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Compêndio de análise institucional e outras
correntes: teoria e prática
Gregorio F. Baremblitt
5ª.ed.
SUMÁRIO 5
INTRODUÇÃO.............. 11
CAPÍTULO I: O movimento institucionalista, a auto-análise e a
autogestão..............13
CAPÍTULO II: Sociedades e instituições..............25
CAPÍTULO III: As histórias..............37
CAPÍTULO IV: O desejo e outros conceitos no institucionalismo..............53
CAPÍTULO V: As tendências mais conhecidas do institucionalismo..............71
CAPÍTULO VI: Roteiro para uma intervenção institucional padrão..............90
CAPÍTULO VII: O institucionalismo na atualidade..............108
GLOSSÁRIO..............133
APÊNDICE..............174
POST-SCRIPTUM..............195
BIBLIOGRAFIA BÁSICA..............205
BIBLIOGRAFIA DE CONSULTA..............207
11
INTRODUÇÃO
Este livro corresponde à versão escrita de um curso proferido em
Belo Horizonte no decorrer de 1990, organizado pelo Movimento
Instituinte de Minas Gerais. Curso que, por sua vez, foi requerido
para atender ao crescente interesse pelo Movimento
Institucionalista ou Instituinte no Brasil e facilitar o acesso aos textos
dos fundadores das diferentes correntes. Os seis primeiros
capítulos correspondem às seis aulas que compuseram o curso,
enquanto o último foi escrito como artigo independente, ainda
inédito.
O Movimento Institucionalista é um conjunto heterogêneo,
heterológico e polimorfo de orientações, entre as quais é possível
se encontrar pelo menos uma característica comum: sua aspiração
a deflagrar, apoiar e aperfeiçoar os processos auto-ana líticos e
autogestivos dos coletivos sociais.
Essa vocação libertária, o estatuto epistemológico e jurídico
absolutamente singular e a infinita variedade de tendências que
compõem o Movimento tornam extremamente difíceis a tarefa de
ensiná-lo. Se se deseja ser coerente com os valores do Movimento,
sua Pedagogia exige uma originalidade da qual já existem muitas
tentativas, mas que, ao mesmo tempo, ainda está para ser
produzida.
Este curso, proferido com uma metodologia tradicional, tem
apenas o propósito de aproximar os leitores das finalidades e
recursos mais conhecidos e do panorama atual do Institucionalismo.
Mais informativo que formativo, foi inspira do pelo desejo de
estender e facilitar um saber e um fazer com plexo e arriscado,
mas, no meu entender, importantíssimo para o povo brasileiro.
12
Apesar da superficialidade e rapidez com que os densos
temas são apresentados, acredito que este livro seja estimulante,
discretamente esclarecedor e ainda minimamente instrumental para
os futuros institucionalistas. Para quem decidir continuar, ou,
sejamos realistas, começar verdadeiramente sua formação nesta
fascinante proposta, a bibliografia final, integrada predo
minantemente por textos em português e castelhano encontráveis
no Brasil, proverá boa parte da diretriz indispensável para tal fim.
Entre as escolas não-incluídas neste volume devido à sua
proposta introdutória, devo destacar as correntes latino-americanas
de Pichón-Riéver, Bleger, Ulloa, Malfe, Bauleo, Kaminsky,
Pavlovsky, De Brasi, Matrajt, Scherzer e tantos outros aos quais me
proponho a destinar, em algum momento, um livro especial.
13
Capítulo I
O MOVIMENTO INSTITUINTE, A AUTOANÁLISE E A
AUTOGESTÃO.
No início devemos esclarecer que esse livro não terá o nível que alguns
esperariam, pois se procura apresentar uma exposição de nível médio, para
ser entendida pelo maior número possível de pessoas.
Vamos tratar do chamado Movimento Institucionalista ou Instituinte que,
como o nome aproximativamente indica, é um conjunto de escolas, um leque
de tendências. Não existe nenhuma escola ou tendência que possa dizer que
encarna plenamente o ideário do Movimento Instituinte. Contudo, pode-se
encontrar em diversas dessas escolas algumas características em comum. E é
a essas características em comum que eu gostaria de referir-me agora, da
maneira mais simples e mais didática possível. Em capítulos sucessivos,
teremos ocasião de complicar as coisas... Agora, a intenção é,
predominantemente, simplificá-las.
Entre as características presentes em todas as tendências do
Movimento Instituinte, há algumas que são relativamente fáceis de colocar. Eu
diria que existe o que se chama de "ideais máximos" do Movimento. Podemos
chamar a isto também de propósitos mais importantes, os objetivos mais
ambiciosos dessas escolas. Os mesmos podem ser enunciados através de
duas palavras aparentemente simples, mas que são como veremos depois,
muito complexas.
As diferentes escolas do Movimento Instituinte se propõem a propiciar,
apoiar e deflagrar nas comunidades, nos coletivos e conjuntos de pessoas
processos de autoanálise e de autogestão. O que significam essas palavras?
Depois, compreenderemos com mais detalhes que os processos de
interação humana, os processos de funcionamento social, têm sido sempre
muito complexos. Mas em nossa civilização chamada industrial, capitalista ou
tecnológica, a complexidade da vida social atingiu seu máximo expoente em
toda a história da humanidade. Se compararmos, por exemplo, uma
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organização social dita "primitiva", ou uma organização imperial, despótica, ou
uma medieval com a nossa sociedade moderna, o grau de complexidade, de
diversidade que as sociedades modernas atingem é infinitamente superior ao
daquelas civilizações, apesar delas não serem nada simples. Acontece, então,
que nossa época, nossa civilização, além de se caracterizar por uma grande
diversidade, uma grande complicação interna, caracteriza-se também por, de
fato, ter produzido uma soma de saberes que propiciou nesses últimos
duzentos anos, uma "evolução" maior do que a humanidade havia conseguido
em dois mil anos; ou seja, houve um processo de produção de conhecimento e
de aplicação do mesmo muito intenso.
Esse saber, como ninguém ignora, resultou em aplicações tecnológicas
que aceleraram o chamado "progresso" em igual proporção. E o progresso
trouxe uma grande complexidade. Além desses conhecimentos produzidos
pelas ciências da natureza, ciências formais, aplicações tecnológicas, existem
disciplinas que versam sobre a organização social em si mesma. Ou seja,
nossa civilização tem produzido um saber acerca de seu próprio funcionamento
como objeto de estudo e tem gerado profissionais, intelectuais, experts que são
os conhecedores dessa estrutura e do processo dessa sociedade em si. Esses
conhecedores têm-se colocado, em geral, a serviço das entidades e das forças
que são dominantes em nossa sociedade. Por exemplo, a serviço daquela
instituição que representa o máximo da concentração de poder, o extremo de
concentração de controle e de hegemonia sobre a sociedade, que é o Estado.
Além disso, por outro lado, já dentro da sociedade civil, esses experts têm-se
colocado a serviço das grandes entidades proprietárias da riqueza, do poder,
do saber e do prestígio, que são as organizações corporativas, as empresas
nacionais e multinacionais etc. Essa situação, em que os "sábios", os
conhecedores da estrutura e do processo da vida social estão
predominantemente a serviço do Estado e das empresas, tem tido como
consequência que os povos – em sentido amplo, a sociedade civil – têm-se
visto despossuídos de um saber que tinham acumulado através de muitos anos
acerca de sua própria vida, de seu próprio funcionamento. Esse saber, criado e
acumulado pelas comunidades sociais durante tantos anos de experiência vital,
a partir do surgimento do saber científico e tecnológico, fica relegado, colocado
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em segundo plano, como se fosse rudimentar e inadequado. Tanto é assim que
temos técnicos que costumam chamá-lo de ideologia, num sentido vago, geral,
visando a qualificá-lo como um falso conhecimento, pobre, infundado ou, no
melhor dos casos, insuficiente. Então, as comunidades de cidadãos têm visto
esse saber subordinado ao saber dos experts. Junto com seu saber, elas têm
perdido o controle sobre suas próprias condições de vida, ficando alheias à
espacidade de gerenciar sua própria existência. Elas dependem, então, quase
incondicionalmente, dos organismos do Estado, empresariais, do saber e de
serviços dos experts. E a quais experts refiro-me? Aos dos ramos produtivos,
primários, secundários e terciários, aos especialistas de produção de bens
materiais, ou seja, comida, vestuário, moradia, transporte: aqueles bens
materiais indispensáveis à sobrevivência. Toda a produção desses bens está
dirigida, gerenciada por "especialistas". Mas noutro plano, refiro-me aos
problemas de saúde, de educação, aos assuntos familiares, aos psicológicos e
subjetivos, em geral; às questões relativas ao lazer, às que atingem a
comunicação de massa, aos assuntos próprios da religião. Cada um desses
campos, cada um dos serviços que se prestam nessas áreas, os bens que se
produzem e administram nesses territórios, ou seja, sua quantidade, sua
qualidade, sua necessidade, sua conveniência, tudo é decidido pelos experts, é
arbitrado por quem se supõe que saiba e conheça sobre o assunto. O mesmo
acontece no plano de administração da justiça, nos tribunais, com os
advogados, despachantes, registros civis, leis: tudo isso feito por experts e
administrado por eles. E o que falar do exercício da força, no sentido literal,
porque todas essas outras entidades também usam da força, senão da força
física, da força da persuasão, da força da sedução, mas o uso da força física
está reservado a organizações como a polícia, as forças armadas, que também
têm seus especialistas, oficiais, delegados, guardas etc. É claro que os experts
conhecem e decidem prevalentemente segundo os interesses das classes,
níveis hierárquicos e grupos dominantes aos quais pertencem parcialmente.
Mas não se deve sempre supor uma intenção deliberada dos técnicos nesse
sentido. Acontece, como veremos que seu saber em si mesmo já está
produzido por instrumentos e gera resultados que privilegiam os interesses e
desejos citados.
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Então, o que acontece?
Há um conceito básico que vamos ver depois, na Análise Institucional e
em outras escolas do Institucionalismo, que se chama demanda. É possível
afirmar que as comunidades ou coletividades têm necessidades básicas
indiscutíveis e universais. Essas necessidades são colocadas diariamente
através de demandas espontâneas, através da exigência de produtos e de
serviços correspondentes. Essa ideia é uma das tantas que vai ser questionada
pelo Institucionalismo, porque ele vai tentar mostrar que em todas as épocas
da história, mas particularmente na nossa, não existem necessidades básicas
"naturais"; não existem demandas "espontâneas", pois em todas e em cada
uma dessas organizações que acabamos de descrever, a noção das
necessidades é produzida, assim como a demanda é modulada; isto é, aquilo
que os povos pensam que todos os membros de uma população e todos os
povos do mundo precisam como "mínimo" não existe. Esse "mínimo" é gerado
em cada sociedade e é diferente para cada segmento da mesma. Mas ainda
dentro do condicionamento histórico, as comunidades que têm alguma noção
vivencial acerca de suas necessidades a perdem, de modo que já não sabem
mais do que precisam e não demandam o que "realmente" aspiram, mas
acham que necessitam daquilo que os experts dizem que elas necessitam e
acham que pedem o que querem e como querem, mas, na verdade, precisam,
querem e pedem o que lhes inculcam que devem necessitar desejar e solicitar.
É, então, muito evidente que nossos coletivos estão, atualmente, nas mãos de
um enorme exército de experts que acumulam o saber que lhes permite fazer
com o que as pessoas achem que precisam e solicitem aquilo que os experts
dizem que precisam e que os grupos e as classes dominantes lhes concedem.
Então, os coletivos têm perdido, tem alienado o saber acerca de sua própria
vida, a noção de suas reais necessidades, de seus desejos, de suas
demandas, de suas limitações e das causas que determinam essas
necessidades e essas limitações. Eles têm perdido um certo grau de
compreensão e o controle sobre que tipos de recursos e formas de
organização devem dispor para colocar e resolver seus problemas. Mal pode
organizar-se para resolver seus problemas se não conseguem saber, com
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precisão, quais são seus verdadeiros problemas e o que se requer para
resolvê-los.
Falei que poderíamos enunciar dois objetivos básicos do
Institucionalismo, um deles seria a autoanálise e o outro a autogestão. Agora já
podemos explicar um pouco melhor em que consistiria o primeiro deles. A
autoanálise consiste em que as comunidades mesmas, como protagonistas de
seus problemas, necessidades, interesses, desejos e demandas, possam
enunciar compreender, adquirir ou readquirir um pensamento e um vocabulário
próprio que lhes permita saber acerca de sua vida, ou seja: não se trata de que
alguém venha de fora ou de cima para dizer-lhes quem são o que podem o que
sabem o que devem pedir e o que podem ou não conseguir. Este processo de
autoanálise das comunidades é simultâneo ao processo de auto-organização,
em que a comunidade se articula, se institucionaliza se organiza para construir
os dispositivos necessários para produzir, ela mesma, ou para conseguir os
recursos de que precisa para a manutenção e o melhoramento de sua vida
sobre a terra. Na medida em que essa organização é consequência e, ao
mesmo tempo, um movimento paralelo com a compreensão dada pela
autoanálise, ela também não é feita de cima para baixo, nem de fora, mas
elaborada no próprio seio heterogêneo do coletivo interessado. Essa
autoanálise e essa autogestão não significam necessariamente que os
coletivos devam prescindir por completo dos experts porque, sem dúvida, com
sua disciplina e seus instrumentos, eles têm acumulada uma quantidade de
conhecimento importante e não inteiramente alienado, não necessariamente
distorcido, ou seja: produtivo. Mas os experts devem submeter seu saber, suas
glórias, seus métodos, suas técnicas, suas inserções sociais como
profissionais a uma profunda crítica que os faça separar, dentro dessas teorias,
métodos e técnicas, dentro dos organismos aos quais pertencem, o que é
produto de sua origem, de sua pertença ao bloco dominante das forças sociais
e o que pode ser útil a uma autoanálise, a uma autogestão, da qual os
segmentos dominados e explorados sejam protagonistas. Para poderem
efetuar essa autocrítica, os experts não podem fazê-lo no seio de suas torres
de marfim, não podem fazê-lo nas academias ou exclusivamente nos
laboratórios experimentais. Eles têm que entrar em contato direto com esses
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coletivos que estão se autoanalisando e autogestionando para incorporar-se a
essas comunidades desde um estatuto diferente daquele que tinham. Esse
estatuto deve resultar de uma crítica das posições, postos, hierarquias que eles
têm dentro dos aparelhos acadêmicos ou jurídico-políticos do Estado, ou ainda
das diretivas das grandes empresas nacionais e multinacionais. Eles têm de
reformular sua condição profissional, seu saber específico. E só conseguirão
reformulá-los numa gestão, num trabalho feito em conjunto com essas
comunidades e na mesma relação de horizontalidade com que qualquer
membro dessa comunidade o faz. Isso permitirá que, eventualmente, os
experts, quando a comunidade conseguir organizar-se, tenham algum lugar
dentro das organizações específicas que a comunidade se deu a si mesmo
para esses fins. Então seu saber, sua capacidade e sua potência produtiva
estarão plenamente integrados ao movimento de autoanálise e autogestão
dessa comunidade. Eles poderão assim reformular, aprendendo e ensinando
seu saber e sua eficiência nessa nova e inédita situação. À parte dessa
reinvenção de sua disciplina, os experts poderão aprender como eles serão
capazes de propiciar outros movimentos autogestões e autoanalíticos quando
forem chamados a participar.
Esta é uma explicação sucinta dos propósitos fundamentais do
Movimento Institucionalista que são sistematicamente compartilhados por todas
as tendências que o integram. Ao mesmo tempo em que são os objetivos
principais das propostas Instituintes, eles são também os próprios meios para
realizá-las. Por isso, é importante que esses dois objetivos e meios sejam não
apenas superficial, mas profundamente conhecidos pelos leitores.
É óbvio que autogestão e autoanálise são dois processos simultâneos e
articulados. Por quê? Porque autoanálise, para as comunidades, significa a
produção de um saber, do conhecimento acerca de seus problemas, de suas
condições de vida, suas necessidades, demandas etc., e também de seus
recursos. Mas até para que a autoanálise seja praticada pelas comunidades,
elas têm que construir um dispositivo no seio do qual essa produção seja
realizável. Elas têm que organizar-se em grupos de discussão, em
assembleias; elas têm que chamar experts aliados para colaborarem; elas têm
que se dar condições para produzir esse saber e para desmistificar o saber
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dominante. Ao mesmo tempo, tudo o que elas descobrirem neste processo de
autoconhecimento só terá uma finalidade: a de auto organizar-se para que
possam operar as forças destinadas a transformar suas condições de
existência, a resolver seus problemas. Mas não pode haver uma organização
sem um saber; não pode haver um saber sem uma organização. São dois
processos diferenciados, mas eles são concomitantes, simultâneos,
articulados.
Costuma-se crer que os processos autogestivos implicam uma falta
completa de denominações, hierarquias, quadros, especificidades etc. Na
realidade, é difícil pensar qualquer processo organizativo que não inclua uma
certa divisão do trabalho e que não implique uma certa hierarquia de decisão,
de deliberação. Esses são funcionamentos inerentes a qualquer processo
produtivo. Deverão, então, existir hierarquias, gerências. Mas a existência de
hierarquia não implica diferença de poder; não equivale a privilégio ou
arbitrariedade na capacidade de decidir. Implica apenas uma certa
especialização em algumas tarefas, porque estes dispositivos estão feitos de
tal maneira que as decisões de fundo são tomadas coletivamente. Em todo
caso, os quadros hierárquicos não são mais que expressão da vontade
consensual. São executores. Mas não são executores do mandato das elites
mediatizado por organismos burocráticos, por correias de transmissão. Na
autogestão os coletivos mesmos deliberam e decidem. Eles têm maneiras
diretas de comunicar as decisões. Existem hierarquias moduladas pela
potência, peculiaridades e capacidade de produzir; mas não há hierarquias de
poder, ou seja, a capacidade de impor a vontade de um sobre o outro.
Contudo, é evidente que o Institucionalismo, tanto quanto os processos
autoanalíticos, são produtores de conhecimentos, e que todo saber envolve,
necessariamente, um poder, e ambos não são homogeneamente distribuídos.
Mas este saber é um saber coletivo, produzido, distribuído e exercitado na vida
coletiva. Na topografia deste saber, existem alguns elementos essenciais que
são compartilhados por todo mundo. Então, quando esse saber compartilhado
é delegado a alguns que se especializam nessa questão, já não é um saber
produzido fora dos interesses e desejos do coletivo, já não é um saber que vai
cair de cima para baixo, de fora para dentro. É já uma delegação, porque foi
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produzido dentro, por alguns especialistas no assunto, em estreita colaboração
com os diretamente interessados nos benefícios que esse saber e suas
aplicações terão, uma vez realizados.
Isso garante que esses especialistas são verdadeiramente "especiais":
delega-se a eles um saber que é a expressão dos interesses e das
capacidades essenciais do coletivo. O coletivo conserva um saber básico
acerca de seu campo que lhe permite julgar quando o especialista está
exercitando o seu poder com sentido instituinte-organizante, e então a serviço
do coletivo, ou, pelo contrário, de ambições de segmentos individualistas etc.
Vou dar um típico exemplo da medicina, embora haja mil exemplos, muitos dos
quais não poderemos mencionar aqui porque são muito complexos e extensos
para expor. Quem conhece a situação da saúde no Brasil sabe perfeitamente
que nosso país não precisa prioritariamente de, digamos, tomógrafos
computadorizados, pelo menos a nível de sua problemática prevalente atual. O
que o Brasil precisa é de uma política de saúde que não começa nem acaba no
campo da medicina. Seus problemas, que têm efeitos médicos, têm suas
causas diretas nos problemas de habitação, alimentação, vestuário e
saneamento básico. Disso todos os experts sabem o que não impede que a
ênfase da política de saúde no Brasil esteja colocada na assistência e não na
prevenção, principalmente se por prevenção entende se algo que modifique
radicalmente as condições de vida da população. Entretanto, há muitos centros
paulistas e cariocas que se orgulham de ter os mais modernos aparelhos para
resolver ou diagnosticar uma problemática altamente específica, circunscrita,
que afeta 0,5% da população. Acontece que o povo, as organizações de base,
não podem questionar de maneira eficiente as políticas médicas do Brasil
porque a primeira coisa que lhes seria respondida é que não sabem. Mas o que
acontece quando o coletivo revitaliza seu saber, revaloriza o saber espontâneo
que ele tem acerca do que precisa? Os índios têm, as comunidades negras
têm, as comunidades das montanhas têm, as comunidades da planície têm,
todo mundo tem um saber espontâneo acerca de quais são os sofrimentos,
quais são as enfermidades e como devem ser tratadas, pelo menos,
basicamente. Assim, também eles sabem quais problemas devem ser
abordados – mesmo que não se exprimam em sofrimento, ou quando o
21
sofrimento ainda não tenha se tornado doença, não devendo ser tratado como
tal. Desde logo este saber também desconhece muita coisa, mas isso não
pode afirmar-se a priori. Só que esse saber é permanentemente desqualificado
pelo saber acadêmico, que atua predominantemente a serviço de interesses
estatais, nacionais e multinacionais dominantes – um saber consubstancial
com esses interesses.
A primeira operação que as comunidades devem fazer é recuperar, revalorizar
o saber espontâneo que elas têm sobre seus problemas; a segunda operação
deve ser feita em conjunto com os experts, ajudando-os a criticar essa
orientação – essa medula dominante reacionária-que o saber médico (nesse
caso) e suas técnicas têm. Sobretudo em termos de hierarquização de
prioridades: o que vem primeiro e o que vem depois, o que é prioritário e o que
é secundário. Uma vez que o expert, integrado à comunidade, demonstra a
capacidade de contribuir, em pé de igualdade, para este trabalho de
reformulação, pode-se delegar a ele algumas áreas do saber com menos
perigo de que ele o transforme em poder, e não numa potência de colaboração
com o coletivo. Nesse caso, o coletivo já não está desqualificado – ele sabe
julgar o que se faz e o que se acha que se sabe. Isso não descarta que
possam acontecer novamente problemas de concentração de saber e de
poder, porque este processo de autoconhecimento e autogestão é interminável.
Provavelmente, haverá necessidade de muitas gerações autogestivas e
autoanalíticas para que o processo possa exercitar-se em sua plenitude. Se
bem que este caminhar está orientado por uma Utopia Ativa que não está
colocada num futuro longínquo, senão em cada ato do cotidiano. Como já
dissemos, existiram e existem numerosas tentativas auto-analíticas e
autogestivas que não apresentam o caráter purista que a gente pode imaginar
em sentido abstrato. Por exemplo, as comunidades eclesiásticas de base:
pode-se dizer que têm um espírito institucionalista complexamente integrado a
aspectos libertários do Cristianismo, embora limitados pelos processos
burocráticos da Igreja Católica. Isso abre um tema que eu teria gostado de
tratar neste primeiro capítulo, mas acho que vai complicar um pouco as coisas,
porque eu queria enfatizar os conceitos essenciais básicos. Mas, enfim, em
que consiste o tema aqui levantado? O Movimento Institucionalista reconhece
22
uma gênese histórico-social e uma gênese conceitual. A primeira é a história
de todas as tentativas que houve na história da humanidade e as que hoje
existem e exercitam um Institucionalismo espontâneo. Um desses movimentos
é o das comunidades eclesiásticas de base no Brasil e em outros países. Mas
muitas iniciativas autogestivas já existiram, existem e vão existir, e não
precisam do Institucionalismo para se desenvolver. O Institucionalismo é
alguma coisa assim como o resultado do ensinamento dessas iniciativas
históricas sobre os próprios experts. Nós, os experts – médicos, engenheiros,
advogados, comunicólogos, psicólogos etc –, temos aprendido que isso existe
e que poderíamos colaborar para seu desenvolvimento a partir das
experiências históricas que já existiram neste sentido e das que estão existindo
e se desenvolvem perfeitamente ou dificilmente sem a nossa participação. Por
outro lado, a gênese conceitual refere-se ao campo das ideias, conceitos e
funções: todas aquelas teorias, conceitos, ideias, categorias que têm sido
produzidas pela humanidade no decorrer da história do conhecimento e podem
contribuir para dar base, para fundamentar a proposta institucionalista.
Agora, gostaria de referir-me à última questão, muito importante. Os
leitores compreenderão que esses processos auto analíticos e autogestivos se
dão em condições altamente desfavoráveis, severamente contraproducentes.
Por quê? Naturalmente porque os coletivos em questão não são donos do
saber, não são donos da riqueza, não são donos dos recursos que são
propriedade e servem ao poder dos organismos e entidades de classe alta e
grupos dominantes. Então, a consecução dos objetivos tem graves
impedimentos que vão desde a privação de recursos (que são propriedade a
serviço do poder dos organismos e entidades de classe dominante) até a morte
física repressiva. Esses processos autogestivos e auto analíticos são, para a
organização do sistema, um câncer, uma peste. Não há nada que seja mais
temido e mais odiado pelo sistema social, porque os movimentos Instituintes
têm esse intuito: que os coletivos presidam a definição de problemas, a
invenção de soluções, a colocação dos limites do que é possível, do que é
impossível e do que é virtual o que normalmente é feito pelas instituições,
organizações e saberes de grupos e outros segmentos dominantes. Por isso a
autogestão não é tarefa fácil: a prova está em que as iniciativas auto-analíticas
23
e autogestivas não se caracterizam por seu sucesso. Elas têm aparecido
muitas vezes na história e muitas vezes têm sido destruídas ou sufocadas. E
as que hoje insistem em existir lutam duramente contra um conjunto de
imensas forças históricas que tentam destruí-las. E quando não conseguem
eliminá-las, tentam recuperá-las, incorporá-las. Isso faz com que os objetivos
últimos do Institucionalismo – a autoanálise e a autogestão – não sejam
atingidos nunca de forma definitiva. Eles são atingidos sempre na base da
tentativa, do ensaio, da procura. Em geral têm maiores ou menores graus de
fracasso. Mas isso não quer dizer que não sejam possíveis ou inventáveis.
Então, esta última afirmação que faço refere-se ao seguinte: as diferentes
escolas do Institucionalismo se distinguem entre si pelas teorias, pelos
métodos, pelas técnicas com que elas tentam introduzir estes objetivos últimos,
e pelo grau de realização com o qual se conformam. Quer dizer: há correntes,
escolas" maximalistas", que buscam a instalação plena da autogestão e da
autoanálise. Há outras que se satisfazem com a introdução relativa de alguns
mecanismos, de alguns espaços, de alguns temas de autoanálise e
autogestão. Ou seja, no Institucionalismo, como na política, existem correntes
reformistas e existem correntes ultra-revolucionárias. De qualquer maneira,
nada disso impede que as agrupemos em torno desses dois objetivos e
recursos. Eles as diferenciam claramente da enorme maioria das propostas
políticas, tanto das extremistas quanto das propostas social-democráticas.
Provavelmente a tendência política tradicional que mais se aproxima das
propostas institucionalistas, e com a qual o Institucionalismo está mais que em
dívida, seja a de certas orientações do anarquismo.
PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO I
1) Por que o Institucionalismo é um movimento e não uma ciência,
uma disciplina ou uma tecnologia?
24
2) O que aconteceu com o saber e o saber-fazer que as
comunidades primitivas ou os povos e grupos leigos em geral
produziram e acumularam durante sua experiência de vida?
3) O que significa" divisão social e técnica do trabalho e do saber",
e por que se diz que as ciências, as disciplinas e seus experts estão
em geral a serviço das classes e grupos dominantes?
4) Existem "necessidades mínimas naturais" cuja satisfação é
demandada pelas populações, ou é a oferta de bens e serviços que
produz certas necessidades e desejos (e não outros) e modula as
demandas?
5) O que significa autoanálise e autogestão?
25
Capítulo II
SOCIEDADES E INSTITUIÇÕES
O Institucionalismo, à sua maneira, tem uma concepção própria do que é
a Sociedade e do que é a História, a Sociedade como forma organizada de
associação humana e a História como o devir da Sociedade no tempo. O
Institucionalismo, sem considerar no momento as diferenças doutrinárias de
escola para escola, afirma que a sociedade é uma rede, um tecido de
instituições. E que são as instituições?
As instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que,
segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem
ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser
hábitos ou regularidades de comportamentos. Alguns autores sustentam que
leis, normas e costumes são objetificações de valores. As leis, em geral, estão
escritas; as normas e os códigos também. Mas uma instituição não necessita
de tal formalização por escrito: as sociedades ágrafas também têm códigos, só
que eles são transmitidos verbal ou praticamente, não figurando em nenhum
documento.
O que essas lógicas significam? Significam a regulação de uma
atividade humana, caracterizam uma atividade humana e se pronunciam
valorativamente com respeito a ela, esclarecendo o que deve ser o que está
prescrito, e o que não deve ser, isto é, o que está proscrito, assim corno o que
é indiferente. Essas lógicas, esses corpos discriminativos, são vários, e é
curioso que os institucionalistas têm dificuldades para chegar a um acordo
acerca de quais e quantos são.
Vamos examinar algumas ilustrações mais ou menos indiscutíveis. Um
exemplo de urna instituição: a instituição da' linguagem. Ela caberia nesta
definição que formatamos quando a pensamos em termos gramaticais. A
gramática não é nada mais que um conjunto de leis, de normas que regem a
combinatória de elementos fônicos, de unidades de significação na linguagem.
Com a combinação desses elementos, conforme indicado por essas leis, pode
construir-se um infinito número de mensagens, de tal modo que estas
mensagens são compreensíveis para qualquer falante ou ouvinte dessa língua.
26
Então, corno se pode ver, no final das contas, urna gramática é urna instituição
que explicita as opções de acordo com as quais se vão produzir mensagens,
consideradas gramaticais ou agramaticais, os prescritos ou os proscritos. É
claro que, no caso da língua, não estarão estipulados também os prêmios e os
castigos para quem usa de forma correta ou incorreta a língua, que é o que
acontece em outros tipos de instituição. Mas o preço de seu desconhecimento
ou transgressão é óbvio: a incomunicabilidade dentro do universo humano,
pelo menos dentro desse universo humano em particular.
Outro exemplo são as instituições de regulamentação do parentesco, as que
definem os lugares tais corno: pai, mãe, filho, nora, genro etc. Elas são as que
prescrevem entre quais membros dessa classificação podem se dar uniões,
entre quais membros não podem se dar uniões e que tipo, que característica
de vínculo de descendência e aliança relaciona cada uma destas posições com
a outra. Isso também é um código que, formalizado ou não, regula a relação de
parentesco e tem prescrições – o que é indicado; e também proscrições – o
que é proibido; assim como o que é indiferente ou não abrangido por essa
lógica. Outra instituição pouco discutível entre os institucionalistas é a da
divisão do trabalho humano. O trabalho humano está dividido segundo os
momentos e as especificidades de cada tipo de produção e tarefa (divisão
técnica). Mas, por outro lado, essa divisão vem acompanhada de urna
hierarquia que institui diferenças de poder, prestígio e lucro – não
necessariamente justificadas pela importância produtiva daqueles que detêm
esses lugares (divisão social). Por exemplo: trabalho manual e intelectual, do
campo e da cidade, assalariados e autônomos, feminino e masculino etc.
Há também as instituições da educação, isto é, aquelas leis, normas e
pautas que prescrevem corno se deve socializar, instruir um aspirante a
membro de nossa comunidade para que ele possa integrar-se à mesma com
suas características efetivas.
Ternos também a instituição da religião, que é a que regula as relações
do homem com a divindade, divindade sobrenatural para uns ou imanente à
vida terrena para outros, mas com respeito à qual existe toda urna série de
comportamentos indicados e toda urna série de comportamentos contra-
indicados.
27
Ternos também as instituições de justiça, as instituições da
administração da força, e assim por diante. Em um plano formal, urna
sociedade não é mais que isso: um tecido de instituições que se interpenetram
e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana
sobre a terra e a relação entre os homens. Agora, entendidas assim, as
instituições são entidades abstratas, por mais que possam estar registra das
em escritos ou conservadas em tradições.
Para vigorar, para cumprir sua função de regulação da vida humana, as
instituições têm de realizar-se, têm de "materializar-se". E em que elas se
materializam? Em dispositivos concretos que são as organizações. As
organizações, então, são formas materiais muito variadas que compreendem
desde um grande complexo organizacional tal como um ministério Ministério
da Educação, Ministério da Justiça, Ministério da Fazenda etc. – até um
pequeno estabelecimento. Ou seja, as organizações são grandes ou pequenos
conjuntos de formas materiais que concretizam as opções que as instituições
distribuem e enunciam. Isto é, as instituições não teriam vida, não teriam
realidade social senão através das organizações. Mas as organizações não
teriam sentido, não teriam objetivo, não teriam direção se não estivessem
informadas como estão, pelas instituições.
Por sua vez, urna organização (que, como insisti, costuma ser um
complexo grande, vultoso) está composta de unidades menores. Estas são de
naturezas muito diversas e é difícil enunciá-las todas. Mas, pelo menos, há
algumas que são muito características, como, por exemplo, os
estabelecimentos. Estabelecimentos seriam as escolas, um convento, uma
fábrica, uma loja, um banco, um quartel. Há diversos tipos de
estabelecimentos, de características muito diferentes. Mas é um conjunto de
estabelecimentos o que integra uma organização.
Os estabelecimentos, em geral, incluem dispositivos técnicos cujos
exemplos mais básicos são a maquinaria, as instalações, arquivos, aparelhos.
Isso recebe o nome de equipamento. O equipamento pode ter uma realidade
material que coincide com o estabelecimento, ou seja, as máquinas de um
estabelecimento – ou pode ter uma realidade muito mais ampla, de maneira
que forme um grande sistema de máquinas, um grande equipamento. Isso é o
28
que acontece, suponhamos, com os equipamentos das organizações da
comunicação de massa, que, por sua vez, são organizações que realizam as
prescrições de uma grande instituição que é a instituição da Comunicação
Social.
Instituição – Organização – Estabelecimento – Equipamento. Tudo isso,
naturalmente, só adquire dinamismo através dos agentes. Nada disso se
mobiliza, nada disso pode operar senão através dos agentes. Os agentes são
"seres humanos", são os suportes e os protagonistas de toda essa
parafernália. E os agentes protagonizam práticas. Práticas que podem ser
verbais, não-verbais, discursivas ou não, práticas teóricas, práticas técnicas,
práticas cotidianas ou inespecíficas. Mas é nas ações que toda essa
parafernália acaba por operar transformações na realidade. Então, estas
unidades (instituição – organização – estabelecimento – equipamento – agente
– práticas) não podem ser confundidas. Mas, infelizmente, com frequência isso
ocorre. E não são confundidas apenas pelos leigos, mas também pelos
institucionalistas. Então, quando se estuda uma escola institucionalista, esta
escola pode chamar de instituição às organizações; de organização a um
estabelecimento. Isso não é nada recomendável porque a primeira coisa a se
fazer para se entender este complexo panorama é criar uma nomenclatura
mais ou menos universal e compartilhada. A que proponho aqui é a que grande
parte dos institucionalistas aceita.
Isso não é apenas o exercício de um desafio, mas algo importante. Se
começamos a dizer, por exemplo, que essa escola é uma instituição, o assunto
se complica, pois essa escola não é uma instituição, e sim um estabelecimento
que faz parte de urna grande organização – provavelmente do Ministério da
Educação, que, por sua vez, realiza uma grande instituição: a instituição da
Educação, que é uma lógica, uma série de prescrições ou leis.
Em uma instituição podem-se distinguir duas vertentes importantes. Uma
é a vertente do Instituinte, e outra a do instituído. Apesar de as origens das
instituições serem muito difíceis de determinar – ou seja, fazer a história de
uma instituição, particularmente a de seu começo, é urna tarefa às vezes
impossível como se costuma dizer, "perde-se no começo dos tempos".
Inclusive há muitas instituições, como a instituição da língua, das relações de
29
parentesco, da religião e da divisão do trabalho, das quais não se pode dizer
qual veio primeiro e qual veio depois. Mas podemos afirmar que para uma
sociedade humana existir é preciso haver no mínimo essas quatro instituições
humanas, ou seja, humanidade é sinônimo de coletivo regido por essas
instituições, e essas instituições são sinônimos de existência de um coletivo
humano. Então, é difícil saber como eram os coletivos antes que aparecessem
essas instituições. É o mesmo que perguntar como era o homem antes de ser
homem, pelo menos como o entendemos. Então, situar a origem dessas
instituições é muito difícil. Só se pode dizer que uma instituição supõe outra,
precisa da outra, e o seu conjunto é o que constitui uma civilização ou uma
sociedade humana. Agora, se frequentemente não se pode dizer como essas
grandes instituições começaram, sem dúvida se pode distinguir nelas uma
potência, um movimento de transformação constante que tende a modificar, a
operar mutações nas suas características. Em poucas ocasiões privilegiadas
pode-se assistir historicamente ao nascimento de uma grande instituição. Mas,
em geral, não é isso o que acontece. O que se pode presenciar são grandes
momentos históricos de revolução de uma instituição, de profundas
transformações de urna instituição. Então, a esses momentos de
transformação institucional, a essas forças que tendem a transformar as
instituições ou também a estas forças que tendem a fundá-las (quando ainda
não existem), a isso se chama o Instituinte, forças Instituintes. São as forças
produtivas de lógicas institucionais.
Este grande momento inicial do processo constante de produção, de
criação de instituições, tem um produto, geram um resultado, e este é o
instituído. O instituído é o efeito da atividade Instituinte. Se vocês prestarem
atenção a esses nomes, eles mesmos já estão dizendo alguma coisa com
relação à diferença entre o Instituinte e o instituído. O Instituinte aparece como
um processo, enquanto o instituído aparece como um resultado. O Instituinte
transmite uma característica dinâmica; o instituído transmite uma característica
estática, estabilizada. Então, é evidente que o instituído cumpre um papel
histórico importante, porque as leis criadas, as normas constituídas ou os
hábitos, os padrões, vigoram para regular as atividades sociais, essenciais à
vida da sociedade. Mas acontece que essa vida é um processo essencialmente
30
cambiante, mutante; então, para que os instituídos sejam funcionais na vida
social, eles têm de estar acompanhando a transformação da vida social mesma
para produzir cada vez mais novos instituídos que sejam apropriados aos
novos estados sociais. Tem-se que evitar uma leitura do tipo maniqueísta, que
pensa que o Instituinte é bom e o instituído é ruim, embora seja verdade que o
instituído apresente, por natureza, uma tendência à resistência, uma disposição
que se poderia chamar a persistir em seu ser, a não mudar, que quando se
exacerba, se exagera, se conhece politicamente pelo nome de
conservadorismo, reacionarismo. Pelo contrário, o Instituinte aparece como
atividade revolucionária, criativa, transformadora por excelência. Na realidade,
não é exatamente assim, porque o Instituinte careceria completamente de
sentido se não se plasmasse, se não se materializasse nos instituídos. Por
outro lado, os instituídos não seriam efetivos, não seriam funcionais, se não
estivessem permanentemente abertos à potência Instituinte.
Por sua vez, o mesmo acontece a nível organizacional. Existe o
organizante e o organizado. Há uma atividade permanentemente crítica e
transformadora, otimizadora das organizações – o organizante. E há o
organizado, que se pode ilustrar com o famoso organograma ou fluxograma,
que é necessário, mas que tem uma tendência "natural" a cristalizar-se (entre
aspas porque nada tem a ver com o natural), uma tendência histórica a
esclerosar-se e a adotar uma série de vícios, entre os quais o mais conhecido é
a burocracia, embora não seja o único. Então, é importante saber que a vida
social – entendida como o processo em permanente transformação que deve
tender ao aperfeiçoamento e visar a maior felicidade, maior realização, maior
saúde e maior criatividade de todos os membros – só é possível quando ela é
regulada por instituições e organizações e quando nessas instituições e
organizações a relação e a dialética existentes entre o Instituinte e o instituído,
entre o organizante e o organizado (processo de institucionalização-
organização) se mantêm permanentemente permeáveis, fluidas, elásticas.
Outra maneira de referir-se a isso é dizer que nas instituições, organizações,
estabelecimentos, agentes, práticas, pode-se distinguir uma função e um
funcionamento. Para poder entender essa terminologia, tem-se que
compreender que nas civilizações e nos conjuntos humanos, e na vida humana
31
tomada num sentido muito amplo, há a tendência a adquirir sempre
características históricas que comprometem este objetivo utópico ativo. Essas
características históricas, muito diferentes de uma sociedade para outra, de
uma fase histórica para outra, podem ser resumidas em três grandes situações
viciosas conhecidas por todo mundo: são os processos de exploração, de
dominação e de mistificação (desinformação ou engano). Essas são as
deformações do percurso da vida social e de seus objetivos mais nobres, de
suas finalidades mais altas, que cada sociedade coloca à sua maneira, e que
são chamadas de utopias sociais: como uma sociedade tenta, deseja, deve
chegar a ser. É claro que, à exceção de algumas sociedades em particular,
desde que existem sociedades, as utopias sociais incluem diferentes formas de
liberdade, diferentes formas de igualdade, diferentes formas de veracidade e
fraternidade, apesar de eu estar usando, para referir-me a isso, a utopia da
Revolução Francesa, chamada de revolução burguesa, que não é nem a única
nem a melhor das utopias, mas é a mais conhecida por nós. Então, cada
sociedade, em seus aspectos Instituinte e organizantes, sempre tem uma
utopia, uma orientação histórica de seus objetivos, que é desvirtuada ou
comprometida por uma deformação que se resume em: exploração de alguns
homens pelos outros (expropriação da potência e do resultado produtivo de uns
por parte de outros);
dominação, ou seja, imposição da vontade de uns sobre os outros e
desrespeito à vontade coletiva, compartilhada, de consenso; e mistificação, ou
seja, uma administração arbitrária ou deformada do que se considera saber e
verdade histórica, que é substituída por diversas formas de mentira, engano,
ilusão, sonegação de informação etc. Assim, se se compreende esta oposição
entre a utopia, o aperfeiçoamento da vida social e suas
deformações exploração, dominação, mistificação-, então se pode
compreender mais facilmente uma divisão que se estabelece entre função e
funcionamento. O dito não significa que as utopias sejam sempre inocentes e
acabem traídas, mas em geral elas são mesmo traídas.
As instituições, organizações, estabelecimentos, agentes e práticas
desempenham uma função. Esta função está sempre a serviço das formas
históricas de exploração, dominação e mistificação que se apresentam nesta
32
sociedade. Toda instituição, toda organização, todo estabelecimento apresenta
esta função a serviço dos exploradores, dos domina dores, dos mistificadores.
Só que esta função raramente se apresenta como ela é, justamente por causa
da questão da mistificação... A função apresenta-se deformada, disfarça da,
mostra-se como o objetivo natural, desejado e lógico das instituições e das
organizações. Isto é, não se manifesta claramente ao nível do instituído e do
organizado. Ou seja, os instituídos e os organizados apresentam,
predominantemente, frequentemente, funções a serviço da exploração, da
dominação, da mistificação. E as exprimem de tal maneira que as fazem
parecer "naturais", desejáveis e eternas, ao passo que o Instituinte e o
organizante são sempre inspirados pela utopia, estão sempre a serviço dos
objetivos que, provisoriamente, chamamos de Justiça, de Igualdade e
Fraternidade. Podem ser chamados de outra maneira. Essas forças, esses
processos, recebem o nome de funcionamento. Então, o funcionamento é
sempre Instituinte, é sempre transformador, é justiceiro e tende à utopia': A
função, ela é predominantemente reacionária, conservadora, a serviço da
exploração, da dominação e da mistificação, e se apresenta aos olhos não
atentos como eterna, natural, desejável e invariável.
Agora, pode-se definir outros termos que temos aqui presentes. O
instituído, o organizado, enquanto produtivo, enquanto expressão apropriada,
enquanto recurso operante o Instituinte, é claro que é necessário. Acontece
que, rapidamente, tendem a cair fora do seu sentido de funcionamento para
adotar a característica da função, coisa que se compreenderá melhor quando
se entender que a característica essencial do Instituinte, do organizante e dos
seus produtos operantes é serem propícios à produção, produção que é a
geração do novo, daquilo que almeja a utopia; funcionamento e produção são a
mesma coisa. Função é sinônimo de reprodução: é a tentativa de reiterar o
mesmo, de perpetuar o que já existe aquilo que não é operativo para propiciar
as transformações sociais. Então: Instituinte e instituído, organizante e
organizado, produção contra reprodução, funcionamento contra função.
Para concluir, exporemos definições que são um pouco áridas,
abstratas, mas necessárias para entender os passos seguintes que vamos dar:
digamos em que consiste, como entender, como analisar cada instituição, cada
33
organização, e como intervir para favorecer a ação do Instituinte e do
organizante. Não se pode fazer este trabalho sem ter claras estas definições.
Para concluir, os Instituintes-instituídos, organizantes- organizados que
constituem a malha, a rede social, não atuam separadamente, mas sim em
conjunto. E essa atividade em conjunto pode ser enunciada com uma fórmula
pedagógica: cada um deles atua no outro, pejo outro, para o outro, desde o
outro. Essa é uma tentativa de enunciar o entrelaçamento, a interpenetração
que existe entre todos os Instituintes e instituídos, entre todos os organizantes
e organizados. Esta interpenetração acontece ao nível da função e ao nível do
funcionamento; ao nível da produção e ao nível da reprodução; ao nível daquilo
que funcionará a favor da utopia e ao nível daquilo que está contra. Então,
essa interpenetração ao nível da função, do conservador, do reprodutivo,
chama-se atravessamento. Essa interpenetração ao nível do Instituinte, do
produtivo, do revolucionário, do criativo chama-se transversalidade. Para dar
apenas um exemplo, vou mostrar-lhes um caso de atravessamento de funções
a nível organizacional. Nós dizemos, por exemplo, que uma escola é um
estabelecimento das organizações do ensino, que por sua vez são uma
realização da instituição da educação. Acontece que uma escola não só
alfabetiza, não só instrui, não só educa dentro dos objetivos manifestos do
organizado e do instituído, mas também prepara força de trabalho (alienado),
ou seja, uma escola também é uma fábrica. Por outro lado, uma escola, de
acordo com a concepção de ensino que ela tenha, também consegue manter
os alunos presos durante seis a oito horas por dia, e além de ensiná-los a ler e
escrever, o que fundamentalmente lhes ensina é a obedecer, e o que
basicamente lhes transmite é um sistema de prêmios e punições,
especialmente de punições. Neste sentido é que uma escola é também um
cárcere. Mas, além disso, o que a escola ensina é uma série de valores do que
deve ser construído, do que deve ser destruído, ensina formas de exercício da
agressividade. Então, de alguma maneira, também se pode dizer que uma
escola é um quartel ou uma delegacia de polícia. Então, vocês vão vendo como
uma escola, ao nível do instituído, do organizado, ao nível da função, ao nível
da reprodução, está atravessada pelas outras organizações. Existe uma
estreita colaboração na tarefa de reproduzir o que está, tal como está, e dessa
maneira colaborar para a perpetuação da exploração, da dominação e da
34
mistificação. Mas uma escola também é um âmbito onde se tem a ocasião de
formar um agrupamento político-escolar, um clube estudantil; uma escola
também é um lugar onde se pode aprender a lutar pelos direitos; uma escola
também é um lugar onde se pode integrar um sistema de ajuda mútua entre os
alunos; uma escola também é um lugar onde se pode adquirir elementos para
poder materializar as correntes Instituintes, produtivas; numa escola também
se pode aprender a lutar contra a exploração, a dominação, a mistificação.
Então, uma escola tem um lado Instituinte, um lado organizante. Neste sentido,
a escola pode ser também, por exemplo, uma frente de luta revolucionária, de
luta sindical, um lugar de doutrinamento para a revolução, um lugar de
exercício da solidariedade. Neste sentido é que uma escola tem também um
funcionamento articulado, interpenetrado com muitas outras organizações,
instituições, com muitos outros Instituintes e organizantes da sociedade que
atuam nela, através dela, para ela, por ela, e ela por outras, e ainda entre os
diversos· quadros e segmentos desse mesmo estabelecimento. Essa
interpenetração chama-se transversalidade. A interpenetração ao nível da
função, da reprodução, como já vimos, chama-se atravessamento. A
interpenetração a nível instituinte, produtivo, chama-se transversalidade, e esta
se define também como uma dimensão da vida social e organizacional que não
se reduz à ordem hierárquica da verticalidade nem à ordem informal da
horizontalidade. Os efeitos da transversalidade caracterizam-se por criar
dispositivos que não respeitam os limites das unidades organizacionais
formalmente constituídas, gerando assim movimentos e montagens
alternativos, marginais e até clandestinos às estruturas oficiais e consagradas.
Com isso temos definida, até certo ponto, a concepção institucionalista da
sociedade. A sociedade é uma rede constituída pela interpenetração de forças
e entidades reprodutivas e antiprodutivas cujas funções estão a serviço da
exploração, dominação e mistificação (atravessamento), assim como também
está constituída pela interpenetração das forças e entidades que estão a
serviço da cooperação, da liberdade, da plena informação, ou seja, da
produção e da transformação afirmativa e ativa da realidade (transversalidade).
35
PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO II
1) O que são, para o Institucionalismo, as sociedades?
2) O que implica dizer que as instituições são lógicas e que podem
estar formalizadas em leis ou normas ou que se manifestam em
hábitos?
3) Quais seriam exemplos de instituições? Que são as
organizações, os estabelecimentos, equipamentos, agentes e
práticas?
4) O que é o instituinte e o instituído, o organizante e o organizado,
a função e o funcionamento, a produção, a reprodução e a
antiprodução?
5) O que é o atravessamento e a transversalidade?
6) De que está composta a rede social?
36
Capítulo III
AS HISTÓRIAS
O que é para o Institucionalismo o termo "história"? Nós temos, empiricamente,
alguma noção aproximada do que é história. Numa primeira instância, é
importante diferenciar História de Historiografia. A historiografia é o registro dos
fatos históricos que a gente encontra nos arquivos e, geralmente, é uma versão
que foi conservada e foi publicada porque coincide com os interesses do
Estado, das classes dominantes, do instituído e do organizado, que têm
recursos para resgatar e promover estes documentos. Naturalmente, registram
aquilo que lhes convém. Então, historiografia é esta versão que, em geral, se
apresenta como sendo objetiva, neutra, impessoal e que, a rigor, é apenas uma
versão tão interesseira, tão tendenciosa quanto qualquer outra, mas que
aparece como descritiva, como meramente narrativa. Agora, História,
propriamente, não é isso.
Historiar é um processo de conhecimento que pretende reconstruir os
acontecimentos nos tempos, mas que o faz assumindo que qualquer
reconstrução é feita desde uma perspectiva, que qualquer registro inclui os
desejos, os interesses, as tendências de quem faz História. Porque a versão
que se tem da História é sumamente importante, enquanto justifica as ações e
paixões que se protagonizam no presente e, geralmente, justifica e propicia um
projeto futuro para a vida social, ou seja, todos os movimentos sociais que se
deflagram, que se impulsionam para chegar a este porvir. Algumas coisas que
o Institucionalismo tem a dizer com respeito à História podem ser resumidas
em poucas palavras:
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Primeiro: o Institucionalismo afirma que a História não é, apenas, a
reconstrução do que já aconteceu e que já está de alguma maneira, morto,
obsoleto, definido – "o que foi, já foi"-, mas consiste em uma localização
daquilo que, de alguma forma, começou, teve início em um passado. Mas o
interesse da História institucionalista é o de reconstruir o passado enquanto ele
está vivo no presente, enquanto ele está atuante e pode determinar ou já está
determinando o futuro. Passado e futuro se constroem e reconstroem
incessantemente desde os valores que inspiram a um presente crítico e
revolucionário.
Segundo: o Institucionalismo afirma que não existe uma História, uma História
que seja como uma espécie de mangueira, de modo que totalize todo o devir
da vida social em um espaço e em um tempo só; mas diz que existem
"histórias" – multiplicidades econômicas, culturais, ideológicas, do desejo, da
afetividade, da vontade, histórias raciais, histórias das gerações. Cada uma
delas transcorre num tempo próprio que não se pode uniformizar, que não se
pode totalizar, globalizar em um tempo único; de modo que não se pode
estudar uma época como se essa época fosse um corte transversal, que se faz
num único fluxo da História, como se faria no fluxo de um rio. Trata-se de tentar
articular os diferentes tempos dos diferentes processos históricos em alguns
momentos, eras ou etapas, que são localizáveis como tais, cronológica ou
conceitualmente, no século XVI, no século XI, ou na Idade Antiga etc. Mas isso
não significa que este seja o único tempo em que se transcorreram todos os
processos. Quer dizer, os processos que constituem a História são processos
policronológicos, cada um em sua duração, e é preciso ver como cada um se
"adianta" ou se "atrasa" em relação aos outros. Outro aspecto importante da
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leitura institucionalista do tempo é que não é o passado que engendra o
presente, mas o passado está composto de uma série de potencialidades que
o presente ativa, que o presente ilumina, que o presente deflagra. Não é o
passado que gera o presente, e sim o presente que explora que aproveita ou
atualiza as potencialidades do passado para construir um porvir. Por outro lado,
a História não é uma série de etapas fatais, ou mais ou menos determinadas,
cada uma das quais origina a seguinte, que começam do zero e vão acabar em
dez, cem ou qualquer número final. Não existe uma progressão
predeterminada das etapas históricas e, por conseguinte, não existe um
apogeu final dos tempos. O Institucionalismo não aceita a ideia de uma
escatologia histórica, isto é, um final que pode ser entendido como final feliz – e
que nesse caso confirme uma escatologia positiva, ou um final catastrófico ou
apocalíptico. Não existe finalidade da História. O que pode ocorrer no dia-a-dia
não está inteiramente predeterminado no passado e nem é certo que vá
acontecer no futuro. Segundo alguns institucionalistas, o tempo, sempre
policronológico, se produz, devém desde um presente em direção ao passado
e ao futuro.
Finalmente, outra afirmação importante que o Institucionalismo pode
aportar à teoria da História é que nós, com uma explicação claramente
mecânica, baseada em paradigmas de ordem que se desenvolveram do século
XVII em diante – que têm como modelo a mecânica celeste com suas
trajetórias, suas parábolas, suas órbitas, e como correlato à máquina do relógio
–, com este metamodelo mecanicista, tendemos a pensar a História em função
de suas leis, sendo que os enunciados legais supostamente dão conta dos
processos repetitivos que transcorrem na realidade. Somos levados a pensar
39
que a História se desenvolve segundo uma ordem de características mais ou
menos maquinais, que tende a repetir-se e que, em todo caso, quando não se
repete é porque tem conseguido produzir alguma diferença em relação a uma
provável repetição do idêntico ou do igual. Então, esta concepção da História
que faz da diferença uma variação análoga ou semelhante do igual, ou do
idêntico, não é compartilhada pelo Institucionalismo. O Institucionalismo diz que
o que, predominantemente, retoma na História, não é o igual, não é o idêntico,
não é o regular, não é aquilo que se pode captar por leis típicas da mecânica
física ou da mecânica celeste, do relógio ou do calendário, mas que o que se
repete na História é a diferença, é o acaso, é o inesperado, o acontecimento, o
imprevisível, o aleatório. E que são estes grandes ou pequenos momentos de
repetição do diferente (por exemplo: do Instituinte) que depois vão tentar ser
capturados pelo instituído, pelo organizado e repetidos como idênticos.
Bem, esta concepção da História que estou sintetizando ao máximo, com
contribuições de diferentes tendências institucionalistas, não é apenas um
exercício acadêmico, mas está estritamente relacionada com a concepção da
práxis, da atividade político-social desejante que o Institucionalismo tem, e com
a utopia ativa, quer dizer, o propósito, o objetivo, a finalidade e os recursos do
Institucionalismo. Porque se bem o Institucionalismo interessa-se em estudar
as leis do que tende a repetir-se, ele está mais implicado em assumir uma
práxis que propicie o advento do inesperado, do acontecimento, da inovação
absoluta. Então, trata-se de entender como a História é não apenas uma
atividade ilustrativa, uma investigação erudita, mas uma tentativa de reconstruir
os grandes momentos de imprevisto, os grandes momentos de acaso que
transformaram o curso da humanidade, para a partir desses ensinamentos,
40
produzir estratégias que permitam propiciá-los novamente. A História se estuda
para aprender como militar a favor da transformação, não de uma
transformação previsível, não de uma transformação pré-figurada, mas da
transformação em direção ao radicalmente novo e, portanto, absolutamente
desconhecido. Tentemos agora definir outros conceitos importantes.
O termo molar, outro termo que tínhamos de comentar e que se entende
em contraposição ao termo molecular, é uma contribuição feita por algumas
escolas institucionalistas e que vou tentar explicar brevemente.
Para os institucionalistas não existe uma separação radical entre vida
econômica, vida política, vida do desejo inconsciente, vida biológica e natural.
O que existe são imanências – isto é, a inerência, a posição intrínseca de cada
um destes campos em relação aos outros, que só se podem separar de uma
maneira artificial para a finalidade de seu estudo. A rigor funcionam sempre,
por assim dizer, um "dentro" do outro, incluindo-se no outro. Então, dentro
desta concepção da vida social como uma rede, em que os diversos processos
são imanentes um ao outro, pode se distinguir o molar, que, dito de uma
maneira simples, é aquilo que é grande, que é evidente, que tem formas
objetais ou formas discursivas, visíveis e enunciáveis. Por outra parte temos o
molecular, que é o que na física se costuma chamar micro, por oposição a
macro, isto é, o mundo atômico e subatômico, o mundo das partículas,
enquanto o mundo macro por excelência seria, por oposição, o universo, o
cosmos, que é composto de grandes corpos. Então, tomando esses
ensinamentos da microfísica, da microquímica, da microbiologia, da biologia
molecular, o Institucionalismo afirma que as grandes mudanças históricas, as
macromudanças, são sempre resultado de pequenas micromudanças, e que os
41
grandes poderes em vigor na sociedade são apenas forças resultantes de
pequenas potências que se chocam e conectam em espaços microscópicos de
uma sociedade. Como até mesmo a física, a biologia e a química descobriram
que as leis que regem os processos e as entidades macro não são capazes de
dar conta da dinâmica que acontece nas micro. O macro é o lugar da ordem, é
o lugar das entidades claras, dos limites precisos, é o lugar da estabilidade, da
regularidade, da conservação. O micro, dito tanto no sentido físico, químico,
biológico quanto no sentido social, político, econômico e desejante, é o lugar
das conexões anárquicas, insólitas, impensáveis. O macro é o lugar da
reprodução, e o micro é o lugar da produção; o macro é o lugar da conservação
do antigo ou da propiciação do novo previsível, e o micro é o lugar da eclosão
constante do novo; o macro é o lugar da regularidade e das leis, o micro é o
lugar do aleatório e do imprevisível. Esta diferenciação também é importante
porque, em geral, o Institucionalismo confia em analisar e propiciar as
mudanças locais, as transformações microscópicas, as conexões
circunstanciais, porque espera delas efeitos à distância que, ao generalizarem-
se, resultam nas grandes metamorfoses, do instituído e do organizado, o
detectável e consagrado. Dito com outras palavras, o Institucionalismo pensa
que as pequenas conexões locais são o lugar do Instituinte, e entendê-lo assim
está estritamente relacionado com as estratégias de intervenção nos âmbitos,
nos espaços de atuação que o Institucionalismo vai tentar propiciar. Eles são
os pequenos lugares intersticiais da vida natural-social-técnica e subjetiva, e
não os grandes blocos representativos dos territórios constituídos.
Finalmente, é importante definir o termo antiprodução. Se não me engano, já
tentamos reiteradamente definir e redefinir o termo produção. Produção é
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aquilo que processa tudo que existe, natural, técnica, subjetiva e socialmente.
É a permanente geração, enquanto não se cristaliza; é o devir, é a
metamorfose, é o que, com uma terminologia ainda religiosa, chamaríamos de
criação. Mas no momento em que as forças produtivas entendidas de maneira
muito ampla, as forças instituintes -organizantes, são capturadas em grandes
organismos reprodutivos como o Estado ou o mercado capitalista, vigora a
antiprodução. Por exemplo, elas são voltadas contra si mesmas, de maneira
que a produção, as energias não orientadas, as matérias produtivas ainda não
formadas são retidas pelos mecanismos, pelos equipamentos, pelos
organismos e forças de toda ordem que propiciam a reprodução do mesmo, o
impedimento ou a destruição do novo, elas tornam-se antiprodutivas, elas se
destroem a si mesmas. É o que subjaz a grandes processos sociais como as
guerras; é o que subjaz a célebres atitudes sociais como a de destruir os
produtos porque o preço caiu no mercado; é o que subjaz à geração de
enormes contingentes sociais que estão destinados a morrer, e que morrem
não apenas por deficiência da provisão ou da organização, mas por atitudes
ativas do poder destinadas a destruí-los, como é o caso da marginalidade, da
mortalidade infantil, dos preconceitos sexuais e raciais, do alcoolismo, da
tóxico-dependência, dos genocídios coloniais, neocoloniais e planetários
contemporâneos etc. Essas são potências, são forças singulares, produtivas,
que a sociedade não está em condições de incorporar porque não pode
transformá-las em mercadoria, seres, bens, valores, serviços – não pode
assimilá-las à lógica do sistema. Então, ou as deixa morrer, ou as mata por
meio de mecanismos mais ou menos deliberados, mais ou menos
premeditados. Esse processo de autodestruição das forças produtivas naturais,
43
sociais, subjetivas e tecno-industriais que a sociedade faz chama-se
antiprodução. Um desses processos característicos é o problema ecológico,
que só agora se está" descobrindo", enquanto já era evidente desde meados
do século passado com o processo produtivo industrial' mercantil baseado na
geração de mercadorias, de bens de troca e não de bens de uso, que vem
destruindo o reservatório fundamental de matéria-prima e de vida que é a
natureza. Agora, isso se torna moda; mas foi sempre assim, e é uma das
expressões mais radicais da capacidade antiprodutiva do sistema dominante
no mundo.
Para qualquer tendência sociológica, científica-política ou econômica
clássica, já é completamente evidente que não se pode pensar os processos
característicos de cada área – não se pode conceber o que acontece em
economia, em política ou sociologia – com independência do psiquismo dos
homens, prescindindo do que antigamente se chamava as almas dos homens.
Ou seja, apesar de se poder acreditar que é o econômico que determina, em
última instância, as características da vida e da morte social, ou que se possa
supor que é o político o tal determinante, hoje se sabe, e ninguém pode negá-
la, que por mais determinados, por mais submetidos às leis econômicas e
políticas que estejam os homens, eles só entram nesses processos de
dominação, de exploração, de mistificação ou, pelo contrário, em processos
revolucionários, se estes, de algum modo, coincidem com suas crenças,
representações, convicções acerca da vida social. E também não entram se
suas expectativas, suas vontades, seus desejos não se encaminham nessa
direção. Isso é claríssimo. O Institucionalismo tende a não privilegiar a priori
nenhuma determinação mais que outra, isto é, são tão importantes as
vontades, os desejos e as representações com que os homens entram nos
processos históricos quanto as estruturas "materiais", econômicas, políticas ou
naturais que os determinam. Mas a isso temos de acrescentar que a partir da
contribuição psicanalítica, sabe-se que as vontades, os desejos mais potentes
que dirigem a conduta ou a vida dos homens, são inconscientes, isto é, não
44
fazem parte de seu saber, de seu querer deliberado. Em última instância, os
homens entram nos processos históricos e sociais determinados por forças
desejantes, por vontades que eles não controlam e não conhecem, mas que
têm a ver com o prazer, que têm a ver com o sofrimento e têm a ver com
vivências e mecanismos subjetivos ainda mais profundos. Hoje, por exemplo,
está cada vez mais evidente para os economistas que o "melhor" plano
econômico não funciona se não se consegue mobilizar as forças desejantes
dos integrantes de uma população, não só seus interesses, para provocar o
consenso dos agentes em torno deste plano; e ainda mais, que o "pior" dos
planos é capaz de funcionar quando se consegue essa mobilização. E não se
trata apenas de conseguir uma adesão consciente ou uma credibilidade
voluntária, mas de mobilizar forças inconscientes às quais se apela, ainda
passando por cima das crenças e convicções dos agentes sociais. Isso
também não é novidade. Já a partir de Reich, o grande psicanalista marxista,
nós nos interrogamos constantemente porque, em lugar de colocar-se o
problema de que ocasionalmente os operários estejam em greve ou que
circunstancialmente os soldados se rebelem contra seus superiores, não nos
perguntamos porque os operários não estão sempre em greve, porque os
soldados não se unem para executar definitivamente seus superiores. Por que
os povos atuam contra seus reais interesses e vontades? Então, não se trata
apenas de dizer que o fazem por medo, porque os acontecimentos históricos
demonstram que os povos quando se mobilizam, quando as forças
inconscientes se ativam, não têm medo de nada e têm como se fosse uma
plena consciência de sua potência. Eles correm perigos tremendos ou –
combatem lutas desiguais, mas eles operam as transformações sociais. Não se
trata também de dizer apenas que os povos são ignorantes, porque se é certo
que o sistema se ocupa de manter os povos ignorantes ou erradamente
informados, já se tem visto processos históricos em que os povos são capazes
de produzir um saber acerca de suas condições de existência que não precisa,
passar pelo saber transmitido pelos meios de divulgação, nem necessita
submeter-se ao saber acadêmico. Os povos checam seu próprio saber sobre
suas condições de vida na luta cotidiana pela transformação desses campos de
existência e levam à frente movimentos de imenso poderio, de incalculável
potência social, sem apelar para os saberes instituídos e estabelecidos. Então,
45
o importante a ser reconhecido é a existência dessas forças inconscientes que
o Institucionalismo denomina desejo, por ressonância ou por uma re-
elaboração do conceito de desejo inconsciente da Psicanálise. A diferença
consiste em que o desejo inconsciente em Psicanálise está sempre relacionado
com uma estrutura chamada Complexo de Édipo: é um desejo que atua
primeiro na vida familiar, nas relações ou nas fantasias incestuosas ou
parricidas do inconsciente infantil e que, depois, se translada para a vida social
com as mesmas características. O desejo segundo a Psicanálise é um impulso
que tende a reconstituir estados perdidos a se realizarem em fantasmas
imaginários, é uma tendência reprodutiva, é um anseio que tende a restaurar o
narcisismo, que supostamente, em algum momento, foi o estado em que o
proto-sujeito esteve integralmente. O desejo no Institucionalismo não tem
essas peculiaridades. O desejo do Institucionalismo é imanente à produção, é
(digamos provisoriamente) o aspecto subjetivo (mas não apenas psíquico) da
mesma força que no social é o Instituinte. É uma força que tende a criar o
novo, entendido como o imprevisível, é uma força de conexões insólitas, é uma
força de invenção e não é uma força restauradora de estados antigos. Mas é
inconsciente. Só que este inconsciente não se entende exclusivamente como
um inconsciente edipiano, familiarista, repetitivo, mas também como um
inconsciente pré-pessoal, pré-social e pré-cultural, objeto de um saber que
toma elementos de todos saberes existentes; trata-se de matérias não-
formadas e energias não-vetorizadas que são capazes de gerar transformação.
A força desse inconsciente não está submetida apenas por um recalque
psíquico, mas por um recalque complexo que é simultaneamente político,
libidinal, semiótico etc. Então, para o Institucionalismo não existe o que seria
um homem universal, não existe uma estrutura, uma essência-homem.
Também não existe uma estrutura, uma essência-sujeito, um sujeito psíquico
que seria o mesmo em todas as sociedades, em todos os momentos históricos,
em todas as classes sociais, em todas as raças etc. O que se passa é que
esse sujeito psíquico, mesmo que se aceite como sendo universal, teria
representações ou teria recursos que variariam segundo a sociedade, segundo
a classe social ou o grupo a que pertencesse. Para o Institucionalismo não
existe esse sujeito eterno e universal, apenas preenchido com conteúdos
históricos sociais variáveis. Para o Institucionalismo, o que existe são
46
processos de produção de subjetivação ou de subjetividade. Mais adiante
explicarei em que consistem essas duas denominações, mas essa produção é
absolutamente contingente, é absolutamente própria de cada lugar, de cada
momento, de cada conjuntura histórica etc. Ou seja, produzem-se sujeitos em
cada acontecimento-devir-sujeitos para esse acontecimento-devir, sujeitos
variavelmente protagonistas desse acontecimento, ou, se pode dizer, é o
acontecimento-devir que os produz. E podem existir analogias, podem existir
semelhanças entre esses sujeitos. O que importa não é a produção das
semelhanças ou de analogias entre os sujeitos, mas a produção de diferenças,
a singularidade de cada sujeito produzido em cada lugar, a cada momento.
Então, quando nessa produção predomina o instituído, a reprodução de um
sujeito do desejo assujeitado aos interesses dominantes, aos interesses
exploradores, aos interesses mistificantes, ele adota as características de um
sujeito mais ou menos universal e eterno. A isto se chama produção de
subjetividade assujeitada, subjetividade submetida. Quando o que predomina
neste processo é a geração do novo absoluto, de subjetivação absolutamente
original, absolutamente singular, absolutamente Instituinte, absolutamente
contingente, circunstancial e gerada pelos eventos revolucionários, a isto se
chama produção de subjetivação livre, não assujeitada, primigênia, produtiva,
revolucionária, em que o desejo se realiza em conexões locais, micro, e se
efetua gerando o novo, não se concretiza restituindo o antigo processa-se não
reproduzindo o instituído, o organizado, o estabelecido, mas se realiza gerando
o Instituinte e o organizante.
Por que esta discriminação é importante? Porque na leitura que o
Institucionalismo vai fazer de cada organização, de cada estabelecimento,
movimento ou proposta, ele vai privilegiar a intelecção de dispositivos que são
capazes de produzir subjetivações. E não vai privilegiar, a não ser para
denunciá-los, a leitura de aparelhos ou equipamentos que estão destinados a
produzir a reprodução de subjetividades submetidas. O mesmo vai acontecer
nas montagens técnicas, organizativas, políticas, com as formas de militância,
com a "maquinaria de guerra" que o Institucionalismo pretende propiciar em
suas intervenções, porque as mesmas têm de estar protagonizadas por novas
produções de subjetivação, circunstanciais, transitórias, capazes de encarar o
47
sentido desejante e revolucionário e depois autodissolver-se para deixar seu
lugar a outras. Evidentemente, todas essas definições necessitariam de
exemplos muito precisos que, pela natureza elementar deste livro, não
poderemos dar nesta exposição. Mas a discriminação que tem de ficar
claramente estabelecida é que o Institucionalismo, em geral, não .se propõe
"pegar" um sujeito reprodutivo que é sempre o mesmo, eterno e universal e
invariável em todo tempo e lugar, e trabalhá-lo para torná-lo produtivo. O
objetivo institucionalista é criar campos de leitura, de compreensão, de
intervenção para que cada processo produtivo desejante, revolucionário, seja
capaz de gerar os "homens" (ou sujeitos) de que precisa. Não ajeitá-los a partir
de uma suposição de que já estão feitos, mas aceitar a ideia de que os novos
homens se fazem a cada momento, em cada circunstância.
Essa exposição que se acaba de ler não segue ao pé da letra as teorias
sistemáticas da Psicanálise, o Marxismo ou as psicossociologias de cunho
fenomenológico, positivista, culturalista ou estrutural-funcionalista. Em muitas
passagens, pode ficar sincrética ou imprecisa demais. A intenção não é dar
uma série de definições acadêmicas fiéis a seus textos de origem. Este é o
caso, por exemplo, de quando falamos do inconsciente ou do desejo. O
contexto em que falei dessa questão ainda é um espaço teórico algo clássico,
que habitualmente se aborda com o nome de ideologia. É verdade que há uma
certa definição de ideologia que a considera como uma série de
representações erradas, de crenças, de convicções acerca do mundo, que está
animada pela ilusão, pela esperança e pelo medo. Costuma-se reconhecer que
existem ideologias dominantes que são as ideologias da classe dominante, ou
seja, que são ideologias conservadoras, reacionárias. Por outro lado, existem
ideologias revolucionárias, que são ideologias das classes, dos grupos que
procuram uma drástica transformação social. Em geral fala-se dessas
ideologias como sinônimo de consciência falsa ou distorcida. São crenças,
convicções ou expectativas e desejos conscientes. Ademais, afirma-se que a
ideologia dominante na sociedade é a ideologia dos grupos dominantes, é uma
ideologia que se impõe pela ignorância ou a distorção, apesar de ser contrária
aos interesses da maioria. Então, costuma-se dizer que a maneira de reverter
essa situação é instruir, é educar, é modificar essas representações, é criar
48
outro tipo de expectativa ou vontade, é conscientizar acerca dos limites da
potência que tem a classe dominante, conscientizar acerca do potencial de
prazer, de gozo, de eliminação do sofrimento que teria uma transformação
social protagonizada pela classe dominada. Mas é importante recordar que
desde um bom tempo atrás já existem pesquisas e produções teóricas que
mostram que não é apenas por medo ou esperança, por ignorância,
informações erradas ou manipuladas que as classes, os grupos e sujeitos
submetem- se aos interesses das classes dominantes. Eu citava o célebre
psicanalista Reich quando ele, estudando o movimento nazista da Alemanha,
afirmava que o povo alemão não estava desinformado; talvez estivesse
incorretamente informado, mas é difícil acreditar que o povo mais culto da
Europa fosse capaz de acreditar nas asneiras que estavam sendo ditas; e
também não tinha tanto medo, porque era um povo muito orgulhoso, muito
seguro de suas forças, com um proletariado muito politizado. E, sem dúvida,
este povo acabou aderindo maciçamente ao projeto nacional-socialista, um
projeto de dominação do mundo, racista, machista, que reunira em si todos os
autoritarismos, todos os paternalismos, toda a capacidade antiprodutiva de
uma sociedade moderna. Por quê? O que W. Reich diz é que foi devido não
apenas às circunstâncias históricas econômicas, políticas e ideológicas que
todo mundo conhece, mas também a determinantes, digamos, histórico-
eróticos, libidinais, que fizeram com que este líder fosse capaz de mobilizar
certos desejos inconscientes da massa e fazê-la participar de um projeto
onipotente e sádico, uma maneira de realizar inconscientemente esses
desejos, desejos inconscientes de domínio, de exercício da crueldade, desejos
inconscientes que, segundo Reich, eram maneiras de restituir a cada um deles
o estado utópico narcísico perdido. Reich já sabia que não é apenas com a
consciência que se consegue dominar os povos, fazê-los operar contra seus
potenciais e interesses, mas com outro tipo de mobilização. O Institucionalismo
vai recolher bastante de Reich, mas reformulando-o segundo sua própria
compreensão do desejo – que não é o desejo segundo a Psicanálise de Reich;
não é o desejo exclusivamente psíquico ou inconsciente (segundo o
inconsciente edipiano da Psicanálise), mas o desejo imanente a todas as
forças materiais possíveis de potência produtiva. Não é um desejo que, por
natureza, pretenda restituir alguma coisa perdida, mas é um desejo que, por
49
substância, é revolucionário. Este tipo de desejo inconsciente, que tem de ser
lido no campo da análise e mobilizado pelas intervenções, pelos dispositivos
instituintes, para que opere historicamente segundo sua verdadeira essência e
não seja encaminhado a animar máquinas reprodutivas e antiprodutivas.
O emprego que aqui fizemos de uma verdadeira proliferação de termos
é uma peculiaridade do caráter intertextual e descartável da terminologia
institucionalista. É possível que seja um tanto confuso, particularmente com
relação ao léxico sistemático da Psicanálise ou do Materialismo Histórico.
Eu me surpreenderia se estivesse claro. Afinal, tudo o que teria de ser
dito sobre Psicanálise, o Édipo, a concepção psicanalítica do desejo e o
Institucionalismo é muito mais amplo do que a gente pode dizer aqui. Se
alguém observa no meu relato restos da nomenclatura psicanalítica, isso pode
ser até uma espécie de interpretação ou intervenção institucionalista sobre meu
discurso, na medida em que, por mais que a gente se envergonhe, a gente
também é psicanalista. É evidente que chegamos ao Institucionalismo a partir
de identidades diferentes. Há institucionalistas psicanalistas. Cada um de nós
tem de lutar contra constrições, restrições teóricas e técnicas e "práxicas" que
a sua identidade prévia lhe impõe. Porque ser institucionalista implica uma
tremenda transformação do aparelho teórico, metodológico, técnico da atitude
profissional e da atitude específica do especialista. Então, nesta função que
estou cumprindo agora, não me surpreende que eu tenha as minhas
vacilações. Não sei se elas foram percebidas. Obviamente não são registradas
por mim, que sou interessado e, portanto suspeito. Tenho a impressão de que
não é tanto assim: "Apenas por egossintonia." Mas o que aparece na mudança
do caminho é o seguinte: o Institucionalismo é um saber intersticial, é um saber
nômade, é um saber errático; então, ele pega algum elemento de cada campo
do saber e do fazer e tenta agregá-lo a novos contextos para criar uma ideia
nova. Em compensação, o Institucionalismo não é uma ciência, não é uma
disciplina, não tem objeto específico, não tem aparelho teórico conceitual
restrito, não tem um objeto formal abstrato. Então, o que eu estava tentando
explicar com referência ao desejo e ao inconsciente é que este é uma ideia
repensada, porque o Institucionalismo não a toma emprestada, não a importa
(como se diz em epistemologia); o Institucionalismo "rouba" alguma coisa de
50
cada corpo teórico e se sente com direito de roubar, porque não respeita a
propriedade intelectual privada nem específica. Por exemplo: O roubo que o
Institucionalismo fez da Psicanálise e do conceito clássico de essência do
desejo inconsciente como força capaz de gerar uma série de efeitos, como o
valor do prazer e do desprazer no campo libidinal, no plano das "escolhas
objetais". Mas o Institucionalismo vai transformar este conceito. O desejo
inconsciente na Psicanálise é uma força que insiste em restituir
imaginariamente o narcisismo como estado inicial em que coincidem
investimento e identificação; então, como é que a Psicanálise atua? Ela o faz
tentando impedir que o desejo reatualize a unidade imaginária do ego do
sujeito com o objeto narcísico por meio da castração simbólica, orientando e
fluidificando o desejo através do sistema simbólico. O desejo se mobiliza para
restituir imaginariamente o narcisismo. A intervenção psicanalítica o obriga
(mais que lhe possibilita) a animar o sistema simbólico, a representar, a
significar, a sublimar. Por sua vez, o Institucionalismo não acredita que a
essência do desejo seja restitutiva, nem que deve ser capturado no sistema
simbólico, nem obrigado a nada. Ele pensa que o desejo é espontaneamente
produtivo, revolucionário, inventivo. Apenas se deve criar condições para que
ele possa animar dispositivos e máquinas revolucionárias capazes de realizá-la
em acontecimentos e devires. Para o inconsciente psicanalítico o desejo nunca
se realiza, é da característica do irrealizado, só pode imaginar-se e simbolizar-
se. Para o Institucionalismo, o desejo realiza-se sempre, apenas é preciso
produzir condições históricas em que ele possa realizar-se produtivamente.
Isso inclui engendrar modos de subjetivação que co-protagonizem este
processo.
Para alguns institucionalistas, se é que eles aceitariam essa
denominação genérica, o inconsciente e o desejo são a substância mesma da
realidade (como diria o filósofo Espinoza), da qual se diz que se repete como
diferença, ou seja, que é o Ser do Devir sempre infinitamente diferente.
Também se afirma que é a Vontade de Potência afirmativa e a ação das forças
positivas (como postularia Nietzsche) que gera o inter-jogo de forças e a
origem de tudo. Kant talvez diria que o desejo consiste em quantidades
intensivas, que são prévias às quantidades e qualidades de tudo que existe.
51
Bergson falaria das virtualidades – que não existem, mas são reais, e só
esperam sua atualização. Para certos institucionalistas, o inconsciente é
produzido em cada agenciamento, em cada dispositivo que se autogera para
originar um acontecimento e um sentido. Tais inconscientes não são causados
por sujeitos nem por objetos, pelo contrário, eles podem processar modos de
subjetivação e objetivação que são necessários para as novidades produtivas
que os geraram em sua montagem.
Não obstante, nos propomos voltar sobre o tema no capítulo seguinte.
Apenas observemos que, para certas correntes do Institucionalismo, o sujeito é
uma organização por meio da qual se realizam muitas instituições. Assim
entendido, o sujeito é produto de processos instituintes, organizantes,
criadores, assim como de outros repetitivos ou antiprodutivos. É por isso que
as diversas escolas institucionalistas tentam analisar e intervir sobre o sujeito-
organização em suas relações de atravessamento e de transversalidade com
outras organizações: subjetivas ou não (ou seja: no trabalho, na educação, na
saúde etc.), outras correntes institucionalistas não dizem que o sujeito é
apenas uma peça do processo de produção de subjetividade alienada ou de
subjetivação revolucionária. Esses processos são imanentes a muitos outros e
sua abrangência e produtos são muito mais amplos e complexos do que aquilo
que se entende por" sujeito".
52
PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO III
1. Que diferença existe entre História e Historiografia?
2) Existe uma História que totaliza todos os percursos dos
processos sociais-econômicos-subjetivos e naturais?
3) O que significa Molar e Molecular?
4) O que se entende por produção, reprodução e
antiprodução?
5) Qual é o papel da repetição e da diferença, do acaso e
das regularidades na História?
6) Qual é a diferença do modo de definir sujeito e desejo:
na Psicanálise e no Institucionalismo?
53
Capítulo IV
O DESEJO E OUTROS CONCEITOS NO INSTITUCIONALISMO
Eu dizia, em uma passagem do capítulo anterior, que não me estranharia que
muitos dos conceitos do Institucionalismo não fossem fáceis de entender,
assim como a essência mesma do Movimento.
O filósofo Gaston Bachelard escreveu um livro chamado "Psicanálise do
Espírito Científico". Na realidade, não se tratava propriamente de Psicanálise e,
por outro lado, se compreenderá que não se pode falar, em um sentido estrito,
de "espírito científico" – só Sé pode aceitá-lo como uma metáfora. O
mencionado texto tratava de caracterizar os principais hábitos do pensamento
corrente que, por estarem muito arraigados, produzem um efeito de convicção
na "mente" de quem pretende formar-se como cientista. Esses "vícios" do
senso comum operam como obstáculos que dificultam ou impedem o estudioso
de assumir as peculiaridades de funcionamento dos diversos métodos
científicos, cujas "verdades" freqüentemente contrariam as evidências da
opinião generalizada. Bachelard tentava um trabalho epistemológico que
operasse uma espécie de "cura" dessas crenças para conseguir, assim, a
predisposição dos "espíritos" para a adoção de uma atitude tipicamente
científica.
Não ignoro que, devido às deficiências da formação geral e universitária
da qual padecemos, muitos ainda não podem estar certos de haver adquirido o
mencionado" espírito", ou um outro melhor ainda, por isso torna-se
especialmente difícil exigir-lhes, neste momento, que comecem a aprender a
criticar-se enquanto "científicos", entendendo a singular proposta do
lnstitucionalismo. Cabe aqui lembrar que, a despeito do Institucionalismo nutrir-
se em grande parte das contibuições mais revolucionárias das ciências
contemporâneas, tem com elas uma relação contraditória, polimorfa e
complexa.
Um típico problema que se apresenta quando se trata de ensinar alguma
ciência em particular passa-se devido ao fato de que, semanticamente falando,
alguns termos teóricos que as ciências empregam são idênticos aos utilizados
54
na linguagem cotidiana. No entanto, sabemos que essas palavras, quando
importadas e processadas no seio de uma teoria científica, mudam
radicalmente de sentido, não conservando nenhuma das denotações e
conotações (como diz certa lingüística) que tinham nos discursos ou textos de
origem. Contudo, ainda durante um longo período de sua aprendizagem, os
jovens estudantes de uma ciência continuam confundindo essas diferentes
significações.
As diversas correntes institucionalistas, por sua parte, podem empregar
termos teóricos com acepções idênticas às utilizadas pela ciência de onde um
conceito foi tomado, ainda que invariavelmente o façam isolando esse conceito
do contexto sistemático no qual o mesmo foi enunciado e do qual recebe seu
valor de origem.
Em outros casos, o Institucionalismo procede adotando algum termo,
mas o faz acrescentando-lhe sentidos que se somam aos originais, sem
descartá-las. Finalmente, o Institucionalismo pode também transformar um
conceito em uma categoria, ou em uma noção, ou até em uma alusão vaga, se
considera que, em determinada conjuntura, torna-o revelador.
Para concluir, cabe recordar que o Institucionalismo é a expressão, algo
extremada, de um questionamento da hegemonia do pensamento científico
como tal e de suas diversas especificidades, defendendo a fertilidade de todos
os saberes, incluídos, por exemplo, os que existem em "estado prático" nas
atividades leigas, artísticas, religiosas etc.
Por isso, às vezes é duro, para quem se aproxima deste estudo, aceitar
e entender a polissemia que adquirem semantemas provenientes, digamos, da
Psicanálise (inconsciente, desejo etc.), ou outros originários de algumas
escolas do Materialismo Histórico (sobredeterminação e mais-valia, por
exemplo).
Agora, peço-lhes que se coloquem um pouco no lugar do docente. Estou
tentando dar um curso introdutório de um saber que não tem limites. Se os
profissionais, especialistas de alguma disciplina, queixam-se da incrível
aceleração na produção de conhecimentos de cada saber, que faz com que os
experts não consigam acompanhar essa produção – em alguns ramos muito
55
desenvolvidos, como a Física, chega-se a afirmar que o expert só tem dez
anos de vida útil, tendo se tornado descartável como os jogadores de futebol,
pois depois de uma década já não consegue acompanhar o ritmo de produção
teórica e tecnológica de sua disciplina e não chega a atualizar-se. Imaginem
vocês uma coisa como esta, que é um composto de todos os saberes de uma
época, inclusive os saberes não-científicos, os artísticos, os populares; então a
formação de um institucionalista realmente é interminável.
Estou tentando dar uma visão panorâmica geral, muito pouco
aprofundada e ambiciosa, de certos conceitos, de certas idéias básicas e de
algumas das principais correntes. Não nego que algumas ampliações sejam
essenciais, mas justamente porque o são, desenvolver esses temas, no caso
de eu estar capacitado para fazê-lo, levaria a outros tantos cursos. Este é um
pequeno esclarecimento e uma desculpa pelo tratamento que tentarei dar a
várias questões, que terá de ser breve, para que eu possa desenvolver este
capítulo coerentemente com o resto do texto.
Comecemos por lembrar que não existe uma escola institucionalista,
mas sim muitas, e existem diferenças teóricas, metodológicas, técnicas,
políticas entre elas. O que há como característica comum é o interesse pela
produção nas organizações e instituições, assim como por um funcionamento
autoanalítico e autogestivo das mesmas. É o mínimo denominador comum que
se consegue encontrar entre as várias tendências. Agora, entre as muitas
diferenças existentes de uma para a outra, está a definição dada a "desejo".
Boa parte delas reconhece a existência do psiquismo como um campo
relativamente autônomo da realidade. A maioria delas aceita, dentro desse
campo chamado psiquismo, a existência de um espaço, de um sistema e de
processos de caráter inconsciente que considera do campo das causas, da
área dos motores do funcionamento psíquico, sendo que o comportamento, a
conduta, as vivências, as representações e afetos são do campo dos efeitos
deste psiquismo. No entanto, a maioria deles atribui à Psicanálise o mérito de
ter descoberto esta instância determinante, que seria o inconsciente com seu
processo primário e a força que anima essa instância, que é o desejo. Boa
parte deles concorda com a definição de desejo que seria predominante à
colocada em muitos textos freudianos. Em que consiste esta definição de
56
desejo? Seria uma força insistente, persistente, que procura restaurar, reeditar,
em último termo, um certo estado do "desenvolvimento" do psiquismo que se
denomina narcisismo, em que o ego e o objeto são um, em que não existe a
separação sujeito-objeto – que a Psicanálise atribui ao Complexo de
Castração. Então, a partir da ruptura desse estado, surge uma força que seria
o desejo, que tenta reproduzi-lo. Quando a mesma é obrigada a passar por
outras instâncias, outros dispositivos, outras maquinarias do psiquismo,
particularmente por certa ordem de representações, ela acaba gerando todos
os produtos chamados "normais" da vida psíquica, que são rendimentos,
resultados dessa trajetória que o desejo faz em lugar da sua realização
meramente "alucinatória", ou seja, de sua tentativa de restauração desse
narcisismo inicial. Isso, como o leitor avaliará, inclui uma definição restitutiva do
desejo; o desejo tem uma natureza conservadora; ele parte de uma situação
narcisística e tende a voltar a ela; ele torna-se produtivo apenas quando nesse
caminho, nessa trajetória, é obrigado a elaborar, e a sublimar, devido à sua
subordinação à ordem simbólica, a lei ou a sua inscrição no processo
secundário (como se queira chamá-lo). Muitos institucionalistas compartilham
plenamente essa definição de . desejo e a aplicam à compreensão dos
aspectos psíquicos da vida organizacional, usando-a no entendimento do
funcionamento da subjetividade, assim definida nas organizações,
particularmente em seus aspectos inconscientes. Um exemplo característico de
um autor institucionalista que é absolutamente fiel a esta definição freudiana de
desejo, embora tente articulá-la com uma teoria materialista-histórica da
sociedade, da economia,da política e das organizações, é Gerard Mendel,
criador de uma corrente institucionalista chamada Sociopsicanálise, à qual
vamos nos referir mais adiante porque está contemplada em nosso programa.
Já uma definição menos fiel à freudiana é a de René Lourau, que recolhe a
definição de desejo de uma forma menos ortodoxa. Mas se a gente estuda a
obra freudiana com amplitude e detalhe, percebe setores da mesma em que
essa definição de desejo, que explicamos anteriormente, mostra-se
característica, por exemplo, do capítulo VII da "Interpretação dos Sonhos" e da
chamada primeira tópica. Entretanto, existe a possibilidade de outra definição
baseada nas passagens freudianas em que o Id é pensado como um "caldeirão
fervente" cheio de estímulos, no qual a pulsão de vida funciona segundo o
57
processo primário. Nesse caldeirão estão incluídos os impulsos libidinais e
desejantes dessa "usina" – que têm por objetivo não a restituição de estados
perdidos, mas propiciar, de forma anárquica, estados permanentemente novos;
associar, cada vez mais amplamente, unidades vitais; processar o movimento
como sendo a essência da pulsão de vida e do desejo que dela emana.
Justamente a partir dessa definição surgiu a plêiade de inúmeros autores que
impugna a existência de uma pulsão de morte no psiquismo, assim como a
exclusividade de um modo de ser do desejo em cujo extremo está a pulsão de
morte que tenta restaurar um estado imaginário perdido, e com ele a
imobilidade. Estamos vivendo uma situação cultural em que se está impondo a
hegemonia de uma das leituras do desejo que Freud fez (a estruturalista).
Estamos assistindo, mundialmente, a uma certa fragilidade das proposições do
marxismo ortodoxo, assim como a de uma série de autores que partiam desse
outro setor da obra freudiana para definir a pulsão e o desejo, como por
exemplo, os freudo- marxistas. Então, não é estranho que isto se apresente
como uma dificuldade para os interessados no assunto, porque este é um
problema muito atual e de muita disputa teórica. No entanto, outros setores do
Institucionalismo, particularmente Deleuze e Guattari – os criadores desta
orientação chamada Esquizoanálise, muito pouco conhecida e muito pouco
implantada tanto em nosso meio como rio mundo inteiro –, levam as
proposições freudo-marxistas dessa outra definição do desejo até extremos
pós-freudianos e pós-marxistas baseados já em outras contribuições de
disciplinas atuais, como a filosofia, a macrofísica, a microfísica, a biologia
molecular e certos campos das ciências formais, por exemplo a matemática de
Rieman. Os "descobrimentos" desses saberes têm dado origem ao que se
chama de uma mudança de paradigma, uma transformação do modelo
dominante no horizonte atual do conhecimento. Essa mudança, em um de seus
aspectos, consiste na promoção de certo poder criativo da desordem, na
reivindicação da neguentropia, ou tendência à autopoiese, na defesa da
produção, da vitalidade, inclusive na ma terialidade psíquica e seus
determinantes em última instância, que seriam a pulsão e o desejo. Então,
Deleuze e Guattari, também apoiados na literatura, na arte, e ainda no discurso
delirante, constroem uma definição de desejo como sendo não apenas a força
que anima o psiquismo, mas uma força essencialmente produtiva e criativa
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buscadora de encontros que, além de tudo, é imanente a outras forças
animadoras do social, do histórico, do natural. O desejo não tem caráter
restitutivo – tem caráter essencialmente produtivo- revolucionário – e não é
uma força separada das que animam a vida social e natural. Por isso há uma
fórmula na Esquizoanálise, que afirma que a Esquizoanálise consiste em
introduzir o desejo na produção e a produção no desejo. Trata-se de aprender
a pensar um desejo essencialmente produtivo e uma produção, dita no sentido
amplo, que não pode ser senão desejante – à medida que funciona como o
processo primário inventado por Freud e considera as subjetivações
essencialmente envolvidas nesses processos produtivos, tanto quanto na
natureza e nas máquinas técnicas e semióticas.
Outra questão a ser abordada diz respeito à determinação em última
instância. Bom, Marx afirma que a vida social está estruturada como uma
espécie de edifício, em que há os alicerces e há as paredes superiores visíveis.
O que Marx insiste em afirmar é que a vida social está finalmente determinada
pela atividade econômica, isto é, por processos de produção de bens materiais
indispensáveis para a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra.
Dessa maneira, a chamada infraestrutura determina a superestrutura, apesar
de que Marx nunca negou que a superestrutura retroaja sobre a infraestrutura.
Assim, as resultantes desse processo complexo não são causadas, de forma
alguma, exclusivamente pelo econômico, não podendo ser entendidas dessa
maneira. E também não seriam modificáveis exclusivamente a partir do
econômico. Um de seus seguidores, Louis Althusser, utilizando outro modelo
de formalização da estrutura social – modelo esse tomado da matemática dos
conjuntos – representa a vida social como uma composição de três
subconjuntos que estão parcialmente intersecionados, de maneira que algumas
áreas desses subconjuntos têm autonomia relativa e outras são superpostas ou
imanentes entre si. Mas o conjunto total, o sistema, que Althusser chama "todo
complexo articulado, diversificado e sobredeterminado", funciona
interpenetrado, de maneira tal que haverá um determinante em última
instância, que em todos os modos de produção é o econômico, uma instância
dominante e uma instância decisória ou decisiva. O determinante em última
instância é o que define o papel dos outros e da sua participação causal na
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determinação dos efeitos econômico -sociais, mas não exclusivamente, e sim
mediatizado por aqueles. A instância chamada dominante é aquela
fundamental para a reprodução do modo de produção, para que o modo de
produção se reproduza "idêntico" a si mesmo. A instância decisória é a
fundamental no processo de transformação de um modo para sua passagem a
outro. Essa é a determinação complexa pela qual todas as instâncias
participam de todo e qualquer dos efeitos e resultados. Althusser a denominou
sobre determinação, um modelo da causalidade que tomou da segunda tópica
freudiana, em que ld, Ego e Superego funcionam dessa mesma maneira para
determinar qualquer efeito no psiquismo: atos, formações do inconsciente etc.
O Institucionalismo, em alguns de seus ramos, tem muito em comum com a
proposta althusseriana, à medida que adota essa idéia de sobredeterminação.
Outros setores do Institucionalismo têm sua própria teoria da causalidade
social. Por exemplo, no caso de Deleuze e Guattari, não é uma teoria da
sociedade formada por três subconjuntos que, por sua vez, formam o conjunto
total, mas uma sociedade reticular formada por uma grade aberta, uma malha
de funcionamentos interpenetrados que são simultaneamente psíquicos,
tecnológicos, econômicos, políticos, semióticos e naturais e estão ordenados
em três superfícies: de produção, de registro e de consumo. Existem outras
teorias da causalidade social próprias de outras tendências institucionalistas,
mas todas elas têm em comum a insistência em não separar as determinações
psíquicas inconscientes das econômicas, políticas, técnicas, naturais etc.
Quanto aos principais recursos teóricos do Institucionalismo, o primeiro a ser
abordado será o conceito de campo de análise. As diversas tendências do
Institucionalismo podem constituir o que se chama – em uma terminologia
discutível – um "recorte" da vida social que pode ser desde pequeno até
amplíssimo, desde um estabelecimento até, por exemplo, o que Deleuze e
Guattari chamam o "Capitalismo Planetário Integrado". Isso significa delimitar
um objeto ou um campo e aplicar-lhe o aparelho conceitual do Institucionalismo
para entendê-lo, para saber como funciona, como estão colocadas e
articuladas suas determinações, suas causas, como se geram seus efeitos etc.
Esse objeto pode estar constituído por materiais. muito heterogêneos – por
exemplo, as principais correntes do fluxo de capitais no mundo atual –, e isso
dará um estudo como aquele no qual participou recentemente Guattari, que se
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chama "Contratempo". Campos de grande porte poderão produzir um livro
como o que escreveu Lourau, que se chama "O Estado e o Inconsciente", uma
tentativa de analisar as diversas configurações que o Estado adquire nos
diferentes modos de produção no curso da história, nas diferentes civilizações e
a forma como o Estado se implanta nos sujeitos a nível inconsciente. Esses
campos de análise são terrivelmente amplos. Mas podem ocorrer campos de
análise infinitamente menores, como uma análise do significado da festa no
Brasil ou uma análise dos efeitos da comunicação de massa em Caruaru, ou o
funcionamento dos programas de estudo no vestibular, ou da múltipla escolha
para o processo de seleção. Isso ainda não implica necessariamente uma
intervenção concreta sobre esse campo assim delimitado; implica um processo
de compreensão, de inteligência dos determinantes desse campo. Por isso
denomina-se campo de análise.
Outra coisa é o campo de intervenção, que é o "recorte", o espaço
delimitado para planejar estratégias, logísticas, táticas, técnicas para operar
sobre este âmbito e transformá-lo realmente, concretamente. É claro que o
campo de intervenção é, em geral, infinitamente menor que o campo de
análise, porque neste momento é demasiado utópico pensar o planejamento de
uma intervenção a nível nacional continental ou planetário, O máximo que se
consegue delimitar são campos de análise organizacionais. E óbvio, também,
que em qualquer corrente de Institucionalismo, a constituição de um campo de
análise pode estar articulada com um campo de intervenção. Só que um campo
de análise é pensável sem intervenção, mas um campo de intervenção é
impensável sem um campo de análise. Pode-se compreender e não intervir,
mas não se pode intervir sem alguma forma de compreensão. Em geral quando
os dois campos se constituem, eles estão articulados entre si: à medida que se
compreende, se intervém; e à medida que se intervém, se compreende.
O ponto seguinte é a análise da oferta e da demanda, que também
temos de tratar sinteticamente, particularmente dentro do enfoque da análise
institucional ortodoxa, cujos autores mais notórios são Lourau, Lapassade e o
pessoal que os rodeia dentro de sua Sociedade Francesa de Análise
Institucional. Eles insistem em explicar que um passo importante para começar
a compreender institucionalmente a dinâmica de uma organização é decifrar,
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analisar, esmiuçar o pedido que esta organização faz de uma análise e de uma
intervenção. Para dizê-la provisoriamente: quais são os aspectos conscientes,
manifestos, deliberados, voluntários deste pedido, e quais são seus aspectos
inconscientes e/ou não-ditos. A isso chamam análise de demanda, que é um
dos primeiros passos para entender em que consiste a conflitiva, em que radica
a problemática desta organização solicitante. Mas acontece que, para fazê-lo, o
Institucionalismo enfatiza a necessidade de se ter presente a idéia de que a
demanda não é espontânea, a demanda não é o primeiro passo de um
processo: ela é produzida, de tal modo que existe um passo anterior à
demanda que é a oferta. A demanda não existe por si. Quando alguns
psicanalistas falam hoje em análise da demanda como a expressão do desejo,
eles não têm aparelho teórico para pensar que o processo não começa aí, que
essa demanda de análise foi produzida pela oferta prévia de análise, e está
marcada, modulada, determinada, desde o princípio, por esta oferta. De modo
que para compreender a demanda de análise institucional de uma organização
é necessário, antes, incluir a autoanálise, a compreensão de como a
organização analítica gerou esta demanda; ou que relação existe entre a
publicidade, a divulgação científica ou não-científica, a proposição direta ou
indireta dos serviços que a organização analítica faz e que não pode não ser
causante, geradora ou moduladora da demanda de serviços que lhe é
formulada.
Um institucionalista muito respeitável e, no meu modo de ver, injustamente
pouco conhecido, o paulista que se chama Guilhòn de Albuquerque, tem uma
fórmula que não explica todas as situações, mas que é muito ilustrativa, e que
gosto muito de usar com fins pedagógicos: ele diz que toda organização de
prestação de serviços transmite um recado de maneira mais ou menos
consciente ou inconsciente durante o processo de oferta de suas prestações,
que consiste aproximadamente em passar ao usuário uma mensagem que diz:
"Eu tenho o que te falta e, além disso, você não entende, não sabe em que
consiste." Essa mensagem subjaz, está "por trás" de toda oferta de prestação
de serviços e, provavelmente, também de bens materiais. Então, quando essa
oferta gera uma demanda, ela não pode estar modulada senão pela própria
oferta. Quem demanda, demanda alguma coisa que já lhe fizeram acreditar
que não tem e que o outro tem. Mas é tão complexa, tão sutil, tão técnica, que
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ele não sabe o que é. Portanto, para poder dar o primeiro passo em toda
análise de intervenção institucional – que é analisar a demanda-, esta análise
deve ser articulado com a forma em que foi produzida, ou seja, com a oferta.
Isso exige por parte do coletivo analisante, o coletivo prestador de serviço, um
severo processo de autoanálise de como produzir a oferta de seus trabalhos.
Entre a organização analisante, interveniente, e a organização analisada,
intervinda, vai-se produzir uma interseção que gera uma nova organização, que
é o verdadeiro objeto de análise. Não existe aqui, então, uma posição clássica
de objetividade: não somos os experts que sabem e a organização-cliente não
é um objeto passivo e ignorante. Mas juntos é que vamos tentar entender como
é esta realidade nova que se deu na interseção de nosso encontro.
Outro termo fundamental dentro do Institucionalismo é analisador. A
Psicanálise já classicamente, concebeu o conceito de derivados do
inconsciente, formações do inconsciente, formações transicionais ou
transacionais – todos esses termos são sinônimos e designam aqueles
fenômenos, sejam eles pontuais ou mais amplos, como sonhos, atos falhos,
lapsus linguae, chistes, sintomas, delírios, que são elementos privilegiados
dentro do material que um paciente apresenta para ser analisado. Esses
produtos não são resultado linear de uma instância ou de um setor da
personalidade, não são efeitos exclusivamente conscientes, nem
exclusivamente pré-conscientes, nem exclusivamente inconscientes. Não são
dados claramente efetuados pelo superego, nem pelo ego ou o id. São
fenômenos resultantes de uma combinação, de uma mistura, da articulação de
uma transição ou de uma transação entre todas essas instâncias. Por isso é
que se chamam, segundo uma das denominações, efeitos transacionais ou
formações transacionais. Só que em Psicanálise estes efeitos têm por
característica, pelo menos fenomênica ou técnica, exprimir exclusivamente a
problemática de um sujeito, manifestá-la, denunciá-la. O analisador, em análise
institucional, é um efeito ou fenômeno formalmente parecido com esses efeitos
privilegiados do material da Psicanálise. Mas as diferenças são as seguintes:
Primeira: na materialidade fenomênica, na aparência desses
fenômenos, não se privilegiam, absolutamente, os efeitos verbais. Qualquer
materialidade pode ser suporte de um analisador, ou seja, um analisador não é
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necessariamente um discurso, mas pode ser um monumento, a forma como
está elaborada a planta arquitetônica da organização, pode ser uma
característica dos modos de relação que não está formalizada nem anunciada
em parte alguma, ou seja, pode ser um costume e não uma norma, nem uma
lei; pode ser um arquivo, isto é, a maneira como está organizada a memória de
uma organização; pode ser uma distribuição do tempo ou do espaço na
organização. E é claro que podem ser também formas escritas ou faladas do
discurso organizacional. Por exemplo, os estatutos, os regulamentos, a carta
de princípios, o organograma, o fluxograma etc. E podem ser os relatos ou as
mensagens verbalmente proferidas pelos integrantes nas entrevistas, nos
questionários ou em qualquer forma de comunicação intersubjetiva. Os mitos,
os rituais, o uso do dinheiro, do lazer, da sexualidade, do domínio e o cuidado
de si, etc. Então, a materialidade expressiva de um analisador é totalmente
heterogênea. Não é que em Psicanálise não o seja, porque sabemos que em
Psicanálise os comportamentos, as atitudes corporais, a couraça
caracterológica também são considerados formações do inconsciente; só que a
Psicanálise tem uma persistente predisposição a privilegiar os efeitos verbais
como sendo os veículos predominantes das formações do inconsciente, e a.
subordinar os outros à compreensão verbal. Isso é claro. Um analisador não é
assim. E essa é a primeira diferença.
Segunda: um analisador não é apenas um fenômeno cuja função específica é
exprimir, manifestar, declarar, evidenciar, denunciar. Ele mesmo contém os
elementos para se auto entender, ou seja, para começar o processo de seu
próprio esclarecimento. Isto não é fácil de ser explicado. Uma formação do
inconsciente é um produto a ser analisado (com uma maior ou menor
intervenção do analista). Um analisador é um produto que pode se
autoanalisar. Existem grandes analisa dores e pequenos analisadores. Um
grande analisador é a Revolução Francesa, por exemplo, revolução burguesa,
como todo mundo sabe, produto de determinados encontros e fluxos de forças
da decadência da monarquia e da ascensão da burguesia média, de certo grau
de migração do trabalhador do campo para a cidade, acumulação de capital
mercantil e usurário etc. Mas esse analisador também produziu a inteligência
de seu próprio processo com os pensadores da Revolução Francesa e ele foi
capaz de autoconduzir-se dentro de certos limites à plenitude da realização de
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seu destino histórico, que foi marcar o fim do feudalismo e o início ou as
preliminares do capitalismo incipiente e do socialismo real. Mas podem haver
pequenos analisadores, e esses podem ser um conflito dentro da organização,
um determinado acidente numa usina atômica (geograficamente pequeno, pelo
menos) etc. Só que esse analisador, colocado em condições propícias, tem a
possibilidade de não apenas manifestar-se, mas também de se compreender;
ele não precisa ser analisado de fora, ele predsa que se lhe aportem condições
para auto-analisar-se, sendo assumido por seus protagonistas. E dessa
maneira, não apenas é capaz de enunciar, como também de resolver a
situação da qual ele é emergente. Nesse sentido, existem os chamados
analisadores naturais – que é uma expressão inadequada, porque analisadores
naturais são os terremotos, e, realmente, a análise institucional nunca
conseguiu compreender, pelo menos nos seus aspectos geológicos, este tipo
de fenômeno, não está preparada para isso. "Natural" quer dizer espontâneo,
que também é uma má expressão, porque espontâneos todos são. Então, a
definição correta é dizer que são analisadores históricos, ou seja, que a própria
vida histórico-social-natural os produz por conta própria como resultado de
suas determinações. E existem analisadores artificiais ou construídos, que são
dispositivos que os analistas institucionais inventam, introduzem nas
organizações para propiciar o processo de explicitação dos conflitos e de
resolução dos mesmos. É importante enfatizar que os analistas institucionais
na prática técnica, ao nível de produção de analisa dores construídos, se valem
de todo e qualquer recurso, seja de tipo artístico, cenográfico, dramático,
procedimentos de tipo ativista, político, montagens de tipo propriamente
científico, experimental, lógico, sociológico, antropológico e manobras do tipo"
convivência prolongada", em que o analisador institucional passa a fazer parte
orgânica do conjunto que vai estudar, produzindo assim um artefato próximo à
vida cotidiana.
O passo seguinte será falar da análise da implicação.
Felizmente já antecipamos um pouco sobre ela através da análise da oferta. A
implicação se define como o processo que acontece na organização de
analistas institucionais, na equipe de análise institucional, a raiz de seu contato,
de sua interseção com a organização analisada, intervinda. Também é um
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conceito que tem certa dívida com a chamada contra transferência da
Psicanálise. Só que a contra transferência em Psicanálise é a reação –
consciente ou inconsciente – que o material do paciente produz no analista; e
na análise institucional a implicação não é apenas um processo nem psíquico
nem inconsciente, mas um processo de materialidade múltipla, complexa e
sobredeterminada, um processo econômico, político, psíquico heterogêneo por
natureza, que deve ser analisado em todas as dimensões. E não é apenas
reativo, ou seja, não é a resposta da equipe interventora e analisadora ao
contato com seu objeto, pois é prévia a este contato; não começa no usuário: é
recíproco, é simultâneo e é parte indissolúvel do processo de análise da
organização, ou seja, é o contrário de uma análise "objetiva". É como está claro
nas ciências físicas, a análise da interação, da interpenetração destas duas
organizações, uma análise variável da relação entre o sujeito e o "objeto".
Poder-se-ia dizer que não deixa de ser parecida com uma dás definições que
Freud dá de contratransferência como transferência recíproca. Em
continuação, veremos rapidamente alguns termos, sendo que, de alguma
forma, os retomaremos na exposição correspondente aos itens que compõem
o roteiro de uma intervenção institucional típica, que denominamos standard.
Insistiremos uma vez mais em que estas definições, cuja finalidade é
basicamente transmitir noções introdutórias para os principiantes interessados
no movimento, seguramente não serão nem exaustivas nem precisas. As
mesmas estão armadas com sentidos diversos e heterogêneos tomados de
diferentes obras e autores, artificialmente extraídas dos contextos teóricos,
mais ou menos sistemáticos, em articulação com os quais adquirem seus
significados prevalecentes. Sempre será possível voltar sobre estas noções
nos textos da bibliografia que lhes são mais específicos para multiplicar e
precisar suas acepções.
No Institucionalismo denomina-se equipamentos a uma série de
organizações, estabelecimentos, aparatos, maquinarias e tecnologias muito
diversificados e inclusivos, de grande, médio ou pequeno porte, cuja finalidade
fundamental (mas não única) está a serviço da repressão, do registro ou do
controle social. Uma das maneiras possíveis de classificá-los é referindo-se ao
tipo e grau de violência que empregam para cumprir sua função, enfatizando,
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além do mais, que sua condição é mais propriamente determinada por essa
função que por sua materialidade, estrutura, forma etc. Alguns exemplos
conspícuos de equipamentos são os que certa tradição marxista chamava de
"aparatos". Estes cumprem funções eliminatórias, segregacionistas ou
punitivas (como por exemplo, as Forças Armadas, a Polícia, a censura cultural
ou a Psiquiatria supressiva). Outros apontam para a doutrinação ou a
informação tendenciosa (certa orientação da Religião, da Educação, da
Comunicação de massas ou a Família).
Mas um equipamento pode ser também uma determinada organização
beneficente, ou certa modalidade de uso de um meio de transporte ou de um
eletrodoméstico, assim também como técnicas de cuidado e gerenciamento da
personalidade por parte das forças repressivas. O certo é que os equipamentos
são predominantemente funcionais ao poder (seja do Estado ou das entidades
civis e privadas hegemônicas) e a reprodução da ordem constituída entendida
como a soma do instituído-organizado.
De um dispositivo pode, de alguma maneira, dizer-se que é o contrário
de um equipamento. Trata-se de uma montagem (termo que frequentemente
se utiliza em cinematografia, teatro ou nas artes plásticas) de elementos
extraordinariamente heterogêneos que podem incluir "pedaços" sociais,
naturais, tecnológicos e até subjetivos. Um dispositivo caracteriza-se pelo seu
funcionamento, sempre simultâneo a sua formação e sempre a serviço da
produção, do desejo, da vida, do novo. Um dispositivo forma-se da mesma
maneira e ao mesmo tempo em que funciona, gerando acontecimentos
insólitos, revolucionários e transformadores. Embora seu tamanho e duração
sejam tão variáveis quanto as materialidades que o compõem, têm a
peculiaridade de nascer, operar e extinguir-se enquanto seu objetivo de
metamorfose e subversão histórica se realizam. Um dispositivo em geral não
respeita, para sua montagem e funcionamento, os territórios estabelecidos e os
meios consagrados; pelo contrário, os faz explodirem e os atravessa,
conectando singularidades cuja relação era insuspeitável e imprevisível. Gera,
assim, o que se denomina linhas de fuga do desejo, da produção e da
liberdade, acontecimentos inéditos e invenções nunca antes conhecidas.
Nesse sentido é óbvio que os dispositivos, também chamados agenciamentos,
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têm a ver com a transversalidade (conceito que já antecipamos e que
definiremos mais adiante) e, num sentido restrito, com o instituinte-organizante.
Um grupo político sujeito (quer dizer, que se dá seus próprios meios e
leis inseparáveis de seus fins e que não pretende persistir mais além de seu
objetivo revolucionário), uma obra artística, um descobrimento científico, um
pensador original e libertário, um inovador dos costumes sexuais ou das
convicções éticas podem constituir-se num dispositivo, assim como podem sê-
lo certa arrumação de máquinas técnicas (como as rádios livres) ou de defesa
da natureza (como os movimentos ecológicos). Por último, digamos que um
dispositivo não é a obra de indivíduos ou sujeitos, ele os inclui, os constitui e os
"maquina" para concretizar suas realizações.
Em diferentes momentos da constituição de um campo de análise e/ou
intervenção, os institucionalistas efetuam vários tipos de diagnósticos – sempre
provisórios – da estrutura, dinâmica, processos, contradições principais e
secundárias, opositivas e antagônicas, conflitos, defesas, mecanismos,
magnitudes de produção, reprodução e antiprodução, analisa dores, potências,
poderes, territórios, linhas de fuga, equipamentos, dispositivos da área ou
organização intervinda. O diagnóstico é importante para justamente instituir,
organizar, planejar, antecipar, decidir os passos que comentaremos em
seguida, tais como contrato, estratégia, logística, táticas, técnicas: Isso sem
esquecer que boa parte do percurso é imprevisível.
Os institucionalistas, para efetuar análises – seguidas ou não de
intervenções, precisam fazer acordos, pactos, convênios (ou como se queira
chamá-los) com as organizações, estabelecimentos ou, simplesmente, com os
coletivos de usuários "clientes". A estes acordos costuma-se denominar
contrato. Eles versam sobre os compromissos mútuos em que se explicitam os
respectivos deveres e direitos das partes interessadas. Em muitos aspectos o
contrato institucionalista é semelhante a qualquer outro de prestação de
serviços. Trata principalmente de tempo (duração total, frequência dos
trabalhos), honorários ou outro tipo de retribuição, delimitação de objetivos e
autorização de acesso aos materiais de investigação, promessa de sigilo
quanto à informação obtida durante a investigação etc. Como veremos, é
importante estar atento ao fato de que nem sempre o contrato representa um
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acordo com a totalidade do coletivo intervindo, mas com certos segmentos do
mesmo. Por outro lado, tem especial significação qual é a relação jurídica
(emprego, serviço profissional independente, solidariedade militante etc.) que
fundamenta o contrato. Mas o essencial a recordar é que o contrato no
Institucionalismo não é uma operação comercial externa ao processo que a
intervenção como serviço deflagra. Os diversos aspectos do contrato: tempo,
dinheiro, contratantes, objetivos, expectativas, são analisadores, emergentes
da problemática a ser pesquisada. Seu tratamento já é parte ativa da análise e
da intervenção.
Designa-se por logística o balanço que os institucionalistas fazem de
todas as forças, habilidades, elementos, recursos etc. de que se dispõe ao
começar uma intervenção; quer dizer, com que se pode contar a favor e contra
para poder levar o trabalho adiante com um mínimo de possibilidades de
realização.
A estratégia sistematiza os grandes objetivos a serem conseguidos (cuja
máxima expressão é a autoanálise e autogestão do coletivo intervindo), assim
como a progressão das manobras, dos espaços e territórios que se colocarão,
a previsão de vicissitudes, opções, alternativas, avanços, retrocessos etc.
As técnicas são pequenos segmentos nos quais se decompõe a
estratégia. Para dar um exemplo bélico, totalmente metafórico: a estratégia
decide se será uma guerra de ocupação, de fronteiras, punitiva ou de
extermínio parcial; se essa guerra se dará por terra, mar ou ar, quais serão os
aliados, simpatizantes, neutros e inimigos etc. As táticas referem-se a batalhas
circunscritas, à área onde se desenvolvem, à participação da infantaria,
cavalaria, o horário, os movimentos de tropas etc. As técnicas, prosseguindo
com a metáfora, aludem aos armamentos propriamente ditos: fuzis, morteiros,
granadas etc.
No Institucionalismo é fácil fazer a transposição do que seja a logística, a
estratégia e as técnicas do campo bélico ao campo da intervenção, sem tomá-
las ao pé da letra. É interessante enfatizar drasticamente que no
Institucionalismo, uma vez que se adquira uma base de entendimento do
panorama de uma organização e se concretizem os primeiros dispositivos para
um contrato e diagnóstico provisórios, enquanto já se têm, baseados nisso,
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esboços de uma logística, estratégia geral e primeiras táticas, a eleição de
técnicas é consideravelmente livre. Quer dizer; será ditada pela inspiração e o
treinamento, assim como pelas predisposições pessoais da equipe operadora,
objetivo geral e imediato perseguido e momento e peculiaridades do coletivo
em pauta.
Procedimentos interpretativos, informativos, esclarecedores, de
sensibilização, de expressão, de discussão, agenciamentos artísticos,
desportivos, convivências, lúdicos, praticados em grupos e em assembleias
podem ser adotados segundo as circunstâncias.
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PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO IV
1) Qual é o sentido dos termos sujeito, desejo e sobredeterminação em suas
teorias de origem e no lnstitucionalismo?
2) Que diferença existe entre os conceitos de campo de análise e campo de
intervenção?
3) O que significa dizer que a análise da oferta deve preceder a da demanda?
4) O que é análise da implicação?
5) O que são: analisador, equipamento, dispositivo, logística, estratégia, táticas
e técnicas?
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Capítulo V
AS TENDÊNCIAS MAIS CONHECIDAS DO INSTITUCIONALISMO
Tentarei resumir três modalidades de Institucionalismo que não são as
únicas, nem necessariamente as mais importantes, mas são as que mais
notoriedade têm atingido. São também as mais difundidas, particularmente aqui
no Brasil. Terei de ser muito esquemático. Tentarei uma espécie discutível de
classificação, de graduação entre essas três tendências.
Em termos, digamos, políticos, eu diria que da primeira enunciada – a
Sociopsicanálise de Gérard Mendel – à útima – a Esquizoanálise de Deleuze e
Guattari –, existe uma graduação à medida que Mendel articula uma
concepção mais ou menos tradicional da Psicanálise com uma igualmente
ortodoxa do Materialismo Histórico. Produz, assim, uma forma de abordagem
das organizações e das instituições que, poderíamos dizer, é politicamente
moderada, se é que tal termo exprime alguma coisa. Já a Análise Institucional
de Lourau e Lapassade e a Esquizoanálise de Deleuze e Guattari, eu diria, são
propostas políticas mais subversivas, mais enérgicas, mais ativas, com certos
matizes diferenciais entre elas, que podemos tratar de caracterizar nesta
exposição. Então, contar com certo conhecimento de Psicanálise e do
Materialismo Histórico (entre outros saberes) é necessário para podermos
explicar isto de forma breve, introduzindo-os nesta teoria, metodologia e
técnica sociopsicanalíticas.
A Psicanálise é uma disciplina que foi exigida pela prática clínica. Ela se
ocupa da psicopatologia com uma expectativa de cura, mas, no seu percurso e
desenvolvimento, Freud criou também uma teoria da estrutura e do
funcionamento do psiquismo "normal". Nesta teoria distinguem-se, na
constituição do psiquismo, duas séries assim chamadas: a série disposicional e
a série desencadeante. Essas séries denominam-se complementares. Tudo
que acontece na vida psíquica, tudo que se pode considerar fenômenos ou
efeitos da estrutura do psiquismo é determinado pela articulação entre estas
duas séries. A série disposicional é composta pelos elementos
heredogenéticos que um sujeito psíquico tem e que lhe são legados por seus
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progenitores, ou seja, pelos sujeitos psíquicos que o geraram. Acrescente-se a
isso as experiências da infância precoce. Então, o hereditário mais as
experiências tidas durante a gestação, mais as correspondentes ao parto e
primeira infância, tudo isso fica registrado e organiza o psiquismo segundo uma
das séries: a série disposicional. Mas com essa série disposicional e a partir de
quando começa a chamada latência, isto é, com o fim do complexo de Édipo
(classicamente entre os cinco e seis anos de idade), o sujeito se incorpora
plenamente à vida social, adquire contato com os grupos chamados
secundários, grupos de jogos, de estudo, de educação, grupos sociáveis no
sentido amplo. Seu Superego está instalado e com ele o sistema de valores
consciente e inconsciente que vai classificar seu mundo de significações. As
marcas que têm deixado nele as experiências libidinais e dolorosas prévias
adquirem retroativamente sentidos morais. Suas representações são
secundariamente recalcadas e estão prestes a retornar do recalcado. Em
seguida, continuam sucessivas incursões nas atividades e grupos sociais que
fazem com que o sujeito atravesse uma situação diferente atrás da outra, e que
tenha de enfrentar essas circunstâncias com a bagagem disposicional que traz.
Essas eventualidades vão exigir de seu aparelho psíquico uma série de
movimentos e de adaptações, de criação e de transformação. Algumas dessas
situações são altamente tensionantes, intensamente pressionantes para o
psiquismo. Quando a série dessas experiências, constituída pelas situações da
vida, atua sobre a série disposicional que o sujeito traz, pode resultar numa
falha do sujeito no processo de simbolização e reação produtiva diante dessas
exigências situacionais. E isso resultará na doença psíquica, em sintomas.
Então o adoecer psíquico – e também a "normalidade" – são produtos desta
articulação entre a série disposicional e a série desencadeante; pode efetuar-
se em comportamentos ativamente adaptativos, sublimatórios, ou pode ser
causante de processos patológicos. Outra forma de referir-se à série
disposicional é qualificá-la de acordo com o grau em que o sujeito conseguiu,
durante sua primeira infância, resolver, elaborar – ou não – o chamado
Complexo de Édipo, que constitui o núcleo central de sua série disposicional.
Se não resolver, então esse desenvolvimento vai ficar afetado por "pontos de
fixação". Então, quando a série desencadeante atua sobre a disposicional, gera
no psiquismo um processo de regressão a esses pontos de fixação. O
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psiquismo vai funcionar de uma maneira primária, arcaica, e isto é que vai
resultar no retorno do recalcado como sintoma. Logicamente, cada sujeito é
singular, único, irrepetível, e as configurações da série desencadeante – que
podem gerar patologia, atuando sobre a série disposicional – são totalmente
variáveis. É por isso que uma situação que desencadeia uma patologia para
um sujeito (porque atua sobre determinada série disposicional), não é
patologizante para outro sujeito (que tem uma série disposicional diferente). No
entanto, a Psicanálise costuma dizer que existe uma maneira de sistematizar,
de universalizar quais são os traços das situações desencadeantes capazes de
produzir patologia em geral. Essas são experiências de frustração,
experiências de privação, e experiências daquilo que em Psicanálise se chama
castração. Apesar de não podermos desenvolver agora, é importante assinalar
que entre frustração, privação e castração existem diferenças. Privação refere-
se à falta de subsídios para necessidades biológicas, concretas; castração
refere-se a um tipo de falta de caráter libidinal (a castração é castração do
desejo), ao passo que a frustração é um desengano de amor. Ou seja, são
exigências diferentes, faltas diferentes cuja elaboração ou não gera efeitos
diferentes. Elas, em geral, atuam em conjunto. De um ponto de vista mais
amplo, sociopsicanaliticamente falando, poderíamos resumir esses três tipos
de carências, esses três tipos de falta, em uma experiência de impotência, em
uma experiência de incapacidade, porque se trata de um sujeito relativamente
indefeso, em estado de menos valia, exigido por situações que o tornam
carente. A carência, por sua vez, é produto da regressão ao estado de
dependência e de impotência iniciais do sujeito. Então, o que lhe fazem sentir é
sua impotência para resolver essas situações. Isso é o que desencadeia o
processo regressivo a um ponto de fixação, atuando sobre a série
disposicional, e assim gerando a patologia, os sintomas e os quadros das
doenças. O sujeito se refugia em soluções imaginárias e fantasmáticas que
eram as únicas de que dispunha no seu estado de criança indefesa.
Até agora ficamos restritos ao campo estritamente psicanalítico. Agora,
acontece que as formulações da Psicanálise são elaboradas para os sujeitos
"individuais", para os sujeitos enquanto "pessoas" isoladas. Apesar da
Psicanálise nunca ter pretendido negar que os sujeitos psíquicos não vivem
74
isolados, porque se relacionam sempre com um'outro – e é do outro que vem a
frustração, a castração e a privação-, na verdade, nem o sujeito nem o outro
são pensados como coletivo real, não são concebidos como grandes conjuntos
humanos, cuja existência depende de uma obrigada e necessária associação.
Por isso é que Mendel tenta acrescentar ou articular as postulações
psicanalíticas com as postulações clássicas do Materialismo Histórico. Uma
das primeiras afirmações do Materialismo Histórico é que para produzir e
reproduzir, ou seja, manter a vida humana sobre o planeta, os homens tiveram
que associar- se, que estabelecer uma aliança entre si para,
fundamentalmente, dominar a natureza e colocá-la a seu serviço. Isso porque a
natureza não é espontaneamente benévola com o homem. Ela o agride e lhe
nega muitos dos elementos de que ele precisa para sobreviver. Então o
homem desenvolveu, nessa associação coletiva, um processo de trabalho que
é um procedimento de transformação, de domínio da natureza para que ela se
lhe tornasse propícia. Todos sabemos que o homem, como animal biológico, é
particularmente fraco: ele não tem pelo, não tem couro, não tem garras nem
dentes fortes; é lento, frágil. Inclusive, no momento do nascimento, o homem é
dos animais mais particularmente indefesos e incapazes, tanto que seu
processo de gestação tem de completar-se depois de seu nascimento, através
de uma longa criação totalmente dependente, que leva pelo menos dois ou três
anos. Então o homem compensou, e em parte piorou, essa sua fraca
defensividade, com seu processo histórico de associação coletiva para
trabalhar em conjunto com a finalidade de dominar a natureza. Digo que em
parte compensou porque isso foi o que o transformou naquilo que
pitorescamente se chama "o Rei da Criação". Também em parte piorou porque
na dimensão em que o homem se transforma, por sua associação, em uma
espécie poderosíssima, cada um de seus membros nasce cada vez
biologicamente mais fraco. Na medida em que se desenvolvem as máquinas e
os elementos técnicos, nossa dotação biológica está cada vez pior. Talvez
acabaremos tendo uma" grande cabeça" e nada mais. Neste processo
associativo, então, o homem tem de lutar não apenas contra os imensos
poderes da natureza (que ele tem chegado a controlar em alta proporção, mas
que está longe de controlar em sua plenitude), mas tem de aprimorar o
desenvolvimento da palavra, da linguagem e outras formas de comunicação
75
inter -humana, o desenvolvimento da inteligência, do processo de pensamento
do cérebro humano, o desenvolvimento das máquinas – que em princípio
podem ser pensadas como enormes extensões ou ampliações dos membros e
dos sentidos humanos. O gênero humano adquiriu um grande poder, mas ele
não controla totalmente as forças naturais. Elas o ameaçam sempre. Não
apenas as forças naturais externas a seu corpo, como também aquelas
internas a seu corpo, que forma parte da natureza. A natureza é brava, e o
corpo é frágil. Mas o homem tem outro inimigo perigoso, que são os problemas
gerados pela própria organização que ele tem de se dar para se converter
numa entidade coletiva. Então, segundo a versão tradicional, o homem, para
poder associar-se e formar essas fortes civilizações, teve de aceitar muitas
restrições, teve de submeter-se e privar-se de muitas coisas para atingir esse
poder coletivo. Ou seja, o homem teve de dar-se leis, instituições,
organizações, aparelhos, tais como descrevemos, para preservar esta união,
que é difícil, exige muito sacrifício de seus integrantes. Mas o pior de tudo é
que nunca funciona bem, geralmente é imperfeita. E isso traz como
consequência o fato de que a associação entre os homens não é equitativa,
fraterna nem justa, e que a distribuição dos sacrifícios, dos esforços e dos
benefícios é desigual entre eles. Isso dá lugar a fenômenos que podemos
detectar como universais e onipresentes na história da humanidade, que são a
exploração de um setor da humanidade por outro, a dominação de um setor da
humanidade pelo outro, a mistificação e a manutenção da ignorância de um
setor da humanidade por outro. Isso faz com que as ameaças da natureza e do
corpo se somem às ameaças da organização social, da injustiça ou do fracasso
da ordem civilizatória. Cada organização histórica, cada civilização, cada modo
de produção da vida humana sobre a terra tem suas modalidades de
dominação, de exploração e de mistificação. Mas o modo de produção
capitalista é o modo de produção que atingiu o maior grau de extensão e de
universalidade sobre o planeta. É também o modo de produção em que esta
associação humana tem-se tornado mais poderosa e mais capaz de dominar a
natureza, produzir riqueza e elevar o padrão de vida dos seres humanos. O
muito conhecido filósofo Marcuse diz que chegamos à era da abundância,
porque temos adquirido um poder produtivo inédito na história da humanidade.
Mas nem por isso, sabemos muito bem, temos conseguido superar os
76
fenômenos da exploração, dominação e mistificação que no capitalismo
adquirem características muito próprias. Então, o que acontece? Os homens
associados, cuja principal potência é a capacidade de trabalho coletivo,
encontram-se diante do fato de que o fruto de seu trabalho não lhes retorna na
medida em que eles deveriam ser seus legítimos proprietários. O poder sobre a
natureza, o poder sobre o controle dos fenômenos da vida, também é injusta e
desigualmente repartido. Com o saber acontece a mesma coisa. A imensa
maioria dos; homens que trabalham reunidos vivem uma situação de
impotência, e não é apenas a fragilidade perante a natureza, frente à condição
mortal e frágil de seu próprio corpo, mas a incapacidade devido à desigual
distribuição da riqueza, do poder, do prestígio e do conhecimento. Então, de
uma forma ou de outra, poderíamos dizer que se tomamos a formulação
psicanalítica de uma impotência fundamental, que se converte no elemento
central da série desencadeante, e a articulamos com o Materialismo Histórico,
podemos dizer que, no sentido coletivo, a experiência universal de impotência,
que gera os processos patológicos, é produto dessa desigual distribuição da
riqueza, do resultado do trabalho, do poder e do prestígio, que faz com que
quem gera esses valores, ou seja, a imensa maioria da humanidade que
trabalha, não desfrute dos resultados deste esforço. Então, o que Mendel vai
afirmar é que, se isso é verdade (e é difícil admitir que não o seja), o lugar onde
deve ser estudada a experiência essencial da impotência e o
desencadeamento dos processos patológicos é o "lugar natural" em que os
homens se associam para exercer sua potência, ou seja, nos âmbitos de
trabalho. Para Mendel, as vicissitudes individuais dessa experiência de
impotência não serão nunca compreendidas se não forem analisadas num
sentido coletivo e no lugar pertinente onde elas acontecem que é no lugar de
produção. O que Mendel diz é que isso deve ser abordado nas organizações
de trabalho, entendendo o trabalho num sentido muito amplo, não apenas
trabalho industrial, mas também trabalho escolar, médico, comercial, ou seja,
não apenas produção de bens de consumo, mas também produção de
serviços; e assim por diante. Mendel diz que quando se abordam os coletivos
que formam parte dessas organizações, é fácil ver que esses conjuntos
vivenciam, de mil maneiras diferentes, essa experiência de impotência devido
às condições do trabalho alienado no capitalismo. E essa experiência de
77
impotência gera neles, incidindo sobre a série disposicional de cada um deles,
um processo regressivo. Só que esta regressão não deve ser pensada como
sendo da ordem individual, mas da ordem coletiva. Por isso, a regressão que
se produz é uma regressão de um funcionamento psíquico que Mendel chama
psicossocial ou psico-institucional a um outro, chamado funcionamento psico-
familiar. Isso consiste num processamento psíquico em que o imaginário e o
inconsciente já não estão em relação de retificação com o real, ou seja, recai-
se num funcionamento em que os sujeitos vivem uma vida fantasmática – e
não uma vida simbólica, adequada às circunstâncias concretas que os
rodeiam, com um conhecimento simbolizado do que está acontecendo na
realidade. Esta experiência de impotência gera uma regressão do psico-
institucional ao psico-familiar, no sentido em que os sujeitos vão definir esse
campo real em que estão como se fosse uma situação familiar arcaica pela
qual já passaram, quando se estava construindo sua série disposicional. Ou
seja, eles vão viver a situação de trabalho, a situação organizacional como se
essa fosse uma situação familiar arcaica. E as figuras determinantes reais
dessa situação atual vão transformar-se para eles nas figuras imaginárias de
sua situação familiar. Em consequência, reagirão de uma maneira irreal e
fantástica, como acontecia na sua infância, em que, objetivamente, eles eram
pequenos, sós e impotentes, e não tinham outra forma de solucionar essa
situação senão refugiando-se num mundo de fantasia. Devido a essa
regressão que mencionamos, o coletivo institucional como um todo faz uma
regressão arcaica, familiar, e também se refugia no mundo da fantasia. Tenta
solucionar seus problemas de impotência mediante saídas mágicas,
imaginárias, como sintomas, atuações, inibições, delírios, somatizações, enfim,
como tudo quanto constitui a patologia biopsicossocial. Então, se isso está
mais ou menos entendido, a proposta de Mendel é a de deflagrar dentro dessa
classe institucional um processo de autoanálise, feito em colaboração com uma
equipe interveniente, que permita aos integrantes deste coletivo fazer a crítica
e obter a compreensão da regressão que os afeta, chegando à ressignificação
simbólica de sua regressão imaginária, para poder ter de novo um acesso ao
real atual, que estão negando, desconhecendo. Dessa maneira, recuperarão
uma definição correta das circunstâncias que lhes permitirão assumir seu
verdadeiro poder como classe institucional, porque, afinal de contas, eles são
78
os produtores da riqueza, eles são os geradores do poder e eles são os que
merecem prestígio.
Este processo opera teoricamente, como já dissemos, com pontos de
vista e postulações perfeitamente clássicas da Psicanálise e do Materialismo
Histórico. A metodologia de intervenção conserva muitas das características da
intervenção psicanalítica, sobretudo o recurso interpretativo. É preciso apenas
sublinhar que o conceito de "cura" não é individual, mas coletivo, e não passa
exclusivamente pela tomada de consciência e pela supressão dos sintomas,
mas exige um movimento coletivo concreto de recuperação da margem de
poder possível, que se tem perdido devido à regressão do âmbito psico-
institucional ao psicofamiliar.
Agora resumiremos a posição de Lourau, Lapassade e seus
companheiros – que são, senão os criadores exclusivos, pelo menos os que
desenvolveram esta proposta que se chama Análise Institucional. Tentando
outra vez uma síntese, que por tratar de ser clara pode resultar
empobrecedora, digamos o seguinte:
Para a Análise Institucional, uma sociedade está ordenada por um
conjunto aberto – quer dizer, não totalizável – de instituições. Uma instituição é
um sistema lógico de definições de uma realidade social e de comportamentos
humanos aos quais classifica e divide, atribuindo-lhes valores e decisões,
algumas prescritas (indicadas), outras proscritas (proibidas), outras apenas
permitidas e algumas, ainda, indiferentes. Essas lógicas podem estar
formalizadas em leis, em normas escritas ou discursivamente transmitidas, ou
podem ainda operar como costumes, quer dizer, como hábitos não-
explicitados. As citadas lóÓgicas se concretizam ou se realizam socialmente
em formas materiais ou "corporificadas" que, segundo sua amplitude, podem
ser: organizações, estabelecimentos, agentes, usuários e práticas. Cada
instituição é universal, ou seja, indispensável para toda e qualquer sociedadet
mas para realizar-se em suas formas concretas passa por um momento de
particularidade e outro de singularidade única e irrepetível.
Se bem que cada momento da instituição seja positivo (digamos: é como
ela sabe ser em si mesma), também tem uma relação.de negatividade consigo
mesmo, com referência aos outros e em relação ao sistema global que as
79
instituições integram e que, ainda que seja de maneira aberta, as engloba.
Essa característica faz com que quando se analisa uma instituição, como por
exemplo, uma norma universal (digamos as relações de parentesco), uma
modalidade particular do matrimônio poligâmico, ou um caso singular do
casamento de um casal em uma colônia de mórmons norte-americanos, a
partir da organização positiva e visível em que essas relações se concretizam,
tende-se a atribuir-lhe funções inteiramente claras, eficientes e em geral
consideradas necessárias, indispensáveis, úteis etc. Assim consideradas,
essas entidades, tanto para o saber espontâneo de seus agentes sociais
quanto para os experts que as descrevem, ocultam funcionamentos
divergentes, contraditórios e antagônicos que só se evidenciam quando se
decifra ou se entende as maneiras em que, como dizíamos, cada uma é
negada pela outra ou pelo sistema integral. Em palavras diferentes, é preciso
considerar como cada uma destas instâncias está ausente no seio das demais,
e essa ausência é registrada como um não-saber, que é parte do saber
espontâneo ou técnico que se tem de cada uma delas.
A Análise Institucional não é, então, um super-saber ou um meta-saber
absoluto que poderia dar conta de todos estes desconhecimentos, positivando
de uma vez por todas o tecido social. Pelo contrário: trata-se de uma
investigação permanente, sempre lacunar e circunscrita de como o não-saber e
a negatividade operam em cada conjuntura.
Por exemplo, no caso das organizações do trabalho, a Análise
Institucional parte da ideia de que, devido ao processo que se chama "divisão
técnica e social do trabalho", cada coletivo de uma organização está alienado
no não-saber, no não conhecer quais são as condições reais em que está
trabalhando. É vítima, digamos assim, de um desconhecimento que, em parte,
é um desconhecimento devido à desinformação e à estrutura e funções
mesmas de instituições e organizações; é a ausência de um conhecimento que
nunca foi adquirido. Mas, em parte, é vítima de um processo de doutrinamento
ativo por parte das classes dominantes que lhe transmitem uma definição do
mundo, uma noção do processo de trabalho, dos objetivos da vida, dos valores,
do sentido da existência e uma definição da função das organizações que lhe é
profundamente desfavorável e que o faz compactuar com o poder, com as
80
classes dominantes. É o que o Marxismo chamava, classicamente, de
Ideologia. Sobretudo é o aspecto alienado da Ideologia, entendida num sentido
menos amplo e mais restrito às organizações, que o mesmo Marxismo não
sabe decifrar. Isto é, esse mesmo processo de impotência, ao qual se referia
Mendel, existe nas organizações, porque quem é o proprietário dos meios de
produção, dos meios de decisão, também é proprietário de um saber. E cada
saber envolve um poder: a propriedade de um saber possibilita o exercício do
poder tanto nas organizações capitalistas quanto nas socialistas. Esse poder é
entendido como a imposição da vontade das classes ou setores dominantes
sobre as classes ou setores dominados, das classes ou setores exploradores
sobre as classes ou setores explorados. Isso gera, em todas as organizações,
o fato, como diria Mendel, da classe institucional trabalhadora, tanto nas suas
bases como nos estratos que lhe são próximos, desconhecer os principais
vetores que ordenam a organização na qual está inserida. Ela considera
indiscutivelmente indispensável o papel do capital como "criador de fontes de
trabalho", ela considera absolutamente necessária a organização da produção
destinada a gerar mercadorias (e não a gerar bens de uso), ou destinada à
produção de armamentos exigidos pela belicracia de Estado. Ela considera
necessária a existência de hierarquia técnica e burocrática em que uma
posição de maior saber dá, "naturalmente", uma posição de maior poder. E não
teria de ser assim, forçosamente. E assim apenas porque a divisão técnica do
trabalho se faz coincidir com uma divisão social. Mas a divisão técnica não
deveria implicar nenhum privilégio social. Então, trata-se de criar um dispositivo
no qual os coletivos possam analisar cada um dos fenômenos de mal-estar, de
conflito, de impotência, de disfunção que aparece devido a toda esta divisão
injusta e perversa do trabalho. Isso constitui parte do não-dito institucional. Em
um sentido amplo, o não-dito compreende a relação de não-saber que cada
momento da instituição guarda com respeito ao outro e o não-saber que cada
saber contém pelo fato de ser específico.
Esses analisadores são muitos, como já dissemos anteriormente.
Alguns deles são" espontâneos", outros são construídos pelos interventores
institucionais. Mas os que podem delimitar-se com maior frequência são, por
exemplo, o analisa dor "dinheiro", o analisador "sexo", o analisador "prestígio",
81
o analisador "poder". São fenômenos conflitivos, são vivências sofridas, são
acontecimentos mais ou menos explosivos, são lugares de atrito que estouram
nas organizações devido ao fato de elas estarem destinadas a um trabalho que
produza não apenas um produto cujo resultado não seja planejado e
reassumido por aqueles que o produzem, mas também uma série de relações
humanas distorcidas, monstruosas, que geram essa experiência de impotência.
Então, essas contradições vão estourar em fenômenos como o do
absenteísmo, como o da diminuição da produção, incidência do alcoolismo, da
tóxico-dependência, de acidentes de trabalho, conflitos, brigas,
incomunicabilidade, rebeldia e revolta estéril, arbitrariedades que as classes
dominantes da organização costumavam, e ainda costumam, solucionar
drasticamente, com medidas disciplinares; tudo isso as classes institucionais
dominadas podem também tentar solucionar com certo tipo de respostas
individualistas, desordenadas ou autodestrutivas. Então as classes e grupos
dominantes, na modernidade, descobriram uma disciplina que hoje se pode
chamar de diversas maneiras – Recursos Humanos, ou Psicologia
Organizacional, ou Relações Públicas, ou Relações Humanas –, que se destina
a transformar toda essa problemática em uma simples questão de negociação
ou comunicação. Trata-se de colocar os quadros em contato para que
solucionem esse assunto conversando, negociando ou vivenciando, relaxando-
se, mas sem sair da lógica do sistema, sem que se tome consciência de como
as determinantes básicas da alienação são as causadoras dessa problemática.
O que a Análise Institucional propõe é a criação de dispositivos para que o
coletivo se reúna e discuta, exaustivamente, esses fenômenos, e descubra a
maneira como esses efeitos antiprodutivos são a expressão, a conseqüência,
tanto do não-saber das contradições da estrutura e da função do sistema,
como um desvio das forças críticas, das forças revolucionárias, das forças
subversivas. Trata-se de criar condições para que possam, dessa maneira,
correlacionar esses analisa dores com suas causas e dar conta delas – de
forma a adquirir consciência de que não vão poder solucionar esses
fenômenos sem uma ampla reformulação da estrutura e do processo produtivo
em si mesmo, mas nas formas peculiares que este adquire em seu caso
singular.
82
O objetivo, pode-se ver, é parecido com o de Mendel. Em todos os dois
há certa semelhança, mas também diferenças. O objetivo último é propiciar a
auto-análise e a autogestão, ou seja, a recuperação do poder de organização e
do autogerenciamento do processo produtivo, eliminando as situações de
burocracia, de imposição, de dissociação – não a diferenciação técnica, que é
necessária-, mas a dissociação e hierarquização social do trabalho. Mas a
Análise Institucional é mais crítica com a Psicanálise e o Materialismo Histórico
que a Psico-Socioanálise.
Um dos aspectos importantes desta postura é a afirmação de que a
equipe interventora também é uma organização e que ela também pode sofrer
os efeitos desta divisão técnica e social do trabalho. E que também existe para
ela um certo desconhecimento de como as características gerais do sistema
incidem no trabalho coletivo que ela está realizando; a isso se chama
"implicação". Então, a equipe interveniente também vai integrar-se com a
organização intervinda numa organização compartilhada, na qual vão poder
analisar os fenômenos de alienação de uma e de outra. De modo que esse
processo autogestivo e auto-analítico, que vai tentar deflagrar na organização
intervinda, vai ser ocasião de poder analisar também os seus próprios conflitos
da mesma natureza. Finalmente, cabe esclarecer que uma intervenção pode
fazer-se "a frio", quando se pratica sobre uma organização circunscrita, com
uma conflitiva mais ou menos moderada, ou "a quente", quando se opera no
seio de processos ativíssimos que ocorrem dentro de uma tentativa de
transformação autogestiva generalizada de uma sociedade inteira.
Tentarei agora introduzir a Esquizoanálise de Deleuze e Guattari,
tratando de caracterizar algumas diferenças essenciais. Creio que elas
poderiam passar pela questão de que a Sociopsicanálise de Gérard Mendel e a
Análise Institucional de Lapassade e Lourau, em última instância – apesar de
sua franca inspiração libertária, de sua enérgica vocação revolucionária – são
prestações de serviço mais ou menos tradicionais. Isto é, a demanda, o
requerimento de uma análise de uma intervenção institucional ou do tipo sócio-
analítico, é feita por alguns setores ou pela totalidade de um coletivo
organizado a outro coletivo organizado, que oferece seus serviços de uma
maneira mais ou menos tradicional, como prestação de serviço profissional.
83
Isto é, os sociopsicanalistas e os analistas institucionais, apesar da rigorosa
autocrítica que exercitam, apesar de uma vocação militante que têm no seu
trabalho, não deixam de ser experts, não deixam de ser técnicos, científicos;
não deixam de estar agrupados neste tipo de organização característica dos
experts profissionais. Por exemplo: o grupo de Mendel, que se chama
Degenettes, trabalha em muitos lugares do mundo, mas tem uma espécie de
central em Paris. Pode-se, então, ir até lá e solicitar seus serviços. Isso gera,
entre a organização solicitante e a organização solicitada, todo um processo de
diagnóstico, prognóstico e indicação, e um contrato de trabalho. Então, apesar
de todas as ressalvas, autocríticas e análise da implicação, trata se de uma
prestação profissional de serviço, na qual se discutem honorários, tempo e
demais coisas. Além disso, é geralmente um serviço apresentado por um
coletivo organizado a outro coletivo organizado, dentro de um marco mais ou
menos convencional, ou seja, a uma escola, a um sindicato, hospital, fábrica,
convento, quartel etc. Isso, como já dissemos, se denomina" autogestão a
frio", enquanto a" autogestão a quente" é a gerada numa situação
revolucionária mais ou menos generalizada.
Deixando momentaneamente de lado as características teóricas da
Esquizoanálise de Deleuze e Guattari, que são muito sofisticadas e
complicadas, digamos que a relação de Deleuze e Guattari com a Psicanálise e
com o Materialismo Histórico é muito mais complexa que a de Lourau e
infinitamente mais distante que a de Mendel. A posição de Deleuze e Guattari é
muito mais crítica com respeito a todos os grandes monumentos ocidentais do
conhecimento que a dos outros autores das outras orientações. Eu diria que de
Mendel a Deleuze e Guattari existe, politicamente, todo um abandono paulatino
do Liberalismo e da Social Democracia e até do Marxismo, para se aproximar
muito mais do Anarquismo. Então, uma diferença técnica central é que para
Deleuze e Guattari não existe, necessariamente, essa prestação de serviços
convencionais. A Esquizoanálise pode ser feita por qualquer pessoa e em
qualquer lugar. É considerada não como uma ciência ou como uma disciplina,
mas basicamente como uma nova forma de pensar, um modo de ser, ou uma
maneira de viver. Propõe algo assim como um processo de análise
permanente, generalizado e ubíquo, presente por toda parte, em qualquer
84
momento, e protagonizado por qualquer pessoa que tenha, naturalmente,
interiorizados os princípios teóricos desta concepção – que não se reduz a
nenhuma das que a precederam. Não implica, necessariamente, uma relação
de contratação. Não é, indispensavelmente, desempenhada por experts nem
por profissionais. Não implica um lugar nem tempo determinado. Não é
necessariamente uma atividade coletiva, senão que pode ser dual ou
individual. Sequer implica um trabalho de um agente sobre um usuário, mas
que pode ser um trabalho feito por um sujeito sobre si mesmo. Mas que tem
também um aspecto analítico, ou seja, a compreensão de como as
determinações alienantes do sistema, responsáveis pela dominação, pela
exploração e pela mistificação, estão presentes em cada uma de nossas
atividades vitais, as afetivas, as sentimentais, as econômicas, as políticas, as
artísticas, as relações com os outros e as relações conosco mesmos. Eu diria
que é uma posição maximalista ou extremista dentro do Institucionalismo. Além
disso, que não tem técnica nem metodologia própria – características das duas
posições anteriores. Para ela, são os princípios teóricos de compreensão que
dão um entendimento que permite localizar a alienação e propiciar, per se, a
invenção de uma metodologia e de técnicas, táticas e estratégias
absolutamente singulares para cada caso, para cada situação, e que não
podem ser sistematizadas nem transladadas para outra oportunidade.
Então, poderia-se perguntar: essa teoria da Esquizoanálise se
aproximaria mais da filosofia, é uma doutrina, uma ideologia, uma crença? A
rigor, apesar de um de seus produtores ser considerado o maior filósofo
contemporâneo, na nossa opinião não se trata de filosofia. É alguma coisa que
está além da filosofia porque é um entendimento do mundo, da história, da
vida, do psiquismo, que pretende ser um novo gênero, não enquadrável, nem
como uma ciência, nem como ideologia, mas, na versão dos autores, como
uma proposta radicalmente nova, que não é redutível a nenhum dos gêneros
de saber anteriores.
Novamente imagino que os que já ouviram falar de certas idéias de
Deleuze e Guattari, como, por exemplo, aquela das máquinas desejantes, se
perguntaram qual é a definição de desejo em cada uma dessas escolas do
Institucionalismo. É uma pergunta justa que vai ter uma resposta pobre: em
85
Mendel, a concepção do desejo, eu poderia dizer, é rigorosamente freudiana: é
a que Freud dá nas formas que, segundo uma epistemologia clássica, são as
mais amadurecidas de sua obra. Em Lourau – apesar de ele considerar muitas
propostas freudianas, ele não dá muita ênfase a essa categoria e a esse
conceito. Não lhe interessa, particularmente, a participação do desejo, embora
reconheça a existência de um inconsciente institucional e organizacional, mas
não é um inconsciente particularmente relacionado com o desejo e sim um
inconsciente relacionado com o não-dito e não-sabido, da vida organizacional,
por referência não apenas à instituição familiar, senão à do dinheiro e outras.
Em Deleuze e Guattari, a coisa já muda radicalmente, porque eles consideram
a definição freudiana do desejo; mas para eles a questão se altera por
completo. Para Freud, o desejo é uma força inconsciente que anima o
psiquismo, mas é uma força pertencente a esse domínio, a esse campo
completamente diferente das forças naturais e das forças sociais, entendendo
por sociais as forças políticas e as econômicas. Inclusive, se aceitamos que na
civilização moderna a esfera das máquinas mecânicas, elétricas, eletrônicas
etc. já forma como que uma terceira natureza, podemos dizer que existe a
"natureza ecológica", a "natureza humana", a "natureza social", a "natureza
psíquica" e a "natureza maquínica" – a esfera maquínica; só que essa esfera
do mundo maquínico também tem suas forças animantes. Para Deleuze e
Guattari, não se trata de domínios nem de esferas separadas, isoladas entre si,
mas entre suas formas molares; no nível molecular, a produção e o desejo são
uma e a mesma coisa. É a mesma natureza com uma diferença de regime. A
proposta deles é introduzir o desejo na produção e a produção no desejo.
Equivale a dizer que a substância ou a matéria última de todo o real – do real
social, do real psíquico, do real natural e do real maquínico – é a produção, é o
produzir. Não a produtividade, que é a produção já deformada pelo capitalismo,
mas a produção como processo de geração constante do novo. Então, eles
dizem que se consideramos o conceito marxista de produção, tal conceito não
consegue englobar todas as formas de produção possíveis. Ao passo que, se
tomamos o conceito freudiano de desejo – ele, especificamente psíquico, como
dizíamos, é restitutivo, e tenta esterilmente repetir um estado anterior –, esses
autores dizem que se se junta o conceito de produção com o conceito de
desejo, que são imanentes entre si, vai-se gerar uma nova categoria de
86
produção, que abrange todas as formas materiais corporais e incorporais de
geração possíveis, e com essa característica de gerar sempre o diferente e em
todas as atividades possíveis, incluída a psíquica. Ou seja, para eles o desejo
não é restitutivo, o desejo é produtivo. A produção não é apenas produção
mecânica social ou natural, mas é também produção desejante, segundo as
características do processo primário.
Mais ou menos essas são as diferenças. Baseando-nos nelas, para
concluir, digamos que, por exemplo, em Mendel, é claro que o desejo e seus
produtos devem ser decifrados. Para quê? Para que, uma vez interpretados, os
sujeitos possam controlá-los, dominá-los e utilizá-los no sentido de ganhar uma
margem de poder possível. Para Deleuze e Guattari não há nada para decifrar,
porque as representações não interessam tanto quanto as forças; o que se tem
de fazer é liberar, propiciar, deflagrar a potência da produção, do desejo e da
diferença. Tudo isso justamente por causa da natureza última do desejo que
eles supõem; no caso de Mendel, por exemplo, o desejo é, de uma natureza
conservadora que pode ser encaminhada para a revolução e para a produção,
enquanto em Deleuze e Guattari, ele tem uma natureza intrinsecamente
revolucionária, que só precisa ser veiculada, liberada de suas constrições.
Para Deleuze e Guattari, a realidade está composta por três superfícies
imanentes entre si: a da Produção, a do Registro Controle_e a do Consumo-
Consumação. Cada superfície (termo tomado dos filósofos estóicos) tem uma
energia própria: Superfície de produção = Libido; Superfície de Registro =
Númen; Superfície de Consumo = Voluptas. A Superfície de Produção está, por
sua vez, integrada pelo Corpo sem Órgãos e pelas Máquinas Desejantes. O
Corpo sem Órgãos é o contrário de um organismo, ou seja, compõe-se de
matérias não-formadas e energias ainda não-vetorizadas como forças. Em si
mesmo o Corpo sem Órgãos é o grau zero de Intensidades, mas quando ele é
ajeitado como um Plano de Consistência de um Dispositivo ou Agenciamento
revolucionário, desejante-produtivo, as Intensidades circulam por ele
configurando as Máquinas Desejantes e suas conexões criativas, geradoras de
tudo quanto é novo. Este conceito compreende o de Instituinte e o amplia. O
Corpo sem Órgãos assim povoado se transforma numa Nova Terra, enquanto
que, em condições desfavoráveis, quando os experimentos do Plano de
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Consistência fracassam, pode-se tornar um buraco negro ao acelerar-se ao
infinito e levar à morte ou à demência. O nível de funcionamento da Superfície
de Produção é sub-microscópico ou molecular.
Na Superfície de Registro, o Corpo sem Órgãos e suas intensidades e
máquinas desejantes são capturados como entidades molares (que
correspondem aproximadamente aos instituídos-órganizados: Estado, Igreja,
empresas, bancos, dinheiro, organismos, representações e estruturas
edipianas). A este nível cristalizam-se em territórios. É o lugar das identidades
e dos controles e da repressão generalizada. Também a ele pertencem as
pessoas, os indivíduos, os sujeitos, os códigos, sobrecódigos e axiomáticas
que quadriculam a vida biopsico-sociotécnica. O Corpo sem Órgãos torna-se
Corpo Cheio e adquire um órgão centralizador e hierarquizado que, segundo se
trate das formações primitivas, asiáticas ou capitalistas, será respectivamente o
Corpo da Terra, do Déspota ou do Capital-Dinheiro, ao qual "milagrosamente"
se atribui ser a causa da produção.
Os dispositivos ou agenciamentos produtivo-desejante- revolucionários
gerados por encontros ao acaso das intensidades, ou máquinas desejantes,
são capazes de desestruturar os estratos e territórios da Superfície de
Registro, propiciando desterritorializações e linhas de fuga pelas quais o
desejo e a produção se plasmam em novidades radicais. Toda entidade tem
uma textura molar e outra molecular, um pólo paranóide (capturante a
antiprodutivo) e outro esquizóide (produtivo-desejante-revolucionário).
Como se vê, apenas podemos enunciar estes conceitos porque sua
proliferação nessa teoria torna impossível defini-los em detalhe. Para tentar
enriquecer um pouco essas definições, sugiro consultar o glossário deste livro,
assim como a bibliografia incluída ao final do mesmo.
PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO V
1) O que se entende pela Sociopsicanálise de Gêrard Mendel?
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2) O que se entende pela Análise Institucional de Renê Lourau e Georges
Lapassade?
3) O que se entende pela Esquizoanálise de Gilles Deleuze e Félix Guattari?
4) Qual ê a relação entre estas três tendências, a Psicanálise e o Materialismo
Histórico?
5) Com que movimentos políticos poderia-se relacionar predominantemente
cada uma das tendências do Institucionalismo descritas neste capítulo?
Capítulo VI
ROTEIRO PARA UMA INTERVENÇÃO INSTITUCIONAL PADRÃO
Vamos tratar de um roteiro para uma intervenção institucional do tipo
standard, isto é, a mais habitual, a mais corriqueira, a mais conspícua. Antes
de começar, no entanto, eu gostaria de fazer uma breve classificação – que,
seguramente, será muito incompleta e esquemática – de algumas formas
diferentes de intervenção, pois me parece que, metodológica e tecnicamente, é
uma questão que não estou seguro de ter conseguido transmitir no percurso
destes capítulos. É um assunto importante, porque quando não fica claro,
permanece nas pessoas uma dúvida enorme no tocante à condição de
contratação deste tipo de serviço. Então eu gostaria de, pelo menos, mencionar
algumas delas.
Tendo em vista a divisão já mencionada dentro do Institucionalismo
entre a configuração de um campo de análise e um campo de intervenção, é
evidente que o campo de análise consiste apenas num espaço conceitual ou
nocional. Em outras palavras, é um tema do qual o institucionalista quer se
ocupar. Esse tema pode ser abstrato ou concreto; pode ser contemporâneo,
passado ou futuro. E pode ser muito vasto ou mais restrito. Mas é um processo
de produção de conhecimento com respeito a esse campo e não implica
necessariamente uma intervenção técnica; envolve apenas o fato de que o
institucionalista vai tentar entendê-lo. Aliás, isso pode abranger até mesmo um
tipo de material que não é propriamente histórico-social, no sentido das formas
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institucionalizadas-organizadas: pode ser um texto literário ou uma obra
arquitetônica, por exemplo.
Agora, o campo de intervenção, como já foi dito, pressupõe um campo
de análise, porque se pode entender sem intervir, mas não se pode intervir sem
entender, embora durante a intervenção iremos entendendo cada vez mais. O
campo de análise pode não coincidir, em termos empíricos, com o campo de
intervenção. Ou seja, pode-se escolher como campo concreto de intervenção
uma fábrica, uma indústria. Mas pode-se delimitar um campo de análise que
não compreenda unicamente o entendimento dessa fábrica, e resolver estudar
o processo histórico de implantação desse tipo de indústria no Brasil, para
poder saber como funciona essa organização concreta, fabril, escolhida como
campo de intervenção.
Partindo, pois, dessa discriminação entre campos de análise e campo
de intervenção, digamos que as modalidades de intervenção podem ser
variadas. Uma modalidade de intervenção – aquela a que vamos nos referir de
forma predominante quando repassarmos este roteiro standard, tradicional – é
um serviço oferecido desde posições mais ou menos clássicas, convencionais,
habituais, dentro do panorama social. É o que se dá como serviço oferecido na
condição de profissional liberal ou autônomo, na condição de sociedade
cientifica – uma sociedade científica de Análise Institucional que oferece
trabalhos, por exemplo; é o exercício oferecido por um estabelecimento de
prestação de serviços privados, um instituto de Análise Institucional que pode
ser uma sociedade anônima de responsabilidade limitada ou uma
microempresa; é o que pode ser oferecido por um departamento especial de
uma faculdade, um departamento de Análise institucional numa universidade.
Outra modalidade possível de prestação deste serviço pode ser feita por
parte de uma equipe que integra, que é interna à organização na qual se vai
intervir. É o famoso caso, por exemplo, do departamento de Recursos
Humanos de uma empresa, que tem de fazer uma intervenção dentro de sua
empresa mesma, ou um departamento de acompanhamento institucional de
urna universidade.
Outra possibilidade é a de uma prestação de serviços feita de uma
maneira parecida com esta anterior, que acabamos de expor, mas menos
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caracterizada burocrática e profissionalmente. Por exemplo, é o caso de um
sindicato ou de um partido político que, nos seus quadros, tem institucionalistas
que são militantes formais. Então, esse sindicato ou esse partido político pede
a seus militantes institucionalistas urna intervenção em um setor, em um
segmento, em urna frente, em um espaço da vida e da atividade partidária,
trabalho esse que pode ser ou não pago, contanto que seja considerado corno
parte da vida militante. Mas, em todo caso, é um acordo muito definido, pois se
trata de uma oferta e uma solicitação formais, em que se reconhece no
militante institucionalista um saber" específico", e ele é procurado nesta
condição.
Urna outra possibilidade é aquela pela qual um institucionalista – que
não se caracteriza corno tal e não oferece seus serviços corno tal – infiltra-se
em urna organização, à qual ele pode pertencer organicamente ou não, e o faz
sob um rótulo, na condição de qualquer outra coisa que faça parte dos papéis
formais existentes nessa organização, mas que não seja o de institucionalista.
É o caso, por exemplo, de um morador numa associação de bairro, em que
ninguém sabe que seja institucionalista, ninguém está informado de que ele
oferece serviços institucionalistas, mas que, dentro de seu papel de morador,
opera corno institucionalista, sem explicitar essa condição.
Existe urna última possibilidade dentro desse espectro esquemático que
ainda é pobre, limitado, que consiste numa variação dessa última possibilidade.
Urna variação que parece a menos comprometida e, sem dúvida, é a mais
difícil de todas: é a daquele que pratica o Institucionalismo na convivência
cotidiana. Ou seja: é aquele que nem oferecem serviços corno institucionalista,
nem é solicitado corno tal, nem se infiltra sob outra condição não formal, mas
simplesmente é um "cristão", isto é, é um próximo que, tendo assimilado
princípios teóricos, formas técnicas de operar, vive dessa maneira, convive
dessa forma e, então, pratica o Institucionalismo com sua mulher, com os
filhos, com os companheiros, com os adversários. Em outras palavras: é
aquele que tem. do mundo urna concepção institucionalista e urna maneira de
viver de acordo com esses princípios. Isso inclui o seu âmbito de trabalho, mas
é principalmente na coexistência, na colaboração cotidiana com seus
companheiros, que ele se comporta corno institucionalista.
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Essa esquemática sistematização requer um tratamento, uma
explicitação e uma abordagem muito detalhados e complexos das
peculiaridades que adquire cada uma dessas inserções possíveis, o que não
faremos por várias razões; em primeiro lugar, porque ela não foi
exaustivamente feita em texto algum – e suspeito que jamais será feita, porque
é demasiadamente ampla, heterogênea, complexa, inclusive por causa da
pretensão institucionalista de que cada intervenção tem de ser singular, tem de
ter uma característica de originalidade, de irrepetibilidade, o que torna a
sistematização dessas diferenças eventualidades muito difíceis e improváveis.
Mas, em todo caso, o importante é reter isso, a amplitude de possibilidades,
amplitude essa que produz um efeito contraditório nos jovens institucionalistas,
porque esses novatos são formados dentro de uma orientação disciplinar:
querem ser especialistas, querem ser profissionais e querem ter um corpo de
saber e de prescrições, de estratégias e de táticas, claro, simples, limitado e
preciso. Querem saber quem são, que direitos têm, que deveres têm, qual o
seu estatuto científico, qual sua condição profissional, e querem ter uma teoria
simples, clara, assim corno opções técnicas não demasiadamente numerosas
para poderem saber, com toda facilidade, o que devem fazer em cada
conjuntura. E nisso consiste a formação disciplinar que tende a produzir –
técnicos e, em muitas ocasiões, embora não em todas, à condição de técnico
se acrescenta a de funcionário ou de burocrata.
Felizmente ou não, o Institucionalismo não é assim; não é isso o que ele
propõe, apesar de que, em algumas ocasiões infelizes, possa vir a cair nisso.
Então, essa amplitude gera nos jovens agentes uma angústia, um mal-estar
que pode derivar numa recusa, que pode levá-los a adotar uma atitude
depreciativa que os conduz a dizer: "Isso é muito vago, muito complicado,
muito impreciso; não faço; deixe-me tranquilo corno médico, corno advogado,
algo tradicional e não demasiadamente autocrítico." É o famoso problema de
focalizar isso de maneira otimista ou pessimista. A maneira pessimista é dizer
que é muito complicado, muito impreciso, há demasiadas opções. A maneira
otimista é dizer: "Graças a Deus, há tantas possibilidades e tantas margens
para a invenção... "
92
O que vamos desenvolver agora é apenas uma dessas formas de
intervenção, que é a intervenção institucional standard, a qual: 1) não é a única
(o que espero, tenha ficado claro); 2) nem sempre é a melhor – apesar de
costumar ser a mais clara e a mais sistematizada; e 3) muito frequentemente
não é possível, porque as características da demanda não a propiciam. Então,
deve-se ter cuidado, porque se a gente se prende a esse tipo de intervenção,
se se apega a esse modo de operar, corre o risco de pensar que quando ele
não é possível, não existem outros que, pelo menos, deixaremos esboçados.
Ora, a intervenção apresenta uma série de passos que têm de ficar bem
explicitados. São passos ideais, aos quais deveríamos prestar atenção, tratar
em separado a cada um deles durante a intervenção, se houvesse tempo, se
houvesse calma, se houvesse dinheiro, se houvesse todas as condições
necessárias para fazer as coisas de maneira confortável. Em geral essas
condições não existem, então pulam-se e misturam-se passos, e age-se, mais
ou menos, "como é possível". Se vocês querem um exemplo corriqueiro,
conhecer esses passos e executá-los é como em algumas épocas gloriosas da
etiqueta, quando nos ensinavam a caminhar de maneira elegante e, então, se
nos diziam: calcanhar planta-ponta, calcanhar-planta-ponta... Ora, ninguém
caminha assim. Mas acontece que caminhar assim resulta num andar elegante.
Depois, a gente não vai mesmo pensar nisso, e simplesmente caminha mais ou
menos, tão elegantemente como pode. Ou como quando a gente aprende a
nadar, que consiste primeiro em levar o braço direito, depois o braço esquerdo,
e bater as pernas coordenadamente, e a cabeça se volta para esse ou aquele
lado... Quando a gente nada assim, só pensando nessas regras, se afoga,
apesar de ser a maneira mais correta de faze-lo...
O primeiro passo consiste em fazer a análise da produção da demanda.
Isso, em um sentido particular, consiste no cuidadoso exame que a
organização ou a pessoa que está para fazer a intervenção institucional faz da
maneira como ela ofereceu os serviços; ou seja, o estudo da forma como ela
produziu a demanda que lhe é feita. Temos enfatizado muito que correntes
atuais, tanto de Marketing quanto de Psicanálise, ou de Psicanálise e
Marketing (que não estão nada separados), têm insistido bastante na questão
da demanda do usuário: o usuário demanda isso, mas não sabe que, na
93
verdade, demanda outra coisa. Sistematicamente se esquece, nessas leituras,
nessas investigações, que não existe demanda espontânea, que toda demanda
é produzida, é gerada, e que existe um cruzamento na natureza da demanda,
de tal maneira que não é necessariamente a organização que oferece um
serviço a única responsável pela produção de demanda desse serviço. Muitas
vezes, a produção da demanda de um serviço, por exemplo, um serviço de
saude, é. "naturalmente", em princípio, produzida pelos estabelecimentos de
saúde que oferecem seus serviços. Mas ela é produzida, igualmente, pela
falência, por exemplo, de outras ofertas de outras organizações e dos serviços
dessas organizações que são incompletos, que são distorcidos, que são
anacrônicos e que geram demanda de serviços de saúde porque não resolvem
bem os problemas da sua especificidade. Em outras palavras: como as
organizações responsáveis pela demanda urbanística, de moradia, realizam
mal e resolvem mal sua oferta, elas produzem uma demanda à qual não
respondem. Isso traz consequências em saúde; os problemas sanitários, por
exemplo. Então, quem é que gerou a demanda do serviço de saúde? Não
foram apenas os estabelecimentos de saúde. Foram também os
estabelecimentos de urbanização, não por geração de uma demanda de saúde
coerente, racional e consciente, articulada com a oferta, mas pela
inconsciência e pela falência de sua oferta. Mas esse exemplo que acabo de
dar é insignificante, porque, devido às questões de atravessamento e às
questões de transversalidade, isso se torna um complexo mecanismo no qual a
gente só consegue averiguar algumas das determinantes cruzadas da
produção de demanda com a oferta... e em geral se perdem muitas. É
importante que isso fique claro. Mas, em todo caso, o mínimo que podemos
saber sobre isso é que não existe demanda espontânea e natural, nem
universal, nem eterna, mas, pelo contrário, ela é produzida pela oferta.
Portanto, a primeira coisa a ser feita ao nível de um campo de análise é uma
pesquisa, a mais ampla possível, de como produzimos a demanda de serviços.
Nesse caso, a demanda de Análise Institucional é, como o leitor compreenderá,
nem mais nem menos que o começo da análise da implicação. Porque se a
análise da implicação é a análise do compromisso sócio-econômico-político-
libidinal que a equipe analítica interventora, consciente ou não, tem com sua
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tarefa, ela começa pela análise da implicação existente na oferta, ou sefa, na
produção da demanda.
Na oferta ou produção de demanda há muitas características que não
podemos detalhar aqui porque excede nossos propósitos. Mas há uma que
temos de revelar, ter presente, e eu gostaria de descrevê-la de maneira
pitoresca, para que seja mais lembrada pelos leitores. Há uma piada famosa
que se passa num forte militar, numa dessas guarnições que ficam lá na
fronteira. Um oficial pede a um soldado que suba na torre de controle para ver
se os índios estão vindo ou não. É um forte americano, em território índio.
Então, o vigia sobe, olha e diz:
"Sim, os índios estão vindo... São muitos; vêm correndo." O oficial pergunta:
"Mas esses índios são amigos ou inimigos?" Ao que o soldado responde:
"Olhe, devem ser amigos, porque estão vindo todos juntos... " Se a gente se
lembra desta piada, fica mais fácil lembrar que a realidade com que
trabalhamos vem toda junta. A divisão em especialidades, profissões, só existe
dentro da classe ou da equipe, mas não nos usuários. A realidade "vem toda
junta": as divisões que fazemos são totalmente produzidas. Mas a realidade
vem junta e nós não estamos juntos; o mais que conseguimos, às vezes, é
estar próximo, um ao lado do outro. E o que acontece é que cada
especialidade, cada profissão, acha que os problemas da realidade são
problemas de seu campo. Isso não é maldade dos agentes; pode ser uma
desonestidade, e muitas vezes são, mas não frequentemente. Acontece que o
aparelho científico disciplinar e a condição profissional estão estruturados para
isso, para encarar qualquer problema da realidade e estar, em princípio,
convencido de que o problema é nosso: de cada um, do especialista, do
profissional. Então, um senhor ou uma organização vem consultar-nos sobre
um problema de saúde. Eu sou especialista em saúde. Além disso, sou
profissional. Vivo disso. Adquiri uma série de conhecimentos nos quais confio
porque eles têm-se demonstrado eficazes. Cabe lembrar que obtenho todo o
meu dinheiro, todo o meu poder social e todo o meu prestígio através disso que
eu faço. Então não tenho culpa de nada. Se alguém me consulta por um
problema de saúde, certamente ele tem saúde ou não tem saúde e isso é da
minha alçada. Então: "Venha que esse problema é comigo...” Quantos
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profissionais, quantos cientistas vocês conhecem que, após ouvirem
cuidadosamente alguma demanda, concluem que esse problema não é para
eles resolverem, e encaminham a alguma organização ou a outra
especialidade? Não se conhecem muitos profissionais assim... Existem poucos.
Às vezes há quem diga: "Sim, o problema é meu, mas seria conveniente fazer
uma consulta a um especialista em tal ou qual área." Isso já é muito, é difícil de
se ouvir. O que é absolutamente improvável de se ouvir é uma resposta do
tipo: "Permita-me dizer-lhe que esse problema não é privativo de nenhuma
especialidade. Esse problema tem de ser resolvido com seus amigos, seus
companheiros, seus colaboradores ou sozinho." Estou tratando de ser simples.
O problema fundamental é esse: quando a gente recebe uma demanda, a
primeira coisa que ocorre é que a gente tende a pensar que não tem nada a
ver com a crítica dessa demanda; se o sujeito está demandando em primeira
instância, somos levados a aceitar que é porque já sabe o que está
demandando. E se me procura, estou a seu dispor. Procura-me porque algum
lado do problema tem a ver com o que faço, e então o atendo, esquecendo-me
de que, se ele me procura, é porque me ofereci. Não necessariamente me
ofereci a essa pessoa que me procura; pode ser uma oferta vasta, ampla,
cruzada. Mas se eu não me oferecer, ninguém me procura. Se eu não me
constituo num lugar científico, profissional, se não vendo o que faço, ninguém"
compra".
Então, o que tenho de fazer é analisar, com cuidado, como foi que vendi
isso, para que foi que "vendi", que coisas, realmente, posso solucionar, que
coisas posso solucionar parcialmente e que coisas não devo solucionar, devo
encaminhar noutra direção ou devo devolver, dar de volta ao usuário o que ele
solicita de mim. Essa é a análise da implicação na produção da demanda, ou
seja, na oferta. Essa análise tem aspectos conscientes e pré-conscientes
formuláveis assim: "Companheiros de equipe, vamos ver como foi que
convencemos este fulano a nos procurar." Mas tem aspectos inconscientes, ou
seja: que fiz eu, sem me dar conta, o que foi que fizemos nós sem dar-nos
conta, para" capturar este peixe"? Mas é claro que essa pergunta não tem uma
resposta reflexiva e voluntária. A primeira coisa a ser feita para isso é despojar-
se da convicção de que a oferta de nossos serviços é lícita, válida, resolutiva
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etc., porque, pelo contrário, o que vivemos fazendo é lutar pela legitimação,
pela autorização e pelo reconhecimento social de nosso serviço.
O passo seguinte é a tentativa de análise do encaminhamento, isto é:
quais foram os passos intermediários que conectaram o usuário-demandante
conosco? Há muitos, mas para dar um exemplo simples: qual foi o cliente que,
definindo nossos serviços como eficientes chegaram à conclusão de que seu
próximo se beneficiaria também com esse serviço? Quais são as razões
válidas e as razões inconfessáveis, ou as razões recalcadas pelas quais ele fez
esta recomendação? O que acontece quando quem fez esta recomendação é
um congênere, isto é, não é exatamente um colega, mas outro profissional e
outro especialista que resolveu fazer a concessão de nos encaminhar alguém?
São passos intermediários da conexão entre a oferta e a demanda. “São as
famosas fórmulas: consulta a organização tal ou o fulano de tal porque “é o
melhor”; consulta porque “é caro”; consulta porque” é barato"; consulta porque
ele é "dos nossos". É preciso ver o que significa cada um desses atributos: qual
é o problema que agIu tina a quem solicita. “Consulta porque” é daqui", ou
porque "vem de fora". Tudo isso modula a demanda, e o faz com elementos
conscientes e inconscientes no usuário, na mesma proporção neles e em nós,
que ofertamos o serviço.
O passo seguinte é a análise da gestão parcial. Isto é: qual foi o setor da
organização que assumiu o papel de vir consultar-nos ou fazer o contato? É o
setor de direção? É o setor administrativo? É o setor financeiro? São os
quadros intermediários? São as bases? É o proprietário? Ou seja: a gestão
parcial da demanda de serviços é protagonizada por diferentes. Segmentos da
organização. E isto é muito importante, porque nos pode dar toda uma
antecipação dos motivos desta consulta, os interesses em jogo, os desejos em
pauta e, sobretudo, o grau de consenso, de unanimidade que motiva os
protagonistas dessa solicitação. Não é a mesma coisa ser solicitado pela
direção ou pelos proprietários e ser solicitado pelas bases. Costuma ser, para
os institucionalistas, infinitamente melhor serem solicitados pelas bases do que
pela direção ou pelos proprietários. Isso, sem dúvida, não é nenhuma garantia,
porque as bases não são homogeneamente revolucionárias, nem
homogeneamente progressistas, nem homogeneamente sinceras. Coisa que
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se constata claramente naquela célebre frase que diz: “A ideologia dominante é
a ideologia das classes dominantes." Então, as bases são, em geral, originais,
singulares, solidárias etc., mas estão infiltradas pelos interesses e desejos dos
setores dominantes. Então, ser solicitado por elas não é garantia de uma
intenção transparente. Isso também tem de ser analisado.
O grupo que protagoniza a gestão parcial em geral não contém todas as
partes, mas apenas uma delas. Estamos falando de uma situação ideal em
que, geralmente, vem apenas um segmento (apenas uma parte faz a
demanda). Por outro lado, uma organização numerosa nunca virá toda para
fazer uma solicitação. Vem um setor, que dá uma visão absolutamente parcial
da realidade. A compreensão da determinação dessa parcialidade é
importante, pois o fato de você considerar o parcial é que vai lhe permitir
imaginar a existência de uma totalidade complexa, contraditória, desigual,
conflitiva. Isso, claro, sabendo que uma organização nunca é integralmente
totalizável.
Então, a análise da gestão diz respeito a isso: como foi que esse grupo
resolveu consultar e como foi que consultou. O passo' seguinte é a análise do
encargo.
Na análise do encargo há um problema terminológico que seria
interessante que ficasse claro para os leitores. Há uma discriminação muito
importante que se estabelece entre demanda e encargo. Nessa terminologia,
demanda é a solicitação formal, consciente, deliberada, que nunca coincide
com o encargo, que é um pedido que envolve os três níveis da discriminação
que fizemos entre má-fé, desconhecimento e recalque. A diferença entre
demanda e encargo pode passar por esses três tipos de determinações. A
demanda nunca coincide com o encargo. Mas não coincide por quê? Por má-
fé? Pode ser. É claro que as pessoas estão solicitando uma coisa, mas o que
elas querem obter é outra. Pode-se dar um exemplo clássico, mas não único,
nem exclusivo: à solicitação de intervenção institucional, na medida em que a
Análise institucional está cada vez mais em moda e que crescentemente ocupa
lugares formais, é uma solicitação consciente que, em geral, passa pela ideia
confusa de que um serviço de Análise Institucional forma parte da parafernália
de serviços característicos do progresso, da tecnologia moderna em relações
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humanas. Então, a demanda é geralmente uma demanda do tipo: "Bom, veja,
viemos consultá-lo porque sabemos da importância desta disciplina e
queremos melhorar o ambiente dos operários, da direção, ou queremos
melhorar o clima entre professores e alunos, a comunicação, o entendimento, a
negociação etc." Por quê? Porque já se sabe que existe uma tecnologia
modernista que conhece do assunto e vai se ocupar disso. Ora, acontece que o
encargo pode não ter nada a ver com isso. O encargo pode ter a ver, por
exemplo, com algo que acontece quando, na organização, está surgindo um
grave conflito por problemas de condições de trabalho, por problemas de nível
de salário, por problemas de autoritarismo na liderança, todo tipo de atritos
mais ou menos explícitos. Então, há uma demanda, num plano manifesto, de
uma intervenção profilática, progressista, melhoradora. O encargo, no entanto,
é: "Olhe, veja se acaba com esta revolta, localiza os líderes, me aconselha
como desmontar este movimento, como desmobilizar, como fragmentar, como
paralisar isto, ou como aumentar a produtividade sem tocar na questão do
salário." Isso pode ser feito com plena consciência e com má-fé. Muitas vezes
o interventor solicitado tem uma trajetória que permite que lhe seja solicitado
isso com toda clareza, porque é um corrupto ou porque é um reacionário. Há
especialistas em fazer essas coisas. Agora, quem tem fama de institucionalista
dificilmente será solicitado abertamente para isso, porque já se tem uma vaga
ideia de que se ele não é revolucionário, pelo menos é democrata ou
humanista. Então não se lhe pede isso diretamente. Mas pode-se perceber,
perfeitamente, que se diz uma coisa e se está pedindo outra.
Mas a diferença entre a demanda e o encargo pode não passar pela má-
fé. Pode ser fruto do desconhecimento, ou seja, você pode perfeitamente ter
uma impotência sexual psíquica, e procurar um urologista, que não sabe uma
palavra sobre isso. O urologista irá receitar, então, cloridrato de ioimbina ou
Viagra, e se isso não funcionar, vai acabar implantando uma prótese peniana
para ver se opera, quando, simplificando humoristicamente, trata se de algum
conflito com a "mamãe"... Não é comum isso? Trata- se, pois, de um problema
de ignorância. O usuário não tem como saber qual é o lugar e o expert
adequado (?) para a consulta.
99
Mas pode ser, finalmente, um problema recalcado, inconsciente, de
quem vem consultar alguém que tenha reprimido (em um sentido amplo) qual
seja a diferença entre sua demanda e o encargo recalcado, entre o que ele
pede e o que ele inconscientemente espera conseguir.
Agora cabe aclarar uma coisa importante. Quando se simplificou isso,
anteriormente, no tocante à diferença entre a demanda e o encargo, em termos
de má-fé, de desconhecimento ou de recalque, falou-se no caso de quadros de
proprietários ou de quadros diretivos que pedem um serviço. Mas se os
quadros são de base, pode acontecer exatamente o mesmo: o pedido pode ser
fruto de má-fé, de desconhecimento ou de recalque, porque os quadros de
base podem fazer essa solicitação, por exemplo, porque não querem trabalhar,
descartado o fato de que todo trabalho é alienado, que sempre existe uma
extração de mais valia, e que sempre há dominação etc. Mas vocês devem ter
ouvido, com frequência, estes grandes "protestos revolucionários", porque não
se quer estudar, não se quer trabalhar. Então solicita-se alguma reivindicação,
mas tem-se outro pedido como encargo: "Dê um jeito para que a gente não
trabalhe." Já tenho recebido demandas dramáticas, heroicas, pelo fato de ter
sido colocado o cartão de ponto. É claro, numa sociedade onde o trabalho é
alienado, o cartão de ponto quer dizer muita coisa, e a maioria delas não são
boas. Mas também quer dizer que você tem um horário de trabalho que odeia
cumprir, ou um estudo que não tem vontade de 'encarar, ou uma autocrítica
que não consegue suportar. Sem dúvida este desagrado pelo trabalho ou o
estudo não é produto de uma "natureza ruim", ou de uma essência "vadia". Os
determinantes do "desprazer ocupacional" na nossa sociedade são reais e
espantosamente complexos. Frequentemente a "resistência" à tarefa é uma
tática de luta que exprime o fato de que trabalhamos por dever ou forçados
pela sobrevivência. Mas, em todo caso, é bom que tais manobras fiquem claras
para o institucionalista e para o demandante.
Já dissemos do que se trata a análise de encargo parcial. Já sabemos o
que é encargo, e também análise da demanda parcial. Na realidade, não se
podem separar esses dois pontos. Entendendo a demanda parcial e sua
diferença em relação ao encargo parcial – são dois pólos de uma unidade, não
se pode entender um sem o outro –, então temos de caracterizar os
100
analisadores "naturais". Vocês se lembram do que é analisador natural: é um
fenômeno (dito em termos clássicos, incorretos e ilustrativos) mais ou menos
similar ao que Pichon Rivière chama de emergente, que é o que surge como
resultante de toda uma série de forças contraditórias que se articulam neste
fenômeno. E são "naturais", porque não foram fabricados por um interventor
institucional. Então, suponhamos um analisador chamado natural (criticamos a
palavra natural porque nada é "natural"): um analisador natural seria um
terremoto, e nunca nos chamaram para analisar um terremoto porque temos
pouco para dizer a respeito disso, pelo menos enquanto acontecimento
geológico. Então, não existem analisadores naturais propriamente ditos. Na
verdade os analisadores são espontâneos ou históricos. Qual seria um
analisador desse tipo? Grande, pequeno ou médio, poderia ser uma greve, a
morte de um operário, o aumento das doenças de trabalho, uma grande briga:
esses são analisadores chamados naturais. Então, temos de caracterizá-los,
delimitar quais são. E quando tivermos feito tudo isso, poderemos chegar ao
que se chama diagnóstico provisório. Um primeiro entendimento sobre o que
está acontecendo lá na organização. Só que esse diagnóstico provisório é o
que os médicos costumam chamar de "presuntivo", que é uma hipótese ainda
especulativa sobre o quadro. Mas então, temos de fazer, a esta altura, um
contrato de diagnóstico. Este contrato já implica a construção de dispositivos
para ouvir todas as partes. O contrato de diagnóstico é um acerto, é um
convênio feito para poder construir um dispositivo no qual possamos ouvir
todas as partes. Porque só ouvimos uma, aquela que fez a demanda parcial.
Só que é bom fazer este novo acordo, porque ele implica que o diagnóstico já é
uma operação de intervenção Então já tem de ser autorizado, legitimado e, no
caso de existirem honorários, já devem ser pagos, Senão, o que acontece?
Toda a intervenção pode acabar aí, no entanto não é valorizada pelos usuários.
Por isso, se entre outras coisas o institucionalista vive disso, é interessante
receber os honorários, e também porque um contrato de diagnóstico lhe dá
direito a credenciais para poder ter acesso aos lugares que têm de ser
diagnosticados. Senão, se vai lá, entra-se para diagnosticar e o segurança te
manda embora. Depois do contrato de diagnóstico, criam-se dispositivos para
recolher todos os materiais necessários. Então, tenta-se analisar,
fundamentalmente, as defesas, isto é, quais foram às resistências que se
101
levantaram, nos outros setores que se foi ouvir. Com esse contrato, assegura-
se o respeito geral necessário, pelo fato de que, em primeira instância, o
institucionalista foi solicitado por um setor, por um segmento qualquer, e não
por todo o coletivo.
O passo seguinte consiste em, a partir desse diagnóstico provisório,
poder planejar uma política, uma estratégia, uma tônica e técnicas para
começar sua intervenção. Mas não foi concluído ainda o diagnóstico provisório.
Ainda é um presuntivo já mais elaborado, mas não é sequer o diagnóstico
provisório. Então vai-se criar analisadores construídos, ou dispositivos para
poder recolher todos os dados do diagnóstico provisório. Por enquanto, só se
ouviu os setores distintamente. Ouviu-se passivamente, mas não se criou
condições para cutucar o não dito que queremos investigar, Mas será que
quando crio instrumentos de investigação, de indagação, não estou deixando
de ser institucionalista no sentido de que faço averiguações ativas sob a minha
ótica? Posso correr este risco? Sim e não. Evidentemente é um procedimento
ativo e não é "natural"; é "artificial" – já fizemos a diferença entre analisadores
naturais e analisadores artificiais. Mas talvez isso se possa entender um pouco
melhor simplificando esses dispositivos e analisadores construídos. Eles não
são tão indutivos assim, porque se trata simplesmente de propor. Vamos dar
um exemplo fácil. Depois que se fez a investigação passiva, resolve-se que o
analisador artificial que vai agitar o ambiente e que vai dar-nos o material mais
profundo, mais crítico, mais comprometido, é uma reunião de cineclube.
Cheguei à conclusão de que vou propor a projeção de um filme e uma
discussão sobre o mesmo, e importante, porque é indireto, desloca a
problemática da situação espontaneamente referida. Por outro lado, não é
demasiadamente indutivo, porque o interventor não está baixando regras, mas
está propondo um dispositivo agitador, um agenciamento ativador. Os usuários
podem aceitar ou não. Se não aceitam, teremos que pensar em outras
alternativas. Uma vez aceito, pode dar certo ou não. Pode ter um resultado rico
ou pode não dar em nada. Também se pode propor outra coisa bem
interessante: um laboratório prolongado de fim de semana em um espaço
diferente do habitual: vamos nos reunir todos em um lugar e vamos conviver
102
durante estes dois dias e permitir-nos observar o que acontece nessa
convivência. É muito recomendável e não é nada autoritário, nada impositivo.
Depois que se executam os dispositivos do diagnóstico provisório,
reúne-se a equipe interventora e parte-se para analisar toda a colheita,
fazendo-se a análise da demanda e do encargo definitivo. Da mesma maneira
que ativamos esse coletivo ou mobilizamos e o colocamos em condições de
manifestar-se muito mais livremente, muito mais ricamente, também somos
mobilizados, somos igualmente ativados, temos uma vivência de contato
diferente. Então, temos de voltar a fazer uma autoanálise da implicação: o que
foi que isso acordou, despertou em nós, que não tínhamos percebido em todos
os passos anteriores? Particularmente o material inconsciente. Por exemplo,
depois de todo esse novo exame, temos adquirido solidariedade ou
cumplicidade inconscientes com segmentos organizacionais? Isso agitou em
nós ambições e desejos que não tínhamos e agora percebemos? Por exemplo,
quando se mantém uma convivência prolongada, pode-se chegar à conclusão
que dessa intervenção podem ter origem dezenas de outras intervenções,
porque essa agência faz parte de uma cadeia nacional de agências e que se a
equipe fez uma boa intervenção aqui, vai conseguir outras intervenções
noutros lados. É possível não se dar conta de que essa ambição acordou-se
nos interventores. Então, a análise da implicação significa pesquisar,
exaustivamente, no coletivo interventor, quais foram os inconfessáveis e
imperceptíveis ou recalcados que foram ativados. Nova análise da implicação.
Por que é importante? Porque o passo seguinte é o diagnóstico definitivo e o
planejamento da intervenção definitiva. Nova política, novas estratégias,
táticas, técnicas definitivas, analisadores definitivos e um passo seguinte
fundamental: proposta de intervenção e novo contrato.
Esse contrato definitivo, que envolve maior compromisso e requer mais
retribuição, exige ter muito claro aquilo com que se está lidando e quais foram
as ressonâncias inconscientes que isso. despertou na equipe interventora.
Também será preciso definir qual a orientação geral que vai ser dada ao
processo, será necessário precisar quais são as estratégias, os movimentos
fundamentais para conseguir os propósitos políticos; será necessário desenhar
as táticas, os espaços onde se vai dar essa "guerra", a ordem dos mesmos, a
103
importância dos mesmos e as técnicas, os procedimentos: psicodrama,
técnicas expressivas, qualquer técnica, mas pensada anteriormente; uma festa,
um cineclube, uma guerra simulada, um quebra-cabeça coletivo, toda técnica é
boa, sempre que a tática, a estratégia e a política estejam bem claras e
resultem do diagnóstico definitivo e do entendimento da implicação.
Depois temos a autogestão do contrato de intervenção, isto é, vamos
fazer uma proposta de contrato definitivo, mas não vamos impor nenhum dos
termos e deixaremos que o coletivo proponha se quer pagar quanto quer
pagar, por que quer pagar, que tempo pensa destinar ao trabalho, que poderes
quer nos dar e porque, o que será muito ilustrativo do significado que a
intervenção tem para cada segmento. O interventor institucional nunca faz uma
declaração assim: "Eu quero um contrato por tanto tempo, eu cobro tanto e
quero que se me autorize produzir tais e quais transformações na organização
ou introduzir tais mudanças." Primeiro quero saber o que o coletivo propõe
nesse sentido, e porque. Isso é completamente diferente das prestações de
serviço profissionais habituais, em que o profissional diz: "Minha hora custa
tanto, o tratamento vai durar tanto tempo, e quero que você se deite e me deixe
examinar seu ouvido esquerdo com este aparelho. Se não for assim, não
atendo." Não é esta a ideia. Os temas a investigar são: Como você concebe
este serviço? Quanto tempo você acha que vai durar? Quanto dinheiro você
acha que deve ser pago? E como está distribuído o pagamento? Quando cada
um pensa que deve pagar e por quê? Quais são os direitos que você nos vai
dar para podermos intervir? Podemos estar aqui todos os dias? Podemos
acompanhar o trabalho hora após hora? Podemos estar nas reuniões
reservadas? Podemos ver os livros contábeis da organização? É claro que,
depois de analisar a proposta, o institucionalista pode fazer uma
contraproposta e fundamentá-la, para chegar a um acordo consciente.
Depois vem a execução da intervenção, tal como foi planejada. Logo
vêm as avaliações periódicas, que são momentos de parada para qualificar os
resultados e voltar a analisar a implicação que se vai gerando na equipe
durante o processo. Consideração dos índices de transferência, resistência,
produção, antiprodução, atravessamento, transversalidade, todos os conceitos
104
que explicamos durante o curso e que agora não poderemos tratar em
detalhes.
Quando acaba a intervenção temos de fazer um prognóstico, que
poderemos ou não comunicar ao coletivo. Poderemos ou não propiciar a
implantação de um dispositivo de autoanálise coletiva permanente; ou seja, no
momento em que saímos da organização, ficará uma disposição e uma
instrumentação de dispositivos para que esse coletivo continue fazendo, de
forma permanente, o processo de autoanálise e o processo de autogestão que
induzimos que introduzimos como hetero. Nós saímos, e o trabalho continua.
Podemos fazer um acordo de acompanhamento, de intervenções periódicas de
atualização. E, finalmente, já por nossa conta, temos de discutir, profunda e
exaustivamente, como vamos elaborar todo o material, como vamos teorizá-lo
e o que vamos fazer com ele, se vamos publicá-lo ou se vamos obter algum
tipo de benefício com ele: o coletivo no qual intervimos está alheio, mas a
implicação e os problemas éticos, políticos e econômicos continuam sendo
importantíssimos, sobretudo porque é um material que nos pertence muito
relativamente: é propriedade do coletivo considerado. Nossa decisão deverá
ser submetida a ele.
A intervenção standard que tentei explicar tem milhares de variações,
tanto que se pode dizer que a regra são as exceções. Mas, em todo caso, é um
esquema para se considerar e omitir os passos que não sejam possíveis, que
não sejam recomendáveis, condensar tantos outros etc. Em todo caso, é
importante que cada interventor possa inventar um procedimento sui generis
para cada situação.
105
PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO VI
1) Que modalidades de intervenção institucional você conhece?
2) Qual é a vantagem do roteiro standard de intervenção institucional?
3) Repasse cada um dos itens do roteiro standard.
4) Que diferença existe entre um analisador "natural" e um construído?
5) Qual é a importância da autogestão do contrato?
106
Capítulo VII
O INSTITUCIONALISMO NA ATUALIDADE
f) O Institucionalismo e suas vicissitudes
Convencionamos denominar o Movimento Institucionalista, ou Anti-
institucionalista, ou Instituinte, ou simplesmente Institucionalismo, a um
conjunto aberto e internamente diversificado de correntes que mostram certos
valores em comum, bem como marcadas diferenças.
Não é nossa intenção enumerá-las e caracterizá-las todas, não só
porque este propósito excede em muito os limites deste livro, mas também
porque supomos que este universo seja não totalizável. O mesmo se
incrementa incessantemente com discursos e práticas originais que podem
diferir marcadamente dos que cada um considera os mais notáveis e
respeitáveis desta agrupação.
Basta dizer que compreende numerosos saberes e fazeres que tomam
por objeto os coletivos sociais no que se refere às lógicas que os regem, às
formas concretas em que essas se "materializam", às finalidades que
perseguem e à medida que as alcançam, assim como aos recursos que
empregam para obtê-las. Em outras palavras: ocupam-se das instituições,
organizações, estabelecimentos e equipamentos, assim como dos agentes e
práticas que estes protagonizam.
Essa abordagem tem o que poderíamos chamar em geral, e não sem
ressalvas, uma vocação crítica, que tenta conceituar de diferentes maneiras.
Podemos eleger uma, insistindo que não será necessariamente compartilhada.
Trata-se de diferenciar em cada uma destas entidades sua função ou
funcionalidade de seu funcionamento.
A função remete a fins e meios declaradamente universais e
necessários para o suposto "bem comum". O funcionamento remete à
virtualidade que essas entidades detêm de um potencial transformador, a
serviço, principalmente, da produção de novas formas libertárias da vida. Essa
vaga descrição introdutória permite reconhecer que o espectro de propostas
dos diversos "institucionalismos" é classificável em uma escala que vai desde
posições relativamente conservadoras, seguindo por outras crescentemente
107
reformistas, até chegar a concepções e ações alternativas, marginais,
clandestinas, revolucionárias e, até talvez caiba dizer, extremistas.
Muito sumariamente mencionada, a gênese social desse Movimento
pode relacionar-se, em seus aspectos conservadores ou reformistas, com uma
longa série de tentativas históricas de regular racionalmente a existência das
coletividades. Arbitrária e muito simplificadamente, proporíamos as grandes
balizas da Revolução Francesa, o Iluminismo e o Enciclopedismo como
acontecimentos importantes pioneiros deste tipo. Pelo contrário, em suas
versões mais drásticas, o Institucionalismo tem parentesco com todos os
ensaios libertários que as culturas e civilizações tenham pensado ou
experimentado, desde a tribalidade primitiva e nômade até as tentativas
autogestivas modernas da Iugoslávia, Argélia e, sobretudo, da República
durante a Guerra Civil Espanhola.
Quanto à gênese conceitual, sabe-se que o Instituciona lismo nutre-se
de linhas teóricas contrastantes, na medida em que estas não são
homogêneas. Por um lado, não pode deixar de se inspirar na filosofia mais ou
menos "oficial" do Ocidente: Sócrates, Platão, Aristóteles, os Escolásticos,
Descartes, Kant, Hegel e Heidegger. Por outro, adere com muito mais
entusiasmo ao espírito dos materialistas pré-socráticos, assim como aos
sofistas, megáricos, epicuros, estóicos, Espinosa, Nietzsche, Hume, Bergson,
Kierkegaard e Sartre. Algo similar ocorre com os pensadores políticos e
jurídicos cuja nomeação resultaria demasiado extensa. Basta mencionar a
preferência do Institucionalismo pelos utopistas como Tomas Morus,
Campanella, Rabelais, Fourier e, à sua maneira, por Marx, Bakunin e outros.
Se for permitido falar-se de uma gênese operacional, é sabido que as origens
do Movimento podem fazer-se partir de três grandes campos da práxis, a
saber: o da Educação, o da Saúde Pública (especialmente a mental) e o da
Indústria. Poder-se-ia acrescentar toda aquela atividade vinculada aos Serviços
Sociais, os problemas da Urbanização e Demografia, e assim por diante.
Simultânea ou consecutivamente, esses limites se ampliaram a quase todo tipo
de organizações e estabelecimentos (comerciais, financeiros, partidários,
sindicais, eclesiásticos e até militares). Essa difusão culminou com uma
conflituosa incorporação (crítica ou não) dos recursos institucionalistas ao
108
"planismo" em grande escala, quer dizer, às grandes campanhas estatais para
o gerenciamento e a administração das sociedades civis e das populações em
geral.
As bases teórico-técnicas mais específicas do Institucionalismo são
surpreendentemente numerosas e compreendem não só contribuições de
ciências constituídas Sociologia, Psicologia, História, Economia, Semiótica e
Antropologia –, como também de disciplinas como a Pedagogia e a Medicina,
ou interdisciplinas formal-tecnológicas como a Teoria da Comunicação, dos
Sistemas, dos Jogos etc. Cada um desses setores do conhecimento,
obviamente, não é homogêneo, e nem sua herança institucionalista o é.
Encontramos, assim, influências predominantes de várias correntes, por
exemplo: Comportamentalismo, Rogerianismo ou Psicanálise (em Psicologia),
Funcionalismo, Estruturalismo ou Materialismo Histórico (em Sociologia e
Economia Política) e assim por diante.
Desde logo, todas essas influências estão moduladas segundo matrizes
filosóficas, ideológicas e políticas assumidas expressamente ou não pelos
teóricos e praticantes institucionalistas, entre os quais encontramos, como
mínimo, liberais, marxistas e anarquistas. Sem contar que boa parte entende
que o Institucionalismo é uma visão política integral do mundo em si mesmo e
que não pode reduzir-se a nenhuma das posições políticas reconhecidas.
Quanto ao estatuto gnosiológico pretendido por cada orientação para a
sua práxis, a gama abarca desde as escolas que, aspiram a títulos de
cientificidade (de acordo, está claro, com a definição de ciência que sustentem
as epistemologias às quais respectivamente subscrevam) até as que se
postulam como afazeres artesanais militantes ou ainda não enquadráveis em
qualquer categoria que não seja uma nova concepção da convivência
cotidiana.
Consequentemente, essa heterogeneidade não pode mais que
desembocar em uma quase Torre de Babel, no que tange a uma certa
unificação de termos indispensável para a produção teórica (coerência,
consistência, precisão, convalidação, verificação etc.). Como veremos mais
adiante, o mesmo ocorre com as convicções requeridas para a articulação de
uma Ética, Estratégia e Tática do Movimento. Se o instrumental teórico, método
109
e objeto de estudo são tão proteiformes e problemáticos, o que esperar acerca
do arsenal técnico, o qual se desdobra entre as ferramentas clássicas da
Sociologia (pesquisas de opinião e atitude, análise de conteúdo, entrevistas
livres ou dirigidas, assembléias, workshops etc.), passando pelos
procedimentos informativos, dramáticos, sugestivos ou interpretativos das
psicoterapias até chegar à doutrinação ou à agitação política segundo padrões
mais ou menos tradicionais.
Em síntese: esta "evolução", "progressão" ou, mais neutramente
dizendo, este "percurso" de sua gênese social, conceitual e operativa, coloca
ao Movimento agudos problemas pertinentes a seu estatuto ético, jurídico-
político, gnosiológico e profissional.
Esses temas costumam aparecer no Institucionalismo em torno de
polêmicas sobre a cientificidade e a profissionalidade. Com a cientificidade
joga-se o reconhecimento e a autorização das comunidades científicas e
acadêmicas (diplomas, títulos, carreiras, publicações etc.). Com a
profissionalidade o que está em jogo é a legitimidade, legalidade, ou o que quer
que se queira chamá-lo, do Institucionalismo, com relação aos códigos jurídicos
nos quais se enquadra e aos normativos a que se atém... e suas óbvias
consequências econômico-políticas (operações de oferta, demanda e
contratação de serviços, possibilidade de confissão dos objetivos reais da
intervenção, avaliação de eficácia, questões de neutralidade-abstinência ou
imparcialidade-indução).
Essa conflitiva do Movimento nas dimensões da especificidade
(cientificidade) e da profissionalidade já é incômoda mesmo para as
modalidades mais conservadoras e reformistas na escala de correntes. Certas
orientações como a denominada "Desenvolvimento Organizacional" ou a
"Cibernética Social" são vistas pelos setores acadêmicos ou pelos mais
politizados como "penetras", mercantilistas e adaptativas; isso não impede que
existam e às vezes alcancem um êxito mercadológico e efetivo entre seus
usuários. Mas a questão de fundo que se coloca é como o "devir" das posições
no fazer e saber institucionalista foi se pronunciando:
110
a. Quanto à especificidade, sobre uma crítica radical das cumplicidades
das leituras e intervenções científico- tecnológicas com os sistemas e
setores dominantes;
b. Quanto à profissionalidade, sobre uma impugnação extremada do
papel de certas prestações de serviços, cujos privilégios corporativos
e condições mercantis contratuais seriam reprodutores flagrantes da
divisão técnico-social do trabalho e da alienação-dependência do
saber-poder dos coletivos de usuários.
No extremo, e coerentemente, as formas mais marginais, alternativas ou
revolucionárias do Movimento costumam compartilhar uma utopia quase
insurrecional de ampliação e generalização da análise e da intervenção em
grandes situações em escala regional, nacional e até planetária.
Os setores tradicionais do Movimento, de acordo com os países onde se
desenvolvem, conseguiram uma considerável aceitação e até uma
consagração que os incorpora (mais de fato que de direito) à tecnologia da
human engineering (Psicossociologia das Relações Humanas, Treinamento em
Recursos Humanos etc.). Pelo contrário, a faixa mais subversiva do
Movimento, impulsionada por uma clara perseguição aos objetivos de
coletivização e generalização da auto-análise, da autogestão e da
autodeterminação das comunidades, afasta-se cada vez mais dos parâmetros
epistemológicos e legais que regem as prestações convencionais das quais
partiu no início do Movimento.
Durante esse trajeto, as orientações mais radicais produziram
"instrumentos" teórico-técnicos valiosos sob todos os prismas, tais como:
implicação, analisador, demanda, encargo, efeitos: Mulhman, Lukács, Weber,
frio-quente, centro-periferia etc. (ver glossário), que atendem à autocrítica dos
valores da equipe de prestadores de serviços e da reconquista, por parte dos
coletivos, das potencialidades acima apontadas. Contudo, as expectativas de
mudanças substanciais e duradouras nas comunidades de usuários não foram
inteiramente satisfeitas, e muito menos as de propagação da utopia
transformadora a vastas unidades sociais. Como veremos mais adiante, o
complexo panorama do mundo atual nos mostra coletivos brutalmente
submetidos, ou persuadidos ao participacionismo, ou totalmente apáticos e
111
dispersos. Isso tudo acontecendo em um estado coisas objetivo de injustiça
social que exigiria mais que nunca uma ação conjunta decidida.
Parece que o Institucionalismo avançado, e mais ainda o "maximalista",
que não simpatiza com as formas políticas "progressistas" e/ou revolucionárias
convencionais (tais como partidos ou vanguardas elitistas), não foi capaz de
deflagrar por si mesmo sólidos processos, pontuais ou amplos, de mudança
libertária. A rigor, não é seguro que seja isso o que o Institucionalismo
avançado pretende. Mais corretamente, a ideia consiste em encontrar canais
de conexão, formais ou não, com as iniciativas históricas circunscritas ou
massivas que se encontram já em andamento, para contribuir com as mesmas
para a plena vigência das modalidades gestionários singulares que necessitem
e decidam dar-se.
Mas é justamente este um dos pontos nos quais se coloca para o
institucionalista avançado o mais duro desafio, radicado na elaboração dos
citados canais de cooperação. Se por um lado os procedimentos habituais de
produção de demanda de serviços lhe estão dificultados ou impedidos pela
peculiaridade de seus ideais, por outro as célebres categorias de inserção nos
movimentos e lutas, tais como as de integrante, colaborador, aliado ou
simpatizante lhe são insuficientes.
Diante dessa perspectiva, o agente institucionalista com inquietações
militantes encontra dilemas excruciantes, nem sempre realistas, que se em um
sentido podem constituir fatores de propulsão ao aperfeiçoamento de seus
recursos, em outro, ameaçam submergi-lo em uma certa paralisia. René
Lourau tratou lucidamente desses impasses em dois capítulos memoráveis seu
livro "El Estado y el Inconsciente" (Ed. Kairos, Barcelona, 1980). Na segunda
parte do citado texto, os capítulos V e VI intitulam-se: "El Estado en el Analisis
Institucional" e "El Analisis Institucional en el Estado". Resume-se aí o drama
Institucionalismo: definindo o Estado, soma do instituído, uma maneira vasta e
diversificada como "o inimigo principal" (a expressão é nossa), o autor tenta
sistematizar os obstáculos, possibilidades e impossibilidades que a
onipresença do "Leviatã" impõe ao Movimento em todos os campos de sua
provável atuação. Mas não deixa de assinalar o peso das mortíferas
determinações estatais imanentes ao próprio seio do Movimento. Remetemos o
112
leitor a essa leitura obrigatória porque queremos partir dela para enfatizar
alguns inconvenientes, não por acreditarmos que não tenham sido
abundantemente tratados neste e em outros escritos, senão no tangente à
nossa experiência particular. O primeiro refere-se ao fato de que o
lnstitucionalismo avançado e até o "maximalista" não é suficientemente
conhecidos devido à sua pouca difusão, de modo que os pequenos grupos e
organizações não sabem de sua existência. Por outra parte, a maioria dos
grandes experimentos "revolucionários" massivos atuais não sustenta
integralmente os ideais libertários antes mencionados, sendo pouco provável
que solicite a colaboração de um institucionalista, mesmo supondo que
conheça sua proposta.
Isso reduz as demandas de trabalho àquelas apresentadas por
organizações de pequena e média envergaduras, que na maioria das vezes
confundem o serviço que procuram com qualquer uma das variedades
"normativizantes" anteriormente descritas.
Também devido à pouca divulgação do Movimento, o Institucionalismo
se vê forçado a recrutar quase exclusivamente seus adeptos praticantes nos
estabelecimentos de formação acadêmica de especialistas e profissionais.
As duas dificuldades, a de uma demanda errada e a de uma
procedência logocêntrica e corporativa dos agentes, contribuem para o
aggiornamento da corrente no sentido das orientações mais adaptacionistas ou
reformistas. Contudo, segundo nossa experiência na América Latina, algumas
regiões da Europa e (por referências) nos Estados Unidos, proliferam cada vez
mais movimentos, espaços e correntes idiossincráticos (de singularidades
etárias, sexuais, raciais, religiosas e até trabalhistas) "naturalmente"
predispostas a coletivizações autônomas, senão à autogestão generalizada "a
quente". Em cada um desses âmbitos ou nos interstícios de outros mais
"oficiais", abre-se para o institucionalista outras tantas oportunidades para
reinventar sua "maestria". Trata-se, mediante a autoanálise da implicação
despertada pelo encontro com a singularidade do coletivo intervindo, de
expurgar os emergentes de profissionalismo e especialismo que se levantam
como impedimentos para a plena realização produtiva da intervenção como
acontecimento. Fazem-se imperiosos para o Institucionalismo estudos
113
cuidadosos e particularizados da estrutura e estratégias do Estado (entendido
como ubíquo, inconsciente e "contínuo") em cada formação social. Essa
falência também foi indicada por Lourau e outros; enquanto essa não for
remediada por um extenso sistema de intercâmbio e acumulação de
informações (chame-se, por exemplo, "Praxiologia", como sugerem alguns), o
Institucionalismo estará condenado a uma série de apreensivas apostas, sobre
algumas das quais voltaremos ulteriormente.
Sem pretender sequer introduzir o tema de uma "Estatologia Diferencial
Institucionalista", queremos apenas observar que as sociedades opulentas (em
especial as sociais democracias européias), por um lado, parecem propícias
ao Institucionalismo devido à sua permissividade e tecnologização dos
sistemas de controle social, ao elevado nível de padrão de vida e de instrução
pública e à preocupação generalizada com a ameaça atômica e a deterioração
ecológica. No entanto, por outro lado, os Estados gerentes pseudo-exitosos,
modernos e eficientes administradores de enormes riquezas, persuadiram as
populações com benefícios concretos ou imaginários, levando-as a uma atitude
de "conservadorismo crispado" (segundo F. Guattari) ou de indiferença
complacente (que alguns entendem como formas de resistência passiva).
Nos capitalismos tardios latino-americanos (por exemplo) ocorre algo
diferente. As massas extremamente depauperadas, as burguesias nacionais
retrógradas (aquelas por total falta de opções reais de sobrevivência, estas por
quase absoluto desinteresse pelo cuidado com a força de trabalho e o cultivo
do mercado interno), não são propensas às propostas institucionalistas. Ao
mesmo tempo, o brutal contraste entre o discurso, estrutura e recursos estatais
(essencialmente demagogos, insuficientes, incompetentes e corruptos) e o
trágico nível de carência dos coletivos fazem com que o "planismo" seja um
ostensivo fracasso. Como consequência, o Estado precisa urgentemente de
otimizar sua gestão e as comunidades, profundamente decepcionadas com
suas expectativas acerca do providencialismo estatal, começam, penosamente,
a dar-se soluções próprias. Esta superfície mostra algumas brechas para o
Institucionalismo, se tal coisa existe, para certo trabalho "no Estado" e "com a
sociedade civil". Nesses empreendimentos, contudo, a reformulação das
características do agente e de sua práxis se faz imperiosa: a precariedade de
114
meios de remuneração e a violência repressiva – como a cooptativa, sempre
pronta a desencadear-se sobre o institucionalista e seu cliente – impõem
estratégias e táticas infinitamente sutis e cautelosas.
Essas questões não são, de maneira alguma, novas para o Movimento.
Deu-se para elas respostas já célebres que levam nomes tão aceitos como
vituperados pelos diferentes segmentos do Institucionalismo: empresarização,
entrismo, maquiavelismo, infiltracionismo, distorção da demanda,
marginalismo, clandestinismo, ressingularização das práticas são alguns dos
termos usados para designar manobras de contato e entrada nos coletivos de
usuários. Consagrados e repudiados, esses modi operandi, como muitos outros
referentes a uma diversidade de assuntos do Movimento, expressam a
permanente tensão e oscilação que ocorre entre a conveniência de associar as
diversas correntes do Institucionalismo e seu horror à totalização. Em geral, o
estado incipiente dos intercâmbios teóricos e casuísticos gera uma
exacerbação da crítica fundamentalista operante em uma espécie de "vazio".
Ao perigo de paralisia ao qual se aludiu anteriormente, causado
basicamente pelo poderio, a ubiqüidade e flexibilidade das forças reativas
atuais, acrescentam-se certos agravantes que iremos apenas esboçar aqui.
Freqüentemente o institucionalista, calouro ou experiente, mais ou menos
acostumado a suportar as limitações de sua tarefa e a crítica exógena ao
Movimento, sofre sérias pressões resultantes da crítica endógena, ou seja, da
crítica que nasce da luta entre as correntes internas (conservadoras,
reformistas, alternativas, revolucionárias e até "terroristas") da corrente.
Não é nada estranho que assim seja; em outras palavras: não há nada
de inesperado no fato de haver dissidências em um Movimento que possui a
estranha virtude de ter produzido, em pouquíssimo tempo e com mínima
repercussão "pragmática", uma rica e profunda autocrítica. Ela afeta tanto as
disciplinas teórico-técnicas, das quais as tendências institucionalistas se
originaram, quanto elas mesmas, independente do grau de desenvolvimento
que chegaram a alcançar.
Essa crítica disseca, metaforicamente falando, cada uma das células,
vísceras, tecidos, sistemas, organismos e funções que as integram. Mas esse
115
trabalho é feito habitualmente em abstrato e não sobre o que alguns
denominam uma "clínica ampla" do Movimento. Tanto é assim que capítulos
fundamentais, tais como o da logística (avaliação de disponibilidades ou
resultados) ou, seguindo com a metáfora, a genética (estrutura e dinâmica da
reprodução e mutação), a biotipia (taxonomia de perfis) e a eugenesia
(replicação de perfis ótimos) ainda não foram escritos. Cabe aqui acrescentar a
ressalva de que, segundo certo conjunturalismo ou improvisacionismo
extremado de alguns institucionalistas, talvez não seja necessário escrevê-los
senão como curiosidades museológicas, na medida em que tais registros só
seriam reconstrutivos de experiências consumadas. Essas, triunfantes ou
falidas, teriam uma singularidade tal que careceriam de qualquer valor
prescritivo ou prospectivo generalizável.
A problemática que esboçamos tem, como uma de suas áreas mais
sensíveis, a da sistematização de uma "Pedagogia Institucionalista". Se se
admite que o Institucionalismo é, em última instância, uma modalidade de viver
coletivamente, adquire sentido a afirmação (um tanto esnobe) de que "não se
ensina". Dito de outra maneira, a proposta é que cada coletivo construa as
condições para se autoconhecer, autodeliberar e autodecidir a forma sui
generis, única e irrepetível, que deseje dar-se para existir. Este processo
prioriza a crítica e a dissolução das formas alienadas das quais padece,
incluindo entre elas boa porção dos conceitos com os quais as lê e as avalia.
Nesta reelaboração, as figuras do profissional e do técnico "em fazer isso" são
forçosamente demolidas e, junto com elas, as dos "que ensinam a fazer isso",
especialmente se o fazem para formar "experts em fazer isso".
Mas se não se admite um "especialista em autogestão", deve-se
necessariamente conceber (pelo menos doutrinária e provisoriamente)
procedimentos de inspiração autogestionária para formar diversos
especialistas, fazendo, no possível, uma clara discriminação entre
especificidade e especificismo. A redistribuição do saber e do fazer nas
gestões autônomas cria condições para surpreendentes descobertas e
resultados protagonizados por participantes ou grupos dos quais "menos se
poderia esperar". Mas isso não implica que se tenha obrigatoriamente de
reinventar tudo e que não exista alguma divisão operacional e vocacional do
116
trabalho, assim como tampouco descarta que alguém que "passou por muitas
gestões" possa participar de outras nas diversas qualidades que acima
confessamos não havermos conseguido classificar. Aludimos, é claro, ao que
há algumas décadas se denominava "acumulação social do saber".
O assunto torna-se mais nítido no caso de coletivos de estudantes de
alguma disciplina que desejam aprender sua matéria no marco de uma
experiência institucionalista e, mais claro ainda, quando se trata de disciplinas
diretamente aparentadas com as origens do Institucionalismo, tais como
Sociologia, Psicossociologia, Ciências Políticas etc. A nota em comum, que
configura estas comunidades como tais, é a de associar-se com a finalidade de
gestionar uma forma coletiva e autônoma para adquirir o manejo de certas
contribuições teóricas e operativas dos saberes constitutivos da prática geral
do Movimento. Que a organização e procedimentos adotados sejam "não-
diretivos", "permanentes", "co-gestivos", não é tão importante quanto parece.
Tampouco o é o tanto que a iniciativa seja parcialmente autogestiva (em âmbito
ideológico, pedagógico e político) ou integralmente autogestiva. O ponto crucial
é que o projeto esteja decididamente encaminhado, em cada um de seus
dispositivos, a uma articulação e disseminação do Institucionalismo com e em
outros coletivos atuantes. Esse objetivo, quando é claramente assumido, exige
ou não a autodissolução do agenciamento pedagógico, mas pressupõe a firme
disposição dos agentes formadores à autodissolução e recolocação de sua
"identidade" segundo os novos paradigmas nos quais se insiram. Completando
a ideia: impõe a não- reprodução do equipamento e do modelo pedagógico que
o gerou. É evidente que dispositivos desse tipo só se justificam, e dão
modestos frutos, enquanto a "frieza" do contexto social que os contém não
permite senão uma discreta transversalização do ensinamento com as forças
Instituinte "pesadas" do Trabalho ou da Grande Política. Só alguns extraviados
fanáticos ou duvidosamente intencionados "puristas" confundem o que é
"deixar aprender" Análise Institucional ou Sócio Análise em um
estabelecimento ou curso isolado, "a frio", com o que é tentá-lo numa
autogestão social generalizada. No primeiro caso, o máximo que se
autodissolverá, e só até certo ponto, será a assimetria educacional entre
professores e aprendizes. No segundo, ambos deverão dissolver-se em
117
uníssono, assim como sua organização mesma, nas práxis dos coletivos que
lhes ensinaram "em ato" como e para quê fazê-lo. Enfim: como dissemos,
resulta perfeitamente compreensível e ainda indispensável que os processos
de autoexame e transformação constante do Movimento se exerçam sem
pausa nem concessão alguma. Mas se essa implacabilidade tem efeitos
inequívocos sobre as formas radicais antecedentes ou pioneiras do
Institucionalismo, eles não são tão límpidos quando se opera com
indiscriminada dureza sobre as infinitas variedades de propostas
institucionalistas contemporâneas.
Tensionado entre a necessidade de sobrevivência, a de "autorização" e
o desejo produtivo, de um lado, e os duros limites do Estado e das forças
reativas do outro, o institucionalista deve ainda enfrentar a crítica interna. Por
isso, não é nada infrequente encontrá-lo decepcionado, culpado, onipotente ou,
o que é mais comum, perplexo. Frente a esses difíceis panoramas, três
deformações tocaiam o agente institucionalista, como outras tantas soluções
de compromisso do conflito que o dilacera.
Um primeiro caminho é o regressivo. O agente retrocede às modalidades
mercantis, adaptacionistas, burocráticas e corporativas do Movimento. Entre
elas destacam-se o empresarismo, o funcionalato e o academicismo.“Só que
essas adoções se realizam “em nome do Institucionalismo", e com um verniz
mais ou menos progressista e declamatório. Os profissionais mais propensos a
esse destino são os psicólogos de empresa, administradores, comunicólogos e
psicanalistas, assim como professores universitários.
Uma segunda vicissitude é a que resulta de uma espécie de falsa
aceleração pela qual o agente se lança às formas clássicas da militância
política, sejam as reformistas e eleitoreiras, os ativismos messiânicos ou as
vanguardas intelectuais contestatórias meramente discursivas. Sem que
pretendamos condenar a pertinência conjuntural dessas estratégias, urge se
fazer constar que, em sua assunção, todo e qualquer "espírito" próprio do
Institucionalismo se perde nas estratificações partidárias, sectárias ou
facciosas.
Uma terceira escolha, tão engenhosa quanto discutível, é a que pedimos
licença para denominar com a pitoresca metáfora de "Tática do Tero". O tero é
118
uma ave da planície Argentina que, segundo a tradição gaúcha, "grita em um
lugar e põe os ovos em outro", para assim protegê-las da voracidade das
espécies predadoras. Tentamos ilustrar assim a prática dissociada de alguns
institucionalistas, que obtêm subsídios e apoio em estabelecimentos e serviços
ostensivos nos quais ensinam, publicam ou intervêm, segundo versões
híbridas, circunscritas e moderadas do Movimento. Ao mesmo tempo,
colaboram ou protagonizam, clandestinamente ou não, mas em real condição
de implicados nos eventos e empreendimentos mais puristas aos que têm
ocasião de incorporar-se. Não nos parece que esta composição seja das
piores, mas sim que é uma saída desgastante, inevitável, às vezes, devido às
limitações no desenvolvimento da doutrina e do Movimento antes
apresentados.
Como quer que seja, e em referência a esse terceiro tipo de agente,
muito nos importa esclarecer que não deve ser confundido com outro, que
cremos conhecer muito bem e que é urgente desmascarar. Aludimos a certos
"pseudo institucionalistas" que, sabendo das características dispersivas,
erráteis e libertárias que definem para alguns setores (provavelmente os mais
criativos) a essência do Movimento, as usam com os fins mais espúrios que se
possa imaginar. Inteirados nominalmente de um punhado de noções da
corrente, as brandem como slogans para empreender um agitacionismo
fanático: do "antiautoritarismo" (que desvirtua toda autoridade fundada), da
"desordem produtiva" (que inviabiliza qualquer organização e eficácia), da
"novidade radical" (que impossibilita qualquer regularidade operacional) da
provocação-auto- heterodissolvente (que hipostasia a negatividade e carece de
propostas construtivas), do saber ex-nihilo (que proscreve o estudo e prescreve
um intuicionismo inconseqüente) etc. Como notas secundárias
caracterológicas, estes "anarquistas de bar" costumam glorificar "a paixão"
(que confundem com um sentimentalismo raso), a "liberdade sexual" (que para
eles é uma promiscuidade confusa e obscena), o "hedonismo" (que consiste
em um consumismo alcoólico, drogadito e parasitário) etc.
Variedades da marginalidade desocupada ou subempregada, originada da
lumpenização das faixas médias urbanas universitárias, tais "revoltosos",
119
líderes, acólitos ou franco- atiradores, não só "não passam" como também
"nem chegam" a encarnar essas célebres figuras que a militância ortodoxa
qualificava de esquerdosos festivos. Em termos institucionalistas: desviantes
organizacionais, libidinais ou ideológicos incapazes de produção. Sua triste
história consiste em que uma vez tenham destruído e saqueado, brandindo
"palavras" instituintes, qualquer iniciativa que os tirou do anonimato, dedicam-
se a dar rédeas soltas a sua "vontade de nada", ou melhor, a reproduzir
caricaturalmente os vícios (sem as virtudes) da "imperfeita" entidade de origem.
Nem Eros, nem Teros, nem Ananké; em resumo: ladrões de galinhas.
II) O Institucionalismo e seus valores
Se as aproximações até aqui esboçadas foram ilustrativas, cabe
concluir, no mínimo, que restam muitas questões sem esclarecimento no
Institucionalismo. Essa óbvia constatação não é proclamada aqui apenas por
pruridos éticos, consciência epistemológica ou autocomiseração sentimental. O
motivo fundamental é estratégico e tende a propor e demonstrar a
possibilidade e conveniência de algumas medidas a serem adotadas pelo
Movimento. Política, logística, estratégia, táticas, técnicas, modalidades de
divulgação, implantação, desenvolvimento, transmissão, autorização,
contratação, avaliação de resultados, alianças, morfologia organizacional
devem ser revistos no Institucionalismo. E isso não significa exclusivamente
que esses conhecimentos devam ser produzidos, mas que muitos deles
precisam ser apenas comunicados, intercambiados e elaborados
coletivamente. Para tal, o Movimento deve dar-se dispositivos formais, amplos
e fortes, com respeito aos quais tem uma proverbial desconfiança. Será
procedente diagnosticar nesta encruzilhada algo assim como uma
"enfermidade infantil do Institucionalismo"?
Alguns textos que conhecemos procuraram uma abordagem de conjunto
de pelo menos parte desta problemática. Muitos pontos incertos são tocados e
soluções interessantes colocadas com rigor e vigor. Experientes
institucionalistas exortam seus colegas a um certo ecumenismo bem-
entendido, assim como à subscrição de convenções normativizadas e
120
inteligíveis para a socialização da experiência das inúmeras tendências do
Movimento. Dá-nos a impressão, contudo, de que (até onde sabemos) essas
sugestões ainda não reconhecem nem aproveitam devidamente os
adiantamentos, em alguns casos admiráveis, que a crítica produtiva de outros
institucionalistas já gerou, justamente sobre os valores e recursos em nome
dos quais se põem em marcha tais entendimentos. Por outra parte, e até há
pouquíssimo tempo, não havíamos percebido colocação alguma para uma
estruturação internacional do Movimento, apesar da lucidez que os
institucionalistas avançados e experientes demonstram acerca da onda de
integração planetária de todos os processos sociais.
Um tema exemplar para compreender essa curiosa combinação de falta
de experiência elaborada com uma espécie de puritanismo ético encontra-se
no capítulo sobre as modalidades de contrato e enquadre das prestações de
serviços. É óbvio que para os institucionalistas mais "profissionalistas" e
"especificistas" este ponto não significa problema algum enquanto já está
regulado por leis ou normas ditadas por organismos acadêmicos, trabalhistas
ou jurídicos externos ao Movimento. Já para alguns, se bem que esses
requisitos sejam indispensáveis, só se exige que suas condições sejam
rigorosamente autogestadas pelos coletivos de usuários, compartilhadas pelas
equipes intervenientes e tomadas por ambos como analisadores construídos a
serem cuidadosamente analisados. Entretanto, para as correntes puristas,
todo setting seria um aparato ou equipamento no qual se cristalizariam, como
tecnologia falsamente "neutra", as forças mais reativas do "especificismo" e
"profissionalismo". Afirmam que se toda intervenção está encaminhada a
propiciar a inventiva e a auto invenção dos coletivos, instituir um ponto de
partida contratual instauraria uma espécie de "repressão primária" inaugural
cujos conteúdos permaneceriam opacos para sempre aos "oficiantes" de tais
"cerimoniais". Constituir-se-ia assim um núcleo cego, e, portanto repetitivo,
que tenderia a reiterar-se como reprodução ou fabricação do mesmo. Em
outras palavras: da racionalidade, do poder, do lucro e do prestígio, do saber e
fazer disciplinar que dessa maneira ritual se funda. Essa limitação, extremada
no caso de abordagens assumidamente interiores às ciências "humanas" e
"sociais" (Psicologia Social, Sociologia das Organizações, Psicanálise
121
Aplicada etc.), existiria ainda nos convênios de serviços da Análise
Institucional "Clássica" ou da Psico-Socioanálise.
Via esta questão restrita do contrato e do enquadre, nos introduzimos
em uma contradição aguda e geral do Institucionalismo. Por uma parte,
recordemos a verdade de Perogrullo, de que a autogestão não se decreta nem
se concede, que não existe uma prescritiva para a invenção e que, como dizia
Bakunin, "só a liberdade engendra a liberdade". Por outra parte, tenhamos
presente que em quase todos os casos em que um institucionalista "é
chamado" a intervir, isso ocorre porque os coletivos não conseguem aproveitar
as condições de liberdade de que dispõem para produzir (inventar), com a
autogestão como meio e como fim, aquela liberdade que desejam.
Consideremos um coletivo que decidiu dar-se uma forma autogestiva de
funcionamento. Se a mesma é integral, ou seja, se compreende os aspectos
econômicos, políticos, "culturais" e libidinais de sua práxis (e enquanto a
tentativa estiver sendo exitosa), não se vê porque um companheiro
institucionalista iria ser convocado a participar. Pode acontecer que já pertença
"naturalmente" ao coletivo em questão, caso este que parece não criar
problema algum, porquanto seu saber e fazer serão entendidos como
pertencentes ao tesouro do conjunto e espontaneamente utilizados.
No limite, cabe perfeitamente colocar-se o modelo ideal de um coletivo
autogerido de analistas institucionais, o que tornaria difícil, ainda que não
impossível, imaginá-lo solicitando os serviços de colegas para catalisar uma
intervenção sobre si mesma.
Por outro lado, uma iniciativa autogerida sólida e assumida não teria por
que privar-se do emprego crítico de qualquer recurso tecnológico
contemporâneo. E claro que ninguém ignora a distância que separa as
aplicações da física à computação, por exemplo, da human engeneering. Mas
se aceita-se que o paradoxal "expert" em autogestão tem muito que dizer
sobre a implicação institucional dessas duas disciplinas (além da própria), não
se entende por que não apelar a ele em caso de necessidade ou ainda de
"luxo", e menos ainda porque seu trabalho não haveria de ser pago.
122
O que está em jogo neste ponto, como em qualquer dos outros, é uma
questão político-epistemológica de fundo no Institucionalismo. Deve-se ter
presente que o Movimento afirma, como um de seus mais essenciais
fundamentos, a convicção de que os coletivos das sociedades modernas são
muito mais vítimas que beneficiários da divisão técnico-social-libidinal do
trabalho. O vertiginoso avanço das ciências e técnicas nos últimos cem anos,
produtor de seus detentores, a casta privilegiada dos tecno burocratas, e
reforçador ao infinito de seus "padrões" dominantes – o Grande Capital e o
Estado administrador-gerente – submergiu os povos em um grau de
dependência inédito na História Universal. As comunidades, cujas
necessidades, demandas, hábitos de consumo e soluções são integralmente
produzidas pelas elites cientificistas e os equipamentos de poder, ficaram
substancialmente despossuídas de toda possibilidade de protagonismo no
conhecimento das determinações que as constringem, assim como de seu
levantamento pelos recursos que poderiam gerar por si mesmas. O único
recurso que restaria às populações seria aceitar as requisições do
participacionismo, quando não do colaboracionismo, que os centros oraculares
de poder se vêem obrigados a lançar, quando a mesma entropia de sua
arbitrária gestão os enfrenta com a ineficácia dos "planos" e a resistência
passiva dos usuários. Mas a certeza do Institucionalismo, acerca de que toda
desalienação deve passar atualmente pela recuperação do saber e fazer dos
coletivos sobre seu destino, não consegue especificar os modos e graus em
que a riqueza científico-tecnológica já produzida deve ser reapropriada pelos
movimentos autogestivos.
Félix Guattari, a quem se atribui fundamentadamente o título de criador
do termo "Análise Institucional" e de cuja vocação autogestiva se torna difícil
duvidar, escreveu: "A autogestão como consigna pode servir para qualquer
coisa. De Lapassade a De Gaulle, da CFDT aos anarquistas: Autogestão de
quê? Referir-se à autogestão em si, independentemente do contexto, é uma
mistificação. Converte-se em algo assim como um princípio moral, um solene
compromisso de que será em si mesmo, por si mesmo, que se administrará o
que é de si mesmo, de tal ou qual grupo ou empresa. A eficácia de tal consigna
depende, sem dúvida, de seu efeito de auto-sedução. A determinação, em
123
cada situação, do objeto institucional correspondente é um critério que deveria
permitir esclarecer a questão. A autogestão não pode ser senão uma consigna
de agitação transitória que, em definitivo, corre o risco de criar bastante
confusão se não estiver articulada numa perspectiva revolucionária coerente...
Se 'impugna', no imaginário, a hierarquia. A autogestão, tomada como
consigna política, não é um fim em si mesmo. O problema consiste em definir,
em cada nível de organização, o tipo de relação, de formas que devem
estimular-se, e o tipo de poder a instituir. A consigna da autogestão pode
converter-se em uma fachada se substitui massivamente as respostas
diferenciadas pelos níveis e setores diferentes em função de sua complexidade
real... Não há uma 'filosofia geral' da autogestão que a torne aplicável em todas
as partes e em toda situação... " ("Psicanálise e Transversalidade", Ed. Siglo
XXI, México).
Poder-se-ia argumentar que essa citação foi tomada de um texto antigo
e que a evolução posterior deste autor o conduziu cada vez mais ao
espontaneísmo radical e polimorfo que parece caracterizar o que me permitirei
chamar a modalidade mais extremista do Institucionalismo, quer dizer, a
"Esquizoanálise". De qualquer maneira, e considerando a complexidade do
desenvolvimento dessa concepção, assim como a infinita diversidade de suas
estratégias, ela não fez mais que contribuir para a pluralização da morfologia
das iniciativas autogestionárias e o questionamento da autogestão como valor
unitário e abstrato. Além do mais, não descarta o apoio de tecnologia alguma,
pelo contrário. Guattari é um de seus mais ardentes defensores. O conceito de
autogestão que acabamos de comentar sucintamente não é mais que um caso
de quantas categorias o Institucionalismo maneja. Nenhuma corrente, mesmo
as mais drásticas do Movimento, assume que seus termos teóricos não sejam
apenas instrumentos formais, mas também, no sentido mais forte do vocábulo,
valores.
Na tendência esquizoanalítica que antes mencionávamos, assim como
em muitas outras, os máximos valores promovidos predicam-se como:
Produção (oposto à Reprodução), Invenção (oposto à Fabricação), Afirmação
da Singularidade, Diferença, Potência, Ser do Devir etc. (opostos à
Generalidade, Negatividade, Identidade-Repetição, Reatividade, Ser como
124
Permanência etc.) A essas categorias podem-se acrescentar as de:
Agenciamento, Dispositivo, Desejo, Máquina de Guerra, Acontecimento,
Simulacro, que têm a ver com o Instituinte e os Bons Encontros (opostos às
Formações de Soberania, Objetivações das Idéias Puras ou Modelos, como
sinônimo do Instituído, dos Maus Encontros etc.). Toda a História Universal (a
das Formações Econômico-Sociais, Civilizações, Subjetividades e ainda a do
Pensamento e a da Natureza) estaria atravessada pela miscigenação entre
modos sedentários (territorializados) e modos nômades (desterritorializados)
do Ser e do Existir, pensáveis com os critérios mencionados anteriormente.
Uma análise genealógico-epistemológica de tais conceitos- valores seria
uma tarefa colossal e apaixonante, que supera por completo as fronteiras de
nossa capacidade e deste trabalho. Se os repassamos aqui é apenas para
referir-nos a certas confusões que sua polissemia propicia e que levam a que
sejam usados com fins e resultados totalmente alheios a seus propósitos e,
não poucas vezes, diametralmente contrários a eles.
Não estamos falando do arsenal nem das estratégias manifestas e
"molares" (como se chama na "Esquizoanálise") do Capital, do Estado, da Lei,
da Igreja, da Família ou da Corporação. Já a Teoria Crítica Clássica do
Marxismo e do Funcionalismo conseguiu que os aparatos, equipamentos e
manobras capitalistas, fascistas ou "democráticas" nos resultem cada vez mais
definidos e visíveis. O Institucionalismo (particularmente com os estudos de
Foucault, Deleuze, Guattari, Lourau e outros) contribuiu para detectar as
formas "micro" desta rede, tornando-a ostensiva.
Tampouco nos referimos aos célebres mecanismos de recaptura com os
quais o Sistema reincorpora à torrente da reprodução e do consumo, assim
como ao tabuleiro do registro e da dominação, as invenções dos movimentos
produtivo- libertários. Nós os temos muito em conta, pelo menos em tese, para
precisar invocá-las novamente neste contexto... a não ser que se considere
recapturas os efeitos de entorpecimento e antiprodução que se geram no seio
dos grupos, organizações e práticas institucionalistas: é a estes que queremos
nos referir.
No capítulo anterior esboçamos uma qualificação crítica das correntes
adaptacionistas e "pseudo-ultra" do espectro de posições dentro do
125
Institucionalismo e descrevemos algumas de suas características
contraproducentes. Talvez tenhamos deixado a impressão de que se trata de
setores patentemente definidos que seriam simples de localizar e até
personalizar. Desde logo, existem casos em que isso é possível, mas aqui nos
interessa destacar estes perfis como tendências imanentes a todos e a cada
um dos segmentos (incluída a subjetividade dos agentes) de qualquer corrente
institucionalista. Convém precisar com respeito a suas propostas teóricas e sua
atuação política e técnica, que da mesma forma que não cabe esperar nada de
uma "Filosofia Geral da Autogestão", tampouco corresponde fazer uma
"Demonologia Geral Abstrata" desses desvios. Naturalmente, não se trata de
fomentá-las nem de privilegiá-las, mas sim de permanecer abertos aos
inesperados efeitos revulsivo-produtivos que uma intervenção assim conduzida
pode causar, como notável independência dos princípios que a guiam e que,
eventualmente, pode fazê-la preferível a outras mais tecno-burocráticas, ou
mais dissolventes ainda. Ninguém deve escandalizar-se frente à aparente
contradição entre o postulado de um juízo preciso classificatório de uma
corrente e a recomendação de uma abertura expectante no tocante a tolerar
sua atuação e observar seus resultados. Basta compreender que as séries
opositivas de valores que antes enumeramos, cujos primeiros termos seriam
essenciais a uma estimativa institucionalista, não são nem axiomas, nem
evidências. Não são axiomas justamente porque o Institucionalismo insistiu,
desde diversos ângulos, em dessacralizar o tradicional estatuto da Teoria em
sua práxis, e mais ainda da Teoria baseada em parti pris formalizados. Pelo
contrário, insistiu em uma reivindicação da singularidade das práticas, para as
quais as Teorias funcionam apenas como uma frouxa orientação, quando não
se limitam a prover certa intelecção pos' facto.
Por outra parte, os valores mencionados não são evidências, pois
apesar da predileção do Institucionalismo pelos atos e transformações
concretas que sejam percebíveis como tais para técnicos e usuários, sem
misteriosas avaliações de seita, a amplitude e ambição que caracterizam a
utopia ativa fazem com que o Movimento distingua-se bastante de todo
positivismo, empirismo, pragmatismo ou "intuicionismo".
126
Como quer que seja, compreende-se que em um Movimento, no qual
não se pode apelar ao veredicto de uma Teoria específica nem ao de uma
evidência fulgurante, os conflitos e discordâncias serão dirimidos em função de
parâmetros marcadamente sutis, processuais e conjunturais. Tudo isso se
torna particularmente delicado, algo assim como um artesanato militante cujos
princípios são depuradamente contrários aos dominantes.
Como já expressamos mais acima, o Institucionalismo tem,
hipoteticamente, inúmeros aliados nos coletivos subjugados e explorados, mas
quem impera atual e universalmente (embora não sem contradições) são seus
poderosos e ubíquos adversários e inimigos. Procede enfatizar que o
Institucionalismo não é somente opositivo ao Capitalismo e suas formas
históricas econômico-político-culturais (tais como os totalitarismos de Estado
ou as democracias burguesas), mas também à maioria das tendências e
organizações críticas contrárias a esses sistemas. Por outro lado, ocupa similar
posição de antagonismo relativo em referência às sociedades "em transição"
ao Socialismo.
Frente a um panorama tão desfavorável, o Institucionalismo exige que
suas decisões de condução sejam, no possível, exaustivamente deliberadas e
exclusivamente consensuais, o que torna sua gestão insuperavelmente coesa
e homogeneamente revolucionária quanto às transformações de fundo e a
longo prazo. Não obstante, resulta notório que esse principismo sui generis,
que se nega a separar meios de fins, não facilita as resoluções e execuções
táticas imediatas, diante de contendedores tão ágeis, fortes e onipresentes. É
no campo dessas dificuldades (e de outras que antes mencionamos) que
recrudescem os conflitos, inerentes a todo Movimento, que os próprios
institucionalistas contribuíram tanto para sistematizar. Em algumas de suas
formas típicas esses conflitos podem ser descritos assim:
1) As pressões que o mercado competitivo exerce sobre as organizações
institucionalistas sobre-exigem o tempo e os esforços destinados à
implantação, sobrevivência e crescimento, digamos, vegetativo ou infra-
estrutural das iniciativas.
2) Os poderes oficiais, acadêmicos, corporativos ou simplesmente
profissionalistas desencadeiam campanhas repressivas, injuriosas ou
127
recuperadoras sobre a ação ou imagem dos institucionalistas. Entre essas
manobras destaca-se o que ironicamente podemos chamar
"desvanecimento e usurpação de patente". Tudo é "Análise Institucional",
logo, "nada o é".
3) Em conseqüência do dito nas alíneas 1 e 2, exacerba-se, no seio das
organizações e dos sujeitos-agentes institucionalistas, a designação de
recursos de todo tipo, para a luta pela obtenção, apropriação e "inflação" de
"identidade", "legalização", "legitimação", "reconhecimento", "autorização",
"prestígio", "solvência financeira" etc., valores estes que insensivelmente
fazem derivar até a luta pelo "poder", o "lucro", a "primazia" etc. Ou mesmo,
até um suposto contrário: o matiz "beneficente", "caritativo" ou "filantrópico"
das prestações de serviços.
4) Em função de tudo isso, começa um questionamento obsessivo quotidiano
da "ética" da práxis, das estratégias e táticas externas, assim como das
relações internas, de modo que estas se enrijecem estatutariamente, se
"assembleízam" deliberativamente ou se "vertiginizam" ativisticamente. O
organograma e o fluxograma internos se "piramidalizam" e se dispersam. O
regime das alianças tende a uma regressão filiativa. Em resumo:
"paranoidiza-se" a verticalidade, "perversifica-se" a horizontalidade e
"extravia-se" a transversalidade.
5) Fica preparado, então, o ambiente para que o Movimento degenere para as
diversas direções do vanguardismo segregacionista e do sectarismo
hipercrítico, em suas modalidades de protopaternalismo, fraternidade do terror
e, finalmente, a serialidade. No plano da produção de subjetividades, isso se
registra como uma edipianização geral com suas reterritorializações
neuróticas e "psicossomáticas", perversas ou psicóticas. Na terminologia
organizacional: amadurecem as condições para a eclosão de certas figuras
clássicas tais como a cisão de grupos dissidentes e a burocratização – que às
vezes derivam para a empresarização ou para uma morfologia política
convencional que, não por ser "menos pior", é a mais desejável: o centralismo
democrático. No nível grupal dessas configurações surgem as tradicionais
lideranças "autocráticas" ou laíssez-faíre e os papéis de "bode expiatório",
"sabotador" etc.
128
6) Em resumo: cedo ou tarde, tais deformações (que no espaço da
subjetividade podem reduzir-se aos efeitos do "narcisismo das pequenas
diferenças") conduzem, pelo caminho do famoso "individualismo pequeno
burguês", à atomização do Movimento. Este foi caracterizado por perfis que
talvez ainda não seja hora de descartar como obsoletos: o ativismo,
o voluntarismo, o imediatismo, o oportunismo, o utilitarismo, ou a corrupção
franca. Toda uma vasta produção bibliográfica atual tratou com maior ou
menor propriedade dessa problemática do individualismo moderno (L.
Rozitchner, D. Riesman, C. Lasch, R. Sennett, L. Dumont) e pós-moderno (D.
Bell, G. Lipovetsky, J. Baudrillard, P. Virilio e outros). Se os primeiros
enfatizam a fragmentação pulverizante e competitiva do Capitalismo
Industrial, os últimos sublinham a subjetivação indiferente e abúlica das
sociedades pós-industriais. Coincidem, no entanto, em constatar a
decadência da res publica e de quase todas as formas de solidariedade
orgânica "a la Weber, Durkheim ou Marx".
7) Em outro escrito resumimos esta tendência dos coletivos no conceito de
"compulsão à autodissolução" ("A Compulsão à Dissolução", publicações
internas do Ibrapsi, Rio, 1988). Seguimos acreditando que se trata de uma
força reativa, como diria Nietzsche, a ter muito em conta nas vicissitudes
do Movimento Institucionalista. A rigor, trata-se de uma curiosa
exacerbação do que a teoria postula como um requisito dos grupos
revolucionários, quer dizer, a capacidade deles de prever sua própria morte
e de decidir sua extinção quando deixam de ser estritamente necessários
para o processo transformador que lhes dá sentido.
8) Se se repassa o exposto, especialmente o referente à "compulsão à
autodissolução", os "desviantes ideológicos, organizacionais e libidinais" e
os vícios provenientes do uso exacerbado da autogestão como consigna
abstrata e descontextuada com finalidade de oposicionismo demagógico,
teremos uma imagem ilustrativa das deformações que emboscam o
Movimento Institucionalista.
9) Uma observação mais demorada que compare estas distorções com a
breve enumeração que fizemos dos valores promovidos pelo
Institucionalismo permitirá constatar que as primeiras são com frequência
129
(como diriam Deleuze e Guattari) "coartações" ou "acelerações ao infinito"
dos processos que os segundos infundem e orientam. Em outras palavras:
frequentemente os vícios do Movimento são uma caricatura de suas
virtudes.
10) Para fins de síntese e conclusão, digamos que se tivéssemos de
escolher alguma dessas virtudes do Movimento Institucionalista na qual se
apoiar para construir "o presente futuro de sua ilusão" (no sentido de êxito
da Utopia Ativa), seria a afirmação de sua positividade. Se se mostrou
indubitavelmente que tanto teórica quanto estratégica, tática e
tecnicamente o Institucionalismo é uma práxis transversal, heterogênea,
diversificada, intersticial e não – totalizável, qual pode ser sua condição
ontológica, axiológica e epistemológica?
Ontologicamente, em que pode consistir sua "identidade que não seja
viver na nebulosa das "puras diferenças", quer dizer no "simulacro" das
entidades estabelecidas para forçá-las até seu limite, para cavalgá-las,
incrementando seu pólo progressivo, para mimetizá-las, parodizá-las, infiltrá-
las, recortá-las por linhas clivagem bizarras, dividi-las até o infinito, refluidificá-
las, fazê-las proliferar, "alternativizar", diluir-se, rachar, etc.?
Axiologicamente, que ética pode reger esta atividade não enquadrável,
mais que tudo, um "modo de viver" que atravessa qualquer "forma de vida"
indiferente à "vida das formas", tentando exclusivamente propiciar que "nova
vida" se forme? Como enunciar os postulados dessa ética além de exortações
como "desejar o acontecimento" ou "intensificar a singularidade", segundo a
vontade de potência produtiva, em todo tempo e lugar? Uma ética que
prescreve gerar as próprias leis para que cada vez mais do real virtual se torne
atualizável.
Epistemologicamente, parece indiscutível que o Institucionalismo, longe
de orientar-se por critérios de Verdade, seja estes revelados, especulativos ou
experimentais, dedica-se a genealogizar suas formas históricas de produção
para expor manifestamente os poderes que as envolvem. Que outro recurso
lhe compete além da construção de "verossímeis", "simulações", "efeitos
especiais", indecidíveis, indemonstráveis, mas realizados? Como pensar o
130
radicalmente novo senão com uma "nova maneira de pensar", um pensamento
"sem fundamento", ou melhor, "não-fundamentalista"?
Quando sustentamos que a principal virtude do Institucionalismo deve
ser a afirmação da sua positividade, queremos indicar sua capacidade de
apropriar-se de todo e qualquer fragmento de código, discurso, organização,
estatuto ou prática, incluídas aí as específicas e profissionais, e remetê-las a
funcionar segundo se produzam, e a produzi-las segundo funcionem. Por
conseguinte, ao Institucionalismo não deve interessar muito a negatividade
crítica e a "superação" dos instituídos dentro do marco dos próprios cânones
dos mesmos. Melhor dedicar-se a pinçar neles cada elemento produtivo, tudo
que "abra", "possibilite" e "conecte", agenciá-la de acordo com a lógica de seus
"princípios" e intensificá-la até gerar um acontecimento.
Nada impede, pois, ao institucionalista, "devir" (que embora lúdica não
deixa de ser revolucionariamente) sociólogo, economista, psicanalista,
engenheiro de sistemas, profissional liberal ou funcionário, sempre que o faça
(como diriam Deleuze e Guattari) "à moda" de um bárbaro, um artista ou uma
criança.
Se isso está correto, boa parte dos pruridos, assim como os purismos e
desviacionismos internos ao Movimento que mais acima descrevíamos, é
passível de ser analisados, avaliados e resgatados para um fortalecimento
geral do Institucionalismo que precisa cada vez mais de dispositivos fortes,
amplos e numerosos.
GLOSSÁRIO
131
Elaborado por Gregorio F Baremblitt com a participação de Cibele
Ruas de MeIo
Advertências para a leitura deste Glossário
Devido ao caráter introdutório deste livro, este glossário tem por objetivo
apenas informar acerca da existência de alguns dos termos mais empregados
pelo Institucionalismo, bem como da diferente acepção que tomam outros,
advindos de áreas onde seu uso foi consagrado de forma diferente. Embora
este propósito não baste para explicar as limitações do texto, nós, os autores,
fazemos questão de explicitá-las mais detalhadamente:
1) A autoria das definições e suas referências bibliográficas não estão
citadas literalmente, pois esse requisito excederia as aspirações e
possibilidades deste livro.
2) Os autores crêem ter sido fiéis aos significados mais aceitos dos
termos, mas se responsabilizam por toda e qualquer omissão ou distorção que
as definições impliquem.
3) De forma coerente com o exposto anteriormente, e como desculpa
por qualquer injustiça cometida com a paternidade ou a precisão dos conceitos,
os autores renunciam a qualquer pretensão de originalidade, ou seja, de
propriedade intelectual dos mesmos.
4) E desnecessário dizer que este glossário, assim como o volume do
qual forma parte, não pretende haver dado conta nem da maioria dos autores
nem dos termos que, segundo a definição ampla dada do Movimento, deveriam
estar nele incluídos.
132
5) Em alguns casos, como por exemplo no da Esquizoanálise, os autores
estão cientes de haver incluído e definido termos que não estão
suficientemente esclarecidos. Espera-se que o leitor compreenda o dilema que
termos pertencentes a teorias tão vastas apresentam para os glossaristas: ou
se renuncia por completo a mencioná-las, o que empobreceria demais esta
leitura, que pretende ser panorâmica, ou se os inclui e define de uma forma
sumária e provisória. Esta última opção está destinada a motivar o leitor a
procurar a bibliografia de origem para entendê-los e aprofundá-los.
ACASO: modo de devir que se caracteriza por ser aleatório imprevisível e
incontrolável. Frequentemente se equipara este termo ao que é casual,
contingente, insólito etc., apesar de os sentidos destes vocábulos serem
variados. Nos paradigmas ou modelos que partem da ordem, o acaso é
considerado como uma vicissitude probabilisticamente possível, mas em geral
indesejável. Com o auge contemporâneo dos paradigmas ou modelos da"
desordem", este é considerado o modo de ser do devir dos processos, e se
procura maneiras de pensar e atuar que incluam a "desordem" e sua potência
produtiva. No Institucionalismo (ver Movimento Institucionalista *), de modo
geral, a" desordem" e o acaso que caracterizam os processos são
considerados fontes de produção* e essência do desejo*, geradores da
transformação e da novidade nos sistemas. Em um sentido estrito do
instituído*, o organizado*, o estabelecido tenta a repetição do mesmo (ver
Repetição*), são conservadores, enquanto o Institucionalismo se interessa por
propiciar a ação do instituinte*-organizante*, através da liberação do acaso-
radical, deflagrador da diferença, do novo absoluto.
ACONTECIMENTO: ato, processo e resultado da atividade afirmativa do
acaso*. É o momento de aparição do novo absoluto, da diferença e da
singularidade. Estes atos, processos e resultados, conseqüências de conexões
insólitas que escapam das constrições do instituído*-organizado*, estabelecido,
são o substrato de transformações de pequeno ou grande porte que
revolucionam a História* em todos os seus níveis e âmbitos. O acontecimento
atualiza as virtualidades, cuja essência não coincide com as possibilidades. O
virtual não existe, mas faz parte da realidade.
133
ADAPTAÇÃO: termo tomado da Biologia Evolucionista segundo o qual um
órgão modifica-se, tornando-se mais apto para sua função. Usa-se também
para referir-se às mudanças que uma espécie animal adota para sobreviver,
como reação a diversos fatores que obstaculizam ou favorecem seu
desenvolvimento. Nas chamadas Ciências Humanas, essa noção foi
empregada com frequência, mas é muito criticada por evocar uma
transformação dependente, apesar de que frequentem ente se lhe adicione o
qualificativo "ativa". No Institucionalismo*, o vocábulo adaptação costuma ser
sinônimo de adequação ao instituído* – organizado* e implica acomodação.
AGENCIAMENTO OU DISPOSITIVO: é uma montagem ou artifício
produtor de inovações que gera acontecimentos* e devires, atualiza
virtualidades e inventa o novo radical. Em um dispositivo, a meta a alcançar e o
processo que a gera são imanentes (ver imanência*) entre si. Um dispositivo
compõe-se de uma máquina semiótica e uma pragmática e se integra
conectando elementos e forças (multiplicidades, singularidades, intensidades)
heterogêneos que ignoram os limites formalmente constituídos das entidades
molares (estratos, territórios, instituídos* etc.). Os dispositivos, geradores da
diferença absoluta, produzem realidades alternativas e revolucionárias que
transformam o horizonte considerado do real, do possível e do impossível.
AGENTE: indivíduo-pessoa-sujeito protagonista das práticas* que se
desenvolvem no complexo instituído* – organizado* – estabelecido e seus
equipamentos*. Entendido como produção de subjetivação*, o agente pode ser
peça especialmente gerada para formar parte de um dispositivo (ver
agenciamento ou dispositivo*) transformador. De todas as maneiras, o agente,
no Institucionalismo, funciona mais como engrenagem ou efeito dos
processos, e não como causa dos mesmos.
ALIENAÇÃO: no sentido filosófico, designa um processo pelo qual um ser
perde sua identidade ou seus atributos essenciais, "alienando-se" ou
"transbordando-se" no outro, ou em um "fora de si". No Institucionalismo a
significação deste termo é próxima à da Sociologia: os homens, ::''TUPOS ou
classes sociais alienam suas potencialidades, atribuindo-as a entidades
sobrenaturais (os Deuses), como disse Feuerbach, ou a uma classe social
que, por ser a proprietária dos meios de produção, se apropria do valor da
134
força de trabalho não remunerada da classe produtora. Em geral isso lhe
permite também acumular poder político e prestígio.
ALTERNATIVA: designa-se assim as ideias, pessoas, organizações,
movimentos e práticas que supõem uma opção para seus simétricos oficiais,
reconhecidos e consagrados. Se bem as propostas alternativas possam reunir
a condição de opositoras, dissidentes e marginais, não chegam a ser
consideradas clandestinas, subversivas ou revolucionárias. As forças e
entidades dominantes desaprovam ou desqualificam as alternativas, mas em
geral as toleram ou as ignoram. Excepcionalmente, as recuperam.
ANALISADOR ARTIFICIAL OU CONSTRUÍDO: dispositivo* inventado e
implantado pelos analistas institucionais para propiciar a explicitação dos
conflitos e sua resolução. Para tal fim, pode-se valer de qualquer recurso
(procedimentos artísticos, políticos, dramáticos, científicos etc.), qualquer
montagem que torne manifesto o jogo de forças, os desejos, interesses e
fantasmas dos segmentos organizacionais.
ANALISADOR "ESPONTÂNEO" OU "NATURAL': analisador de fato,
produzido" espontaneamente" pela própria vida histórico-social-libidinal e
natural, como resultado de suas determinações e da sua margem de liberdade.
ANÁLISE DA DEMANDA: é a análise e deciframento que se faz do pedido de
intervenção por parte de uma organização. É o primeiro e um importante passo
para que se comece a compreender institucionalmente a dinâmica dessa
organização. É o material de acesso inicial que já contém valiosos aspectos
conscientes, manifestos, deliberados, assim como todo um filâo de aspectos
inconscientes e não-ditos* que remetem a um esboço inicial da conflitiva e
problemática da organização solicitante. A demanda tem conotação especial
para o lnstitucionalismo, particularmente a de que é produzida pela oferta (ver
Análise de Oferta") de bens e serviços.
ANÁLISE DA IMPLICAÇÃO: a implicação define-se como o processo que
ocorre na organização analítica, em sua equipe, como resultado de seu
contato com a organização analisada. É um termo que tem certa semelhança
com o conceito psicanalítico de contratransferência (reaçâo – consciente e
inconsciente – que o material do paciente produz no analista), só que no
lnstitucionalismo a implicação não é um processo apenas psíquico, nem
135
inconsciente, mas de uma materialidade múltipla e variada, complexa e
sobredeterminada (ver Sobredeterminação"). É ao mesmo tempo, um
processo político, econômico, social, etnológico heterogêneo que deve ser
examinado em todas as suas dimensões. Por outra parte, não é apenas uma
reação da equipe interventora ao contato com o objeto de análise. Ela pode
até ser prévia a qualquer contato. Não começa no "cliente" e é, isso sim, uma
interinfluência recíproca, simultânea, que faz parte integrante do processo de
análise da organização. Análise de implicação é a compreensão da interação,
da interpenetração dessas duas organizações, enfatizando a parte que cabe à
intervinda.
ANÁLISE DA OFERTA: é um exercício de auto-análise" ao qual a organização
analítica tem de se submeter para deslindar sua implicação no tocante à
geração da demanda. A publicidade, a divulgação (científica ou não), a
proposta direta u indireta dos serviços da organização analítica têm
necessariamente uma relação de causalidade (geração ou modulação) no
referente à formulação da demanda de seus serviços. A toda oferta de
prestação de serviços subjaz a duvidosa mensagem que consiste na
suposição de se saber e se ter o que o ou tro precisa, que por sua vez não
sabe que não tem e não entende o que é porque é complexo, sutil, técnico. A
análise da demanda* deve estar necessariamente articulada com a análise da
produção desta demanda – ou seja, a análise da oferta, que forma parte da
implicação dos interventores.
ANÁLISE INSTlTUClONAL: seus fundadores e principais expoentes são G.
Lapassade e R. Lourau, apesar de a denominação ter sido criada por F.
Guattari. Esta corrente institucionalista, uma das mais coerentes e
empenhadas, reconhece como seus antecessores a Psico-Sociologia, a
Dinâmica de Grupos, a Psicoterapia e a Pedagogia lnstitucionais, assim como
a Socioanálise de Van Bockstaele. Contudo, a Análise lnstitucional superou
amplamente esses precursores no sentido de uma radicalização de suas
teorias, modos de intervenção e objetivos últimos. Impossível resumir aqui
suas contribuições, bastará dizer que se propõe a propiciar os processos auto-
analíticos (ver Auto-Análise*) e autogestivos (ver Autogestão*) circunscritos (se
136
for o caso), mas tendendo sempre a que se expandam até conseguir um
alcance generalizado e revolucionário.
O lnstitucionalismo deve a esta orientação conceitos tais como insti tuin te*
instituído", institucionalização, analisadores históricos e construídos",
demanda-encargo*, efeitos" Mulhman, Lukács etc. A Análise lnstitucional
insistiu particularmente na análise da implicação*, ou seja, nas resistências
econômico-político-ideológico-libidinais dos agentes analistas aos processos
autogestivos durante as intervenções (crítica da Sociologia abstrata e
"neutra"). A Análise Institucional considera a prática de seus agentes como
uma militância, e propõe para eles o perfil de um intelectual implicado, à
diferença do intelectual orgânico (partidário) ou engajado (freqüentemente um
tanto especulativo). Como dispositivo* de intervenção, inclina-se pela
Assembléia Geral Permanente, na qual os não-ditos* institucionais são
forçados a expressar-se a té suas últimas conseqüências transformadoras.
ANSIEDADES: correntes institucionalistas, tais como as psicologias
institucionais de base psicanalítica kleiniana (Elliot Jacques, Pichon Rivière,
Bleger e outros), subscrevem, de diversas formas, a tese de que as
organizações são" sistemas de defesa contra a ansiedade". O conceito de
ansiedade deve ser entendido, nessas teorias, como similar ao cunhado por
Melanie Klein para sua concepção da personalidade psíquica, particularmente
para sua descrição do "mundo interno" ou "self inconsciente" dos sujeitos. As
posições esquizoparanóides e depressivas, que são as configurações que
adquirem os variados elementos que compõem o self (pulsões, objetivos,
defesas, fantasias) no curso do desenvolvimento, são acompanhadas de
vivências características denom.inadas ansiedades. Assim se fala de
ansiedades paranóides, depressivas, confusionais etc., sendo que as defesas
que se arbitram contra elas (dissociação, projeção, idealização, negação etc.)
podem tomar os elementos institucionais e organizacionais (contratos,
organograma, regulamentos) como suportes.
ANTlPEDAGOGIA: a partir das idéias questionadoras de Rousseau, diversos
pedagogos procuraram reformar, liberalizar ou revolucionar as instituições" e
sistemas de ensino. Métodos como os de Montessori, Pestalozzi, Freinet e
outros deram origem a várias tentativas de desburocratizar (ver – cracias') e
137
tornar a Pedagogia menos autoritária, dando aos alunos um maior ou menor
protagonismo e liberdade na gesti10 do processo pedagógico. Tais tentativas
replicam, ao nível da aprendizagem, os exemplos anarquistas, marxistas e
liberais de democratizaçiío (ver cracias *) ou franca libertação do trabalho.
Segundo sua diferente inspiração e seu grau de radicalidade, surgiram as
experiências de Makarenko na União Soviética, o Plano Dalton e as propostas
de Lewin e Rogers nos Estados Unidos, assim como a Pedagogia Institucional
de F Oury, A. Vasquez, M. Labat, e outros, na França. Generalizando, pode-se
dizer que são tentativas antipedagógicas que pretendem modificar ou destruir
a instituição do ensino, substituindo-a por opções participativas ou co-gestivas
(ver Co- Gestão*). Entretanto, é possível que seja a proposta de G. Lapassade
e R. Lourau de uma autogestão* pedagógica (primeiro parcialmente, como
contra-instituição, e depois generalizada) a forma mais conspícua de
antipedagogia que se possa conceber, na qual os alunos assumem
integralmente o curso da institucionalização da aprendizagem.
ANTIPRODUÇÃO: as potências produtivas de todo tipo – naturais, psíquicas e
sociais (em especial as instituintes*) –, são capturadas pelas grandes
entidades de controle e reprodução* (por exemplo: o Estado, o Capital etc.) e
suas forças são voltadas contra si mesmas, levando-as à repetição estéril ou
autodestruição. As potências singulares, que o sistema dominante não está em
condições de assimilar para transformar em bens, serviços ou valores
alienados (mercadorias) e incorporá-las à sua lógica, são alvos dos
mecanismos repressivos que eliminam mais ou menos deliberadamente as que
não conseguem capturar.
ANTIPSIQU1ATRIA: nascido junto à grande corrente de crítica cultural e
politica dos anos 60 nos Estados Unidos e Europa, este Movimento, mais ou
me nos radical, de impugnação do objeto (doença mental) assim como das
teorias e métodos da Psiquiatria e da Psicopatologia, impulsionou uma
profunda revolução nesse campo. Seus máximos representantes – Thomas
Szasz e I. Goffman nos Estados Unidos, Michel Foucault, Félix Guattari e R.
Castel na França, Ronald Laing e D. Cooper na Inglaterra, F. Basaglia na Itália
e E. Pichon Rivière na Argentina – insistiram na idéia de que as qualificações"
científicas" da loucura e da parafernália de recursos variavelmente violentos
138
destinados a tratá-la não seriam senão eufemismos da alienação política,
econômica e cultural da sociedade moderna. A maioria desses autores, que
estiveram reunidos em um Congresso no Rio de Janeiro, em 1978, foram
mentores ou participantes do Movimento Institucionalista *.
ATRAVESSAMENTO: a rede social do instituído*-organizado* estabelecido,
cuja função prevalente é a reprodução do sistema, atua em conjunto. Cada
uma dessas entidades opera na outra, pela outra, para a outra, desde a outra.
Esse entrelaçamento, interpenetração e articulação de orientação
conservadora, serve à exploração*, dominação* e mistificação*,
apresentando-as como necessárias e benéficas.
AUTOANÁLISE: processo de produção e re-apropriação, por parte dos
coletivos autogestionários (ver Autogestão*), de um saber acerca de si
mesmos, suas necessidades, desejos, demandas, problemas, soluções e
limites. Esse saber se acha em geral apagado, desqualificado e subordinado
pelos saberes científico-disciplinários, que não só estão em boa medida a
serviço das entidades dominantes (Estado, CapitaL Raça ete.), como também
operam com critérios de Verdade e Eficiência, que são imanentes aos valores
de tais entidades. A auto-análise possibilita aos coletivos o conhecimento e a
enunciação das causas de sua alienação*.
AUTO DISSOLUÇÃO: O lnstitucionalismo* enfatiza que os grupos,
organizações* e movimentos instituintes* (em outra terminologia:
revolucionário-produtivo-desejantes) devem constituir morfologias sociais
estritamente funcionais, subordinadas e coerentes com suas utopias ativas*.
Um dispositivo* instituinte ou um grupo-sujeito*, protagonista de um processo
transformador, deve ter sempre presente sua natureza transitória e "finita". Tal
consciência é precondição para seu bom funcionamento, que implica conjurar
os riscos de cristalização do instituído. Quando um conjunto instituinte cumpriu
todos os seus objetivos, ou quando constata que não está mais conseguindo
isso com a "identidade" que se deu, deve ser capaz de autodissolver-se para
não se perpetuar como uma finalidade em si mesma.
AUTOGESTÃO: é, ao mesmo tempo, o processo e o resultado da organização
independente que os coletivos se dão pora gerenciar sua vida. As
comunidades instituem-se, organizam-se e se estabelecem de maneiras livres
139
e originais, dando-se os dispositivos* necessários para gerenciar suos
condições e lnodos de existência. Todo processo instituinte*-organizante*
implica uma certa divisão técnica do trabalho, assim como alguma
especialização nas operações de planejamento, decisão e execução. Essas
diferenças podem implicar hierarquias, mas as mesmas não envolvem escalas
de poder. Os conhecimentos essenciais são compartilhados e as decisões
importantes tomadas coletivamente. As hierarquias correspondem a diferenças
de potência, peculiaridades e capacidades produtivas que visam sempre ser
funcionais para a vontade comunitária.
CAMPO DE ANÁLISE: é o perímetro escolhido como objeto para aplicar o
aparelho conceitual disponível destinado a entender o campo de intervenção*:
a inteligência acerca de como ele funciona, a articulação de suas
determinações, a forma como são gerados seus efeitos etc. Este aparelho
conceitual pode constituir-se de materiais teóricos muito heterogêneos,
dependendo da sua eficiência para fazer a "leitura" do campo de intervenção*.
O campo de análise não está delimitado segundo um perímetro que coincida
com a definição empírica ou "oficial" (instituída e organizada) de um segmento
social. Quanto mais amplo o campo de análise, mais possibilidades existem de
entendimento do campo de intervenção, por mais aparentemente pequeno que
este seja.
CAMPO DE INTERVENÇÃO: é o perímetro que delimitará o espaço dentro do
qual se planejarão e executarão estratégias *, logísticas *, táticas * e técnicas *
que, por sua vez, deverão operar neste âmbito específico para transformá-lo
de acordo com as metas propostas. Está em estreita dependência do campo
de análise*, desde o qual será compreendido, pensado. Só se intervém
quando se compreende, sendo que posteriormente se compreende à medida
que se intervém. O campo de intervenção pode ser muito amplo ou restrito a
um estabelecimento ou organização (escola, sindicato, empresa etc.).
CAPTURA E RECUPERAÇÃO: o instituído*-organizado*-estabelecido, em
especial o Estado, o grande Capital, as classes e grupos dominantes,
procuram detectar, classificar e apropriar-se de toda e qualquer singularidade
e força produ tiva. Quando o conseguem, as incorporam à lógica acumulativa
do Sistema, fundamentalmente transformando as linhas de fuga
140
revolucionário-desejantes e seus produtos (ver Desejo*) em mercadorias.
Quando o aparato de captura e recuperação falha, as mencionadas entidades
operam de forma repressiva ou supressiva, inibindo ou destruindo as forças
produtivas, em especial as instituintes*.
CLANDESTINIDADE: remete a modos de existência social cuja característica
principal é serem sigilosos, ocultos ou secretos. As idéias, pessoas,
organizações ou movimentos deste tipo podem somar a condição de
opositores, dissidentes ou marginais, mas sua característica essencial consiste
em que sua relação delinqüencial, subversiva ou revolucionária com a ordem
dominante os torna indesejáveis, ameaçadores ou francamente perigosos para
o instituído-organizado. Reciprocamente, a clandestinidade costuma ser
condição de possibilidade de existência para idéias ou segmentos sociais
frente às forças e recursos repressivos ou eliminatórios que o sistema no qual
atuam pode mobilizar contra eles.
CLASSE INSTlTUCIONAL: a Sociopsicanálise de G. Mendel designa o
estatuto do conjunto de agentes que são igualmente responsáveis por uma
etapa ou um nível dentro do processo de produção de um produto ou serviço.
Tal participação fica evidenciada quando a classe institucional se retira do
trabalho, interrompendo o curso do processo produtivo em um ponto
determinado. As classes institucionais de uma organização* são despossuídas
da parte do poder* que lhes corresponde pela classe suprajacente e
despossuem, por sua vez, à classe subjacente. A classe institucional é o
segmento organizacional indicado como objeto de intervenção
sociopsicanalítica e não se deve misturar seus integrantes com os menlbros de
outros segmentos.
CO-GESTAO: dá-se este nome a um tipo de gestão organizacional na qual
diferentes segmentos – por exemplo, de um estabelecimento – cuja posição
formal no organograma implica hierarquias e poderes diversos e, portanto,
relações de subordinação em última instância, elaboram um pacto ou acordo
de trabalho ou administração conjunto para realizar uma tarefa, sem mnunciar
às categorias antes mencionadas.
COLABORACIONISMO: costuma-se denominar assim as atitudes e
comportamentos de setores oprimidos, explorados e mistificados que prestam
141
subserviência, apoio ou cumplicidade às forças ou t'ntidades que os
subordinam ou submetem.
COMUNIDADE: este temo é usado com uma grande variedade de sentidos
nas ciências naturais e humanas. Em geral refere-se a um conjunto de
indivíduos (pequeno, médio ou grande) que está vinculado por algum traço,
característica ou atividade compartilhada. Esta peculiaridade pode ser de
espécie, gênero, classe, categoria, sexo, idade, raça, lugar, tempo, valores etc.
O importante é que atribui uma singularidade e/ou identidade, assumida ou
não pelos integrantes que, de uma forma ou de outra, lhes confere uma certa
coesão e solidariedade. Para a Sociologia Clássica, é fundamental que essa
solidariedade seja orgânica (organizada, diversifica da, hierarquizada e
articulada), e não apenas mecânica. J. P. Sartre distingue uma associação
serial ou aglutinada da resultante de uma fraternidade do terror, e esta de uma
em processo de institucionalização que se vai fazendo a si mesmo. Para o
lnstitucionalismo, é essencial que as unificações e totalizações das
comunidades sejam invenções provisórias e mutantes, subordinadas às forças
instituintes* e organizantes'" durante o curso da institucionalização.
CONFLITO: entendendo por conflito a oposição e luta dos contrários (dito em
um sentido muito amplo), para algumas tendências do Institucionalismo a
contradição é a fonte de todos os transtomos e, ao mesmo tempo, o único
motor da mudança nos sujeitos, organizações*, movimentos, sociedades* e
civilizações. Todas as forças, estruturas, instâncias e mecanismos que
compõem a realidade biossocial-libidinal funcionam de forma conflitiva, e da
cristalização ou da resolução de sua dialética * depende o destino produtivo,
reprodutivo ou antiprodutivo (ver Produção*,
Reprodução* e Antiprodução*) dos processos históricos.
Essa formulação recolhe, entre tantas outras origens teóricas, Os princípios e
fundamentos da Psicanálise e do Materialismo Histórico e Dialético, até incluir
certas raízes nietzschianas e existencialistas do pensamento institucionalista.
Os conflitos entre instituinte* – instituído*, centro-periferia, exploradores-
explorados, dominadores-dominados são apenas alguns exemplos da série
interminável que se pode imaginar. Contudo, para outras correntes, os
conflitos, sua paralisação dilemática ou sua resolução dialética não são do
142
nível determinante do real, porque a substância da realidade é a pura
afirmação produtivo-desejante.
CÓPIAS: dentro do que interessa ao Institucionalismo, as cópias (segundo o
pensamento platônico) são as almas que, havendo tido, nos tempos míticos,
uma proximidade, imagem e semelhança com as Idéias Puras* ou Modelos,
perderam a semelhança e só conservaram a imagem, esquecendo se dessa
"queda". A maiêutica socrática consistiria em um procedimento pelo qual,
mediante o raciocínio, se conseguiria que as almas recuperassem a memória,
e com ela o acesso às Idéias Puras. O método platônico da clivisão em
gêneros, espécies (etec.) seria uma forma de seleção para cliferenciar as
"boas" das "más" cópias, sendo que as primeiras estariam aptas para
recuperar sua semelhança com as Idéias Puras. As cópias são sinônimos de
"representações". Para a interpretação institucionalista desse pensamento, ver
Idéias puras*.
-CRACIAS: ARISTOCRACIA, BUROCRACIA, LOGOCRAClA, SEXOCRACIA,
TEOCRACIA, TECNOCRACIA: optamos por agrupar e tratar em conjunto
estes termos porque, com a finalidade de explicitar seu interesse para o
Institucionalismo, esta abordagem permitirá resumir a exposição. O sufixo
cracia significa governo de ou poder de: aristo (elite supostamente integrada
pelos melhores membros de uma sociedade, cuja condição de superioridade
está dada por uma linhagem hereditária); buro (categoria ou classe que se
ocupa da administração, com freqüência supostamente "científica" das
organizações); tecno (categoria ou classe que detém e exercita um saber
habitualmente de cunho científico); pluto (alude a classes ou grupos
economicamente opulentos); logo (alude aos possuidores da razão como
saber discursivo); sexo (alude a uma definição sexual em detrimento das
outras);e teo (alude aos supostos representantes da clivindade ou à divindade
mesma, "encarnada" em um indivíduo ou grupo). Aqui vale acrescentar a
palavra "nepotismo", em que nepo, em sentido restrito, alude aos filhos
naturais dos Papas, eufemisticamente denominados "sobrinhos". Em sua
acepção ampla, refere-se à designação de parentes de um governante para
cargos oficiais.
143
Para o Institucionalismo, que postula o autogoverno dos coletivos (sistema que
só admite lideranças provisórias baseadas no afeto, prestígio e
exemplaridade), nenhuma dessas condições e seus respectivos governos são
aceitáveis, configurando vícios de condução que são, por sua vez, causa e
efeito da impossibilidade ou incapacidade para uma democracia au togestiva.
CRISE: em sua origem grega e segundo os campos de atividade nos quais era
empregada, a palavra krisis significava: interpretação (por exemplo, dos
sonhos), seleção (por exemplo, das vítimas de um sacrifício), juízo (por
exemplo, procedimento para chegar a um veredicto), momento crucial das
vicissitudes ou do metabolé (por exemplo, cena de apogeu numa tragédia),
fase de definição, no sentido da melhoria ou da piora do curso de uma
enfermidade. Provavelmente por extensão da noção médica, o conceito de
crise aplica-se a processos de qualquer natureza, nos quais, dentro de um
andamento relativamente regular, chega-se a um ponto de desequilíbrio
(desorganização, desordem) mais ou menos imprevisível na sua aparição e em
seu desenlace. Esse estado de crise ocorre, segundo alguns, por caducidade
dos mecanismos e recursos vigentes, devido a seu desgaste e/ ou à incidência
de forças e acontecimentos positivos ou negativos acidentais, contingentes,
circunstanciais, extraordinários ete. As crises são etapas de mudanças para o
bem ou para o mal, mas em geral aceleradas e radicais. Alguns atribuem as
crises à exacerbação das contradições de um sistema ou ao acúmulo de
mudanças quantitativas que desembocam em uma transformação qualitativa.
Outros sustentam que são períodos ou espaços de transição entre tempos e
lugares precisos e conhecidos, enquanto há os que pensam que se trata dos
prolegômenos do surgimento do absolutamente novo.
Para certos autores (por exemplo, Marx), o Capitalismo é um sistema histórico
que existe em crise permanente, posto que incorporou essa condição a seu
modo normal de transcurso. Para o Institucionalismo, tanto enquanto campo de
análise* como de intervenção (ver campo de intervenção*), os estados de crise
são considerados fecundos, na medida em que envolvem a falência do
instituído* – organizado* e a emergência do instituinte* – organizante* no seio
da "desordem criadora". Alguns institucionalistas, como Lapassade, tentam
intervenções deflagradoras de crise grupal ou organizacional (provocação
144
institucional), e a maioria prefere intervir nos momentos críticos, melhor ainda
se generalizados a grandes segmentos ou à sociedade inteira.
DEFESAS: para as correntes institucionalistas tais como as psicologias
institucionais de base psicanalítica kleiniana (Elliot Jacques, Pichon Rivière,
Bleger e outros), as posições esquizoparanóides e depressivas – as
configurações adquiridas pelos variados elementos que compõem o self
(pulsões, objetos, fantasmas) no curso do desenvolvimento-, vêm
acompanhadas de vivências características denominadas ansiedades **. Assim
se fala de ansiedades paranóides, depressivas, confusionais etc. Os
mecanismos que se erguem contra elas (dissociação, projeção, idealização,
negação etc.) denominam-se defesas e podem tomar como suportes os
elementos institucionais e organizacionais (contratos, organograma,
regulamentos etc.). Por isso se diz que as instituições são "sistemas de defesa
contra a ansiedade*". Descritivamente falando, isso explica os quadros
psicóticos que muitos agentes* desenvolvem quando suas organizações
entram em crise ou os expulsam.
DESEJO: a Psicanálise demonstrou que os sujeitos psíquicos estão
determinados por uma força inconsciente sobre a qual não têm conhecimento
nem controle voluntário. Essa força se origina, por sua vez, das pulsões, e
tende à busca do prazer e à evitação do desprazer. A Psicanálise postula que
o desejo é uma força do tipo conservador ou repetitivo, que procura restituir
um estado arcaico perdido, prévio à constituição do sujeito: o narcisismo.
Durante esses incessantes ensaios, o desejo, que carece do objeto real, se
"satisfaz" ou "realiza" animando fantasmas (montagens de representações
imaginárias inconscientes que transcorrem em "outra cena"). Em última
instância, o desejo persegue o gozo absoluto, quer dizer, sua própria extinção
definitiva, na qual se encontra com a pulsão de morte. O Complexo de
Castração, que instaura a lei no psiquismo, constitui o desejo, ao mesmo
tempo em que lhe permite simbolizar-se e servir aos objetivos de vida. O
desejo, para a Psicanálise, gesta-se no seio do Complexo de Édipo; no início
do desenvolvimento, atua exclusivamente na dramática da vida familiar, e só
posteriormente induz os sujeitos psíquicos a entrarem nos processos sociais
amplos.
145
Algumas correntes do Institucionalismo compartilham a definição psicanalítica
de desejo (Sociopsicanálise). Para outras (por exemplo, a Esquizoanálise), o
desejo é essencial e imanentemente produtivo, gera e é gerado no processo
mesmo de invenção, metamorfose ou "criação" do novo. Sua essência não é
exclusivamente psíquica, pois participa de todo o real. Corresponde
aproximadamente ao que Nietzsche denominou "Vontade de Potência", ao que
Espinoza chamava "Substância" e os estóicos "Acontecimento Incorporal", que
resulta do encontro entre os corpos (devir). Igualmente o desejo (assim
entendido) tem afinidade com o "virtual" bergsoniano, com as "quantidades
intensivas" em Kant e com as "impressões intensivas" em Hume. Esse desejo
atua em todo e qualquer âmbito do real, não carece do objeto, ignora a lei e
não precisa ser simbolizado porque se processa sempre de fomla
inconsciente. Não tende à morte porque constitui a essência da vida como
"Eterno Retomo das Diferenças Absolutas". Assim entendido, o desejo
também está parcialmente submetido a entidades repressivas, mas estas não
são exclusivamente psíquicas, e sim um complexo conjunto ao mesmo tempo
político, econômico, comunicacional etc. Na Esquizoanálise de Deleuze e
Guattari, o desejo é imanente à produção, daí o conceito de produção
desejante.
DESVIANTE: nas organizações e movimentos podem surgir sujeitos, grupos ou
tendências que questionam o instituído* – organizado, através de diversos
discursos, atitudes e comportamentos. Protagonizam, assim, um desvio ou
afastamento da linha condutora hegemônica da organização. Sua dissidência*
ou discordância pode ser mais ou menos enérgica, mas em geral é
predominantemente reativa, quer dizer, se bem impugna e denuncia os defeitos
do instituído-organizado, não consegue fazê-lo com consciência suficiente e
estratégia adequada para gerar uma real alternativa ou uma mudança
profunda. O segmento desviante pode ser ideológico (quando propõe uma
divergência ou oposição teórica ou dou trinária), organizacional (quando altera
a estrutura ou a dinâmica do organograma e fluxograma) ou libidinal (quando
apresenta opções na definição sexual ou outras vinculadas a eleições
idiossincráticas em torno do prazer, da moral etc.). A proposta e ação desviante
podem, eventualmente, tornar-se o gérmen de um processo produtivo-
desejante-revolucionário.
146
DIALÉTICA: é um método para pensar e discutir as realidades materiais e
metafísicas cujas diferentes versões estão presentes em todo saber ocidental,
desde a Antiguidade até a época contemporânea. É um pensamento que
concebe a realidade material e a espiritual em permanente movimento e
transformação, devido a sua essência intrinsecamente contraditória. Opõe se a
todas as concepções que supõem o ser como estático e invariável, sendo as
mudanças que se apresentam apenas superficiais, ilusórias ou aparentes. A
dialética atinge sua maior sistematização com Hegel, que a postula como
método para pensar o movimento do "Espírito Absoluto", essência de todo o
real. Karl Marx, o fundador do Materialismo Dialético e Histórico, de alguma
forma conserva a concepção hegeliana do movimento dialético, mas o atribui à
matéria em suas várias qualidades, e não ao espírito.
A dialética sustenta que o movimento é regido por três leis: 1) Negação da
negação; 2) Passagem da quantidade à qualidade; e 3) Coexistência dos
opostos em cada unidade. Isso implica uma total refutação das leis da Lógica
Formal Clássica, pois os princípios de identidade, contradição e terceiro
excluído perdem vigência. Outro aspecto importante da dialética refere-se aos
denominados "momentos" de análise da realidade, que pode ser examinada
como "universal", "geral, particular" e "singular". Como nas leis do devir, cada
momento nega o anterior, o supera e ao mesmo tempo o conserva. O
conhecimento da essência de toda e qualquer realidade circunscrita deve ter
em conta esse "trabalho do negativo" que não é diretamente apreendido pela
consciência.
Algumas correntes do Institucionalismo incorporam recursos da concepção
dialética (Análise Institucional*), outras entendem que a dialética ainda é uma
maneira conservadora de pensar e conceber o real (a negação da negação
supera, mas também conserva o superado), postulando, em troca, uma ideia
do ser como puro devir no qual retornam exclusivamente as diferenças
(Esquizoanálise*).
DISPOSITIVO: ver Agenciamento.
DISSIDÊNCIA: costuma-se empregar este termo para referir-se à posição de
setores discordantes ou divergentes de uma organização ou movimento, sendo
que tal divergência afeta principalmente a linha teólica ou ideológica. As
147
tendências dissidentes podem manter-se no interior da organização-
movimento ou separar-se dele.
DISSOCIAÇÃO INSTRUMENTAL: denomina-se assim na Psicanálise, no
Grupalismo e no Institucionalismo a operação pela qual o analista, a equipe
interveniente ou outros segmentos organizacionais conseguem
simultaneamente protagonizar os processos plenamente implicados neles e
distanciar-se o suficiente para poder analisá-los e compreendê-los (ver Análise
da Implicação*).
DISTORÇÃO DA DEMANDA: alguns institucionalistas consideram que certas
demandas de intervenção, que expressam claramente uma falta de vontade
Instituinte*, ou mais ainda, um apreciável encargo repressivo ou ligeiramente
reformista, podem ser atendidas. O analista inicia a análise e a intervenção
sobre essas bases, confiando em que durante o curso do processo poderá
reverter o equilíbrio de forças e encaminhar o andamento em direção à
autogestão* e à autoanálise * .
DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO: todo processo de produção,
particularmente de bens materiais e serviços, exige um trabalho, e este, por
sua vez, consome força de trabalho. Os processos de trabalho complexos, em
todas as sociedades da História e especialmente na modernidade industrial,
estão diversificados em diferentes tarefas articuladas entre si. Essa
composição conferiu à produção uma rapidez e eficácia jamais igualadas.
Contudo, devido à propriedade privada dos meios de produção e à compra e
venda injusta de força de trabalho nos sistemas capitalistas (extração de
mais-valia), à divisão técnica do trabalho se superpõe uma divisão social.
Determinadas tarefas são consideradas privilegiadas e fundam hierarquias
que outorgam riqueza, poder e prestígio. Coisa similar Ocorre em outros
sistemas de produção pela extração dos mesmos e dos outros tipos de mais-
valia ("Socialismo Real"). Para o Institucionalismo, a divisão técnica e social
do trabalho é importante porque causa muitos dos conflitos a serem
analisados e intervindos. As divisões sociais do trabalho mais clássicas são
as que separam e subordinam a produção manual intelectual, do campo-
cidade, masculina-feminina etc.
148
DOMINAÇÃO: imposição, por diversos meios (dentro de um espectro de
violência que vai desde a sedução até a destruição física), da vontade de
indivíduos, grupos ou classes sobre outros. Os instituídos* –
organizados* estabelecidos, em especial o Estado e o grande Capital,
mantêm seus privilégios dominando a vontade coletiva ou majoritária. A
dominação é simultaneamente política, econômica, jurídica, semiótica,
Iibidinal ete., e freqüentemente consegue contar com a passividade e
também com a colaboração dos dominados (servidão voluntária).
ECRO: conceito da Psicologia Social de Pichon Rivière que é a sigla de
"esquema conceitual referencial e operativo". Refere-se, em primeira instância,
às teorias, logísticas, estratégias, táticas e técnicas que um coordenador de
grupo ou um psicólogo social empregam para pensar e intervir sobre seus
objetos' de trabalho. Contudo, o ECRO é muito mais que o até aqui
mencionado, porque inclui também tudo quanto seja acervo de vivências,
experiências, afetos e outros elementos que compõem a personalidade de
todos os participantes. Por outra parte, a idéia do esquema denota o caráter
provisório e marcadamente conjuntural do dispositivo* teórico-técnico utilizado.
EFEITOS: várias correntes do Movimento Institucionalista* sustentam que a
gênese teórica dos conceitos é inseparável de sua gênese social. Em outras
palavras: que a produção do conhecimento sobre as leis que dão conta dos
fatos sociais está sempre ligada aos acontecimentos concretos que
possibilitaram e exigiram sua formulação. Se bem esta afirmação não refute o
caráter universal e omnivalente das grandes leis das ciências chamadas
"humanas" (por exemplo, a Lei do Valor, no Materialismo Histórico), o
Institucionalismo enfatiza o momento "formal concreto" do conhecimento,
ressaltando suas características singulares devido à condição única, irrepetível
e contingente do fato em questão. Por isso prefere qualificar esses
acontecimentos como "efeitos", seguindo uma orientação das ciências físicas,
enquanto esse termo designa processos e fenômenos com um alcance menos
geral e mais local ou circunstancial. A lista de efeitos que podem ser propostos
é, por definição, interminável, mas mencionaremos aqui os mais conhecidos:
Efeito Weber: tem o nome do grande sociólogo Max Weber. Refere-se ao fato
de que quanto mais" desenvolvida" e complexa se torna uma sociedade* e
149
quanto mais saberes especializados produz acerca de si mesma, mais ela se
torna opaca (incompreensível) em seu conjunto para os agentes* sociais que a
integram.
Efeito Lukács: recebe o nome do filósofo Georg Lukács. Refere-se à
constatação de que o não-saber de uma sociedade acerca de si mesma é
conseqüência do progresso da ciência. Quanto mais formalizada, rigorosa e
quantificada aparece uma ciência, e quanto mais perde de vista as condições
sociais de seu nascimento e desenvolvimento (ou seja, quanto mais
profundamente realiza seu "corte epistemológico"), mais satisfaz as exigências
cientificistas e mais contribui para o não-saber de um conjunto social acerca de
sua própria existência.
Efeito Heisemberg: o físico Werner Heisemberg sustentava que o que torna
questionável a Teoria da Causalidade a nível subatômico é a impossibilidade
física de se medir objetivamente valores exatos, como, por exemplo, precisar
simultaneamente a velocidade e a posição de uma partícula. Nos experimentos
da mecânica quântica, sujeito e objeto constituiriam uma unidade inseparável
no seio da qual se produziria o fenômeno. Essa constatação pode conduzir a
um irracionalismo (ou seja, a uma renúncia a um tratamento sistemático da
determinação desses fenômenos), ou, pelo contrário, à concepção de outras
modalidades da causalidade. O lnstitucionalismo aproveitou essa idéia para
abordar a problemática da implicação, quer dizer, do intrincamento que se
produz não só entre a equipe interventora e a organização intervinda, mas
também na construção que o analista institucional faz de seu objeto de estudo
e intervenção e a desconstrução analítica que faz do mesmo Em todos esses
casos, cada um dos elementos mencionados é um "resultante" do campo que
assim se configura.
Efeito Frio-Quente: é óbvio que a história das sociedades mostra períodos de
estabilidade e "congelamento" da ordem constituída, assim como outros de
agitação, mobilização e grandes transformações. Alguns antropólogos
pretenderam, erroneamente, que as sociedades chamadas primitivas, por
oposição às modernas, seriam "estáticas", quer dizer, que careceriam de
história. O Institucionalismo sustenta que é nos períodos "frios" da história que
se consolida a produção do conhecimento social científico, e, portanto, o não-
150
saber de uma sociedade acerca de suas capacidades Instituinte e a
"naturalização" de seus instituídos*. Em outras palavras: a separação entre a
"consciência ingênua" e o "saber científico". Nessas fases, a análise e as
intervenções institucionais só podem ser contratadas e circunscritas. Já nas
etapas "quentes", em que todo o saber social está em ebulição, ocorre o
contrário: as experiências sociais se multiplicam, as informações circulam por
fora dos canais formais e criam-se condições para a apropriação crítica por
parte dos coletivos do saber acadêmico. Também se afirma a verdade dos
saberes espontâneos e a vontade de aplicar de imediato todo o apreendido na
ação instituinte. Quer dizer: geram-se processos de autoanálise* e autogestão*
espontâneos e generalizados.
Efeito Mülhman: este sociólogo das religiões descreveu um processo através
do qual os movimentos messiânicos, inspirados por uma profecia libertária,
chegam a um ponto de seu desenvolvimento em que alguns dos segmentos
que os integram considera-os "fracassados". Essa "função de fracasso" é
capaz de provocar a cisão do movimento e a saída ou a expulsão de facções
dissidentes. Isso permite aos setores remanescentes institucionalizar o
movimento e capturar as forças vivas e o potencial de origem em estruturas e
normas organizacionais "oficiais" e burocráticas rígidas. O lnstitucionalismo
constata que desfechos similares acontecem em todos os movimentos,
especialmente nos políticos.
Outros Efeitos: Lefevre, Einstein, Reich, Artaud, centro-contra-periferia etc.
EMERGENTE: na Psicologia Social de Pichon Rivière, denomina-se
"Emergente" a todo e qualquer efeito (suportado em materialidades diversas:
"mentais"," corporais" e "sociais") resultante da composição de forças e
elementos presentes e atuantes que integram uma situação e um campo vital.
Um emergente pode manifestar-se através de um indivíduo, um grupo ou uma
organização, sendo que o efetivador" escolhido" pelas forças em conflito
expressa, por sua vez, as tendências mais patológicas e as mais sadias do
conjunto. Em nosso entender, a idéia de emergente tem uma similaridade com
a de analisador*, mas provém de uma tradição filosófica existencialista ("o Ser
como presença" ou "a Verdade que se revela") e não enfatiza a capacidade do
analisador de analisar-se a si mesmo.
151
ENCARGO: no Institucionalismo*, a noção de encargo recebe definições e
sinônimos diversos que tornam difícil precisar seu significado. Em gerat pode-
se dizer que este termo alude aos sentidos não explícitos, não-manifestos,
dissimulados, ignorados ou reprimidos, e que comporta uma demanda de bens
ou serviços. Em uma acepção ampla, refere-se a uma solicitude ou exigência
de soluções imaginárias ou de ações destinadas a restaurar a ordem
constituída quando a mesma está ameaçada. O encargo nunca coincide com a
demanda e deve ser decifrado a partir dela, sendo que seu sentido varia
segundo o segmento organizacional que a formula. De acordo com o contexto
discursivo de que se trate, o encargo pode admitir como sinônimos: demanda
latente, pedido, encomenda etc.
ESPECIFICIDADE: a modernidade tem como pré-requisito e como
conseqüência o auge da racionalida de científica e de suas aplicações
tecnológicas, que possibilitaram o desenvolvimento da sociedade industrial. A
modalidade do saber dominante durante este processo é a do conhecimento
científico, cujo procedimento é, por definição, analítico. Cada ciência, que num
sentido acadêmico denomina-se disciplina, tem seu próprio objeto, teoria,
método e técnicas, sendo que frequentemente se subdivide, por sua vez, em
um número crescente de especialidades. Essa fragmentação do saber,
articulada com a Divisão Técnica e Social do Trabalho*, consagrou a
especificidade – a delimitação taxativa da correspondência entre cada domínio
teórico e um território da realidade que lhe é procedente – como o valor
cognoscitivo mais importante de nossa cultura.
O Institucionalismo estuda criticamente os efeitos distorsivos e alienantes (ver
Alienação*) que essa cultura da especificidade radical tem sobre a
reconstrução gnosiológica de um mundo humano integrado. Sobretudo se
interessa sobre o efeito do não-saber ou do desconhecimento que instaura em
cada disciplina a ausência das outras e, em todas elas, a desvalorização dos
saberes não-qualificados (saber artístico, popular, da loucura etc.).
ESPECIFIClDADE (OU ESPECIALIDADE, OU ESPECIALIZAÇÃO): num
sentido muito amplo, é o que corresponde a uma espécie de forma exclusiva
ou prevalente. Em termos sociais e epistemológicos, tem a ver com a divisão
das condições e atividades humanas em geral e do trabalho em particular.
152
Essas diferenciações, à medida que reduzem o campo de atuação de cadél
agente social, possibilitam o incremento de sua competência e eficiência,
resultando no aumento espetacular de sua produtividade. Por outra parte,
redundam na fragmentação, dispersão e perda da visão crítica e do sentido de
conjunto das práticas que pode conduzir à "alienação", ou seja, à incapacidade
de julgar e conduzir seu andamento.
No caso das ciências e disciplinas, sua circunscrição teórica e sua aplicação
tecnológica irrestrita tornaram-se valores de nossa civilização, erigindo a
"verdade" e a" eficiência" científicas como metas dominantes e indiscutíveis.
Isso levou a deformações tais como o operacionalismo, pragmatismo e
utilitarismo irreflexivos que acabam sendo incondicionalmente funcionais à
lógica acumulativa e concentradora do Capitalismo Planetário Integrado. As
diversas modalidades do Movimento Inslitucionalista, além de insistirem na
crítica global desses efeitos, pretendem resgatar os valores instituintes* e
organizantes*, em resumo, revolucionários, das contribuições científicas. Mas,
por outra parte, também visa produzir uma abordagem intersticial que dê conta
do não-sabido de cada ciência (enquanto as outras estão ausentes nela),
assim como seu conjunto teórico-técnico carece do aporte de outras formas do
saber e do fazer (particularmente do saber e fazer dos coletivos populares de
usuários e consumidores).
EQUIPAMENTO: conglomerados complexos, montagens de diversas
materialidades (mais especialmente de recursos técnicos), prevalentemente a
serviço da exploração, dominação e mistificação. Os equipamentos podem
pertencer ao Estado* ou às entidades dominantes da sociedade civil
(empresas, corporações). Podem ser de grande porte (por exemplo, os
instrumentos da comunicação de massas) ou de pequena dimensão (por
exemplo, arquivos, impressoras, relógios de ponto etc.).
ESQUlZOANÁLISE: soma não totalizável de saberes e afazeres praticáveis por
qualquer agente, em qualquer tempo ou lugar. Inventada por Gilles Deleuze e
Félix Guattari e exposta pela primeira vez de maneira singularmente
sistemática no livro "O Anti-Edipo" (1972), essa corrente não é enquadrável nos
gêneros de pensamento e ação até agora conhecidos. Qualquer tentativa de
resumir essa amplíssima leitura da realidade natural-histórico-social-libidinal e
153
tecnológica seria estéril. Mencionaremos apenas que, para essa concepção,
tais materialidades são imanentes (quer dizer, consubstanciais ou inseparáveis
uma da outra), e mais ainda, estão" precedidas" por um campo de
materialidades "puras", puras diferenças intensivas.
A essência do real é a "produção desejante", ou seja, a incessante
metamorfose geradora de diferenças inovadoras que se originam ao acaso*.
Nesse sentido, o real é constante e integralmente produzido, podendo-se
distinguir nele uma produção de produção, uma de "registro-controle" e uma de
"consumo-voluptuosidade". O processo produtivo de produção pode ser
pensado segundo a lógica que caracteriza o funcionamento da esquizofrenia
(não como patologia, mas como ser do devir), a microfísica e a biologia
molecular. Trata-se de um funcionamento absolutamente livre, infinito e
imprevisível que consiste em conexões e cortes de fluxos energéticos entre
unidades intensivas denominadas "máquinas desejantes", cada uma das quais
é uma pura e irrepetível singularidade*. As máquinas desejantes dispõem-se e
agenciam sobre uma matriz de gradientes energéticos denominada "corpo sem
órgãos". Mas a produção de produção de novidades é capturada pelos
estratos, territórios e equipamentos da produção de controle-registro que tende
à repetição do mesmo, colocada a serviço de uma entidade centralizadora,
totalizante, concentradora e acumulativa, que varia segundo o modo de
organização histórica da produção de que se trate ("Corpo Cheio da Terra", "do
Déspota" ou do "Capital-Dinheiro"). Na atividade de controle-registro
predominam a reprodução e a anti-produção. Uma dessas formas é o que a
Psicanálise chama Pulsão de Morte.
Segundo a entendemos, a Esquizoanálise compreende toda e qualquer
atividade intelectual ou prática que procura liberar o processo produtivo-
desejante-revolucionária, demolindo as constrições da parafernália de controle-
registro. Esse conjunto não-totalizável de práxis singulares configura a
"Micropolítica", em cujo âmbito as inúmeras revoluções são feitas não apenas
por necessidade ou dever, mas pelo desejo. Entendida como procedimento
para pensar e compreender o real, a Esqllizoanálise compõe-se de tarefas
negativas de crítica e desconexão de valores dominantes e outras positivas,
destinadas a propiciar o livre fluir da .produção e do desejo na vida biológica,
psíquica, comunicacional, política, ecológica etc. A Esquizoanálise também é
154
definida com outras denominações, tais como "Pragmática Universal", "Análise
Nômade" etc.
ESTADO: Conglomerado complexo de instituídos*-organizados*-estabelecidos,
agente e instrumento de persuasão, repressão, coerção e até eliminação social
a serviço prevalentemente das classes, grupos e idiossincrasias dominantes.
Opera principalmente através da captura e recuperação* de singularidades e
forças produtivas de toda natureza, reinvestindo-as na lógica do sistema ou
suprimindo-as. Seu principal instrumento é o Direito, corpo estabelecido de
leis* que regulam as relações sociais a favor dos setores privilegiados,
apresentando-se aparentemente como expressão da vontade majoritária.
Existem muitos diferentes tipos de Estado, mas o Estado moderno precisa de
reconhecimento e legitimação, que obtém por meio de sua concordância com a
Lei. O Estado não se compõe apenas de grandes organismos, mas também de
microagências instaladas no corpo biológico e no psiquismo (Estado contínuo;
micropoderes do Estado). Não é que o Institucionalismo negue a existência de
forças e processos instituintes organizantes dentro do Estado, mas privilegia a
denúncia de seus aspectos de reprodução e antiprodução.
ESTRATÉGIA: trata-se da decisão quanto à forma da intervenção. É uma
sistematização das metas a serem alcançadas (cuja máxima expressão
seriam a autoanálise* e autogestão*), e o planejamento da progressão das
manobras, a previsão de curso, as alternativas viáveis, os avanços
esperados, os possíveis retrocessos etc.
EXPLORAÇÃO: processo de expropriação das forças, meios e resultados dos
processos produtivos de toda índole, efetuado pelos setores dominantes
sobre os produtores. A exploração é possibilitada e reforçada pelos
mecanismos de dominação* e mistificação*.
FANTASMA: para a Psicanálise, o fantasma é uma cena latente cujo sentido
ou script pode ser decifrado a partir do discurso associativo de um sujeito e
que apresenta o desejo inconsciente como imaginariamente "realizado". Os
psicanalistas grupalistas encontraram formações fantasmáticas "de grupo"
que "realizam" um desejo inconsciente grupal que já não se reduz ao de
nenhum dos sujeitos que o integram. Os sociopsicanalistas decifram e
interpretam esses fantasmas na classe institucional (que é o grupo
155
organizacional com o qual preferentemente trabalham) e confrontam essa
representação imaginária com as condições reais de trabalho, para que a
classe recupere a margem real de poder que sua posição objetiva lhe
possibilita. A Esquizoanálise sustenta uma complexa teoria do fantasma que
o vincula com o sentido e o acontecimento e o distingue do sujeito, do estado
de coisas às quais este se relaciona, e ainda do significado do que diz. O
fantasma (que sempre é grupal) é uma realidade sui generis em si mesma.
FUNÇÃO: denominação que se dá aos propósitos, procedimentos e objetivos
dos instituídos*-organizados*- estabelecidos, seus agentes* e práticas*. A
função está sempre, prevalentemente, a serviço das diversas formas históricas
da exploração*, dominação* e mistificação*. A função apresenta-se às
representações e crenças das sociedades “deformadas” pela mistificação como
sendo uma atividade "natural", eterna, invariável, universal, lógica e necessária.
A rigor, opera fundamentalmente como ação reprodutora (ver Reprodução*)
dos sistemas.
FUNCIONAMENTO: designa o movimento dos processos produtivo-desejante-
revolucionários de qualquer materialidade e essência (entre eles o instituinte*-
organizante*). É o gerador da diferença, da novidade, da invenção e da
metamorfose. Entre seus produtos estão os instituídos* -organizados*-
estabelecidos que tendem rapidamente a perder seu valor de funcionamento e
adotar as características da função* (por exemplo, a burocracia, a tecnocracia,
a belicracia etc.).
GÊNESE SOCIAL E GÊNESE TEÓRICA: particularmente a Análise
institucional tem insistido em que as teorias e doutriné1s, sejam elas
científicas, ideológicas, filosóficas ou estéticas, têm apenas uma autonomia
relativa com respeito aos acontecimentos*, conjunturas, organizações e
movimentos histórico-sócio-libidinais no seio dos quais surgiram. Em
consequência, não se pode analisar nem compreender as origens e o
conteúdo de discursos e textos postulando sua independência em relação às
condições concretas de seu começo e existência atual. Do mesmo modo, não
se entende nem se avalia um movimento sem conhecer o pensamento que o
inspira e justifica. Em todo caso, a afirmação de que a gênese social e teórica
é inseparável entre si, opõe-se a qualquer crença na neutralidade e
156
universalidade das teorias, assim como à crença de que os "fatos" sociais
possam "falar por si mesmos", prescindindo de alguma leitura que os torne
inteligíveis.
GRUPO SUJEITO E GRUPO SUJEITADO: estes conceitos são de autoria do
institucionalista Félix Guattari (ver Esquizoanálise*). Se um grupo constitui-se
com uma Utopia Ativa * capaz de gerar suas próprias leis para realizá-la e de
construir a si mesmo durante o processo, tendo sempre presente sua finitude e
a perspectiva de sua própria morte, então é um grupo sujeito (protagônico).
Pelo contrário, um grupo alienado (ver Alienação*) em objetivos,
procedimentos, estruturas e leis* que se lhe impõem desde outros segmentos
ou desde a totalidade social, que se empenha em subsistir como um fim em si
quando não cumpre com sua finalidade, é um grupo sujeitado. Para Guattari, a
formação grupal é tão importante que o leva a afirmar a existência somente de
fantasmas "de grupo", e não "individuais" ou "coletivos".
HISTÓRIA: para o Institucionalismo, é um saber que procura reconstruir os
acontecimentos do passado, assumindo que o fará a partir dos desejos,
interesses e tendências de quem protagoniza esse estudo. Assim entendida, a
História não é a investigação acerca do que já está definido, obsoleto e morto,
mas o conhecimento de processos vigentes no presente, que começaram no
passado e que determinam virtualidades e possibilidades futuras (Utopia
Ativa*). Não existe um processo em um tempo unitário que possa ser
reconstruído em um relato único. Existem variados processos, cada um
transcorrendo em um tempo que lhe é próprio e que pode ser relatado em uma
história da diversidade. Assim, existem histórias econômicas, políticas,
culturais, biológicas, geológicas, raciais, geracionais, sexuais. Pode-se tentar
articular o diferente tempo dos variados processos históricos em uma leitura
que caracterize eras, etapas, períodos ou épocas localizáveis geográfica ou
cronologicamente, mas sem perder de vista que os resultados nunca serão
totalizáveis nem determinados em "última instância" por nenhum dos processos
assim agrupados. A História, para o Institucionalismo, não é apenas um
exercício erudito que estuda o que se repete e caracteriza o que não se repete.
Trata-se da reconstrução dos grandes momentos contingentes e imprevistos
que se efetuaram em acontecimentos* de radical novidade. Por outra parte,
157
não investiga como o passado determina o presente e pode condicionar o
futuro, mas como o presente ativa e deflagra virtualidades do passado e como
propicia os acontecimentos* no porvir.
HISTORIOGRAFIA: trata-se de um relato dos fatos históricos, aparentemente
claro e acessível. Em geral, é uma versão "oficial" que foi conservada e
divulgada por coincidir com os interesses do Estado*, das classes dominantes
e do instituído*-organizado*-estabelecido, que possuem mecanismos para
arquivar e selecionar os dados que lhes convêm. Esses textos historiográficos
são apresentados como descrições "objetivas" neutras e preferenciais,
quando não exclusivas. A rigor, consistem apenas numa versão a mais, tão
tendenciosa como qualquer outra, mais importante pelo que omite ou disfarça
do que pelo que afirma.
HORIZONTALIDADE: na Psicologia Social de Pichon Rivière, a
horizontalidade designa a dimensão grupal atual, ou seja, o conjunto de
elementos que coexistem e operam, configurando-se no aqui e agora do
campo grupal. Na Psicossociologia* Organizacional e no Institucionalismo, a
horizontalidade define a dimensão da vida organizacional que corresponde às
relações e aos processos informais, ou seja: rumores, intrigas de corredor,
vínculos sexuais etc.
IDÉIAS PURAS: no que interessa ao Institucionalismo, as Ideias Puras,
segundo Platão as concebeu, são seres idênticos a si mesmos, eternos e
invariáveis, modelos de tudo que existe. Delas só se pode predicar sua
própria essência (por exemplo: a brancura é branca). O desejo dos corpos
humanos por outros corpos belos deve ser encaminhado como amor ao
saber, à procura da Verdade, que é a visão das Idéias Puras, e essa é
também uma proposta ética, enquanto implica a virtude e o bem supremo.
Diversas correntes do Institucionalismo abordaram criticamente essa
concepção como sendo a base especulativa dos sistemas institucionais
(incluídos os subjetivos) de subordinação a um ideal ou modelo, e de
hierarquização e seleção dos" candidatos" a funções de poder e prestígio. As
Idéias Puras são sinônimos de "ídolos" para alguns autores.
IDEOLOGIA: classicamente se entende por ideologia um conjunto mais ou
menos sistemático de representações (crenças, convicções, valores) que os
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sujeitos e grupos formam sobre a vida e o mundo. Essas representações estão
animadas por vontades e desejos. Quando configuram sistemas amplos,
denominam-se cosmovisões ou visões do mundo. Enquanto sistemas de
representações, constituem as ideologias teóricas, mas podem ser também
disposições para a ação ou comportamentos concretos (ideologias práticas).
A ideologia, definida como oposta à ciência, é entendida como um sistema de
reconhecimento-desconhecimento, ou seja, apenas um saber aproximativo e
viciado por erros. Esses erros seriam provocados pela posição que os sujeitos
ocupam nos sistemas que se representam erroneamente, ou por forças ativas
(por exemplo, as das classes dominantes) que produzem, distribuem e fazem
adotar estas crenças equivocadas que favorecem seus interesses.
Em outra direção, a ideologia é considerada uma representação imaginária que
os homens fazem de sua relação com suas condições reais de existência.
Segundo esse sentido, à ideologia manifesta subjazem fantasmas
inconscientes que são "realizações" de desejos inconscientes. Esse significado
de ideologia a aproxima do anseio ou da ilusão.
Segundo seu matiz político ou ético, as ideologias classificam-se em
progressivas (se sustentam valores evolutivos ou revolucionários) ou
regressivas (se são reacionárias ou conservadoras). Em geral, em uma
sociedade"', a ideologia dominante é aquela que os setores dominantes
conseguem produzir e difundir. Para algumas correntes do Institucionalismo, a
ideologia é um conceito importante e operacional (Sociopsicanálise*, Análise
Institucional *); para outras, carece de interesse, por pertencer ao espaço da
representação e não ao das forças (Esquizoanálise *).
IMANÊNCIA: para alguns filósofos, este termo designa a interioridade de um
ser ao ser de outro. Opõe-se à transcendência. Para o Institucionalismo,
expressa a não-separação entre os processos econômicos, políticos, culturais
(sociais em sentido amplo), os naturais e os desejantes. Todos eles são
inerentes, intrínsecos e só separáveis com finalidades semânticas ou
pedagógicas.
INCONSCIENTE: em um sentido amplo, refere-se a realidades e processos
que não são conscientes. O significado psicanalítico designa instâncias,
processos, mecanismos, forças e representações, em especial o Complexo de
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Édipo e o desejo, que são mantidos no espaço psíquico inconsciente pela força
ativa do recalcamento, especialmente o recalcamento primário. Algumas
correntes institucionalistas compartilham a definição psicanalítica (por exemplo,
a Sociopsicanálise). Para outras, o inconsciente é a qualidade de pré-
materialidades e processos das mais diversas essências que se gera como
espaço no ato mesmo da produção do novo. É um campo histórico que sofre
uma repressão político-econômica e libidinal dada pelo horizonte do possível
de cada formação social.
INFRA-ESTRUTURA: no Materialismo Histórico, ciência da História, da
Sociologia e da Economia Política marxistas, denomina-se infra estrutura à
instância do todo social na qual se desenvolve o processo de produção,
distribuição, apropriação, troca, consumo e desfrute de bens materiais. Esse
processo é considerado a base material e condição de existência de toda e
qualquer sociedade, operando a reprodução* econômica restrita do modo de
produção*. Na versão clássica do Materialismo Histórico, a infra-estrutura
determina a superestrutura*.
INSTÂNCIAS: no Materialismo Histórico, particularmente na versão de
Althusser, denomina-se instância a cada região que compõe o território ou
domínio do modo de produção, dito em sentido amplo, de uma sociedade
humana. Essa terminologia resulta da importação do modelo da Segunda
Tópica freudiana para a teoria do Modo de Produção, quer dizer, a que
apresenta a personalidade como integrada pelas instâncias do Ego, Superego
e ld, e também das instâncias do aparelho jurídico.
INSTITUIÇÃO: são árvores de decisões lógicas que regulam as atividades
humanas, indicando o que é proibido, o que é permitido e o que é indiferente.
Segundo seu grau de objetivação e formalização, podem estar expressas em
leis* (princípios-fundamentos), normas ou hábitos. Toda instituição compreende
um movimento que a gera: o instituinte*; um resultado: o instituído*; e um
processo: da institucionalização. Exemplos de instituições são: a linguagem, as
relações de parentesco, a divisão social do trabalho*, a religião, a justiça, o
dinheiro, as forças armadas etc. Um conglomerado importante de instituições é,
por exemplo, o Estado*. Para realizar concretamente sua função
regulamentadora, as instituições materializam-se em organizações* e
160
estabelecimentos. As origens das instituições são difíceis de determinar. Pode-
se falar de quatro instituições "fundantes" das sociedades humanas (ver
sociedade*).
INSTITUÍDO: ao resultado da ação instituinte* denomina-se instituído. Quando
esse efeito foi produzido pela primeira vez, diz-se que se fundou uma
instituição. O instituído cumpre um papel histórico importante porque vigora
para ordenar as atividades sociais essenciais para a vida coletiva. Para que os
instituídos sejam eficientes, devem permanecer abertos às transformações com
que o instituinte* acompanha o devir social. Contudo, o instituído tem uma
tendência a permanecer estático e imutável, conservando de juri estados já
transformados de facto e tornando-se assim resistente e conservador.
INSTITUlNTE: é o processo mobilizado por forças produtivo-desejante -
revolucionárias que tende a fundar instituições ou a transformá-las, como parte
do devir das potências e materialidades sociais. No transcurso do
funcionamento do processo de institucionalização, o instituinte inventa
instituídos* e logo os metamorfoseia ou cancela, de acordo com as exigências
do devir social. Para operar concretamente, o processo de institucionalização
deve ser acompanhado de outros organizantes* que se materializam em
organizações*. Os dinamismos instituintes e organizantes* são orientados
pelas Utopias Ativas*.
INTERESSE: denomina-se assim às motivações, desejos, aspirações,
expectativas e demandas pré-conscientes e conscientes que impulsionam ou
mobilizam os agentes, grupos ou classes na atividade social. Os interesses
caracterizam-se por serem conhecidos e assumidos pelos sujeitos e estarem
dotados de uma certa racionalidade. Em geral, os interesses divergem ou se
opõem aos desejos e fantasmas inconscientes, e freqüentemente se descobre
que sua suposta racionalidade não é mais que uma racionalização.
INTERVENÇÃO lNSTITUClONAL: ação transformadora praticada segundo
uma ética e uma política e formalizada em uma teoria aplicada segundo certas
regras metodológicas e uma série de recursos técnicos. Todo esse
procedimento parte de uma avaliação 1ogística de disponibilidades e é
planificado segundo uma estratégia que se decompõe em táticas. Seu objetivo
central é propiciar nos coletivos intervindos a ação do instituinte* organizante*
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e, no seu limite, a implantação de processos plenos e continuados de auto-
análise* e autogestão*.
LEIS: consistem na formalização e explicitação, em textos e/ou discursos, das
árvores de valores e decisões que constituem as instituições*. Quando
expressam rígida e exclusivamente a vontade do instituído-organizado* e se
apresentam como universais e mais ou menos invariáveis, sendo
referendadas, por exemplo, pelo Estado ou a Igreja, são apenas a justificativa
da dominação* – exploração-mistificação. Quando são provisórias e singulares
e expressam realmente a vontade instituinte*-organizante* que "se dá suas
próprias leis", são instrumentos formais produtivo-desejante- revolucionários. O
Institucionalismo conhece e aplica as leis científicas que lhe são úteis, mas
aceita e enfatiza o papel do acaso* nos processos de que se ocupa.
LÍDER: as lideranças são papéis específicos que adquirem importância
especial por suas funções dirigentes ou de condução. Os mais característicos
são: o autoritário, o laíssez-faire e o democrático. Quando o líder é um
autêntico recurso para o funcionamento instituinte, denomina-se revolucionário-
desejante-produtivo. Seu estatuto não é o de um modelo, mas o de um
exemplo singular.
LOGÍSTICA: balanço dos recursos e forças disponíveis no início de uma
intervenção. Avalia-se o que está disponível para contribuir ou para dificultar o
trabalho, que se iniciará se houver um mínimo de possibilidade de realização. A
logística vai sendo reavaliada durante o percurso da intervenção.
MARGINALIDADE: por referência a teorias, doutrinas, ideologias,
organizações, movimentos, espaços físicos, geográficos ou abstratos,
idiossincrasias (sexuais, raciais, etárias, nacionais, econômicas, jurídicas) etc.,
considera-se marginal a todo e qualquer elemento afastado do que se entende
por central, legítimo, consagrado ou autêntico nos campos correspondentes. O
marginal em geral adquire um matiz pejorativo que denota ou conota tanto
aquilo que está desvirtuado como até o que se avalia francamente como
negativo ou perigoso. Obviamente, o termo marginalidade está muito
relacionado com a oposição centro-periferia.
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MASSAS: noção de difícil definição, que foi empregada de muitas maneiras
não coincidentes. Num sentido, designa grandes segmentos da população que
se opõem às minorias (particularmente às elites) e podem vir a ocupar seu
lugar. Em outra significação, refere-se a conjuntos humanos amorfos, cujos
integrantes carecem de "identidade" própria. Também se diz de seus
componentes que são dirigidos por outros; e não intradirigidos. Freud utilizou o
conceito de massa como sinônimo de grande agrupação. As massas efêmeras
dividem-se naquelas que se fomlam e dissolvem espontânea ou fugazmente
(multidão) e nas que se organizam ocasionalmente em torno de um líder. As
massas "estáveis" são, de modo plausível, sinônimo de organizações; Freud dá
como exemplo a Igreja e o Exército. Chama-se "Sociedade de Massas" aquela
em que as diferenças (por exemplo, a de classes) se apagam em função de
outros parâmetros (por exemplo, o acesso ao consumo de certos produtos).
MISTIFICAÇÃO: processo mais ou menos deliberado de produção, difusão e
assimilação de representações, crenças, convicções e valores que deformam,
encobrem ou falsificam a realidade natural ou social com a finalidade de
enganar as forças e agentes* instituintes* e organizantes* Perpetuam-se assim
os instituídos*-organizados*-estabelecidos, e com eles, as formas históricas
que adotam a exploração" e al dominação*. Pode-se considerar os processos
de mistificação como sinônimos de produção, difusão e assimilação de
ideologias regressivas ou, segundo outra terminologia institucionalista, de
máquinas de semiotização de captura e recuperação* .
MODULAÇÃO (PRODUÇÃO) DA DEMANDA: O lnstitucionalismo questiona a
crença de que existem necessidades "naturais" (portanto universais e eternas)
que se expressam em "demandas espontâneas". Uma sociedade* tem
necessidades que não conhece e não consegue definir como tais, assim como
supõe ter necessidades cuja existência foi produzida e cuja expressão em
demandas foi gerada e modulada pela oferta. A produção de objetos
suntuosos, bens de luxo e desperdício dos setores dominantes, tem sido
sempre prioritária. O que resta da produção é o que se oferece às
comunidades, categorizado como "objetos das necessidades básicas". Dessa
maneira, definem-se tais necessidades e se convoca e modula sua demanda.
Nas sociedades industriais modernas, a construção de um "Estado beneficente,
163
previdenciário, administrador-gerente-cientista" e de um mercado de bens e
serviços submete a produção de necessidades e a modulação das demandas à
ação dos saberes disciplinares e de seus agentes*, os experts. São eles os que
decidem o que, como, quanto, onde, porque e quando as pessoas
"necessitam" e "demandam", no que se refere a bens de consumo ou de
"capital" e a serviços de saúde (física e mental), educação, transporte etc.
Essas decisões e as ações que elas orientam são, segundo dizem os experts,
"cientificamente" fundadas, e de acordo com a "vontade popular", sempre
visando "o bem comum".
A partir da Psicanálise, costuma-se afirmar que o desejo* mediatiza a relação
entre necessidade e demanda. Ou seja, entre as exigências da necessidade e
sua expressão significante atua o desejo, que a Psicanálise define como
essencialmente faltoso de objeto ou carente de resposta material possível. A
necessidade não satisfeita origina uma privação que pode ser resolvida com os
objetos materiais correspondentes. Já a demanda, do ponto de vista
psicanalítico, não é um pedido do que manifestamente se solicita, mas de
"amor" e "reconhecimento", sendo compensável com as respostas que a
complementem. O desejo, em troca, pede uma impossível restauração
narcisística, o gozo absoluto. A produção de um fantasma pode lhe dar uma
satisfação imaginária e transitória, e a simbolização, um destino socializável,
enquanto só a morte pode conferir-lhe uma definitiva. Algumas correntes
institucionalistas questionam radicalmente essa concepção do desejo*.
MOLAR: para a Esquizoanálise*, este termo designa uma ordem de
organização do real que caracteriza a superfície de registro e controle e a de
consumo-consumação. Nessa ordem, as entidades características são os
estratos e os grandes blocos representativos dos territórios constituídos. É o
lugar dos códigos, sobrecódigos e axiomáticas, das formas sujeitos e objetos
definidos, dos organismos biológicos e das grandes corporações e corpos
cheios do Estado*, Igreja etc. Compõe o que em outra terminologia se
denomina instituídos*-organizados*-estabelecidos. Nesse espaço constituem-
se as matérias formadas e as forças vetorizadas (númen voluptas). É o campo
da regularidade, da estabilidade, da conservação e da reprodução*, onde
164
operam os equipamentos sedentários de captura e recuperação*. Aproxima-se
ao que se chama "o mundo do macro".
MOLECULAR: para a Esquizoanálise, este termo caracteriza os elementos que
compõem a superfície de produção desejante. Essa superfície está integrada
pelo "corpo sem órgãos" (uma rede de intensidades puras que se distribuem
em gradientes delimitados por limiares a partir de zero) e pelas "máquinas
desejantes" (rede de singularidades acopladas de maneira binária – máquina-
fonte-m.áquina-órgão – que se conectam em todas as direções, segundo o
acaso* ou uma lógica aleatória). Essas conexões fazem circular fluxos (devires-
esquizias) interrompidos por cortes que, em suas ligações anárquicas locais ou
à distância, resultam em uma eclosão do novo ou na metamorfose das
entidades molares,que assim se desestratificam e se desterritorializam por
linhas de fuga. É o lugar das matérias não-formadas e das energias não
vetorizadas onde as máquinas moleculares se formam ao nlesmo tempo em
que funcionam. Os dispositivos* e máquinas de guerra nômades,
agenciamentos* que se montam com especial permeabilidade para o desejo* e
a produção*, estão desenhados para funcionar com esta lógica que produz o
Desejo* e o lnconsciente libertários. Em outra terminologia, o molecular
corresponde parcialmente ao instituinte* – organizante*.
MOVIMENTO INSTlTUCIONALISTA: conjunto não totalizável de escolas e
correntes cujas diversas tendências subscrevem alguns objetivos comuns,
entre os quais os mais compartilhados consisten\ em propiciar nos coletivos
processos de autoanálise* e autogestão*. Essas orientações se diferenciam
entre si por suas teorias, métodos, técnicas, estratégias e táticas de leitura e de
intervenção, assim C0l110 pelo alcance dos objetivos que se propõem. Assim
configuram uma escala que vai desde o reformismo ao maximalismo.
MUDANÇA: as diferentes civilizações atribuíam ou atribuem à permanência
(status quo) ou à transformação valores diferentes. Para algumas comunidades
primitivas, o funcionamento ideal de sua vida consistia em que tudo se
mantivesse exatamente idêntico em organização, costumes etc., para imitar o
mundo e o tempo divinos, eternos e invariáveis. No outro extremo da História, a
modernidade caracteriza-se pela glorificação da mudança constante e
acelerada dentro de uma trajetória linear e evolutiva denominada progresso.
165
Em todo caso, a oposição, em todos e cada um dos aspectos da vida, entre
posições "conservadoras" contra outras "progressistas", ou, em um sentido
mais amplo, "transformacionistas"; permeia todos os processos naturais-
sociais-libidinais.
A Sociologia e a Psico-Sociologia de origem positivista e estrutural-
funcionalista insistiram muito na problemática da mudança e da "resistência à
mudança", tal como ela se apresenta nos grupos, organizações e comunidades
diante das situações desconhecidas e novas. A Psicanálise, por sua parte,
também tem, entre seus temas mais importantes, a questão da mudança –
entendida como a exigência colocada ao sujeito psíquico de dominar os efeitos
do impulso e da compulsão à repetição, que resulta da natureza conservadora
das pulsões, da insistência do desejo e dos princípios de constância e inércia.
Para as diversas correntes do Institucionalismo, a problemática da mudança,
ligada a categorias de diferença-repetição, transferência-resistência, reação-
reformismo-revolução etc., é tratada segundo as inspirações teóricas e políticas
às quais as escolas se afiliam. Em geral, pode-se dizer que, dentro de um
espectro de radicalidade crescente, que vai desde posições mais ou menos
reformistas até outras francamente revolucionárias, ou até extremistas, o
Institucionalismo: a) confia em que pequenas mudanças locais podem
repercutir à distância ou propagar-se como reações em cadeia; b) sustenta que
as mudanças, para seren1 sólidas, devem ser integrais, ou seja,
simultaneamente bio sociolibidinais, e não apenas econômicas ou
convencionalmente políticas; c) afirma que a substância do real é a diferença
pura e a produção desejante, sendo que os arcaísmos e as estruturas-
tenitórios conservadores e repelitivos são produtos da captura que a
parafernália de controle-registro dos sistemas faz da potência das
singularidades pré-pessoais e pré-sociais.
NÃO-DITO: no Institucionalismo, o termo "não-dito" parece recolher todas as
significações que essa fórmula adquiriu nas ciências humanas e na cultura
ocidental. Basicamente, refere-se a todas aquelas informações que estão
omitidas ou distorcidas nos discursos, textos, atitudes, comportamentos ou
qualquer outra forma de expressão ou manifestação. Essa omissão ou
distorção pode ser voluntária ou involuntária, consciente ou não, assumida ou
166
não, mas é considerada invariavelmente fonte de mal-entendidos e conflitos
que afetam a convivência, ou então causas ou efeitos de um desconhecimento
cuja superação se supõe enriquecedora. Contudo, no Institucionalismo, o não-
dito remete predominantemente à ignorância, à má-fé ou à repressão no seio
dos discursos, textos, atitudes, comportamentos, estrutura e dinâmica dos
agentes, grupos, organizações e movimentos. Esse omitido ou distorcido
concerne principalmente ao instituinte*, que foi "esquecido" e reprimido pelo
instituído* durante o processo de institucionalização. O não-dito refere-se tanto
às vicissitudes da potência produtiva, ao desejo e à vida, como aos manejos do
poder, da antiprodução* e da morte. O não-dito se diz de maneiras diretas ou
disfarçadas nos analisadores históricos ou nos construídos (ver Analisadores
Artificiais* e Analisadores Espontãneos*).
OBJETO DE ANÁLISE: na interseção da organização analisante com a
organização analisada, vai-se produzir uma nova organização que é o
verdadeiro objeto de análise, pois para o Institucionalismo não é possível uma
posição clássica de "neutralidade" ou "objetividade". É na junção que se vai
tentar entender essa nova realidade que se produz no encontro.
OPOSIÇÃO: na vida das organizações e movimentos, chama-se oposição à
ação de correntes que se contrapõem à linha de pensamento e de gestão da
fração social ocupante do governo (situação). A oposição pode ser mais ou
menos acirrada, mas em geral é reconhecida, autorizada, legitimada e ainda
necessitada pela lógica institucional do sistema que a integra.
ORGANIZAÇÕES: são as formas materiais nas quais as instituições* se
realizam ou" encarnam". De acordo com sua dimensão, vão desde um grau
complexo organizacional, como um ministério, até um pequeno
estabelecimento escolar. Na terminologia da Esquizoanálise, correspondem às
grandes formas molares da superfície de registro.
ORGANIZADO: é o produto dos processos organizantes*. Conjunto de
ordenamento dos recursos humanos, técnicos, espaciais, cronológicos (etc.)
que configuram uma organização ou estabelecimento*. O organizado é
ilustrado no esquema do organograma e do fluxograma da organização. E
necessário para orientar o funcionamento da entidade, mas tem tendência a
tornar-se rigido e esclerosar-se, perpetuando-se e tornando-se um objetivo em
167
si mesmo. Assim, exagera-se em torno de sua função, adquirindo uma série de
vícios; o mais conhecido é a burocracia.
ORGANIZANTE: atividade permanentemente crítica, inventiva e
transformadora que tende à otimização das organizações entendidas como
dispositivos ou agenciamentos*. Esse processo exige das organizações a
abertura para efetuar as mudanças necessárias com a finalidade de realizar a
Utopia Ativa* que as inspira. Uma organização* só cumpre com este objetivo se
mantém fluida e constante a relação entre o organizante e o organizado*, a
ponto de admitir sua autodissolução* quando deixa de servir ao produtivo-
desejante-instituinte (ver Produção*, Desejo* Instituinte*).
PAPÉIS: conceito cunhado pela Psico-Sociologia e pelo Psicodrama que define
os lugares e funções sociais em geral e grupais em particular, come caracteres
de personagens teatrais. Cada papel ganha precisão em sua relação com
todos os outros e carece de sentido fora desse vínculo, consciente ou não. Os
papéis são emergentes de configurações estruturais que organizam a interação
social e mostram uma mobilidade que os faz serem desempenhados por
diferentes indivíduos-sujeitos-agentes* sociais, segundo as circunstâncias.
Quando um agente social abandona o papel este se expressa ou manifesta
através de outro participante. Pichon-Riviere detectou nos grupos alguns
papéis regularmente emergentes, como o de "bode expiatório", "seguidor",
"sabotador". Os papéis podem ser inerentes (pré-fixados, como "masculino" e
"feminino") ou atribuídos (como os acima mencionados).
PARTICIPAÇÃO: dá-se este nome a um tipo de gestão organizacional na qual
os segmentos formal e efetivamente dominantes de uma organização
concedem aos quadros subordinados diversos graus de possibilidade de
intervenção na planificação, decisão, execução e benefícios da atividade. Isso
não significa maiores modificações de fundo na propriedade, na estrutura ou na
estratificação hierárquica o organismo em pauta.
PARTICULARIDADE: ver Universalidade, Particularidade e Singularidade.
PODER: embora no Institucionalismo o termo "poder" não seja empregado com
significações unívocas, em geral ele se aplica a uma gama de recursos
diversos com grau de violência crescente, destinados a impor a vontade de um
168
segmento social sobre os outros ou sobre a sociedade em seu conjunto. Michel
Foucault insistiu na idéia de que o poder não se possui ou se detém, mas que
se exercita, e não apenas em um sentido restritivo (de coação ou proibição),
mas também em um sentido positivo de orientação: o poder incita, provoca,
convoca, ativa etc.
POTÊNCIA: no Institucionalismo, emprega-se o termo "potência" para referir-se
às capacidades virtuais ou atuais de produzir, inventar, transformar etc. Em
geral, a potência designa a magnitude das forças geradoras do radicalmente
novo, criador de vida.
POTENCIAL HUMANO: o movimento denominado "Potencial Humano"
compreende um conjunto de correntes teóricas e técnicas, algumas cujas
características comuns consistem na importância dada ao trabalho corporal,
expressivo e dramático nos tratamentos clínicos, coordenação de grupos e
intervenções organizacionais. Entre as tendências que o integram, pode-se
mencionar a Bioenergética (baseada nas idéias de Wilhelm Reich), a Gestalt
Terapia (que partiu das postulações da Psicologia da Forma) e até algumas
que incluem a Terapia de Rogers e diversas práticas orientalistas e africanas.
No Institucionalismo, a incorporação mais notável dos recursos do Movimento
de Potencial Humano foi a realizada por Georges Lapassade, com sua
proposta de Transe-Análise.
PRÁTICAS: em um sentido epistemológico, designa todo processo pelo qual
um agente, dotado de força de trabalho qualificada, a aplica com os meios de
produção adequados sobre uma matéria-prima, gerando um produto
específico. Em um sentido descritivo, diz-se das ações que os agentes* sociais
realizam nas instituições*, organizações* e estabelecimentos*, tanto a serviço
do instituinte*-organizante* quanto do instituído"-organizado*. Em geral utiliza-
se o termo "prática" para as ações específicas e qualificadas, enquanto se usa
a palavra "atividades" para referir-se às inespecíficas e não-qualificadas. Para
o Institucionalismo, com a finalidade de se fazer a crítica à profissionalidade* e
à especificidade*, é importante considerar a frase de Max Weber: "Uma prática
social nunca é mais opaca em suas determinações que para seus próprios
agentes." As práticas dividem-se em discursivas ou teóricas e não-discursivas.
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PRÁXIS: denomina-se assim certo tipo de prática* na qual estão
indissoluvelmente unidos o pensamento crítico esclarecedor e a ação
transformadora do real.
PRODUÇÃO: geração do novo – daquilo que a Utopia Ativa persegue. É
equivalente ao funcionamento*. É aquilo que processa tudo que existe natural,
técnica, subjetiva e socialmente. É a permanente geração de tudo que pode
logo tender a cristalizar-se. É o devir, a metamorfose.
PROFISSIONALIDADE: em um sentido tradicional, as profissões
compreendiam o Sacerdócio, a Advocacia, a Medicina e a Carreira Milita,:
Eram as primeiras ocupações com as quais se podia subsistir sem praticar
propriamente o trabalho manual ou comércio. A ética das profissões tinha um
marcado caráter religioso ("professar": atuar em prol de uma fé) e exigiam
vocação "vocare": chamado de Deus). Tratava-se de um certo tipo de
apostolado cujo exercício estava tingido de um matiz de militância, e por todas
essas conotações imbuía-se de uma condição elevada de desprendimento,
assim como de autonomia e independência relativa. Apesar do já dito, a
agrupação dos profissionais nas corporações de grêmios e academias
universitárias teve, desde o início, uma dupla natureza – de controle de
qualidade dos serviços, mas também de exclusividade e sobrevalorização dos
mesmos. Com a modernidade, produziu-se uma série de mudanças no status
de profissional. Esse título ampliou-se a outros ofícios, antes considerados de
segunda categoria. As práticas profissionais, por um lado, mercantilizaram-se,
visando o lucro; por outro, ligaram-se ao poder do Estado e ao das empresas,
formando as cúpulas tecno-burocrático acadêmicas – mas também se
degradaram como conseqüência do vínculo assalariado e da
hiperespecialização. O Institucionalismo insiste no estudo e no
desmascaranlento das formas sob as quais os interesses de lucro, poder e
prestígio do corporativismo e do academicismo se ocultam sob disfarces da
"neutralidade" cientificista, da "modernidade" hiperespecialista e da suposta
independência e suposto apostolado do profissional autônomo ou do
funcionário.
PSICOFAMILIAR: denomina-se modalidade de funcionamento psicofamiliar à
definição fantasmática e imaginária que as classes institucionais regredidas
170
fazem, inconscientemente, de suas condições reais de trabalho e do verdadeiro
poder de que dispõem para mudá-as. (ver Psico-Socioanálise *.)
PSICOLOGIA SOCIAL: é uma disciplina delimitada pela superposição de áreas
da Psicologia e da Sociologia que, de uma maneira ou de outra, toma como
objeto de estudo e de intervenção as mútuas determinações ou influências dos
sujeitos-agentes* entre si (enquanto sujeitos psíquicos e agentes sociais).
Existem várias correntes de Psicologia Social, distinguíveis segundo pertençam
predominantemente à Psicologia (Psicanalítica, Comportamentalista,
Gestaltista) ou à Sociologia (por exemplo, Interacionismo Simbólico). De
maneiras muito variadas (por exemplo, consciente ou inconsciente), todas
afirmam a constituição, gratificação, frustração de cada sujeito-agente pelo
outro considerado individual ou coletivamente. O Institucionalismo toma muitos
recursos teórico-técnicos das psicologias sociais, mas se diferencia delas,
entre outras coisas, por não reivindicar o caráter científico (ou seja, "neutro",
instrumental ou operacional) que elas se atribuem.
RECURSOS HUMANOS: desde o início da década de 70, começou-se a
empregar a expressão "Recursos Humanos" para referir-se, no campo da
Administração, à área de estudos e atividades que trabalha com questões
relativas ao elemento humano nas organizações, regiões, nações etc .. Fala se
de Recursos Humanos como um dos componentes de um espectro de
recursos: físicos, tecnológicos, econômicos e outros.
REPETIÇÃO: em um sentido etimológico, significa voltar a pedir. No filosófico,
refere-se à reiteração ou reapresentação de idéias ou de realidades.
Toda a filosofia ocidental parece estar dividida por uma polêmica em torno de
se o que se repete ou retoma é: 1) o idêntico ou igual; 2) o diferente, entendido
por relação de negação, analogia ou semelhança com o idêntico ou o mesmo;
3) o diferente absoluto, ou seja, o que cada vez é afirmativa e radicalmente
novo. O Institucionalismo sustenta que o que retoma na História não é o
idêntico, o igualou o mesmo, mas o diferencial, ou ainda, a diferença absoluta,
que é radicalmente transformadora ou motor da História. Em conseqüência,
não interessa tanto estudar as leis que dão conta das repetições
aparentemente regulares que regem a repetição do mesmo com o modelo do
relógio ou dos sistemas astronômicos do cosmos ordenado. Trata-se, melhor,
171
de entender o retorno do diferente, produto do acaso, do aleatório e
imprevisível, tal como a História o mostra nos pequenos ou grandes
acontecimentos* que alteraram seu curso. Se bem seja certo que a superfície
de registro, o instituído*-organizado*-estabelecido, tenda a capturar o retorno
do diferente para colocar seu funcionamento a serviço da reprodução* do
sistema, capturando-o e recuperando-o (ver Captura e Recuperação), nunca o
consegue por completo.
REPRODUÇÃO: num sentido etimológico, significa cópia ou imitação. Na
Filosofia, na Sociologia e para o Institucionalismo (ver Movimento
Institucionalista *), designa as tentativas de reiterar algo idêntico, igualou
similar ao que já existe, cumprindo sua função conservadora. Dessa maneira,
procura-se deter os devires, acontecimentos e transformações naturais,
sociais, culturais e subjetivas.
ROMANCE INSTITUCIONAL: por analogia com o termo freudiano "romance
familiar do neurótico", o romance institucional refere-se às diferentes versões
que podem ser reconstruídas da história de uma organização, grupo ou
movimento. Os elementos a partir dos quais tal reconstrução se efetua são
muito variados. Trata-se de comportamentos, atitudes, mitos, documentos,
tradições, grafitos ete. Mesmo o Romance Institucional sendo composto de
dimensões simbólicas, realísticas, a tendência é vê-lo como um relato
fortemente influenciado pelo desejo* e por ele tingido de matizes imaginários e
fantasmáticos.
SIMULACROS: em que interessa ao Institucionalismo, os simulacros (na
filosofia platônica) são puras diferenças que não conservam nem a imagem,
nem a semelhança de sua relação com as Idéias Puras e, obviamente,
carecem por completo de identidade. Platão os considera falsos, demoníacos e
inclassificáveis. Não são seres, mas puro devir, e podem disfarçar-se de cópias
ou de Idéias Puras para confundir os espíritos. Sua "encarnação" mais
prototipica estaria nos sofistas, pensadores que não se interessam pela
Verdade ou a Virtude e que argumentam apenas para seduzir e convencer
Algumas correntes institucionalistas consideram os simulacros platônicos como
a essência do real, que se compõe de diferenças puras, fluxos, singularidades*
172
intensivas, que são o ser do devir ou processo produtivo desejante-
revolucionário.
SINGULARIDADE: ver Universalidade e Particularidade.
SOBREDETERMINAÇÃO: tipo de causalidade pela qual um efeito psíquico ou
social é o produto resultante da participação causal, desloca da e condensada
de todas as forças, instâncias e representações que, sinérgica ou
contraditoriamente, compõem a tópica da personalidade ou o modo de
produção* de uma sociedade*, respectivamente. Em cada modo de produção
(entendido em um sentido amplo, não apenas econômico) reconhece-se uma
instância" determinante última" (condição de existência), uma" don1inante"
(condição de reprodução) e uma" decisiva" (condição de transformação). A
ação causal conjunta, complexa, articulada, hierarquizada e diversifica da das
instâncias é o que se denomina sobredetermi nação.
SOCIEDADE: o Institucionalismo tem sua concepção própria do que é uma
sociedade. Define-a como uma rede, um tecido de instituições*, organizações*,
estabelecimentos*, agentes* e práticas*. Alguns institucionalistas afirmam que
as sociedades humanas estão constituídas no mínimo por quatro instituições: a
língua, as relações de parentesco, a religião e a divisão técnica e social do
trabalho. As instituições interpenetram se e articulam-se para regular a
produção e a reprodução* da vida humana. Como se vê essa definição está
bastante centrado no instituído*, organizado*, estabelecido. Corresponde ao
que a Esquizoanálise denomina socius, que pertence às formas definidas da
superfície de registro. É possível, contudo, ampliar essa definição, incluindo o
instituinte*, o organizante* e a superfície de produção.
SOCIOLOGIA DAS ORGANIZAÇÕES: esta disciplina começa com as
contribuições de sociólogos clássicos como Durkheim acerca da divisão técnica
e social do trabalho*, assim como a passagem da solidariedade mecânica à
orgânica. Igualmente fundadores são os estudos de Max Weber sobre a
burocracia (ver – Cracias *). No entanto, é a partir da década de 20, Com o
desenvolvimento do Capitalismo norte-americano e os estudos de Elton Mayo
sobre a indústria, que a Sociologia das Organizações começa a definir seu
objeto – como a investigação e intervenção sobre a empresa enquanto unidade
social que recebe o nome de organização*. Os objetivos desse enfoque são a
173
racionalização e otimização da eficiência do funcionamento de tais
associações, sem questionar em nada sua lógica ou suas finalidades. Se for
certo que posteriormente aparecem alguns enfoques menos pragmatistas,
como o de T Parsons e outros, francamente críticos, como os de W Mills e W
H. Whyte, a Sociologia das Organizações é considerada pelo Institucionalismo
como um enfoque contrário às utopias* auto-analíticas (ver Autoanálise*) e
autogestivas (ver Autogestão*). Segundo a denúncia institucionalista, a
Sociologia das Organizações, particularmente uma de suas modalidades,
denominada Desenvolvimento Organizacional, visa facilitar os mecanismos
culturais, comunicacionais e motivacionais (do conjunto empresarial e dos
grupos que o integram.) apenas com fins de melhorar o "clima" ou a
"atmosfera", conseguindo, assim, diminuir os insumos, aumentando e
melhorando a produtividade e o lucro dos proprietários.
SOCIOINSTITUClONAL: na Psico-Socioanálise, denomina-se assim à
percepção, avaliação e comportamentos transformadores que as classes
institucionais em processo de progressão (resultante da intervenção) produzem
em relação a suas condições reais de trabalho e à margem de poder que
recuperam.
SOCIOPSICANÁLISE: é uma das correntes que integram o Movimento
Institucionalista*. Foi fundada e desenvolvida por Gérard Mendel. Articula uma
concepção relativamente tradicional de Psicanálise com outra, bastante
ortodoxa, do Materialismo Histórico. O resultado é uma abordagem
politicamente moderada, cuja viabilidade é considerável. Mendel articula
formulações psicanalíticas (elaboradas para os sujeitos enquanto indivíduos)
que postulam uma impotência fundamental inerente ao ser humano (devido ao
estado indefeso no qual nasce, necessitando dos cuidados de um outro para
ter sua sobrevivência garantida). Essas formulações combinam-se com as
afirmações do Materialismo Histólico de que, num sentido coletivo, a
experiência universal de impotência é produto da distribuição desigual da
riqueza, do resultado do trabalho, do poder e prestígio, que alienam (ver
Alienação*) quem produz esses valores. Segundo Mendel, o âmbito ideal em
que se deve estudar a experiência essencial de impotência e o
desencadeamento de processos patológicos é o local de trabalho, onde as
174
vicissitudes individuais da experiência de impotência serão melhor
compreendidas, sendo analisadas num sentido coletivo no lugar mesmo onde
ocorrem – o lugar da produção. A Sociopsicanálise sustenta que, quando se
abordam os coletivos, pode-se ver que esses conjuntos vivenciam esta
experiência de impotência devido às condições do trabalho alienado (ver
Alienação*) no Capitalismo. Essa experiência de limitação gera neles,
trabalhadores, devido à sua série disposicional pessoal, um processo
regressivo de ordem coletiva. Trata-se de uma regressão do funcionamento
psico-social ou psico-institucional a um funcionamento psicofamiliar, no qual os
sujeitos viven. uma vida preferencialmente imaginária, em vez de
principalmente simbólica (correspondente às circunstâncias concretas com que
se defrontam). A situação de seu campo real vai definir-se com base numa
situação arcaica pela qual já passaram, o que os levará a vivenciar a situação
de trabalho como se essa fosse uma reedição de uma situação familiar prima
lia, povoada por figuras fantasmáticas de sua vida familiar. Suas reações
estarão tingidas pela situação de impotência infantil que os levava a se refugiar
num mundo de fantasias. Com isso, o coletivo institucional também passará a
funcionar nesse registro, buscando soluções mágicas, contraproducentes, que
vão res ultar em sintomas (atuações, inibições, delírios, somatizações,
toxicodependências), enfim, em todo tipo de patologia biopsico-social. No plano
da militância, esses quadros podem expressar-se bastante bem no que
podemos sintetizar, com Lênin, como "enfermidades infantis do trabalho":
voluntarismo, populismo, autoritarismo, messianismo, clie,ntelismo, fisiologismo
ete. A metodologia de intervenção sociopsicanalítica conserva muitas
características de intervenção psicanalítica, principalmente a interpretação.
Mas a cura não é definida em termos individuais, e sim coletivos, e pressupõe
um movimento de cada classe institucional para a recuperação da margem de
poder possível que foi tirada deles pelo sistema capitalista de trabalho
alienado.
STATUS: o status é considerado "a parte estável ou fixa" do papel. Trata-se da
condição obtida por um papel dentro de uma sistematização hierarquizada dos
mesmos.
175
SUBJETIVAÇÃO (PRODUÇÃO DE): Como dizíamos a respeito da produção de
subjetividade*, para algumas orientações do Institucionalismo não existe uma
essência ou estrutura invariável, ubíqua e universal do sujeito filosófico, social
ou psíquico. Do mesmo modo que não existe uma imagem do homem idêntica
a si mesma em qualquer sociedade, momento histórico, classe social, raça ete.
Inclusive, o modelo científico que temos no Ocidente como universal, invariável
e ubíquo é produto de um processo de produção complexo e de longa duração
que culmina no que certos historiadores denominam ilustrativamente como" a
formação do homem íntimo".
Há, sim, por contraposição ao processo de produção de subjetividade uniforme,
sujeitada e submetida, infinitos e heterogêneos processos de produção de
subjetivação livre, produtiva, desejante, revolucionária. Esses são
absolutamente contingentes, próprios de cada momento, lugar e conjuntura, e
geram sujeitos singulares nas margens de cada acontecimento*. O
Institucionalismo pretende propiciar, através da análise e da intervenção, a
montagem de dispositivos* capazes de gerar acontecimentos * e, junto com
eles, os modos de subjetivação que os mesmos precisam.
SUBJETIVIDADE (PRODUÇÃO DE): muitas correntes filosóficas e psicológicas
(entre elas, a Psicanálise), sustentam que existe uma forma universal e
invariável de constituição, composição, transformação, reprodução e extinção
do sujeito (tanto daquele da reflexão filosófica como o do psiquismo). O que
varia em cada sujeito seriam os conteúdos (representações e modalidades de
configuração dos fantasmas ou função dos mecanismos): nisso radicaria a
singularidade de um sujeito. Algumas correntes institucionalistas compartilham
essa concepção (Sociopsicanálise, por exemplo). Para outros Institucionalistas,
não existe um sujeito com uma estrutura universal e com variações apenas de
desenvolvimento, conteúdo ou estilo. O que existem são processos de
produção de subjetividade pelos quais as sociedades tendem a reproduzir
sujeitos idênticos ou similares, segundo os padrões dominantes do grupo ou'
classe de que se trate e de acordo com os moldes do instituído*- organizado*-
estabelecido.
SUPERESTRUTURA: no Materialismo Histórico, ciência da História, da
Sociologia e da Economia Política Marxistas, denomina-se superestrutura a
176
instância do todo social na qual se desenvolvem os processos ideológicos e
jurídico-políticos que têm a seu cargo a produção de sujeitos-agentes*
ideológicos, assim como de produção, difusão e assimilação de representações
e valores ideológicos. Por ou tra parte, na instância jurídico política é onde se
processam os meios legais e o uso da força para a constituição e manutenção
da ordem vigente. Os processos superestruturais operam a reprodução
ampliada do modo de produção. Na versão clássica do Materialismo Histórico,
a superestrutura reverte ou interaciona causalmente com a infra-estrutura.
TÁTICAS: são pequenos segmentos que compõem a estratégia*. É o momento
de seleção de recursos a serem empregados na etapa imediata, remetendo-sé
sempre ao panorama maior delineado pela estratégia.
TÉCNICAS: são recursos eletivos que servirão para instrumentar as táticas*.
Sua escolha é consideravelmente livre e dependerá do treinamento e
inspiração da equipe operadora, do objetivo geral e imediato a ser alcançado e
do momento e peculiaridades do coletivo em questão. Trata-se de
procedimentos (interpretativos, informativos, sensibiliza dores, expressivos,
discursivos, artísticos, desportivos, lúdicos, interrelacionais, grupais, coletivos
etc.) a serem adotados de acordo com as circunstâncias, com propósitos
diagnósticos e elaborativos.
TRANSE-ANÁLISE: modalidade de intervenção institucional e de coordenação
de grupos criada por Georges Lapassade baseada nas experiências dos cultos
afro-brasileiros, tais como: Umbanda, Quimbanda e Candomblé. Consiste
basicamente na provocação de regressões rituais e formas arcaicas de
comunidade através de estados de transe. Posteriormente, as mesmas são
elaboradas e incorporadas a novas formas da sociabilidade grupal.
TRANSFERÊNCIA: diversas tendências dentro do lnstitucionalismo
assimilaram o conceito de transferência tanto da Psicanálise freudiana como
dos continuadores de Freud (Melanie Klein, Lacan, Reich e outros). No
Institucionalismo, a idéia de transferência pode ter, segundo a corrente de que
se trate, uma definição quase igual à da Psicanálise ou outras bastante
modificadas, tanto no plano teórico como nas aplicações técnicas.
Em geral, entende-se por transferência um conjunto de processos repetitivos
conscientes, pré-conscientes e inconscientes que se dão na subjetividade
177
"individual" e" coletiva". O que se repete são pulsões, desejos, demandas,
fantasmas, papéis, hábitos comunicacionais, estereótipos gestionários,
estruturas e até complexos destinos organizacionais. No caso particular da
corrente denominada Psicoterapia lnstitucional, que propõe a autogestão* ou a
gestão participativa dentro de cada estabelecimento, considera-se que a
transferência se dá entre o coletivo de internos e os variados aspectos da vida
institucional como um todo.
Certas correntes do lnstitucionalismo, como por exemplo a Esquizoanálise,
elaboraram uma profunda reflexão filosófica sobre a transferência em relação
ao conceito de transversalidade e com uma crítica da categoria de repetição.
Para essa orientação, o que se repete substancialmente é o diferente, e, em
conseqüência, existiria uma transferência que não funciona como resistência
ou obstáculo, mas como motor das transformações.
TRANSVERSALIDADE: interpenetração, entrelaçamento, no rizoma (modelo
de uma raiz vegetal que não tem membranas celulares nem limites externos
precisos), que é imanente à rede social das forças produtivo -desejantes-
instituintes-organizantes. A transversalidade veiculada pelas linhas de fuga do
desejo e da produção* é uma dimensão do devir que não se reduz nem à
ordem hierárquica da verticalidade nem à ordem informal da horizontalidade
nas organizações*. A transversalidade é capaz de provocar sínteses insólitas
entre elementos incompatíveis, gerando efeitos à distância sem transmissores
detectáveis, a partir de conexões locais. É uma travessia molecular dos
estratos molares. Como montagens, os dispositivos ou agenciamentos*
heterogêneos inovadores que escapam aos limites de estratos, territórios,
códigos, sobrecódigos e axiomáticas (em outra terminologia: os IDE) formais e
oficiais, deflagram efeitos transversais inventivos e libertários.
UNIVERSALIDADE, GENERALIDADE, PARTICULARIDADE,
SINGULARIDADE: no que interessa ao Institucionalismo, o denominado
momento de universalidade do conceito significa que este compreende todos
os casos particulares e singulares de seu objeto. Contudo, é importante
diferenciar um conceito universal abstrato de outro concreto. Um juízo ou um
conceito universal abstrato é, em certa medida, vazio, um puro produto do
pensamento. O momento da generalidade compreende a caracterização de um
178
atributo abstrato da universalidade. O momento de particularidade do conceito
compreende alguns casos abstratos da generalidade. Pode-se entender que
um conceito particular dá conta apenas de como alguns casos realizam o que
já estava compreendido no conceito universal, mas também é possível
sustentar que os casos particulares negam o conceito universal enquanto
abstrato e lhe acrescentam determinações não previamente incluídas nele. O
momento da singularidade do conceito compreende cada caso da
universalidade concreta. Pode-se sustentar que nega de uma só vez a
universalidade e a generalidade abstratas e a particularidade, na medida em
que se refere a um objeto único, máximo nível de determinação atingível.
Quando o conceito universal abstrato é reformulado incorporando as negações
gerais do particular e do singular, é que se torna um universal concreto
verdadeiro ou da Razão (segundo Hegel).
Aplicando o lnstitucionalismo a essas categorias da lógica, cabe sustentar que
uma instituição é pensável nesses quatro momentos: a universalidade abs trata
(por exemplo, a linguagem: a generalidade dos atributos das línguas), a
particularidade (por exemplo, as línguas indo-européias), a singularidade (por
exemplo, tal dialeto napolitano e seu uso concreto, por um falante/ouvinte
desse dialeto). Segundo entendemos a proposta de R. Lourau, a Análise
Institucional estudaria as insuficiências do conceito em seus respectivos
momentos, enquanto cada um deles se define por sua afirmação e não é capaz
de incluir o que resulta de negar e ser negado pelos outros. Supõe-se que a
intervenção no caso singular daria oportunidade para evidenciar os efeitos de
desconhecimento que a lógica do conceito gera no discurso e no saber dos
coletivos institucionais; dessa maneira possibilitaria sua desalienação, assim
como contribuiria para a reformulação incessante do conceito das instituições
como universais concretos.
USUÁRIO: no Institucionalismo, entende-se por usuário quem demanda,
adquire, se apropria, possui, consome, usufrui de bens ou serviços "materiais"
ou "ideais". Cabe acentuar que esse usuário-consumidor pode ser individual ou
coletivo, personalizado ou anônimo. No caso de uma intervenção institucional
standard, frequentemente designa-se o conjunto dos usuários como "staff-
cliente".
179
UTOPIA ATIVA: denomina-se assim as metas e objetivos mais altos e nobres
(no sentido dado a esses termos por Nietzsche) que orientam os processos
produtivo-desejante-revolucionários dos movimentos e agenciamentos* sociais
em seus aspectos instituintes*-organizantes*. Essas metas não estão
colocadas em um futuro remoto nem terminal, do tipo dos que são enunciados
como escatologias ("Fim da História" ou "Fim dos Tempos"). Na Utopia Ativa há
uma imanência entre fins e meios; o processo produtivo desejante-
revolucionário é seu próprio fim e meio em cada aqui e agora.
VERTICALIDADE: na Psicologia Social de Pichon Rivière, a verticalidade
designa a dimensão histórico-pessoal que cada integrante do grupo traz como
disposição que passará a fomldr parte da determinação dos fenômenos do
campo grupal. Na Psico-Sociologia Organizacional e no Institucionalismo, a
verticalidade define a dimensão da vida organizacional que corresponde ao
organograma formal, quer dizer: cargos, hierarquias, funções etc.
APÊNDICE
O INSTlTUClONALISMO NO FINAL DO MILÊNIO
O presente apêndice foi escrito para a terceira edição em português
deste livro, em outubro de 1995. Optei por reproduzi-lo quase sem alterações,
para que possa ser comparado com um post scríptum redigido especialmente
para a quinta edição. Parece-me interessante que o leitor possa, desta forma,
avaliar acertos e desacertos do primeiro texto, relacionado-o com o segundo,
obviamente a partir de suas próprias convicções.
Primeira Parte
O grande institucionalista e amigo Félix Guattari costumava repetir que
os escritos tinham que ser datados. Essa recomendação devia-se não somente
180
ao fato de que situar um texto em um calendário permite relacioná -lo com a
biografia do autor, e isso costuma ser definido como "contexto ou conjuntura
histórica", mas também à importância de marcar essa data com um nome e um
tempo que designam um encontro-acontecimento, ou seja, a individuação de
um real-absolutamente novo – do qual o mesmo texto pretende ser parte.
Obviamente, este apêndice não tem a pretensão de alcançar tal
excelência, contudo me parece que tem o direito de tentar. Neste final de
milênio vivemos, sem dúvida alguma, umepos peculiar, composto dos seus
próprios ethos, cronos, pathos, topos, lagos e telos, expressando isso de uma
forma clássica. Desde já, a existência de uma composição sui generis não é
exclusiva da nossa fase, sendo que cada período histórico tem, como se sabe,
a sua. Também cada" civilização", porém, detém sua imagem e sua maneira de
efetivar aquilo que entende por "passado", "presente", "cultura", "espaço",
"movimento", "permanência", "troca", "todo", "partes", "valores", "pensamento".
Guattari propunha denominar a nossa" etapa" de "Capitalismo Planetário
Integrado", como aplicação teórica de um termo matemático que qualifica um
sistema hipercomplexo e heterogêneo em movimento, integrado por uma
função axiomática que equaciona todas as coordenadas gerais e modula
permutas equivalências entre seus produtos. Nessa designação há muita
coincidência com aquilo que Karl Marx antecipou como a chegada de "A fase
Superior do Capitalismo", sendo que, tanto na denominação de Marx como
naquela de Guattari, cabem – devidamente redefinidos – termos mais ou
menos "na moda", tais como "Globalização", "Transnacionalização",
"Sociedades Pós-Industriais", "Pós-Classes" e "Pós -Massas", ou
"Hipermodernas", ou "Pós-Modernas", ou "lnformatizadas", ou
'A.utomatizadas", "Multitudinárias" e assim por diante.
Uma análise detalhada dessas categorias seria, evidentemente,
excessiva neste escrito. Conformarei-me apenas em recordar algumas
características que se tornou habitual atribuir a este panorama.
Costuma-se declarar, e porque não, constatar, de certa forma, que: – No lapso
de tempo incluído entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a atualidade tem
havido, em setores localizados do mundo, um crescimento enorme da
181
"Riqueza" – entendida como meios de produção, de distribuição, de
comunicação, de circulação, de troca e de consumo.
– Esse incremento inclui bens materiais, incorporais, serviços, e que
esse aumento qualitativo e quantitativo resultou em uma melhora considerável
de "qualidade de vida" dos setores por ele beneficiados.
– Nesse mesmo lapso, gerou-se uma tendência ao desmorona mento de
regimes políticos totalitários, ditatoriais, autoritários e outros, e sua crescente
substituição por diversas modalidades de sistemas democráticos indiretos,
representativos e eleitorais, onde vige, pelo menos formalmente, o Estado de
Direito, os Direitos Civis e os Direitos Humanos, possibilitando, assim, tanto a
existência como a expressão e a militância de todos os tipos de idiossincrasias
minoritárias, regionais, nacionais, raciais, sexuais, de culto, de idade, de
situação econômica, política, cultural, geográficas.
– Como causa e efeito dessas transformações, tem havido o
aperfeiçoamento e a consolidação das instituições democráticas, judiciais,
legislativas e executivas, tanto na estrutura dos Estados como na da Sociedade
Civil, o mesmo tendo se realizado em todos os campos e níveis, desde o local
até o mundial. Isso propiciou uma inclinação ao predomínio da negociação
universal como método para dirimir as diferenças e conflitos, no lugar da
predisposição ao uso dos recursos violentos e bélicos de quaisquer espécies.
– Todas essas manifestações de "progresso" desenvolveram-se sobre a
base da implantação geral de diferentes variedades do sistema econômico
capitalista – preservação da propriedade privada dos meios de produção,
economia de mercado, empresas livres e outros-, incluindo nele as variedades
político-culturais do Liberalismo, os Socialismos Reformistas, as Sociais-
Democracias e ou tros similares. A mencionada instauração geral acelerou-se
após o estridente fracasso de todos os ensaio de "Comunismo", "Socialismo
Real", "Nacional-Socialismo Nazi-Fascista", diversos "estatismos" e"
coletivismos" cujas conseqÜências deletérias demoraram algumas décadas, e
ainda hoje continuam trazendo prejuízos à vigência plena da proposta histórica
à qual nos referimos aqui.
– As metamorfoses do Capitalismo trouxeram como conseqüência uma
tendência à racionalização – diminuição, limitação, compactuação,
182
eficientização, baratização, democratização, modernização das estruturas,
funções e atribuições – dos Estados Nacionais e da sua responsabilidade
perante os cuidados com a saúde, educação, justiça e ordem pública, assim
como os aspectos essenciais da infra-estrutura e da soberania nacional. Isso
significou a vigilância e ingerência sobre tais poderes, exercícios e benefícios
por parte da Sociedade Civil.
– Obviamente, toda essa" evolução" está em curso e coexiste com a
permanência, em todos e em cada um dos processos, estruturas, agentes,
usuários, consumidores,lógicas e âmbitos, de formas arcaicas, todavia não
superadas," em vias de desenvolvimento e de crítica".
– Desde já, esses processos não são universais nem suficien temente
implantados, e nem aperfeiçoados. Por isso, persistem graves dificuldades de
toda espécie que afetam tanto algumas regiões do mundo, assim como
determinados países e também alguns segmentos das nações prósperas que,
por diversas razões, resistem em adotar os princípios e cumprir com os
esforços necessários para propiciar sua incorporação à Ordem e Progresso
generalizados. Esses setores a dificultam devido a vocação, desejos,
interesses e açôes contrários a esses desígnios.
Todos esses indicadores de "evolução", que tendem a realizar-se de
forma gradual, crescente e incessante, não somente em quantidade como
também em amplitude, podem passar em alguns momentos e lugares por
"conjunturas" adversas, transitórias e circunstanciais. As mesmas se devem
frequentemente a fatores ainda incontroláveis, tais como fenômenos naturais
de grande porte ou erros de avaliação, planejamento e execução, que são
oportunamente subsanáveis.
No campo do social, cultural e subjetivo, essa orientação mundial dirige-
se ao treinamento de indivíduos-sujeitos-agentes-produtores consumidores-
usuários conscientes, imbuídos de um espírito de sociabilidade variável e suí
generís, porém invariavelmente inspirados por valores de cidadania e respeito
à lei, assim como pelo culto à liberdade, à justiça e à competição sadia.
Esse andamento, apesar de não ser a culminância, é a sólida
confirmação de que os modos de produção, os regimes políticos e os sistemas
de representação cultural que compõem este estágio do Capitalismo Mundial
Integrado, mesmo frágeis e frequentemente precários, demonstram ser a
183
"menos pior", senão a única alternativa possível para a consolidação histórica
dos ideais que animaram os grandes movimentos que deram origem à
Modernidade.
Segunda Parte
O que acabamos de ler no ponto anterior é uma tentativa de expor, de
forma esquemática e prototípica – e faço votos para que não tenha sido irônica
–, uma maneira de descrever, entender e avaliar o panorama munclial
contemporâneo. Está claro que existem inúmeras versões a respeito que,
apesar de muito mais sofisticadas e matizadas, não deixam de conduzir a
conclusões parecidas.
Quem investiga o mundo atual e também vive e atua nele acostuma se a
experimentar, frente ao quadro que acabamos de delinear, uma série de
impressões que, a meu ver, vale a pena repassar.
Em primeiro lugar, vem-lhe à mente a idéia de que deve haver certo erro
ou mal-entendido em algum ponto, pelo qual a realidade – por mais relativa
que seja sua aparição – não parece coincidir de modo algum com o "retrato"
que se pinta dela.
Em segundo lugar, não se pode evitar a sensação de que, de acordo
com esta leitura do panorama mundial, uma imensa quantidade de
conhecimentos produzidos nos últimos séculos por ilustres
autores especialistas em diversos conhecimentos e também no saber do
sentido comum – parece ter perdido toda e qualquer validade, ou é
repetida, de forma parcial ou distorcida, como se fosse uma "novidade
recém descoberta".
O saber tecno-burocrático-acadêmico dominante nestes tempos ou
ignora os clássicos, ou os cita apenas nas passagens em que supõe poder
refutá-las, ou bem os despreza, comportando-se como se acreditasse que "na
prática todas essas teorias são outra coisa", isto é, não servem para nada, ou
funcionam somente dependendo do uso peculiar que se decide fazer delas.
Em terceiro lugar, isso que acabamos de dizer aplica-se também à
memória dos acontecimentos históricos. Estes, incluídos os considerados
antecedentes propícios ou contrários ao horizonte imperante, são tratados
184
como se fossem inexistentes ou irrelevantes, à medida que "o que importa" é a
caracterização empírica do que está acontecendo agora, os chamados fatos –
definidos como tais na proporção em que são protagonizados e interpretados
por supostos triunfadores.
O mais grave desta "realidade", da qual estas "impressões" são um registro, é
que a versão que relatamos anteriormente – que, por outro lado, os
conhecedores dos processos de construção e difusão "ideológica", de "opinião
pública" ou de "produção de subjetividade" sabem de sobra – não é exclusiva
dos beneficiários ou dos favorecidos pelo estado atual das coisas. A colossal,
heterogênea e onipresente maquinária que gera esses efeitos consegue que
essas concepções – entendidas no sentido mais amplo possível e os "estilos
de vida" e "de morte" que lhe são conseqüentes, sejam adaptados ou
almejados pela imensa maioria da humanidade.
Os críticos mais implacáveis desse panorama – especialmente os
denominados "de esquerda" –, mesmo se empenhando em denunciar o que
consideram flagrantes contradições, falsidades e flagelos dessa Ordem
Mundial, acabam por compartilhar, desavisadamente, muitas das suas
categorias, conceitos, procedimentos e resultados. Boa parte dessa conivência
involuntária – ou dessa cumplicidade mais ou menos assumida resulta não só
da estupidez e de necessidades, desejos e interesses do pensamento crítico,
mas também da difundida convicção de que, "a rigor", não existem reais
alternativas para a situação imperante, a não ser aquelas que consistem
em um aperfeiçoamento do conhecimento e na execução da mesma
lógica que a infunde.
Em quarto lugar, é sabido e constatado que aqueles pensadores
militantes, ou simplesmente cidadãos que resolvem falar, escrever, agir e
coerentemente viver de acordo com uma inteligência crítica e segundo alguma
dessas propostas questionadoras supostamente inexistentes,não apenas
podem sofrer as mesmas ações repressivas de seus antecessores de todas as
épocas – que, dependendo do país onde atuam, vai desde a eliminação física e
a tortura até a reclusão ou o exílio – mas também tornar se passíveis de
inúmeras modalidades de desqualificação, desprezo e exclusão mais ou menos
sutis.
185
Uma outra modalidade parecida que na atualidade adquiriu uma
importância bastante considerável é a de ter que suportar a atribuição do status
e papel de "catastrófilos"," catastrólogos", "catastrofistas", rótulos esses que
servem para etiquetá-los como "amantes ou cultores" mórbidos, ou como"
especialistas com falso prestígio", ou como" delirantes adoradores "de um
cataclismo imaginário e inexorável. A sentença mais draconiana é que "são
inaptos para oferecer algum projeto positivamente útil" e só sabem "criticar e
vaticinar o caos".
Em verdade, tudo depende de como se define cada um dos termos:
noções, funções, conceitos, categorias, signos, indicadores, analisadores ou
idéias com os quais se pensa, se avalia e se procede frente ao estado
contemporâneo das coisas. Em alguns campos do saber e da
vida notoriamente na Economia, Sociologia, Psicologia e Política – as
declarações, planos e resultados dos experts chegaram a um grau de
hermetismo, obscuridade, refinamento e desacordo que, longe de serem
sinônimo de inteligência e eficiência, conseguem apenas dissimular sua
sistemática inoperância. Porque, se por um lado – como veremos mais adiante
– alguns aspectos do mencionado estado das coisas são tragicamente
ostensivos outros são confusos, ambíguos, delicados e contraditórios. Prestam-
se, assim a valorizações complexas nas quais a tônica "otimista" ou
"pessimista" das estimativas é de difícil decisão.
Essa questão de "otimismo" versus "pessimismo" é, evidentemente, tão
velha como o próprio mundo, mas segundo o meu entendimento, tantc no
passado como nas circunstâncias presentes, é abordada de fom,a errônea O
problema não consiste em puxar conclusões sobre se o mundo de hoje é
melhor ou pior, quantitativa e qualitativamente, em todos ou em algum dos
aspectos da existência, que na Idade Média. Tampouco, por exemplo consiste
em cotejar o que o Capitalismo veio a ganhar com os desmandoó do
Socialismo Real. Trata-se de comparar o desenvolvimento potencial e efetivo
de todos os tipos de forças produtivas de uma época com as realizações
abstratas ou concretas alcançadas durante a mesma. Dito de outra maneira, o
assunto consiste no confronto entre o que poderíamos fazer e o que realmente
fazemos.
186
Muitos autores enfatizaram a velocidade do processo que o incremento
das mais diversas potências adquiriu nos últimos vinte anos: a mesma é tão
vertiginosa que resulta muito maior que a conseguida nos recentemente
passados duzentos anos. Frente a essa formidável escalada, o problema
corretamente posto reside em perguntar o que se conseguiu exatamente com
essas disponibilidades. É uma brevíssima avaliação dessa natureza que me
proponho intentar, a seguir.
Para examinar os aspectos mais relevantes dessa comparação, não
citarei muitos dados estatísticos que, se bem necessários e ilustrativos,
tornariam estas linhas intoleravelmente difíceis de serem escritas e lidas. Por
outro lado, nossos tempos, com respeito às estatísticas, mostram uma
peculiaridade surpreendente. Há hoje levantamentos estatísticos acerca de
"tudo", e "todo mundo" parece ter acesso aos mesmos. Contudo, são poucos
os resultados que podem ser considerados confiáveis; não costumam coincidir
uns com os outros; e os números que verdadeiramente interessam para tomar
posição definitiva acerca das questões mais cruciais são considerados
sigilosos e mantidos em secreto. O que parece constatável são algumas
conclusões que a seguir apenas menciono.
As últimas reuniões de cúpula e as informações dos organismos
internacionais de grande porte insinuam que:
– Dos mais de seis bilhões de habitantes da Terra, pelo menos um
bilhão vive em um estado que a Organização Mundial da Saúde denomina
Miséria Absoluta, e outro bilhão e meio vive em um nível de Miséria Relativa ou
Pobreza.
– Dois bilhões de pessoas do globo terrestre subsistem em um estado
que contempla apenas racionalmente o que – de maneira muito controvertida –
denomina-se "satisfação de suas necessidades básicas".
– Dos quinhentos milhões restantes, 30% (trinta por cento) possuem
70% (setenta por cento) de qualquer tipo de riqueza disponível no planeta.
– Até pouco tempo atrás, o número reduzido de nações mais poderosas
havia acumulado um arsenal bélico cuja capacidade era mil vezes superior
àquela necessária para destruir qualquer indício de vida sobre a face da terra.
Devido às diferentes gestões internacionais, que resultaram no fim da Guerra
Fria, o arsenal de armas atômicas foi reduzido; continua-se discutindo, porém,
187
se houve aumento ou não de armas pesadas e de curto e médio alcance.
Neste momento, estão em andamento quase cem guerras de tipo internacional,
limítrofe, civil, religioso, racial e outros; a cada ano duplicam-se os
equipamentos militares e policiais destinados, supostamente, à manutenção da
ordem constituída e à segurança pública, cujo foco principal é a defesa da
propriedade privada e da pessoa dos proprietários. Surpreendentemente –
como todos estão cansados de saber – a criminalidade, salvo exceções locais,
só vem aumentando.
– A distribuição da miséria absoluta e relativa, à qual me referia acima,
prejudica inapelavelm.ente todo o continente africano e, de forma menos
espetacular, a Índia, Oriente Médio e América Latina. Ela se encontra –
desigualmente, mas estrondosamente – em 95% dos países, nos seus
respectivos bolsões internos de pobreza.
– Os grandes blocos dos países ricos – EUA, Canadá, CEE e os
chamados "Tigres Asiáticos" (Japão, Coréia do Sul, Vietnã, Indonésia, Malásia,
Taiwan e, de maneira muito peculiar, a China Comunista) –, apesar de serem
os principais assentos de opulência mundial, apresentam marcados desníveis e
reconhecem que estão ameaçados pela possibilidade de graves crises de
diversos tipos, tanto na atualidade como no futuro próximo.
– Os indicadores mundiais de desemprego certificam constantemente
que a desocupação é devido não apenas ao acelerado processo de
substituição da força humana de trabalho pela automação, mas também à
tendência ao esgotamento dos mercados externos e internos, assim como à
hiperprodução desregulada e à acumulação de estoques.
– O aparente crescimento econômico das chamadas "economias
emergentes" – apesar dos casos serem diferentes e complexos – em geral é
fraco e instável, e está baseado seja na venda da força de trabalho baratíssima
e informal, sem direito laborais e sociais, seja na extração irrecuperável de
matérias-primas e energéticas, ou ainda nas condições contratuais leoninas
dos acordos de exploração, remessas de lucros, exceção de impostos... Além
de tudo isso, o incremento da riqueza nesses "capitalismos nacionais tardios"
mostra uma distribuição desigual do benefício, idêntica ou pior à que tinha
vigência nas fases coloniais ou neo-coloniais clássicas dessas mesmas
nações.
188
– Os Estados Nacionais – tanto os "democráticos" como os
"autoritários", particularmente os dos países chamados" periféricos", "em vias
de desenvolvimento", "dependentes" – apresentam-se cada vez mais
empobrecidos, ineficientes e desprovidos de poder internacional devido a sua
subordinação aos onipotentes organismos econômicos internacionais. A
decadência mundial do Estado de Bem Estar – causada fundamentalmente
pela limitação orçamentária imposta à política tributária pelo Capital também
obedece à privatização crescente de suas funções. Isso pela necessidade do
Capitalismo de incorporar à produção e ao mercado ganancioso todas as
atividades possíveis para compensar a tendência de queda da taxa de extração
da mais-valia resultante das causas acima apontadas. Esse problema, porém,
torna-se gravíssimo nos países "periféricos" por razões óbvias: as
necessidades de serviços infra-estruturais como os de educação, saúde,
seguro-desemprego, moradia, saneamento básico e segurança pública, são
infinitamente maiores que nos países centrais; a distribuição da renda é muito
mais desigual, o poder econômico dos lobbies locais sobre os governos é
enorme, a política tributária é ridiculamente favorável às grandes fortunas e a
política fiscal é incompetente, corrupta, corporativo-burocrática, eleitoreira
demagógica. É de se supor o que ocorre quando esses países são afetados
pelo declínio próprio da transnacionalização-privatização.
– Certo incremento do acesso de setores mais an1plos da população a
alguns produtos e serviços – devido à hiperprodução e ao barateamento da
produção massificada dos mesmos – deve ser entendido como um resultado
muito mais atribuível ao poderio tecnológico dos parques industriais que ao
efeito da ascensão econômica de tais segmentos populares. A lógica dessa
melhora é parecida com aquela responsável por certa diminuição dos índices
de morbi-mortalidade: não se trata de um aperfeiçoamento amplo e consistente
de saúde popular, resultante de uma sólida elevação das condições de vida e
de atenção médica integral, e sim do espetacular e barato progresso da técnica
imunológica.
– O aumento da criminalidade, particularmente da organizada -
empresarial – está se tornando não geométrica, mas exponencial. As
chamadas genericamente "máfias", relacionadas ao narcotráfico e ao tráfico de
armas, ao jogo ilegal, à prostituição, ao contrabando, ao seqüestro, ao roubo, à
189
falsificação e assassinato por encomenda, têm adquirido tal poder financeiro
que parecem estar integrando formalmente os processos econômicos e
políticos, tal é seu grau de interferência no comércio de influência, de proteção
e outros.
Para não carregar demasiadamente este texto, que não é nada mais que
um apêndice, terei que parar por aqui, limitando-me a mencionar problemas
tais como a nomadização forçada das populações miseráveis para os países
ricos, a sinistra questão dos fundamentalismos, do terrorismo sectário ou de
Estado, o comércio de crianças e de órgãos humanos, a total falência dos
aparelhos judiciários, policiais, carcerários e assim por diante.
É esse o "Mundo Feliz" da Globalização do Capitalismo Planetário
Integrado em sua "Fase Superior"?
Terceira Parte
Esse tema do "otimismo" versus "pessimismo" está intimamente
relacionado com o outro, o do "velho" e do "novo" que mencionei anteriormente
e que poderíamos reformular e ampliar do seguinte modo apesar de que, devo
avisar, não poderei definir detalhadamente neste âmbito, como desejaria, todos
os termos que utilizarei.
Quando se afirma que o Capitalismo Planetário Integrado – a
"Globalização" e a internacionalização mundial do Capitalismo em sua Fase
Superior – é resultado do "desenvolvimento", do "progresso", da "evolução" do
Capitalismo, o mínimo que se pode fazer é analisar o significado exato dessas
palavras. É preciso, porém, aclarar que esta análise, em si mesma, é parte da
questão do "velho" e do "novo", à medida que já foi antecipada quase
exaustivamente por vários dos colossais pensadores do século passado
e que, devido a um laborioso esquecimento de seus detalhes, nos vimos
na obrigação de expor esta descrição como se fosse uma premissa. Esses
grandes trataram, cada um a seu modo, de periodizar as formações históricas,
explicando como cada uma delas era e é – à medida que as mesmas
subsistem no panorama atual – um modo sui generis, digamos, de gestar,
190
administrar e destruir tudo o que compõe a realidade, seja como for que ela se
defina.
Cada formação histórica compreende, no mínimo, quatro grandes
"continentes" ou "territórios", distribuídos em superfícies (vide Nota 1): da
Natureza, da Sociedade, da Subjetividade e da Maquinária. Cada formação
histórica caracteriza-se pela modalidade com a qual, em cada um de seus
territórios e em todos eles, dá andamento a quatro processos: de Produção da
Produção, de Produção de Reprodução, de Produção de Antiprodução e
de Produção de Demanda-Consumo e Consumação.
Em cada formação histórica, os territórios citados e os processos que
os" animam" estão intimamente interpenetrados entre si, e isso implica que são
parcialmente diferenciados, e também imanentes. Nenhum deles é
prescindível, nenhum é causa última nem efeito exclusivo do outro, apesar de
que, em cada formação histórica, algum possa prevalecer e/ou aparecer como
sendo assim.
A modalidade e a prevalência de cada um desses processos em cada
um desses territórios-superfícies determina as peculiaridades das funções,
mais ligadas à reprodução e a antiprodução, e dos funcionamentos, mais
relacionados à produção e à consumação, de cada "parte" e do "todo" de cada
complexo histórico.
Uma nova definição de maquinária como conjunto difuso, externamente
aberto e internamente heterogêneo, heterólogo, heteromórfico, auto-
producente, em movimento transformador contínuo, semi-determinado, semi-
aleatório de "peças" variáveis, dispersas e "oni conectáveis" – ou seja, uma
formação histórica que pode ser entendida como uma Megamáquina,
Maquínica. Isso é diferente de dizer "mecânica" ou "automática", seja nas
modalidades das máquinas elétricas ou eletrônicas, cibernéticas etc.
Dadas as características das funções e do funcionam de cada formação
histórica – ou seja, de sua "Totalidade" ou Megamáquina – os efeitos deletérios
do predomínio da Reprodução e da Antiprodução podem manifestar-se através
de inumeráveis índices ou indicadores. Limitarei-me, porém, a mencionar três
fenômenos: os graus e tipos qualitativos e quantitativos de exploração,
dominação e mistificação lhes são próprios. Nestes indicadores, mesmo
prevalecendo os coletados no território da sociedade, também importam as
191
relações dos mesmos com os campos da natureza, da subjetividade e da
maquinária.
Obviamente, cada formação histórica possui também os recursos
próprios de pensamento, saber, conhecimento e valores que, a seu modo,
conseguem inventar, definir, detectar e criticar esses índices. Sendo assim, a
decisão, o procedimento e a interpretação dos resultados da comparação – de
forma a fazer uma avaliação – de uma formação histórica com outra são, por
sua vez, outro indicador do tipo de formação histórica que assim o faz.
Dito de outra maneira, as avaliações dos dados são valores das
sociedades que dominam as sociedades que avaliam.
Espero ser mais explícito agora sobre porque devemos comparar nossa
formação histórica atual – a primeira que está em vias de conseguir uma
hegemonia mundial quase absoluta – não com as outras, mas com as
potências de produção que detêm, assim como com o grau de
reprodução e anti-produção que as investem, isto é: com os índices de
exploração, dominação e mistificação que lhes são próprios.
Se não procedermos dessa forma, cairemos exatamente em um dos
mecanismos de mistificação que são especiais da nossa formação histórica,
isto é, a falsa generalização de algumas melhoras localizadas – por exemplo, a
realização de blocos de nações ricas, a qualidade de vida dos países nórdicos
e outros.
Repassando o panorama descrito na segunda parte deste apêndice,
trata-se de julgar, não se nossos terríveis índices de exploração,
dominação e mistificação são melhores ou piores, por exemplo, que os
do Feudalismo, mas se dadas as incalculáveis forças que a humanidade
dispõe, quanto deixa de fazer com elas, ou quanto e como as investe na
reprodução ou antiprodução que geram as atrocidades dos referidos
índices. Isso precisa ser dito, sem ignorar que, se comparamos alguns dos
nossos indicadores com, por exemplo, os de algumas formações primitivas
tribais – cujas forças produtivas são ínfimas –, seus tipos de exploração,
dominação e mistificação são, sem dúvida alguma, bem "menos atrozes" que
os nossos.
Considerando o que foi exposto, o que significam "Progresso",
"Evolução" e "Desenvolvimento" enquanto valores definidos pelo Capitalismo
192
triunfante? Por um lado, dado que os indicadores medidos como resultado da
aplicação dos critérios da própria lógica do Capital são deploráveis, isso
significa que nosso " progresso", "evolução" e "desenvolvimento" estão
longe de tornarem-se efetivos. Por outro lado, julgados segundo a
potencialidade produtiva intrínseca ao Capitalismo, tais índices mundiais são,
sem dúvida, cataclísmicos.
Por consequência, a afirmação de que o Capitalismo é o modo, sistema,
regime que "melhor" está protagonizando a realização gradual de uma certa
maneira de gerar e relacionar Produção, Reprodução e Antiprodução (assim
como seus estilos" de vida" e" de morte") – tal como foi anunciado na famosa
fórmula da Revolução Francesa e do Iluminismo, "Liberdade, Igualdade,
Fraternidade" – não é apenas uma mentira, um erro, um equívoco, um
sofisma, uma racionalização ou um delírio megalomaníaco. Trata-se de
uma auto-convalidação da Lógica do Capital, imanente a "todos" e a cada
um dos campos ou territórios antes citados que, apesar do cinismo
peculiar do sistema de representações dessa fórmula mundial, continua
sendo um recurso necessário para sua permanência. Ou seja, apesar da
crítica, por exemplo, da Esquizoanálise à importância da ideologia ou das
ridículas afirmações acerca de seu " final", o Capitalismo ainda precisa
mentir.
Cabe apenas mencionar agora, muito elementarmente, uma série
desses conhecimentos do século XIX – produzidos por autores de diferentes
orientações – que parecem ter sido "esquecidos", ou que são citados como
"insuficientes" ou "já superados", ou que são enunciados – prévia deformação
– como "novidades" funcionais para essa leitura "otimista", "realista",
"moderna".
O Capitalismo, estrictu sensu, é um modo de produção-reprodução-
antiprodução-consumação da realidade – dito no mais amplo sentido já definido
– que se caracteriza por estar regido por uma integral axiomatizada,
supostamente geradora, "animadora" hierarquizadora, organizadora, limitante e
destruidora do "todo" da realidade. Essa integral é denominada Equivalente
Geral Dinheiro.
O Equivalente Geral, a Axiomática do Capital – que pode se expressar
através de quantidades abstratas, de dinheiro-moeda ou "letras" de diferentes
193
naturezas, como títulos de propriedade, ações, bônus, cédulas ou registros
informáticos – é uma medida arbitrária de valor. Esse Equivalente Geral, que
se acumula como inumeráveis forças produtivas não retribuídas, torna-se a
medida para a qual deve ser traduzido o resultado da extração, apropriação,
acumulação e centralização de inumeráveis forças-formas de produção não
pagas.
As modalidades clássicas do Capital são o Capital Latifundiário, o
Industrial e o Financeiro; subalternamente, porém, é possível falar também de
Capital de Poder, de Saber, de Desejo – Consciente e Inconsciente –, de
Semiotização, e até de Beleza – Dominação e Mistificação.
Entre as principais forças-formas dessa produção está a força-forma do
Trabalho "Humano" – entendendo como tal aquele composto por energias
físico-químicas, biológicas, psíquicas, sociais, subjetivas – que deve ser
"forçada", de maneira sumamente variada, a submeter-se à citada equivalência
e a sua valorização e remuneração parcialmente não paga – Dominação e
Mistificação – pela força física ou por modalidades de subjetividade,
semiotização e outras.
As condições fundamentais que possibilitam a produção, distlibuição,
possessão, apropriação, troca, consumo e fruição dos produtos de toda
espécie, é a conversão crescente de tais produtos em mercadorias bens de
troca, enquanto interessam por seu valor de compra-venda, e só
secundariamente pelo seu valor de uso-satisfação – pois se o processo de
capitalização realiza-se em cada passo desse circuito, cada um deles está
informado pelo circuito de compra-venda, ou seja, operações de troca
mediadas pelo dinheiro.
O Capitalismo como modo – dito no sentido amplo antes apontado –
está constituído por contradições famosas que lhe são essenciais. Por
exemplo: as primárias, que se estabelecem entre o desenvolvimento das forças
produtivas de todo tipo e as relações de produção de toda espécie; e as
secundárias, como as que ocorrem na competição entre as diversas
modalidades do Capital. Essas contradições são tanto produtoras do
crescimento produtivo e cumulativo e da reprodução das condições restritas e
amplas da existência do Capital quanto demarcadoras de seus
tetos classicamente denominados limites internos e externos – e de sua
194
subsistência. Os limites internos costumavam ser reduzidos à existência da
força de trabalho disponível, ou seja, comprável e vendável através do Capital
chamado variável, o qual habitualmente era tido como sinônimo da existência
de trabalhadores vivos e produtivos. Era costume atribuir aos limites externos a
existência de mercados solventes, isto é, de compradores suficientes de
mercadorias.
O Capital variável inclui também os insumos produtivos: gastos de
crédito de dinheiro-mercadoria, empreendimento, energéticos e territoriais, de
matérias-primas e manutenção e aperfeiçoamento dos meios de produção
propriamente ditos – esses últimos constituindo o Capital fixo.
Porém, além dos gastos da reprodução ampliada – manutenção das
condições jurídico-político-subjetivo-libidinais do Capitalismo, cujo protagonista
principal é o Estado –, dependendo do ramo de produção tratado, deve ser
acrescentado ao Capital fixo e ao variável o que podelíamos chamar de gastos
com a produção de necessidade de demandas de consumo e fruição
propriamente ditos, isto é, produção de mercado. Entre as variadas situações
nas quais essas contradições transformam-se em aporias e conduzem à
celebre crise do Capitalismo, as mais conhecidas são aquelas que resultam
das hiperproduções – excesso de mercadorias que se barateiam
"excessivamente" e não compensam as inversões – ou do esgotamento
relativo dos mercados, que perdem assim seu poder aquisitivo.
Concomitantemente, podem haver crises provoca das, pois as lutas operárias e
camponesas questionam a propriedade das diversas formas de Capital fixo,
incrementam o gasto do Capital variável através de reivindicações salariais ou
de melhores condições de trabalho ou chegam, em suas lutas políticas, a
apropriar-se parcial ou totalmente do aparelho de Estado. Sabe- se, porém,
que o Capitalismo é um modo histórico que, desde suas origens, não só
aprendeu a prevenir e resolver as crises, mas também viver com elas, nelas e
delas. As manobras do Capitalismo a esse respeito são inumeráveis e, não
podendo ampliar detalhadamente este ponto, mencionaremos somente
algumas essenciais.
Ao nível da produção, o Capitalismo suplantou a extração de mais-valia
relativa – aumento das horas do trabalho não remuneradas – pela absoluta –
195
aumento da produtividade pela intensificação do trabalho em si mesmo ou em
menos tempo.
Nisso participa, se agrega e finalmente substitui a exploração típica a
extração de mais-valia maquínica, isto é, o aperfeiçoamento das máquinas e
uma nova articulação entre a força de trabalho "humano" e "não-humano".
Outra celebre tática é a diminuição deliberada da produção, ou a destruição
dos produ tos para aumentar seu preço. Na esfera da distribuição, apropriação,
troca e consumo, o Capitalismo obteve uma enorme agilidade e bara teamen to
desses processos mediante a informatização e a robotização dos mesmos. Já
a crise gerada pelo esgotamento da expansão extensivo geográfica dos
mercados foi superada com a intensificação quantitativa e qualitativa da venda
através do consumo de massas. Esse, por sua vez, foi alcançado com o
barateamento e multiplicação dos produtos, assim como através da
planificação de produtos perecíveis, facilmente descartados e "melhorados",
mas, sobretudo, pelo aperfeiçoamento tecnológico da produção de demanda –
marketing.
Não é necessário explicar como a guerra sempre foi um recurso
complexo para superar as crises, pois atua em todos e em cada um dos níveis
dos processos do "Todo Capitalístico". A inflação é mais um exemplo de
fenômeno provocado: se, por um lado, alguns setores do Capital são
prejudicados, outros são notoriamente beneficiados. Por último, o resultado de
cada crise é uma redistribuição de riquezas, pela qual o Capital – em quaisquer
de suas formas de existência – acaba por concentrar-se, não necessariamente
em menos "pessoas", senão em um número real, não explicitamente formal, de
entidades que são suas proprietárias, megaempresas, megabancos e, enfim,
oligopólios e monopólios.
De qualquer maneira, é importante destacar que o Capitalismo é um
modo – dito no sentido amplo definido acima – em que a inflexão exploradora,
dominadora e mistificadora que lhe é característica tende a orientar toda a
produção, a reprodução, a antiprodução e o consumo para a extração de
mais-valia econômica. Isso é válido para o lucro, renda e ganhos, mas
também para o saber, o poder e o prestígio. Longe de conseguir – através
do tipo de competição generalizada e" de cartas marcadas" que é sua
característica – uma otimização das forças produtivas de quaisquer
196
naturezas (sejam as que verdadeiramente o mesmo suscitou, e das que
potencial e insolitamente disporia), esse sistema as paralisa, desaproveita
e destrói em uma proporção jamais igualada.
Tenho dado ênfase à afirmação de que o Capitalismo foi e é assim
desde seus albores até os nossos dias, apesar de que suas modalidades
de produções de produção, reprodução e antiprodução variem muito com
o tempo e os lugares nos quais operam o diferente tipo de Capital.
Perante uma assertiva deste porte, torna-se de radical importância precisar
quando e como este Modo começou e quais foram suas sucessivas ou
simultâneas transformações. Partindo do princípio de que o Capitalismo é uma
singular relação e composição de substâncias, energias, formas e
maquinaria, podemos admitir, seguindo alguns autores, que é possível
encontrar seus antecedentes nas formações histólicas dos séculos XII e XIII, e
dali em diante. Também é possível aceitar que sendo a economia mercantil, o
Estado, a vigência de uma sociedade institucionalizada, assim como de formas
sui generis de subjetividade, semiotização e parques maquínicos – condições
essenciais e existenciais de muitas formações históricas antigas –, as mesmas
podem ser consideradas como precursoras do Capitalismo. Pessoalmente,
tendo a considerá-las, à maneira de Marx e Engels, como formações pré
capitalistas.
O Capitalismo propriamente dito – cuja preparação se inicia com o fim
do Feudalismo e prossegue no decurso da Renascença, da Reforma e da
Contra-Reforma e das revoluções européias e norte-americanas – culmina com
a instauração da indústria manufatureira na Inglaterra, que é, em minha
opinião, a primeira expressão "verdadeira" do Capitalismo na História.
Nestas linhas, o nosso interesse está centrado em mostrar que as suas
peculiaridades essenciais estavam pré-figuradas, que continuam incólumes e
que as transformações acontecidas, responsáveis por nossa chegada a
esta "Fase Superior", embora sejam originalíssimas e necessitem
cuidadoso estudo, incluem, contudo, as anteriores, e não têm mudado em
sua essência desde aquelas até as contemporâneas. Esse esclarecimento
parece-me imprescindível para poder discriminar de forma convincente
que o "novo" do Capitalismo Mundial Integrado não implica uma
transformação substancial do "velho". Pelo contrário, o "novo"
197
Capitalismo é, em sua essência, muito pior que o anterior, razão pela qual
não justifica nenhum "otimismo", nem nos exime de nenhum tipo de luta
pela sua extinção.
Então, em suma, com uma modéstia conceitual exigida por esta síntese:
quais são as principais "novidades" apresentadas pela atual "Fase Superior"?
O processo da produção adquiriu, devido à revolução tecnológica e industrial,
uma velocidade e uma eficácia totalmente imprevisíveis para os teóricos do
século passado. As consequências dessa incrível aceleração consistem
principalmente no seguinte:
– A maquinaria da indústria extrativa, da agroindústria, da geradora de
produtos e serviços está transformando e diminuindo – gradual, porém
firmemente – a participação da força de trabalho "humana" nos processos
produtivos. A força de trabalho maquinal e a exploração da mais-valia
maquínica vão suplantando aquela humana, trazendo como consequência
desemprego, subemprego, emprego transitório e precário, processo esse cujo
aspecto jurídico se denomina "fIexibilização".
– Os grandes grupos empresariais, apesar de que seus ganhos, lucros e
renda parecem estar crescendo, empenham-se numa política de diminuição de
custos produtivos, de Capital fixo e variável. Algumas dessas manobras
consistem em descentralizar a produção de grandes complexos infra-
estruturais caros, transferindo a parte básica, ecologicamente "suja" e
altamente tributada nos países centrais, para os países periféricos, com" mão
de-obra" e impostos baratos.
– "Terceirização" contratual de segmentos da produção pouco rentáveis
para empresas menores ou para trabalhadores independentes, alguns dos
quais operam na economia informal ou em seus próprios domicílios, havendo
indiscriminação da jornada de trabalho e do tempo livre.
– Hiperespecialização e/ou fIexibilização dos poucos trabalhadores que
"permanecem" empregados com incentivos de produtividade, através da
participação nos lucros e na propriedade – via compra de ações minoritárias e
reciclagem contínua da capacitação técnica. Desse modo, formam-se elites ou
aristocracias de trabalhadores que passam a fazer parte do Capital fixo da
empresa, assumindo a identidade e os in teresses desta, desfiliando-se de
qualquer organismo de classe ou luta coletiva de defesa de suas reivindicações
198
trabalhistas. Multiplicação, mudança e anonimato crescente das sedes e
proprietários do Capital, que criam a ilusão participativa, ocultando sua
concentração e o poder decisório dos tecno burocratas que presidem e
gerenciam as estratégias empresariais.
– Ênfase na geração de produtos e serviços baseados na tecnologia de
ponta – informática, cibernética, telemática, robótica –, formados segundo
planos artificiosos e rapidamente "aperfeiçoáveis" que os tornam
imediatamente "perecíveis" e "descartáveis", obrigando a uma substituição
incessante.
Essas e muitas outras estratégias conduzem a uma divisão mundial
técnica, mas sobretudo econômico-social do trabalho, em que – diferente do
período imperialista fordista da produção – os ramos produtivos de bens e
serviços indispensáveis e "pesados", assim como aqueles que entram
subsidiariamente nos produtos e prestações altamente remuneráveis,
localizam-se nos setores mundiais "em vias de desenvolvimento". Esses
setores tornam-se, assim, participantes de baixíssimos custos e, ao mesmo
tempo, também mercados pobres – compradores de bens e prestações
relativamente obsoletos e encarecidos internacionalmente –, porém
complementares daqueles centrais já saturados. Um "fordismo periférico".
Os processos de ordenamento, distribuição, apropriação, troca,
consumo-consumação – que incluem os de financiamento,
comercialização, "fabricação" de necessidades e demandas (escassez,
falta, carência) – foram "hipertecnologizados" pelos grandes massa-
media e pela propaganda. Essa parafernália adquiriu os níveis máximos de
eficiência, velocidade, artifício e inutilidade relativa para o consumidor –
maiores ainda que os da produção de bens duráveis e não duráveis
propriamente ditos-, sendo o mais importante gerador de subjetividade conhecido na História.
Não por sua real eficiência, mas por sua necessidade expansiva, o
Capitalismo atual provocou a privatização, profissionalização e mercantilização
de "quase todos" os territórios e atividades recentemente não-lucrativos ou
considerados "gratuitos" ou "públicos". Alguns exemplos ilustrativos são os
que, até pouco tempo, eram próprios dos mecanismos de "reprodução
ampliada": tarefas familiares, aparatos e funções de Estado – energia, rede
199
viária, comunicações, moradias populares, transporte, saneamento básico,
saúde, segurança, educação e diversão "públicos", preservação e restauração
do "meio ambiente", seguros, previdência, operações administrativas e
contáveis, estabelecimentos carcerários e outros.
No chamado "mercado de capitais", o Capital financeiro, devido, entre
outras razões, ao caráter instantâneo da comunicação e da informática e à sua
subordinação a núcleos ubíquos, anônimos, às vezes dispersos e condensados
do Capital monetário, acionário, documentário, prolifera geometricamente –
sobretudo como empréstimo para as contas correntes dos países "em
desenvolvimento" ou emergentes. Como se sabe, os mesmos costumam ser
governados por demagogos, corruptos e incompetentes cuja gestão acaba
sempre em grande déficit – contraído em um montante de dívidas com juros
astronômicos, que compõem os investimentos da usura "flutuante",
"andorinha", transitórios, móveis, descomprometidos e quase sempre não
tributados. O lucro financeiro puro possui seu mecanismo mais pelverso nos
citados interesses e no refinanciamento eterno das dívidas externas e internas
dos Estados e empresas nacionais estatais, que elevam à enésima potência a
devolução da quantidade originariamente emprestada, sendo que, no caso das
dívidas externas do "Terceiro Mundo" por exemplo, esses empréstimos não
são nada mais que a mesma riqueza explorada pela força durante a conquista,
o Colonialismo e o Neo-Colonialismo, assim como capitais dos financistas do
próprio país que depositam seu dinheiro nos paraísos fiscais e o reinvestem
com o privilégio dado aos estrangeiros. Por outro lado, essa proliferação torna-
se infinita no chamado "Mercado de Futuros", onde se negociam matérias-
primas, produtos, divisas, títulos inexistentes.
A constituição de enormes e onipotentes monopólios nacionais ou
internacionais – legalmente formalizados, juridicamente dissimulados ou
simplesmente clandestinos, supostamente resultantes e defensores do
"Livre Mercado" e da omissão reguladora do Estado e de organismos da
sociedade civil – acaba por criar e regular à vontade as convenções de
custos e preços que regem esses mercados, assim como a qualidade e
quantidade de demanda e oferta, estritamente segundo seus interesses e
nunca segundo os dos consumidores e usuários.
200
A mencionada, reiteradas vezes, hegemonia do poder econômico – o
financeiro e o das grandes empresas – modula arbitrariamente os resultados
eleitorais ou porque tal poder é proprietário, ou porque é manipulador dos
meios de propaganda, ou ainda por causa do poder de seus lobbies sobre os
políticos e funcionários do Estado. Por sua vez, o Estado fomenta o surgimento
de cartórios eleitorais, clientelismo, fisiologismo, nepotismo, burocracia, e
domina a condução política das nações. Por outro lado, o doutrinamento
persuade, convence e corrompe o eleitorado em si mesmo, criando os vícios
conhecidos, entre outros, da compra de votos. Finalmente, o Capital, que como
explicamos, já dispõe de novos n,eios para reproduzir as condições de sua
existência e proliferação – produção de subjetividade, semióticas econômicas,
políticas, jurídicas, institucionais, culturais e libidinais incorporadas à sua
lógica-, está empenhado no desmonte, na privatização e re-significação da
estrutura e das funções do Estado. Esse processo se enfatiza na dissolução do
chamado Estado Beneficente ou Providencial – cujas atribuições são
demasiado onerosas para o Capital –, em crise no mundo inteiro. O
enfraquecimento do Estado realiza-se em nome da modernização, da
racionalização, da eficiência – o que não deixa de ter o seu sentido, dados os
vícios de "nascença" da máquina estatal. Não obstante, esse processo, a rigor,
objetiva a subordinação das soberanias nacionais e respectivas populações a
entidades supranacionais cujos paradigmas são o Fundo Monetário
lnternacional, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial.
Em última instância, não sem contradição, crises autofagicamente
resolvidas e também acontecimentos metamorfósicos irreversíveis e
incapturáveis – toda essa grande transformação que aponta para a assunção
voluntária e pacífica por parte de todos os agentes, sujeitos, indivíduos,
grupos, comunidades do Axioma que rege a Lógica do Capital – vêm se
impondo até o presente. Trata-se de implantar nas nações o regime
político da democracia indireta, representativa, competitiva e
heterogestionária, que permita prescindir dos recursos repressivos
clássicos, demasiado caros e ostensivamente "inumanos".
Esses regimes e seus sistemas de "representação" – num sentido
amplo de produção de subjetividade, o que segundo os clássicos
marxistas denominava-se "Democracia Burguesa" – são a garantia do
201
"bom comportamento" dos povos em questão. "Bom comportamento"
que implica uma administração completamente submetida ao Capital
transnacional – sobretudo o financeiro –, ao pagamento" correto" das
dívidas públicas externas, à privatização a preços baixos das empresas e
serviços
estatais, à "livre" radicação – ou seja, não tributada e salarialmente
flexibilizada – das empresas transnacionais e, finalmente, ao
compromisso incondicional com as alianças, sobretudo as bélicas, dos
países "guardiões" do patrimônio do Capital.
Ocorre, porém, que a construção da megamáquina planetária do
Capitalismo Global Integrado não pode prescindir por completo dos velhos
equipamentos, procedimentos, agentes e práticas que possibilitavam suas
modalidades clássicas de exploração, dominação e justificação. Tampouco
lhe foi possível eliminar totalmente as modalidades de resistência próprias
dos neoarcaísmos, tais como os regimes integralistas, fundamentalistas e
os totalitários – que o Capital supranacional fomenta quando lhe são
funcionais, e depois tenta substituí-los por democracias formais ou
nominais, sem dúvida mais "baratas" e mais favoráveis para a produção de
mercadorias e a apropriação de mercados. Por isso, o carro-chefe do
Capitalismo Mundial, os EUA, invadiu Panamá e Granada e tentou fazer o
mesmo com Cuba – sem o menor respeito pela autonomia que proclama-,
assim como subvencionou as piores ditaduras latino-americanas e
africanas, e também as do Oriente Médio, seja com dinheiro e armas, seja
com a famosa participação direta de seus "assessores" militares.
Por outro lado, o Capitalismo Planetário Integrado tem que lidar com
os movimentos separatistas – de inspiração socialista ou não –,
revolucionários ou genuinamente reformistas, de liberação das
singularidades raciais, nacionais, culturais, sexuais, etárias, ou pacifistas,
ambientalistas, de direitos humanos, religiosos e assim por diante.
Sem considerar essas observações como um estudo profundo da
contemporaneidade, no entanto suficientes para entender que, como dizia
anteriormente, se em alguns campos e setores parece que o balanço de todos
esses andamentos mostra alguns "progressos" estridentes, os indicadores de
exploração, dominação e mistificação sui generis dessa "Fase Superior"
202
são inequívocos sinais de um tremendo predomínio da reprodução e da
antiprodução sobre a produção possível e virtual da qual o mundo seria
potencialmente capaz hoje em dia.
A geração de um imenso contingente de excluídos da produção e do
consumo, dos não-inseridos nas instituições e organizações, despossuídos de
direitos e também de qualquer identidade-miseráveis, enfermos, analfabetos,
errantes, sem-terra, sem-casa, marginalizados, clandestinos, delinqüentes – é
mais que suficiente para diagnosticar e avaliar a situação mundial
contemporânea. A essa degradação e deterioramento, mais que expressivos
da degradação e destruição do "parque humano", temos que acrescentar a
destruição massiva da natureza, a modulação supérflua e luxuosa do
parque industrial, a banalização ou obscenidade da cultura, o crescimento
cancerigeno das megalópolis, o esvaziamento rural, o mau aproveitamento
das fontes energéticas e muito mais. Acredito que tudo isso já é conhecido
por demais e serve para caracterizar, sem dúvida alguma, o panorama
paradoxal e sinistro de decadência.
Quarta Parte
Se essa entidade que denominei Movimento Instituinte existe, apesar de
que duvido que ela mesma se reconheça como tal, acredito ser importante para
o seu destino introduzir uma pequena modificação no excelente conceito de
Capitalismo Planetário Integrado, como foi chamado por Félix Guattari.
Permito-me sugerir que seria melhor, talvez, denominá -lo de "Capitalismo
Planetário Integralizante". Pois "integrado" é um particípio passado e designa
um objetivo já conseguido, coisa que o Capitalismo contemporâneo ainda está
longe de alcançar,e vai depender de todos os institucionalistas para que não o
alcance.
Quero aqui parafrasear unia sentença do "Anti-Édipo" – texto
fundamental para o que denomino de Institucionalismo – que qualifica o
Capitalismo como sendo" a mescla bizarra de tudo aquilo no qual alguma vez
se acreditou com aquilo no qual nunca se acreditou verdadeiramente".
Decididamente, se esse modo não é um non plus ultra, tampouco se reduz,
como dizia Mão, a um "tigre de papel".
203
Todas as forças crítico-reformistas-revolucionárias que o enfrentam
atualmente estão num momento de trágico desânimo. O sistemático "fracasso"
– e escrevo fracasso entre aspas porque, como expressei em outra parte, "não
existe reparação possível para esse cataclismo, a não ser a convicção de uma
vitória sem fim"; que é quase o contrário de uma vitória futura final,
complemento adequado de uma derrota sempre presente" dos experimentos
socialistas às vezes impressionam como uma extenuação do élan
metamorfósico.
Dissemos anteriormente que o Capitalismo é a formação histórica que
conseguiu não apenas "superar" as crises, senão viver nelas e delas. É exa
tamente essa capacidade de adaptação plástica e ativa que faz com que a
lógica, a máquina abstrata geral e as micro-máquinas concretas pseudo
democráticas e cripto-fascistas do Capital sejam não tanto "ossos duros de
roer", mas uma espécie de protoplasma polimorfo e sobrevivente,
presuntivamente perene. Para poder pensá-lo – com a única finalidade de
combatê-lo – são indispensáveis novas maneiras de pensar, sentir, atuar.
O estudo dos grandes impérios históricos – o Chinês, o Egípcio, o Grego
de Alexandre Magno, o Romano, o de Carlos V, o de Napoleão, o do
"Socialismo Real" – mostra que sua decadência e sua queda não sobrevieram
do seu" exterior", mas" cresceram de dentro". O problema, porém, é que o
Capitalismo Planetário Integralizante não tem mais, rigorosamente falando,
"exterior" e "interior", no sentido geopolítico que essas palavras adquiriram
nesses enunciados. Não é que as contradições "internas" e "externas",
primárias, secundárias do Capitalismo não estejam vigentes e atuantes, mas
que, como também diziam Deleuze e Guattari, "ninguém nunca morreu de
contradição". Se há algo que ameaça a sobrevivência do Capitalismo, é a
potência do que Deleuze e Guattari chamam" Processo Produtivo Desejante",
Foucault designa como "Forças do Fora", Nietzsche denomina "Vontade de
Potência" e Bergson como "Realidade Virtual", fontes da invenção do
radicalmente novo, impensável e imprevisível. O Capitalismo é demasiado ágil,
hábil, elístico, ubíquo e versátil, e também sabe – e pode ir se adequando às
suas próprias contradições, declinação assintótica e indefinida que se
apresenta como "desenvolvimento", "progresso" e "evolução". Esse apresentar-
se não se explica apenas pelos efeitos da "ideologia", isto é, pela "redação",
204
difusão e apropriação de sistemas de representações "imaginárias" que
"falsificam" a realidade, e/ou se oferecem como fantasmas a serem animados
pelo desejo inconsciente ou pelos interesses pré-conscientes-conscientes dos
sujeitos-agentes, engendrando atitudes e ações conseqüentes. Não obstante a
"ideologia" siga cumprindo uma importante função nos circuitos pré-modernos
e ainda nos modelos de reprodução ampliada do Capitalismo, está ficando
evidente o que se passou a chamar – muito discutivelmente – de "cinismo" da
Pós-Modemidade Capitilista. Por "cinismo" se entende que o "espírito" do
Capitalismo Avançado – empregando literalmente a velha expressão de M.
Weber – já não se empenha demasiado em desconhecer nem ocultar os
mecanismos e efeitos de suas modalidades peculiares de exploração,
dominação e mistificação. Sobretudo esses últimos, os da mistificação, estão
sendo essencialmente reformulados. Essa não é uma" descoberta insólita", tal
como já a havia percebido W Reich quando, referindo-se ao nazismo, afirmava
que "o povo alemão não foi enganado". Sabia perfeitamente tudo aquilo que a
proposta do Terceiro Reich implicava.
As cúpulas proprietárias, as camarilhas tecno-burocráticas, as
vanguardas programadoras, deliberativas e executivas da megamáquina do
Capital sabem, com maior ou menor lucidez, que são "peças" de uma lógica –
ao mesmo tempo exuberante e letal – que as constitui em suas funções e dela
se vale. O extraordinário é que a assumem, a encarnam, e até a desejam,
sem iludir-se a respeito.
Os diversos estratos e segmentos da subjetividade e da sociabilidade, em
proporções e clarezas variáveis, também o sabem, assumem e desejam, e
assim o Parque Humano se divide entre os que possuem grandes
probabilidades de sobreviver, os que têm poucas e o enorme contingente que
não tem nenhuma. É notório, segundo o que se entende por sobreviver, que
cada um dos modos de subjetividade sente que contém cada uma dessas
divisões e contraposições dentro de si, afetando aspectos mais ou menos
sutis do que se entende por vida.
Não obstante a Psicanálise queira explicar esses efeitos como
expressão, por exemplo, da Pulsão de Morte ou do Masoquismo Primário, em
nível de estrutura e dinâmica dos sujeitos edipianos especificamente
205
considerados como objetos universais dessa disciplina, tal explicação tem
validade apenas para uma forma triunfante e dominante de subjetividade.
É preciso compreender que o que emerge enquanto subjetividades e
sócio-institucionalidades não são efeitos específicos e pontuais de mecanismos
"educacionais", "psíquicos", "culturais", "lingüísticos" ou "mediáticos", mas
afeções – como dizia Espinoza – operadas em conjunto pelo tipo de
maquinismo que modula prevalentemente o atravessamento dos territórios da
natureza, da sociedade, da subjetividade e das máquinéls dentro dessa
megamáquina.
Indivíduos, agentes, sujeitos, sócius, instituições, desejos, interesses,
práticas, éticas e estéticas são produzidos, reproduzidos e antiproduzidos
pela modalidade peculiar da imanência que se dá entre esses processos do
Capitalismo Planetário Integrado contemporâneo. Por isso, é importante
entender, por exemplo, o Estado, a Igreja, o Mercado, a Educação, o Trabalho,
o Tempo Livre como subjetivados – de certo modo – e as subjetividades como
"infundidas" por um Estado, Igreja e Mercado "íntimos contínuos" – como diria
Foucault.
Cabe ao Movimento lnstituinte – levando-se em conta sua suposta
infinita heterogeneidade interna e sua irrestrita abertura externa – inventar os
recursos e as práticas que possam empurrar o Capitalismo Mundial
Integralizante além de seus próprios limites, tornando-o permeável à irrupção
das forças do "fora" que são capazes, realmente, de transmutá-lo.
Quando lemos o panorama mundial, como procurei fazê-lo nestas linhas,
a rigor nos sentimos tentados, não apenas a perguntarmo-nos – de acordo com
a famosa fórmula – "Que Fazer" para transfomá-lo, senão antes interrogar:
"Como consegue manter-se hegemônico e aparentemente próspero sem nem
sequer esforçar-se demasiado em dissimular sua fragilidade e sua
contraprodução?"
Apesar de que a perplexidade dos pensadores críticos e gestores da
troca é ostensiva, devemos tomar consciência de que aquela dos experts e
condutores do Capitalismo não é menor. Ninguém é capaz de fazer predições a
médio e longo prazos acerca do futuro de cada "parte" e desse "todo"
infernalmente deletério. Justamente por isso é que nos resta apenas avaliar e
lutar, incessantemente, em TODOS OS LUGARES E AGORA.
206
NOTAS
1 – A definição rigorosa desses conceitos para torná-los acessíveis ao tipo
de leitor ao qual este texto se destina requereria um volumoso tratado à parte.
Para aproximar-se do entendimento de alguns deles, pode ser consultado o
Glossário deste Compêndio. De qualquer maneira, devo advertir que muitos
destes termos não são usados aqui no sentido estrito de sua bibliografia de
origem.
POST-SCRIPTUM
Janeiro de 1998
A releitura do apêndice anterior, escrito em 1995, suscitou em mim
impressões contraditórias. Se me atrevo a comentá-las com os leitores, não é
apenas – como espero seja possível apreciar mais adiante – por motivos
autocríticos e justificantes, contudo que esses também possam existir. Penso
que, como sempre acontece, os três últimos anos possam ter trazido
elementos para melhor avaliar a pertinência do que se poderia qualificar, com
benevolência, de cem e do que tentei dizer.
Essas páginas de 95 me parecem retorcidas, desgarradas e mutiladas
entre as exigências pedagógicas e sintéticas do texto, por um lado, e suas
pretensões analíticas, e até vaticinantes, exorbitantemente amplas, por outro;
acredito ter sido desde o início, e involuntariamente, insuficiente, assistemático,
às vezes pouco claro e, em geral, não suficientemente fundamentado. Tão
fortemente acredito nisso que decidi catalogar este escrito numa simpática
categoria inventada por um amigo, o filósofo brasileiro Peter Pal Pelbart,
segundo o qual o que estamos lendo não é um "ensaio", e sim um" globo de
ensaios". Não obstante, quero conceder-me os benefícios de um certo
paradoxal beneplácito.
Durante este tempo, à grave crise "civilizatória" mundial que muitos já
identificavam foi-se agregando uma crise econômica de incalculáveis
proporções que, pelo que entendo somente alguns poucos prenunciavam. Não
sei se é excesso de petulância incluir-me entre esses últimos, porém não pude
deixar de constatar que o "pessimismo" de cada página do "Apêndice" que
antecede a este post-scriptum insistia sobre esta predição.
207
A crise atual está em desenvolvimento – como o fato precedente do
ataque especulativo à lira italiana e à libra inglesa e o outro que afetou o
México – e engloba diretamente todos os "Tigres Asiáticos" – Malásia,
Tailândia, indonésia, Singapura, Hong Kong, Laos e, por último, Filipinas;
menos drasticamente, Japão, Coréia do Sul e, de outra forma, China e Taiwan;
e numa dimensão mais ou menos ameaçadora, todos os "capitalismos
emergentes", sendo que em outra, ainda indefinida, também as grandes
potências capitalistas. Esta é uma realidade clamorosa.
Obviamente, não cabe aqui uma análise excessivamente detalhada.
Permito-me fazer somente alguns comentários globais que podem reafirmar,
eventualmente, uma ou outra tese já postulada neste livro.
Em primeiro lugar, chama fortemente a atenção, sem ignorar diferenças
nacionais, a cômica discrepância que os economistas e outros especialistas
mostram quando tentam explicar esse fenômeno colossal que se iniciou com
uma dimensão regional. Começamos pela admissão do FMI de que "se
equivocou" na avaliação e condução desse assunto, tanto que está chegando
ao limite de sua disponibilidade financeira para" auxiliar" os falidos – isso
significa socorrer os investidores especulativos para que não percam seu
dinheiro. Vamos continuar observando muitos experts atribuírem à "falta de
dados" – porque ocultados ou distorcidos por parte das economias em questão
– a surpresa e a perplexidade que a catástrofe ocasionou. E mais: porque,
entre essesexperts, alguns atribuem o flagelo à cumulação de empréstimos
enviados aos países em crise, outros às suas falências bancárias ou à
desenfreada especulação imobiliária que ocorreu no seu território, ou ainda à
sobrevalorização de sua moeda, e assim sucessivamente... Ou a "todas" essas
causas juntas e a muitas outras. Essas explicações, a meu ver, podem reduzir-
se a três tipos:
– Ou esse é um erro regional de modelo, cálculo, planejamento que
implica dos povos até os governos – desde logo, com uma distribuição muito
desigual de responsabilidades.
– Ou essa é uma fraude de magnitude hemisférica e configuração
escalonada que vai desde os produtores-consumidores, passando por todos os
segmentos sociais, econômicos e políticos, até chegar aos organismos
208
internacionais – desde logo, com uma distribuição muito desigual de
responsabilidades.
– Ou se trata de um efeito processual, substancial, essencial e inerente
ao Capitalismo Planetário em via de lntegração.
Com respeito à primeira hipótese, no caso dela ser correta, o mínimo
que se pode considerar é que o destino do mundo está em mãos de
presunçosos incompetentes. Isso não implica "falha humana", senão
principalmente um erro radical sobre os meios de pensar a realidade. A
idoneidade da "Ciência Econômica" e da "Economia Política" oficial capitalista
não só é, em muito, inferior à da Meteorologia, mas nem sequer tem a
humildade de reconhecer o estatuto de interfase do sistema caótico ordenado
própria de seu "objeto".
O erudito "Científico-Presidente" do Brasil, FH. Cardoso foi feliz e sincero
quando, solicitado a opinar acerca das consequências da crise para a
economia do Brasil, respondeu: "Só Deus sabe."
Pelo que se refere à segunda hipótese, se acertada, temos que assumir
que o destino da humanidade este) nas mãos de delinquentes. Fica aberto o
tema da qualidade e gradualidade de imputabilidade de cada um dos
envolvidos e do acordo sobre o critério de legalidade segundo o qual devem
ser julgados (veja-se mais adiante.
Se a terceira hipótese está correta – e isso tem afirmado
constantemente nesse modesto e elementar livro-, resulta evidente que as
duas primeiras podem ser perfeitamente incluídas na última, porém, assim
como as três não são excludentes, tampouco são exaustivas. E também, mas
não somente, por estúpidos e ladrões que os agentes-sujeitos individuais e
coletivos do Capitalismo assumem os lugares, as funçôes e as práticas
segundo os quais a lógica da Máquina Abstrata do Capital os produz e aciona.
Está comprovado – e isso é o que tenho procurado, simplesmente,
lembrar aos leitores, uma vez que não precisa ser demonstrado porque já o foi
durante um século – que a sábia ignorância dos experts, tanto quanto a
desonestidade dos agentes e das entidades, não esgotam o repertório de
riscos que caracterizam as subjetividades capitalistas. O que mais nos deixa
pasmos e surpresos no espectro das mesmas é o cinismo, ao qual já nos
referimos reiteradamente; é preciso apenas definir, pelo menos parcialmente,
209
em que consiste este risco. Não se trata, é claro, de desconhecimento, nem
somente de uma tendência delituosa de transgredir ou ignorar a Lei – qualquer
que seja a Lei da qual estamos falando, especialmente se nos referimos a uma
abstração ou hipóstase que se costuma denominar "A Lei", com a qual os
psicanalistas e outros teóricos enchem a boca. Em um certo sentido, trata-se
de cumprir ao pé da letra as leis vigentes, ou de aproveitar os limites de seu
império e de suas falhas intersticiais para pô-la à serviço – às vezes
condicional, às vezes incondicional – da Axiomática do Capital, da qual a
ordem jurídica imperante é uma engrenagem perfeitamente coerente (vide a
plena vigência do Direito Positivo). A lógica dessa axiomática está, em última
instância, absolutamente em sintonia com a racionalidade ética e proposicional
das leis nacionais e internacionais – as propriamente jurídicas ou as "internas"
aos enunciados específicos disciplinares, científicos ou não. Excepcional e/ou
aparentemente, as leis se contrapôem a essa Lógica, ou como leis maiores
formais, "Direitos Humanos" que concretamente podem ou não podem ser
cumpridos dentro do que se chama hipocritamente" condições constitutivas,
direitos fundamentais ou reais" da formação da soberania em questão, ou
como leis menores – decretos, especificações, regulamentações, normas...
Os célebres conceitos e a análise foucaultianos acerca do
atravessamento entre os enunciados – as dizibilidades – e aquilo que o autor
chama visibilidades – os dispositivos do poder, imanentes ao jogo de forças de
uma formação histórica (por um lado), e o diagrama, complexo de forças
informais (por outro) – dão conta admiravelmente de alsrumas das maneiras
com as quais as funções de reprodução e antiprodução se realizam em cada
sistema.
Entre vários requisitos, essas montagens dão conta de conferir uma
certa inteligibilidade e um certo "moralismo" à Ordem Capitalista Constituída,
visando produzir as condições mínimas nas quais essa última possa subsistir –
e encontrando viabilidade, crescer –, garantindo sua reprodução simples e
ampliada tanto em seus aspectos econômicos como em todos os outros que já
mencionamos. Que o lado "progressista" dessas leis – tanto as "maiores",
puramente nominais, como as "menores", que resultam operantes somente
para matizar, mitigar ou amenizar os efeitos fundantes da Lógica do Capital –
expresse, em sua maioria, o resultado de heróicas e cruentas lutas da
210
humanidade, e como tais são admiráveis, não deve enganar ninguém.
Principalmente não deve tranqüilizar ninguém acerca da perfeição do modo
econômico e de seus rebrjmes – jurídico-político subjetivo e outros. Em sua
essência, não são nada mais que estratégias, especialmente aquelas que se
consideram concessões – geralmente tão inevitáveis quanto mínimas, bem
distantes dos "ideais", sempre considerados irrealizáveis. Essas concessões
são invariavelmente tardias e de aplicação sujeita ao horizonte do "possível",
supostamente apoiado por uma "realidade" que o panorama da Axiomática do
Capital delimita e modula. Ao menos numa vertente dominante de sua
essência, estão destinadas a desorganizar, desmobilizar, fragmentar e
recapturar as forças críticas e metamórficas, ou ainda, o que é mais astuto, a
implicá-las em dispositivos nos quais a modalidade organizativa e os objetos a
serem conquistados resultam relativamente irrelevantes e/ou absorvíveis pelo
Capital.
Um exemplo ilustrativo a esse respeito são as contendas entre os
partidários neoliberais do "Livre Mercado" e os defensores da "Regulação
Estatal". Os primeiros fazem uma apologia do individualismo, da imprensa livre
e da competição liberal e neoliberal, aos quais atribuem todos os méritos da
Modernidade – que, obviamente, sempre foi consubstancial ao Capitalismo,
pois não se conhece outra-, sem considerar os seus defeitos. “Os segundos
prescrevem uma quantidade maior" da mesma Lógica do Estado, que começou
muito antes daquela do Capital, possibilitou o seu começo e ainda lhe é
imprescindível.
Outro caso ilustrativo é a luta da economia de mercado e democracias
representativas contra as "massas ausentes", os neo-arcaísmos e o terrorismo.
O mérito relativo do pensamento de alguns autores, como Jean Baudrillard,
está na virtude de chamar a atenção – apesar de que unilateral e exagerada –
sobre a estratégia de resistência não consumista e eleitoral (indiferença dos
votantes) como "neutralização, omissa e passiva" das massas, complementada
pela irracionalidade monstruosa, "absurda" e intempestiva dos
fundamentalismos e do terrorismo. Essas estratégias, apesar de apresentarem
uma triste originalidade, não deixam de ser uma resposta cega às manobras
orquestradas pela Máquina Abstrata do Capital, habilmente engenhada para
propor e propiciar contendas, de maneira que os explorados, dominados e
211
mistificados" comprem a briga", como se diz pitorescamente falando, isto é,"
entrem numa provocação desviante".
Perante essa constelação, não é pleonástico repetir que o processo do
Capital não constitui uma unidade monolítica, e muito menos estática. Não
somente ao nível das contradições antagônicas e agônicas do que Deleuze e
Guattari chamam de "Superfície de Registro e Controle" composta por
territórios, segmentos, instituições, organizações, agentes dotados de uma
identidade mais ou menos precisa e circunscrita. Veja-se, senão, a ferocidade
das contraposições recentes e suas conseqÜências entre o Capital Financeiro
"apátrida" volátil, o Industrial e o Latifundiário – tanto nos domínios "globais"
como nos regionais, nacionais, locais. Mas "ninguém morreu de contradições".
A imanência entre as potências e processos de desterritolialização e
reterritorialização capitalistas movimenta-se sem cessar, com uma velocidade
que passa de geométrica para exponencial. Assim, apenas descritivamente, o
mundo atual é um poliverso vertiginoso, proteiforme, heterogêneo, heteromorfo,
heteróclito e bizarro de colisões, que vão desde o preciso até o indecidível,
mas que têm aprendido a viver em crise e da crise.
É claro que espero e desejo fervorosamen te ser explícito dizendo isso,
sem a menor intenção de desvalorizar nenhuma forma de luta tradicional ou
nova que as forças da Vida vão inventando, como infinitos agenciamentos e
acontecimentos no seu combate contra as equações variáveis de reprodução e
antiprodução do Capital. "Todas" as Máquinas de Guerra e as Linhas de Fuga
simultaneamente econômicas, políticas, jurídicas, filosóficas, científicas,
artísticas, idiossincrásicas – na medida em que são individuações, expressões
de singularidades intensivas –, e mais enfaticamente, suas transversalidades,
conexões disjuntivas inclusas, sinérgicas e potencializantes, seu entusiasmo e
sua alegria – como dizia Espinoza – foram, são e serão "o sal da terra". As
preocupações dos militantes acerca do grau de capacidade de recuperação
que o Capital exerce sobre as mesmas geralmente não são mais do que
hesitações compreensíveis, porém acidentais, devido tanto às resistências que
minam o processo de suas façanhas quanto à dureza de suas vicissitudes.
Diante de tudo isso, o pouco que proponho enfatizar aqui pode se resumir,
creio eu, da seguinte maneira:
212
Os militantes e pensadores instituintes contemporâneos passam por
divergências e discussões dilemáticas – que freqüentem ente os dissociam nas
suas campanhas – acerca de se a luta deve dar-se a partir de dentro ou de fora
das organizações do Estado, do Capital ou da chamada Sociedade Civil (a
esse respeito, vejam-se os memoráveis capítulos da "Revolução Molecular" de
F. Guattari, os de "O Estado e o Inconsciente" de René Loureau e até alguns
capítulos deste livro). Outro desses dilemas é o já célebre que se trava entre os
"reformistas" e os poucos "revolucionários" que ainda sobraram – seja como for
que se defina revolução. No espectro que vai do pólo dos" apocalípticos", por
um lado, aos "integrados" – bem intencionados – por outro, existem
inumeráveis posições intermediárias que dão espaço a quantas vontades de
transformação seja possível imaginar assim como às melhores delas, que são
as que escapam a toda imaginação. Cabe, porém, reforçar que a reivindicação
idiossincrásica nunca acaba de propagar-se como uma onda extensiva, entre
outras razões porque insiste em enfatizar-se como intensiva, confundindo
singularidade com isolamento, linha de fuga com evasão, ubiquidade com
fragmentação dispersiva. Em consequência disso, tanto os movimentos
chamados "Alternativos" quanto a Esquerda tradicional parecem perder de
vista os macro indicadores inequívocos da deterioração do "todo" capitalista,
que consegue manter-se porque a única classe verdadeiramente universal é a
burguesia.
Contudo, se me permitem uma digressão, antes de concluir com uma
nova tentativa de síntese, acrescentarei quanto segue. Rememoro que em
minha juventude, quando estudava a crítica marxista da Economia Política,
tinha sérias dificuldades para entender tanto o conceito da tendência à
diminuição da taxa de extração da mais-valia quanto a contestação que os
economistas positivistas faziam a essa teoria. O argumento principal, se me
lembro bem, baseava-se na tese de que tal indicador era in1possível de ser
medido empiricamente; e por ser uma hipótese de "alto nível", inviável quanto à
operacionalização, verificação e falseamento; por isso carecia de sentido
epistemológico.
Em função do que foi exposto acerca da crise presente, reiterarei que no
momento a mesma tem respeitado, de forma aceitável, somente a nação que
continua sendo o assento das maiores sedes centrais do Capital mundial,
213
assim como de seu principal aparato bélico-repressivo: os EUA. O crescimento
de quase 4% de sua economia em 97 e o decréscimo de seus índices de
desemprego, déficit interno e externo, apesar de que isso não o exonere
inteiramente das consequências imediatas da crise, não faz senão demonstrar
o uso extorsivo que sabe fazer de sua hegemonia política – em grotesco
contraste com suas declarações neoliberais de "livre-mercado" e de
democracia. Também Alemanha, Canadá, França e Reino Unido, Itália e
Espanha mantêm-se relativamente estáveis, mesmo que todos os países
enumerados apresentem altíssimos índices de desemprego – com mais ou
menos proteção estatal-, discretos indicadores de crescimento econômico e
variados sinais de decomposição social e subjetiva.
Lembrarei também que alguns adora dores do neoliberalismo, bastante
afetados por essa debacle setorial insuspeita, empenham-se em reivindicar
que, apesar de tudo, o modo capitalista e seu Sistema Democrático Nominal
conseguiram, desde a Segunda Guerra Mundial até hoje, o milagre inédito de
reduzir em quase 50% a pobreza asiática. Essa afirmação adquire relevância
pelo contraste com a decadência dos países do ex-bloco do Socialismo real, o
qual, como é notório, está em pleno declínio. De outro lado, sustentam que
apesar da instabilidade persistente, a intervenção dos países prósperos e dos
organismos internacionais já está dando conta de controlar a onda de
falências,moratórias e outros flagelos. As excelsas democracias capitalistas "se
ajudam".
Diante dessas afirmações, torna-se importante esclarecer que, em
primeiro lugar, Alemanha, Japão e Itália começaram seu crescimento a partir
da inversão massiva do Capital "aliado" – novas versões do Plano Marshall e
da 'Aliança para o Progresso" – e nas condições políticas severamen te
repressivas das nações derrotadas e "ocupadas". Em segundo lugar,é
apropriado pontuar que boa parte do desenvolvimento dos "Tigres Asiáticos"
processou-se sob governos ditatoriais e autoritários, como Coréia e Vietnã, e
teve uma base de lançamento nada depreciável, pelo fato de serem aliados
dos países centrais nas guerras anticomunistas. Por último: como não requerer
(apenas porque não sei se isso já foi feito) um levantamento cuidadoso e
verídico dos coeficientes de concentração de riquezas que têm sido
realizados e perpetrados nesses países, mesnlO que uma parte dessa riqueza
214
tenha sido destinada "humanitariamente" à geração de força de trabalho
cnpacitada e eficiente e de condições de governabilidade? Que papel cumpre,
nas falências atuais, a fuga desse Capital acumulado, destinado a inversões
especulativas em outros mercados mais lucrativos e/ou estáveis?
Alguns famosos economistas acabam de declarar, por exemplo, que não
precisamos nos preocupar demasiado com as falências generalizadas. Afinal,
"é bom que as coisas se precipitem, porque assim a economia mundial se
corrige e ajusta". Outros têm manifestado que, ao final, a parte do Produto
Bruto Mundial correspondente aos países estremecidos pelo "sismo" alcança
somente 6 ou 7% do total mundial. Ironizam, assim, os mecanismos de
"contágio" sofrido por aqueles que atribuem maior importância às falências e
desencadeiam" corridas" na Bolsa...
Ora: que Economia Mundial é essa que entra em pânico por um
"acidente" que afeta apenas 7% de sua produtividade anual? O verdadeiro
pavor não consistirá de fato em que uma das suas derivações pode ser a
estrepitosa baixa de preços dos produtos asiáticos (dumping) e o perigo
iminente de benefício dos consumidores e prejuízo dos inversores? A quais
maldades políticas terá que se apelar para evitar essa presuntiva "injusta" festa
dos compradores? Com certeza não será "democrática" nem "livre-
empresista". A iminência da segunda Guerra do Golfo e da terceira Mundial
não é apenas hipótese de ficção científica.
Em síntese: os mais lúcidos afirmam que a presente crise é, como se diz
eufemisticamente, "estrutural", e se funda, "em última instância", no predomínio
nebuloso do Capital Financeiro mundial – completamente independente de sua
base material – e sua desregulação total, que em vão se reclama limitar jurídica
e institucionalmente.
Como explicar esse império inquestionável a não ser pelas
peculiaridades da globalização, que não é outra coisa mais que o pleno reinado
universal – ostensivo, estridente, descarado – da Máquina Abstrata do Capital
e sua Axiomática Suprema?
O que manda é o Equivalente Geral, suas formas monetárias e
informáhcas, subordinando à sua força quase tudo que existe como realizado
no horizonte do existente.
215
Pelo fato que já mencionamos antes dessa interessante questão da
correlação inequívoca entre ética, "liberdade" mercadológica e "liberdades"
políticas e humanas, não é apaixonante que a Suíça – país que deve uma
parte indefinida de sua prosperidade aos depósitos bancários de boa parte dos
capitais "espúrios" do mundo: evasão tributária, ditatoriais, narcotraficantes,
mafiosos e delinquenciais em geral – tenha um sistema político dotado de
Assembléias Populares Comunitárias Cantonais?! A "plena" democracia suíça
"perpetrou" um plebiscito, segundo o qual votou se a favor de continuar
mantendo o segredo sobre suas contas bancárias. A hegemonia da Axiomática
do Capital consegue, às vezes, incorporar tanto os Círculos de Qualidade
japoneses como a Autogestão!
Segundo me parece, existem algumas outras perguntas-chave que
precisamos nos fazer nessas circunstâncias, sem descartá-las por serem
ingênuas e menos procedentes. São as seguintes: por que tomar como
referência comparativa e justificante das excelências liberais o Socialismo real
– cujas diferenças com um Capitalismo de Estado é um tema ainda digno de
muita polêmica? Por que confiar na "natural" afinidade entre Capitalismo e
Democracia Nominal, sendo que vários dos mencionados "desenvolvimentos"
capitalistas realiza ram-se duran te regimes cripto ou ostensivamente
despóticos – veja-se em outro contexto geopolítico a trajetória do Chile e do
Peru. Quanto custará ao povo desses países "novos ricos" quebrados a
hipoteca dos anos vindouros, que é o preço de sua futura "recuperação"? Se
os experts e seus organismos têm sido incapazes de conhecer as cifras
necessárias ou de elaborar os modelos e as simulações que lhes perm.itiriam
predizer essa "quebradeira", por que devemos acreditar que são ou serão
aptos a quantificar, de forma convincente, tanto as vantagens do caminho
capitalista "eleito" quanto o montante exigido para sua recuperação? Pelo visto,
não é somente a tendência para a queda da taxa de extração da mais-valia o
que não se pode mensurar!!!
Como já advertiram Deleuze e Guattari, tanto as empresas nacionais e
transnacionais quanto os organismos estatais e supra-estatais
operacionalizaram seus "modelos" predominantemente com base em
movimentos táticos de "invenções" e "sangrias". Movimentos esses
invariavelmente improvisados e incidentais, cuja previsibilidade e precisão
216
brilham pela ausência e são decididamente contrárias à imagem de onipotência
e sapiência das quais essas entidades fazem propaganda.
Como último argumento, existe o hábito de invocar o sereno bem estar
da Suécia, Noruega, Holanda, Dinamarca, Finlândia e alguns outros países
com fabulosos índices de saúde e educação, sem considerar com profundidade
que a tal prosperidade é fruto da participação dessas nações na espoliação
colonial e neocolonial e da inexistência de bloqueios sobre suas economias.
Que Cuba, com o embargo que dura mais de três décadas e oprimida por uma
"Ditadura do Proletariado", obteve índices parecidos, ajuda a demonstrar que,
por bem ou por mal, não tem muita diferença entre as variedades de
Capitalismo e de Socialismo real. O ceme do problema – por mais pobres e
óbvias em que essas observações resultem – reside no seguinte:
– Não se deve confundir a lógica dos processos que Deleuze e Guattari
chamam" Produtivos, Desejantes, Revolucionários" – que são o "motor" da
Produção ou a Produção em si – com aquela dos reprodu ti vos e
antiprodutivos. Não se pode dizer que os dois segundos sejam absolutamente
contraproducentes e elimináveis, mas devem estar, porém, rigorosamente
subordinados ao primeiro.
– Não se deve confundir a morfologia e a dinâmica das instituições,
organizações, estabelecimentos, equipamentos, semióticas, sujeitos, agentes e
práticas, isto é, os componentes territorializados, estratificados, hierarquizados,
e assim por diante, que constituem os domínios do real, do possível e do
impossível, com o âmbito do virtual atualizável.
– Não se deve confundir a democracia indireta e representativa liberal,
neoliberal, social-democrata ou socialista "soft", ou ainda a "popular", nem o
saber e o poder de seus políticos profissionais e tecno burocratas, nem
tampouco a "participação" na democracia direta, com a auto-análise e a auto-
gestão, quaisquer que sejam as modalidades históricas que os dois termos
dessa diferenciação adotem.
– Não se deve confundir – mesmo levando-se em conta as singulari
dades históricas das citadas modalidades – a separação entre meios e fins que
é própria da ética dos modos e sistemas capitalistas com a imanência entre
meios e fins que é consubstancial à ética das Utopias Ativas do Movimento
Instituinte.
217
– Não se pode esquecer jamais, quaisquer que sejam as limitações,
mimetizações e vacilações estratégicas, logísticas, táticas ou técnicas
históricas de cada iniciativa produtiva-desejante-revolucionária, que nunca o
"espírito" das mesmas esteve melhor resumido que na deslumbrante fórmula –
" A cada um segundo suas capacidades e a todos segundo suas
necessidades" .
Folgo em dizer que o incremento das forças produtivas de todos os tipos
– incluídas as forças teóricas e expressivas – mostra que este enunciado pode
e poderá ser formulado de infinitas novas maneiras, e que isso exige aplicar às
definições de capacidades e de necessidades uma coerência com os valores
supremos aqui repetidamente postulados.
Para terminar, uma variação que me ocorre para a palavra-de-ordem da
citada consigna libertá ria é a seguinte:
''A cada qual segundo suas capacidades de lograr que – a todos
segundo suas necessidades – seja uma necessidade para todos e um desafio
para cada um."
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
Organizada em progressão crescente de possíveis dificuldades de leitura:
"Apresentação do Movimento Institucionalista", G. Baremblitt, in:
"Saude loucura" nOl, coord. A. Lancetti. Ed. Hucitec, São Paulo, 1989.
"O Inconsciente Institucional", coord. G. Baremblitt, apresentação e introdução.
Ed. Vozes, Petrópolis, 1984.
''Análise Institucional: Teoria e Prática", vários autores, in: Revista Vozes n° 4.
Ed. Vozes, Petrópolis, 1973.
''Análise Institucional no Brasil", V R. Kankhagi e O. Saidon (org.). Ed. Espaço e
Tempo, Rio de Janeiro, 1987.
''Alguns elementos teoricos para pensar Ia cuestion de Ias derechos humanos y
Ia violencia institucional", in: "Saber, Poder, Quehacer y Deseo", G. Baremblitt.
Ed. Nueva Vision, Buenos Aires, 1988.
218
"[Analyse Institu tionnelle", M. Autlúer e R. Hess. Ed. Presses Universitaires de
France, Paris, 1981.
"Grupos, Organizações e Instituições", G. Lapassade. Ed. Francisco Alves, Rio
de Janeiro, 1977.
"EI Sociopsicoanalisis Institucional", G. Mendel, in: "La Intervencion
Institucional", J. Ardoino (org). Ed. Falias, México, 1979.
"Sociopsicoanalisis lnstitucional", tomos 1 e 2, G. Mendel. Ed. Amorrortu,
BuenosAires, 1973.
'A Análise lnstitucional", R. Lourau. Ed Vozes, Petrópolis, 1975.
"EI Analisis lnstitucional". G. Lapassade, R. Lourau et aI. Ed. Campo Abierto,
Madri, 1977.
"EI Analizador y el Analista", C. Lapassade. Ed. Cedisa, Barcelona, 1971.
'Analisis Institucional y Socioanalisis", R. Lourau et ill. Ed Nuevillmagen,
México, 1973.
"LAnalyses InstitucionnelJe en Crise?", J. Cuigon (coord.), in: Rev. Pour, n° 62-
63, Paris, 1978.
'Autogestão: Uma Mudança Radical", A. Cuillerm e Y. Bourdet. Ed. Zahar, Rio
de Janeiro, 1976.
"Participacion y Autogestion", L. Tomasetta. Ed. Amorrortu, Buenos Aires,
1975.
"Psicoanalisis y TransversaJidad", F Cuattari. Ed. Sigla XXI, Buenos Aires,
1976.
'A Revolução Molecular", F Cuattilri. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1981.
"O Inconsciente Maquínico", F Cuattari. Ed. Papirus, Campinas, 1988.
"Micropolítica – Cartografias do Desejo", F Cuattari e S. Rolnik. Ed. Vozes,
Petrópolis, 1986.
'As Três Ecologias", F Cua ttari. Ed. Papirus, Campinas, 1988.
"O Anti-Édipo", G. Deleuze e F Cuattari. Ed.lmago, Rio de Janeiro, 1976.
"Mil Platôs", G. Deleuze e F Cuattari. Ed. Pre-Textos, Valência, 1988.
BIBLIOGRAFIA DE CONSULTA
A bibliografia de consulta é vastíssima e pode ser classificada de acordo
com a maior ou menor proximidade que tenha com a linha teórico-prática
219
adotada neste livro. Os textos aqui classificados são apenas os mais
próximos, e não pretendem, em absoluto, esgotar a lista dos possíveis.
Por motivo de focalização, excluímos da literatura concernente à
antipsiquiatria, à psicologia organizacional e à psicologia grupal.
Obras de Georges Lapassade:
"Chaves da Sociologia", em colaboração com R. Lourau. Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1972.
"La Entrada en Ia Vida". Ed. Fundamentos, Madri, 1973. 'Au togestion
Pedagógica". Ed. Cranica, Barcelona, 1977. "La Bio-Energia". Ed. Cedisa,
Barcelona, 1978.
"Socioanalisis y Potencial Hun'1ano". Ed. Cedisa, Barcelona, 19~O.
Obras de Gérard Mendel:
"La Rebelion contra el Padre". Ed. Península, Barcelona, 1975, 2ª ed. "La Crisis
e Ias Ceneraciones". Ed. Península, Barcelona, 1972. "La Descolonizacion dei
Niíi.o". Ed. Ariel, Barcelona, 1974.
"EI Manifesto de Ia Educación". Ed. Siglo XXI, Madri, 1975. 'Anthropologie
Diffierentielle", Ed. Payot, Paris, 1972.
"l.:Angoise Atomique et les Centrales Nucléaires". Ed. Payot,1975. "Pour une
autre Societé". Ed. Payot, Paris, 1975.
"La Classe lnstitu tionnelle". Ed. Payot, Paris, 1977.
"Quand plus rien ne va de soi". Ed. R. Lafont, Paris, 1981. "Enquete par un
Psychanalyste sur Lui-Même". Ed. Stock, Paris, 1981.
207 "54 Millions d'Inclivid us sans Appartenance" . Ed. R. Lafon t, Paris, 1983.
"La Crise est Poli tique, Ia Poli tique est en Crise". Ed Payot, Paris, 1985. "On
est Toujours l'Enfant de son Siecle". Ed. R. Lafont, Paris, 1986.
Obras de Gilles Deleuze:
"Para Ler Kant". Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1976. "Empirismo y
Subjetividad". Ed. Granica, Barcelona, 1977. "Diferença e Repetição". Ed.
Graal, Rio de Janeiro, 1988. 'Apresentação de Sacher Masoch". Livraria Taurus
Editora, Rio de Janeiro, 1983.
"Proust e os Signos". Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1987.
"Nietzsche". Edições 70, Lisboa/1981.
220
"Nietzsche y Ia Filosofia". Ed. Anagrama, Barcelona, 1971. "Lót,rica do
Sentido". Ed. Perspectiva, São Paulo, 1974.
"Kafka/ por uma Literatura Menor", em colaboração com F. Guattari. Ed. Imago,
Rio de Janeiro, 1977.
"Diálogos", em colaboração com C. Parnet. Ed. Pre-Textos, Valência,19bO.
"EI Bergsonismo". Ed. Catedra, Madri, 1987.
"Spinoza: Filosofia PréÍctica". Ed. Tusquets, Barcelona, 1984.
"La Imagen-Movim.iento", Estuclios 1 y 2. Ed. Pa.idos, Barcelona, 1984.
"Foucault". Ed. Paidos, BuenosAires, 1987.
"Pericles y Verdi". Ed. Pre-Textos, Valência, 1989.
"EI Pliegue". Ed. Paidos, Buenos Aires, 1989.
"Espinosa e os Signos". Ed. Res, Porto, 1975.
"Spinoza y el Problema de Ia Expresión". Ed. Muchik, Barcelona, 1975.
"Politique et Psychanalyse", com F. Gua ttari. Ed. Des Mots Perdus,
Alençon,1977.
"Los Equipamentos de Poder", F Fourquet e L. Murad. Ed. G. Gill, Barcelona,
1976.
"Deleuze e a Filosofia", R. Machado. Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1990.
Obras de René Lourau:
"LInstituant Centre I..:Institué". Ed. Antrophos, Paris, 1969. "I..:Illusion
Pédagogique". Ed. I..:epi, Paris, 1969.
'Analyse Institutionnelle ei Pédagogie". Ed. I..:epi, Paris, 1971. "Les Analyseurs
de l'Église". Ed. Antrophos, Paris, 1972.
"Le Analyseur'Lip"'. Ed. UGE 10/18, 1974.
"Sociologue a Plein Temps". Ed. I..:épi, Paris, 1976.
"Le Gai Savoir des Sociologues". Ed. UGE 10/18,1977. "EI Estado y ei
Inconciente". Ed. Kairos, Barcelona, 1979. 'Autodissolusion des Avant-Gardes".
Ed. Galilée, 1980. "Les Lapsus des Intellectuels". Ed. Privat, Toulouse, 1981.
208
Obras de outros autores
"Psychiatrie et Psychothérapie Institutionnelle", J. Oury. Ed. Payot,
Paris, 1976.
"Hacia una .Pedagogia dei Siglo XX". F. Oury e A. Vasquez. Ed. Siglo XXI,
México, 1974, 3ª ed.
221
"Introduccion a Ia Terapia Institucional", J. Chazaud. Ed. Paidos,
Barcelona, 1980.
"EI Psicoanalisis delas Organizaciones", R. de Board. Ed. Paidos,
Buenos Aires, 1980.
'A Reprodução", P. Bordieu e J. C. Passeron. Ed. F. Alves. Rio de
Janeiro, 1975.
"Organizações Modernas", A. Etzioni. Ed. Pioneira, São Paulo, 1976. "O
Adoecer Psíquico do Subproletariado", W C. Castilho Pereira. Ed. Segrac, Belo
Horizonte, 1990.
"Nuevos Escritos", L. A1thusser. Ed. Laia, Barcelona, 1978. "Ideologia y
Aparatos Ideologicos de Estado", L. A1thusser. Ficha de Ia Nueva Vision,
Buenos Aires, 1971.
"Instituição e Poder", J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. Graal, Rio de Janeiro,
1980.
"Metáforas da Desordem", J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. Paz e
Terra, Rio de Janeiro, 1978.
"Metáforas do Poder", J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. Achiamé
Socii, Rio de Janeiro, 1980.
"Sexualidade na Instituição Asilar", J. Birman. Ed. Achiamé/Socii,
Rio de Janeiro, 1980.
"La Teoria de Ia Institucion y de Ia Fundación", M. Haurion. Ed. Abeledo-Perrot,
BuenosAires, 1968.
"Perspectives de l' Analyse Institutionnelle", coord. A. Savoye e R. Hess. Ed.
Meridiens Klinscksieck, Paris, 1988.
"Psicohigiene y Psicologia Institucional", J. Bleger. Ed. Paidos, Buenos Aires,
1966.
"Los Sistemas Sociales como Defensa contra Ia Ansiedad", L Menzies y E.
Jaques. Ed. Horme, Buenos Aires, 1969. "Contrainstitucion y Grupos", A.
Bauleo. Ed. Fundamentos, Madri, 1977.
"Psicologia de Ias Instituciones", F. Ulloa, in: Revista de Psicoanalisis, tomo
XXVI, nº 1, Buenos Aires, jan./mar. 1969. "Emergentes de una Psicologia
Social Sumergida", A. Scherzer. Ed. de Ia Banda Oriental, Montevidéu, 1987.
"Salud Mental y rrabajo", coord, M. Matrajt. UAM, Cuernavaca, 1986.
"Replanteo", M. Matrajt. Ed. Nevomar, México, 1985. "Subjetividad. Grupalidad.
222
Identificaciones", J. C. De Brasi. Ed Busqueda Grupo Cero, Buenos Aires,
1990.
"Infâncias Perdidas – O Cotidiano nos Internatos", S. Altoé. Ed. Xenon, Rio de
Janeiro, 1990.
"m Proceso Grupal – Dei Psicoanalisis a Ia Psicologia Social", tomos 1 e 2, E.
Pichon-Riviére. Ed. Nueva Vision, BuenosAires, 4ª ed.1978. ''A Pesquisa-Ação
na Instituição Educativa", R. Barhier. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1985."
Les Méres "Fol1es" de Ia Place de Mui", A. Martin. Ed. Renaudot, Paris, 1989.
Periódicos;
Bul1etin de Ia Societé D' Analyse Institutionnel1e. Ed. SAI, Paris, cerca de 20
números.
Revista Autogestions. Ed. Privat, Toulouse, cerca de 30 números. Revista
Connexions. Ed. Epi, Paris, cerca de 30 números.
Revista Sociopsychanalyse. Ed. Payot, Paris, cerca de 20 números. Revista Lo
Grupal. Ed. Busqueda, Buenos Aires, oito números. Revista Saudeloucura,
coord. A. Lancetti, quatro números. Fd. Hucitec, São Paulo.
''As Instituições e os Discursos". Revista Tempo Brasileiro n° 35. Ed. Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, 1974.
"Sociopsicoanalisis e Institucion", Ed. Hogar deI Libro, Barcelona, 1984.
O AUTOR
Da formação em Psiquiatria à militância junto ao Movimento Instituinte
Internacional, Gregorio F. Baremblitt vem traçando um longo e fecundo
percurso como médico psiquiatra, psicoterapeuta, professor, pesquisador,
analista e interventor institucional, esquizoanalista, esquizodramatista e escritor
em diversos países da América Latina e Europa. Esse percurso teve início há
40 anos, na Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Buenos Aires,
223
da qual é livre-docente, e foi-se tornando mais rico e complexo a cada
momento em que o médico buscou o cruzamento da Medicina com outras
áreas. Movido pela inquietação daqueles que não se contentam com o conforto
garantido pelo reconhecimento dado aos especialistas consagrados, Gregorio
Baremblitt buscou sempre expandir sua atuação até as fronteiras da Medicina
com a Política, a Sociologia, a Filosofia, a Arte e também os saberes
populares. Esse olhar generoso e ao mesmo tempo rigoroso sobre os saberes
e fazeres do mundo contemporâneo tem rendido não apenas uma ampla
produção intelectual, mas também diversas ações nos planos de coletivos
diversos: em 1970, Gregorio foi membro-fundador do grupo psicanalítico
argentino denominado Plataforma, primeira organização no mundo separada
da Associação Psicanalítica Internacional por motivos políticos. Ao se
estabelecer no Brasil em 1977, fundou, no Rio de Janeiro e em São Paulo, o
Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (Ibrapsi), e o Instituto
Félix Guattari de Belo Horizonte, do qual é atualmente o coordenador-geral.
Sua atuação no campo da saúde mental inspirou outros profissionais a criarem
a Fundação Gregorio Baremblitt, em Uberaba (MG), uma das primeiras
entidades do país a instituir formas de tratamento mental em sintonia com os
ideais da Luta Antimanicomial. Gregorio é autor de numerosos livros e artigos
científicos e organizador de seis congressos internacionais em sua área de
atuação. Este Compêndio é fruto de um grande esforço para traduzir as
temáticas, correntes e questões do Movimento Instituinte para aqueles que
estão iniciando seus estudos e ações nesse campo, sempre ancorados em
duas palavras-chave: auto-análise e autogestão.
OUTRAS OBRAS DO AUTOR
"Introdução à Esquizoanálise". Ed. Instituto Félix Guattari, Belo Horizonte,
1998.
"Lacantroças". Ed. Hucitec, São Paulo. Traduzido para o espanhol. "Cinco
Lições sobre a Transferência". Ed. Hucitec, São Paulo, 1991. "Saber, Poder,
Quehacer yDeseo". Ed. Nueva Vision, Buenos Aires, 1988. ''Ato Psicanalítico,
Ato Político". Ed. Segrac, Belo Horizonte, 1987.
"O Inconsciente Institucional", em colaboração com outros autores. Ed. Vozes,
Petrópolis, 1984. Traduzido para o espanhol.
224
"Grupos, Teoria e Técnica", em colaboração com outros autores. Ed. Graal
Ibrapsi, Rio de Janeiro, 1982.
"La Cura". Ed. Universidade Autônoma do México, Cidade do México, 1980.
"Progressos e Retrocessos em Psiquiatria e Psicanálise". Ed. Global Ground,
Rio de Janeiro, 1978.
"La Interpretacion de los Suenos: Una Técnica Olvidada", em colaboração com
outros autores. Ed. Helguero, Buenos Aires, 1976.
"El Concepto de Realidad en Psicoanalisis", em colaboração com outros
autores. Ed. Socioanalisis, BuenosAires, 1974.
"Psicoanalisis: Teoria y Practica", em colaboração comM. Matrajt. Ed. Centro
Editor Latinoamericano, Buenos Aires, 1972.
"Cuestionamos", em colaboração com outros autores. Ed. Busqueda, Buenos
Aires,1971.
Há também numerosos prólogos e artigos publicados em revistas científicas,
culturais, livros e jornais da América Latina e Europa.
212
INSTITUTO FÉLIX GUATTARI DE BELO HORIZONTE
O Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte (MG) é uma organização não-
governamental fundada no ano de 1996. Seu nome é uma homenagem ao
célebre intelectual e militante francês Félix Guattari, e suas atividades têm
como inspiração a Utopia Ativa que guia a obra de Gilles Deleuze e do
homenageado: a Esquizoanálise, que é também a do Movimento Instituinte
Internacional.
O Instituto foi criado pelo autor deste Compêndio – o professor de
Psiquiatria, terapeuta e institucionalista Gregorio Baremblitt, um dos
introdutores das idéias desses autores em vários países da América Latina e
Europa – em parceria com Margarete Amorim, psicóloga, analista institucional
e esquizodramatista, e junto a um grupo de colegas institucionalistas.
O Instituto é uma organização vinculada à Fundação Gregorio F.
Baremblitt de Uberaba (MG), estabelecimento este que já conta mais de uma
década de existência ancorada em uma orientação e atividades comuns com o
Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte, mas com ênfase na prática clínica.
O Instituto desenvolve atividades de prestação de serviços em análise e
intervenção de organizações, movimentos e grupos públicos e privados,
225
governamentais e não-governamentais que atuam nas áreas de educação,
saúde, trabalho, justiça, arte, ecologia, políticas públicas etc.
O Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte (IFG-BH) também promove
cursos e grupos de estudo, conduz pesquisas, organiza eventos, supervisiona
trabalhos técnicos e práticos, edita e distribui livros e gerencia programas
sociais, sendo todas as atividades pautadas em sua orientação.
O IFG-BH tem diversas parcerias com organizações nacionais e
estrangeiras afins, e está aberto a todos aqueles que compartilham de seus
ideais. Os interessados em entrar em contato com o Instituto Félix Guattari
podem fazê-lo através dos telefones (31) 3284.1083 e 3221.7352 (Fax), e-mail
[email protected] ou pelo site www.ifgorg.hpg.com.br . Sua sede fica na
Rua Herval, 267 – Serra, Belo Horizonte, MG. Cep 30240-010.