Cícero e a História

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    Resumo

    Abstract

    Palavras-Chave

    Keywords

    CCERO E A HISTRIA

    Renato AmbrsioMestre em Letras Clssicas-FFLCH/USP

    Este artigo prope-se analisar as reflexes a respeito da histria queCcero elaborou em dois textos de carter preceptivo: a carta ao his-toriador Luceio (Ad familiares V,12); e algumas passagens do LivroII doDe oratore (Sobre o orador), um tratado dialogal sobre a retri-ca. A anlise aqui empreendida procura situar o papel da retrica na

    elaborao dessas reflexes ciceronianas sobre a histria.

    The purpose of this article is to analyze Ciceros reflections on historyas presented in his two didactic texts: the letter to the historian Luceio(Ad familiares V,12), and some passages of Book II ofDe oratore(About the Orator), a dialogic treatise on rhetoric. The present analysisseeks to set the role of rhetoric in the development of these Ciceronian

    reflections on history.

    Historiografia Antiga Retrica Ccero Literatura Latina

    Ancient Historiography Rhetoric Cicero Latin Literature

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    Historia est disciplina composita de bono practico obtinendoex historia [...] Historia est theatrum universitatis rerum,speculum temporis, thesaurus demonstrationis, oculussapientiae, speculum uanitatis, imbecillitatis et stultitiae, prin-cipium prudentiae, custos et praeco uirtutum, testis malitiaeac improbitatis, uates ueritatis, sapientiae metropolis, etthesaurus ad omnem posteritatem, seu ktema eis aei.

    1(J.H.

    Alsted. Scientiarum omnium Encyclopaediae, 1649)

    Pois prprio do esprito humano que os exemplos no cor-rijam ningum; as besteiras dos pais no contam para as cri-anas, preciso que cada gerao faa as suas. (Frederico,O Grande.Histria da Guerra dos Sete Anos, 1763)

    Eu volto nos sculos, um a um, at a Antigidade mais re-mota: no vejo nada que se assemelhe ao que est sob os meusolhos. E se o passado no ilumina mais o que est por vir, oesprito caminha nas trevas.

    2(Alex de Tocqueville.A demo-

    cracia na Amrica, 1835.)

    rocuraremos, no decorrer deste artigo, analisar as reflexes que Ccero fez sobre a

    historia em algumas de suas obras. Nenhuma dessas obras tinha como tema principal

    a historia, muito menos a cincia da histria como a entendemos hoje. Nenhuma delas

    foi escrita especialmente para os scriptores rerum (historiadores) contemporneos seus,

    muito menos para os historiadores que hoje elaboram e ratificam a cincia da histria.

    Mesmo assim, as reflexes de Ccero em seus tratados de retrica, em suas cartas aos

    amigos, influenciaram, a partir de ento, os historiadoresromanos.

    Na obra de Ccero, as citaes mais amplas e complexas entre aquelas que apre-

    sentam explicitamente o termo historia, e que por isso mesmo so as mais analisadas

    pelos autores modernos, encontram-se noDe oratore, II. 51- 64,De legibus, I.2,e

    P

    1A histria a disciplina composta do bem prtico que se deve obter a partir da histria. A histria o teatro das coisas do universo, espelho do tempo, tesouro da demonstrao, olho da sabedoria,espelho da vaidade, da fraqueza e da estupidez, princpio de prudncia, guardi e arauto das virtu-des, testemunha da malcia e da improbidade, vate da verdade, cidade da sabedoria, e tesouro paratoda a posteridade, ou um tesouro para sempre.2 A traduo desta e da epgrafe anterior de Mrcia C. R. Lopes.

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    na carta que escreveu a Luceio (Ad familiares V.12). A historia est presente tambmem outras passagens (como no prprioDe oratore, II.36 e no Orator, 66), mas a

    carta e os trechos inicialmente referidos tm particular interesse, seja pela sua exten-

    so e elaborao, seja pelo seu carter claramente preceptivo, j que tratam de como

    se deve escrever a historia e a importncia da retrica e do oratornessa tarefa.

    O tratadoDe oratore construdo em forma de um dilogo sobre a retrica,

    que teria acontecido na vila de Lcio Licnio Crasso em Tscolo. Participam detodo o dilogo o prprio Crasso, Marco Antnio, av do futuro trinviro Marco

    Antnio, P. Sulpcio Rufo, C. Aurlio Cota. O ugure e estudioso de direito Q. Mcio

    Cvola, participa apenas do livro I. Os livros II e III introduzem outros dois perso-

    nagens: Q. Lutcio Ctulo, companheiro de Mrio no consulado, e seu meio irmo

    C. Jlio Csar Estrabo.

    No livro II, no trecho que nos interessa, Marco Antnio afirma (28-38) que a ret-rica tem muito de talento natural (facultas) e pouco de tcnica (ars), mas alguns pre-

    ceitos para o orador podem ser derivados da observao direta da experincia no vasto

    campo de temas e discursos dos quais se ocupa a retrica. So esses preceitos que

    Marco Antnio prope como alternativa estreita doctrina e aos abstratospraecepta

    oferecidos pelos manuais helensticos de retrica. (Cape Jr. 1997: 213-215).

    Marco Antnio continua e, para sustentar sua proposta, introduz na discusso ognero demonstrativo, pouco presente nos manuais de retrica, por ser to claro a

    ponto de dispensar regras e preceitos. Na ausncia deste, a prtica, a observao,

    o conhecimento do mundo que fornecem as regras desse gnero.

    Sed non omnia, quaecumque loquimur, mihi uidentur ad artem et ad praeceptaesse reuocanda. Ex eis enim fontibus, unde omnia praecepta dicendi sumuntur,

    licebit etiam laudationem ornare, neque illa elementa desiderare, quae ut nemotradat, quis est, qui nesciat, quae sint in homine laudanda? (De oratore, II. 45)

    Mas nem todas as coisas sobre as quais discursamos parecem ser evocadas pelatcnica e pelos preceitos. Daquelas mesmas fontes das quais tiramos todos ospreceitos do dizer ordenadamente, ser possvel tambm ornar um elogio e noachar falta daqueles princpios que ningum d. Quem que desconhece o quedeve ser louvado em um homem?

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    nesse contexto argumentativo que aparece pela primeira vez a historia: no fim deuma passagem na qual Marco Antnio descreve afacultas dicendi do orador fora daquilo

    que seria o mbito da retrica contemplado pelos manuais, in foroatque in oculis ciuis

    (II.41). A referncia historia aparece aps uma srie de perguntas, marcadas por

    advrbios no grau comparativo, que apresentam as funes do gnero demonstrativo:

    35.

    Quis cohortari ad uirtutem ardentius, quis a uitiis acrius reuocare? Quisuituperare improbos asperius, quis laudare bonos ornatius? Quis cupiditatemuehementius frangere asccusando potest? Quis maerorem leuare mitius conso-lando? 36. Historia uero testis temporum, lux ueritatis, uita memoriae, magistrauitae, nuntia uetustatis, qua uoce nise oratoris, immortalitati commendatur? (Deoratore, II. 35-36)

    35. Quem exorta a virtude mais ardentemente, quem mais severamente faz re-

    cuar dos vcios? Quem vitupera os mprobos mais asperamente, quem mais ele-gantemente louva os bons? Quem pode, acusando, abater a cupidez com maisveemncia? Quem, consolando, alivia mais docemente as aflies? 36.A hist-ria, na verdade, testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memria, mes-tra da vida, mensageira da Antigidade, com que palavra, a no ser a do orador,ser confiada eternidade?

    A ao do orador estende-se assim para alm do frum e do Senado; no gnero

    demonstrativo passa a ter tambm inteno didtica e de exortao moral. histria,

    como gnero demonstrativo, so atribudos os mesmos fins(Cape Jr. 1997:217-218).

    Mais adiante, a historia volta a aparecer na argumentao de Marco Antnio

    (II.51-64). Um pouco antes desse trecho (II.50), o famoso orador retoma a idia de

    que h matrias que, apropriadas ao orador, no tm presena significativa nos ma-

    nuais retricos e nem contam com preceiturio (... neque habent suum locum ullum

    in divisione partium, neque certum praeceptrorum genus...).Essas res devem ser tratadas to eloqentemente como aquelas dos discursos

    judicirios (... et agenda sunt non minus disserte, quam quae in lite dicuntur, ...),

    3 As tradues sem atribuio so do autor do artigo.

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    mas no exigem nenhum preceito da retrica (... sed ex artificio res istae praeceptanon quaerunt...). Depois dessas afirmaes, Antnio traz de novo a historia sua

    argumentao, por meio de uma pergunta a Ctulo.

    Age uero, inquit Antonius, qualis oratoris, et quanti hominis in dicendo, putasesse, historiam scribere? Si, ut graeci scrpiserunt, summi, inquit Catulus; si, utnostri, nihil opus est oratore: satis est nos esse mendacem.(De oratores, II.51)

    Ora, diz Antnio, de que natureza de orador e de quo grande homem no dizertu julgas ser prprio escrever histria? Se for para escrever como os historiado-res gregos escreveram, do mais elevado, diz Ctulo, se for para escrever comoos nossos, no necessrio um orador: suficiente no ser mentiroso.

    A resposta de Ctulo a Antnio, comparando os historiadores gregos com os

    romanos, separa nitidamente a inuentio da elocuono scriberehistoriam. Para es-crever histria como os romanos, no necessrio ser um grande orador, basta no

    ser mentiroso, isto , basta a inuentio. Mas para escrever como os historiadores gre-

    gos, necessrio um grande orador.

    Com isso, Ctulo afirma a superioridade dos gregos no que diz respeito a elocu-

    o. A rplica de Marco Antnio confirma essa idia.

    Atqui, ne nostros contemnas, inquit Antonius, Graeci quoque sic initioscriptitarunt, ut noster Cato, ut Pictor, ut Piso. Erat enim historia nihil aliud nisiannalium confectio, cuius rei, memoriaeque publicae retinendae causa, ab initiorerum Romanorum usque ad P. Mucium pontificem maximum, res omnessingulorum annorum mandabat litteris pontifex maximus, referebatque in album,et proponebat tabulam domi, potestas ut esset populo cogonoscendi, hique etiamnunc Annales Maximi nominantur. Hanc similitudem scribendi multi secuti sunt,

    qui sine ullis ornamentis monumenta solum temporum, hominum, locorumgestarumque rerum reliquerunt. Itaque qualis apud graecos Pherecydes,Hellanicus, Acsilas fuit, aliique permulti, talis noster Cato, et Pictor, et Piso,qui neque tenent, quibus rebus ornetur oratio modo enim huc ista sunt importata et, dum intellegatur, quid dicant, unam dicendi laudem putant esse breuitatem.(De oratore II.51-53)

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    Todavia, para que no desprezes os nossos historiadores, diz Antnio, tambmos gregos, no incio, escreveram muitas vezes assim, como os nossos Cato, Pictore Piso. De fato, a histria no era nada alm da composio de anais, cujos fatos,para serem retidos para a memria pblica, desde o incio das faanhas romanasat o pontificado mximo de P. Mcio, o pontfice mximo mandava-os s letrasa cada ano, escrevia os anais e os expunha em tbuas diante da sua casa, paraque ao povo fosse dado a possibilidade de conhec-los; eram ento, e tambmagora o so, chamados Anais Mximos. Muitos seguiram essa uniformidade ao

    escrever, e deixaram, sem nenhum ornamento, somente os monumentos dos tem-pos, dos homens, dos lugares e das coisas empreendidas. Assim, dessa natureza,

    junto aos gregos houve Ferecides, Helnicos, Acsilas, e outros em grande quanti-dade, tais como o nosso Cato, Pictor e Piso, que no tinham os meios pelosquais a orao ornada pois h pouco essas coisas foram importadas para c e, ento, at onde se entende o que dizem, julgavam ser a brevidade o nicomrito do discurso.

    Marco Antnio concorda com Ctulo, maslhe faz ver que scribere historiam

    sem quase nenhuma preocupao com a elocuo no uma caracterstica apenas

    dos historiadores latinos, que ainda no sabiam como ornar um discurso. Tambm

    os gregos tiveram, no incio, historiadores que negligenciavam a elocuo.

    Em Roma, esse era o genus scribendi que caracterizava osAnnales Maximi, arquivos

    pontificais que registravam os fatos mais importantes do consulado do ano corresponden-

    te. De incio, registravam-se acontecimentos considerados religiosos, tais como eclip-

    ses, secas, carestias, epidemias, pressgios. Em seguida, passou-se s crnicas dos fatos

    mais importantes do ano, sem nenhuma preocupao com a exornao.

    OsAnnales tinham, portanto, carter religioso e cvico: eram redigidos pelo

    Pontifex Maximus, chefe do colgio sacerdotal dospontifices, e expostos ao pblico

    para que ficasse ciente que aquilo de que aconteceu tinha sido registrado. Tambm

    o seu contedo tinha um carter cvico e religioso.Mas pela exposio de Antnio, ficamos sabendo que muitos historiadores, tanto

    gregos como romanos, adotaram o modo de escrever dosAnnales, sem se preocupar

    com a elocuo (sine ullis ornamentis). Na Grcia esse gnero apareceu no incio

    da historiografia. Em Roma foi adotado primeiramente graas pouca preparao

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    retrica dos historiadores latinos, depois como um subgnero historiogrfico. Onico autor de historias romano desse perodo que se diferenciou um pouco foi Clio

    Antpatro, que no dizer de Marco Antnio:

    Paulum se erexit, et addidit historiae maiorem sonum uocis uir optimus, Crassifamiliaris, Antipater: ceteri non exornatores rerum, sed tantummodo narratoresfuerunt (De oratore, II.54).

    Ergueu-se um pouco, e trouxe histria um maior tom de voz, o timo homem,amigo de Crasso, Antpatro: os outros no foram ornadores de histrias, mas ape-nas narradores.

    A historia faz parte do gnero demonstrativo, por isso tem a funo didtica de

    exortao moral. O scriptor rerum Semprnio Aslio, tribuno militar em 134 a. C.

    sob o comando de Cipio Emiliano na tomada de Numncia, apontou a incapacidadedos anais pontificais em cumprir o que se espera do gnero demonstrativo e as li-

    mitaes de sua elocuo:

    Pois de forma alguma podem os anais levar os homens a serem mais vidos em de-fender o seu pas ou faz-los menos propcios ao erro. Escrever quando uma guerracomeou, sob qual cnsul, quem entrou em triunfo na cidade depois da guerra e o que

    aconteceu na guerra contar histrias para crianas, no escrever histria. (SemprnioAslio, in H. PETER.Historicorum romanorum fragmenta. Lipsiae, 1883. Fr. 2).

    Nessas palavras de Semprnio, podemos ver que diferena existe entre ser um

    exornator rerum ou apenas um narratorrerum. Este no tem como fazer com que

    a histria, como gnero demonstrativo, cumpra o seu objetivo didtico e de exortao

    moral. A histria s atinge seus objetivos nas mos de um exornator rerum.

    Mesmo Clio Antpatro no conseguiu chegar a ser um exornator rerum, poisnas palavras de Ctulo:

    Sed iste ipse Coelius neque distinxit historiam uarietate colorum, nequeuerborum collocatione et tractu orationis leni et aequabili perpoliuit illud opus;sed ut homo neque doctus; neque maxime aptus ad dicendum, sicut potuit, dolauit:uicit tamen, ut dicis, superiores. (De oratore, II.54)

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    A historia foi pedida a ti, ou melhor, por muito tempo at suplicada. Assim pen-sam que, tratando-a tu, ela possa ser criada, para que tambm nesse gnero nadafiquemos a dever para a Grcia. E, para que tu possas saber o que eu mesmopenso, pareces-me dever esse servio no s ao desejo daqueles que se deleitamcom teus escritos, mas tambm ptria, para que ela, que foi salva por ti, por timesmo seja ornada. A histria est pois ausente das nossas letras. Ora, tu certa-mente podes faz-lo satisfatoriamente, j que um gnero, como costuma pare-cer a ti, prprio sobretudo do orador.

    Para Ccero, at o momento em que escreveu essa fala de tico, a historia como

    res exornata scripta ainda no existia. E tico v no prprio Ccero a pessoa mais

    apta a iniciar esse gnero em Roma, pois este era um trabalho para um orador. Assim,

    Ccero, que como orador j tinha salvado a Repblica da ambio de Catilina, como

    orador deveria scribereornate sua historia, e fazer com que, nesse gnero, Roma

    no ficasse a dever mais nada Grcia.Por que at ento (por volta de 52 a. C.) Roma no teve um historiador altura

    dos gregos? NoDe oratore, II. 55-58, replicando a afirmao de Ctulo a respeito

    das limitaes da historia de Clio Antpatro, Marco Antnio d sua explicao para

    o fato de no haver historia em latim.

    Fazendo uma espcie de catlogo dos historiadores gregos, desde Herdoto e

    Tucdides, passando por Filisto de Siracusa, Teopompo, foro, at chegar aXenofonte, Calstenes e Timeu, conclui que todos eles eram eloquentissimi homines

    remoti a causis forensibus. Eram sim oratores, no sentido que sabiam trabalhar com

    os recursos retricos para res ornare, mas nunca praticaram o gnero judicirio,

    permaneceram distantes dos tribunais e ad scribendam historiam se aplicauerunt.

    Entre os romanos, ao contrrio, os homens eloqentes no desejavam brilhar

    em outro lugar seno nas causas e no frum (Nemo enim studet eloquentiae nostrum

    hominum, nisi ut in causis atque in foro eluceat...). Esse fato gerava dois problemas.

    O primeiro, de ordem retrica, pois a elocuoda historia, como gnero de-

    monstrativo, se afasta da elocuo do gnero judicirio (Orator, 42 e 207). O

    segundo, de ordem prtica, pois scribere historiam, como mostra o exemplo dos

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    gregos, requer tempo e distncia dos tribunais. Os eloquentissimi homines romanos,ao contrrio, dedicavam todo seu tempo e energia ao frum.

    NoDe legibus (I.2), quando Ccero responde exortao de tico para que se

    dedique historia, afirma que para realizar tal tarefa necessrio uacuum tempus

    et liberum, e que no se pode empreender uma obra de histria sem dispor de cio,

    nem termin-la em pouco tempo (Historia uero nec institui potest nisi preparato

    otio nec exiguo tempore absolui ...). Assim, a historia fica adiada, como um projetofuturo, para depois da retirada da vida poltica e judiciria.

    A historia, como opus oratorium maxime, exige todo o talento e todos os re-

    cursos do orator, alm disso exige otium, tempo livre tomado das atividades polticas

    e judicirias tpicas do cidado pertencente elite romana. Uma das preocupaes

    dos historiadores contemporneos de Ccero, e daqueles que escrevero depois dele,

    ser justamente justificar o otium que lhes possibilitou escrever suas historiae.NoDe oratore, II. 62-64, Marco Antnio volta a apresentar a historia como

    uma tarefa do orator, a apontar a ausncia de preceitos retricos para essa tarefa, e

    apresenta os seus fundamentos e sua construo.

    Vidistine, quantum munus sit oratoris historia? Haud scio, an flumine orationiset uarietate maximum. Neque tamen eam reperio usquam separatim instructam

    rhetorum praeceptis: sita sunt enin ante oculos. Nam quis nescit priman essehistoriae legem ne quid falsi dicere audeat? Deinde ne quid ueri non audeat? Nequa suspicio gratiae sit in scribendo? Ne qua simultatis? 63. Haec scilicet fun-damenta nota sunt omnibus; ipsa autem exaedificatio posita est in rebus et uerbis.Rerum ratio ordinem temporum desiderat, regionum descriptionem, uult etiamquoniam in rebus magnis memoriaque dignis consilia primum, deinde acta, posteaeuentus expectentur, et de consiliis significari quid scriptor probet, et in rebusgestis declarari, non solum quid actum aut dictum sit, sed etiam quomodo. Et

    cum de euentu dicatur, ut causae explicentur omnes, uel casus, uel sapientiae,uel temeritatis, hominumque ipsorum non solum res gestae, sed etiam qui famaac nomine excellant, de cuisque uita atque natura. 64. Verborum autem ratio etgenus orationis fusum atque tractum, et cum lenitate quadam aequabili profluens,sine hac iudiciali asperitate, et sine sententiarum forensium aculeis persequen-dum. Harum toto tantarumque rerum uidetisne ulla esse praecepta, quae in artibusrhetorum reperiantur?

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    No que concerne a ratio rerum temos aqueles temas que j eram, e continuaroa ser depois de Ccero, caractersticos da historia. A particularidade da historia que

    aparece nesse passo doDe oratore, e que ser a causa de grande perplexidade nos

    comentadores modernos, que sua primeira lei, seu fundamento seria no ousar

    dizer algo falso e no ousar no dizer algo verdadeiro. O que Marco Antnio chama

    de primeira lei da histria, s vezes interpretado, por alguns comentadores mo-

    dernos, como uma obrigao de no mentir, de dizer sempre a verdade.Nesse tipo de anlise (Mandel 1980: 7-24), Ccero aparece como um terico da

    histria, que apesar de conhecer os fundamentos da histria cientfica elaborada por

    Tucdides (Hartog 1982: 22-30), expresso por ele no De oratore como a primeira

    lei da histria, exigia das obras histricas imagens comoventes, que provocassem

    emoes fortes no esprito do leitor, unidade narrativa, perfeio, continuidade e

    simetria, a escolha harmoniosa do prlogo e da concluso.O que Marco Antnio denomina exaedificatio da histria visto como influncia

    negativa da retrica sobre a historiografia (Mandel 1980: 9), pois a verdade no o

    ideal da retrica, cujo objetivo obter um efeito especfico bem definido. O ideal

    da historiografia, ao contrrio, est na verdade, portanto, tudo aquilo que falseia e

    deforma essa verdade lhe nocivo.

    Ao nosso ver, a oposio entre os fundamentos e a construo da histria como

    as sugestes que aparecem na carta a Luceio, que veremos mais adiante no indica

    uma contradio entre uma suposta concepo cientfica da histria de Tucdides e

    uma suposta historiografia helenstica, fortemente influenciada pela retrica.

    Quando Marco Antnio afirma que os preceitos da histria esto postos diante dos

    olhos de todos, podemos entender essa afirmao de maneira mais concreta do que

    terica. As leis da histria referem-se como que ao consenso a partir do qual o discurso

    histrico deve se confirmar como tal. Marco Antnio, noDe oratore II.36, refere-se a

    esse consenso como testis temporum, lux ueritatis, uita memoriae, nuntia uetustatis.

    O problema surge, justamente, no momento de construir uma historiaque produza

    esse efeito. O critrio aplicado o da verossimilhana, t ekos. O historiador romano

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    separa o sobrenatural do elemento claramente fabuloso da histria e racionaliza o resto na exaedificatio compondo uma histria aceitvel (Wiseman 1981: 388).

    Dionsio de Halicarnasso (Sobre Tucdides, 6-7) cita a decepo provocada nos leitores

    por historiadores que incluam elementos mticos nas suas obras. Lvio, no exrdio, faz

    questo de separar aquilo que na sua obra propriamente sua res, daquilo que no :

    6. Quae ante conditam condendamue Vrbem poetis magis decora fabulis quamincorruptis rerum gestarum monumentis traduntur, ea nec adfirmare nec refellerein animo est. [...] 8. Sed haec et his similia utcumque animaduersa aut exixtimataerunt, haud in magno equidem ponam discrimine:

    6. No est no meu nimo nem refutar nem confirmar as coisas, anteriores cidade fundada ou a ser fundada, que so transmitidas, mais decorosas, pelasfbulas poticas do que pelos testemunhos incorruptos dos feitos empreendidos.

    8. Essas coisas, porm, e outras semelhantes a essas, como quer que sejamcriticadas ou apreciadas, quanto a mim absolutamente no as levarei em grandeconsiderao.

    Lvio, que est prestes a comear a apresentar ao leitor a sua histria de Roma

    desde a sua fundao, faz questo de ressaltar que aquelas coisas que fazem parte

    do decorumpoeticum e outras semelhantes a elas que sero narradas por ele ao longo

    de sua obra, no sero levadas em conta, no sero objeto de sua considerao descriptor rerum gestarum. No porque no sejam verdadeiras, isso no lhe interessa

    discutir, mas porque no provocam o efeito de dicere quid ueri. Quando um histo-

    riador romano compunha sua obra, no tinha como preocupao discutir a veracidade

    das fontes, mas exercia sua inuentio nas fontes de que dispunha4.

    Um outro escrito de Ccero que trata da histria a carta a Luceio (Ad familiares,

    V.12). Em 56 a. C., Ccero enderea uma carta a seu amigo Luceio, que estava es-

    4Inuentio no inveno, se por inuentio entendemos um certo grau de imaginao criativa. simplesmente a descoberta do que deve ser dito em uma dada situao (ta deonta heurein), a teoriaimplcita que h algo j, ainda que latente, e no precisa ser construdo como uma fico da ima-ginao ... A natureza da inuentio antiga e sua diferena da inveno moderna so importantssimas.Esse conceito no s limitava o poeta de um modo que achamos surpreendente [na medida em que

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    crevendo uma obra histrica desde a chamada Guerra Itlica, 91-88 a. C., at 56 a.C., seguindo o gnero analstico, isto , relatando os fatos importantes em ordem

    cronolgica. Luceio tinha prometido a Ccero que, nessa obra, escreveria tambm

    sobre seu consulado.

    Temendo que a grande quantidade de fatos retardasse a sua entrada na obra de

    Luceio e que a seqncia cronolgica da narrao encobrisse o seu brilho, no pri-

    meiro pargrafo, Ccero, vencendo sua vergonha afetada, expressa o seu desejo deglria, muito prximo do tpos non omnis moriar.

    Ardeo cupiditate incredibili neque, ut ego arbitror, reprehendenda, nomem utnostrum scriptis illustretur et celebretur tuis ... Neque enim me solumcommemoratio posteritaris ad spem quamdam immortalitatis rapit, sed etiam illacupiditatis, ut uel auctoritate testimonii tui uel indicio beneuolentiae uel suauitateingenii uiui perfruamur. (Ad familiares, V.12.1)

    Ardo pelo incrvel desejo que, como julgo, no deve ser censurado, de que nossonome seja ilustrado e celebrado pelos teus escritos ... Com efeito, no somentea recordao da posteridade me rapta para alguma esperana de imortalidade,mas tambm aquele desejo de que, ou pela autoridade de teu testemunho, ou peloindcio de tua benevolncia, ou pela suavidade do teu engenho, sigamos vivos.

    5

    interessante notar que a esperana de ser ilustrado, celebrado, recordado pelaposteridade, enfim, de continuar vivo, Ccero deposita em Luceio. Mais adiante,

    no pargrafo seis, Ccero escreve:

    reproduz e expande a tradio herdada, e raramente lhe permite inventar episdios ou caracteres],

    mas isso realmente liberava o historiador, dando-lhe muito mais espao de variao; por isso quea maior parte dos historiadores antigos se sentia livre em preencher a tradio com discursos, narra-es estandardizadas de batalhas ou embaixadas, motivaes aparentes, e outras manifestaes doto eikos. Ambos, poeta e historiador, trabalhavam dentro de regras que eram originalmente retri-cas. (Russel 1967: 135). Ccero define inuentio como a inveno das coisas verdadeiras ou veross-meis que tornem a causa provvel (De inuentione, 1.9). Como vemos, a inuentio fazia distino entrecoisas verdadeiras e verossmeis, mas ambas podem servir para construir argumentos.5 As tradues dos trechos da carta a Luceio so de Chiappetta, inLngua e Literatura, 22 (1996): pp. 15-34.

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    Ac non uereor, ne assentatiuncula quadam ocupari tuam gratiam uidear, quum hocdemostrem, me a te potissimum ornari celebrarique uelle. (Ad familiares, V.12.6)

    E nem temo que eu parea caar teu favor com alguma leve adulao quandodemonstro isto: desejar sobretudo ser ornado e celebrado por ti.

    Ccero poderia muito bem escrever, ele mesmo, uma historia sobre seu consula-

    do. Afinal ele j escrevera, por volta de 60 a. C,De consulatu suo, poema em trslivros que celebrava sua luta contra Catilina. Por que ento pedir a Luceio que escreva

    uma historia sobre esse mesmo tema? A resposta de Ccero est no pargrafo oito da

    carta, quando comenta uma eventual impossibilidade de Luceio em atender seu pedido.

    ... cogar fortasse facere quod nonnulli saepe reprehendunt: scribam ipse de me,multorum tamen exemplo et clarorum uirorum. Sed, quod te non fugit, haec sunt

    in hoc genere uitia: et uerecundius ipsi de sese scribant necesse est, se quid estlaudandum, et praetereant, si quid reprendendum est. Accidit etiam ut minor sitfides, minor auctoritas. (Ad familiares, V.12.8)

    ... serei levado talvez a fazer o que alguns com freqncia repreendem: eu mesmoescreverei a meu respeito, todavia com o exemplo de muitos e famosos homens.Mas, o que no te escapa, neste tipo de escrita h esses vcios: necessrio nos que os prprios escrevam de si mais modestamente, se algo deve ser louvado,

    mas tambm que deixem de lado, se algo deve ser repreendido. Acontece tam-bm que a fidedignidade fique menor, menor a autoridade.

    O que Ccero alega aqui, que para o decorum do gnero historia no aconse-

    lhvel que seu autor escreva sobre si mesmo, o que no se aplica a um poema. De

    fato, como o prprio Ccero j afirmara, respondendo a uma pergunta de seu irmo

    a respeito das diferentes leis que devem ser observadas na histria e na poesia: na

    histria todas as coisas se referem verdade, apesar das inumerveis fabulae que

    se encontram na obra de Herdoto e Teopompo, enquanto que na poesia a maioria

    das coisas se refere ao prazer (De legibus, I.3).

    Escrever sobre si mesmo pode comprometer os efeitos que a historia deve provocar

    no leitor, alm disso, diminui afides (Benveniste 1995: 103-120; Cizek 1988: 16-23) a

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    auctoritasdo autor, o que compromete sobretudo o efeito de verossimilhana que a histo-ria deve obter. justamente contra isso que Lvio queria se precaver no seu exrdio.

    Na recepo de uma obra de historia tinha grande influncia a impresso de

    verossimilhana que dependia da credibilidade que o leitor depositava no desinte-

    resse com que o autor escrevia seu texto, que era sempre ressaltado no exrdio. Escre-

    ver sobre si mesmo comprometia seriamente essa credibilidade.

    O discurso ordenado, portanto, negocia a fides estabelecendo um pacto entre aspartes. O orador produz credibilidade, no para si, mas para o discurso (fidem facereorationi), e esta deve ser atribuda ao discurso pelo ouvinte (fidem facere auditori),ou seja, o orador faz com que o ouvinte atribua credibilidade ao discurso. Se huma desigualdade entre as partes envolvidas no pacto, a posio hierarquicamentesuperior de quem recebe a fides, ou seja, o discurso. (Chiappetta 1997: 83)

    AHistoria, como discurso ordenado, tambm negocia afides com seu leitor/ouvinte.E para que este lhe atribua credibilidade, deve acreditar na iseno do autor da historia.

    Para quem escreve uma historia sobre si mesmo essa negociao torna-se bem mais difcil.

    J no primeiro pargrafo da carta, Ccero cita a auctoritas de Luceio (uel

    auctoritate testimonii tui) como um dos motivos para que seja ele o autor da historia

    de seu consulado. No pargrafo sete, ele volta ao tema.

    Atque hoc praestantius mihi fuerit et ad laetitiam animi et ad memoriaedignitatem, si in tua scripta peruenero quam si in ceterorum, quod non ingeniummihi solum suppeditatum fuerit tuum, sicut Timoleonti a Timaeo aut ab HerodotoThemistocli, sed etiam autorictas clarissimi et spectatissimi uiri et in rei publicaemaximis grauissimisque causis cognoti atque in primis probati, ut mihi non solumpraeconium, quod, cum in Sigeum uenisset, Alexander ab Homero Achillitributum esse dixit, sed etiam graue testimonium impertitum clari hominis

    magnique uideatur. Placet enim Hector ille mihi Naeuanius, qui non tantumlaudari se laetatur, sed addit etiam a laudato uiro.(Ad familiares, V.12.7)

    E isto ser melhor para mim, tanto para a alegria de meu esprito quanto para adignidade de minha lembrana, se eu tiver permanecido nos teus escritos e no node outros, pois ter sido fornecido para mim no somente o teu engenho, como aTimoleonte o de Timeu, ou o de Herdoto a Temstocles, mas tambm a autorida-

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    de de um homem muito famoso e muito reconhecido nas maiores e mais impor-tantes causas da repblica e, antes de tudo, aprovado; para que a mim parea con-cedido no apenas o elogio que Alexandre, quando se dirigia ao Sigeu, teria atri-budo por Homero a Aquiles, mas tambm o grave testemunho de um homemgrande e brilhante. Com efeito, agrada-me aquele Heitor de Nvio que no so-mente se alegrava em ser louvado, mas at acrescenta por um homem louvado.

    Ccero, nesse trecho da carta, refora a importncia da auctoritas de Luceio.

    Ela fundamental para que a historia de seu consulado obtenha afides do pblico,

    a autoridade de algum famoso e reconhecido, aprovado nas maiores e mais im-

    portantes causas da repblica.

    Essa auctoritas exaltada pelas comparaes feitas: Luceio comparado a Timeu,

    Herdoto, Homero e Nvio. E Ccero, que nessa carta tem a interessante posio de

    uma res loquens (ou scribens), acaba por comparar-se a Timoleonte, Temstocles,

    Alexandre e Heitor. A imortalidade da historia que Luceio deve escrever est intimamenteligada a auctoritas de seu autor, e na importncia na obteno dafidesjunto ao pblico.

    Como j dissemos, a res da historia que Ccero deseja ver escrita por Luceio

    o prprio Ccero e seu consulado. Isso implica um novo subgnero da historia que

    exclui tanto a autobiografia como a historia que tem como modelo osAnnales. Esse

    novo subgnero a monografia histrica retoricamente organizada. No segundo pa-

    rgrafo da carta a Luceio, Ccero escreve:

    ... tu quoque ciuilem coniurationem ab hiostilibus externisque bellis subiungeres.Equidem ad nostram laudem non multum uideo interesse, sed ad properationemmeam quiddam interest non te exspectare, dum ad locum uenias, ac statim cau-sam illam totam et tempus arripere; et simul, si uno in argumento utroque inpersona mens tua tota uersabitur, cerno iam animo uberiora atque ornatiora fu-tura sint. (Ad familiares, V.12.2)

    ... tu tambm, do mesmo modo, separarias a conjurao civil das nossas guer-ras externas. E, na verdade, no vejo interessar muito a meu louvor, mas interes-sa minha pressa que tu no esperes at que chegues ao ponto, mas tome ime-diatamente toda aquela causa e momento; e, ao mesmo tempo, se toda a tua mentese voltar para um nico argumento e uma nica pessoa, j distingo com que nimoestaro para surgir coisas mais frteis e mais ornadas.

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    Ccero prope a Luceio no esperar que, respeitando a ordem a cronolgica dosfatos, chegue at o ponto que interessa a ele, Ccero, mas que comece sua historia

    a partir desse ponto, concentrando-se na figura de Ccero, cnsul em 63 a. C., e na

    conjurao de Catilina. Esse procedimento, essa inuentio proposta por Ccero rompe

    com a estrutura narrativa dos Annales ou de qualquer outra que exponha os

    acontecimentos em ordem cronolgica seqencial. Nos pargrafos cinco e seis de

    sua carta, Ccero explica por que rejeita a ordo annalium.

    Etnim ordo ipse annalium mediocriter nos retinet quase enumaeratione fastorum;at uiri saepe excelentis ancipites uariique casus habent admirationem, exspec-tionem, laetitiam, molestiam, spem, timorem; si uero exitu notabili concludunturexpletur animus iucundissima lectionis uoluptate. 6. Quo mihi acciderit optatius,si in haec sententia fueris, ut a continentibus tuis scriptis, in quibus perpetuamrerum gestarum historiam complceteris, scernas hanc quasi fabulam rerum

    euentorumque mostrorum. Habet enim uarios actus multasque actiones etconsiliorum et temporum. (Ad familiares, V.12.5-6)

    E, na verdade, a ordem cronolgica dos eventos nos retm muito pouco, comose fosse uma enumerao dos fastos; mas os incertos e variados casos de umhomem excepcional causam admirao, expectativa, alegria, pesar, esperana,temor; se forem concludos com um fim notvel, a, ento, o esprito enche-secom a agradvel volpia da leitura. 6. Por isso me aconteceria mais agradavel-mente, se tu estivesses nessa deciso para que, da continuidade de teus escritosem que ters abarcado a perptua histria dos feitos empreendidos, separes esta,por assim dizer, fbula das nossas coisas e dos nossos eventos.

    Alm do medo de desaparecer no meio de uma narrao cronolgica, e assim no

    conseguir obter a glria (para a glria no Mundo clssico e em Roma ver Rocha Pereira

    1984: 331-335 e Woodman 1988: 74)para si e para Luceio, Ccero apresenta argumentos

    pertinentes inuentio para convencer seu amigo a escrever uma monografia sobre o seu

    consulado. As aventuras e desventuras de um homem excepcional criam uma leitura

    mais atraente, variegada e tornam a leitura agradvel e prazerosa.

    Na parte da construo da historia que, noDe oratore, Marco Antnio denomina

    ratio rerum, j aparece a preocupao com o delectare que a monografia, ao con-

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    trrio, dosAnnales possibilita. As res gestae do consulado de Ccero devem ser apre-sentados como se constitussem umafabula, que crie no leitor a volpia da leitura,

    e o ingenium e a auctoritas de Luceio devem tornar essafabula digna dafides do

    leitor/ouvinte. No quarto pargrafo da carta a Luceio, lemos:

    A principio enim coniurationis usque ad reditum nostrum uidetur mihi modicumquoddam corpus confici posse, in quo et illa poteris uti ciuilium commutationum

    scientia uel in explicandis causis rerum nouarum, uel in remediis incommodorum,cum et reprehendes ea, quae uituperanda duces, et quae placebunt, exponendisrationibus comprobabis et, si liberius, ut consuesti, agendum putabis, multorumin nos perfidiam, insidias, proditionem notabis. Multam etiam casus nostriuarietatem tibi in scribendo suppeditabunt plenam cuiusdam uoluptatis, quaeuehementer animos hominum in legendo te scriptore tenere possit. Nihil est enimnihil aptius ad delectationem lectoris quam temporum uarietates fortunaequeuicissitudines. (Ad familiares, V.12.4)

    Do comeo da conjurao at o meu retorno do exlio parece-me que um razo-vel volume pode ser elaborado, no qual poderias utilizar teus conhecimentosdas mudanas civis, ou explicar as causas das coisas mais recentes, ou sugerirremdio para as suas calamidades, enquanto repreendes o que consideras censu-rvel e justificar o que aprovas, anotando as tuas razes em cada caso. E se jul-gares que podes tratar este assunto com excepcional liberdade de discurso, como teu costume, anotars a perfdia, as traies, a conspirao de muitos contrans. Alm disso, o que me aconteceu te suprir, ao escrever, de uma grande varie-dade de material que, sendo tu o escritor, poder tomar, na sua leitura, o nimodo pblico. Pois no h nada mais apto a agradar o leitor que as mudanas dascircunstncias e as vicissitudes da fortuna.

    Vemos aqui a insistncia na capacidade de deleitar o leitor, de prender a ateno

    dos homens que a historia,proposta por Ccero, deve apresentar. Essa capacidade

    deriva tanto da res do seu consulado at o retorno do exlio quanto do ingenium,

    do talento de seu autor, Luceio, que com seus conhecimentos e sua liberdade de

    discurso pode explicar as mudanas e suas causas.

    As funes do autor de uma monografia histrica aparecem, no trecho acima,

    designadas com as mesmas palavras usadas para indicar as funes do orador no

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    gnero demonstrativo: sugerir remdios para as calamidades, repreender o que forconsiderado digno de censura, justificar aquilo que for digno de aprovao, anotando,

    em cada caso, os motivos da repreenso e da aprovao.

    Portanto, o sucesso da monografia histrica que Ccero prope a Luceio, para

    que os dois atinjam a gloria e possam assim viver para sempre, est tanto na sua res

    como no ingenium e auctoritas de seu autor. Mas s isso no basta para que essa

    historia possa contar com afides do leitor.O ingenium de Luceio deve tambm, para conseguir delectare,placere e docere

    o pblico, saber ornare esse tema com as uerba convenientes, com uma elocuo

    digna da res inuenta. E assim, no terceiro pargrafo, Ccero diz:

    Itaque te plane etiam atque etiam rogo, ut et ornes ea uehementius etiam, quamfortasse sentis, et in eo leges hsitoriae neglegas gratiamque illam, de qua

    suauissime quodam in prohoemio scripsiti, a qua te flecti non magis potuissedemonstras quam Herculem Xenophontium illum Voluptate, eam, si me tibiuehementius comendabit, ne aspernere amorique nostro plusculum etiam, quamconcedet ueritas, largire. (Ad familiares, V.12.3)

    Assim, peo-te e peo-te que as ornamentes com at mais veemncia do quetalvez sintas, e que nisto negligencies as leis da histria e aquele favor sobre oqual escreveste suavemente em um certo promio, demonstrando que no pode-

    rias ser desviado dele mais do que aquele Hrcules de Xenofonte poderia ser doPrazer, no o abandones se ele me recomendar a ti muito fortemente e at umpouco mais do que a verdade concede prodigalizar em favor da nossa amizade.

    da comparao desse passo da carta a Luceio, e daquele doBrutus (42) com

    os trechos doDe oratore (II.62), em que Marco Antnio expe as leis da histria, e

    doDe legibus (I.3), no qual Ccero afirma que na historia a maioria das coisas se

    referem verdade, que uma crtica tradicional (Rambaud: 1953: 15) aponta umacontradio na concepo de histria de Ccero, quando este prope a Luceio que

    negligencie as leis da historia.

    Alguns autores ressaltam a necessidade de ler essa carta considerando a situao

    poltica de Ccero, com o seu poder praticamente anulado pelos trinviros. Uns afir-

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