua defesa, como e o caso aqui. Nao me alongarei so-bre esse ponto, remetendo o leitor diretamente ao textode Popper, um dos apendices introduzidos na traducaode seu livro ja mencionado ([10], apendice *xi).

Finalmente, o raciocınio de Heisenberg envolve umafalha conceitual grave e insanavel, igualmente apon-tada por Popper nesse livro, tendo sido posteriormenteexaminada tambem por outros autores. Ocorre que,propriamente interpretados, os experimentos de pensa-mento nao exibem a impossibilidade de medir simul-taneamente os pares de grandezas conjugadas. No casodo microscopio, por exemplo, o que se mede – como emqualquer observacao por microscopios, alias – e apenasa posicao da partıcula (eletron, p. ex.), nao o seu mo-mento. Este e assumido como tendo um valor precisobem conhecido (no caso, zero), como o proprio Heisen-berg deixa claro ao iniciar a exposicao do argumento:“Suponha, assim, que a velocidade de um eletron livreseja precisamente conhecida, ao passo que sua posicaoe completamente desconhecida” ([4], p. 20). O que oargumento visa a mostrar e apenas que a mensuracaoda posicao do eletron introduz um disturbio nesse mo-mento inicial, disturbio que nao pode ser determinadoquantitativamente de forma exata. Em consequencia,apos a mensuracao o estado do eletron sera tal quenem a posicao e bem conhecida (pois a medida neces-sariamente tem uma margem de imprecisao), nem omomento, e que o produto das incertezas e, no melhorcaso possıvel, da ordem da constante de Planck.

O ponto essencial aqui e a distincao entre men-suracao e preparacao de estado, ou “selecao fısica”,como colocou Popper em sua analise pioneira do as-sunto ([10], p. 225 ss.). Nao obstante a importancia dadistincao, ela so seria reconhecida e desenvolvida bemmais tarde, por Henry Margenau, em uma serie de tra-balhos publicados nas decadas de 1950 e 1960 [17], [18],

[19]; ver tambem [13]. Servindo-nos do exemplo usa-do por Popper para caracterizar essas nocoes, temosuma selecao fısica de posicao quando eliminamos deum feixe todas as partıculas, exceto aquelas que pas-sam por uma abertura estreita ∆x, situada em umadeterminada posicao de um anteparo. Esse arranjo ex-perimental nao assegura, porem, que alguma partıculade fato tenha passado pela abertura. Para tanto, umdetector – contador Geiger, placa fotografica, etc. – de-vera ser colocado diante da abertura. Somente quandouma partıcula e efetivamente registrada, temos umamensuracao (no caso, de posicao). Como salientouMargenau, a preparacao de estado e um processo pu-ramente hipotetico; pode ate ocorrer que a preparacaoseja vazia, ou seja, que de fato nenhum objeto fısico sejapreparado no estado desejado ([17], p. 30). Por outrolado, uma “mensuracao significa colocar uma questaopara a Natureza e obter uma resposta unica” ([17], p.26).

Em termos dessas nocoes, o experimento do micros-copio de raios gama e um experimento de mensuracaode posicao, mas nao de momento, e de preparacaode momento, mas nao de posicao. Com a vantagemda retrospeccao, podemos mesmo notar que o proprioHeisenberg reconheceu essa distincao em sua essencia,ao salientar que sua relacao de incerteza

nao se refere ao passado; se a velocidadedo eletron e inicialmente conhecida [comoo argumento explicitamente assume] e aposicao e mensurada com exatidao [o queem princıpio e possıvel], a posicao para tem-pos anteriores a mensuracao pode ser cal-culada. Entao, para tais tempos ∆p∆qe menor do que o limite usual [dado pelarelacao de incerteza] ([4], p. 20; grifei).

Esses comentarios sao absolutamente corretos. Aodizer que a relacao nao se refere ao passado Heisen-berg esta efetivamente reconhecendo que o que o ex-perimento faz com o eletron e preparar seu momento:a incerteza ∆p que aparece na formula obtida e refe-rente ao estado do eletron depois do experimento, naosendo pois propriamente uma incerteza de mensuracao.Por outro lado, o que e efetivamente medido e a posicaodo eletron. Nao ha nenhum limite fixo para a precisaodessa medida, como o proprio Heisenberg muitas vezesressaltou. Assim, o experimento e inteiramente com-patıvel com a situacao indicada por Heisenberg nessacitacao, e que numa analise equivocada poderia servista como a violacao do princıpio de incerteza. Na ver-dade, nao ha essa violacao, e claro, desde que se atenteao ponto que Heisenberg esta efetivamente fazendo: oprincıpio limita a preparacao de estado (que remete aofuturo) nao a mensuracao de pares de grandezas conju-gadas (relativa ao passado).

Note-se agora que essa interpretacao do experi-mento do microscopio e inteiramente compatıvel com

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a interpretacao estatıstica das relacoes de Heisen-berg. Segundo essa interpretacao, lembremos, nao seriapossıvel, dentro da teoria quantica, haver ensembles deobjetos quanticos para os quais a dispersao estatısticanos valores de pares de grandezas fısicas conjugadase menor do que o indicado nas relacoes. O que issoquer dizer em termos fısicos, assumindo-se a adequacaoempırica da teoria, e que nao e possıvel preparar experi-mentalmente tais ensembles. Ora, o experimento deHeisenberg, corretamente interpretado, simplesmenteilustra esse princıpio numa situacao particular. Note-se, a proposito, que o tıtulo da secao em Heisenberg1930 [4] em que o experimento do microscopio e outrosexperimentos gedanken sao apresentados e justamente“Ilustracoes das relacoes de incerteza”.

Parece que, finalmente, estamos indo por um cami-nho seguro. Infelizmente, porem, difundiu-se ampla-mente a ideia de que as relacoes de Heisenberg in-dicam a impossibilidade de mensuracoes simultaneas degrandezas conjugadas com precisao maior do que a in-dicada. Para essa tradicao desafortunada contribuıramo proprio Heisenberg, Bohr e praticamente todos ospais da teoria, com possıvel excecao de Einstein. Acrıtica aqui apresentada deve-se pioneiramente a Pop-per, mas como ja observei, ela foi ignorada por mais deduas decadas. Depois dos trabalhos teoricos de Mar-genau e de outros pesquisadores, bem como das ex-tensivas analises historicas de Jammer, o ponto foi fi-nalmente reconhecido no cırculo dos pesquisadores dosfundamentos da mecanica quantica; todavia, fora deleas confusoes perduram ate hoje.

Essa analise mais rigorosa das relacoes de Heisen-berg deixa, no entanto, uma serie de questoes emaberto. Um primeiro ponto diz respeito a propriamensurabilidade simultanea com precisao arbitraria depares de grandezas conjugadas. Muito embora, comovimos, essa possibilidade nao seja vedada pelas relacoes,o formalismo quantico nao tem como acomodar o even-tual conhecimento obtido por uma tal mensuracao. Masao contrario de Einstein, que via nisso uma indicacaode que a teoria oferece uma descricao incompleta da re-alidade14, Heisenberg nao se impressionou com o fato,aparentemente pelas razoes apontadas no seu livro de1930, logo apos o trecho da p. 20 citado acima, emque admite que suas relacoes nao excluem a possibili-dade de medicoes simultaneas com precisao arbitraria.Segundo Heisenberg, o eventual “conhecimento do pas-sado” obtido por tais medicoes

e de carater puramente especulativo, visto

que nunca pode (em razao da alteracaodesconhecida do momento causada pelamensuracao da posicao) ser usado comocondicao inicial em nenhum calculo daprogressao futura do eletron, nao podendoportanto ser objeto de verificacao experi-mental. E uma questao de pura crenca pes-soal se ao calculo relativo a historia passadado eletron pode-se ou nao atribuir realidadefısica. ([4], p. 20).

Essa e uma das mais penetrantes observacoes jafeitas sobre a questao que ora nos ocupa. Em minhaopiniao, traz um desafio muito mais forte aos defen-sores da tese da incompletude do que os famosos – eobscuros – argumentos de Bohr. Infelizmente, o pontoficou diluıdo no meio de toda uma discussao mal di-recionada de outros aspectos relativos a questao. So-mente Popper, ao que eu sabia, procurou dar uma res-posta explıcita a esse argumento de Heisenberg ([10],secao 76). O que Popper faz e, em sıntese, argumen-tar que nao obstante o disturbio no ato da mensuracaoe a consequente validade das relacoes de Heisenberg,o conhecimento obtido por eventuais medidas precisasde grandezas conjugadas (que no trecho citado Heisen-berg chama de “calculo relativo a historia passada doeletron”) pode desempenhar um papel importante noteste da teoria, e portanto na sua legitimacao cientıfica.Uma avaliacao rigorosa desse ponto delicado e algo queainda esta por ser feito.

Antes de deixar esse assunto, vale a pena mencionarque ha na literatura propostas explıcitas de experimen-tos de pensamento para mostrar a possibilidade de men-suracoes de posicao e momento com precisao arbitrari-amente grande15. Ademais, investigacoes teoricas daquestao da mensurabilidade simultanea de grandezasconjugadas levaram, a partir da decada de 1960, a umdebate especıfico bastante tecnico na literatura16.

6. Indo um pouco alem...

Para finalizar, algo deve ser dito aqui sobre a percepcaocomum de que, embora correta, a interpretacao es-tatıstica das relacoes de Heisenberg deixa algo a desejar,no sentido de nao oferecer uma explicacao para a exis-tencia dos limites mınimos na dispersao estatıstica degrandezas fısicas envolvidas. As opcoes para o forneci-mento de uma tal explicacao se delineiam dentro daspropostas gerais de tratamento dos problemas conceitu-ais e teoricos que assolam os fundamentos da mecanica

14Essa tese foi defendida explicitamente por Einstein por meio do famoso argumento envolvendo pares de objetos quanticos correla-cionados [20]. Note-se que os continuados esforcos de Einstein (e tambem de Schrodinger, visto que o seu argumento do “gato” tinhao mesmo objetivo; ver [21]) para estabelecer essa tese so fazem sentido quando se assume a versao correta das relacoes de Heisenberg.Embora Einstein nao tenha desenvolvido uma analise tao incisiva e detalhada dessas relacoes como fez Popper, esta claro que ele nuncaaceitou a interpretacao popular errada daquelas relacoes. Para uma analise detalhada das posicoes de Einstein quanto a mecanicaquantica, ver [22] e [23], assim como o classico [24].

15Ver [25] e [13]. Tais experimentos sao do mesmo tipo do esbocado por Heisenberg no trecho citado acima [4], p. 20; ver tambem[10]. Nao disponho de espaco aqui para discutir esses interessantes, porem controversos, experimentos.

16Para uma avaliacao recente, com referencias aos principais trabalhos, ver [26].

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quantica. Um assunto tao vasto nao pode ser tratadoneste artigo, naturalmente. Limitar-me-ei a identificaralgumas posicoes, comentando-as brevemente.

Uma opcao que nao parece ter chances de sucessoe a de acoplar a interpretacao estatıstica a uma on-tologia de partıculas classicas, como a pressuposta noexperimento do microscopio de raios gama. Naquele ex-perimento, lembremos, toda a carga de inovacao, rela-tivamente a perspectiva da fısica classica, recai sobre aexistencia do “quantum de acao” e sua influencia sobreo processo de medicao. Mas ha aqui um problema deordem fısica e outro de ordem filosofica. Primeiro, den-tro de um referencial puramente classico nao ha comoencaixar a quantizacao das quantidades fısicas. De-pois, o deslocamento da explicacao das peculiaridadesdos fenomenos quanticos para o ato de medicao trazo risco latente de subjetivizacao da fısica. Como ahistoria do debate sobre a mecanica quantica bem teste-munha, por essa ladeira muitos efetivamente escorre-garam, puxados pelo proprio Heisenberg e por Bohr,que facilmente passavam da tese fısica, em princıpiodefensavel, de um disturbio fısico entre o aparelho demedicao e o objeto medido para a tese filosofica duvi-dosa de uma interferencia mutua entre este ultimo e os“agentes de observacao”, no sentido do sujeito cogni-tivo, com a suposta implicacao de uma ruptura essen-cial, pela mecanica quantica, da distincao geral entresujeito e objeto. Nao ha espaco aqui para examinara fragilidade dessa inferencia. Tampouco poderei co-mentar aquela que parece ter sido a unica tentativa deinstaurar uma interpretacao de partıculas em bases pu-ramente fısicas, a saber, a hoje desacreditada propostade Alfred Lande17.

Outra opcao explicativa para as relacoes de dis-persao estatıstica de Heisenberg seria insistir na in-terpretacao ontologica ondulatoria. Ja comentei, aolongo do texto, algumas das graves dificuldades fısicase conceituais que essa proposta envolve, entre as quaissobreleva a de dar conta dos aspectos corpuscularesda materia e da radiacao. Mas, ao contrario daopcao precedente, parece haver aqui alguma margempara a sofisticacao da ideia tosca inicial. O proprioSchrodinger parece ter voltado a explorar esse caminhona fase final de sua producao cientıfica (ver [16], [27]).Limito-me aqui a observar que, nao obstante a impres-sionante magnitude das dificuldades que coloca, essaproposta fascina pelos potenciais ganhos que seu even-tual encaminhamento frutıfero poderia trazer, que cer-tamente incluiriam um esclarecimento geral da situacaonos fundamentos da teoria quantica.

Uma terceira opcao e, em certo sentido, umasolucao de compromisso: admitir na ontologia ondas epartıculas ao mesmo tempo. Nessa proposta, delineadapor de Broglie ao mesmo tempo em que a mecanica

quantica era criada, partıculas seriam “guiadas” porondas. Mas nem as partıculas nem as ondas envolvi-das sao inteiramente classicas. Como ocorreu com ainterpretacao puramente ondulatoria de Schrodinger,porem, a ideia foi logo abandonada pelo seu propriocriador, por causa de varias objecoes levantadas contraela. Mas a ideia das “ondas pilotos” reviveu na decadade 1950, ao ser incorporada a teoria de variaveis ocul-tas formulada por David Bohm [28]. O programa depesquisa a que essa surpreendente realizacao deu lu-gar assumiu um alto grau de desenvolvimento tecnicoe conceitual, continuando sempre ativo, ainda que mi-noritario, ate nossos dias. Ele ofereceu, de forma di-reta ou indireta, contribuicoes de grande importanciapara a microfısica, que nao cabe examinar aqui18.No que diz respeito especificamente a questao centralque nos interessa presentemente, vale mencionar queo efeito de perturbacao no ato da medida e explicita-mente incorporado pela teoria de Bohm, que indica ummecanismo para ele. Mas ao contrario do tratamentodado a questao pela interpretacao de Copenhague, essemecanismo nao envolve nenhum elemento subjetivo,inserindo-se no quadro geral das interacoes fısicas (nocaso, as resultantes do “potencial quantico”). Do pontode vista teorico, a maior objecao a que a teoria esta su-jeita talvez seja o fato de envolver um tipo de acao nao-local mais forte do que o presente na propria mecanicaquantica19. Do ponto de vista metodologico, paira so-bre a teoria a acusacao de violar o princıpio da navalhade Occam, visto que as variaveis adicionais que intro-duz (que nao sao outras senao as proprias posicoes daspartıculas) nao estao sob controle experimental com-pleto. Em consequencia disso, a teoria nao fornece ne-nhum ganho empırico sobre a versao estatıstica comumda mecanica quantica.

Passando agora a algumas sugestoes mais vagas,vale mencionar uma guinada que o pensamento de Pop-per sofreu desde o lancamento inicial de seu livro, em1934, ate sua traducao, em 1959. Como vimos, nolivro Popper explicitou e defendeu a interpretacao pura-mente estatıstica das relacoes de Heisenberg, dentro doquadro geral da interpretacao estatıstica da mecanicaquantica. Para ele, assim como para Einstein, as proba-bilidades quanticas em nada diferiam das probabili-dades presentes nas teorias classicas, como a mecanicaestatıstica de Maxwell e Boltzmann. Essas probabili-dades teriam, pois, origem epistemica (falta de conheci-mento detalhado dos processos fısicos) e, alem disso, de-veriam ser estimadas experimentalmente por meio defrequencias relativas. Tal abordagem alia-se, natural-mente, a nocao de uma realidade determinista subja-cente aos fenomenos quanticos, como propoe de formaexplıcita a teoria de variaveis ocultas de Bohm, porexemplo. Mas ao passo que Einstein aparentemente

17Para referencias, sıntese e crıticas, ver [7], secao 10.3. Para um dos raros comentarios otimistas quanto a essa proposta, ver [13].18Ver, a esse respeito, Chibeni [6] e as referencias ali citadas.19Ha uma vasta literatura sobre isso. Ver, por exemplo, os esclarecedores estudos de Jarrett [29] e Shimony [30].

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nunca alterou suas conviccoes acerca de um substratodeterminista para a fısica quantica20, Popper abando-nou explicitamente a visao determinista na edicao de1959 da Logica da Descoberta Cientıfica. Ao revisare traduzir seu livro, inseriu inumeras notas e algunsapendices novos, em que indica ponto por ponto as al-teracoes que gostaria de introduzir no que antes sus-tentara. Em sıntese, sugere agora que as probabili-dades quanticas tem origem em certos tracos pecu-liares aos objetos quanticos, a que chamou de propensi-dades (“propensities”). Isso significou, pois, uma rup-tura conceitual importante, nao somente pela adesaoao indeterminismo, mas tambem pela suplementacaoda interpretacao estatıstica por uma tese acerca dosobjetos individuais. Deve-se enfatizar que, sendo umasuplementacao, este ultimo aspecto nao altera o queha de essencial nas posicoes anteriores de Popper acer-ca da interpretacao estatıstica da mecanica quantica,incluindo-se aı o tratamento dado as relacoes de Heisen-berg. A nova sugestao opera no nıvel de uma explicacaopara aquelas relacoes e para os fenomenos quanticos emgeral. A fraqueza da proposta e, claramente, seu caraterexcessivamente vago, visto que pouco esclarece em ter-mos fısicos precisos acerca das tais propensidades, naoobstante a extensao e o refinamento da analise fi-losofica do assunto feita por Popper num dos volumesdo posfacio da Logica [33]. Crıtica semelhante se aplicaas analises posteriores de Nicholas Maxwell [34], [35],que seguem na mesma direcao, propondo a introducaodas nocoes de “smearons”, ou de “propensitons discre-tos”, para formar a base de uma ontologia quantica.

Em minha opiniao, as contribuicoes desses e de di-versos outros pesquisadores contemporaneos dos fun-damentos da mecanica quantica, alem de terem aju-dado a retificar falhas que entravaram o progresso daspesquisas por muito tempo, apontam tambem no sen-tido de um maior interesse no desenvolvimento de umainterpretacao realista da teoria quantica. O dogma-tismo historico que proibia ou desencorajava a buscade uma tal interpretacao vai, assim, sendo aos poucosquebrado21, 22.

Referencias

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[4] W. Heisenberg, 1930. The Physical Principles of theQuantum Theory (Dover, New York, 1949, traduzidopor C. Eckart e F.C. Hoyt).

[5] A. Tartaglia, European Journal of Physics 19, 307(1998).

[6] S.S. Chibeni, Aspectos da Descricao Fısica da Reali-dade. (Colecao CLE, v. 21, Centro de Logica da Uni-camp, Campinas, 1997).

[7] M. Jammer, The Philosophy of Quantum Mechanics(John Wiley & Sons, New York, 1974).

[8] D. Bohm, Quantum Theory (Prentice-Hall, EnglewoodCliffs, 1951).

[9] O. Pessoa Jr., Conceitos de Fısica Quantica (EditoraLivraria da Fısica, Sao Paulo, 2003).

[10] K.R. Popper, The Logic of Scientific Discovery(Hutchinson, London, 1968), 5 ed. (originalmente Logikder Forschung, que saiu em Viena em 1934, com datade 1935. Traducao inglesa do autor, revista e ampliada,1959).

[11] E. Schrodinger, Proceedings of the American Philo-sophical Society 124, 323 (1980) (traduzido porJ.D. Trimmer. Originalmente publicado em Naturwis-senschaften 23, 807, 823 e 844 (1935)).

[12] H.P. Robertson, Physical Review 34, 163 (1929).

[13] L.E. Ballentine, Review of Modern Physics 42, 358(1970).

[14] O. Pessoa Jr, Cadernos de Historia e Filosofia daCiencia, Serie 3, 2, 177 (1992).

[15] J. Dorling, Schrodinger’s original interpretation of theSchrodinger’s equation: A rescue attempt, in: C.W.Kilmister (ed), Schrodinger, Centenary Celebration ofa Polymath (Cambridge University Press, Cambridge,1987) p. 16-40.

[16] M. Bitbol, in Introducao a coletanea de textos deSchrodinger, editado por M. Bitbol, The Interpretationof Quantum Mechanics (Ox Bow Press,mWoodbridge,1995).

[17] H. Margenau, Philosophy of Science 25, 23 (1958).

[18] H. Margenau, Philosophy of Science 30, 1 e 138(1963a).

[19] Margenau, H. Annals of Physics 23, 469 (1963b).

[20] A. Einstein, B. Podolsky e N. Rosen, Physical Review47, 777 (1935).

20Embora, como ressaltaram diversos historiadores, o compromisso com o determinismo nao fosse o ponto central das crıticas deEinstein a teoria quantica (ver e.g. [31], [23] e [32], cap. 9). Note-se tambem que Einstein nao se entusiasmou com a teoria de variaveisocultas apresentada por Bohm em 1952 [28], por considera-la uma solucao remendada para os problemas dos fundamentos da fısicaquantica.

21Para um mapeamento dos horizontes de investigacao abertos na microfısica pela superacao de barreiras introduzidas pela inter-pretacao de Copenhague, ver [6], cap. 7. Para a sugestao de que a busca de uma interpretacao realista da mecanica quantica pode edeve ser guiada por seu proprio formalismo teorico, ver [36].

22Gostaria de agradecer a Michel Paty e Osvaldo Pessoa Jr. os valiosos comentarios que fizeram a versoes preliminares deste texto.A versao eletronica da Fig. 1 foi-me gentilmente cedida por este ultimo pesquisador.

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[21] A. Fine, The Shaky Game. Einstein and the Quan-tum Theory (The University of Chicago Press, Chicago,1986).

[22] M. Paty, Einstein Philosophe (Presses Universitairesde France, Paris, 1993b).

[23] M. Paty, Foundations of Physics 25, 183 (1995).

[24] A. Pais, Subtle is the Lord (Oxford University Press,Oxford, 1982).

[25] M.C. Robinson, Canadian Journal of Physics 47, 963(1969).

[26] J. Uffink, International Journal of Theoretical Physics33, 199 (1994).

[27] M. Paty, Formalisme et interpretation physique chezSchrodinger, in: M. Bitbol. e O. Darrigol (eds), ErwinSchrodinger. Philosophy and the Birth of Quantum Me-chanics (Editions Frontieres, Gif-sur-Ivette, 1993c), p.161-190.

[28] D. Bohm, Physical Review 85, 166 e 180 (1952).

[29] J.P. Jarrett, Nous 18, 569 (1984).

[30] A. Shimony, Controllable and uncontrollable non-locality, in: Kamefuchi et al. (eds) Foundations ofQuantum Mechanics in the Light of New Technology(The Physical Society of Japan, Tokio, 1984) e repro-duzido em A. Shimony, Search for a Naturalistic WorldView (Cambridge University Press, Cambridge, 1993),v. II, p. 130-139.

[31] M. Paty, La Pensee 292, 93 (1993a).

[32] M. Paty, Albert Einstein, ou la Creation Scientifiquedu Monde (Les Belles Lettres, Paris, 1997).

[33] K.R. Popper, Quantum Theory and the Schism inPhysics (Hutchinson, London, 1982).

[34] N. Maxwell, Foundations of Physics 12, 607 (1982).

[35] N. Maxwell, The British Journal for the Philosophy ofScience 39, 1 (1988).

[36] M. Paty, European Journal of Physics 20, 373 (1999).

[37] S.S. Chibeni, European Journal of Physics 22, 9 (2001).

[38] C.W. Kilmister (ed.), Schrodinger, Centenary Celebra-tion of a Polymath (Cambridge University Press, Cam-bridge, 1987).