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DANS LAIR A VIA SANTOS-DUMONT OU SANTOS-DUMONT/O FILME Mario Drumond Mario Drumond Mario Drumond Mario Drumond Mario Drumond Editor Editor Editor Editor Editor mcmxcvi mcmxcvi mcmxcvi mcmxcvi mcmxcvi

DANS LAIR - Café Novo Mundo · Lazare - funcionário e depois diretor do jornal "Les Temps" Levavasseur - mecânico de motores Aida D'Acosta ... - “A Santos Dumont, o povo paulista,

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DANS L’AIRA VIA SANTOS-DUMONT

OU

SANTOS-DUMONT/O FILME

Mario Drumond Mario Drumond Mario Drumond Mario Drumond Mario Drumond EditorEditorEditorEditorEditormcmxcvimcmxcvimcmxcvimcmxcvimcmxcvi

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Copyright©1995 Mario Drumond

Advertência

Este é um original preparado pelo autor para futura edição, comercial ou fora-de-comércio, e não oprojeto gráfico de um livro.

.

Instruções para impressão em papel (autorizada pelo autor para uso exclusivo do leitor e sem finscomerciais):

Formato: A4Papel: alta alvura 75 g/m2 (papel comum de copiadoras)Impressão: P&B - frente e verso

CapaPapel: 180 g/m2 (branco)Impressão: a cores ou P&B (opcional) - frente

Última capaPapel: 180 g/m2 (branco)s/ impressão

Encadernação: espiral transparente ou colada à quente (opcional)

Proteção externa (capa e última capa): acetato transparente

Esta página não precisa ser impressa. Se o for, será o verso da capa.

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DANS L’AIRA VIA SANTOS-DUMONT

OU

SANTOS-DUMONT/O FILME

UM ROTEIRO DE INVENÇÃOpara filme de longa metragem

Mario Drumond

Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995

Registrado na Bibilioteca NacionalProt. 002791 de 22.05.95

Reg. 98.001 livro 139 fls. 22

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“Quando a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda.”(in “The man who shot Liberty Valence”, de John Ford)

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Considerações do autor

A narração de uma história real através da linguagem cinematográfica impõe,necessariamente, a utilização de recursos de estilo e de construção para viabilizarum filme como esse, que é proposto para uma produção de grande portedestinada ao grande público internacional do cinema comercial.

O autor optou por estruturar esse roteiro fazendo da verdadeira e fantástica obrade invenção, projeto e construção aeronáutica pioneira de Alberto Santos-Dumont,a sua espinha dorsal. Essa obra magnífica de gênio criador e experimentaçãocientifica, realizada toda ao longo de uma só década, foi fartamente documentadapela imprensa da época, e está descrita em minúcias nas diversas e excelentesbiografias dedicadas ao seu autor, com que a História nos tem presenteado. E foiaqui integralmente respeitada em sua verdade histórica, até porque não há motivospara não fazê-lo.

O grande mistério que resulta da análise aprofundada dessas biografias, seria aexplicação de como um homem só, sem parcerias técnicas ou científicasconhecidas, pode realizá-la toda em tempo tão breve e em tal magnitude. Nemmesmo os recursos financeiros com os quais realizou tão grande e vitoriosa obra -numa competição internacional da qual participavam as mais poderosas nações daépoca - ficam convincentemente explicados pela disponibilidade propiciada poruma herança, por maior que ela fosse. Todos os seus biógrafos ficamimpossibilitados de desvendar esses mistérios, uma vez que o próprio Santos-Dumont destruiu toda a sua documentação, e, com isso, as revelações nelascontidas. Eis aí o grande mote para a liberdade narrativa que o cinema permite aosseus autores, pela necessária inclusão dos ingredientes de fantasia, magia, licençapoética, dramaticidade, intriga e ficção, que fazem dessa arte a grande atração queé para o seu imenso público.

A vida do homem Alberto Santos-Dumont, em si, e sua forte componente trágica,não poderia, evidentemente, ser desprezada nesse roteiro. E a personagem, talcomo existiu, é perfeita para a construção de uma boa trama cinematográfica.Porém, a concisão que o cinema impõe à narrativa, obriga ao roteirista algumasalterações e criações ficcionais (fakes) na sua ambientação na época e nas estóriasdas personagens coadjuvantes, das quais o autor utilizou-se para dar relevo agrandeza da sua principal personagem.

Mas este roteiro é, antes de tudo um projeto de vingança, no melhor sentido queessa palavra possa ter. Vingar Santos-Dumont é, de fato, uma emergência históricada nacionalidade, além de se fazer justiça a verdade histórica universal.

Os norte-americanos criaram a lenda dos irmãos Wrigth e impuseram-na ao mundopela força de seu poder de comunicação. Essa lenda, porém, não resiste nem àsmais breves e superficiais verificações isentas da História. E nesse caso pelo menos,a realidade supera, e em muito, a lenda que ainda tentam imprimir.

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PERSONAGENS PRINCIPAIS(pela ordem de entrada)

Alberto Santos-Dumont (SD) - Pai da Aviação

Jorge - sobrinho de SD

Georges - jornalista-caricaturista e melhor amigo de SD

Adrien - Editor-chefe do jornal "Les Temps"

August - Mordomo de SD

Embaixador Antonio Prado (Pradô) - Embaixador do Brasil na França e amigo de família

Lachambre e Machuron - mecânicos-proprietários de uma oficina de balonismo

Deutsch de la Meurthe e Príncipe Bonaparte - incentivadores da pesquisa aeronáutica

Chapin - mecânico-chefe da equipe de SD

Archdeacon - incentivador da pesquisa aeronáutica

Gasteau e Dazon - mecânicos da equipe de SD

Princesa Izabel - Princesa do Brasil exilada em França

Dr José Carlos Rodrigues - da alta sociedade carioca

Lazare - funcionário e depois diretor do jornal "Les Temps"

Levavasseur - mecânico de motores

Aida D'Acosta - bailarina e atriz

Cap. Ferber - militar e aeronauta francês

Voisin - aeronauta francês

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Advertência

Considerando-se a superstição numerológica em relação aos números 8 e 13, muitorespeitada pelos nautas em geral, houve por bem o autor deste roteiro - à maneira de

Santos-Dumont ao numerar seus projetos aeronáuticos - saltar as Sequências quereceberiam tais perigosos números.

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(NA NOVA BABEL)

PARTE 1

A CONQUISTA DA TORRE

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PARTE 1

SEQUÊNCIA 1

Intenso tiroteio;balas zunindo nocinema escuro. Sonse ruídos de homensarmados correndo,atirando e gritando.A câmera inicia emmacro no olhodireito da figuradesenhada no cartazda Revolução de

1932 (acima). Aos poucos vai abrindo oângulo, mostra todo o cartaz (uma bala atingea testa da figura do cartaz) e em seguida ocenário de uma rua de cidade do interior, naqual tropas antagônicas travam acirradoscombates. Rebeldes constitucionalistasfortemente armados correm em frente aocartaz, escondem-se numa barricada detapumes e carroças reviradas, e respondemao fogo. A infantaria varguista, que osperseguia, protege-se como pode, e replica.Fumaça, granadas, tiros, guerra.

SEQUÊNCIA 2

Vista aérea (olho de pássaro) de uma praiaparadisíaca do litoral brasileiro orlada poruma pequena e pacata vilazinha. (Legenda:Praia do Guarujá, Santos, 23 de julho de 1932)A câmera penetra no interior do Hotel de LaPlage. Movimento tranqüilo de portaria. Sobea escada junto com garçons e camareirasapressados nos afazeres matinais. Entra numcorredor e segue um garçom empurrandoum carrinho de café-da-manhã até oapartamento número 8. O garçom bate naporta. Jorge Villares abre-a, ainda arrumandosua gravata.

JORGE- Entre, por favor.

O garçom entra na ante-sala do apartamentoe começa a arrumar a mesa do café. Jorgeobserva-o.

JORGE- Não vejo meus cigarros...

O GARÇOM- Estamos sem cigarros, doutor Jorge. Apóso movimento da manhã, posso buscá-los àvenda do português.

JORGE- Obrigado. Eu o chamo, se precisar. (e dáao garçom uma pequena gorjeta)

O garçom agradece e sai. Jorge pega umenvelope, que veio junto aos jornais nabandeja do café, endereçado ao “Ilmo SrAlberto Santos-Dumont”. Lê o remetente:“Governador Pedro Manuel de Toledo, SãoPaulo, Capital”. Ao fundo a porta do quartoabre-se e surge Santos-Dumont, ainda nodesfoque, aproximando-se, entrando emfoco, dando o laço no cinto de seda de umfino robe-de-chambre. Está envelhecido, mascom bom humor e banho recém tomado.Jorge interpela-o.

JORGE- Olá, tio Alberto. Como se sente? Parece estarbem hoje!

SD- Razoavelmente, Jorge. Os pesadeloscomeçam a deixar-me em paz. Dormi bem emeu apetite voltou. O que temos para o café?

JORGE- O de sempre... A novidade é esta carta doEmbaixador Pedro de Toledo.

SD- Já a resposta? Estou curioso... (pega oenvelope das mãos de Jorge e senta-se napoltrona frente à mesa do café. Começa aabrir o envelope).

JORGE (intervindo e, carinhosamente,tomando-lhe a carta)

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

- Ahn, ahn! Uma coisa de cada vez, tio.Primeiro vamos atender ao seu belo e raroapetite matinal.

Jorge põe a carta sobre a mesa e serve café-com-leite para ambos. SD, com algunsmuchochos, concorda passivamente com osobrinho, e passa geléia no pão.

JORGE (após sorver de um só gole o sucode laranja, pega novamente a carta)- Posso ler para o Senhor?

SD- À vontade, sobrinho. Não é nenhumsegredo de estado.

JORGE (rasga o envelope e retira a cartacolocando-a diante dos olhos)- “A Santos Dumont, o povo paulista, por seugovernador, agradece as eloqüentespalavras...etc “(lê toda a pequena carta)

SD toma seu café-com-leite, indiferente àspalavras lidas pelo sobrinho.

SD- Muitos elogios... coisas de políticos.(comenta, após devorar outra fatia de pãocom geléia)

JORGE- Porém parece-me sincera, tio Alberto. (eprocurando alguma coisa no bolso docasaco) - Diabos, meus cigarros.

SD- Ainda o velho vício...

JORGE- É verdade, tio Alberto... E o garçom só vaipoder buscá-los às dez. Bem, o que fazer!

SD- Porque não vai Você mesmo buscá-los àvenda, Jorge? Não chegam aos 500 metrosuma boa caminhada até lá... Não fosse meulamentável estado de saúde eu oacompanharia; o dia parece excelente!

JORGE- Mas, quem ficaria com o Senhor? A essahora será difícil conseguir uma camareira...

SD (interrompendo-o)- Meu caro sobrinho! Sei que estou inválidoe perturbado, mas não sou tão perigosoassim. Enquanto saboreio mais uma torradacom essa deliciosa geléia e releio a carta doToledo, Você já foi e voltou! Fique tranqüilo;seu tio não é um menino traquinas... E traga-nos guloseimas da venda. É para ascamareiras. Tem sido gentis conosco. Vá...

JORGE (aquiescendo apesar de nãocompletamente convencido)- Está bem, meu tio, mas o Senhor não vaisair dessa poltrona até que eu volte.Combinados?

SD (com um sorriso, e passando geléia emoutra fatia de pão)- Tenho muito o que fazer diante desta mesa,querido sobrinho. De fato, meu apetite hojeestá surpreendente.

Jorge vai até a escrivaninha, abre uma gaveta,retira sua carteira, confere-a e coloca-a nobolso do casaco. Pega o chapéu e dirige-seà porta.

JORGE- São dois minutos e já estou de volta.Lembre-se da sua promessa! Sem sair dessapoltrona.

SD sem poder responder, com a boca cheiade torrada com geléia, faz um gesto com amão para que o sobrinho saia logo.

Corte para Jorge caminhando pela rua, dechapéu.

Corte para SD tomando café-com-leite. Eletenta alcançar a carta do outro lado da mesa,mas não consegue. Com esforço levanta-seda poltrona para contornar a mesa. Ouve-se, então, um ruído distante de motores deavião. Ia pegar a carta quando percebe oruído e paralisa o gesto para tentar ouvi-lo

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

melhor. O ruído aumenta progressivamente.SD volta-se na direção da janela, e caminhaaté lá para observar as aeronaves.

Corte para Jorge, na rua, ouvindo tambémos motores aéreos. Pára pensativo e indeciso.Continua ou retorna? Decide continuar, masa passos rápidos, bem rápidos.

Corte para SD chegando na janela. Vê trêsbiplanos vindos do norte, voando em baixaaltitude.

Corte para Jorge entrando afobado na venda.Agitado, pede seus cigarros e já tira a carteirae conta o dinheiro. O português, dono davenda, porém, não tem pressa.

O PORTUGUÊS- Estes aeroplanos, estes aeroplanos... jáandam por toda parte, ora pois...

JORGE (afobado, entregando o dinheiro)- Por favor, dois maços de Continental; e sejarápido, eu lhe peço.

O PORTUGUÊS (pegando o dinheiro,contando-o e arrumando-o calmamente)- Vamos com calma, meu senhor, o diaapenas começa... (os ruídos dos motoresaumentam) - Porque tanta pressa, homens?!...(berra o português para os barulhentosaviões, como se os pilotos pudessem ouvi-lo)

JORGE (apressando-o,nervoso)- Senhor, senhor...

O PORTUGUÊS- Já me vou, já me vou, jáme vou...(entrega a Jorge osdois maços de cigarros e vaiem direção ao fundo davenda onde está a caixaregistradora para fazer otroco) ...- Já trago-lhe otroco.

Corte para SD na janela,

vendo três aeronaves de guerra passandobem à sua frente, voando em direção aSantos. Seu olhar é apreensivo e seu humornão é mais o mesmo. As aeronavesdistanciam-se sob seu olhar reprovador e,bem ao longe, despejam bombas sobre acidade de Santos. As violentas explosões sãoouvidas, reboando, em terríveis ecos.

Corte para Jorge, ainda na venda, aguardandoo seu troco. Olha assustado em direção àsexplosões. O Português, ainda de costas,fazendo o troco na caixa registradora, apenasbalança a cabeça, sem se virar.

Corte para close do rosto de SD atônito,apoplético, furibundo.

SD (balbuciando, trêmulo)- Eles... eles... não podem! Eles, não podem...,eles, eles, não podem, não podem...

SEQUÊNCIA 3

Sobre o seu rosto aflito uma sequência defusões de bombardeios aéreos se sucedem,com tiros, bombas, explosões, estilhaços,nuvens de fumaça. Começa com primitivosbiplanos da primeira guerra mundial, passapor pesados bombardeiros e caças daSegunda Guerra, pelos caças-a-jato e os B-52 no Vietnam, jatos de última geração

despejando mísseis noIraque; hospitais, escolas,cidades, tudo voandopelos ares em estilhaços efogo; os Quatro Cavaleirosdo Apocalipse surgemnum fogo horrendo,queimando florestas,ardendo edifícios, aos sonsde tiros, explosões, chuvasde bombas, metralhadoras;fumaça, destruição,mortes; tudo passandodiante do olharensandecido de SD, que,às vezes, surge edesaparece em meio às

Os Quatro Cavaleiros do ApocalipseXilografia de Durer

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

fusões sempre balbuciando “Eles nãopodem!, eles não podem!, eles, eles...”, até odesfecho de tudo, numa cataclísmicaexplosão nuclear, e o seu monumentalcogumelo abrindo espetacularmente opoderoso raio de devastação, num tremendoe sonoro reboar.

A câmera aproxima-se lentamente do centroincandescente do cogumelo atômicoenquanto o som e a imagem do rosto de SDvão diluindo até o desaparecimento. Tudo épura luz e silêncio. Ouve-se uma voz infantil.

SEQUÊNCIA 4 (plano-sequência/sem cortes)

O foco da câmera sai da pura luz, que revela-se o centro de uma branca nuvem no céu, edesce lentamente para a terra durante otempo das falas infantis.

CRIANÇA MESTRE- Tamanduá voa?

CRIANÇAS EM CORO- Não voa!

CRIANÇA MESTRE- Macaco voa?

CRIANÇAS EM CORO- Não voa!

CRIANÇA MESTRE- Pato voa?

CRIANÇAS EM CORO- Voa!

CRIANÇA MESTRE- Homem voa?

UMA VOZ SOLITÁRIA DE MENINO(Albertinho)- Voa!

Todas as crianças riem e debocham. A câmeraestá no rosto tímido e desconcertado deAlbertinho, de sete anos de idade. (Legenda:

Ribeirão Preto, 20 de julho de 1880) Aofundo, muitas crianças, sons, ruídos e músicade festa na roça.

A CRIANÇA MESTRE (em off, pois a câmeracontinua em Albertinho)- Albertinho, homem voa?

ALBERTINHO (categórico)- Voa!

E sai em corrida desabalada, separando-sedo grupo de crianças, correndo por entre aspessoas e arranjos da festa ao ar livre emdireção à casa-grande de fazenda, a poucosmetros de uma bela e grande gameleira. Àsombra dela as crianças brincavam de “seumestre” na festa de aniversário de Albertinho.

A câmera eleva-se, passa por cima da copada árvore numa grua alta, e acompanha, doalto, a trajetória do pequeno Albertinho atéque ele abrace as pernas de seu pai, quevem saindo da casa. Em seguida, passa pelostelhados do grande casarão e mostra, portrás da casa, os imensos cafezais sem fim.Ainda em movimento contínuo a câmera vaisubindo seu foco para o céu, até às nuvens.Entra a titulagem:

DANS L’AIRA VIA SANTOS-DUMONT

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SEQUÊNCIA 5

No mesmo céu, como se não houvesse corte,ouve-se o ruído de um primitivo motor deexplosão a petróleo, aproximando-se por trásdo espectador. De repente, corta a tela odirigível SD N 6, em ângulo surpreendente(foto),

Corte para a câmera no próprio dirigível,focalizando, de frente, o jovem SD, que opera

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

complicados sistemas de contrapesos emanetes de comando, com movimentosprecisos, equilibrando-se, com facilidade, napequena barquilha da aeronave.

Corte para a câmera no solo da cidade deParis enquanto o Número 6 circunda a TorreEiffel. Bengalas e chapéus agitam-se e sãojogados ao alto nos aplausos do povoaglomerado. (foto).

O POVO DE PARIS (aplaudindo)- Viva “le petit Santos”!- Viva “le petit Santos”!

Num certo momento (o momento exato dessafoto), o quadro “congela” e a câmeraaproxima-se do Número 6 ao lado da TorreEiffel. Ao enquadrá-los, a cena estática ficaem P&B.

SEQUÊNCIA 6 (O "Le Temps")

A câmera volta a abrir o ângulo e vaimostrando a foto P&B estampada na primeira

página do jornal "Le Temps", queestá na mesa do jornalista-caricaturista Georges Goursat.O desenhista está dando osúltimos retoques na caricaturade SD (ao lado). Ao terminá-la,ele a assina: Sem. (Legenda:

Paris, 20 de outubro de 1901). Um “foca”aproxima-se.

O “FOCA” (o jovem Lazare)- O Senhor Adrien pediu-me para avisá-loque o espera em seu gabinete.

GEORGES- Obrigado, rapaz.

Georges põe a caricatura dentro de uma pastade cartolina, levanta-se e sai por entre otumulto de oficiais e máquinas gráficas emplena função do dia, na apertada oficina do“Le Temps”. A câmera acompanha-o até aporta envidraçada do editor onde se lê“ADRIEN HÉBRARD, EDITEUR”. Bate e abrea porta. Adrien está aos berros num primitivoaparelho de telefone.

ADRIEN (aos berros)- Sim, sim, já ouvi,...já ouvi! (e desliga oaparelho lançando maldições). - Malditasmáquinas! (acalma-se e indica uma poltronado seu entulhado gabinete a Georges) -Sente-se, Georges. (e, indo direto ao assunto)- A Comissão Julgadora hesita em conceder

"...Viva le Petit Santos! Viva le Petit Santos!"

"...corta a tela o dirigível SD Nº 6em ângulo surpreendente."

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

o Prêmio Deutsch ao nosso “petit Santos”.Sinto o cheiro do velho chauvinismofrancês...

GEORGES- Você soube que Alberto abriu mão dodinheiro do Prêmio em favor de sua equipede mecânicos e dos operários pobres deParis?....

ADRIEN- Sim, ele foi esperto. Eis que o nosso herói,além de engenhocas e dirigíveis, entendetambém de publicidade, não? A opiniãopública ficou toda com ele.

GEORGES- Não é isso. Alberto não agepor meio de artimanhase truques. Seudesprendimento ésincero. Se quisesse,estaria multimilionáriosó com as patentesque legou ao domíniopúblico...

ADRIEN- Eis aí, meu caro Georges, um casoraro, raríssimo! Fale-me mais sobre ele.

GEORGES- Herdou fortuna suficiente para viver bem einventar o que quiser. Pode ser consideradolouco ou gênio. Essas virtudes costumamtrazer consigo o sentimento de predestinação.Creio que, interiormente, Alberto acredita-se um predestinado. Comporta-se como sesua missão fosse dada pelos deuses, que oenviam à Terra para ensinar os segredos daaeronáutica. Só por isso vive, pensa, estuda,gasta e trabalha. Mulheres, farras, finanças,patentes, heranças, são para os mortaiscomuns. Para ele a luta e o diálogo é com osdeuses. Uma espécie de Aquiles ou Prometeumoderno, protegido por uma facção doOlimpo e combatido por outra. Suas armassão o talento para a mecânica, a audácia, odinheiro e, é claro, a publicidade. Dessaúltima intui bem a sua importância, e como

usá-la em seu favor. Mas preserva princípiosmais comuns aos santos e aos ingênuos. Soutestemunha de que ele joga limpo e sódescansará quando estiver convicto de quefoi cumprida a missão que o destino lheimpôs.

ADRIEN- Você e ele cultivam uma boa amizade...

GEORGES- Sim, de fato desde que Alberto começousuas aventuras em Paris, despertou-me umadupla curiosidade: a do jornalista e a docaricaturista. Comecei a acompanhá-lo deperto e tornei-me seu amigo pessoal. É um

gentleman, um bon vivant refinado ediscreto apesar de toda a

publicidade que desperta.É também uma pessoareservadíssima...

ADRIEN (em tomsolene e circunspeto)- Meu caro Georges,

posso introduzir-lhe numsegredo que não pode sair desta

sala?

GEORGES (um pouco desconcertado)- Se é algo que eu possa ajudar...

ADRIEN- O Herald de Nova York mandou um repórterpara acompanhar o nosso “petit Santos”. Hátempos desconfio desse interesse do Bennettpela viação aérea. De repente, tornou-se ummecenas do metier! Gasta fortunas comprêmios, financiamentos, experiências, odiabo. E Gordon Bennett não preserva, coma publicidade e a imprensa, os mesmosprincípios que o seu amigo; e muito menosquanto ao dinheiro! Acionei meu agente emNova York para saber o que se passa nacabeça dele. Ontem recebi esse dossier.Bennett está investindo pesado; contratouestudiosos e doutores de História daCivilização para desenterrar tudo quanto foratentativa humana de alçar-se aos ares comajuda de máquinas e outros artifícios. O que

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

Bennett quer chegar?

Georges faz uma expressão interrogativa

ADRIEN (prosseguindo)- Conhece meu faropara notícia, umaespécie de sextosentido no qualsempre confio. Hádias, visitou-me oCoronel CharlesR e n a r d .De l i c a d amen t esugeriu-me atençãomaior para asexperiências dosfranceses naaerostática e, à suamaneira, queixou-se do excesso de publicidade que temosdado ao seu amigo. Fez a mesma coisa noL’Illustration, no Petit Journal, no Figaro, e,em outros jornais. Com o dossier do Herald,o que eu suspeitava confirmou-se: começoua batalha chauvinista, entre as nações, paradisputar a glória da primazia na conquistados ares. E as suas patentes, é claro. Alemães,ingleses, franceses, russos, italianos eamericanos já estão nela, Georges, eapostando tudo o que têm. Bennett estápreparando o troféu para os americanos. Eo coronel Renard o quer para os franceses.Todos se mexem, percebeu?

GEORGES- Talvez, mas ainda não o meu papel nessahistória.

ADRIEN- Sim, hoje acordei

com umanova

tenho aqui é apenasum resumo.

Mostra o espessodossier a Georges quecomeça a examiná-lof o l h e a n d o - osuperficialmente.

ADRIEN (continuandoem off sobre a iconografia citada, em imagensestáticas ou em movimento animado)- Georges, eles foram longe nessa pesquisa.Rebuscaram os antigos textos doMahabharata, onde se lê que imensasaeronaves povoavam os céus cobrindograndes distâncias. Foram aos chineses e seusplanadores de alguns séculos antes de Cristo.Aos mitos gregos de Ícaro e deuses alados; àidade média com suas bruxas voando emcabos de vassouras, e monges beneditinosem planadores; resgataram histórias de umalemão exibindo-se em vôo planado peranteo imperador no século XV; Roger Bacon e

Leonardo da Vincicom suas idéiasvisionárias; ums a l t i m b a n c oatirando-se doPalácio SaintGermain, diante deLuiz XIV e sua corte;máquinas e inventosde toda espécie;barcas voadoras;pernas e cabeçasquebradas; tudo

com detalhes, documentos, testemunhos.Nos dois últimos séculos, a coisa cresce e seespalha pelo planeta com todo o tipo deexperiências inacreditáveis. Até um outrobrasileiro voador, um tal BartolomeuGusmão, localizaram em Portugal no SéculoXVIII, a tentar vender ao rei barcas voadorasde guerra. (e, em in) - Hoje, onde tem alguémtentando voar nalguma máquina louca, temalguém do Herald bisbilhotando. E o que oHerald publica de tudo isso? Nada! Ou quasenada! Uma ou outra notícia, que todos nóspublicamos. Então me pergunto: onde "... eles foram longe nessa pesquisa."

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

idéia e o meu sexto sentido a aprovou. Vocêpassa a ter uma saleta exclusiva, com chavesna porta, na escrivaninha e no armário. Vaiacompanhar de perto o seu amigo e suasaventuras aéreas. Algo me diz que o “petitSantos” é que vai decidir essa parada. Ele éo homem! E, pensando bem, seria o melhorpara todos nós: resolveria essa pendengaidiota e pueril de quem, diabos, foi o primeiroa voar com uma máquina, e capaz de dirigi-la. Nem franceses, nem ingleses, nemamericanos, nem italianos, nem alemães, nemrussos: - um brasileiro! Não seria perfeito? Eé só o que os brasileiros desejariam; - a glória!Nós outros queremos essas máquinas paranos metralharmos mutuamente, e incorporaros céus aos sangrentos campos de batalha.E ganhar dinheiro, meu caro, muito dinheiro,deixando as demais nações a reboque depatentes bem asseguradas. (e, refletindo) -Diga-me, Georges, ele é comunista? Essasidéias de patrimônio da humanidade para osaber intelectual, distribuição de dinheiropara operários... Li coisas do gênero emrecentes manifestos de comunistas...

GEORGES (interpelando risonho)- Nem de longe, Adrien. Já disse o que ele é,ou acredita ser: um predestinado. Pelo seucomportamento estaria mais próximo até deum monarquista do que de um republicano.Talvez nem saiba da existência de Marx,Engels e seus discípulos...

ADRIEN- Pois bem, Georges, quero que Você metraga a vida dele nos detalhes. Vou pôr umfotógrafo para acompanhá-lo. A partir de hojeo "Le Temps" vai cuidar mais desse assunto.Minha aposta, porém, é no “petit Santos”. Porisso quero-o inteiro; e guardado a setechaves, para a hora certa! Enquanto isso vouadministrando os concorrentes, os políticose os militares. Concorda com o trabalho?

GEORGES- Não vejo porque recusá-lo. Tambémacredito muito em Alberto. Perto dele mesinto na presença de um gênio; - um gênioda mecânica! Também para ele, esse trabalho

vem a calhar! Espero que haja aumento desalário e despesas pagas, Alberto é habituédo Maxim’s...

ADRIEN- Sim, mas com moderação. Você sabe que o"Le Temps" nunca foi grandes coisas em suasfinanças. Cá estão as suas chaves. Naescrivaninha encontrará uma cópia do dossierdo Herald. E sigilo total sobre tudo! Vou fazersaber que o promovi a redator- assistente.

GEORGES (pegando as chaves)- Negócio fechado, chefe. Ah, aqui está acaricatura do jornal de amanhã; o que acha?

ADRIEN (olhando atentamente o desenho)- Perfeita, Georges! Vamos guardá-la paradepois da decisão da Comissão Julgadora.Publicá-la agora seria contraproducente. Faleicom o Deutsch, o Aimé e o Bonaparte.Apesar das forças contrárias, o provável éque o prêmio venha para o nosso herói. Eque o merece; porque não? Mas lembre-se:estamos em França, a velha, boa e madrastaFrança, onde o importante é preservar asaparências... Bem, ao trabalho.(cumprimentam-se)

SEQUÊNCIA 7

Por volta das duas da tarde, Georges caminhapelo Champs Elysées em direção à ruaWashington. Entra num luxuoso prédio deapartamentos grã-finos e dirige-se até a portado número 3 do andar térreo. Toca acampainha. August, o mordomo austríaco deSD, atende com solicitude e o introduz nohall.

Descrição cenográfica: o hall é decorado comquatro litografias de Debret e duas deRugendas, mostrando aspectos do interior doBrasil, e um conjunto de móveis feitos emjacarandá da Bahia, composto de umcabideiro, um pequeno canapé e um portarevistas, todos do mesmo e curioso artesanatobrasileiro, e um tapete arraiolo, de centro,confeccionado em Diamantina, interior de

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Minas Gerais, terra de Henrique, pai de SD.

August pede a Georges que o aguarde.Desaparece por uma porta e, algunssegundos depois, retorna.

AUGUST- O Sr Santos-Dumont vai recebê-lo na salade jantar, Sr Georges. (e, baixinho no ouvidode Georges) - Por favor, não se assuste como que vai ver. O senhor já conhece o patrão.

O mordomo introduz Georges na ampla salade jantar. Georges parece não acreditar noque vê. Sentado no alto de uma cadeira comos quatro pés de dois metros e meio de altura,frente a uma mesa de jantar igualmentepernalta, está o jovem SD, impecavelmentevestido e calmamente almoçando, com suacabeça a poucos centímetros do lustre dasala. Uma escada, aberta ao lado da mesa,dá acesso a um dos criados que a sobe,temeroso e mal equilibrando a bandeja, paraservir a sobremesa ao seu patrão. SD olha láde cima a cara estupefata de Georges.

SD- Como vai, Georges, por favor não se assustee não tema. O metier obriga-me àconvivência com as alturas. Aceitaacompanhar-me? Há uma outra cadeira paraum eventual conviva que, infelizmente,nunca aparece. Ovinho está excelente ea comida... ora, Você jáconhece as habilidadesdo meu valiosoFrançois.

GEORGES (com a vozum pouco trêmula depasmo)- Sinto declinar doconvite, Alberto, mashoje estou um tantosem apetite...

SD- Já esperava essasdesculpas, meu caro

amigo, mas o perdôo.Aguarde-me ao salão.O Pradô lá see n c o n t r a .Também recusoumeu convite.Mandarei servirsobremesa aVocês e logoestarei lá para olicor. August,leve o SrGeorges até osalão.

G e o r g e sa c o m p a n h aAugust saindopor outra porta e atravessando o largocorredor.

Descrição cenográfica: o corredor é decoradocom duas raras gravuras de Dürer (acalcografia Melencoliae, onde se vê um sábiomedieval com seus instrumentos, a pedrafilosofal e um quadro numerológico, aofundo, no qual todas as somas dos númerosque o compõem, nas verticais, horizontais ediagonais, perfazem 34 e a famosaxilogravura alada dos “Quatro Cavaleiros doApocalipse”); uma sanguínea atribuída aBosch (mostrando uma composição também

alada e surrealista) eduas peanhas aofundo, uma de frentepara outra, a daesquerda sustentandoum pequeno fauno deRodin e a outra umabailarina de Degas.

Chegam até a porta doluxuoso salão devisitas, iluminado porgrandes janelasenvidraçadas, que dãopara o Arco do Triunfo.

Descrição cenográfica:o amplo salão tem, no

"Georges parece não acreditarno que vê"...

Melencoliae - Calcografia de Durer

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centro da sua parede principal, uma daspinturas mais apreciadas de Gauguin: a “TaMatete”, na qual o genial artista compõe, comas cores fortes dos trópicos e suas belasmorenas, uma requintada composição noestilo egípcio, com as figuras perfiladas edispostas coreograficamente no quadro; àfrente dela, na parede oposta, contracenamuma pintura de Rousseau, “O Por do Sol naSelva”, também de forte coloração e tematropicalista, dois quadrinhos pontilhistas deSignac e um outro, também pequeno, deSeurat, um gouache de Toulouse Lautrec eduas sanguíneas, uma aquarela e um óleodo pintor, seu conterrâneo e amigo, ElyseuVisconti. Na parede do fundo, um altarzinhobarroco, trazido de Cabangu, com umpequenino oratório atribuído ao famosoescultor que atendiapela alcunha de“Aleijadinho”. Osalão é mobiliadoem três ambientes,dois com jogos deconfortáveis sofás,um de couro e outrode veludo, ambosem tons e coresclaras, feitos nasmais finas capotariasde Paris, com respectivas mesas de centro, eo terceiro com uma mesa redonda decarteado e seis cadeiras de palhinha.

Antonio Prado está distraído lendo jornais e,ao perceber Georges, levanta-se para abraçá-lo.

GEORGES- Fico feliz em revê-lo, Embaixador. Fez boaviagem?

PRADO- Excelente, meu bom Georges, excelente!Vim no Lutéce! Também estou contente emvê-lo.

Entra o criado trazendo uma bandeja comduas sobremesas servidas de torta de maçãe sorvete, e a garrafa de licor acompanhada

de três pequenos cálices de cristal. Coloca abandeja sobre a mesa de centro e sai. Pradoo agradece, passa uma sobremesa a Georgese pega a outra para si.

GEORGES (após provar um bom naco doseu doce)- E como vai o grande Brasil, essa terra quetodos cantam com os mais exuberantesadjetivos e predicados?

PRADO (também provando um naco do seu)- Maravilhosa! Como sempre foi e será, meucaro Georges, maravilhosa! Quando teremosa honra de recebê-lo lá?

GEORGES- Talvez mais breve do que imaginamos,

Embaixador. Minhairmã ordenou-sefreira e foi para ummosteiro emPetrópolis. Estáencantada com o seupaís. Em brevepretendo visitá-la.

PRADO- Mas que belanotícia, Georges!

Faço questão de visitá-la quando retornar aoBrasil, se possível levando Você ao encontrode sua irmã e das delícias tropicais brasileiras.Vai se sentir em pessoa no próprio paraíso,acredite.

Ambos deixam as sobremesas e Pradooferece charutos. Georges aceita um ecaminham em direção à janela acendendoos charutos.

PRADO (após a primeira baforada)- Muito bem situado este apartamento deAlberto; bem diante do Arco do Triunfo.

GEORGES (também fumando e pensativo)- Sim, uma ótima escolha. Alberto nãodescuida os detalhes. Seu gênio parece estarsempre à procura dos símbolos em tudo oque faz. Aqui, ele quer conviver com o

Detalhe do Ta Matete de Gauguin

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símbolo do triunfo. Eis o nosso bom Alberto,o predestinado... Oh! ei-lo.

SD entra no salão e começa a servir os cálicesde licor.

SD (brincalhão)- Amigos, vamos brindar a esse encontro.(serve a todos, brindam e bebem) - Pradô,vou pedir ao governo brasileiro que desafiea França em armas caso não me concedamlogo esse prêmio. O que acha? Não é umaafronta? Está me saindo mais difícil recebero Prêmio do que o foi para conquistá-lo!?

GEORGES (após o brinde e de sorver o licorde um só gole)- Amanhã, com certeza, teremos o fim dessanovela. E com final feliz. O povo parisiensenão aceitará mais uma protelação.

SD- Pudera, já estamos a 3 de novembro. Já sevão quase 15 dias... Mas confio nos sábiosdo Instituto de Paris, eles me salvarão!

GEORGES- Pelas contas do jornal já temos 10 votoscertos a seu favor. E sabemos que outros doistambém serão nossos. Esses já lhe garantema vitória.

Sentam-se todos nos confortáveis sofás doambiente principal do salão.

PRADO- Falei por telefone ao Deutsch. Ele garanteque o Aero Clube de Paris não lhe recusaráo prêmio. Deutsch estava lá naquele grandemomento da história que, infelizmente, perdi,nas atribulações do meu cargo. Campos Saleschamou-me ao Rio justamente quando tudoestava para acontecer. (e, dirigindo-se a SD)- Pelo menos pude ser útil à sua luta, Alberto.Convencemos Sales e o Congresso, com aajuda do senador e aeronauta AugustoSevero, cuja atuação no Parlamento foifundamental para o nosso pleito, de que,independente do que aconteça, o Brasil lhepagará um prêmio no mesmo valor do

Prêmio Deutsch.

SD- Mas isso seria desnecessário, Pradô. Nãoquero tornar-me mais um problema às jácombalidas finanças públicas de nossa pátria.

PRADO- Não é que estejam lá muito boas. Não nosfaltam crises. Vai mal o comércio, a indústria...Mas estamos longe de uma quebra. Edesejamos o seu sucesso em Paris, que tantoprestígio tem trazido ao Brasil e ao nossopovo. É o mínimo que podemos fazer, nãorecuse, Alberto. O povo brasileiro iriaconsiderá-lo um snob.

SD- Não recusarei, Pradô. Como sabe concedio Prêmio Deutsch aos meus mecânicos e aosoperários pobres de Paris. E o fiz pormerecimento e compaixão. Depois de amigoscomo Você e Georges; os meus mecânicos eo povo pobre de Paris tem sido os meusmaiores aliados desde que aqui cheguei...mas, Georges, o que está a anotar nestecaderno?

Georges havia tirado de sua pasta umcaderno de notas e um lápis e fazia alialgumas anotações.

GEORGES- Temos aqui uma notícia mais fresca do queas croissants da boulangerie de la place, meusamigos. E eu sou um repórter, lembram-se?(termina a anotação e guarda o caderno) -Mas hoje não tenho notícias só a anotar;tenho-as também a dar: Adrien promoveu-me a seu redator-assistente no "Le Temps".

PRADO- Considero Maurice Talmeyr e AdrienHébrard os dois mais brilhantes jornalistasque o novo século revelou. Você está deparabéns, Georges.

SD (enchendo novamente os cálices comlicor)- Sim, Adrien faz jus à estirpe dos

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“informadíssimos Hébrards”. Eis aí um bommotivo para novo brinde. Um brinde aonosso amigo Georges. Sucesso e felicidadespara ele. (brindam) - Me sinto orgulhoso deVocê, Georges (e bebem).

GEORGES (põe o cálice na mesa)- Para mim é o último. Prefiro não beberenquanto trabalho.

PRADO- Como assim, trabalho, Georges? Vai sairagora?

SD- Sim, explique-se, Georges.

GEORGES- Não, não pretendo sair. Minha primeiramissão em meu novo trabalho é Você,Alberto.

SD- Ora, não diga que acabo de perder umamigo e ganhar um jornalista. Já tenho-osaos montes, seguindo-me nas esquinas, noscafés, nas oficinas, com seus fotógrafos e suasanotações. Amigos, porém, os tenho poucos.E a Vocês farei uma distinção muito especial.

Por isso os convidei hoje. (e levanta-secaminhando em direção ao corredor) - Porfavor, dêem-me a honra! Serão os primeirosa conhecer o meu atelier, este pequenocaldeirão onde remexo minhas bruxarias.Sigam-me. (os dois, movidos pela surpresa,o seguem)

SEQUÊNCIA 9 (A Oficina secreta de SD -Descrição cenográfica)

O final do amplo corredor é arrematado poruma parede forrada de madeira negra emaciça. Perto dela, na lateral, uma peanhaapóia a pequena e delicada bailarina deDegas. SD gira a bailarina, e a peanha revela-se a portinhola de um mecanismoescamoteado, composto de uma pequenaalavanca e um segredo numérico semelhanteaos dos cofres. SD gira o segredo para asposições certas, aciona a alavanca, e a“parede” do fundo do corredor denuncia-seuma imensa porta de madeira maciça quecorre suavemente para a direita, deslizando,sem qualquer ruído, sobre bem lubrificadasrodilhas. A um sinal de SD os dois amigosestupefatos penetram o recinto, descendo poruma pequena escada de três degraus,

Espaço destinado à planta baixada Oficina Secreta

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seguidos de SD que, antes de entrar, acionanovamente a alavanca para que a porta,lentamente, se feche por detrás dele.

O ambiente era fantástico: um grande galpão,de 30 metros de comprimento por 20 delargura, adaptado de uma desativada garagemde carruagens e diligências, contígua aoapartamento de SD: sem divisões internas,possuía o pé-direito de cerca de 6 metros,telhado de ardósia forrado de tábua corrida,sustentado por estrutura metálica art-nouveau apoiada nas laterais e em quatropilares simetricamente dispostos, queformavam um grande quadrado central,iluminado, de dia, por uma bela cúpula nocentro do telhado, feita em vidro colorido eferro fundido, no mesmo estilo da estruturade sustentação. Além da porta secreta que oligava ao apartamento, o edifício tinha duasgrandes portas de correr, jamais vistasnaquela época, para entrada e saída demateriais, equipamentos, máquinas, inventosinteiros ou em partes, que dava para o pátioexterno. Apesar da inexistência de divisóriasem seu interior, o ambiente era perfeitamentedividido em nove diferentes espaços detrabalho ou seções, como demonstra a plantabaixa, na página ao lado.

A oficina era hermeticamente fechada eiluminada artificialmente por um engenhoso

sistema de grandes luminárias e holofoteselétricos reguláveis, pendurados ao forro emanejáveis do chão por sistemas de correntespendentes; que garantiam perfeitaluminosidade, com intensidades reguláveispor reostatos, em qualquer ponto do seuinterior.

A temperatura ambiente era mantida emamenos e permanentes 23 graus centígrados(marcados em um grande e visíveltermômetro instalado num dos pilares) porum sistema de ar renovado etemperaturizado, idealizado pelo inventor,que era distribuído por tubulões condutoresaéreos, de seção retangular, feitos em latão,embrulhados em mantões de lã, esustentados por cabos pendidos à estruturasuperior do telhado, um pouco acima do pé-direito. Eram interligados a um complexosistema de aquecimento elétrico erefrigeração a gás freon, feito de serpentinasmetálicas por onde passava água emtemperatura controlada, e acoplados apoderosos ventiladores, com hélices dechapas metálicas planas, que recolhiam o arambiente, renovava-o, filtrava-o, refrigerava-o ou aquecia-o, e soprava-o novamente pelostubos que o distribuíam pelas nove bocasdo sistema, nos diversos ambientes dogalpão. Um sistema de chaves e reostatosengenhosamente conectados a termômetrose barômetros, mantinham o funcionamentoautomático de toda essa parafernália egarantiam pressão atmosférica, temperaturae umidade do ar constantes em qualquerépoca do ano e a qualquer hora do dia.

A parte barulhenta do sistema, composta depesados motores elétricos e geradores deenergia elétrica a petróleo e respectivostanques de combustível, jogos de chavesautomáticas, roldanas, polias, correias eventiladores, era mantida isolada numacasinhola de alvenaria feita com paredesduplas e com revestimento interno de feltrogrosso, que abafavam completamente todosos ruídos ali produzidos, e, a tal ponto, que,vistas pela escotilha de espesso vidro daigualmente espessa portinhola de inspeção,

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com as luzes internas acesas,pareciam silenciosas e serenasmáquinas em perfeito e celestialfuncionamento. [Aberta, porém,a portinhola, uma violentaorquestra de ruídosensurdecedores toma conta daoficina, para susto dos visitantes quesó destapam seus ouvidos quandoo inventor cerra novamente aportinhola e faz retornar a pazanterior.]

As tubulações principais de renovaçãoe distribuição do ar encanado subiam dacasinhola pela parede até o teto, como umachaminé de lareira, também isolada comfeltro grosso e parede dupla de alvenaria; eos tubulões de distribuição, isolados commantões de lã, não só impediam a troca decalor, como também eliminavam todo o ruídoproduzido pelas máquinas na casinhola,antes da saída do ar nas bocas de distribuição.De sorte que, no interior do galpão, ouvia-se apenas, e no silêncio total, um leve e sutilrumorejar de exalação aérea contínua,distribuindo ar puro e temperaturizado emtodo o vasto ambiente.

Uma outra casinhola, contígua à anterior, domesmo porte e de semelhante construção,igualmente isolada dos ruídos e equipadacom um sistema de filtragem de gases eaeração própria, servia de cabine de testesdos motores criados pelo inventor, quepodiam nela ser introduzidos através de umatampa superior, e se sustentavam, no interior,em bancadas apropriadas e conectadas porcabos e fios aos instrumentos de mediçãoinstalados externamente, embaixo de umgrande visor retangular de vidro espesso, peloqual podia-se acompanhar tambémvisualmente o desempenho das máquinas emteste.

[SD caminha pela oficina seguido pelosamigos, mostrando, com orgulho, os seusmínimos detalhes, os controles de luz eatmosfera por ele inventados, asferramentinhas que criou e suas

especialíssimas finalidades, asmaquetes e modelos, etc.]

No quadrado central, - entre ospilares feitos de ferro fundido e

bordados com vinhetas art-nouveauem relevo - , ficava a grande

prancheta de trabalho de SD(equipada com um suntuosotecnígrafo) de tampo maciço feito emtábua única de ipê emoldurado empinho de riga, suspenso do teto embalanço, acima de um armário-mapoteca de seis gavetas, por um

complexo sistema de cabos e roldanas,manejáveis por correntes pendentes,podendo ser facilmente posicionado einclinado em qualquer ângulo, verificáveisnas bolhas de prumo acopladas nos sentidoslateral e longitudinal do tampo suspenso.Frente ao tampo, uma barquilha de vime,idêntica às utilizadas por SD em suasaeronaves dirigíveis, era também suspensado chão por semelhante sistema, só queacoplado a um carrinho com rodilhas,equipado com motor elétrico, e instaladonum sistema de trilhos firmemente suspensose fixados na estrutura inferior do telhado,logo abaixo do pé-direito, como se fosse umaespécie de mini-ferrovia aérea. Esse sistema,operado de dentro da barquilha, permitialevá-la e elevá-la, com o seu ocupante, aqualquer ponto ou altitude dentro da oficina,de modo que, ao trabalhar em sua criações,o inventor simulava também a situaçãotridimensional de vôo e exercitava o seuequilíbrio.

Em frente à prancheta, um grande espaçovazio servia esporadicamente para acolocação dos moldes de confecção dosinvólucros de balões e dirigíveis, e montagemparcial ou integral de protótipos para testes.À esquerda situava-se, de trás para frente, amarcenaria completa, servida de mangas deaspiração e reaproveitamento de serragem,pendentes do teto, para todas as máquinas;a serralheria, a tornearia e a usinagem deprecisão, igualmente completíssimas, comseus sistemas de soldas e maçaricos de todos

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os tipos existentes, protegidos por boxes decortinado de percalina e borracha isolante,e servidos de coifa de exaustão de gases; e aseção de montagem e mock-up, equipadacom máquinas de costura elétricas e prensasde colagem, onde amontoavam-se,organizadamente, do chão ao forro dotelhado, pendurados ou apoiados em caixas,caixotes e pedestais próprios, uma infinidadede modelos, protótipos, maquetes eminiaturas de todo o tipo de engenhos aéreose terrestres que a imaginação do inventorpode conceber até então.

No canto dessa seção, via-se uma bizarrareunião de meia dúzia de bonecosarticulados, feitos de borracha, em escalahumana natural, que eram usados para testarposições de pilotagem e condições decomando nos mock-ups e protótipos.

Atrás do inventor,quando em suabarquilha pendurada noquadrado central,ficavam instalados todoso sistemas de controlesde iluminação eatmosfera, junto àscasinholas de máquinas.

À direita, ao lado, um almoxarifado, semprerepleto de materiais oriundos dos quatrocantos do mundo, e que poderiam serutilizáveis em projetos do inventor. Tudo bemarmazenado, conservado e guardado emprateleiras, armários e recipientes de váriasespécies, com etiquetas de identificação efichas de controle de estoque presas àpranchetilhas de mão e penduradas emcabide de madeira fixado à parede. Ao seulado, uma bela ferramentaria, especialmenteprojetada para guardar, com visibilidade, domais pequenino e delicado instrumentinho,até as possantes marretas e poderosasalavancas de ferro fundido, passando portudo quanto é tipo de ferramenta pequena,média ou grande, possível e existente,fabricadas por quem quer que as fabrique epelo próprio inventor que as inventou

algumas.

Atrás, no canto de fundo, a parte molhada,com tanques e pias servidas de torneiras emangueiras diversas e um pequenolaboratório de química, onde podia-seproduzir e testar colas, vernizes, tintas,graxas, lubrificantes e até combustíveis,também servido de coifa de exaustãoexclusiva e box cortinado de pesada lonade isolamento. E um lavatório servido deágua aquecida, vasos sanitários com descargahidráulica e armários de escaninhos paraguardar pertences pessoais dos mecânicos.

Perto dele, um enorme ventilador, preso àparede do fundo por um braço mecânicoajustável, olhava para um grande tubo oumanilha feita em latão, de diâmetro igual aoda hélice do ventilador, estruturado num

engradado de madeirafixado ao piso. Dentrodo tubo estavampendurados algunsmodelitos dem e c a n i s m o sa e r o d i n â m i c o sproduzidos em papelde seda e bambu.

À frente, por onde se entrava lateralmentepela porta secreta do corredor doapartamento, uma confortável e portentosabiblioteca, provida de armários e estantescom portas de correr envidraçadas até a alturado pé direito, dentro dos quais podia-seobservar as grossas lombadas de obrascientíficas de todo o mundo, obras dereferências indispensáveis e obras-primas daliteratura universal e contemporânea, comluxuosas encadernações e organizadamentedispostas; e, ao rés do chão, um armário deescaninhos fundos arquivava um semnúmero de rolos de desenhos, plantas eprojetos do inventor.

[Prado, esmerado bibliófilo, dirige-se à partecentral da Biblioteca, feita de madeiraespecial, forrada por dentro de veludo azulda pérsia e com uma porta de cristal bizotado

..."uma bizarra reunião de meia dúzia de bonecos"...

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com o desenho do Ex-Libris doinventor, criado por Sem(Georges), e, tendo abaixo, emplaqueta de cobre, o nome daseção: “Cimélios”. Abre a portae começa a farejar aspreciosidades ali conservadas.Logo reconhece as do falecidoHenrique, algumas das quaisadquiridas por ele mesmo, apedido do amigo, em leilõeseuropeus. Lá estavam aprinceps d”Os Lusíadas”, emprimorosa encadernação deanônimo, feita em pergaminhocom relevos secos e aplicações de cinábrioe ouro verdadeiro, um incunábulo editadopor Aldus Manutius, a “HypnerotomacchiaPoliphili”, do dominicano Francisco Colona,de 1499, com cerca de 200 gravuras atribuídasa Mantegna, a primeira edição da “DivinaComédia” ilustrada por Gustave Doré, de1868, um dos volumes da completa de Cíceroeditada por Aldus, o moço, em 1583, e opequenino volume da primeira edição de“Hamlet”, datado de 1605, com restauraçãoe encadernação posterior atribuídas a RogerPayne.

Com várias exclamações ora de espanto, orade prazer de expert, Prado constata umprodigioso crescimento do acervo queconhecia, na atual gestão de Alberto. Capturade imediato um bem encadernadomanuscrito autógrafo de Ticho Brahe, de1564, no qual o sábio relata a observação dasua “Stela Nuova”, na época doseu aparecimento, quase quecomo um novo sol, naconstelação de Cassiopéia, porocasião do nascimento deWilliam Shakespeare. Outrovolume que também oentusiasma é um exemplar daprinceps da “Sciencia Nuova”,de Giambaptista Vico, datadode 1725. Vê também umexemplar genialmenteencadernado da famosíssima“Prática da Arte de Navegar”,

de 1673, do português LuizSerrão Pimentel, comautógrafo do autor e,orgulhoso, folheiadelicadamente algumaspáginas de um raríssimoexemplar do Séc. XVI,impresso em bistre e comprimorosa encadernação feitaem marroquim carmesim, da“Historia Naturalis etExperimentalis”, na qual ovisionário Roger Bacon fazvárias e proféticas previsõescientíficas, entre elas, as

máquinas voadoras.]

Toda a Biblioteca era uma vasto painel queabrigava entre 3000 a 5000 volumes comsubdivisões assinaladas em pequenasplaquetas de bronze. Além da “Cimélios”,com plaqueta diferenciada em cobre, havia

a “Scientifica”, abrangendo obras dopensamento científico universal desde Tales,Pitágoras, Aristóteles, Arquimedes, Ptolomeue outros gregos, egípcios e romanos, passavapelos medievais Avicena, Paracelso, e outros,os modernos Da Vinci, Copérnico, Newton,Leibnitz, Cavendish, etc até aos atuais Hertz,Edson, Marconi, Langley, e muitos outros.

a “Referência” onde se viam as imponenteslombadas góticas dos “Corpus GregarumScriptorum” e “Corpus RomanumScriptorum”, a famosa “Encyclopédie” de

Diderot e D’Alembert, arecente “Britânica” de Adam eCharles Black, já com 24volumes, de 1888, e um semnúmero de dicionários deArtes, Ciências, Ofícios eLínguas;

a “Brasiliana”, carregada daspérolas da fase heróica de SãoLuiz do Maranhão, entãochamada a “Atenas Brasileira”,das obras de Pedro II,Machado de Assis, Bernardo

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Guimarães, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, RuiBarbosa, Tobias Barreto, Castro Alves einúmeros contemporâneos e algunsestrangeiros que escreveram sobre o Brasilcomo Villegagnon, Agassiz, Bates, Lund e oconde italiano Ermano Stradelli, entre outros;

a “Universal”, que chamou a atenção deGeorges onde encontrou, surpreso, umexemplar, autografado pelo autor “Au jeunegenie de Ka Ban Gu, Brésil”, da rara ediçãodo “L’Aprés- midi d’un faune”, de Mallarmé,com ilustrações de Manet e diversasmaravilhas da obra poética de Baudelaire,Hugo, Apollinaire, além de Marlowe, Voltaire,Rousseau, Goethe, Flaubert, Balzac, Dickens,Byron, Swift, Wilde e o diabo, e ediçõesrecentes e caprichadas da “Ilíada” e da“Odisséia”;

a “Periódicos”, de largas e altas prateleirasespeciais, onde se conservavam emcuidadosa encadernação e metódicaorganização, páginas e recortes de jornais erevistas sobre aeronáutica e os aeronautasde todas as épocas, inclusive o próprioSantos-Dumont, e organizavam-se, ainda nosseus começos, as coleções da “NationalGeographic Society”, desde a sua primeiraedição de 1888, a “Popular Mechanical”,também desde sua primeira edição, a “LaVie au grand Air” , a "L"Aerophile" e outrasrevistas do gênero.

No topo da estante, ocupando toda aextensão horizontal superior do enormemóvel, e com acesso somente possível pela“barquilha” do inventor, ficava a“Philosophica”, que, além dos já conhecidosfilósofos gregos e teólogos da alta idademédia, abrigava volumes consideradosperigosos de alguns filósofoscontemporâneos, entre eles os perigosíssimosHegel, Dilthey e um certo Nietzsche, aindavivo e, diziam, enlouquecido. Numa outraprateleira logo acima desta, e de igualtamanho, SD guardava os seus registros decálculos, as anotações pessoais, científicas ede projetos, arquivadas em pastas de couroetiquetadas, e dispostas na ordem

cronológica, da esquerda para a direita, asexistentes ocupando quase a metade doespaço disponível.

A Biblioteca era servida de uma confortávelmesa de leitura com quatro parrudas cadeiras,um divã e um jogo de sofá e poltronasforrados em couro fino, e dispostos em tornode uma mesa de centro sobre um vasto tapetepersa (outra raridade do Séc. XII,confeccionado por encomenda de famílianobre veneziana da época que, como eracostume, exigia dos artesãos que fosse tecido,num dos cantos do tapete, suas armas ebrasões), tudo isso compondoharmonicamente com um grande globoterrestre e uma coleção-mostruário deinstrumentos de navegação marítima eterrestre: sextantes, astrolábios, bússolas eréguas de cálculo de diversos tipos, épocase procedências.

Na parede frontal, uma estante de largasprateleiras baixas, ostentava um completo emoderno sistema de comunicações porinterfones, telefones, telégrafos e cabogramasinternacionais, equipados com todos osdispositivos, aparelhos e acessórios maisrecentes que a ciência moderna e o dinheiropodiam oferecer ao homem para que secomunicasse com o mundo naquela época.

Acima, perto da cúpula, uma grade metálicaparruda, na horizontal, com sistema deelevação por manivela, sustentava e serviade piso de um observatório astronômicoequipado com duas boas lunetas, uma maisdelgada, de Galileu, e a outra bojuda, deNewton. Para acessá-lo, o inventor subia atélá em sua “barquilha” e alçava-se por umaescadinha soldada à grade. Para a cúpula,havia dois mecanismos de acionamento: umque a abria em dois, para observação dasestrelas e da atmosfera; e o outro que fechavatotalmente a base da cúpula através de ummecanismo em forma de diafragma decâmera fotográfica, que impedia a passagemde qualquer luz, uma vez fechado.

[O inventor faz essa demonstração; fecha o

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grande diafragma e apaga todas as luzes daoficina numa chave-geral. O ambiente ficatão escuro e, de tal maneira, que se pode,sem problemas, abrir-se ali, uma caixa dechapas fotográficas virgens.]

Um grande painel de fotografias dos feitosdo inventor, com previsão de espaços parafotos futuras, feito em cortiça e preso naparede frontal, ao lado das portas de correr;e um pequeno bar com adega própria edelicada cristaleira, ao lado da Biblioteca,completavam a equipagem daquelainacreditável oficina individual.

SEQUÊNCIA 10

Os dois amigos olham tudo aquilo eentreolham-se assombrados. Prado pega umacharuteira sobre a mesa de centro, examinaos charutos, aprova-os e oferece-a a Georges(que aceita um) e a SD.

SD (com um gesto de recusa)- Eu não fumo. Aeronauta não fuma.

PRADO- Desculpe-me, Alberto, eu sei que não fuma.Mas por um momento parece que esqueci-me até de quem sou eu. (e, voltando à suaestupefação) - É inacreditável, éimpressionante! Quantos operários mantémtrabalhando aqui?

SD- Chapin, Gasteau e Dazon, meus três oficiaismecânicos de confiança. August e os criadossó vêm para o meu serviço, quando chamopor interfone, e para as tarefas de limpeza.Tudo aqui é muito simples... Podemos fazeras nossas criações com autonomia e auto-suficiência de meios. Somente a fundição dosblocos dos motores encomendamos fora; masos moldes já vão prontos e a fundição éacompanhada pessoalmente por Dazon, queé um dos melhores artífices ferreiros de Paris.

SD continua a caminhar pela oficina seguidopelos amigos.

GEORGES- Simplicidade não é exatamente a palavraque eu escolheria para definir esta oficina.Fiquei imaginando que, ao entrar aqui ànoite, Você se multiplica por vinte Santos-Dumonts e trabalha freneticamente até o raiardo dia, quando volta a transformar-se numser normal e vivente na velha Terra. Diga-me, Alberto, porque todas essas maravilhasque vejo aqui, Você não dá também aoconhecimento público?

SD- Porque a maioria ainda está em fase detestes. E depois, porque essa oficina foi criadapara projetar e construir novos tipos deaeronaves; e são elas que pretendo exibirem primeiro lugar. Porém, no futuro,pretendo transformá-la numa escola paraformar novos profissionais dedicados àaeronáutica.

GEORGES- Compreendo; e o que é aquilo naquelaespécie de túnel? Um papagaio celular?

SD- É um dos meus novos ensaiosaerodinâmicos.

PRADO (apontando para o quadrado central)- E porque estes móveis, se é que são móveis,ficam assim, pendurados do teto?

SD dirige-se até a sua “barquilha” e entradentro dela. Em seguida aciona uma caixade botões que pende de um cabo de fiaçãovindo de cima. A barquilha move-se paracima e para o lado. Enquanto fala, SD fazum passeio pelo espaço aéreo da oficina, àsvezes lá no alto, outras vezes quase no chão.Num determinado ponto, ele está bem dianteda prateleira mais alta de sua biblioteca, deonde retira um volume de papéis e retornapara o quadrado central. Ao terminar a suafala, a barquilha está pousando suavementeno lugar de onde saiu.

SD (falando bem alto para ser ouvido delonge enquanto passeia na “barquilha”)

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- Aqui, ao mesmo tempo em quedesenho, calculo e supervisiono otrabalho dos meus mecânicos,treino o meu equilíbrio. Equilíbrioé tudo em aeronáutica, é a palavra-chave; o segredo maior! Falandocientificamente, o centro degravidade, ou baricentro, doconjunto homem-máquina quevoa. (ele faz uma delicada manobrade curva em descida como seestivesse fazendo umademonstração) - O sofisma deNapoleão que afirmava não serpossível voar numa máquina maispesada do que o ar, porque no céunão há ponto de apoio; eu contestoafirmando que o ponto de apoio no céu é odomínio do equilíbrio das forças e o controleda direção de sua resultante. (faz outramanobra em curva, desta vez ascendente,chegando ao final, na prateleira mais alta daBiblioteca) - E, como, por enquanto, ohomem é o elemento mais pesado doconjunto aéreo homem-máquina, ele tem deser preciso nos seus movimentos; e saberposicionar-se emperfeito equilíbriodurante o vôo,enquanto manejacomandos emecanismos dedireção esustentação doveículo aéreo. (pegao maço de papéis noalto da biblioteca e retorna em “vôodescendente” ao ponto de partida) -Qualquer desequilíbrio do piloto, meu caroPradô, pode por abaixo todo o conjuntoaeronáutico. (pousa suavemente, a poucoscentímetros do chão) - Ah, um momentinho,amigos, veio-me uma idéia que devo anotar...

Ainda dentro da “barquilha”, e jeitosamente,deposita o maço de papéis no gaveteiroabaixo da prancheta, abre-lhe uma gavetinhade onde retira um lápis bem apontado e umarégua de cálculo, pega nas correntinhas decontrole do pesado tampo da prancheta,

coloca-o rápida e suavemente bemà sua frente, na posição desejadae, quase sem curvar-se, emmovimentos soltos do braço e damão direita, faz cuidadososcálculos e demoradas anotaçõessobre um dos quatro desenhos eplantas coladas ao tampo,movimentando com precisão o seu

azeitado tecnígrafo, sem que com isso,provocasse algo mais do que umimperceptível balanço milimétrico doconjunto “barquilha-tampo” suspensono ar, e debaixo dos olhares apatetadosdos amigos.

SD (olhando para Prado, e brincalhão)- Viu como é simples? Quer experimentar?(sai com facilidade da “barquilha”)

PRADO (sem se dar conta do logro e do quehaveria de fazer)- De fato, parece mais fácil do que eupensava. Se ficarem por perto, vou tentar.

Ato contínuo, o barrigudo Prado mete paradentro da“barquilha” uma desuas pernas e tentaapoiar-se no tampoda prancheta paracolocar a outra.Tudo balançaperigosamente e aotentar voltar atrás éo desastre. Se

Georges e SD não acodem “no susto” paraampará-lo, ele se estatelaria com os traseirosno chão, de pernas para o ar. Todos, inclusiveele, riem gostosamente e SD sai catando oslápis, papéis e o charuto de Prado querolaram ao chão no seu atabalhoamento.

PRADO (recompondo-se e pegando de voltao seu charuto)- Ufa! Definitivamente, a pilotagem aérea nãoé para a minha geração. Prefiro o velho ebom sofá. Posso? (e dirige-se ao grande sofáonde se senta aliviado e confortavelmente)

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Georges segue-o e SD, logo atrás, vemarrumando o seu maço de papéis trazidosdos píncaros da Biblioteca. Senta-se porúltimo na poltrona e depõe o maço sobre amesa de centro.

SD- São anotações para o livro que pretendoeditar, Georges. Talvez lhe sejam úteis. Podelevá-las por empréstimo, até porque desejomuito a sua opinião. Já o batizei com umaexpressão lugar - comum, mas que Mallarméusou de maneira genial, aérea mesmo, eudiria, em seu “L’Aprés Midi dun faune”: “DansL’Air”... Bem, que tal uma bebida?

GEORGES- Já desconfiava do seu cultivo pelo melhordas nossas letras, Alberto. Belo título! Quantoà bebida, prefiro distanciar-me dela enquantotrabalho; - se não os aborreço, claro.

PRADO (já diante do bar)- Claro que não nos aborrece, Georges, masnão estamos nós, Alberto e eu, a trabalho.Portanto... bem, vejamos o que temos poraqui... O que Você deseja, Alberto?

SD- À sua escolha, Pradô. Sirva-nos ao seu gosto,por favor. E, Georges, estou ao seu inteirodispor. O que manda?

GEORGES (um tanto confuso)- Estou sob impacto dessa fantástica cavernasecreta! Nem sei por onde começar...

SD (em tom de caçoada)- Meu pai dizia que devemos começar pelocomeço...

GEORGES (também caçoando)- Ah, sim, ótimo, o começo. (e, de sopetão)- Como começou?

SD (voltando à seriedade e franzindo ossobrolhos)- Eis aí a mais difícil pergunta que ouvi deum jornalista. Como comecei, Pradô? Sim,Pradô... ótima idéia! Pradô, melhor que

ninguém sabe como tudo começou. Entãoque tal não começarmos Você com o Pradô?

GEORGES- Estamos de acordo, senhor Prado?

PRADO (ainda no bar, enchendo duas taçasde vinho tinto)- Não sei o quanto poderia ajudar. Mas nãose pode falar dos começos das aventuras deAlberto, sem lembrarmos o grande e saudosoHenrique Dumont, seu pai, e que foi, paramim, também um pai. Daí porque tratoAlberto como um irmão mais novo e maisquerido...

GEORGES (já anotando e comentando)- Sim, muitos homens importantescomeçaram pelos seus pais.

(A partir de agora, o filme passa a usarlargamente a linguagem de flash-backs; comnarrações em off, ou com seus própriosdiálogos)

SEQUÊNCIA 11

PRADO (narrando em off sobre as cenas deflash-back)...Conheci Henrique numa atribuladanegociação de café na City londrina, com apresença de uns trinta fazendeiros brasileiros.O governo inglês pediu ajuda à Embaixadaporque a maioria dos brasileiros não falavainglês e por isso criava um grande tumulto.Na época eu era jovem funcionário graduadoda Embaixada em Londres e fui escalado parair até a City ver o que se passava. De fato,havia um princípio de caos; ninguém seentendia ali. Henrique estava entre os poucosque sabia bem o inglês e o francês, e logo otive ao meu lado ajudando-me a desfazer osimbroglios que se formavam. Felizmentetudo acabou bem e, por sorte, as cotaçõesde café subiram muito em poucos dias, e osfazendeiros ganharam fortunas em librasesterlinas. Terminado tudo, todosdebandaram a gastar suas libras à tripa forra

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pela Europa e só Henrique permaneceu emLondres, usando a sua disponibilidadefinanceira, para construir a estrada do seufuturo. Foi à Embaixada pedir auxílio paraconhecer e se colocar em contato com asinovações da mecânica e da ciência e comoaplicá-las ao bem de sua propriedade emRibeirão Preto. Queria saber dos usos damáquina a vapor, queria comprar umaferrovia inteira, queria isso, queria aquilo...E nós tínhamos muito a informá-lo pois oGoverno Pedro IIexigia-nos atualizaçãopermanente de tudoque se inventava e sefazia nos campos daciência e da indústrianos países em que tinharepresentação. Pararesumir, Henriqueembarcou para o Brasil,alguns meses depois,levando quase umnavio inteiro lotado demotores, máquinas ee q u i p a m e n t o sagrícolas; e um batalhãode cientistas, doutores etécnicos ingleses detodas as especialidades que precisava paramelhor preparar e adubar a sua terra, semearo café, colhê-lo, limpá-lo, separá-lo, refiná-lo, conservá-lo, armazená-lo, transportá-lo evendê-lo. Começou aí a grande amizade eadmiração que, durante toda a minha vida,dediquei a esse grande homem. E, de fato,duas ou três safras depois, Henrique já estavaentre os maiores produtores de café do Brasile era um homem rico e realizado.

(Sob a narrativa de Prado sucedem-se asimagens correspondentes: a confusão debrasileiros na City; o encontro do ainda jovemPrado com Henrique; os dois atuando juntospara acalmar os ânimos; Henrique visitandoa Embaixada e sendo recebido por Prado;funcionários da Embaixada orientandoHenrique; Henrique visitando fábricas,oficinas e universidades; em conversa com

técnicos e doutores; embarque de carga numnavio com várias caixas enormes carimbadas"Ribeirao Preto - Brazil"; Henriquecumprimentando os homens que contratouao subirem a escada do navio; a fazenda deHenrique sendo arada, cultivada e operadapor máquinas agrícolas e ferrovias, etc; oscafezais de Henrique; ele em seu gabinetediante de estatísticas de crescimento deprodução; e exibindo-as a Prado)

SEQUÊNCIA 12

PRADO (continuando anarração em off)- Alberto, porém, só vima conhecê-lo quando jáera moço de dezoitoanos. Foi numa viagempara cá, já no governoFloriano, quando fuinomeado Secretário daEmbaixada em Paris.

O flash-back mostra umembarque festivo noporto do Rio de Janeiro.(Legenda: Rio de

Janeiro, março de 1891). O “Elbe” já soltaraas amarras e separava-se do cais em lentomovimento, e sonoros apitos. No convés daprimeira classe estão o jovem SD, Henrique,muito envelhecido, numa cadeira de rodas,e Prado, despedindo-se em meio à festa deserpentinas e confetes. Muita banda demúsica em terra. A câmera acompanha o triocaminhando pelo convés, SD empurrando acadeira de rodas do pai com Prado ao seulado, em direção ao salão de fumar.

HENRIQUE (para Prado)- Pensamos que perderia o navio, Pradô.Chegou um minuto antes de soltar as amarras.Arre, foi a conta!

PRADO (ainda suando e passando o lençoem volta do rosto)- Contratempos burocráticos, Henrique. É ovelho ditado: santo de casa não faz milagres.

Henrique Dumont

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A embaixada esqueceu-se de renovar meupassaporte, Você acredita? Coisas do Brasil...Mas, enfim, tudo resolvido; cá estou.

HENRIQUE- Quero apresentar-lhe o meu filho Alberto,de quem tanto falo...

Prado e Alberto cumprimentam-se.

PRADO- Alberto, saiba que me sinto tão próximode Você, como se fosse um irmão. Henriquenão esconde a predileção pelo seu caçula, esempre se gaba da sua inteligência, do seutalento e sua aplicação nos estudos.

SD- Vai muito de exagero e bondade de painisso, Sr Prado. Papai crê que o futuro domundo está na mecânica e prefere que a elaeu me dedique, ao invés de tornar-me doutor.Não terei dificuldades em atendê-lo; tambémpenso assim.

PRADO (em off, na oficina, narrando aGeorges)- Na viagem percebi que Alberto era muitomais do que um caçula mimado. Maduro,responsável, era sério até demais para a suaidade. Também já era disciplinado, fino eeducado. Seu desvelo para com o paiadoentado sensibilizava todo o navio,passageiros e tripulação...

A imagem mostra Henrique todo agasalhadona sua cadeira de rodas com SD e um garçoma preparar-lhe a mesa de desjejum no convés.Finda sua tarefa SD despede-se do pai comuma série de recomendações e sai. Atocontínuo, aparece Prado por uma dasportinholas do convés.

PRADO- Bom dia, Henrique,belo dia, não?HENRIQUE- Sim, Pradô, um belodia. Pena que minha

saúde não me permita desfrutá-lo comogostaria.

PRADO- Não fale assim, Henrique. Vai melhorar logo,é forte e duro na queda. E a medicina naEuropa está muito avançada. Em Paris, logoficará bom. Onde está o nosso Alberto?

HENRIQUE- Foi à cabine de comando. Passa as manhãslá. Ele e o comandante tornaram-se amigose Alberto está tomando lições práticas denavegação, cálculos de distâncias e rotas,análise de cartas e mapas, essas coisas... Jáconhece o navio nos detalhes, sabe comotudo funciona, cada mecanismo, em teoria eprática. É um fenômeno esse meu rapaz...

PRADO- Sim, Henrique, e sem favores. Estoutornando-me seu amigo e admirador. Ontemà noite fomos até altas horas numa boa prosasobre a Europa e Paris. Fiquei surpreso: nãoquis saber de mulheres, cabarets, QuartierLatin, ou farras de rapaziada. Argüiu-me dosprogressos e inovações da ciência; queriasaber de eletrificação urbana, redes detelefonia e telégrafo, teatrofones, indústriade máquinas, aerostática... Esse últimoassunto parece interessar-lhe amiúde... Fiqueiapertado; como sabe não sou chegado aosriscos e às aventuras. Falou-me que deveráficar morando em Paris...

HENRIQUE- É sobre isso que desejo falar-lhe, Pradô,por isso mandei chamá-lo. Perdoe-me se oincomodei, sei que acorda tarde. Masprecisava falar-lhe sem a presença deAlberto...

PRADO- Ora, por favor, Henrique. Saiba que

um chamado seu, faz-me sentirhonrado por ter um homemcomo Você precisando demim. Poucas vezes, naminha vida fútil, tenho asensação de ser útil. Diga-

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dele. Inclusive Você, Henrique, abandoneesse pessimismo. Nós três seremosinseparáveis na velha Paris.

SEQUÊNCIA 14

PRADO (narrando em off para Georges)... Mas em Paris chegamos apenas Alberto eeu. Henrique desembarcou em Portugal pararetornar ao Brasil. Estava, de fato, muito mal;e queria morrer em sua pátria. (cena de Pradoe SD desembarcando no Havre.) - E, poucomeses depois, recebemos a notícia de suamorte... (SD mostrando a Prado o telegramae abraçando-se a ele em prantos) ...Durantecinco anos em Paris, Alberto alternava osestudos de mecânica com a observação doprogresso das máquinas. Conseguimos queo famoso Prof. Garcia lhe desse aulasparticulares de física, química, matemática emecânica. Cedo, Alberto descobriu oautomóvel e revelou seu espírito inventivo,modificando motores e mecanismos.Participou, e foi organizador, das primeirascorridas de automóveis deste planeta, masnão ganhou nenhuma; o que o deixava demuito mal humor. (cenas de Alberto tendoaulas com o Prof. Garcia e disputandocorridas de automóveis nas estradasfrancesas) - Conseguimos-lhe, graças aGarcia, o ingresso como aluno assistente naUniversidade de Bristol (SD chegando aBristol e assistindo aulas acadêmicas) -Depois de uma breve viagem ao Brasil, para

Paris 1897

me, em que posso servi-lo?

HENRIQUE- Pradô, depois de meus filhos e esposa, Vocêé a pessoa em quem eu mais confio nestemundo. O fato é que pressinto o meu fim.Não, não me interrompa. Não se trata deachaques de velho amargurado. Considero-me um homem feliz. Mas minhas forças estãono fim e sei que não haverá ciência que possaimpedir a morte dos homens. Ela é a únicacerteza da vida! (faz uma pausa) - Antes departir, levei Alberto ao cartório e emancipei-o. Escrevi-lhe também uma carta para queguarde como lembrança minha. Hoje, ele ésenhor de si mesmo e vai a Paris tornar-seum homem. Não lhe faltará dinheiro, graçasa Deus, e essa providência deixo bemassegurada. Mas, por mais que confie emAlberto, um pai não pode deixar de temeras armadilhas da vida. Você, meu bom Pradô,estará também em Paris. Conhece do mundoe da vida, bem mais que o meu Alberto. Peço-lhe, não o deixe em abandono. Temosparentes lá, mas prefiro confiá-lo a Você. Edirei isso a ele.

PRADO (dando uma boa risada)- É apenas isso que me pede, Henrique? Velarpor Alberto em Paris? Mas que missão maisfácil e deliciosa! Recebo-a como prêmio dereconhecimento, não como tarefa deresponsabilidade. Pelo que conheço deAlberto, sei que não dará trabalho em Paris.Desconfio até que teremos grande orgulho

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visitar o túmulo do pai, na qual levou oprimeiro automóvel que toda a América doSul viu rodar por suas ruas e estradas, (SDchegando de automóvel ao túmulo do paino Brasil) - Alberto então, começou...

SEQUÊNCIA 15(Primeira ascensão)

Uma estranha charrete, puxada por um únicoe enorme avestruz (foto), dispara por umaestradinha arborizada na linda paisagem doBois de Boulogne. (Legenda: Paris, 1887) Aochegar ao destino, um edifício-garagemconstruido em madeira, SD, o cocheiro dasurrealista charretinha, estaciona-a, salta dedentro dela e amarra o cabresto do seuavestruz num gancho. Entra na oficina deLachambre e Alexis Machuron, que acabavamde abri-la com os seus dois auxiliares.

LACHAMBRE- O senhor chegou cedo, Sr Santos. Aascensão está prevista para as 8 horas e sãoapenas 6. Temos preparativos a fazer antesde subir...

SD- São esses preparativos que não queroperder, Sr. Lachambre. Se não incomodo,gostaria de acompanhá-los desde o início. Etenha-me à disposição para ajudar no quepuder.

MACHURON- Não há nada de especial a ser feito, SrSantos, seja bem-vindo. Espero que não seaborreça com as tarefas de preparação.

Sequência rápida de cenas de preparação dobalão. SD acompanha tudo nos mínimosdetalhes. Aponta aqui e ali, fazendoperguntas e anotações numa cadernetinhade mão. Finalmente o balão está cheio epronto para a ascensão. Machuron e SDentram na barquilha.

MACHURON- Lachez tout!

O balão começa a subir, na bela manhã. Ochão vai se afastando aos pés de seuspassageiros, os detalhes se diluem, apaisagem se transforma. A subida é rápida eas casas diminuem de tamanho, como sefossem de brinquedo.

MACHURON (para SD)- O equilíbrio do aparelho é sensível àsmínimas variações. O hidrogênio dentro doinvólucro de tecido escapa aos poucosdevido à porosidade do material; e o sol,aquecendo todo o conjunto, expande o gás.A pressão dentro do balão aumenta fazendocom que o conjunto se torne cada vez maisleve.

O balão pára de subir, estabilizando-se numadeterminada altura muito elevada.

MACHURON- A umidade do ar é condensada na superfícieenvernizada e isso torna o conjunto maispesado. Há um compromisso que tem deser perfeito: a saída de gás pelo tecido e oacréscimo de peso devido à umidade sãocompensados pela dilatação do hidrogênioaquecido. O balão fica sujeito às pequenasalterações atmosféricas e se move emcompleta integração com o ar.

Uma nuvem passa por cima do balão e esteparece despencar vertiginosamente.Machuron pega um saco de areia e despeja-o no ar.

"Uma estranha charrete..."

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

MACHURON- Para compensar a perda de altura, causadapela nuvem, que esfriou o balão, só há umjeito: largar lastro. Quando, ao contrário, obalão estiver subindo mais que o desejadopor causa do calor, é preciso soltar o gássob pressão. Nosso vôo terá de terminarquando acabar o gás ou o lastro que somosobrigados a perder ao longo do tempo.

O balão penetra no interior de uma espessanuvem branca, no topo de um belo cumulusalgodoado que se projetava numaquilométrica vertical a partir de sua base. Avisibilidade torna-se nula. Machuron começaa despejar muito lastro.

MACHURON- Dentro de uma nuvem, não podemosperceber a velocidade de descida. Mas é certoque estamos descendo muito rapidamente,porque o resfriamento do conjunto é tal quepode levá-lo ao chão, se não nosanteciparmos no despejo de lastro.

Ao sair da nuvem pela sua base, o até entãoimpassível SD chega a se assustar com arepentina proximidade do solo aos seus pés.Nesse momento, ouve-se o som distante deum alegre carrilhão. Logo o sol volta aesquentar o balão e voltam a subir para umaaltura mais reconfortante. Ouvem-se oslatidos de cachorros, marteladas e apitosdistantes de locomotivas. Enfim o vôoencerra-se num belo descampadoadredemente escolhido por Machuron, aolado de uma ferrovia. A descida foi tranquila,e, durante ela, o competente piloto Machuronexplicava ao embevecido SD as funções dacorda-guia.

MACHURON- A corda guia, ou o “cabo pendente”,funciona como lastro de equilíbrio para aaterrissagem. Ao jogá-la, a parte que toca osolo deixa de ser peso e faz com que sediminua a velocidade de descida. Entãovamos liberando o pouco gás que nos restapara que o balão não volte a subir, e desçaainda mais. Ao fazê-lo aumentamos o

comprimento da corda-guia no solo, e aconseqüente diminuição de peso faz comque a descida não seja brusca. Nesseequilíbrio contínuo chegamos ao solosuavemente.

O balão pousa com suavidade, Machuronlibera todo o resto de gás, e eles saltamimediatamente da barquilha, segurando-apara que a brisa não levasse o balão. Algunslavradores das imediações acorrem curiosose Machuron logo os arregimenta para ajudarnas tarefas de dobrar o invólucro e guardaro conjunto para transporte até a estaçãoferroviária mais próxima.

SD (para um dos lavradores)- Onde estamos?

O LAVRADOR- Nas terras do Castelo La Ferriére,propriedade do Senhor Alphonse deRothschild.

SD arma a sua câmera fotográfica e explicaao lavrador como deve proceder para bateruma chapa dele ao lado de Machuron e obalão sendo guardado. O improvisadofotógrafo não teve dificuldades em batê-la.

SEQUÊNCIA 16

SD (agora com a palavra, em lugar de Prado,e narrando em off para Georges)- Nessa primeira ascensão percebi que teriade me conhecer melhor em altitudeselevadas. Fiz uma viagem aos alpes suíços,em seus pontos mais altos. Lá aprendi aesquiar (cena de SD chegando a Lucerna,numa pousada para esquiadores nasmontanhas geladas dos Alpes) - para testarmeus reflexos naquelas condições, e atémesmo em situações de queda. Numaaterrissagem forçada, o aeronauta não podeperder o controle absoluto das suas ações,pois somente elas podem salvá-lo de umaprecipitação fatal. (cenas de SD esquiando edespencando pelas descidas nevadas dosAlpes)

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SEQUÊNCIA 17 (O “Le Brésil”)

SD chega pela mesma estradinha arborizadana oficina de Lachambre e Machuron, só queagora a bordo do seu triciclo motorizado,que rebocava um pequeno vagonete decarga. Pára em frente à porta da oficina etodos saem para ver o seu veículo

UM AUXILIAR (para o outro)- Ele chega a fazer 35 quilômetros por hora!

O OUTRO (mais velho)- Mas isso é loucura! Não tenho mais idadepara isso.

SD retira seus óculos de piloto e o capacetede couro, desce do triciclo e vai até aovagonete, do qual abre o tampo. Retira dedentro dele alguns rolos de papel, umapequena maleta de viagem e o seu chapéu.Em seguida guarda os óculos e coloca ochapéu na cabeça. Pega os rolos e a maletae entra na oficina cumprimentando a todos.Lachambre e Machuron recebem-no em voltade uma mesa. SD abre sobre ela os rolos depapel que se revelam plantas e desenhos doseu futuro balão, o “Le Brésil”,completamente detalhado em projeto. Os trêsmergulham nos desenhos.

LACHAMBRE- Hum... mas, apenas cem metros deencubagem?!

SD- Eu peso cinquentaquilos, de sapatos.Quero um balão de cemmetros...

LACHAMBRE- Por favor, Sr Santos, avida é a sua e o senhorpode fazer dela o quebem quiser. Mas não nosobrigue a colaborar paraum suicídio.

SD faz uma cara de

desaprovação.

MACHURON- Aqui está escrito seda japonesa?

SD (já impaciente, pegando a maleta eabrindo-a)- Sim, já a trouxe. (retira um volumeembrulhado em papel) - Ei-la.

MACHURON (abre o embrulho e pega a sedacom as duas mãos, avaliando o seu peso)- Mas, é muito leve! E muito fina!? Comoresistirá à pressão? Onde já se viu um balãocom um invólucro tão leve assim?

SD perde a paciência. Toma-lhe a seda,embrulha-a e recolhe-a de volta à maleta.Reenrola os seus desenhos, coloca o chapéue começa a calçar as luvas para sair, enfezado.

SD- Se os senhores permitem, devo retirar-me.

LACHAMBRE- Acalme-se, Sr Santos. Não temos porquenos desentender. Todos aqui aprendemos agostar do senhor. Não nos condene sóporque fazemos perguntas e damossugestões. Faremos tudo o que o senhorpretender, e como o desejar.

SD (relaxando e voltando a descalçar asluvas)- Certo, Sr Lachambre, desculpe-me o mau

gênio. Trabalhei nesteprojeto os últimos dezdias, quase sem dormir.Está todo calculado edesenhado. Gostariaque começassem ac o n s t r u i - l oimediatamente, sepossível.

MACHURON (pegandonovamente a sedadentro da maleta)- Quanto ela pesa?

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- 3,5 quilos. Envernizada pesará 14 quilos eduzentos gramas. Bem senhores, devo ir-me.Um bom trabalho para todos.

Lachambre e Machuron observam SDafastando-se em “alta” velocidade com o seubarulhento triciclo.

MACHURON- Nós vamos mesmo construir essamaluquice?

LACHAMBRE- Sim, e porque não? Está nos pagando beme, além do mais, esse balãozinho de cemmetros nunca há de voar em dias da minhavida.

SEQUÊNCIA 18

Porta do Maxim’s agitada. Pessoas aguardammesas. SD e Prado descem duma cupê. Semnada perguntar, SD vai passando por todosos que aguardam, acompanhado doespantado Prado, até chegar à presença domaitre. Este, solícito, recebe SD com alegria.

O MAITRE- Boa noite, Sr Santos. Sua mesa estáreservada, como combinado. Alguém maiso acompanha, além do cavalheiro?

SD- Não, Charles, apenas o Embaixador Pradoe eu jantaremos hoje. Obrigado.

Deixam casacos e chapéus com a chapeleirae seguem-no pelo interior do restauranterepleto até a mesa por ele indicada. O maitreretira o cartão de reserva e faz um sinal paraum dos garçons.

O MAITRE- Estejam à vontade, senhores. Gerard osatenderá no que desejarem. Bom apetite.(retira-se)

PRADO

- Como conseguiu essa façanha? Decidimosagora há pouco vir aqui! Não foi planejado?!Como então a reserva?

SD- Pago mensalidade à casa para ter sempreuma mesa à disposição nesse horário.Aborrece - me ter de aguardar, e acaboperdendo o apetite...Olhe, aquele senhoracena para Você...

Prado volta-se e vê uma mesa de cincoconvivas, dois casais e um solteiro. O solteiroera Georges, que fazia os sinais paracumprimentar Prado a distância. Pradoretribuiu os cumprimentos e acenou para queGeorges chegasse até ele. Georges aceitou oconvite.

GEORGES (aproximando-se com alegria ecordialidade)- Embaixador, como vai passando? Há temposnão o vejo no jornal. Anda emburrado comalguns de nós?

PRADO- Não é isso, meu caro Georges! Os últimosdois meses passei-os a ciceronear senhorasdistintas de políticos brasileiros nas suascompras em Paris. (e, falando baixinho,quase ao ouvido de Georges) - Vou lheconfiar um segredo: a primeira dama, empessoa, chefiava o grupo! Veio incógnita,identificada com nome falso e com ordenspara que o assunto fosse tratado comosegredo de estado! Vê porque desapareci daroda do "Le Temps".

GEORGES- Não se preocupe, Embaixador. Como vê,não estou a trabalho, mas festejando comalguns amigos. Mas que seria uma bela notasocial, lá isso seria...

PRADO (pondo o indicador sobre os lábios)- Shhhh! Nunca existiu nota alguma, meuamigo! Nunca! (e, fazendo uma pausa) - Bem,Georges, chamei-o para apresentá-lo ao meumelhor amigo e patrício, o Sr Alberto Santos-Dumont. (apresenta-os e ambos

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

cumprimentam-se)

GEORGES- Eu o conheço de vista, Sr Santos-Dumont,e tenho imenso prazer em apertar-lhe a mão.Cobri uma reunião no Automóvel Clube, naqual o senhor propôs a fundação de um AeroClube em Paris, lembra-se? Nosso fotógraforegistrou, a meu pedido, um bom instantâneodo senhor ao lado dos senhores ErnstArchdeacon e o Marquês de Dion.

SD- O prazer é o mesmo, Sr Goursat. Lembro-me do senhor. Não sabia é que tratava-se damesma pessoa que acompanho pelos jornaisem excelentes reportagens e caricaturas. Seusamigos consentiriam em que nos desse oprazer de sua companhia, por algunsmomentos?

GEORGES (olhando para o seu grupo deamigos)- Meus amigos já divertem-se bastante semminha presença, senhores. Vou aceitar esseamável convite; me sentindo honrado porcompartilhar a companhia de dois ilustresbrasileiros. (senta-se na cadeira que SD lheoferece)

O garçom chega com champagne e duastaças. SD pede-lhe que traga mais uma antesde servir. Servidas as taças os três brindam ebebem.

PRADO- Recomendo esse brinde ao primeiro vôo-solo de Alberto. (e, falando para Georges) -Amanhã Alberto vai fazer sua primeiraascensão-solo em balão. Um balão que elemesmo projetou e desenhou. Quandocheguei a Paris com Alberto, achava que nãoia ter dores de cabeça por sua causa. Estavacerto até hoje. Com essa loucura aérea elascomeçam a atormentar-me. As últimas noitespassei-as rezando, pedindo a proteção domeu bom amigo Henrique, pai de Alberto(e, como se falasse para os céus) - Henrique,não há o que eu possa fazer por Alberto aínas alturas! Espero que Você possa... (e, para

Georges) - Você não acha uma loucura essaidéia de voar? Se Deus não deu asas aohomem é porque o queria quieto aqui naterra...

GEORGES- No jornal sou da opinião de que devíamosdar mais atenção aos avanços e experiênciasno campo da aeronáutica. E não acho queseja loucura. Deus não deu asas aos homensmas deu-lhes um cérebro privilegiado. Agora,que os ature! Queremos voar, ora essa!... (e,para SD) - Por ventura esse balão é o queLachambre e Machuron estão a construir?

SD- Já o construíram. Está perfeitamente pronto.Hoje fizemos os últimos testes em terra.Amanhã, se tudo correr bem, vou voá-lo.

GEORGES (irônico, para Prado)- Espero que não seja outro segredo de estadobrasileiro, Embaixador. (e, para SD) - O Srse importa que a imprensa cubra esseacontecimento memorável? Estouduplamente interessado; como jornalista ecaricaturista. Quando Lachambre falou-me doseu balão, ressaltou o fato de o senhor terlevado os materiais para construi-lo numapequena valise de mão! Achei o mote perfeitopara uma charge. Espero que não se ofendacom charges e caricaturas, Sr Santos...

SD- De modo algum me ofenderia com as suas,senhor Goursat. Não as perco nunca quandoestampam-nas nos jornais de Paris. Acho-asde excelente espírito e elevado humor.Devem contribuir bastante para despertar ointeresse dos leitores. Seria uma honra tersua presença no meu vôo de estréia.Considere-se meu convidado. A ascensãoestá prevista para as oito horas.

GEORGES- Eu agradeço-lhe, Sr Santos. Gostaria dereprisar o brinde do Embaixador Prado. Umbrinde, senhores (brindam e bebem, Georgeslevanta-se despedindo-se)

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- Por favor, Sr Gousart, trate-meAlberto.

GEORGES- Desde que o senhor aceitetratar-me Georges...

SD- Então, até amanhã, Georges.

GEORGES- Estarei lá às oito em ponto, Alberto.E levo comigo um fotógrafo. Até lá.

SEQUÊNCIA 19 (Primeira ascensão-solo)

Oficina de Lachambre e Machuron. (Legenda:Paris, 4 de julho de 1898) Algumas cupês,landaus e primitivos automóveisestacionados. Uma pequena multidãorodeava a barquilha do “Le Brésil”completamente cheio de gás e pronto paralargar. (foto) O tempo, porém, não estavanada bom. Não havia vento ou chuva, masnuvens ameaçadoras e negras cobriam partedo céu com relâmpagos insistentes ora aqui,ora ali. No centro da pequena multidão,travava-se uma discussão.

SD (já dentro da barquilha e pronto paralargar)- Preciso largar.

LACHAMBRE- Vamos adiar aascensão, Sr Santos. Éimperativo. São dezhoras e o tempo estápiorando...

SD- Se tivesse largado àsoito estaria aterrissandoa essa hora, semproblemas, Lachambre.Se não o fiz, foi porouvir suas ponderaçõessobre o tempo. No

entanto, nada mudou. Não vejoporque vá mudar...

LACHAMBRE- Todos estão de acordo em adiara ascensão, Sr Santos. Tem dereconhecer que não é umaeronauta de ofício; está apenascomeçando. É preciso aguardartempo mais seguro...

SD (já impaciente)- O que o senhor está a temer, Sr

Lachambre? Afinal, não é essebalãozinho que nunca haveria de subir

em dias da sua vida? Então por quê essadiscussão? (e, para os auxiliares)

- Lachez tout!

Os dois entreolharam-se e olharam paraLachambre

SD (irado)- Não é para ele que Vocês têm de olhar,imbecis! É para mim! Eu é que comando essebalão e dou as ordens! (e, repetindo) - Lacheztout!

Um silêncio absoluto tomou conta de todos.Os auxiliares olharam mais uma vezconstrangidos para Lachambre e depois parao furioso comandante que ameaçou repetira ordem. Soltaram.

No silêncio e no pasmo geral, o “Le Brésil”alçou-se com leveza egraça, em ascensãocontínua, quase numaperfeita linha vertical,com um ligeirodeslocamento à leste.Todos, sem sair de suasp o s i ç õ e s ,acompanharam o balãoa subir e a diminuir, atéque um vento oapanhou, levando-ocom rapidez na direçãoleste, a perigosa direçãodas nuvens, dos pesados..."travava-se uma discussão"...

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cumulus nimbus que lá se formavam, nummedonho cinza-chumbo, a relampejar ereboar ao longe. E lá, o pequeno pontinhonegro no céu, em que havia se transformadoo “Le Brésil”, desapareceu.

SEQUÊNCIA 20 (P.M.N.D.N.)

SD na barquilha do “Le Brésil”, dentro danuvem, enfrenta uma terrível tempestade.Chove grosso, venta muito, relampeja portodos os lados violentamente. A barquilhasacode muito, mas o conjunto é resistente enão afronta as forças que o assediam; aocontrário, submete-se a elas. SD segura-se etenta cobrir-se com o seu impermeável. Seurosto é impassível.

Corte para Prado e Georges andando de umlado para o outro no escritório de Prado, naEmbaixada Brasileira em Paris. Roem asunhas e esfregam as mãos de aflição eansiedade. Na parede, o relógio, numimpiedoso tic-tac, mostra dezoito horas emParis. De repente toca o telefone. Pradoatende imediatamente.

PRADO (com voz de decepção)- Sim, sim, está. É Adrien, Georges.

GEORGES (atendendo)- Não, não; nada até agora. O que? 20 horas?Não pode ser um pouco mais tarde? Certo,certo. Ainda não sei o que escrever, vouaguardar até às 19 e em seguida sigo para ojornal. Sim, até já. (desliga e, para Prado) -Adrien vai fechar a edição às 20 horas; nãopode esperar mais. Conseguiu que o Figaronada publicasse, mas não há qualquer notíciaaté o momento.

PRADO (enxugando, sem parar, o seu rostosuado, com um enorme lenço)- Checamos todas as províncias de França,as cidades e vilas que possuem telégrafo etelefone, e nada. E essa tempestade quedesabou em Paris o dia todo, meu Deus!...

Batem à porta. O mordomo de Prado entra

no escritório.

O MORDOMO- Uma ligação interurbana da Bélgica, senhor.No aparelho do salão.

PRADO (saindo para atender, comimpaciência)- Da Bélgica? Quem será que, diabos, querfalar-me da Bélgica nessa hora?...

Georges permanece apreensivo no escritório.De repente ouve a voz de Prado aos berros,do salão.

PRADO (falando em português)- Alberto! Alberto! Onde Você está, meu filho?Oh, bom Deus (e voltando a falar em francêsao ver Georges que se aproximava correndo)- Você está bem? Precisa socorro? Machucou-se? (de novo, em português) - Fale, homemde Deus!

Corte para SD falando ao telefone do interiorda Bélgica, na casa do chefe do trem. A casaestá repleta de camponeses, e SD está diantede uma mesa servida com fartura de iguariasrústicas. Ao seu lado, um grande caixoteguardava o “Le Brésil” bem acondicionado.

SD (aos berros pelo telefone)- Estou ótimo, Pradô! Foi uma viagem e tanto.Você não vai acreditar. E deixou-me com umapetite de glutão. Estou falando da casa dochefe de trem em Virton, na Bélgica. Estãosendo muito amáveis comigo. Devo pegar ocomboio que passa aqui às 22 horas paraLuxemburgo. De lá volto a ligar para darprevisão da minha chegada a Paris.

PRADO (com Georges ao seu lado fazendosinal de que também desejava falar)- Só acredito quando apertar seus ossospessoalmente, Alberto. Venha logo para cá!E cuide-se, hein? O nosso Georges desejafalar com Você. Vou passar a ele.

Prado estava radiante. Enquanto Georges falacom SD, ele chama o mordomo.

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

PRADO (em português, esfregando as mãosde alegria e contentamento)- Albério, traga o champagne. Vamos precisar.

GEORGES (ainda no telefone)... sim, sim, estávamos todos ansiosos e semnotícias. Tudo está bem? Precisa de algumacoisa? Temos amigos aí...

SD (sempre em in)- Estou com um monumental apetite,Georges; e muito bem servido de amigos,esses bondosos camponeses daqui. Acabamde por à mesa um javali assado ao ponto!Estou disposto a devorá-lo inteiro, comoVocês faziam na velha gália quando erambárbaros.

GEORGES- Amanhã, quando chegar a Paris estaránas primeiras páginas, meucaro. Boa viagem. Grandesabraços à Você e à Bélgicainteira!

SEQUÊNCIA 21

Na estação de Paris, Pradoaguarda a composição queestaciona lentamente ao seulado, olhando por todas asjanelas. Caminha até a saída dovagão de primeira classe do qual jácomeçam a descer passageiros. SD está entreos primeiros que saltam do trem. Abraçam-se. Prado tem nas mãos o "Le Temps".

PRADO (mostrando-lhe o jornal)- Aí está Você, Alberto. Em todas as primeiraspáginas de hoje. Ufa! Que aventura!

SD- Boa a blague do Georges! Ele de fato émuito bom!

Entram na landau de Prado que sai a troteem direção ao 15eme.

PRADO

- Bem, Alberto, felizmente tudo correu bemdessa vez, ufa! Agora, de volta à velha vidacivilizada, querido amigo. Passamos um maupedaço, acredite! Parecia que o céu ia cairnas nossas cabeças ontem à tarde, precisavaver. Fiquei em pânico com Você lá em cima.Espero que tenha ficado satisfeito,aeronáutica é assunto para muito estudo, natranqüilidade das sólidas bibliotecas. Praticá-la ainda não é o momento. É precisoesperar...

SD não emite um só comentário.

PRADO (continuando)- Andei conversando com o Doutor GenésioLisboa, que veio para planejar a nossaparticipação na Grande Exposição de 1900.

Ele é da opinião que, sendo Paris acapital do mundo, é justo quea embaixada mantenha umquadro técnico-consultor paraas ciências e a mecânica.

Pensamos que Você seria apessoa certa para esse cargo,

Alberto. O que acha? Não oobrigaria com tarefas enfadonhas e

burocráticas; e Você trabalharia àvontade num metier que nenhumbrasileiro conhece tão bem...Alberto! Alberto! Está me ouvindo,

homem?...

SD (como se estivesse despertando de umsono profundo)- Ah, sim?! Bem, Pradô, preciso de umapropriedade exclusiva para mim em Paris.Nessa viagem, o que mais preocupou-meforam os meus parentes, que hospedam-metão generosamente. Ontem, prometi-lhesretornar para o jantar e fiquei sem meios deavisá-los. São pessoas conservadoras, e nempossuem telefone. Você teria alguém naEmbaixada que pudesse ajudar?

PRADO (um pouco desanimado com adesatenção do amigo em relação à suaproposta)- Quem cuida disso na Embaixada é o Flores.Vou falar com ele. Foi-nos muito útil na vinda

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das senhoras a Paris...Ah, chegamos, seusparentes já o aguardam... (os parentes de SDesperavam-no na calçada, ansiosos) - E,quanto à minha proposta, que tal pensar...

SD- Proposta? Que proposta? (desce da landaue começa a abraçar os parentes)

A cena retorna à oficina de SD onde os trêsamigos conversam. SD renova o vinho dePrado, e continua a sua narração.

SD- Aquela ascensão levou-me onde homemalgum jamais esteve antes: ao centro de umafuriosa tempestade, em pleno céu. Fuitotalmente subjugado àquelas poderosasforças com as quais a Natureza podia ter-mefeito em picadinhos. Conheci in loco osignificado do verso de Camões, o poetaépico da minha raça (e diz em português):“Por Mares Nunca Dantes Navegados”. Algoque só se compara ao relato dos grandesodisseus das lendas e narrativas trágicas.Senti o que provavelmente sentiram osUlisses, os Dantes, os Vascos-da-Gama, osCristóvãos Colombos, homens que seatreveram a penetrar regiões somentepermitidas aos deuses e às fantasias doimaginário. (e, em off, sobre as imagens daviagem) - Eu ia, ia, nas trevas. Sabia queavançava a grande velocidade, mas nãosentia nenhum movimento. Ouvia e recebiaa procela; e era só. Tinha consciência de umgrande perigo, mas este não era tangível.Uma espécie de alegria selvagem dominavameus nervos. Como explicar isso? Lá no alto,na solidão negra, entre o fulgor dosrelâmpagos que a rasgavam e o faiscar dosraios, eu me sentia como parte integrante daprópria tempestade! (e, em in) - Foi lá, empleno cataclisma, de tal ordem que nem omedo consegue manifestar-se, que percebia urgente necessidade de acoplar um motorao balão, de modo que eu pudesse conduzi-lo para longe dali. Posso jurar, que nãopensei, uma única vez, na possibilidade demorrer. Cheguei até a pensar que haviamorrido; mas não que iria morrer.

GEORGES- E então foi lá, intrometendo-se na fúria doselementos e numa conversa com deusesdesatinados, que Você recebeu a chave dadirigibilidade dos balões? Bem mais difícildo que Arquimedes, que teve o seu “Eureca!”numa sólida e confortável banheira.

SD- Bem, se aquilo foi mesmo uma conversa,não posso afirmá-lo. O que sei, com certeza,é que seria um tipo de conversa que umhomem só pode ter uma vez em cada vida;e olhe lá!

O filme retorna ao flash back.

SEQUÊNCIA 22

Uma grande mesa no Maxim’s, tendo SD àcabeceira, comemora o retorno do herói e asua aventura. Deutsch de la Meurthe e oPríncipe Bonaparte conversam entre si.

DEUTSCH- Ele falou em colocar um motor para guiaro seu balão... Isso é impossível! Motores avapor são muito pesados para ascender...

BONAPARTE- Meu caro Deutsch, Você estava desatento;ele referia-se ao motor de explosão apetróleo. Do tipo que estão começando ausar nos automóveis, muito mais leves...

DEUTSCH- Um motor à explosão! O nome já diz! Aquilosolta fagulhas para todos os lados! O balãoexplodiria antes de sair do chão. Se não, avibração do motor destruiria o balão.Lachambre já me falou a respeito.

BONAPARTE- Lachambre também arrotou para todos oslados que o “Le Brésil” jamais sairia do solo.No entanto, não somente voou até a Bélgica,como também enfrentou tempestades emplena atmosfera. O Sr Santos já fez pormerecer um crédito, não?

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SEQUÊNCIA 23

Um bosque nos arredores de Paris. Debaixode uma troncuda galhada horizontal de umpitoresco carvalho, estão SD, François eChapin, seu novo mecânico. Sob a orientaçãode SD, eles montam, no tronco, um sistemade cordas capaz de levantar o seu triciclo dosolo até uma altura desejada. SD entrega aChapin um cano curvado em ângulo reto emanda prendê-lo com a boca para baixo nasaída de escape do motor através de umapresilha fortemente ajustável que inventara.Em seguida, ajudado por François, SD sobeno triciclo pendurado e acomoda-se noassento.

SD- Atenção, afastem-se. Vou dar a partida nomotor. Se eu cair tentem segurar-me.

Os dois afastam-se um pouco e SD dá apartida no pedal. Ao fazê-lo o conjuntobalança perigosamente mas logo se equilibracom um movimento de corpo de SD. O motorpega e dispara. Tudo bem. Gira macio, quasesem vibrações.

SD- Ótimo, Chapin, verifique se há escape defagulhas para cima.

Chapin pega um pedaço de papel e passa-opor cima do cano de escapamento. Nada.

SD- Perfeito. Desçam-me. (desamarraram ascordas e seguraram-nas para que o triciclopousasse suavemente) - Como calculei asvibrações do motor são menores no ar doque em terra. E o dispositivo de escapefuncionou. Podemos começar a montar oNúmero 1.

SEQUÊNCIA 24 (O Número 1)

Jardin d’Acclimatation, no Bois de Boulogne.(Legenda: Jardin d’Acclimatation, Paris, 18de setembro de 1898) Chapin, Lachambre eMachuron e alguns auxiliares, comandadospor SD, fazem os preparativos para vôo doNúmero 1. Um multidão forma-se ao redor.Chegam vitórias, tilburis, cupês, landaus,automóveis, triciclos, homens a cavalo, debicicleta e a pé. Muitas senhoras e senhoritascuriosas. O grande charuto é inflado,elevando-se sobre o aglomerado humano.SD dá ordens, verifica detalhes, testacordames, não pára. Machuron e eledesentendem-se e discutem por qualquercoisa. Enfim, o motor é posto a girar e SD,na barquilha, dá ordens para soltar. ONúmero 1 eleva-se com lentidão sobre ascabeças das pessoas atentas e começava suaascensão quando uma rajada de vento fez-se sentir, empurrando-o em direção a umdenso arvoredo nas proximidades, semtempo para qualquer manobra. Em seguida,chocou-se com as árvores desastradamente,e o invólucro rasgou-se, murchando dianteda platéia boquiaberta. Prado suava,passando o seu enorme lenço o tempo todoem volta do rosto, tentando achar Albertono meio do arvoredo. Finalmente eleaparece, descendo de uma árvore, de galhoem galho, lépido, até no chão, de onde acenapara a multidão. Todos aplaudem. Osmecânicos correm em sua direção.

Outra posição do mesmo local, dois diasdepois. (Legenda: Jardin d’Acclimatation,O Nº1: "...elevando-se sobre o aglomerado humano..."

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Paris, 20 de setembrode 1898) Ospreparativos paraascensão do Número 1,consertado, estão prontose SD prepara-se paraordenar a largada.

SD (para Chapin)- Dessa posição garanto-lhe quenão terei problemas paradecolar, Chapin. Esses balonistasenfim vão entender as diferençasentre o dirigível e o balão esférico.

Menos pessoas em volta do que navez anterior. O Número 1 eleva-sebem, ultrapassa o topo das árvores sob osaplausos da pequena platéia, e ganha alturajá em manobras. A câmera pega detalhes deSD a pilotar o seu dirigível que passeia porcima de bosques e campos subindo sempre,até atingir 400 metros de altitude. Ao descercaminha para o pouso em Bagatelle, mas oinvólucro começa a murchar perigosamente.SD percebendo o perigo, joga a corda guiaperto de um grupo de garotos que jogavambola e grita para eles.

SD- Segurem a corda! Segurem a corda! Atenção,todos Vocês; segurem bem firme e não

deixem que ela os arraste.

Os surpresos garotos obedecemprontamente a ordem e juntam-separa segurar a corda, com toda aforça que possuem.

SD- Isso; isso mesmo; firme; bemfirme!

Neste momento o Número1 passou a ser umaimensa pipa segurapela meninada e vailentamente caindo atéo solo com o seucharuto dobrado em

dois. Mal tinha saído da barquilha, SD vê alandau de Prado chegando a todo o galope

em Bagatelle, seguida de outrosveículos. Prado desce dalandau e é o primeiro achegar até ele.

PRADO (suando com seulenço na mão)- Ufa! Alberto, Você está bem?Por favor, é preciso parar; nãosei se resisto a essa maratona...

Uma pequena multidão seforma em torno de SD. Eleabraça e beija os garotos queo salvaram e tira do bolso

algum dinheiro que oferece a eles paracomprar guloseimas. Depois, em meio aoburburinho que se formou, SD sobe nabarquilha e, equilibrando-se em pé sobre ela,pede silêncio a todos.

SD (de pé, no alto da barquilha) (foto)- Henry Giffard, com a coragem tão grandequanto a sua ciência, já tinha demonstrado,há mais de 40 anos e de maneira magistral, apossibilidade de dirigir um balão. Hoje eu ocomprovei mais uma vez, e utilizando pelaprimeira vez um motor a petróleo. Desejoaqui homenagear esse grande precursor quefoi Henry Giffard.

SEQUÊNCIA 25

Festa de gala em Paris. Os Rothschildrecebem a alta sociedade e a intelectualidadefrancesa. Nos grandes salões repletos SD,uma das estrelas da festa, está envolto numaroda de amigos e curiosos. Georgesaproxima-se, abre passagem, trazendoconsigo uma outra estrela da festa: o jovemescritor e revelação das letras modernas deFrança, Marcel Proust.Ele apresenta-o a SD e ambos trocamimpressões e elogios mútuos, numa conversarápida. Depois cumprimentam-se edespedem-se. Após a saída de Proust, umdos amigos lhe pergunta o que achou dele.

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- Uma personalidade muito interessante, masum tanto mundano.

Marcel Proust, retornando à sua roda deamigos é indagado da mesma forma sobreSD.

PROUST- Interessante e exótica figura, a do Sr Santos.Porém, um tanto aérea...

Num outro momento da mesma festa, SD estájunto ao Príncipe Rolland Bonaparte, o Sr.Deutsch de La Meurthe, o Marquês de Dione o advogado Ernst Archdeacon.

ARCHDEACON- Achamos que chegou o momento, Sr Santos,de fundarmos o Aero Clube de Paris. Suasugestão do Campo de St. Cloud foiaprovada. E temos adesões suficientes paraa aquisição dos terrenos. Mas, o maisimportante, é que temos, no senhor, o nossoprimeiro aeronauta motorizado.

SD- Fico feliz em sabê-lo, Doutor Archdeacon,pois espero que o Aero Clube estimule novosaeronautas. Penso que a França tem essamissão perante a humanidade. Daqui serádada a partida para o novo século. E aaeronáutica, estou convicto, será a ciênciadesse novo século, e o seu maior avançosobre os anteriores.

DEUTSCH- Através do Aero Clube, pretendo instituir

uma premiação, cujos termos aindadecidiremos, para acelerar o progresso deexperiências e testes em aeronaves.

Georges aproxima-se do grupo ao lado deAdrien.

GEORGES (sempre brincalhão e animado)- Senhores, desculpem-nos pela interrupção,mas as danças já começaram. Não é justoque tão belas senhoritas esquentem sofás ecadeiras enquanto os cavalheiros tratamnegócios!

Todos concordam e dirigem-se ao salão dedanças.

No salão, outra estrela da festa: a atriz SarahBenhard, cercada de um grupo do qual fazemparte o General André e o Sr. Rothschild.Adrien apresenta SD a Sarah. A músicacomeça.

SD (para Sarah)- A Senhora concede-me a honra dessadança?

SARAH- Mas com muito prazer, Sr Santos-Dumont.Com o Senhor quem sabe vou ter a sensaçãode estar dançando nas nuvens...

Começam a dançar. Todos observam ofamoso par e admiram-se da destreza de SDao girar garbosamente com a grande damapelo salão.

Festa de gala em Paris: entre as celebridades, Sarah Benhard, SD e o Gen. André. (do centro para a direita)

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SEQUÊNCIA 26 (O Número 2)

Tempo chuvoso no Jardin d’Acclimatation.O Número 2 está sendo preparado para voar.Muitos guarda-chuvas e impermeáveis noagrupamento que se forma em torno dele.(Legenda: Jardin d Acclimatation, Paris, 11de maio de 1899) As discussões de semprerepetem-se entre Lachambre e SD. Voa ounão voa? O tempo, etc. SD está impaciente eacaba rompendo com Lachambre,despedindo-o definitivamente. Lachambreaceita a demissão e sai enfurecido.

LACHAMBRE- É um cabeçudo!

SD tira o chapéu e experimenta a chuva. Nãoestá tão forte. Entra na barquilha e mandalargar. Nessa hora a chuva aperta e, ainda aalguns metros do chão, o frio faz com que oinvólucro comece a murchar. De repente,uma inesperada ventania arroja todo oprecário conjunto para cima das árvores.Outro desastre. Susto geral. Prado em pânico.

PRADO (com as mãos postas para o céu)- Henrique, meu bom amigo, Você está aí?Peça a ele que pare com essa loucura, porfavor!

SEQUÊNCIA 27(O Número 3)

SD e seus mecânicosreúnem-se na oficina em VauGirard, no 15eme. É umareunião tensa. SD exibe aspranchas de projeto doNúmero 3.

SD- Amigos, nos projetosanteriores, a minhainexperiência permitiu osaconselhamentos deaeronautas de balõesesféricos, que se

mostraram equivocados quanto aos dirigíveis.O Número 3, porém, foi desenhado eprojetado segundo os meus próprios cálculose teorias. Até hoje, minhas inovações bemsucedidas tiveram origem em deduçõesteóricas, apoiadas em bases científicas.Aeronautas empíricos dizem que a ciênciapouca coisa vale quando se trata de voar.Isso não é verdade, e vamos agorademonstrá-lo.

Oficina da Vau Girard, no 15eme. (Legenda:Paris, 12 de novembro de 1899) SD e seusmecânicos, com Chapin, pela primeira vez àfrente, preparam sozinhos, num grande pátiofechado, o Número 3. Tudo pronto, SD entrana barquilha, manda girar o motor e dá aordem de largada. O Número 3 eleva-se firmee tranqüilo na bela manhã de primavera. SDmanobra-o à vontade; sobe, desce, evolui.(foto) Tudo sai perfeito. Dali, ele sobrevoao Champ de Mars, entre a Torre Eiffel e aÉcole Militaire, executa manobras, brinca noar. Embaixo, Paris está paralisada eboquiaberta. Os exercícios dos alunos daescola militar interrompem-se sem qualquercomando e alunos e instrutores olham parao céu, para ver aquela única nuvem artificial,de cor bege claro, que evoluía sobre suascabeças ao comando de seu piloto. Bondesparam e seus passageiros descem para

observar o fenômeno. Oscafés e as boulangeriesesvaziam-se repentinamentede seus clientes, empregadose proprietários que correm àscalçadas e olham o céu. Omesmo acontece com asrepartições públicas, os

escritórios, o comércio eas fábricas. No alto deuma das torres da Catedralde Notre Dame, um certocorcunda horrorosodesentoca-se e olha parao céu, com o seu únicoolho protegido do sol poruma das mãos. O pipocardo motor do Número 3passa a ser o ruído que"Outro desastre. Susto Geral."

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todos ouvem passandosobre suas cabeças,precedido da grandesombra que projetava-senos telhados e ruas dacidade anunciando ogrande charuto do Número3, que logo surgiaimponente, como se fosseuma nuvem feita àcompasso, geométrica e que não esvanecia.E que trazia, pendurado por uma teia decabos e cordas que traçavam o seu delicadocordame, a pequena barquilha motorizada,deixando um leve rastro de fumaça à ré, como seu piloto de chapéu já conhecido ecopiado em Paris, hasteando orgulhoso umavasta bandeira do Brasil a tremular ao vento.O Número 3 dirige-se à Torre Eiffel,ultrapassa-a, ruma ao Parc des Princes, ondecrianças e suas babás pasmam em vê-lo esegue para Bagatelle, onde aterrissasuavemente, paralisando uma acirradapartida de pólo que ao lado se disputavaentre homens a cavalo

Georges foi o primeiro a chegar, pilotando oautomóvel elétrico de SD. Os mecânicos deSD já estavam lá, aguardando-o, comocombinado. Georges tinha-o seguido portoda a Paris, com o fotógrafodo "Le Temps" ebateram váriaschapas. Estava emtranse.

GEORGES- Vitória! Vitória!(abraça SD) -Grande vitória! Enão avisouninguém, hein, seumalandro! Euestava no jornalquando começouo rebuliço.Corremos para forae lá estava Você,sobre as nossascabeças. Chamei o

fotógrafo e comecei a segui-lo, no seu automóvel. Agorasei por que não quis queeu o devolvesse ontem.Tramava tudo isso, não é?

SD- Houve também uma certacoincidência. Passei a noiteem claro na Vau Girard e

não podia encontrar-me consigo. Queriasigilo total nos preparativos. E o Número 3ficou uma beleza! Todos os meus cálculosverificaram-se corretos.

Outros veículos vinham chegando comjornalistas, membros do AeroClube, amigos,curiosos. Prado, dos amigos, foi o último achegar e abraçou SD eufórico. A pequenamultidão pegou SD e levou-o sobre osombros fazendo um passeio da vitória emBagatelle.

SEQUÊNCIA 28

No dia seguinte, pela manhã, acontecia,como previsto, a sessão solene de fundaçãodo Aero Clube de Paris. Todos os membrosfundadores lá chegavam trazendo diferentes

jornais debaixo do braço, que exibiamna primeira página o mesmo

assunto: o vôo surpresa doNúmero 3. SD foi dos

últimos a entrar noauditório doAutomóvel Clube efoi imediatamenteaplaudido de pé portodos os presentes.O advogado ErnstArchdeacon, quepresidia a sessão,convidou-o paracompor a mesa, masele educadamented e c l i n o u ,preferindo sentar-sena platéia. Após asformalidades SD

"O Número 3 eleva-se firme e tranquilo..."

O "Número 3"

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levanta-se e pede a palavra.

SD- Amigos, esta data me traz tão grandefelicidade que não posso deixar de registrá-la em breves palavras. Desejo anunciar que,amanhã mesmo, darei início à construção deuma estação-garagem para meus dirigíveisem St. Cloud. E prometo realizar lá todas asminhas próximas experiências. Tenho aconvicção de que St Cloud está destinado aser o primeiro ninho da aeronáutica domundo! Muito obrigado. (todos o aplaudem,e Deutsch pede a palavra)

DEUTSCH- Aproveito esse momento para anunciar queestou depositando nos cofres do Aero Clubea importância de 100 000 francos. Eu osofereço ao aeronauta que conseguir, partindodo Campo de St. Cloud, levar sua aeronave,em vôo por ele controlado, até a Torre Eiffel,contorná-la, e voltar ao ponto de partida,num tempo igual ou menor do que trintaminutos. Tenho dito. (novos aplausos,seguidos de comentários)

UM DOS PRESENTES (para um outro, ao seulado)- Prêmio fácil de oferecer; pois é impossívelganhá-lo!

O OUTRO- Pelo que vi ontem, não é tão impossívelassim. Mas o Sr Santos é o único concorrente.

SEQUÊNCIA 29

Inauguração dohangar de SD nocampo de St.Cloud. Umap e q u e n amultidão seaglomera diantedaquele estranhoe d i f í c i o ,projetado por SD,com dimensões

inusitadas: 30 metros de comprimento, 7 delargura e 11 de altura, com duas imensasportas de correr, ainda fechadas.

UM DOS PRESENTES (comentando para umoutro, ao seu lado)- Que prédio mais esquisito! E essas portasde correr enormes? Serão empurradas pormáquinas? Ou por gigantes?

O Príncipe Bonaparte corta com uma tesourauma fita de seda que lacrava as duas portas.Gasteau e Dazon, recentemente contratadospor SD, encarregam-se de abrir as portasusando apenas uma das mãos, nummovimento feito sem qualquer esforço. Ládentro, bem guardado e cheio de gás, estavao Número 3, pronto para voar, em toda asua imponência.

SD (para Bonaparte e os demais que oacompanhavam na visita ao interior dohangar)- Agora não preciso mais desperdiçar ovalioso hidrogênio enchendo e esvaziandoo invólucro a cada vôo. Posso guardá-lomuito bem aqui, e em segurança, semprepronto para partir.

A seguir, SD orienta os seus mecânicos pararetirar o Número 3 para fora do hangar. Eleso fazem e SD entra na barquilha, dá o sinale alça-se aos ares, fazendo várias evoluçõesem baixa altitude, subindo e descendo,manobrando à vontade, sob a admiração de

todos. Enfim,decide pousá-loe o faz coma b s o l u t ap e r f e i ç ã oexatamente nolugar de ondesaíra. Depois,sai da barquilha,sob os aplausosda entusiasmadaplatéia.

O 1º hangar do mundo: "Que prédio mais esquisito!"...

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SEQUÊNCIA 30 (O Número 4)

Reunião de SD e seus mecânicos na novaoficina secreta, ainda incompleta, anexa aoapartamento de SD nos Champs Elysées. SDpercorre os espaços vazios com a planta porele desenhada do seu projeto de ocupaçãoe os seus planos de trabalho, mostrando-osa Chapin, Gasteau e Dazon, maravilhados.Depois, sentam-se em volta da mesa daBiblioteca, e SD abre um novo rolo de plantase desenhos do seu novo projeto.

SD- Amigos, somente Vocês terão acesso a estaoficina e sob o juramento de sigilo. Aquivamos ter a oficina mais completa e segurapara projetar e construir as nossas futurasaeronaves, a começar pelo dirigível Número4 que projetei, calculei e desenhei nestasplantas. Somos os primeiros e, por enquanto,os únicos concorrentes ao Prêmio Deutsch.Com base na experiência dos anteriores,calculei um novo balão dirigível comaerodinâmica e propulsão mais eficientes,para ganhar essa prova. Se conquistarmosessa vitória prometo-lhes que concederei boaparte do seu valor em dinheiro a Vocês eseus auxiliares.

CHAPIN- Mas, senhor, qual a razão dessa honra? Osenhor nos paga tão bem ...

SD- Meu caro Chapin, não desejo de Vocêsapenas a eficácia e a competência. Quero-os competindo também, juntamente comigo.Sem Vocês não sou nada! É justo queparticipem dele tanto quanto eu, com espíritode equipe, de fato estimulada para a vitória.

GASTEAU- Vamos construi-lo aqui?

SD- Aqui vamos construir e testar cada elemento,cada peça, cada sistema de comando efuncionamento das aeronaves. Depoislevaremos para St. Cloud, onde serão

finalmente montadas e testadas em vôo.

DAZON- Não seria mais prático fazer tudo lá, ou emVau Girard, como vínhamos fazendo?

SD- Talvez, Dazon, mas lá não teríamos adisponibilidade de recursos que aqui vamoster e, o que é mais importante, poderemosprosseguir nossos trabalhos em perfeitosigilo.

CHAPIN- Sim, agora entendo. O Senhor decidiu-sepor registrar patentes de seus inventos...

SD- Não, Chapin, não é esse o motivo do sigilo.Com a inauguração da Grande Exposição nopróximo mês, o mundo inaugura uma novaera: a era da competição. Diversos prêmiosestão sendo divulgados com objetivoscientíficos e industriais, inclusive no campoda aeronáutica. O estímulo e a atração queeles provocam atinge muitas pessoas,honradas ou não. Vamos ter muitosconcorrentes, a maioria dispostos a qualquerexpediente para vencer. E, desses, nosprotegeremos aqui.. Por isso construi essaoficina em pleno coração de Paris. Por fora,vê-se apenas um galpão abandonado e emdesuso, e ninguém suspeitaria que ocarroceiro Louis, surdo mudo - que tomaconta dessa propriedade há anos, e é meuamigo leal e de confiança - seja o seuguardião. Trabalharemos aqui sossegados,sem perigo de ser roubados ou aviltados...Vamos ao Número 4.

SD (narrando a Georges e Prado na oficina,sobre as cenas da construção do Número 4e sua montagem no hangar de St. Cloud, atéa preparação para o primeiro teste de vôo)- O Número 4 foi desenhado para ganhar oPrêmio Deutsch ainda no ano da GrandeExposição o que, infelizmente, não foipossível. Dei forma mais esbelta eaerodinâmica ao invólucro e motor bem maispotente de 7 HP e dois cilindros, que inventei

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para propulsão de dirigíveis. Para ganharpeso, abri mão da barquilha de vime, e asubstituí por um quadro e celim de bicicletasobre o qual voei assentado, com os pés nospedais, e que permitiam dar partida ao motorno solo ou em vôo. (foto) Eu ficavaexatamente no baricentro do dirigível, comtodos os controles à mão. Georges develembrar-se de quando o mostrei pela primeiravez, em St Cloud. Estavam presentes Jauré eRochefort, inimigos políticos figadais, e a ex-imperatriz Eugênia...

SD mostra o seu Número 4. (Legenda: Campode St. Cloud, Aero Clube de Paris, 1 de agostode 1900)

ROCHEFORT- Sr Jauré, mas que surpresa! Um socialistafrequentando a elite parisiense!

JAURÉ- Não creio que o senhor pense assim, SrRochefort. Reputo-o homem inteligente esagaz. Estou aqui pelo mesmo motivo que osenhor; venho ver de perto o ovo da indústriaque ajudará ao proletariado libertar-se daganância de seus patrões. Ela assinala oprogresso irreversível da humanidade.

ROCHEFORT- Quanto ao primeiro ponto não discordo,Sr Jauré, mas suas prospecções quanto aofuturo não seriam por demais otimistas? Crêque apenas um século seja suficiente parapor abaixo tradições que levaram milêniosconsolidando-se?

JAURÉ- E por que não, SrRochefort? EmPolítica, como nasArtes, o novo é queprevalece. Não diriapara o seu início;mas posso prever umgrande governosocialista na Françapara o último quarteldo Século XX...

ROCHEFORT- Bem, nesse caso já não estaremos mais aípara vê-lo...

JAURÉ- Certamente que não. O que fazemos agoraé construir o futuro; assim como também ofaz o Sr Santos-Dumont.

SEQUÊNCIA 31 (A Grande Exposição)

O Número 4 desliza no ar em direção àGrande Exposição, numa perfeita linha reta.

Uma sombra corta os pátios externos daGrande Exposição, super lotada de visitantes,que fazem enorme fila na bilheteria docinematógrafo Lumière para assistir aofamoso “Viagem à Lua”, realizado pelo SrGeorge Meliés. Alguém grita: “é o petitSantos” ! Todos olham para o céu. Fotógrafosbuscam posições e ângulos. Surge então,rasante, sobre os grandes portões art-nouveau da Exposição, o Número 4, comose fosse uma nave de outro planeta, com o

seu motor rugindobem mais forte doque o antigopipocar do Número3, e a bandeira doBrasil tremulandoabaixo do leme.Todos acenam parao piloto quecorresponde comoutros acenos,gentilmente, para opúblico. Emseguida, realiza..."O Nº 4 se vai, em direção ao seu "ninho"."...

..."abri mão da barquilha de vime, e a substituí porum quadro e celim de bicicleta"...

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várias manobras. Destaque para os membrosdo Congresso Internacional de Aeronáutica,especialmente o respeitável Prof. Langley, doSmithsonian Instituition. Depois de diversasmanobras nas quais sobe até quasedesaparecer e desce até a poucos centímetrosdo solo, e circundando todo o espaço daexposição, o Número 4 se vai, com osaplausos da multidão, em direção ao seu“ninho”. Um verdadeiro show!

15 dias depois, todos os jornais, de todo omundo, vendidos nas bancas da exposição,mostravam na primeira página o show aéreodo Número 4. Uma bela mulher (AidaD’Acosta), com o "Le Temps" numa das mãos,compra um ingresso na bilheteria doauditório, e entra no hall de um salão ondese anuncia: “Congresso Internacional deAeronáutica. Hoje: Palestra do eminenteAeronauta Santos-Dumont”. Entrega o bilheteao porteiro e entra atrasada na sala repletaonde SD já começara a sua palestra, e senta-se numa poltrona da última fila.

SD (no pódium de palestras do auditório,falando de improviso)... então, senhoras e senhores, enfatizo aimportância do estudo teórico-científico, docálculo matemático e do projeto técnico paraa construção das máquinas do futuro,especialmente as aeronaves. Tudo que se fezaté pouco tempo, com raras exceções, é frutode puro empirismo, de tentativas de melhorou pior intuição. A série de dirigíveis queconcebi e construí, e os demais inventos quevieram-me para solução dos problemas quesurgiam a cada passo, demonstram-no comclareza. Quando substitui as pesadas lonasdos balões pelo levíssimo tecido de sedajaponesa, fui admoestado pelos empíricos,mas não dei-lhes ouvidos porque meuscálculos e testes garantiam-me a certeza daescolha. O mesmo se deu quando propuspôr em vôo um motor de explosão apetróleo. Os empíricos afirmavam que atrepidação produzida espedaçaria a estruturada aeronave. Há poucos dias, todos puderamvê-lo, em pleno funcionamento, sobre suaspróprias cabeças. Também com minhas

soluções para obter melhor rigidez dosinvólucros, com o motor de dois cilindros,com a aplicação de cordas de piano aoscordames, com as estruturas flexíveis debambu e madeira, enfim, uma lutapermanente contra preconceitos que só criamquimeras anti- científicas, e retardam osexperimentos do progresso. Cada aeronaveque ponho em vôo enriquece-me de novosproblemas cujas soluções vou encontrar, emprimeiro lugar, nos livros e estudos teóricoscompetentes, como os do Prof. Langley, quetanto nos honra com sua presença. (aplausos)- Eles fornecem luzes e princípios sobre osquais trilham o saber, o raciocínio e a intuiçãodo inventor. Estou no meu dirigível Número4, com o qual pretendia conquistar, aindaneste ano muito especial, o Prêmio tãooportunamente oferecido pelo Sr Deutsch deLa Meurthe, também honrando-nos com suapresença. (mais aplausos) - Porém, a sortenão me foi favorável e novos problemassurgiram, mas que espero tê-los resolvidosno Número 5, em projeto na minhaprancheta. Mas, contudo, este foi um ano defundamental importância, pois fez-se pormerecer ao título de “Portal do Século XX”,que se abre em Paris, e pelo qual haverá depassar todo ser humano civilizado que tivera sorte de viver e gozar dos confortos eprivilégios que os gênios pioneiros deMarconi, Edson, Pasteur, Grambell, Freud,Hertz, Lumière, Lilienthal e muitos outros nosconcederam. (aplausos prolongados) - E paraencerrar, senhoras e senhores, devo dizer queo mundo necessita de cérebros preparadospela ciência para cuidar dos misteres e dasvariáveis que a Natureza nos apresenta, afim de buscar-lhe os modelos teóricos, físicos,químicos, matemáticos e biológicos. Elesserão a matéria prima do inventor do futuro,cujo papel será o de dar a aplicação industrialaos benefícios que a ciência moderna ofereceà Humanidade. Muito obrigado. (muitosaplausos)

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SEQUÊNCIA 32(O Número 5)

SD acompanhado deum grupo de senhoresde cartola, senhoras esenhoritas muito bemvestidas, numademonstração doNúmero 5, no seuhangar em St. Cloud.(Legenda: Campo de St.Cloud, Aero Clube deParis, 12 de julho de1901)

CHAPIN (como sefizesse uma palestrapara atentos alunos)- O Número 5 da série do Sr Santos-Dumont,é, em verdade, um aperfeiçoamento doNúmero 4. O motor retornou à popa, poisessa posição configurou-se a mais adequadaao vôo e ao conforto do piloto. Aumentamostambém a potência para 16 HPs e o númerode cilindros para quatro. O cordame foialterado com a inclusão de cordas de piano,e demos-lhe uma estrutura mais rígida emmadeira. Também o invólucro ganhou maisalongamento, passando de 27 para 33 metrosde comprimento.

SD (ao público, já “montado” no Número 5)- Vou fazer alguns testes sobre os Camposde St. Cloud e Longchamps, e sobre a cidadede Paris, onde, se o tempo permitir, desejofazer uma aterrissagem de precisão nas ruasda cidade (exclamações de espanto) - Escolhium local próximo ao Hotel Trocadero.Convido - os para tomar um aperitivo emalgum estabelecimento das imediações. Atélá, senhoras e senhores.

O Número 5 sobrevoa Paris, perto da TorreEiffel. SD manobra-o com precisão elentamente vai descendo até desaparecer,com invólucro e tudo, entre os telhados dosprédios. Corte para a rua em frente aoTrocadero, com uma multidão embaixo doNúmero 5 tranqüilamente estacionado no

meio da rua entre asárvores e os prédios deum pequeno largo.(foto) SD ainda trepadoem seu celim respondeàs perguntas dosrepórteres e pousa paraos fotógrafos.Começam a chegar,enfim, os seusconvidados.

SD (para os repórteres)- Desculpem-me,senhores, tenhoconvidados para umdrink, permitem-me?(desce do Número 5 dáo braço a uma das

moças e abre caminho na multidão, emdireção ao Café Trocadero, seguido portodos)

SEQUÊNCIA 33

Os membros da Comissão Julgadora doPrêmio Deutsch chegam ao Campo de St.Cloud. (Legenda: Campo de St. Cloud, AeroClube de Paris, 13 de julho de 1901) O Sr.Deutsch lê a convocação de SD, em voz alta.

DEUTSCH- “Em obediência ao regulamento do PrêmioDeutsch e seus acréscimos de fevereiro de1901, venho, pela presente, convocar VExaspara presenciar uma prova que pretendorealizar no dia de amanhã, 13 de julho de1901, às 8 horas, no Campo de St Cloud.Mui respeitosamente, (ass) Alberto Santos-Dumont.”

SD já está pronto para largar, e posa parafotógrafos. O Presidente da Comissão,Príncipe Rolland Bonaparte, olha para o seucronômetro Patec Philip e acerta-o com osdos demais membros da Comissão. Georgestambém acerta o seu relógio e repara queSD mexe numa pulseira esquisita, colocadano seu pulso esquerdo.

..."tenho convidados para um drink"...

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BONAPARTE- Largar!

O Número 5 projetou-se em linha reta,na direção da Torre Eiffel. Ao chegarperto, a câmera está no seu interior. SDcontorna a Torre Eiffel e olha o seurelógio de pulso: 9 minutos se passaram.Tudo bem. Faz o contorno e percebe ovento de proa que o retém. De repente,o motor parou bruscamente. O dirigívelpassou a ser um simples balão à mercêdos ventos e começa a perder altura.Sem perder a calma, SD dirige-o comopode até os jardins do Sr. Edmond deRothschild, mas não consegueultrapassar as copas das árvores maisaltas que se entrelaçam aos cordames,seguram o conjunto e perfuram oinvólucro que vai diminuindogradativamente, perdendo a imponência,caindo lentamente, até que SD possa agarrar-se a um dos galhos das árvores a poucosmetros do chão. Os guardas do Sr. Rothschildsão os primeiros a chegar e ajudam-no adescer até o solo. Depois começam a chegaros repórteres, fotógrafos e os membros daComissão. SD mantém-se impecavelmentevestido, com sua grande gravata vermelhasobre a imaculada camisa branca de mangascompridas e o seu chapéu panamá. Ele posapara os fotógrafos aolado do Sr Deutsch.(foto) Quando chegamGeorges e Prado (Prado,como sempre aflito,suando e enxugando orosto com seus enormeslenços brancos) SD jáestá dando orientaçõespara seus mecânicos,para o resgate de seudirigível.

GEORGES (sorridente)- Como pode-se notar,está tudo bem, claro.Minha curiosidade agoraé por aquela esquisitapulseira que o observei

olhando ao largar, no seu pulsoesquerdo. O que é?

SD (rindo, mostrando o pulso esquerdocom o relógio e desabotoando a suafivela)- É um relógio que inventei, Georges.Foi a solução que achei paraacompanhar o tempo de vôo durante aprova. Guarde este como lembrança.Encomendei meia dúzia ao Cartier.

GEORGES (olhando admirado aquelamaravilhosa invenção)- Mas que idéia genial, Alberto, umrelógio de se por no pulso! Ficolisongeado com o presente! Sou o

segundo homem deste mundo a usá-lo, não? (prendeu-o ao seu pulso e ficou

a olhar para o relógio, encantado)

SD- Com certeza, Georges, e Pradô deverá sero terceiro. Mandei fazer seis em ouro, umpara cada um de nós, e meus mecânicos.Usarei o meu no próximo vôo, quandoconquistaremos o Prêmio Deutsch.

GEORGES- Esse Você patenteou! Tem de patentear! Éum absurdo não fazê-lo! O Cartier vai ganhar

uma fábula com ele!

SD- Já entreguei a patente aodomínio público noescritório de registros.Cartier vai produzi-lo emsérie com o nomeDumont. Me dou porhonrado, é um granderelojoeiro.

PRADO (quase chorandopara SD)- Alberto, eu o ouvi referir-se a um próximo vôo?...

Nesse momento, surgemdois criados, um deles..."Como pode-se notar está tudo bem!"...

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carregando um pequeno cesto de vime.

UM DOS CRIADOS- Senhor Santos-Dumont, somos criados daPrincesa Izabel, do Brasil, e vizinha do Sr.Edmond de Rothschild. Ela soube doacidente e mandou-nos ter notícias. Mandou-lhe também esse pequeno lunch, esteenvelope e um convite para o senhor almoçarcom ela, em uma hora, na sua casa. (entregoua SD o envelope, que o abre e começa a ler)

SD (comentando enquanto lê o bilhete)- É muita delicadeza da Princesa Izabel. Diga-lhe que está tudo bem e que o convite foiaceito e... o que é isso? Ah, sim, umamedalhinha... (e lê para Prado o bilhete)“Senhor Santos-Dumont..- Envio-lhe umamedalha de São Benedito que proteje contraacidentes. Aceite-a e use-a na corrente de seurelógio, na sua carteira ou no seu pescoço.Ofereço-lhe pensando na sua boa mãe epedindo a Deus que lhe socorra sempre e lheajude a trabalhar para a glória de nossapátria. Izabel, Condessa D’Eu”. - E então,Pradô? Tenho fome! (abre a cestinha e retiraum bom sanduíche) - Aceita um? (Pradorecusa) - Que tal se me acompanhasse à casada Princesa?

PRADO- Sempre gostei da Princesa Izabel, Alberto.Também foi amiga de minha mãe. Mas, nãoacha que um Embaixador da República seriamal recebido na casa de uma princesaexilada? E ela convidou apenas a Você...

SD- Ora, Pradô, não seja incivilizado. A Princesa,além de muito educada, é brasileira. E namesa de uma senhora brasileira sempre terálugar para um patrício, ou qualquer um queapareça na boa hora. Não é como na França,lembre-se. E não seria dever de um bomEmbaixador aproveitar oportunidades quecontribuam para a diminuição das tensõesentre adversários políticos? Eis aía sua chance de tentar moderaros ataques da nobreza brasileiraexilada aos governos republicanos!

(e, olhando para a própria gravata) - Tenhode providenciar uma outra gravata... essagravata vermelha pode ser tomada como umaafronta... é um símbolo republicano noBrasil... (SD ficou pensativo. Enfim, decidiu-se, retirou um dos guardanapos bege dacestinha e improvisou rapidamente aopescoço uma nova gravata, dando, comperfeição, um laço elegante) - Que tal? Estámelhor?

PRADO- Sim, bem melhor. Vou aceitar o convite.Você tem alguma razão... Mas não devodemorar- me. Sales chamou-me e amanhãembarco no Arcona.

SEQUÊNCIA 34 (A Princesa Izabel)

A landau de Prado chega à casa da PrincesaIzabel. SD e Prado conversam.

PRADO- Tenho certeza de que a medalhinha é obrado Henrique, lá no céu, Alberto. Por Vocêele faria tudo! Não deve estar aguentandosuas traquinagens aéreas. Pediu ajuda a SãoBenedito. É a única explicação!

SD- Acalme-se, Pradô, as coisas não são tãoperigosas!. O dirigível é seguro; em casos depousos forçados cai muito lentamente. E opiloto ainda tem recursos, se tiver experiênciae sangue frio. Me sinto bem preparado.

A landau estaciona. A Princesa está na portapara recebê-los.

PRADO- Já desisti de pedir-lhe que pare com essasloucuras, Alberto. Só me resta pedir a Deus,a São Benedito e a Henrique que o protejamlá de cima.

Aproximam-se da sorridente Princesa.

SD- Princesa, fiquei sensibilizado com

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as suas gentilezas e o seu convite, e queroagradecê-la em nome de minha mãe, no domeu falecido pai e no meu próprio. Tomei aliberdade de trazer o Embaixador Prado,inseparável companheiro das minhasaventuras nos céus de Paris. Sua função épedir por mim na Embaixada do Reino deDeus. Espero que a Senhora não se importe...

PRINCESA IZABEL- De modo algum, meu menino Alberto.Nossa casa em Paris nunca fechou as portasaos nossos patrícios, sejam eles republicanosou não. Seja bem-vindo a essa modestamorada de exílio, Sr. Antonio Prado, suaadorável mãe e eu éramos grandes amigasquando solteiras. Ela passa bem?

PRADO- Um pouco atormentada pela artrite,madame, obrigado pela acolhida e pelalembrança. É com humildade e grande prazerque acompanho o meu amigo, peralta doscéus, até essa nobre residência. Aqui souapenas um patrício, um amigo, e, também,com toda a sinceridade, um admiradorexaltado daquela que tornou livres osescravos da nossa pátria, cuja condição tantonos envergonhava. Receba as minhassaudações.

PRINCESA IZABEL- Entrem, senhores, por favor. Minhacozinheira é brasileira e pedi-lhe que nospreparasse uma das nossas especialidades:um franguinho ao molho pardo! Gostam?

Na mesa, já almoçando as iguarias daPrincesa.

PRINCESA IZABEL- O senhor não acha, Sr. Prado, que o Brasildeveria dar maior apoio oficial e demonstrarmais interesse pelas experiências do nossoAlbertinho? Tantas glórias tem ele propiciadoà nossa pátria, neste século do progresso...Quando vejo a bandeira do nosso Brasilsobrevoando Paris em seus balões, meusolhos se enchem de lágrimas... Pedro, meupai, ficaria tão orgulhoso dele, se estivesse

vivo! Num governo como o de papai, Albertoteria grande ajuda do estado para prosseguirnos seus inventos.

PRADO- Madame, o Brasil passa por uma fase difícile problemática. Crises se sucedemameaçando o equilíbrio das finanças, docomércio, da indústria... E somos poucos paradar conta de tudo. Eu, pessoalmente, faço oque posso para que nada falte a Alberto. Jáno Governo as coisas se complicam. Numsistema democrático-republicano todos falame apitam. Cada decisão é lenta, difícil. Coisasdos novos tempos! Mas, prometo-lhe, o Brasile o seu Governo não estarão cegos aossucessos de Alberto, e suas repercussões pelomundo. Pelo contrário, uma das minhasmissões, na viagem que faço ao Brasilamanhã, é levar subsídios para um apoiofirme a Alberto, que está se tornando umherói nacional.

PRINCESA IZABEL- Acredito no senhor, Sr Prado. Mas tudo estámuito demorado e lento no Brasil. O tempourge! As necessidades não esperam! Albertotornou-se uma das maiores esperanças donosso país. Mas, no concerto das nações, elesurge como solista isolado e desamparado.Se o Governo brasileiro fosse mais presentenas questões do progresso, outros Albertosnão apareceriam? Temos muitos por lá. E nemtodos com a chance que o Dr Henrique deuao seu caçula. Eu mesma conheci rapazesestudiosos e aplicados que não a tiveram ealguns abandonaram os estudos para viver,ou a pátria e, até, a nacionalidade; porque aRepública nada faz para estimulá-los eampará- los. Nos tempos de papai isso nãoacontecia. Pelo contrário, os Albertos daquiiam para lá!

PRADO- Madame, a senhora dificilmente vaiencontrar admirador mais entusiasmado deseu pai, do que este que vos fala. Fui seufuncionário, ainda jovem, mas leal e dedicadoe, sou, até hoje, um leitor assíduo de tudo oque escreveu. Minha opinião é a de que a

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senhora tem toda razão. Mas a Repúblicaainda não teve um estadista como o seusaudoso pai, e temos de concordar queestadistas do porte do excelentíssimo senhorseu pai não são fáceis de se encontrar!Quanto a Alberto, também ele é difícil eúnico. Não é muito fácil tentar ajudar oAlberto, estou errado Alberto?

SD acaba de limpar o seu prato e, enquantocomia, esteve indiferente à conversa.

SD- Senhora Princesa, que delícia de manjar! Asenhora permitiria que o meu cozinheiroviesse buscar-lhe a receita? Gostaria decumprimentar a autora dessa perfeição,posso?

PRINCESA IZABEL- Oh, e por que não? Ela ficará satisfeitíssima!Adora o senhor! Quando então o Sr passaem seus dirigíveis ninguém a segura nacozinha... (e, baixinho) - certa vez ela disse-me que suas evoluções aéreas fazem-nalembrar os grandes pássaros do nosso Brasil.(e, para o criado, em português) - Altamiro,chame a Maria. (logo ela aparece, como sejá aguardasse atrás da porta; é uma negraretinta e belíssima) - Maria, o Sr Alberto vaimandar o seu cozinheiro pegar-lhe a receitadeste prato. Está autorizada a passar-lhe, sim?

SD levanta-se e beija a mão da sorridente ebela figura, que, no seu deslumbramento,não consegue pronunciar uma só palavra.

SD- Maria, Você só pode ser uma santa afilhadade Nossa Senhora Aparecida! Permita-mereverenciá-la e agradecê-la. Muito obrigado!

SEQUÊNCIA 35 (Acidente do Trocadero)

A cena retorna do longo flash-back à oficinade SD onde os três amigos conversam.Georges está com um cadernorepleto de anotações. Três garrafasde vinho e três de água mineral já

foram esvaziadas.

PRADO- Bem, chegou a vez do Número 6.

GEORGES- Não, ainda temos o episódio do acidentedo Trocadero.

PRADO (lembrando-se aterrorizado)- Graças a Deus eu não estava aqui! Graças aDeus! Foi a medalha de São Benedito, senãoele, em pessoa, que salvou Alberto desseacidente. No Brasil só nos chegou a versãodos jornais. Agora é a sua vez de falar,Georges. Sabe o que os jornais não publicam,e é o que mais costuma interessar. Sugiroinverter os papéis. Eu sou o jornalista e Vocêo entrevistado. Conte-nos como foi! Agoraque passou, estou curioso. No Brasil, davaum soco no primeiro que viesse dizer-mealguma coisa.

GEORGES- De fato, eu acompanhei tudo, cada passo...

SD- Essa vou ouvir deitado no divã. Nada possoacrescentar ao que Georges sabe. E estouansioso para ouvi-lo tanto quanto Pradô.(levanta-se e deita-se, confortavelmente, nodivã)

GEORGES (narrando em off)- Na tarde anterior ao acidente, Adrien e eucobrimos a apresentação do novoembaixador dos EUA, o Sr. Henry White, noPalácio do Governo. Por coincidência,passamos aqui em frente quando íamos paralá, numa vitória do governo francês, e vimosAlberto e Chapin entrando na garagem doedifício, no automóvel elétrico de Alberto. Aenfadonha solenidade foi muito demoradae Adrien saiu cedo, deixando-me paraterminar o trabalho. Ao encerrá-lo, passeiminhas anotações ao fotógrafo para levá-lasao jornal e decidi vir a pé até aqui para

encontrar-me com Alberto e, talvez,jantarmos juntos.

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Georges bate à porta do apartamento de SD.August atende.

AUGUST- Como vai, senhor Georges. Deseja entrar?

GEORGES- Sim, August. Estou um pouco cansado.Alberto está?

AUGUST- O patrão não se encontra, senhor. Marcaramalgum compromisso?

GEORGES (já no hall)- Não, August. Passei por acaso, e, quemsabe, para jantarmos juntos e combinar ascoisas para a prova de amanhã.

AUGUST- Creio que será difícil encontrá-lo, senhor.Nas vésperas de provas ele costuma chegarmuito tarde. Quanto ao jantar, se o senhornos der a honra, temos algo pronto nacozinha.

GEORGES- Até que seria prático, August, se não osatrapalho... Assim ganho tempo e durmo maiscedo. Não temos tido folga para sonos maisprolongados ultimamente.

AUGUST- De modo algum nos atrapalha, senhorGeorges. Queira vir comigo até a sala dejantar.

Entram na sala de jantar (ainda com osmóveis “normais”)

AUGUST- Temos pernil de carneiro assado, senhor.O que deseja beber?

GEORGES- Aceitaria um bom vinho tinto, August.Talvez ajude-me a ter sono. Obrigado.

AUGUST- Pois não, senhor. Fique à vontade,

sente-se à mesa. O serviço virá em seguida.

GEORGES (narrando em off)- Observando August dar as ordens nacozinha, com a porta entreaberta, percebiPierre secando louça fina e cheguei a pensarque abusavam de Alberto, na sua ausência,usando a sua louça.

François entra com o vinho e o cálice decristal. Traz também queijos e pães. Serve-os a Georges que o agradece.

GEORGES (ainda narrando em off)- Nesse momento tocou o telefone e Augustatendeu. Era Alberto. August falou ao meurespeito. Ouviu Alberto e desligou. Fiqueiaborrecido com August por não ter me dadochance de falar a Alberto, mas ele logo seexplicou.

AUGUST- Desculpe-me, Senhor Georges. O patrãoestá atarefado e pediu-me que me explicasseao senhor. Disse que tudo corre comoprevisto e que o aguarda amanhã em St.Cloud às sete horas.

GEORGES (em off)- Depois do jantar, August providenciou-meum tilburi e, ao sair do edifício percebi queo automóvel de Alberto estava na garagem,ao lado do triciclo e a velha charretinha queele fazia puxada por um avestruz. Estranhei,perguntando-me quem teria levado Albertoà St Cloud, mas não dei importância. Agorasei que Alberto estava mesmo é aqui, na suacaverna secreta, não é Alberto?

SD (no divã, rindo)- E testando um motor que, fora da cabinede testes, poderia ter sido ouvido por toda aParis.

GEORGES (voltando à narrativa em off)- No dia seguinte chegamos cedo a St Cloud.

(Legenda: Campo de St. Cloud, AeroClube de Paris, 8 de agosto de 1901) -Com a movimentação do dia anterior,não pude fazer a preparação que

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desejava paracobrir a prova. Fuiapenas com umfotógrafo, deixandoa equipe deprontidão no jornal,e Elise, nossa novajornalista, dentro daTorre Eiffel, comligação direta, portelefone, para ojornal e para St.Cloud. O Número 5estava reformado eparecia perfeito.Pensávamos que oPrêmio seria ganhonaquele dia. Toda a Comissão estavapresente.

SD- “Lachez tout!” (e parte com o Número 5em vôo rasante em subida.)

GEORGES (em off)- O vôo começou soberbo, com o Número 5indo em direção à Torre como uma flecha.Tinham-se passado nove minutos quandoElise anunciou-o ao seu lado, na metade daaltura da Torre, iniciando manobras deretorno.

ELISE (observando o Número 5 de dentroda Torre Eiffel)- Minha impressão é de que as coisas nãovão bem. O invólucro está murcho e o motorfalha ; mas ele tenta a manobra de volta...parece que há problemas... o invólucromurcha mais e mais... o motor falha... o motorparou... está com a hélice presa nas cordasfrouxas do balão. O dirigível aproxima-semuito da Torre, empurrado pelo vento; possover o senhor Santos a poucos metros de mim;parece calmo e tenta soltar as cordas queprendem a hélice... está perdendo altura... omotor não funciona apesar das tentativas dopiloto... ele está em perigo... está caindo...Oh, meu Deus!, vai cair em cima do HotelTrocadero... bateu no telhado... (o balãoexplode com um estrondo que Georges ouve

pelo telefone,do outro ladoda linha)

VOZ DE ELISE(por telefone)- Ele caiu, elecaiu... umat e r r í v e lexplosão... nãohá fogo... todoscorrem para lá...

G E O R G E S(aflito, aotelefone)- Elise, Elise,

Você pode vê-lo?

ELISE- Ainda não, vejo apenas os cordames e ospedaços rasgados do balão sobre o telhado...ele caiu para o outro lado... Oh, meu Deus...

GEORGES (aflitíssimo, com muita gente aoseu redor tentando escutar o relato)- Mas são quase vinte metros de altura...Alguém do jornal está escutando? É precisomandar alguém para lá imediatamente.

ADRIEN (no telefone, olhando pela janela)- René está lá, Georges. Espere, está mefazendo sinais... ele está rindo, parece queestá tudo bem. Sim, René faz sinal positivo,tranqüilize-se, creio que não se machucou...os bombeiros estão chegando, posso vê-los...

A câmera mostra SD pendurado na paredelateral do Hotel, a uns quinze metros dealtura, salvo, literalmente, por um fio docordame que embaraçou-se no seu corpo eprendeu-se em algum lugar do telhado. (foto)SD não se afoba; dá ordens e orientações láde cima para os bombeiros, demonstrandoperfeita tranqüilidade e presença de espírito.Finalmente um bombeiro o alcança. Amultidão aplaude vigorosamente. Sobre essacena a voz de Prado é ouvida em off.

PRADO (em off)

..."O Nº 5 indo em direção à Torre Eiffel como uma flexa"...

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- Foi São Benedito! Foi ele! Henriqueconseguiu! Consegue o que quer, aqueledanado, até no céu! Foi São Benedito,Georges! Posso garantir.

A cena volta para a oficina, com Prado aindafalando.

PRADO (suando e passando seu enormelenço no rosto)... Essa eu não resistiria! Meu coração nãoaguenta... sabem...

GEORGES- Aqui entre nós, Prado, e isso é assunto paranão sair daqui. Mas Alberto, seus mecânicose eu, temos certeza de que houve umasabotagem...

PRADO- O que? Sabotagem?!...

SD- Shhhh! Não se fala mais nisso...

PRADO- Como, não se fala?!Querem matá-lo e nãose fala mais nisso?Estão malucos? Queroa polícia investigandotudo amanhã mesmo.Nem que tenha de iroficialmente ao Paláciodo Governo; aoPrimeiro-Ministro, sepreciso for...

GEORGES- Calma, Sr Prado. Nãoera o caso na época, emuito menos agora.Sem provas concretas eirrefutáveis é o tipo doassunto que sóprejudica o trabalho deAlberto. O que temossão suspeitas; massuspeitas sérias...

PRADO- Isso torna tudo duplamente perigoso. Jánão é fácil voar sem sabotagem. Comsabotagem, é melhor desistir logo...

SD- Isso é o que os sabotadores querem quetodos pensem, Pradô. E, de fato, não deixade ser verdade. Por isso começamos a estudaralternativas e estratégias para evitarsabotagens.

PRADO- Como assim? Melhor, conte-me primeiro oque está se passando... (e enche uma taçade vinho, até a boca, e limpa o suor do seurosto com o lenço)

GEORGES (em off sobre a repetição do vôoem outros ângulos)- Alberto fez essas provas com o Número 5em vôo de baixa altitude para proporcionarum espetáculo melhor à multidão. Todos emParis sabiam que o Prêmio Deutsch já tinhao seu ganhador. Inclusive Alberto, e por issofez um vôo para espetáculo. Quando passou

por Longchamps,pouco acima da copadas árvores, ele ouviuum ruído semelhanteao dessas garruchasde ar comprimido quecomeçaram a fabricarr e c e n t e m e n t e .(filmagem em câmeralenta, do dirigível

passando perto dacopa de uma árvore eparece ter alguémentre as ramagenscom uma garrucha -como no assassinatode Kennedy - ouve-seum ruído e oinvólucro dá umaligeira sacudidela) -Em seguida elepercebeu a perda degás no balão, masainda pouca e..."salvo, literalmente, por um fio"...

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acreditou que daria para concluir. Já na TorreEiffel, sem poder ganhar altura, o motorcomeça a falhar e pára, ainda antes dascordas embaraçarem-se na hélice. Examesposteriores demonstraram que havia misturade vernizes não- combustíveis na gasolina.Nos pedaços que sobraram do invólucroforam achados dois pregos dobrados, comduas pontas. Podem ter sido do telhado doHotel, mas achamos que foram expelidos dagarrucha criminosa, do alto de alguma árvoreem Longchamps.

PRADO- E como conseguiram evitar a sabotagemno vôo do Número 6?

GEORGES- Não somente nós desconfiamos desabotagem. Muita gente em Paris não engoliueste acidente com facilidade. Ninguém ousafalar, é claro. Mas todos têm acompanhadode perto, e razoavelmente bem informados,as experiências e os progressos de Alberto.Acidentes com mau tempo, ventos fortes ou,até mesmo, alguns erros de cálculo, comono caso do Número 1, são naturais, podemacontecer. Mas os dois acidentes do Número5, sem nenhuma causa externa aparente,tornam-se, de fato, suspeitos. É conhecido ocuidado com que Albertoe seus mecânicosconstroem e preparam assuas máquinas e balões.Cada milímetro quadradodos invólucros é revisado,um a um, antes de voar.Os motores sãoconstruídos com asmelhores ligas e materiaise testados à exaustão.Além disso, o povo deParis não esconde a suasimpatia e a sua torcidapelas vitórias de Alberto.Por isso, quando oNúmero 6 ficou pronto,Alberto e eu combinamosuma estratégia para apróxima prova.

SD- Passei a processar a gasolina aqui, Georges,isso Você ainda não sabia.

GEORGES- Sim, somente hoje conheci essa oficinasecreta. Mas nisso confio inteiramente emVocê, Alberto. Minha parte é a imprensa, apublicidade, e o uso dela no esquema anti-sabotagem.

PRADO- Esquema anti-sabotagem?

SEQUÊNCIA 36 (O Número 6)

GEORGES (agora em off sobre as imagenscorrespondentes)- Adrien também suspeitava de sabotagem edeu-me carta branca para agir. Cedeu-memais um fotógrafo para acompanhar Alberto.Quando o Número 6 ficou pronto (SD e osmecânicos tirando o Número 6 do hangar)combinamos fazer algumas demonstraçõespúblicas em baixa altitude, em locaisdiferentes, sob pretextos diversos. A primeirafoi no hipódromo de Longchamps a pretextode medir a velocidade em vôo. EnquantoAlberto dava o máximo de velocidade no

Número 6, MauriceFarman, no seuautomóvel, seguia acorda guia. Medimosuma velocidade de 35km/hora, naquele dia.O meu segundofotógrafo ocupava-seem fotografar pessoasque assistiam. Nessedia houve pouca gente.Outra vez foi sobre oCafé Le Cascade.Alberto fez váriasevoluções e depoisdesceu em frente aoCafé e chamou a todospara um aperitivo.Nesse dia houve muitoscuriosos. Ao retornarO Número 6.

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para St. Cloud, acorda guia agarrou-se numa árvore eAlberto teve de soltargás para desgarrá-la.Isso impediu-o desubir e teve de voarbem baixo. Então, opovo que assistiapegou a corda guiae puxou o Número 6,numa folia coletiva, até seu hangar em St.Cloud. Esse episódio demonstra bem apopularidade de Alberto em Paris.

PRADO- Bem, e então?

GEORGES (continuando em off)- Comparamos as fotografias e descobrimosdois senhores desconhecidos presentes emtodas elas, inclusive na procissão que puxouo Número 6 até o hangar. Não eram franceses,via-se, e Adrien pediu a seus amigos napolícia para investigá-los. Até hoje nãoobtivemos resposta. Mas, para o dia da prova,toda a equipe do "Le Temps" estava sabendoque, se os vissem, deveriam avisarimediatamente, dando a sua localização.Consegui, com a ajuda de Adrien, a colocaçãode dois repórteres e fotógrafos, em posiçõesintermediárias entre St. Cloud e a Torre Eiffel,uma nos Bois de Boulogne e outra no Sena,ambos ligados à Elise, no alto da Torre Eiffel,à mim, no Aero Clube e a Adrien, no jornal,por uma linha telefônica exclusiva. No AeroClube e no Champ des Mars montamossistemas de cornetas alto-falantes para quenossas vozes fossem ouvidas pelogrande público,

que sempreacompanhava essasprovas. Aquele diaamanheceu commau tempo esomente cincomembros daComissão Julgadoracompareceram àconvocação deAlberto. (Legenda:

Campo de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 19de outubro de 1901) Os Srs Deutsch de LaMeurthe, de Dion, de Fonvielle, Besaçon eAimé. Os demais não acreditaram que haveriaprova e não foram. Mesmo preocupado comas condições atmosféricas, Alberto decidiulevantar vôo...

SD- “Lachez tout!”

GEORGES (no seu telefone)- Largou. Está subindo bem alto e parte emdireção ao seu alvo. São 14 horas e 44minutos.

A multidão no Champ des Mars, ouvindo issopelas cornetas alto-falantes, aplaude. No AeroClube, idem.

GEORGES (continuando ao telefone)- Dessa vez o Sr Santos preferiu um vôo emmaior altitude. E lá se vai, bem alto.

O PRIMEIRO REPÓRTER (ao telefone, noBois de Boulogne, frente a uma grande varafincada no chão)- Já aproxima-se da minha marca, deve cortá-la a qualquer momento...sim, passou-a, são14 horas e 47 minutos, portanto, 3 minutosdecorridos, e o dirigível segue à toda numaperfeita linha reta, muito alta.

Tomadas do dirigível em vôo, do Aero Clubee do Champs de Mars.

O SEGUNDO REPÓRTER (ao telefone, numaponte sobre o Sena, com uma vara presa aochão para marcar a posição)..."Está subindo bem alto e parte em direção ao seu alvo"...

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... agora aproxima-se da minha marca. Vaipassá-la em breve. São 5 minutos da largada,lá vem ele, o Número 6 do Sr Santos...atenção... quase chegando... vai passar...passou!, a 6 minutos de vôo e permanecefirme e veloz em direção à Torre Eiffel. Agoraé com Você, Elise.

ELISE- Já o vejo daqui, vindo bem de frente e bemalto em minha direção. Vejo o dirigívelaumentando de tamanho a cada instante...Parece que vai contornar a Torre pelo topo,bem cá em cima... sim, está chegando aqui...

Cortes para o povo, para as cornetas alto-falantes, etc.

ELISE... Sim, Georges, são 8 minutos decorridos eele cruza a Torre Eiffel e começa acontorná-la, numa rota em círculo,perfeita. Os comandos parecemobedecer-lhe bem, vejo-o na suabarquilha... ele acena para o povo,lá em baixo...

Cenas do povo aplaudindo.

ELISE (continuando)... ele começa a apontar para o rumode retorno, são 9 minutos aqui, bemmarcados.

A cena da foto do início do roteiro.

O POVO (jogando para o altochapéus e bengalas)- Viva “le petit Santos”! Viva “lepetit Santos”!

ELISE (continuando)... a velocidade reduziu-se muito, o vento, àsua proa, quase oparou no ar. Maso motor parecemuito bom, seuruído está firmee ele empurra o

balão com vigor contra o vento. O SenhorSantos vai lentamente agora de volta para StCloud, buscar o seu prêmio. Como estão oscronômetros oficiais, Georges? No meurelógio já se passaram 12 minutos, mas nãotenho ponteiros de segundos como noscronômetros...

GEORGES (em off, para Prado)- Percebi, pela primeira vez, a necessidadede ponteiros de segundos em relógios. Omesmo aconteceu com todos, poisaglomeravam-se em volta da ComissãoJulgadora, sempre perguntando pelossegundos. Pressentíamos que a prova seriadecidida nos segundos e não nos minutos.Creio que nem Alberto contava com isso,pois o relógio que inventou também nãopossui esse ponteiro. Ao apelo de Elise, fizsinal para o fotógrafo e pedi-lhe que

chamasse o Maurice Farman ou o PedroGuimarães, que tinham Patecs-cronômetros iguais aos da Comissão, eajustados com os dela. Maurice atendeu-

me, e chegou para perto, quando olhei,pela primeira vez, o tempo

com os segundos:t i n h a m - s epassado 15minutos e 43

s e g u n d o s .Havia um silêncio geral.

Cenas de expectativa em todos oslugares. Silêncio total, até nascornetas. Alguém do povo grita.

ALGUÉM DO POVO (aflito, paraa corneta alto-falante maispróxima)- Como é, não vai dizer otempo?!...

GEORGES (retomando alocução por telefone)

- Elise, conseguimos apresença do SrMaurice Farman, quetraz um Patec-cronômetro ajustado

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com o da Comissão. São...

O SEGUNDO REPÓRTER (interrompendo)- Ele já vai passar agora a minha marca deretorno. Ele começa a inclinar a proa paraum vôo em descida, provavelmente paraganhar tempo... vai passar agora... passou...

Corte para SD, na barquilha, olhando orelógio. Parece tenso.

GEORGES- São 19 minutos e 39 segundos...

O SEGUNDO REPÓRTER- Com a descida ele consegue maisvelocidade... mas o vento contrário continuaforte e ele já está sobre o Bois de Boulogne...

O PRIMEIRO REPÓRTER- Sim, está vindo para a minha marca. Estádescendo muito, e em breve estará aqui. Estáatento ao tempo, Georges?

GEORGES- Sim, no momento em que ele passar a suamarca, Você diz e eu dou o tempo...

O PRIMEIRO REPÓRTER- Está quase chegando, está bem baixo agora.O senhor Santos manobra o seu dirigível ealtera a posição da proa, perto deLongchamps... ele dá uma violenta guinadae ganha mais altura...espero que não estejacom algum problema...

Tensão geral em todos os rostos, inclusivede SD, vendo já o seu hangar em St Cloud euma multidão perto dele.

O PRIMEIRO REPÓRTER... atenção... vai passar.... passou!...

GEORGES (já aflito)- 23 minutos e doze segundos. Agora estábem perto de St. Cloud. Está fazendo umaperigosa manobra de recuperação de altura,consertando a proa do seu dirigível (SD passaraspando num prédio do Bois de Boulogne,dando um susto aos que o viam de St. Cloud,

algumas senhoritas dão gritinhos de alarme)- Já o estamos vendo bem perto... se nadaacontecer pode chegar a tempo... mas... oque é isso?... parece uma falha do motor?...sim, parece-me que o motor está falhando...(pessoas roem as unhas) - não, recuperou!recuperou!... ouço muito bem o ruído domotor vindo direto em nossa direção...temos... 28 minutos e 40 segundos, senhorase senhores,... 28 e 50... 29... cravados, faltaapenas um minuto..., está perto, muito perto,aqui vem ele... 29 e 15... está quase na linhade chegada, senhoras e senhores,... 29 e 22...vai passar... vai passar a tempo... 29 e 28...vai, ... passou!,ele passou!... ele ganhou! ... ele ganhou oPrêmio Deutsch, senhoras e senhores!...

Pulos de alegria em todos os cantos, chapéusvoam para todos os lados.

GEORGES (continuando a eufórica locução)- O Senhor Alberto Santos-Dumont é ovencedor do Prêmio Deutsch, nessa tarde quevai entrar para a história da Humanidade,senhoras e senhores, os seus mecânicos jápuxam a corda. O Número 6 estáestacionado, cercado pela multidão...

Corte para SD, dentro da barquilha, com umamultidão em sua volta.

SD- Ganhei?

O povo aplaudindo e entusiasmado retira-ode dentro da barquilha e o carrega nosombros, em comemoração pela vitória.

GEORGES (continuando a narração eufórica)... é o primeiro homem deste planeta aconduzir pelos ares uma máquina, senhorase senhores, com um percurso e tempopredeterminados, de ida e volta. Elise, aquié uma grande festa, uma grandecomemoração... o povo carrega o SenhorSantos nos ombros numa grandedemonstração de carinho. E aí, no Campode Marte?

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ELISE- Aqui outra festa, Georges. Nunca tantoschapéus voaram ao mesmo tempo em Paris.Todos se abraçam numa grande alegriacoletiva, felizes com a vitória de seu herói, onosso “petit Santos”! Uma vitória difícil, masdigna dos grandes homens!

GEORGES- Todos estamos muito emocionados, Elise,e toda a Paris estará em festa por esteimportante acontecimento. Nós, do "LeTemps", prometemos para a edição deamanhã um trabalho completo dereportagem dessa emocionante corrida dohomem e a máquina contra o tempo e oscronômetros. Vamos encerrar aqui. Boa tardepara todos e para Você Elise, e os repórteresque nos acompanharam a cada minuto, digo,a cada segundo. Desligo.

Georges desliga e vai em direção a SD, nomeio do povo, para abraçá-lo. Abraçam-se.

GEORGES (quase chorando)- Uma grande vitória! Parabéns! Grandevitória!

Porém, por cima do ombro de SD, ele vêduas landaux e um automóvel saindo de St.Cloud com os membros da Comissão.

GEORGES (surpreso, e mostrando a SD)- Ora, onde estarão indo? Preciso entrevistá-los...

Maurice Farman e Pedro Guimarãesaproximam-se. Pedro cochicha algo noouvido SD e Maurice no ouvido de Georges.Ambos pedem licença aos circunstantes esaem em direção ao hangar, onde o Número6 já está sendo guardado pelos mecânicosde SD. Escolhem um local sem ninguém porperto e Maurice começa a falar.

MAURICE- A Comissão não quis homologar deimediato a conquista do Prêmio. Por issosaíram e pediram a mim e ao Pedro paraavisá-los discretamente, pois temem a reação

popular...

GEORGES- Mas, por quê? O que houve?... Para ondeforam?

PEDRO- Ouvi uma conversa de novas regras quenão foram cumpridas na prova, Alberto. Achoque foi isso que ouvi. Sabe alguma coisasobre mudanças de regras?

SD- Mudanças de regras? Não, não deve ser isso.No caso de mudança de regras eu teria deser avisado. Afinal sou o único competidordesse prêmio?!

GEORGES- Disseram para onde foram? Precisamos iraté eles. Quero saber o que aconteceu.

MAURICE- Não nos disseram. Havia uma bela discussãoentre Deutsch e Fonvielle. Foi o Besaçon quenos passou o recado enquanto empurrava oAimé e o De Dion para dentro da landau.Deutsch e Fonvielle foram no automóvel,discutindo aos berros, quase a trocarbengaladas. Parecia uma fuga. Apesar de queo Deutsch e o Aimé mais me pareciam estarsendo sequestrados... O que se passa,afinal?...

A cena retorna para a oficina de SD.

GEORGES (para Prado)... o fato é que, naquele dia, todos osmembros da Comissão, inclusive os que nãoestiveram em St. Cloud, não foramencontrados em parte alguma de Paris. Hojetemos informações não confirmadas de queo “esconderijo” foi em Neully, na casa decampo do general André. Mas ele não estavalá. Quem estava era o Coronel Renard.

PRADO- Na casa do general André? Deus meu, acoisa foi mesmo complicada... Alberto, achoque Você estava certo naquela estória de

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

desafiar a França em armas. (SD nadaresponde do divã) - Mas, conte-nos, Georges,e então?

GEORGES- Bem, o Figaro, vespertino, atrasou, mas saiu,no mesmo dia, com a notícia da vitória. Efazia a ressalva de que nenhum dos membrosda Comissão fora encontrado para homologá-la. Em matéria curta, o jornal especulou queo motivo devia ser a redação da ata dareunião, “pois não houve qualquer dúvida,para todos os que acompanharam a prova,da vitória do Senhor Santos-Dumont”. O fatoé que a população de Paris foi dormir, nodia 19, com a certeza da vitória. Mas acordouno dia 20 com o "Le Temps" - com o dobroda tiragem normal esgotada em menos deuma hora, e, como os demais jornais -noticiando apenas a indecisão da Comissão.Só o L’Illustration deu a fuga da Comissão eos fatos tais como ocorreram. O mau humortomou conta de Paris, como eu nunca haviavisto antes. Chegamos a pensar que a vitórianão seria homologada. Forças poderosasestavam envolvidas para impedi-la. À tarde,porém, volta o Figaro com a declaração deAlberto, aliás, genial, e na hora certa, dadistribuição do Prêmio para seus mecânicose os pobres de Paris. E com o testemunhode Chapin, que é gaulês ancestral e dereputação ilibadíssima, de que o trato haviasido feito com muita antecedência.

PRADO- Essa é boa!

GEORGES- O Figaro também publicou as desconexasdeclarações da Comissão. Bonaparte falouem levar aos tribunais essa infâmia, se oPrêmio não fosse concedido imediatamente.Mas os outros só falavam nas tais novas regrasque não foram obedecidas. O dirigível teriade estar estacionado antes dos 30 minutos enão apenas cruzar a linha de chegada. Então,para que aquela linha? Deutsch estava mudo.Realmente a coisa estava preta. A salvaçãofoi a declaração de Alberto que o Petit Journalpublicou quando perguntado se havia sido

comunicado das novas regras. Ao que elerespondeu simplesmente - e nunca foi tãoAlberto como naquela resposta: - Não!

PRADO (um tanto arrependido)- E eu não estava aqui. Poderia ter ajudadoAlberto...

GEORGES (em off sobre imagens de cenas ejornais que ilustram o texto))- O anoitecer do dia 20 foi terrível para osmembros da Comissão e para o Aero Clube.Telegramas e telefonemas de protestoschoviam sobre eles e os jornais de Paris.Edson, Marconi, Langley e vários cientistasreputados enviavam congratulações aAlberto, com cópias para os jornais e o AeroClube. Os mendigos de Paris anunciaram,com o apoio de alguns sindicatos, que iamapedrejar a sede do Automóvel Clube. Umatelefonação desenfreada sucedeu-se entreeditores, membros da Comissão eautoridades. Uma confusão! O jeito foiprotelar a decisão. E começaram a chegar asrepercussões do exterior. As piores possíveis!Os grandes jornais moderaram, mas osmenores bateram sem perdão, e atéconseguiram grande repercussão, pois todosqueriam ler o que publicavam. Ao ponto deum editorial do boletim de um Clube deXadrez da Espanha, assinado por um grandeenxadrista russo, ser reproduzido no Timesde Londres, que não resistiu à tentação dever as pauladas do mestre no amor própriodos franceses, publicadas em suas páginas.O enxadrista alegava que os desclassificadosdessa competição eram a Comissão e aprópria França, que perdia a credibilidadepara liderar o mundo na era do progresso. Earrematava com um cheque mate: regras nãopodem ser mudadas após o início do jogo; eesse jogo começou no dia em que foi inscritaa primeira aeronave para disputá-lo. Esseeditorial saiu no Times do dia 25 e, parahumilhação da xenofobia francesa, foireproduzido no L’Illustration.

PRADO (in)- Barbaridade!

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GEORGES (em off, sobre as imagens daComissão)- Finalmente as coisas começaram amodificar-se. Os membros da Comissão,favoráveis à concessão do Prêmio,começaram a sair do limbo. No dia 27 o "LeTemps" publicou um declaração enfática deDeutsch:

DEUTSCH (em in, cercado de jornalistas norestaurante do Automóvel Clube)- “Digam o que disserem, não há doisdirigíveis voando no mundo, senão apenasum; e é preciso vir até Paris para vê-lo”.

GEORGES (continuando, in)- Para mim essa declaração é duplamentefeliz; pois sai do xeque do enxadrista:restaura a França e a vitória de Alberto aomesmo tempo, tornando-as indissociáveis.Amanhã, não tenho dúvidas, Alberto seráconsagrado vencedor.

PRADO- Ufa! Estou perplexo, Georges. PobreAlberto, sem um patrício para apoiá-lo nomeio dessa intriga! Bem falou a PrincesaIzabel. Se isso não o comprometesse,Georges, o estado brasileiro estaria a lhedever um agradecimento formal. Mas poderiaprejudicá-lo; o chauvinismo na França émuito forte. (e, tirando o relógio) - Puxa,quase dez horas! É hora de sairmos. E estouà pé, vim com Alberto...

GEORGES- Eu também. E a essa hora começa a ficar

difícil uma condução. Acho melhor irmoslogo. Alberto... Alberto!... Ora, Albertodormiu...

SD dormia placidamente no divã.

PRADO- Melhor o deixarmos como está. Vê-se queestá cansado. Esses dias devem ter sidodifíceis para ele. Vamos?

Georges arrumando seus papéis, concordou

GEORGES- Só penso agora como sair daqui sem ele?

PRADO- Eis aí uma boa pergunta. Como sair daqui?Vamos ver (chegou perto da porta e começoua apalpá-la tentando achar algum mecanismode abri-la. Nada. Deu-lha então, como quemnão quer nada, duas pequenas batidas. Elaabriu-se e surgiu August)

AUGUST- Ah, senhores. Eu aguardava aqui esperandopara abri-la às dez, como determina o patrão,caso não me chame. Às vezes ele dorme nodivã e eu preciso vir acordá-lo. Ele dormiu?

PRADO- Sim, August, mas depois Você cuida dele.Leve-nos até a porta para que possamosprovidenciar uma condução...

AUGUST- Eu já providenciei, senhor. Consegui apenasuma cupê para os dois, se não se importam.Nessa hora não é fácil consegui-las. Estáesperando na porta. Desejam sair agora ouaceitam um lanche? Está servido na mesa...

PRADO- Para mim já está tarde, August. E Você,Georges?

GEORGES- Obrigado, August, mas prefiro aproveitar acarona do senhor Prado. Tenho também deir agora. Muito obrigado. (e saemconversando pelo corredor)

FIM DA PRIMEIRA PARTE

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PARTE 2

A VINGANÇA DE ÍCARO

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PARTE 2

SEQUÊNCIA 37 (Brasil, 1903)

À bordo do Atlantique, SD e Prado observama entrada da Baía da Guanabara. (legenda:Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1903) Oscontornos das belas montanhas, com o Pão-de-Açúcar (ainda sem o bondinho) emprimeiro plano, e o Corcovado (ainda sem oCristo) por trás, vendo-se ao fundo a Pedrada Gávea e os Dois Irmãos enchem de alegriae de lágrimas o rosto do inventor. Pradoporém estava triste e taciturno.

SD- O que há com Você, Pradô. Até parece queestá enjoado da velha pátria...

PRADO- Não é isso, Alberto. Pressinto que essa seráa nossa última viagem juntos de Paris paracá. Já começo a ficar saudoso da nossaconvivência em Paris. Rodrigues Alves quermudar tudo e devo ir para Washington.Nabuco deverá assumir Paris...

Ouve-se o ribombar de morteiros de cimado Pão-de-Açúcar, justamente quandopassavam perto dele. Uma enorme bandeirado Brasil é desfraldada e uma tela ainda maiorsurge abaixo dela com os dizeres: “SALVESANTOS-DUMONT”. Lá de cima, um grupode alunos da Escola Militar acenava para onavio. Começa a chover leve. O navio iniciaas manobras de atracação, comboiado pordezenas de embarcações de todos os tiposcom diversas faixas hasteadas homenageandoo inventor.

Ouve-se, na trilha sonora, a modinha deEduardo das Neves, composta para oinventor, com letra e tudo:

A Europa curvou-se ante o BrasilE clamou parabéns em meigo tomBrilhou lá no céu mais uma estrela

E apareceu Santos-Dumont

(estribilho)Salve, BrasilTerra adoradaA mais faladaDo mundo inteiro!

Guarda teus filhosLá nessa alturaMostra a bravuraDe um brasileiro

Assinalou p’ra sempre o Século VinteO herói que assombrou o mundo inteiro;Mais alto do que as nuvens, quase Deus,É Santos-Dumont, um brasileiro.(repete estribilho)

Sob a música uma sequência de imagens:SD descendo do navio em meio à multidãode autoridades. Discursos empolados. Desfilena landau do Presidente da República, aolado de Prado e do Prefeito, pela Rua doOuvidor lotada, em festa, com serpentinas,carros alegóricos, batuques de negros, etc.Discursos exaltados. Encontro com oPresidente da República no Palácio do Catete.Almoço-banquete no Clube dosDemocráticos para 500 talheres. Discursosalucinados. Festa na Federação dosEstudantes do Brasil, com milhares de moçose donzelas. Outra festa, mais grã-fina, naresidência do Prefeito. Mais discursos. Doishomens de fraque e cartola conversam.

O PRIMEIRO HOMEM- Mas ele não trouxe mesmo o seu

dirigível?

O SEGUNDO HOMEM- Claro que não. É um

snob. Só voa naEuropa ;

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já no Brasil...

Jornalistas cercam SD

UM REPÓRTER- É verdade que o Senhor não trouxe o seubalão dirigível?

SD- Como já disse em várias oportunidades,precisávamos ter uma usina de hidrogênio,um hangar bem equipado, um grupo demecânicos com excelente formação técnicae um Aero Clube em local apropriado.Pessoalmente, o que eu mais desejaria emminha vida, seria poder realizar minhasexperiências aqui, junto aos meuscompatriotas.

OUTRO REPÓRTER- Mas temos informações de que os seusbalões dirigíveis são tão pequenos quechegam a caber numa maleta de viagem...

SD- Isso é apenas uma brincadeira...

À noite Teatro Lírico. O Fausto. Toda asociedade carioca presente. Discursos loucos.Discursos sóbrios. No intervalo da peça,discursos. Enfim, exaustos, SD e Pradochegam à casa do Dr. José Carlos Rodrigues,que os anfitrionava. Ao entrar, numacarruagem fechada, passam por um tumultodo lado de fora. Um criado cochicha algo aRodrigues.

SD- O que é isso?

RODRIGUES (descendo da carruagem nopátio da mansão)- É um grupo de seresta querendo fazer umaserenata em sua homenagem. Mas já estámuito tarde. Os senhores estão exaustos,precisam repousar. Estou mandandodespachá-los.

SD (acompanhando-o)- Dr. Rodrigues, o Sr está dizendo que o povo

do meu país está aí fora desejando prestar-me uma homenagem? Se assim é, eu peço-lhe que faça-os entrar; faço questão derecebê-los...

RODRIGUES (tentando convencê-lo)- Desculpe, Sr. Santos-Dumont, mas imagineique estivessem cansados depois de tantasfestas e homenagens, por isso...

SD (interrompendo-o)- Sim, meu amigo, estou exausto, arrasado,mas dos discursos intermináveis, dos fraquese cartolas, das sobrecasacas e dos chapéusde coco nesse calor infernal. E de jornalistasimpacientes e um sem número deautoridades que passaram o dia a amarrotar-me e a apertar-me pelo Rio afora. Agora, oSr me diz que tem aqui um grupo deseresteiros, gente boa de viola debaixo dobraço. O que eu mais queria, desde quecheguei, é poder abraçá-los, amarrotar-nosjuntos e sentir o calor do verdadeiro afeto ecarinho da nossa gente. Mais uma vez eupeço-lhe, Dr. Rodrigues, desejo recebê-los!E sirva-lhes do bom e do melhor. Não sepreocupe com as despesas. Essas eu façoquestão...

RODRIGUES (interrompendo-o polidamente)- De modo algum, Sr Santos-Dumont, emminha casa recebo eu, se me permite.Mandarei providenciar imediatamente umarecepção com tudo o que pode haver demelhor em nossa modesta residência.Concordo com o Senhor; o povo é que traza verdade dentro do peito. Permita-merecebê-los junto aos senhores; e não se falamais em contas, ou ficarei ofendido. (e, parao mordomo) - José, manda entrar todomundo. Receberemos no salão de festas. (e,para o criado) - Alemão, providencie asbebidas na adega e peça a Josefina e aGremilda para preparar os canapés e ossalgadinhos. Vamos, todos na função!

Os criados saem a cumprir as ordens.

SD, Prado e Rodrigues à porta do salão defestas imenso, cumprimentam um a um do

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

povaréu que vai entrando, com o seuacanhamento desconfiado e os seusinstrumentos nas mãos. Eduardo das Neves,elegantérrimo, é o primeiro a entrar,cumprimenta Rodrigues e Prado e abraçaforte SD, como se fosse um irmão. Emseguida encarrega-se das apresentações.

EDUARDO DAS NEVES- Este é o Ventura Careca, da lira;- Este é o Sátiro Bilhar, do violão baixo;- O Quincas Laranjeiras e o Chico Borges,violões;- O Mário Álvares, o Galdino, o João Rippere o José Cavaquinho, dos cavaquinhos;- O Irineu de Almeida e o Alfredo Leite, oconhecido Timbó, dos oficlides;- O Passos, do Corpo de Bombeiros, oGeraldo, dos Correios e Felisberto Marques,flautas;- O Lins de Souza, o maior piston do Brasil;- O Lica, o rei do bombardão;- O Sinhô, nosso Sinhô, mestre-compositor,trazendo a bandeira nacional;- E o garoto Villa-Lobos, rapaz de muitofuturo, da ocarina.

E vai passando a moçada, a turma dos morrosenchendo o salão burguês. Criados servembebidas em copos de cristal, salgadinhosservidos pelas mucamas, tudo sendo aceitocom muito acanhamento e um medo que sepéla de dar vexame. O pessoal não sabecomo comer os bocados e deixam cair

pedaços, ninguém sabe o que falar. SD, comuma energia fantástica, parece que estácomeçando o dia, e, animado, quebra o gelo.Pega uma tacinha e serve ele mesmo umacachaça e propõe um brinde ao Brasil. Todosexultam e relaxam; alguém pede música, masSD pede a palavra; - agora é a minha vez!

SD- Desejo expressar a minha gratidão pelocarinho que as senhoras e senhores meproporcionam aqui. Digo-lhes, sinceramente,agora sim, estou no meu país, muitoobrigado! (aplausos veementes)

Forma-se a roda; começa a música:

“A Europa curvou-se ante o Brasil... etc”. Acâmera passeia de grua por cima da festaanimada com o povo cantando feliz e SDabraçado a Eduardo das Neves e Villa-Lobosfazendo coro também.

SEQUÊNCIA 38 (O novo "Le Temps")

Inauguração da nova sede e da nova gráficado "Le Temps". Clima de festa na casa.(Legenda: Paris, 3 de fevereiro de 1904)Georges está ao lado da nova e imensarotativa de dois andares, uma Marinoni últimomodelo, a primeira rotativa a papel embobina a imprimir um jornal no mundo. Ele

conversa com um grupo deoficiais gráficos que aguarda a

"... uma Marinoni último modelo..."

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hora solene de acionar a máquina, logodepois que o Prefeito de Paris arrebentar umagarrafa de champagne na sua pesadaestrutura metálica.

GEORGES (para os atentos operários que oouviam formando uma pequena platéia)- Foram 14 a 9! Uma vitória total! 14 votospara Santos-Dumont! O Prêmio Deutsch eradele e a alegria voltava a Paris! Nosso cálculodava 12 a 11. Não sabemos até hoje quemrecuou do outro lado. Foi um grande dia. Ànoite, ao entrarmos no Maxim’s, todoslevantaram-se para aplaudi-lo...

Um funcionário do jornal muito alinhado,de terno de listras à la Santos-Dumont echapéu de coco chega ao grupo e interpelaGeorges.

O FUNCIONÁRIO (Lazare)- O Sr Adrien já está vindocom o Prefeito. Pediu paradeixar tudo pronto.

GEORGES (para osoficiais)- Mas parece que já estátudo pronto, não?

O CHEFE DA GRÁFICA- É só mandar rodar, quedisparamos na mesmahora!

Lazare sai.

GEORGES- Quem é ele?

O CHEFE DA GRÁFICA- É o senhor Lazare Weiller. Com a ampliaçãodo jornal, foi promovido a assistente deredação na editoria de política. Esse já foide tudo aqui; foca, carregador-de-galés,ajudante de tipógrafo, revisor, redator denecrológios e tradutor de telegramas eminglês. Ninguém gosta dele, o homem pareceque passa uma antipatia congênita. Mas subiumuito em pouco tempo; olha só como está

agora! Um almofadinha! Nem cumprimentamais os antigos colegas de oficina, reparou?Não lembra-se dele, Georges?

GEORGES- Não é aquele foca que ficava só levando erecebendo recados do Adrien?

O CHEFE DA GRÁFICA- Ele mesmo, um puxa-saco! Nem o SrHébrard simpatiza com ele. Dizem que é filhode banqueiro judeu; e que o pai pediu oemprego, mas sem moleza para o garoto. Seé verdade, não sabemos, mas é a explicaçãoque temos por não ter sido despedido. Jornaisestão cada dia mais precisando dos bancos...Olha, chegaram!...

A porta do mezanino abre-se e surge Adrien à frentedo Prefeito de Parisseguido de uma vastacomitiva de senhoras ecartolas. Vinham com ele oSr Gordon Benett, oEmbaixador Henry White,um grupo de oficiais doexército liderado peloCoronel Renard, algunsconhecidos banqueiros eautoridades, todos comrespectivas esposas norigor da moda em Paris. Narabeira, o jovem posudoLazare Weiller. Georgesdirige-se para a beira da

escada de ferro por onde o grupo começa adescer. No caminho encontra SD, que entrarapela porta da gráfica em busca de Georges.SD está tremendamente elegante.

SD (caminhando ao lado de Georges)- Vim só para dar um abraço em Adrien eem Você. Tenho compromissos ao Teatrohoje. É a estréia da bailarina Aida D’Acosta,uma lindíssima cubana. Levo comigo algunsamigos brasileiros.

GEORGES- Recebi convites para amanhã. Hoje, como

"...SD está tremendamente elegante..."

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

vê, não posso ir.

SD- Se eu gostar, é provável que repita a dose.Estou dando uma folga a mim e aos meusmecânicos por estes dias. Bem, cá estamos...

Adrien desce com cuidado a escada de ferro,seguido pelo Prefeito e a comitiva,explicando em voz alta cada detalhe da novagráfica. Ao ver SD e Georges cumprimentou-os e os apresentou ao Prefeito que, ao pararpara a conversa, paralisou toda a desajeitadafila que descia por traz dele na estreitaescada. Mas isso não perturbaria o Prefeito.

O PREFEITO- Não precisa apresentar-me ao SenhorSantos-Dumont, Adrien. Já o condecorei juntoao Primeiro-Ministro com a Ordem deCavaleiro da Legião de Honra. Esse moçotem levado Paris às primeiras páginas dosjornais do mundo, quase diariamente. AFrança é grande devedora dos seus serviços.Só espero, algum dia, ser um dos seuspassageiros nos ares.

SD- Sou muito grato pela sua confiança, SenhorPrefeito. Tenha toda a minha frota à suainteira disposição. Mas, fiquem à vontade,cavalheiros, não desejo perturbar a suapreleção, Sr Hébrard; antes desejaria ouvi-la, se me permite...

ADRIEN- No que muito nos honra, Sr Santos. Estavahá pouco referindo-me a um grande inventorno campo das Artes Gráficas. Falo do SrHipólito Marinoni, que infelizmente nãopode estar presente por motivos de saúde.(e, continuando, enfim, a caminhar, recomeçaa falar no tom em voz alta para todos) - Comoeu dizia, senhoras e senhores, o Sr Marinonitem sido o maior responsável pelos avançosda indústria gráfica nestes últimos dez anos.Desde os grandes Aldus Manutius e ClaudeGaramond, no Séc. XVI, e Bodoni, no Séc.XVIII, que não temos avanço tão visível nessecampo. Seus inventos são incontáveis e não

há, hoje, uma só gráfica no mundo que nãopossua alguns de seus equipamentos emáquinas. Essa que agora verão rodar apróxima edição do "Le Temps" é sua últimagrande invenção: a primeira rotativa aimprimir em papel bobinado! Umaperfeiçoamento da rotativa que o SrMarinoni inventou há sete anos e pôs afuncionar no Petit Journal. Tira mais de 50000 exemplares por hora! Comprei- a namaquete, na Grande Exposição de 1900, comum pequeno sinal em dinheiro. (e, comironia) - Ainda não sabia como iria pagar orestante... (todos riem espirituosamente)

O PREFEITO- Ah, mas isso é típico de Adrien! Ele é oúnico francês ousado que conheço. Por issogosto tanto dele. É um homem que acreditaem si mesmo e no futuro do seu trabalho.

ADRIEN- Costumo dizer, Sr Prefeito, que confio nomeu sexto sentido. Em 97, o Sr Marinoniofereceu-me sua primeira rotativa e achei quenão era a hora. Quase arrependi-me, porqueele vendeu-a ao Petit que cresceu tanto aoponto do seu nome tornar-se uma fantasia.Mas em 1900, quando vi a bobina de papele percebi as potencialidades dessa máquina,não vacilei; assinei o contrato... (e, para oChefe da Gráfica) - Está tudo pronto?

O CHEFE DA GRÁFICA- Tudo pronto, Sr Hébrard.

Um garçom aproxima-se trazendo umaenorme garrafa de champagne amarrada pelogargalo num barbante preso, na outra ponta,no topo da estrutura da máquina. Adrienpassou-a ao Prefeito.

O PREFEITO (segurando a garrafa no pontode atirá-la em direção à máquina)- Que essa máquina imprima os melhoresjornais para os parisienses, e que sejam felizesos seus proprietários... (atira a garrafa)

O Chefe aciona uma alavanca e a máquinaroda num grande estardalhaço de rolos e

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engrenagens. A câmera passeia, por cima,nos detalhes da máquina em movimento. Acomitiva segue Adrien e o Prefeito até a outraponta da máquina, onde já começam achegar os primeiros exemplares prontos;impressos, cortados e dobrados. Adrienabaixa-se, pega um deles e exibe a suaprimeira página a todos, que estampa, emgrande formato, a foto do Prefeito cortandoa faixa do novo prédio do "Le Temps", hápoucos minutos atrás. Todos exclamamadmirados, procurando-se também nafotografia.

O PREFEITO (olhando a fotografia comatenção)- Mas... como, Adrien? Não foi aquela quefizemos há pouco menos de meia hora?

ADRIEN- Exatamente, Sr Prefeito, eis a nova imprensa.Amanhã, quando o Sr sair do Teatro e for aum restaurante, lá estará chegando as críticasdo "Le Temps", sobre a peça que o Sr acaboude ver.

O PREFEITO (exibindo a folha a todos)- Mas é uma maravilha, não acham? Nãotenho dúvidas, Adrien, que o seu jornal foio primeiro a chegar ao Século XX.

Um jornaleiro passa distribuindo exemplaresdo jornal a todos.

ADRIEN (como para encerrar um show)- Bem, senhoras e senhores, acabam deconhecer o coração do novo "Le Temps".Agora, aguardamos a todos no hall principalpara um pequeno coquetel. Sigam-me, porfavor. (e sai em direção à porta que dá parao hall)

Ao passar por Georges, cochicha em seuouvido.

ADRIEN (no ouvido de Georges)- Quero que fique até o fim docoquetel. Preciso falar com Você.

Georges balançou a cabeça concordando.

SEQUÊNCIA 39 (A “nova” imprensa)

Fim de festa. Os últimos convidadosdespedem-se. Alguns permanecembebericando. Funcionários encerram suastarefas. Adrien chama Georges, que estavaconversando com Lazare. Eles despedem-see Georges segue Adrien.

ADRIEN- Vamos à sua sala. Lá é mais difícil nosacharem. (encontram Louise, a sua novasecretária) - Louise, cuide de tudo; já fuiembora, entendeu? (pegam um elevador)

Descem no quarto andar e vão direto à novasala de Georges onde lê-se “GEORGESGOURSAT - EDITEUR DES ARTS ET DESSCIENCES”. Georges abre-a com sua chave.Entram na ampla sala, bem mobiliada, comuma grande escrivaninha com máquina deescrever, prancheta de desenho comiluminação própria, um jogo de sofás,armários grandes e embutidos na parede,tudo muito bem decorado e bem iluminado.Sentam-se cansados nos sofás. Adrien tira dobolso um pedaço de papel e dá a Georges.

ADRIEN- Chegou há cerca de dez dias. Preferi sófalar agora por causa das atribulações deinauguração.

GEORGES (lendo o cabograma)- Quem são estes senhores Orville e WilburWright? E que lugar é este? Dayton, Ohio?

ADRIEN- Suspeito que seja coisa do Benett. Aliás,não digo apenas do Benett. A ele cabe essaparte, a publicidade.

GEORGES- E quem viu esse vôo? É umanotícia importantíssima, Adrien,

diabos! Se for verdade...

ADRIEN (cortando)- Não é verdade. Nem os jornais de Benettpublicaram essa balela. Apenas um balão

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

de ensaio em jornalecos menores, só paramedir a repercussão, entende? Em todo ocaso, mandei meu agente até lá, nesse confinsdo mundo. Bem onde afirmam que voaram,passa uma linha de bonde. E, exceto algunspássaros que costumam arribar ali há séculos,ninguém viu nada voando, muito menos umamáquina mais pesada que o ar.

GEORGES- Bem, então isso não tem nenhumaimportância; melhor é esquecê-los...

ADRIEN- Aí é que eu digo não, Georges. Minhasinformações e meu sexto sentido começama montar o quebra-cabeças. Acho que osamericanos, se não conseguem inventar amáquina aérea, já começam a inventar outracoisa. Estão inventando uma imprensa quedispensa os fatos reais. São práticos essesamericanos, não duvide, e não os subestime.O grande problema de jornalistas como nós,que precisam encher jornais todos os dias,é, e Você sabe disso, a dificuldade de se obtera nossa matéria prima principal, isto é, osfatos. Então eles resolvem essa dificuldadecriando uma imprensa que não precisa deles;simplesmente inventa-os! Ou criam lendas.Os “fakes”, como eles dizem. Quem vaiconferir?

GEORGES- Outros jornais; nós, sei lá; quem quiser;isso é loucura, Adrien!

ADRIEN- Pode ser; mas aí está! Quantos têm recursospara mandar alguém naqueles confins, econferir uma coisa dessas? E, uma vezconferido, de que adianta? Foi um jornalecoque publicou; o "Le Temps" não pode ficarcontestando um jornaleco qualquer. Seriaentrar no jogo! E dar mais publicidade aoblefe! Mas essa publicação pode valer comodocumento amanhã... E começa a criar aomenos uma lenda. Benett gosta de repetiruma expressão que diz ser dele, mas nãocreio que seja: “quando a lenda supera arealidade, imprima-se a lenda”! É uma boa

máxima! Essa história me cheira a balão deensaio; estão em fase de testes, percebe?

GEORGES- Não muito, Adrien; perto de Você sempreme sinto como um principiante...

ADRIEN- Tenho conversado com alguns militaresbem informados. A questão da aeronáuticaé assunto em todos os quartéis das grandesnações. E tratado e pensado a portasfechadas, como segredo de estado.

GEORGES- E o que pensam os militares? O que estáme dizendo é que eles agora tambémpensam, não é? De fato, o mundo estámudando muito...

ADRIEN- O que pensam não interessa. Interessa oque decidem! São homens que vivem daguerra; com guerra ou sem guerra.

GEORGES- Ótimo; então reformulemos: o que estão adecidir de tão grave?

ADRIEN- Quanto à aeronáutica, posso assegurar quea ala de maior peso já descartou os maisleves que o ar. Nunca engoliram balões edirigíveis. Acham caros, morosos,desajeitados para a guerra. É facílimo sabotá-los e como alvo são excelentes, muito maisagora que os canhões ganham maior alcancee pontaria. Nisso têm razão. Nós mesmosconcordamos. O problema haverá de serresolvido com o mais pesado que o ar.

GEORGES- Mas pretendem fabricá-los apenas nosnoticiários de jornalecos irresponsáveis?

ADRIEN- O que sabem é que está próxima a horadessa solução. E os americanos preparam-separa abocanhar suas patentes ou contestaroutras que não as suas. Daí essa balela de

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Ohio. Para eles não interessa quem solucionea questão. Eles a compram e dão o crédito aquem lhes convier. E é melhor que tenhamalguém pronto, na realidade ou na lenda,para recebê-lo.

GEORGES- Mas terão de obter a conivência doverdadeiro inventor, e nem sempre...

ADRIEN- Para os americanos não há dúvidas de quea terão. Acreditam na força do dinheiro eestão comprando tudo pelo mundo afora. AFrança tem sido a campeã desse leilão; estáse vendendo toda para eles.

GEORGES- Como assim, Adrien?!

ADRIEN- Os franceses são conservadores,provincianos e pouco audaciosos. Querema segurança individual e a certeza do negóciolíquido e certo. Os americanos são jogadores,blefadores e aventureiros; aceitam qualquertipo de jogo; não se preocupam com osescrúpulos. Veja o caso do "Le Temps". Nãoconsegui dinheiro em banco europeu algum,muito menos francês, para essa ampliação.Bastou o Benett elogiar-me para umbanqueiro americano, que logo o dinheiroapareceu; e em condições irrecusáveis! Tivede fazer o negócio. E é o que estáacontecendo em surdina pela França inteira.Tem dinheiro americano até nas ampliaçõesdo Moulin Rouge, Georges.

GEORGES- Sim, mas voltando à aeronáutica...

ADRIEN- Ainda faço fé naquela solução de quandoo contratei, lembra-se?

GEORGES- Claro; é nela que continuo a trabalhar.

ADRIEN- E o que ele tem feito em relação ao mais

pesado que o ar?

GEORGES- Está em franca atividade. Tudo em sigilo. Eprocura dar a entender que está fora dopáreo. Está escaldado, teme sabotagens, ecom razão; americanos nem pintados de cor-de-rosa. Acha que o Benett está envolvidonas sabotagens, porque em Saint Louis...

ADRIEN- Não creio. Já lhe disse, a parte do Benett éa publicidade. Espionagem e sabotagem éassunto de estado. A Embaixada Americanaaqui não passa de um antro de espiões.Suspeito do próprio Henry White. E... comoestá o nosso arquivo secreto sobre Santos-Dumont?

SEQUÊNCIA 40 (Álbum de retratos)

Georges foi até um dos armários e, com suachave, abriu as duas portas deixando à mostrao conteúdo repleto de pastas, arquivosfotográficos de negativos e cópias, e umcofre.

GEORGES- No cofre guardo o que é confidencial,inclusive as anotações sobre o mais pesadoque o ar (retira duas grandes pastas de cópiasfotográficas e põe sobre a sua mesa)

Georges convida Adrien para olhar os álbunsde fotografias. Abre um deles nas fotos dedirigíveis. A câmera passeia por diversas fotosenquanto Georges folheia o álbumdescrevendo a Adrien o que está vendo.

GEORGES- Muitas lendas se criaram em Paris desdeque Alberto começou a ter sucesso com seusdirigíveis, enriquecendo o imagináriopopular. Dizem até que, de tanto olhar paracima, os parisienses começaram a enxergarcoisas do outro mundo. Houve quem jurasseter visto um corcunda no alto de uma dasTorres da Catedral de Notre Dame!? (páranuma página)- Ah, aqui é o Número 6. Ele

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

foi copiado por vários aeronautasamericanos, ingleses e franceses. NaAlemanha, o Conde Ferdinand Von Zeppelinconstruiu um exemplar monumental. Mas ooriginal quase encerrou seus dias em Mônaco(fotos de Mônaco)

A foto do hangar de Mônaco ganha vida acores enquanto Georges narra em off.

GEORGES (em off)- No início de 1902, a convite do príncipe deMônaco, ele foi para Monte Carlo. O governode Mônaco providenciou-lhe tudo, conformesuas instruções, e Alberto construiu lá umhangar bem equipado para o seu Número 6.

Duas crianças, netos do príncipe, de 8 e 10anos, sob os aplausos da nobre e engalanadaplatéia, abrem sozinhas os grandes portõesde correr do hangar, na sua festa deinauguração (Legenda: Monte Carlo, 19 dejaneiro de 1902)

GEORGES (ainda em off)- Lá ele fez vários vôos de exibição para oêxtase dos senhores Eiffel, Rochefort,Eugênio Higgins e, como não poderia deixarde ser, Sr James Gordon Benett. Em 14 defevereiro deu-se um acidente, tambéminexplicável, mas sem maioresconseqüências, pois Alberto parece gozar dealguma proteção do demônio. Decidiu entãoretornar a Paris.

A cena volta para Georges mostrando o

álbum a Adrien.

GEORGES (in)- Aqui é o Número 7, projetado para disputarcorridas. Com ele foi para a América disputaro Prêmio de Saint Louis. Um dia antes dacorrida teve o seu dirigível sabotado aindanas caixas de transporte. (cena da mão deum homem, com um afiado estilete, adilacerar a seda do invólucro, ainda na caixade transporte, após arrombá-la, num depósito

"...o Nº 7, projetado para disputar corridas, sabotado ainda nas caixas de transporte."

"... o Nº 6 original quase encerrou seus dias em Mônaco..."

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portuário escuro) - Tudo bem debaixo dasvistas da equipe de Benett que tinhaexclusividade na cobertura do evento, era oseu mentor e patrocinador. Aqui temos umasbelas fotos do Número 6 em performances...

De novo as fotos ganham vida a cores emostram uma sequência de planos doNúmero 6: voando rasante sobre o lago dojardim dos Rothschild e assustando umpescador que por ali se achava; levando ogaroto Clarkson Potter, de 7 anos, parapassear nos ares após pousar em meio àgarotada que jogava futebol em Bagatelle;assustando moçoilas em pic-nics ao chegarsilencioso, por cima, ameaçador, como sefosse um extra- terrestre; passando em vôosrasantes sobre plantações de trigo,assustando os lavradores, etc...

Volta ao álbum.

GEORGES (in)- Chegamos às suas últimas vedetes; oNúmero 9, o menor dirigível do mundo, queParis já apelidou “La Balladeuse”, e o Número10, o seu “Omnibus aéreo”. Essa foto é doNúmero 9, sobre a parada de Longchamps,evoluindo sobre as tropas e 200 000espectadores.

Outra vez a foto ganha vida a cores (Legenda:Paris, 14 de julho de 1903) O Número 9 evolui

graciosamente sobre as tropas e praticamenteestaciona diante do palanque dasautoridades, nuns 30 metros de altura. Traz,desfraldada, uma faixa com as iniciaisPMNDN (Por Mares Nunca DantesNavegados), do verso de Camões. No silênciogeral que se formou, SD, da barquilha doNúmero 9, dispara uma salva de tiros derevólver, em posição de sentido, e com ochapéu seguro ao peito; causando um grandesusto no palanque. Feito isso, liga o motor,acena ao povo, que o aplaude, e vai-se.

De volta ao álbum.

ADRIEN (sorridente)- Isso deu o que falar. Houve até abertura deinquérito no Exército. Dizem que o convitefoi uma galhofa de alguns oficiais bêbadosno Le Cascade.

GEORGES (rindo também)- Pensavam que a façanha seria impossível.Pior para eles, cada um pegou dez dias decadeia. (continua folheando o álbum) - Essafoi uma sensação em Paris. A cidade já seacostumara ao som do motor do“Balladeuse”. De repente o motor parou empleno ar, após falhar algumas vezes. Todosolharam para ver o que era. (de novo, a fotoganha vida a cores)

GEORGES (continuando em off)- O dirigível estava à deriva e o seu audazpiloto saía da segurança de sua barquilha

equilibrando-se na frágilestrutura do

cordame, atéchegar

O SD Nº 9 - "La Balladeuse" ealgumas de suas peripécias sobreParis. Acima, no 14 de julho,evoluindo sobre as tropasfrancesas; e caminhando paraconsertar o motor em pleno vôo amais de 100 metros de altura.

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

ao motor. Isso a mais de cemmetros de altura! Suspense geral!Ele chegou até o motor e começoua consertá-lo em pleno ar. Enfim omotor pegou e ele percorreu de volta operigoso caminho até a barquilha. (continuoufolheando o álbum) - Este é o Número 10, oseu ônibus aéreo. Nessa foto o passageiro éo Príncipe Bonaparte.

Outra vez a foto ganha vida a cores. SD eRolland Bonaparte levantam vôo em St Cloudno enorme Número 10. SD ensina aBonaparte a comandar a aeronave. Este, decartola, fica deslumbrado com a ascensão,admirando os bosques por cima e a cidadeà sua frente.

Volta ao álbum.

ADRIEN- E essa, o que é?

GEORGES- É em Cabangu, a cidadezinha onde nasceuno interior do estado de Minas Gerais, noBrasil. Essa é a casa em que nasceu. (vira apágina) - E aqui, ele com Thomas Alva Edson,nos Estados Unidos... com Langley... aquicom Marconi... com Gustave Eiffel...

Enfim Georges fecha o álbume mostra a Adrien um conjuntode 12 rolos de filmes guardadosnum compartimento doarmário, abre o cofre, e retiradele um maço de papéis.

GEORGES- Este é o livro que Alberto vaipublicar sob o título Dans L’Air.Será editado por Eugéne

Pasquelle, por minha indicação. Noscomeços estava melhor, mais profundo erevelador. Mas, com as sabotagens, Albertoretirou dados e informações que preferiurevelar em outra oportunidade. Com ele achoque Alberto encerra o ciclo dos balões. Nessasua luta acabou por aprender alguns truques,Adrien, e não é mais o jovem ingênuo eidealista do início.

ADRIEN- Ainda bem, porque vamos precisar dessestruques!

GEORGES- Seu trabalho é todo feito em sigilo na suaoficina secreta.

ADRIEN- Eu sei; essa oficina secreta tem dado doresde cabeça nas embaixadas e no Palácio doGoverno. Todos sabem que ela existe masnão onde fica. E haja espião trabalhando,Georges... sei que Você a frequenta.

GEORGES- Sim, mas sob juramento.

ADRIEN- Diga a ele para ter cuidado.Governo algum gosta deestrangeiros fazendoexperiências secretas em seuterritório. E Você sabe comoage o poder...

GEORGES- O que eu posso assegurar,

O SD Nº 10, o "Omnibus Aéreo", o maior dirigível de SD. Abaixoevoluindo sobre o campo de St. Cloud. Ao lado, levando comopassageiro e aluno o Príncipe Rolland Bonaparte.

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Adrien, como francês e patriota, é que nadalá é feito ou pensado que possa prejudicar oestado francês, muito pelo contrário...

SEQUÊNCIA 41

Corte para a oficina de SD. Ele e quatromecânicos trabalham. Além dos três jáconhecidos, foi introduzido Levavasseur,especialista e construtor de motores àexplosão de petróleo. Estruturas enormes, dotipo celular, são produzidas na marcenariapelo eficiente Gasteau, observado de cima,pelo inventor, em sua barquilha suspensa.Num certo momento ele joga duas cordasque Gasteau amarra na estrutura e, ao seusinal, faz levantar a barquilha junto com aestrutura e a transporta, suspensa no ar, atéa área de montagem. Em seguida, dirige abarquilha até a cabine de testes de motorese a faz baixar bem ao lado de Levavasseur,que está testando um novo motor,observando-o pelo visor. Os dois olhamatentamente a máquina e os instrumentos demedição.

LEVAVASSEUR- Já temos 38 HPs.

SD- Preciso 50, Levavasseur. Vou redesenhá-lo.Penso dispor os cilindros em forma de V,para obter mais eficiência e rendimento.

LEVAVASSEUR- Teríamos de fundir um novo bloco...

SD- Mandaremos fundi-lo.

SEQUÊNCIA 42

Corte para o hall de entradada Ópera de Paris.Movimento grã-fino eelegante. SD, Georges,Pedro Rodrigues, MauriceFarman, todos em trajes de

gala aguardam o sinal para entrar.

MAURICE- Ontem a estréia foi magnífica, Georges. Elaestá belíssima. Parece uma figura saída deuma pintura de Gauguin. E os ritmos sãofantásticos, bárbaros. Depois da GrandeExposição ninguém precisa sair de Paris paraconhecer o mundo. O mundo vem até Paris!

PEDRO- Aida D’Acosta nos traz os ritmos calientesdas Américas central e do sul: a rumba, osamba, o tango, a macumba. São ritmosfortes... (toca o sinal) - Eis o sinal, vamos.

GEORGES (para SD, enquanto subiam asescadas)- Hoje haverá um número especial, com o SrDebussy ao piano, tocando uma composiçãofeita especialmente para ela, Alberto.

Cenas de Aida dançando no palco da Óperade Paris. Cortes para a platéia e os amigosno camarote. Cenas da Dança com Debussyao piano, tocando uma versão de “La Mer”.Ao final, aplausos de pé.

Saída do teatro, ainda no hall. Um repórterchega alvoroçado até SD.

O REPÓRTER- Senhor Santos-Dumont! Senhor Santos-Dumont!

SD pára e aguarda curioso. O repórteraproxima-se.

O REPÓRTER- Estávamos numa coletiva no camarim daSrta Aida. Perguntaram o que ela maisgostaria de fazer em Paris. Sabe o que eladisse?...

GEORGES (chegando juntoa outros repórteres einterrompendo o colega)- Ela desejaria voar em seusdirigíveis, Alberto. Hojemesmo essa declaração

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

estará nas páginas do "Le Temps". O que tema comentar?

SD (cercado pelos repórteres)- É muito delicado da parte da Srta Aida.Vou escrever-lhe um bilhete e se os senhoresentregassem-no eu lhes agradeceria. Me sintohonrado pela confiança da Senhorita...

SD tira do bolso interno do fraque umenvelope com cartão e uma caneta de ouro.Apoiado nas costas de Georges redige obilhete e passa-o aoprimeiro repórter.

Corte para ocamarim de Aida.A bailarina estádesfazendo a maquiagemfrente ao espelho enquantoa camareira penteia seus longoscabelos. Batem à porta. Acamareira vai abri-la e osrepórteres invadem o camarim.Aida retira o resto da maquiagempara atendê-los. O primeirorepórter entrega-lhe o bilhete.Aida, risonha e feliz, abre oenvelope e o lê em voz alta para osrepórteres que anotam tudo.

AIDA (lendo em voz alta o bilhete)- “Senhorita Aida D’Acosta. Soube que desejavoar em meus dirigíveis. Fiquei encantadocom a confiança da Senhorita e estou à suainteira disposição. Amanhã às 10 horasaguardo- a no Campo de St Cloud, e se otempo ajudar, espero poder satisfazê-la.Tenha-me respeitosamente, Alberto Santos-Dumont.” (ela lê o nome de SD dandogritinhos de alegria)

Aida cheira o cartãozinho e coloca-o sobreo peito, suspirando.

AIDA- Almíscar!... É de muito bom gostoo Sr Santos-Dumont! Digam-lhe queestarei lá.

SEQUÊNCIA 43

Campo de St Cloud. Uma multidão aproxima-se em landaus, tilburis, cupês, coches, fiacres,automóveis, triciclos, cavalos e carruagens.A Srta Aida D’Acosta chega acompanhadade seu empresário numa landau. A multidãoabre o caminho para que a landau estacionejunto ao Balladeuse, pronto para subir, comSD, em elegante traje esporte e chapéupanamá. Aida desce da landau sob os flashde pólvora dos fotógrafos e posa sorridenteao lado de SD.

SD- Será uma honra para mime meu Balladeuse levarmosa Senhorita num passeio

aéreo.

AIDA- Minha intenção, Senhor

Santos-Dumont, se não oofendo, é a de voar sozinha

em seu dirigível. Eu mesmaconduzindo-o nos céus, em total

liberdade.

Um silêncio tomou conta da platéia.SD não se perturba.

SD- Se é assim, o seu desejo será satisfeito. Masantes devo dar-lhe algumas instruções paracomandar essa aeronave.

E começa a ensinar à bailarina como pilotaro Balladeuse, detalhe por detalhe. Oempresário de Aida, impaciente e inquietodesde a manifestação de sua contratada,interrompe-os.

O EMPRESÁRIO- Desculpe-me, Senhor Santos; mas

tenho de fazer o meu protestoperante à minha contratada. (e, para

Aida) - Srta Aida, creio que nãodevemos nos arriscar assim; temos muitos

compromissos acertados...

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AIDA- Charles, querido, não se preocupe. É apenasum pequeno vôo. O Senhor Santos-Dumontafirmou-me que é absolutamente seguro.

CHARLES- Srta Aida, o Senhor Santos é um aeronautade ofício. A Srta há de concordar que o céunão é um palco...

AIDA- Como não? É o mais belo dos palcos! Vocêconhece cenógrafo mais criativo do que ocenógrafo do céu? Quero atuar nesse palco,Senhor Charles; ao menos uma vez! Porenquanto é exclusivo do Senhor Santos-Dumont. (e, para SD) - Por favor, continuesuas instruções.

SD olha para Charles como quem diz: - quefazer? - e continua a dar instruções à bailarina.A platéia permanece em silêncio total.Finalmente a bailarina entra na barquilha comfacilidade, apesar do complicado vestido queusava. SD dá a ordem para ligar o motor.Chapin obedece.

AIDA (graciosa)- “Lachez tout!”

O Balladeuse ascende suavemente com asorridente bailarina a comandá-lo, e começaa voar fazendo um largo círculo sobre aplatéia, em baixa altura. Depois sobe umpouco e distancia-se voando por cima doBois de Bolougne, como se fosse em direçãoà Torre Eiffel. Mas, ao longe, dá uma volta

perfeita e retorna perdendo suavemente aaltura, vindo em direção à platéia extasiada.Lentamente ele chega de volta ao ponto departida e já pode-se ouvir as risadinhassatisfeitas da sua comandante. Ela joga acorda guia.

AIDA- Peguem! Peguem!

Os mecânicos de SD agarram a corda epuxam forte para segurar o dirigível. Ele páranum solavanco perigoso, ainda no ar, masAida não se desequilibra e nem se perturba.

AIDA- Devagar, devagar! Assim podem estragá-lo...

Enfim ele é puxado até o chão, com Aidaradiante dentro da barquilha, a beijar eabraçar SD que é o primeiro a recebê-la sobos aplausos efusivos da platéia.

AIDA (ao sair da barquilha)- Podemos convidar o Senhor Santos-Dumontpara jantar conosco hoje, não é Charles? Osenhor aceitaria, Senhor Santos-Dumont?Logo após o espetáculo...

SD- Senhorita Aida, hoje sou eu quem a convidaem tudo. Tenho uma reserva permanente noMaxim’s. Após o espetáculo desejo levá-lapara conhecer os segredos do chef Verdoux.

AIDA- Oh, mas que elegante! O Maxim’s! Sim, euaceito, Senhor Santos-Dumont; eu aceito oconvite! Muito obrigada! (em seguida sapeca-lhe um beijo quase na boca)

A multidão se dispersa e SD coordena ainspeção do Balladeuse para que fique bemguardado no hangar. Georges aproxima-se.

GEORGES- Parece que temos um novo romance famosoem Paris?!...

"...ascende suavemente com a sorridente bailarina"...

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- Georges, eu gostaria que pensassem queeu sou viúvo e parassem de inventar históriase me perguntar tolices...

GEORGES- Tudo bem, mas o fato é que até hojeninguém havia voado solo em seus dirigíveis;nem mesmo os seus mais fiéis e experientesmecânicos. E hoje Você o entrega, empúblico, a uma bailarina?! E ainda quer noscondenar por estar inventando histórias?

SD (mudando de tom e passando o braçosobre os ombros do amigo)- Georges, já lhe disse que o segredo do vôoestá no equilíbrio.Observei a Srta Aida emsuas apresentações.Ninguém melhor queela conhece essesegredo. É perfeita! Voulhe contar agora um dosmeus segredos maisíntimos: tenho aulas debalé há quatro anos,todas as segundas-feiras, com a Senhorita Vestris...

GEORGES- A Senhorita Vestris?! Mas como conseguesem que ninguém o saiba? A Senhorita Vestrisé a bailarina mais famosa de Paris!...

SD- Mantenho com ela uma combinação secreta.Mando buscá-la cedo numa cupê alugada.Ela vem disfarçada de camareira particular evai para o meu quarto onde faço as aulas.Nem August e os criados percebem a trama,Georges. Acham que é apenas um prazerpessoal, metódico e bem pago. E suas aulastêm me ajudado muito nas performances depiloto.

SEQUÊNCIA 44

Oficina secreta de SD. Gasteau termina aúltima parte de uma grande estrutura celular,

ainda no esqueleto. SD observa-o, suspensoem sua barquilha, à média altura em relaçãoao pé-direito, e tendo, pendurado ao seulado, um modelo em miniatura do futuro 14Bis. Dazon e Chapin terminam, na área demontagem, frente às portas de saída daOficina, o Número 12, uma espéciecomplicada de helicóptero de duas grandeshélices. SD vai com sua barquilha aérea atéeles.

CHAPIN- Está quase pronto, senhor. Mesmo com ogiro contrário das hélices, não creio que váse evitar a rotação sobre o eixo central...

SD (pensativo,cofiando o queixo)- Ainda não dei coma maneira de resolveresse problema. Vouparalisar esse projeto.Sua solução definitivaexigirá algum tempo.

SEQUÊNCIA 45

Amanhece em Paris, com muita neve.(Legenda: Paris, dezembro de 1905) Na RuaWashington, o Sr Louis desce do carroção eabre os portões que dão para o seu pátio.Ao entrar, dois homens que o seguiampenetram furtivamente, sem que ele possavê-los. Súbito, o Sr Louis trava a carroça, dáduas batidas no topo da carroceria e, dedentro dela, saem dois gendarmes que dãovoz de prisão aos penetras.

O PRIMEIRO GENDARME- Quem são os senhores? O que desejam como meu tio?

UM DOS HOMENS- Nada! Estamos apenas interessados nacompra desse imóvel e queríamosinspecioná-lo.

O PRIMEIRO GENDARME- Então porque estão seguindo o tio Louis?

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

Se desejam mesmo comprar o imóvel sabemque não é ele que trata o assunto. É apenaso caseiro. O que querem? Falem, expliquem-se...

Um dos homens tenta sacar uma arma maso outro Gendarme é mais rápido e mete-lheuma cacetada na cabeça. O homem cai, oprimeiro Gendarme imobiliza o outro, e apitapara um carro do distrito que aproximava-se. Os homens são levados presos.

SEQUÊNCIA 46

Intensa atividade na Oficina secreta. Váriasnovas máquinas, prontas e em acabamento,entulham a área de montagem e mock-up.Dois diferentes desenvolvimentos dehelicópteros (Números 11 e 12), um estudoem escala de lancha-hidroavião, um enormee comprido invólucro de balão dirigível, emplena fase de corte e costura, e estruturascelulares grandes, parecidas com enormespapagaios.

Quando Georges entra na oficina, SD estásuspenso em sua barquilha ajudando Gasteaua amarrar uma das estruturas celulares parasuspendê-la presa à barquilha, e levá-la parauma outra área da oficina, liberando assim amarcenaria de Gasteau. A operação é bemsucedida, com Georges a observá-la daBiblioteca. Ao vê-lo SD faz um sinal paraque falem por interfone.

GEORGES (no aparelho da Biblioteca)- Pensei que jantaríamos no Le Procope, mas

ao que parece...

SD- Pedi ao Maxim’s que nos trouxesse umjantar, Georges. August já providenciou. Hojeé folga de Pierre e François e não posso meausentar daqui.

GEORGES- Espero que tenhamos tempo para nos falar.O assunto é urgente.

SD- Podemos começar, Georges, enquantocuido de montar essa estrutura. Ao acabar opessoal se vai, e jantaremos aqui mesmo (eolhando o relógio de pulso) - São 21:15 h.Terminaremos às 22. O assunto ainda é omesmo?

GEORGES- Sim, temos informações de que o GovernoFrancês estuda um meio legal de inspecionareste imóvel.

SD- Já sabem que é aqui? Ah, um momento,Georges (e, para Chapin, lá embaixo) - Umpouco mais para a esquerda, Chapin,isso...isso. Agora, mais à frente, assim... voubaixar, atenção, agora. (baixa a estrutura atétocar o solo) - Aí está, podem prender asferragens. (e, para Georges) - Então,Georges?...

GEORGES- Certeza mesmo não! Mas fortes suspeitas...Nosso informante relatou coisas

Uma das hélices do helicóptero Nº 12

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

inacreditáveis. Há mais de um ano vigiameste edifício!... Melhor será deixar essaconversa para mais tarde, é delicada...

SD- Tenho pressa, Georges. Devo ganhar doisprêmios neste ano. Mas, concordo com Você.Por que não toma um drink?

GEORGES- Vou aceitar alguma coisa; está um frioterrível lá fora. Mas, pelo que vejo, aindaempenha- se nos balões dirigíveis?...

SD- É mais do que isso, Georges. Depoisexplico-lhe. Trata-se do meu Número 14.

GEORGES- Número 14? Já? Pensei que...

SD- Saltei o 13, como já fizera com o 8, lembra-se? (e, para Gasteau) - Vamos começar a içara outra asa, Gasteau, dê-me os cabos.

Georges prepara uma boa taça de conhaquee senta-se à poltrona. Pega, ao lado, umexemplar do Dans L’Air e começa a folheá-lo.

Após algum tempo os mecânicos estão desaída vestindo os seus capotes. Levavasseure Anzani ficam esperando SD na casinholade testes de motores. SD sai da barquilha noquadrado central da Oficina e dirige-se atéeles, após convidar Georges a acompanhá-lo. Os quatro observam um motor de oitocilindros em V, dentro da casinhola de testes,em funcionamento aparentemente silencioso.

LEVAVASSEUR- Aí estão os seus 50 HP, senhor. É o nossonovo Antoinette: a 900 rotações por minuto!

SD- Perfeito! Veja, Georges, o primeiro motorque levará o homem aos ares num maispesado que o ar. Com ele vamos ganhar osPrêmios Archdeacon e do Aero Clube. (e,para os mecânicos) - Senhores, estão deparabéns. Divido com Vocês a glória de tê-lo tornado uma realidade!

SEQUÊNCIA 47

Primavera radiante em Paris. (Legenda: Paris,maio de 1906) SD anda a pé pela ChampsElysées, num elegante traje de frio. Ele respirao ar puro, sorridente, satisfeito. Todos quepassam cumprimentam-no cordialmente,sorrindo. Ele corresponde com gentileza.Num certo momento Chapin, dirigindo aMercedes de SD, estaciona ao seu lado. Elenão pára e obriga Chapin a acompanhá-loem marcha lenta.

CHAPIN- O Senhor vai à pé, Senhor Santos?

O 1º motor V8 do mundo:"Aí estão os seus 50 HP, senhor."

A Mercedes de Santos-Dumont

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SD- Sim, Chapin, uma boa caminhada nestelindo dia só poderá ser benéfica.

CHAPIN- Mas é grande a distância até lá, SenhorSantos.

SD- Preciso exercitar-me, Chapin. Faz parte doofício. Calculo que estarei no meucompromisso exatamente na hora aprazada,isto é, se o senhor me permitir, Sr Chapin...

CHAPIN- Fechou o negócio do galpão em Neully?

SD- Sim, Chapin, está tudo certo, amanhã Você,Gasteau e Dazon já podem começar aarrumá-lo. François e Pierre vão com Vocês.

CHAPIN- Ótimo, então posso ir preparando oscarretos. Avisei ao Sr Louis. Podemos fazerquatro ou cinco amanhã.

SD- Certo, Chapin, vejo Vocês à tarde.

CHAPIN- Então até de tarde, Senhor Santos. (e fazmeia volta no Mercedes)

SD continua a caminhar, cumprimentando atodos e chega na tumultuada travessia daPlace de La Concorde. Ali, o gendarmeencarregado do trânsito o reconhece e,gentilmente, com um sorriso escancarado,pára o trânsito para SD passar.

O GENDARME (tirando gentilmente o seuquepe para SD)- Por favor, Senhor Santos-Dumont.

SD (também tirando o chapéu e passandorápido para não atrapalhar ainda mais otrânsito)- Obrigado, Senhor Gendarme.

SEQUÊNCIA 48

SD chega ao "Le Temps" após a sua longacaminhada. Não demonstra nenhum cansaço.Entra no hall, pega o elevador e desce noquarto andar, indo direto ao Gabinete de“ADRIEN HÉBRARD - EDITEUR GENERALE”.É recebido na ante-sala pela secretária.

LOUISE (solícita, ajudando-o a tirar osobretudo, o chapéu e o cachecol)- Eles o aguardam, Senhor Santos-Dumont.Entre, por favor. (e abre a porta do Gabinete)

SD entra no Gabinete. Adrien e Georges jáestavam lá.

ADRIEN- Senhor Santos, nos horários o Senhor secomporta como um inglês. (e olhando o seupróprio relógio de pulso) - São exatamente10 horas! Como tem passado?

SD- Bastante bem, Sr Hébrard; Georges;senhores, estou à disposição!

ADRIEN (como sempre indo direto aoassunto)- Sr Santos, o que temos aqui é obviamentesigiloso. Contamos com a sua discrição.Nosso informante conseguiu-nos cópias derelatórios do serviço secreto francês sobreas suas atividades.

SD- O Governo Francês sempre honrou-me comnotáveis distinções, Sr Hébrard. Mas de todas,talvez seja essa a maior.

GEORGES- Não é hora para ironias, Alberto. A coisaestá ficando séria. Por isso o chamamos aqui.Ouça Adrien com atenção.

SD- Trago-lhes uma notícia que talvez contribuaum pouco para aliviar essa tensão. Compreium galpão em Neully e amanhã transfirominhas últimas invenções para lá.

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

ADRIEN- Se o problema se reduzisse apenas às suasinvenções finalizadas, Sr Santos, eu diria queo senhor tem razão. Mas não são apenas seusinventos o objeto da espionagem. Há igualinteresse no que se passa e como funciona asua Oficina secreta.

SD- Porque haverá tanto interesse logo emminha oficina, Sr Hébrard?

ADRIEN (folheando os relatórios)- Confesso que após ler estes relatórios atéeu fiquei curioso, Sr Santos. O senhor há deconcordar que um edifício aparentementeabandonado, sem chaminés, sem qualquerabertura de ventilação, sem que se produzao menor ruído ou som, sem que se veja umafresta sequer de luz durante a noite, mesmotendo uma cúpula transparente, e sem quenada ou ninguém entre ou saia dele horaalguma do dia ou da noite, seja uma oficinacapaz de criar, testar e construir máquinastão sofisticadas e prodigiosas como osinventos que o Sr tem nos exibido em Paris.

SD- Busco nos meus trabalhos a simplicidade ea modéstia; porque acham que os faço àsescondidas?

GEORGES- Alberto, Adrien está do nosso lado. Vamosprecisar da sua ajuda. Precisa confiar nele.

SD- Sr Hébrard, se não tive ainda a sua presençaem minha oficina é porque, sinceramente,não sabia do seu interesse em conhecê-la.Considere-se, desde já, meu convidado paraquando o senhor o desejar.

ADRIEN- Obrigado, mas o seu convite veio nomomento em que não poderia aceitá-lo,apesar da curiosidade. O Sr entenderáporque. Ultimamente a situação política vemse complicando e um editor de jornal comoeu deixou de ser o simples jornalista que

era. Está metido até o pescoço numa teia deinteresses e poderes sem os quais nãosobrevive. Minha visita à sua oficina nãopoderia ocorrer em sigilo; teria de reportar-me a esses poderes sob pena de perder-lhesa confiança e a sustentação. Eu prefeririaperguntar-lhe, Sr Santos, se não estariadisposto a abri-la para uma vistoria reservadade uma pequena comissão de autoridades.Isso os acalmaria e daria fim às especulações.

SD- Mas, Sr Hébrard, creio que, como uminventor, tenho o direito de preservar o meulaboratório e os meus experimentos no sigilonecessário, não? E não há lei que mo proíbafazê-los em minhas propriedades...

ADRIEN- Essa lei que protege a propriedade privadaestá por um fio, Sr Santos. Não fosse a Françaestar vivendo nesse caos, com uma mudançade Primeiro Ministro a cada seis meses, osmilitares a teriam derrubado. E já se desenhaum quadro de sério conflito na Europa. O“punho de ferro” alemão começa aincomodar de fato.

SD- O senhor sabe que coloquei a minha frotade dirigíveis à disposição do General André...

ADRIEN (pegando de novo os relatórios)- Sr Santos, no natal do ano passado doishomens foram presos tentando invadir umgalpão abandonado na Rua Washington. Umdeles foi identificado pelo meu informantecomo um dos suspeitos que fotografamospor ocasião das provas do Prêmio Deutsch.No distrito identificaram-se comofuncionários da embaixada americana e ocaso foi para esferas superiores, comosegredo de estado. Há dois anos especula-se sobre a existência de sua oficina secreta,onde seria ela, e que meios e recursosextraordinários dispõe. Em 1904, no dia dolançamento do seu livro, o Sr os autografavana Livraria do Sr Pasquelle enquanto doisagentes do serviço secreto visitavam a suaresidência disfarçados de inspetores do

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Corpo de Bombeiros.

SD- Sim, lembro-me, August os recebeu...

ADRIEN (em off, sobre as imagens da vistoriae da espionagem)- Vistoriaram todos os cômodos doapartamento e só encontraram um escritóriode trabalho com documentos pessoais e umacoleção das obras de Jules Verne.Encontraram também dois cofres; um grandenesse escritório e um pequeno, camuflado,no corredor. Ainda não suspeitavam daoficina estar bem ao lado. Essa veio com aprisão dos americanos. Passaram a vigiar asua residência. A freqüência de seusmecânicos era diária e lá permaneciam umexpediente inteiro. Fazendo o quê, Sr Santos?Foram medidas, no prédio anexo, vibraçõesque só poderiam ser produzidas pormáquinas possantes e, num tubo protegidopor uma espécie de tampa que aparece aolado do telhado, observou-se uma saída dear quente, pois a neve descongela à sua volta.O mesmo acontece, de dia, com a cúpula devidro. O carroção de carga de um tal de SrLouis, um surdo-mudo, tem sido seguido. Évisto descarregando em St Cloud e em VauGirard toda vez que o Sr apresenta um novoinvento. (agora, em in) - E muitos outrosdetalhes. Sei que Georges sabe de tudo, masestá sob juramento. Contudo ofereço-me paraintermediar uma solução, pois a justiçaacabará por conceder mandato que o obriguea abrir suas portas de um modo muitodesagradável.

SD- Sabem que o imóvel não pertence à mim,mas ao Banco Nationalle de la Suisse?

ADRIEN (consultando novamente o relatório)- Sim, aqui está. Mas isso é comum em Paris.Bancos suíços prestam-se a fazer fachadapara bons clientes. E tem bons advogados esão fiéis aos seus clientes. Nada conseguiram.

SD- E o que o Sr aconselha, Sr Hébrard?

ADRIEN- Todos sabem que o seu objetivo éconquistar o Prêmio do Aero Clube e a CopaArchdeacon. Só que dessa vez o Sr não vaiconcorrer só. Os Srs Bleriot e Voisin tambémpostulam os prêmios com suas máquinas. Opróprio Sr Archdeacon também pensa emdisputá-los e testou um planador, puxadopor uma lancha, no Sena. Há também o SrEsnault-Pelterie; ... e os irmãos Wright, queforam desafiados a comparecer com o seuaparelho, que até hoje só voou emcabogramas e notícias de jornalecos.

SD- Vi os testes do Sr Archdeacon, aliás,excelentes. Foram muito úteis para todos nós.

GEORGES- A idéia de Adrien é que a Comissão deAutoridades tivesse compromisso com aimparcialidade e o sigilo, visitando as oficinasempenhadas na disputa e verificando seusprogressos, com vistas a aproveitá-los aointeresse público, na paz ou na guerra. OGoverno e o Exército Francês estariamdispostos a colaborar financeiramente nosexperimentos.

SD- Não é má idéia, Sr Hébrard. Como escreviem meu livro, a função das aeronaves semostrará de fato nas guerras. Porém, eu nãoas faço para esse fim. E ainda não me inscrevinestes prêmios e não estou certo se voudisputá-los. Em julho ou agosto devo ter umaposição mais concreta. Começo essa semanauma bateria de testes em Bagatelle. Portanto,não vejo motivos para ser incluído agoraentre as oficinas visitadas.

ADRIEN- Senhor Santos, não me leve a mal; comodisse Georges, estou do seu lado. Mas devodizer-lhe que o nosso lado é o mais fraco.Cedo ou tarde não teremos como impedi-los de fazer o que desejam.

SD- Por enquanto, Sr Hébrard, confio na posição

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

..."uma híbrida estrutura, mista de dirigível e aeroplano"...

dos advogados doBanco Nationalle.Não poderãoforçar-nos em nada.

ADRIEN- Como queira, SrSantos, está no seudireito; e terá onosso apoio; pelomenos enquanto foro dono desse jornal. Mas, com a suapermissão, vou repetir uma frase queLachambre, o mecânico, certavez pronunciou: o Senhor éum cabeçudo!

SEQUÊNCIA 49 (O 14 Bis)

Boulevard de La Seine,Neully. No novo galpãotrabalham freneticamentetodos os homens de SD, namontagem do 14 Bis. SD dáordens, inspeciona e orientaem todos os detalhes. Enfim,à tardinha, com o sol sepondo, ele sai do galpão,ainda de portas fechadas, eencontra-se com um grupo desenhores encartolados que oaguardava. SD cumprimenta os chefes doAero Clube e dá ordens para abrir as portasdo galpão. Ao abri-las, os mecânicos fazemsurgir, solenemente, o pronto e imponente14 Bis. Aplausos. SD pede a palavra.

SD- Cavalheiros, este é omeu Número 14 Bis.

"O 14 Bis é puxado por um burrico"

"Cavalheiros, este é o meu Nº 14 Bis."

Com ele inscrevo-me oficialmente nadisputa do Prêmiodo Aero Clube e naCopa Archdeacon.(novos aplausos)

UM DOSPRESENTES- E porque estenúmero, 14 Bis?

SD- É porque eu o desenvolvi emparalelo com o meu dirigívelNº 14.

SEQUÊNCIA 50

(Legenda: Campo de Bagatelle,Paris, julho de 1906) Umahíbrida estrutura, mista dedirigível e aeroplano (foto),com o 14 Bis preso ao dirigívelNúmero 14, chama a atençãode um grande número decuriosos. SD e sua equipefazem os testes no novomodelo.

Outro teste mostra o 14 Bispendurado a fios presos em galhos de árvoresaltas de Bagatelle. O 14 Bis é puxado porum burrico que Chapin guia pelo cabresto.(foto) SD, dentro da “nacelle” do 14 Bis, testa

o equilíbrio da aeronave.

Na oficina secreta, SDtesta, no seu “túnel devento”, os comandos

O Nº 14 sobrevoando a praia deDeauville. Verão de 1905.

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laterais das asas do 14 Bis. Chapin está aoseu lado.

CHAPIN- Como pretende chamá-los, senhor?

SD- Batizei-os de “ailerons”, Chapin, e com elescreio ter resolvido o problema do equilíbriolateral do aeroplano.

CHAPIN- E como vai operá-los em vôo? Suas mãosestarão ocupadas com as manetes do motore as alavancas de leme e profundidade...

SD- Tive a idéia de prender os cabos nos meusombros. Desenhei uma ombreira de couropara receber a outra ponta dos cabos. Assim,apenas com um movimento de corpo, possoacioná-los.

SEQUÊNCIA 51

Teste de vôo no Campo de Bagatelle(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 7 desetembro de 1906) Alguns membros daComissão aguardam as provas. E maisjornalistas, curiosos, etc.

UM REPÓRTER (para Georges)- Georges, porque esse vôo logo hoje?Estamos com um dia cheio...

GEORGES- Hoje é dia daIndependência do

Brasil. E Alberto gosta de valorizar datas esímbolos, por isso nos fez vir aqui.

O 14 Bis rola no Campo de Bagatelle à vistade todos; começa a correr com o motor àtoda e, por uma fração de segundo, chega asair do solo. SD decide não prosseguir comos testes.

SD (para o Sr Archdeacon)- Precisarei fazer modificações neste modelo,Sr Diretor da Prova, em uma semana creioque estarão prontas.

ARCHDEACON- Pode-se sentir que o empuxo do motor ésuficiente para alçar o aparelho, Sr Santos.Aguardaremos os novos testes.

(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 13 desetembro de 1906) Nova prova. O 14 Bis sobea quase um metro de altura e fica no ar pormais de um segundo.

UM DOS MEMBROS DA COMISSÃO- Não há dúvidas de que o aeroplanosuspendeu-se no ar pela força de sustentaçãode suas próprias asas.

OUTRO MEMBRO DA COMISSÃO- Sim, mas não o suficiente para conquistarum dos troféus.

Corte para Georges conversando com SD.

GEORGES- Pareceu-me que havia condições pararealizar a prova menor. Por quê desistiu?

"... por uma fração de segundo, chega a sair do solo..."

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- Georges, em aeronáutica a prudênciacaminha lado a lado com o progresso. Oequilíbrio do 14 Bis não me convenceu. Darum passo além do que dei, seria um riscoexcessivo e talvez fatal. Tenho de alterar oprojeto.

GEORGES- Voisin e Bleriot disseram ao "Le Temps"que estão em fase final de testes do modeloque fazem em conjunto.

SD- São excelentes inventores. Por isso decidinão arriscar. Se fico sem o meu aeroplano,vão-se todas as minhas chances. Já marcaramdata?

GEORGES- Ainda não, mas estão prestes a fazê-lo.

SEQUÊNCIA 52

Reunião concorrida no AeroClube. Presentesos aeronautas Voisin, Maurice e HenryFarman, Bleriot, Esnault-Pelterie, Breguet,Anzani, Jaques Fauré, Curtiss, Delagrange,Cockbun, o tenente Krebs, o coronel Renard,o capitão Ferber, Lachambre, Machuron,Chapin e SD; os membros da Comissão PaulTissandier, René Garnier, Ernest Zens,Surcowt e Besaçon: os dirigentes doAeroclube Ernst Archdeacon, Deutsch de LaMeurthe, Marques de Dion, Príncipe Aimé,Príncipe Rolland Bonaparte e o Sr Fonvielle;e os jornalistas Georges Goursat, do "LeTemps", François Peyrey, do Herald, MauriceTalmeyr do L’Illustration, dois jovensrepórteres do Figaro e do Petit Journal emuitos fotógrafos. As discussões pegavamfogo.

CAPITÃO FERBER- Senhores, insisto que estes prêmios estãoultrapassados. Os Srs Orville e Wilbur Wrightjá bateram essas marcas nos Estados Unidosda América, com o seu “Flyer”.

ARCHDEACON- O Sr é testemunha disso, Cap. Ferber?

FERBER- Possuo informações seguras e de boasfontes.

ARCHDEACON- O Sr faria a gentileza de nos informar quaissão essas fontes, Cap. Ferber?

FERBER- Só posso dizer que são oficiais respeitáveisdas forças armadas daquele país, SrArchdeacon, mas devo mantê-las em sigilo.

GEORGES (intervindo)- Minhas fontes posso revelar. Nosso agenteem Nova York esteve em Dayton, no sítio deKitty Hawk, onde disseram ter ocorrido essesvôos, e por lá não se tem notícias deles, Cap.Ferber, nem rumores foram verificadosnaquele pequeno lugarejo.

FERBER- As experiências estão sendo feitassecretamente, Sr Georges, nem mesmo...

MAURICE TALMEYR (intervindo)- Nem tão secretas assim, Cap. Ferber. Algunsjornalecos americanos, sem qualquercredibilidade ou importância, parecem teracesso a elas; pelo menos é o que dizem nassuas páginas marrons. Mas a imprensarespeitável dos próprios americanos nãopublica uma só linha. Não acha estranho essecritério de sigilo, Cap Ferber?

ARCHDEACON- Cap. Ferber, acredita que concederemos umprêmio destes para vôos dos quais sóconhecemos cabogramas anônimos? Nósconvidamos os Srs Wright a vir mostrar-nossua máquina e não recebemos resposta, Cap.Ferber!

VOISIN- E, falando em máquinas, eu gostaria desaber que outros inventos esses senhoresderam ao conhecimento público. Ou será

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que o seu “Flyer” já lhes caiu diretamentedos céus? Pelo que sabemos, antes do “Flyer”,eles consertavam bicicletas!...FERBER- Como já disse, Sr Voisin, tudo que fazem édestinado à indústria e é feito secretamente.

ARCHDEACON- O que fazemos aqui também é destinadoao progresso industrial...

BONAPARTE (intervindo, impaciente)- Cap. Ferber, o Sr já insultou o suficiente anossa inteligência e mais ainda a nossapaciência. Tenho informações sobre seuinteresse em vender essas abstrações aoGoverno Francês. Ora, Governos nãocompram abstrações secretas! Temos deprosseguir em nossa reunião; se os Srs Wrightpostulam nossos prêmios, que façam pormerecê-los; e nas regras estabelecidas. E doupor encerrado o assunto! Passo à pauta dessareunião: as provas de 23 de outubro.(aplausos e gritos de muito bem! muito bem!)

O Cap. Ferber retira-se de cara amarrada.

DEUTSCH- Temos até o momento duas inscrições, SrBonaparte, a dos Srs Voisin e Bleriot e a doSr Santos-Dumont.

BONAPARTE- Faremos um sorteio para decidir quemtentará primeiro.

SD- Senhores, permitam-me ceder aos Srs Bleriot

e Voisin a honra de tentar primeiro.BONAPARTE- Da nossa parte não há inconvenientes.

VOISIN- Está aceito, Sr Bonaparte; não declinaremosda gentileza de um cavalheiro, uma vez quenos antecipou. (e, para SD) - Muitoagradecido, Sr Santos.

BONAPARTE- Então está decidido; a prova será realizadaem Bagatelle, às dez horas do dia 23 deoutubro. E repetindo as regras: um prêmiode 1 500 francos, oferecido pelo Aero Clube,ao primeiro aeroplano que, levantando-sepor si só, fizer o percurso de 100 metros,com desnivelamento máximo de 10%; e ooutro, de 3 000 francos, oferecido pelo SrErnst Archdeacon, ao primeiro aeroplanoque, por si só, voar através de um percursode 25 metros, com um ângulo de quedamáximo de 25%. (bate o martelo)

SEQUÊNCIA 53

Quase noite na véspera da prova. SD chegade coche em sua residência, vindo pela Ruade Berri.

Descrição cenográfica: a quadra onde situam-se o apartamento de SD, sua oficina secretae o apartamento de Pedro Guimarães é umacriação cenográfica ficcional, feita sobre arespectiva quadra existente em Paris, comomostra a planta desenhada ao lado.

Quase chegando na Av. Champs Elysées, SDpercebe uma movimentação de repórteres àporta de seu edifício. Antes de ser vistomanda o coche estacionar, paga o cocheiroe salta, entrando no edifício onde mora oseu amigo Pedro Guimarães. Traz consigoas chaves do apartamento e ia abrir a porta,mas decide bater. Pedro atende.

PEDRO- Alberto?! Seja bem-vindo!Espaço destinado à planta da quadra em que residia

Santos-Dumont

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- Como vai, Pedro? Começo a por em práticao nosso plano. Está saindo?

PEDRO- Sim, por pouco não me pega aqui. Maspode ficar à vontade.

SD- Repórteres cercam minha casa. Não gostodeles em vésperas de provas. Ficam comourubus na carniça. Pode ir, ficarei aqui àvontade, Pedro.

PEDRO- Não se preocupe. O porteiro já está avisado,e é de confiança. Descanse tranqüilo. (e sai)

SD pega o telefone e chama August.

SD- August, estou aqui no Pedro. Não recebo aimprensa hoje. Dê-lhes uma desculpaqualquer. E diga ao François que janto àsnove; quando ficar pronto, avise-me.

SEQUÊNCIA 54

É noite e SD atende o chamado de August.Levanta-se do sofá e acende o abajur. Emseguida sai do apartamento de Pedro pelaporta dos fundos que dá para um quintal.Dali vai até um portão que dá acesso a umaantiga servidão em desuso, no miolo doquarteirão, somente utilizada por criados paraqueimar lixo e por jardineiros para queimarfolhas no outono, como agora acontecia. Osbraseiros ainda fumegavam produzindo umabruma de fumaça branca pela qual passavaSD, desviando-se dos braseiros, até um outroportão semelhante que dava para o quintalde seu apartamento. François o esperava naporta da cozinha.

SD (ao entrar)- Morro de fome, François, acuda-me.

FRANÇOIS- Estou testando a receita da Sra Princesa

Izabel. Espero que agrade.SD (sem parar, andando em direção à outraporta)- Confio em Você, François. Pegou tambéma receita da ambrosia?

FRANÇOIS- Sim, Senhor. Acho que ficou boa. Aceitauma prova? (pega um pouco na compoteiracom uma colher e dá a SD)

SD (provando a iguaria)- Ótima, François! Que a galinha esteja àaltura! O cheirinho está bom! Vou trocar aroupa e desço em 15 minutos.

SEQUÊNCIA 55

Interior do luxuoso “Le Procope”, famosorestaurante de Paris. Numa mesa de cabinesentam-se Gordon Benett e Adrien Hébrard,em trajes de gala. Após servido o champagne,Benett pede ao garçom que aguarde serchamado e não os interrompa. Cerra ocortinado e oferece um brinde. Os doisbrindam.

BENETT- Chamei-o aqui, Adrien, porque, além deser “o informadíssimo Hébrard”, agora somossócios e creio que posso tirar uma dúvidaque me inferniza há cinco anos...

ADRIEN- No que puder ser útil...

BENETT- Vou fazer como Você, indo direto aoassunto: (e, de sopetão) - Quem mandou oSenhor Santos-Dumont fazer aeronaves?

ADRIEN (surpreso)- Ao que eu saiba, ninguém... ele, por simesmo...

BENETT (interrompendo-o)- Quanto aos primeiros balões eu até acreditonessa historieta romântica, Adrien. Mas agoraa coisa foi longe demais. Não tente enganar-

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

me; sei que Você e Georges mantêm umarquivo secreto, guardado como uma espéciede tesouro no jornal. Não sei o que contém,e prefiro sabê-lo diretamente de Você, comobons cavalheiros e sócios que somos agora.Mas se quisesse teria outros meios... Confessoque...

ADRIEN (interrompendo-o)- Gordon, o que acabou de acontecer foiapenas uma discreta solenidade. Os papéissó serão assinados amanhã. Há tempo devoltar atrás. Não quero começar com umabriga...

BENETT (com o dedo em riste)- Desfaça o negócio, Adrien, e comece aredigir a petição de falência do "Le Temps".Não me trate como um imbecil. Não pretendobrigar; precisamos de Você na direção dojornal, e sabe disso.

ADRIEN- Não comece a falar grosso, Gordon, tenhoainda o Banco da Indústria...

GORDON (irônico)- Que está sendo comprado por Rockfeller,e Você também sabe disso!

ADRIEN (rendendo-se)- O que o interessa tanto em Santos-Dumont?

BENETT- Ainda pergunta? As nações mais poderosas,as melhores cabeças e os melhoresprofissionais do planeta estão entornandorios de dinheiro para conseguir o vôomecânico, diabos, e até agora nada! E Santos-Dumont ganhando todas?! Sozinho?! Cá entrenós, sabemos da farsa dos Wright; foi idéiaminha. Mas a cúpula do poder nos EstadosUnidos decidiu levá-la às últimasconseqüências, a não ser que um fato novosurja a nosso favor. E esse fato novo não é oseu “petit Santos”.

ADRIEN- Não consigo enxergar essa ameaça a nãoser na xenofobia das cabeças coroadas e

poderosas que conhecemos, Gordon.Diabos, que interesse pode haver no primeirohomem que voou numa máquina? Seja eleafricano, mulçumano ou até um inglês, comoaqui costumamos debochar...

BENETT- Não se faça de ingênuo, Adrien. Há muitointeresse em jogo. O domínio dos ares seráo domínio da guerra; e o primeiro a consegui-lo terá o mundo a seus pés.

ADRIEN (irônico)- Santos-Dumont dominando o mundo?! Atéque não seria má idéia...

BENETT- Não é hora para ironias, Adrien. Temosmotivos para suspeitar que Santos-Dumonttem ligações com os comunistas exilados naSuíça.

ADRIEN- Isso só pode ser piada!...

BENETT- Nas últimas greves na América tivemosexperiências surpreendentes, e não penseque aqui as coisas se passam de mododiferente. Homens bons, honestos, pais defamília cordiais e servis, pessoasabsolutamente insuspeitas, revelaram-selíderes secretos de forte influência e carismasobre as massas operárias. Ainda não temosindícios dessa ligação de Santos- Dumont.Ela apenas surge como uma possibilidadeque pode explicar os seus sucessos.

ADRIEN (desdenhando)- Eu não acredito em meus ouvidos! É mesmoGordon Benett do Herald que está medizendo tamanha asneira?!...

BENETT (sem perder a serenidade)- Um tal Lenin anda agitado na Suíça. Oimperador Nicolau é um imbecil, masrepresenta o trono secular da Rússia, e nãodeixa de ser um fator de união do povo. OKaiser quer destruir a unidade russa e porisso vai fortalecer Lenin. Nossos analistas

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prevêem a união de ambos, no caso deguerra na Europa, para derrubar Nicolau. AAmérica também vai apoiar Lenin, e jáfazemos dele uma boa imagem por lá. Masambos não confiamos nele. Os motivos paraapoiá-lo é que são diversos. O Kaiser querdominar a Rússia com o seu “punho de ferro”e crê que será mais fácil no caos de Lenin.Nós queremos a derrubada da monarquia e,seja lá quem ficar no poder, terá de abrir omercado às nossas indústrias; hoje fechadopela imbecilidade do Czar.

ADRIEN (ainda desdenhando)- Muito bem... o Kaiser quer dominar a Rússiaque Napoleão não dominou, e a Américadeseja comprá-la como está fazendo com aFrança democrática. E é o nosso “petit Santos”que paga...

BENETT- Pare com bobagens, Adrien. As informaçõesnos colocam em alerta e essas duaspossibilidades podem dar com os burrosn’água. Os comunistas não são idiotasdesprezíveis. Devem ter algum trunfo e suasestratégias têm sido admiradas pelos experts.Há quem diga que o Kaiser faz o papel dobobo nessa aliança. E não pretendemoscontracenar com ele. Segundo as últimasanálises, Lenin tem boas chances deconseguir seus objetivos maquiavélicos,principalmente se tiver para si o domínio dosares. Os comunistas têm demonstradoinusitada autoconfiança em seus discursos.E o dinheiro do Kaiser não lhes tem faltado;sem falar em outros dinheiros de milionáriosromânticos, poetas e idealistas...

ADRIEN (sempre desdenhando)- E será o aristocrata e inexpugnável apolítico,o Sr Santos-Dumont, que dará aos comunistasas chaves dos céus?!...

BENETT- Peço-lhe, pela última vez, para me levar asério, Adrien. Sei que Santos-Dumont temdinheiro próprio, talento, intuição e ciênciapara fazer o que faz. Sei que o seucomportamento é insuspeito, etc. Mas é

justamente tudo isso, e alguns pequenosdetalhes, que o tornam ainda mais suspeito.

ADRIEN- Interessou-me o que Você chama “pequenosdetalhes”.

BENETT- Coisas como distribuição de dinheiro paraoperários, oficinas secretas, imóveis secretos,arquivos secretos e, - quem sabe - armassecretas? Jauré foi visto frequentando seushangares... Já lhe disse, muitos homensabsolutamente insuspeitos revelaram-se...

ADRIEN (interrompendo-o sério)- Sr Gordon Benett, peço-lhe quecontinuemos amanhã no jornal. Como sabe,minha esposa não passa bem e não sou dedescuidar os deveres de esposo e chefe defamília. Para encerrar essa cantilena devodizer que chegaremos com facilidade a umacordo. Estou convicto de que tudo nãopassa de paranóia generalizada, quase àsraias do delírio! Uma espécie de praga quetem assolado inteligências de homenspoderosos, especialmente americanos, dadosàs fantasias e às avaliações apressadas. Masnão deve preocupar-se, nosso jornal vai bemgraças à mim e ao senhor, e melhor ficaráquando nos acertarmos. Pertenço a umaestirpe de editores de mais de um século detradição, e sei que sou o ponto final dessalegenda. O velho jornalismo desinteressadoe comprometido com a verdade e os fatosestá com dias contados. Mas ainda estou aquie na ativa. De sorte que o senhor haverá deamenizar a sua arrogância, e eu não vou jogarum grande passado nos riscos de uma defesaingênua daquilo que, como já disse, não douà mínima! Creio que assim estamosentendidos. (levanta-se e estende a mão paradespedir-se)

BENETT (apertando-a com um sorriso cínico)- Certamente que sim, Adrien, mas serámelhor pela manhã; porque à tarde pareceque teremos de ver o Sr Santos-Dumont voar,não?

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ADRIEN- Como queira, aguardo-o pela manhã. E leveconsigo o Sr Lazare. Já podem tornar públicasas suas relações, não?

BENETT- É boa idéia, Adrien, talvez precisemos doLazare. Prometo levá-lo.

SEQUÊNCIA 56

Alta madrugada. No gabinete de Georges no"Le Temps" o relógio de parede indica 1:30h. Georges está de mangas arregaçadas,sentado à sua mesa, repleta de fotografiasde SD e uma pilha de laudas escritas ao ladode sua máquina de escrever. Termina dedatilografar um parágrafo e passa a examinarumas fotografias e desenhos quando otelefone toca.

GEORGES (atendendo)- Alberto? Ainda acordado?... Sim, estoufechando uma grande reportagem sobreVocê.

SD (deitado em sua cama)- É sobre a idéia de abrir a oficina ao público,Georges. Acho que devemos suprimi-la.

GEORGES- Por que, Alberto? Está voltando atrás emnossos planos?

SD (sentando-se melhor na cama)- Não é isso. É minha intuição; algo me diz...

GEORGES- Não está com maus presságios, hein? Nuncao vi assim em vésperas de grandes datas, oque está havendo?

SD- Já disse, minha intuição. Nada quanto aovôo em si, mas preferiria deixar a aberturada oficina para depois de conhecer arepercussão do meu vôo na imprensa. O queacha?

GEORGES- Não deixaria de ser um bom assunto paraépocas mais vazias... mas, Você... ora, comoprometi, nada publicarei sem suaautorização... (pega duas laudas de texto ejoga-as no lixo) - Pronto, já se foram à cesta.Dorme bem, Alberto, e descanse.

SD- Até logo, Georges. Assim durmo maistranqüilo. Aguardo-o lá amanhã. (desliga)

SEQUÊNCIA 57 (A Copa Archdeacon)

(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 23 deoutubro de 1906) Grande movimentação depúblico, veículos, fotógrafos, jornalistas,vestidos e cartolas. Archdeacon, o Cap.Ferber e os comissários do Aero Clubecercam o 14 Bis. Um dos comissários olha oseu relógio de pulso.

O COMISSÁRIO- São 14 horas,

"... e solta-se do chão como que por algum milagre..."

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

Sr Archdeacon. Nenhuma notícia dos SrsVoisin e Bleriot.

Chega um jornalista.

O JORNALISTA- Sr. Archdeacon, recebemos um telefonemado Sr Bleriot; o aeroplano não ficou prontopara a prova. Deixam aos senhores a decisãode adiá-la ou não.

ARCHDEACON- E por que adiaríamos? Não sabem que háoutro concorrente? Que a prova comece.

SD entra na barquilha do 14 Bis. Chapin dáa partida no motor e o 14 Bis começa a semover como uma pata-choca no gramado,balançando e sacudindo suas asas e seu narizenorme. SD dá a manete à toda. O papagaiocelular gigante começa a ganhar velocidadena direção do comprimento do Campo. Correuns cem metros e solta-se do chão como quepor algum milagre. Um automóvelacompanha-o, ao lado, com 3 membros daComissão a observar o pássaro a cerca dedois metros de altura, como que apoiado pelaexclamação da platéia. Em seguida, ele desceum pouco desastradamente, quebrando umadas rodas ao tocar o solo. Um membro dacomissão berra: - 60 metros!

UM SENHOR ELEGANTE DA PLATÉIA(estendendo a mão para o companheiro aolado)- O “Cannard” ganhou a Copa Archdeacon,mas não levou o Prêmio do Aero Clube.Ganhei metade da aposta.

UM OUTRO SENHOR ELEGANTE (contandoo dinheiro e entregando-o a contragosto)- O “Cannard” não voou; ele apenas saltou!

O PRIMEIRO- O choro é livre!

SEQUÊNCIA 58

SD e Georges tomam um drink na calçada

de um café de Paris. Todos que passamcumprimentam-nos ou apontam para SD.Garotos pedem-lhe autógrafos emcaderninhos escolares.

SD (passando um papelzinho a Georges)- Recebi este cabograma do Pradô. Estáchateadíssimo na missão do Alaska. Disseque agora se aposenta mesmo, nem esperaa compulsória. E toda vez que me passa umamensagem ele a encerra com a mesma frase:“não dê créditos à farsa dos Wright. Sabemosque é tudo balela. E o Governo Brasileiro éum Governo de merda!”

GEORGES (devolvendo-lhe o cabograma)- Saudades de Prado! Saudades... Comecei ater esse estranho sentimento após aconvivência com Vocês. Minha mana escreve-me que também ela já o sente sempre maisforte. E suas cartas já o trazem. Quero visitá-la e conhecer o Brasil, Alberto. Quandoiremos?

SD (passando a Georges uma pesada pastade couro)- Assim que conseguirmos a conquista maior,Georges. O Brasil é perfeito para umacomemoração. Tem-se, porém, de terdisposição e paciência. A Eloqüência temsido a mais trucidada das artes, naquelasbandas. Mas a ternura do povo é inigualável.

GEORGES (apanhando a pasta)- E que tal está ficando a reportagem, gostou?

SD- Confirma uma velha certeza minha,Georges. Você escreve tão bem quantodesenha. Quanto à mim, sabe que me acanhodiante de elogios. Mas está ótima; é umaqualidade dos franceses: o domínio da artede escrever! A documentação fotográficatambém é primorosa. Por sinal, tenho umanova: comprei um aparelho de projeção aoSr Lumière e todos os filmes que fizeram dosmeus vôos. Amanhã estará instalado naminha oficina. Não quer vir estreá-lo?

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ROTEIRO MARIO DRUMONDSANTOS DUMONT/O FILME

SEQUÊNCIA 59(O cinematógrafo da Oficina secreta)

Fim de expediente na oficina secreta. Novosmodelos surgem no cenário. Georges observaatentamente o arrojo dos novos projetos, comentusiasmo. SD, sujo de graxa, com roupasde mecânico, ciceroneia-o.

GEORGES (frente ao “túnel de vento”,olhando uma miniatura ali suspensa)- Parece uma libélula, Alberto. E como é bela!Você, enfim, começou a copiar a natureza?

SD- A natureza nunca foi boa mestra para amecânica. Por ela teríamos trens com pernasde ferro e navios com barbatanas nos cascos.Mas sempre nos ensina algo. Se a observamospercebemos que quase tudo o que voa temasas à frente e uma cauda, maior ou menor,para trás. Após voar o 14 Bis, sentinecessidade de copiá-la. Mas esse projeto nãocompetirá nesse prêmio. Temos de ganhá-lono 14 Bis, com suas limitações. Vamos vê-loagora nos filmes do Sr Lumière. Penso quepoderão nos ajudar. (e, gritando) - Gasteau,abaixe a tela!

Enrolada acima do pé-direito da oficina, umaenorme tela branca, quase quadrada,começou a descer perto das portas de correr.Ao fundo, sobre a casinhola das máquinasde aeração, uma outra, de madeira, foiconstruída criando uma cabine no segundoandar para abrigar o projetor. Dazon estavalá, após subir a escadinha de grampos deferro chumbados à parede.

SD- Dazon, pode começar! Gasteau, apague asluzes!

Todos ficaram olhando para a grande telabranca quando Gasteau desligou as luzes.Surge, na tela, o 14 Bis em váriosângulos, com pessoas agitando-seà sua volta. SD e Chapin inspecionavamo motor.

CHAPIN- Lá estamos nós!

SD- Aí está, vai começar a mover-se. Reparem;repare as asas, Chapin! Se eu tivesse dadomais crédito aos meus ailerons poderia voarbem mais longe. Veja a asa esquerda caindo,não tive como equilibrá-la. O jeito foi voltarao chão. (o vôo acaba e o filme mostrapessoas em volta do 14 Bis quebrado) -Dazon, repita a projeção. (e, para Chapin) -Percebeu, Chapin, a função dos ailerons?Aquela história do Farman de que elespoderiam causar o desequilíbrio lateral nãoprocede. Será que nunca aprendo a confiarem mim mesmo!?

DAZON (gritando, da cabine)- Pode soltar?

SD- Pode. (o filme recomeça) - Vejam, reparembem! Faltaram os ailerons, Chapin, amanhãquero-os instalados em Neully. A prova seráem 12 de novembro. E Voisin e Bleriot dessavez lá estarão.

GEORGES- E Você continua dando a vez a eles?

SD (sem tirar os olhos da tela)- Sim, Georges. Ah, vejam! Repare, Chapin...viu?.... a asa esquerda... e agora o tombo...diabos! Está bem, Dazon, por hoje chega.Todos dispensados. Amanhã todos emNeully, e até o dia 12. Não importa se Bleriote Voisin voam antes; o certo é que vou voar!

SEQUÊNCIA 60 (A via de Santos-Dumont)

François serve um fino quitute para SD eGeorges na bancada da cozinha.

FRANÇOIS- Permita-me a indiscrição, Senhor. Mas

podemos assistir aos filmes na próximavez? Chapin e Dazon, antes de sair...

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- Claro, François, como não pensei nisso?Desculpem-me todos, diabos, só penso nessaprova! Prometo-lhes que, na próxima vez,todos assistiremos juntos.

FRANÇOIS- Obrigado, Senhor. Pierre e eu temos tentadovê-los no cinematógrafo mas nuncaconseguimos entrar nas sessões que exibemos filmes do Senhor. São muito comentadas.Paris inteira tem a sensação de conhecê-lopessoalmente. Não é como antes, que aspessoas conheciam-no mais pelo nome.Somos orgulhosos em servi-lo, senhor.

SD- Obrigado, François. Há um provérbio chinêsque diz: “uma imagem vale mais do que milpalavras.” O que dizer então de milhares deimagens que reproduzem, não somente arealidade, como também, o movimento?! Ocinematógrafo transformará o mundo, meubom François! Como, também, a aeronáutica!E o cinema e o aeroplano serão os veículosdo futuro!

GEORGES- Sem contar as infinitas possibilidadesestéticas e ficcionais que essa nova linguagemabre ao imaginário! (e, preocupado,mudando o assunto) - Como andam aspressões para inspecionar a oficina?

SD- Arrefeceram. Os advogados diziam-me quenossas chances estavam cada vez menores.Porém, hoje telefonaram-me para dizer quenão me preocupasse por enquanto. É umasituação desagradável, Georges, mas Você étestemunha de que não fui eu que a comecei.

GEORGES- Tenho estranhado o comportamento daimprensa. Todos sabem dessa história masninguém publica uma linha. Até Adrien estáesquisito... Aliás, todo o jornal! Muitosfuxicos; Benett à vontade, com o palermado Lazare na coleira como se fossecachorrinho... Comportam-se como se fossem

íntimos de Adrien!? E ele nada diz.

SD- Também estranhei a imprensa após o 23de outubro. Lembra-se que tive uma intuiçãosobre isso? O próprio "Le Temps" tem mesaído acanhado, comedido...

GEORGES- Um pouco disso pode ser estratégia doAdrien. Ele odeia imprensa ufanista, maisainda quando percebe que algo grandiosoestá para acontecer. Nisso se parece comVocê, Alberto. Ele chama “sexto sentido” eVocê “intuição”, mas às vezes eu digo quetudo não passa de genuína superstição.Lembra-se que eu lhe avisei para não incluira medalhinha de São Benedito em seu livro?Cientistas detestam essas crendices. Eu estavacerto, concorda?

Acabam de comer, levantam-se, e vão parao salão.

SD (caminhando ao lado de Georges emdireção ao salão)- Sim, considero o meu livro o meu maiorfracasso. Seria o momento de crer mais nosoutros do que em mim mesmo. Errei em nãoouvi-lo, Georges.

GEORGES- Bah! Homens de gênio não erram! Seus errossão volitivos e são portais de novasdescobertas.

SD- A modéstia não me permitiria aceitar talargumento, Georges. Mas a verdade é quenão me preocupam mais as opiniões decientistas. Aprendi que, para conquistarminhas metas, devo crer em mim, antes detudo. Somente minha intuição poderá levar-me aos meus objetivos

GEORGES- Mas isso é válido para todos nós, não acha?

Chegam ao salão e sentam-se. Georgescomeça a acender um charuto.

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SD- O fato é que o homem pioneiro está sempreno “Limite”; numa via que faz fronteira entreo mundo conhecido, material, sensível,visível; e o desconhecido, imaterial, invisível.

GEORGES (ainda tentando acender ocharuto)- Sobre o que está falando, Alberto?

SD- Penso que a Ciência do Século XX começaa caminhar para um equívoco, Georges. Aobuscar evitar o preconceito, acaba pororiginar um outro ainda maior. Arte e Ciênciasempre caminharam juntas ao longo daHistória. No entanto a Ciência que hoje sepratica começa a fomentar um desprezo pelaArte, pelas coisas da magia, da superstição,do incognoscível.

GEORGES (finalmente na primeira baforada)- Entendo onde quer chegar...

SD- Não que eu seja um adepto da Arte e daMagia, ou um místico. Não sou; meu trabalhoé realizado nos domínios da Ciência. Masnão desprezo o desconhecido. É um universomuito maior e mais misterioso, portanto, maispoderoso. Prefiro não bulir com ele; muitomenos afrontá-lo.

GEORGES- E?...

SD- Daí minha posição, muito questionada pelaCiência e seus novos adeptos, com relaçãoaos ícones, símbolos, datas, e signos dosobrenatural, da numerologia e da magia,pelos quais não escondo o meu respeito,inclusive no que toca a questão das patentes.Em tudo isso entra, também, a medalha deSão Benedito.

GEORGES- Ora, Alberto, esperar que a Ciência, noestágio em que se encontra, veja com bonsolhos a superstição...

SD (interrompendo-o)- Ao menos respeito deveria haver, Georges.Quem, como eu, viveu a experiência dedesafiar poderosas forças da natureza comoa da gravidade, dos ventos e das tempestadesaéreas, não pode raciocinar de maneira tãosimplista e cartesiana. Houve momentos emque, voando em meus dirigíveis, pensei:estou só aqui! Sou o único ser humano emtodo o planeta a desafiar um tabu tão antigoquanto a própria civilização! E quem sou eupara isso?!

GEORGES- Você disse tabu... é um fenômeno ligado àmagia; e a Ciência não o reconhece...

SD (outra vez interrompendo-o)- Certa vez, em Mônaco, deixei-me serrebocado pelo iate do Príncipe Dino. Aaeronave descera muito perto d’água efaziam-na baixar ainda mais, puxando-a pelocabo a tal ponto que fiquei a poucos pés dachaminé da chalupa. Ora, essa chaminéexpelia fagulhas vivas! Uma só bastaria paraproduzir uma queimadela no balão, inflamaro hidrogênio e reduzir-nos a pó. Do navionão entenderam minhas advertências eprotestos. Vi as fagulhas passando ao meulado e preparei-me para o pior. E não foi aCiência que salvou-nos da catástrofe,Georges. Mas eu já usava a medalha de SãoBenedito...

GEORGES- Já é famosa em Paris essa sua sorteimpressionante, Alberto. Todos comentam-na.

SD- Sorte?! Tabu?! O que a Ciência pode saberdelas? Ora, se são parte do desconhecido,respeitemo-las. Não se brinca com tais coisas.Muito menos quando se é um nauta.

GEORGES- Nisso temos de dar-lhe razão, Alberto.Vimos o que aconteceu ao seu conterrâneo,o Sr Augusto Severo...

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD- Lembra-se que eutentei avisá-lo? Nãome recebeu! Ia dizer-lhe, em particular,claro, que seudirigível era bom masa arrogância ép é s s i m acompanheira de vôo.Sou o único que osei por experiência.Também fuiarrogante no início,e paguei caro. Poresse topete pseudocientífico afrontei um13 de julho e um 8de agosto. E aprendique o desconhecidocostuma dar aosnautas apenas doisavisos. Não pudeadvertir Augusto depúblico porque seriaridicularizado pelaarrogância daCiência, que eleinsistiu em levarcomo passageira.

GEORGES (em off, sobre o flash-back dodesastre de Augusto Severo)- Foi uma tragédia! Paris jamais esqueceráaquela bola de fogo despencando de 400metros de altura...

SD- A navegação, Georges, é tanto uma Artecomo uma Ciência. Como a Arte elacontempla todo o incognoscível, isto é, odesconhecido, a magia, o sobrenatural;enquanto que, como Ciência, contemplaapenas o insignificante mundo doconhecimento. Um poeta tão grande quantoCamões escreveu em língua portuguesa (dizem português): “Navegar é preciso; vivernão é preciso”.

GEORGES

- O que significa?Traduza...

SD- Em português,como em francês, aexpressão “é preciso”tem o duplosignificado de “serexato” e “sernecessário”, duasfunções fundamentaisà vida do naveganteque se arrisca na vialimítrofe entre oconhecido e od e s c o n h e c i d o .Traduzindo, Georges,navegar é ser exatotanto quanto sernecessário; e quantoao viver, não énecessariamente quese seja exato e nemexatamente que seseja necessário,entendeu?

GEORGES- Estou

acompanhando, Alberto. É genial! Prossiga...

SD- Ora, a arrogância da Ciência, ou pseudo-ciência, precisa ser questionada, tantofilosófica quanto eticamente. Com apretensão de abranger todo o campo doconhecimento e o desprezo pelodesconhecido ou por tudo que não é lógicoou racional, a Ciência torna-se Ignorância epode levar a Humanidade às catástrofesjamais testemunhadas em outras épocas.

GEORGES- Você crê então que o aeroplano poderá vira ser um mal para a Humanidade?

SD- Se será mal ou bom, não sabemos, Georges.O fato é que ele está próximo e virá para

A tragédia de Augusto Severo em Paris, 18 de maio de 1902.Acima, o "Pax", seu dirigível que explodiu a 400 m de altura;a queda em chamas; e o local onde cairam os destroços.

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ficar; e vai transformar o mundo exterior doshomens. Porém, a opção pela Ciênciapresunçosa e arrogante é mais previsívelporque ela traz mais lucros, através daspatentes, apesar do número de vítimas quecausa. E a Humanidade não terá meios defazer os julgamentos porque a informaçãoque receberá também estará no poder dosproprietários dessas patentes, como jápodemos perceber.

GEORGES- Refere-se aos grandes jornais europeus eamericanos?... Mas, quanto às patentes?Nunca tivemos uma boa explicação sobreessa sua polêmica posição...

SD- Penso que o equilíbrio necessário ao campodo conhecimento coexista com o equilíbrioque intuo haver também no campo dodesconhecido. Foi dele que vim ao mundocom a vida, os recursos e os meios para sero que sou. E para lá voltarei. Não desafiareimeu destino na pretensão de mudá-lo oucontrolá-lo. Patentes, por exemplo,significariam poder e dinheiro; dois estorvosao delicado equilíbrio de que preciso pararealizar minha obra. É a minha via; não devoperder-me nela.

GEORGES- Sim, a sua obra... é o que todos desejamos,sinceramente, que realize, Alberto. Jáexpressei em diversas ocasiões as minhasdúvidas sobre esse seu comportamentoesquisito. Creio que agora começo a terelementos para tentar decifrá-lo.

SD- Desde já Você passa a ter liberdade paraescrever o que quiser a meu respeito. Nãopreciso opinar. Erro sempre quando se tratade mim, e muitas vezes contra mim mesmo.É uma honra tê-lo como biógrafo.

SEQUÊNCIA 61 (A Véspera)

Movimentação de véspera de prova no

hangar de Neully. Chapin e Gasteau instalamos ailerons no 14 Bis. SD parece estar emtodos os lugares ao mesmo tempo.Supervisiona Chapin e Gasteau, observaDazon instalando ferragens e manetes,discute com Levavasseur a regulagem domotor, enquanto experimenta a ombreiracom um costureiro afetado, agulha e linhana boca, tentando fazer SD ficar quieto parapoder dar o ponto, etc.

Corte para Georges em seu gabinete, dia enoite, a teclar a máquina, a fuçar seusarquivos, a remexer fotografias, a desenhar,a falar ao telefone.

Em seu gabinete, Adrien, com Benett eLazare, discutem com semblantes carregados.

No automóvel Clube reuniões tensas entreArchdeacon e outros dirigentes, com oCoronel Renard, Cap. Ferber e outrosmilitares. Os membros do Aero Clubebalançam a cabeça negativamente resistindoàs pressões.

SEQUÊNCIA 62 (A Glória)

(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 12 denovembro de 1906) Uma conversa namultidão.

UMA MULHER- Porque não fazem mais as narrações peloalto-falante?

UM HOMEM- Os franceses não estão bem cotados e ovôo é baixo. Não dá para ver de todos oslugares.

SD cercado por uma multidão de repórterescede publicamente a vez a Voisin e Bleriot,pois tinha recuperado o direito de ser oprimeiro.

Mecânicos e ajudantes giram em torno desuas máquinas, enquanto gendarmesprovidenciavam o afastamento dos curiosos.

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

Máquinas de filmar e fotografar por todos oslados. Chega a hora. Archdeacon, olhandoseu relógio de pulso, autoriza o primeiroconcorrente. Voisin, dentro do seu aeroplano,ouve conselhos de Bleriot ao seu ouvido.Ele manda girar a hélice, ao que o mecânicoimediatamente obedece. O motor ronca.Expectativa geral. Francesada em claquepronta para aplaudir a vitória. Ao lado, oautomóvel da Comissão também está pronto.Archdeacon dá o sinal. Voisin aciona amanete. Motor à toda. O aeroplano começaa se mexer, anda alguns metros e embica nochão como se fosse para voar no subterrâneoe não na atmosfera. A hélice parte-se empedaços, o motor desloca-se do berço e pára.Decepção geral. Voisin sai do aeroplanopraguejando com os mecânicos e oautomóvel dos Comissários dá marcha-à-réporque, no ímpeto, aceleraram mais do queo necessário.

Archdeacon autoriza SD. Ele prepara-se paraentrar na nacelle. Os gendarmes afastam aspessoas. De repente, Aida D’Acosta, a audazbailarina, destaca-se da multidão, dribla umgendarme com um gracioso movimento doseu lindo corpo, jogando o policialdesajeitadamente ao chão com as pernas parao ar, e aproxima-se de SD, que a reconhecee faz uma mesura para recebê-la, sem deixarde demonstrar a urgência da situação. Abailarina corresponde ao sorriso e chega-seaté ele.

AIDA- Vim trazer-lhe a energia que o seu motornão poderá dar-lhe, Sr Santos-Dumont.

E, ato contínuo, beijouvoluptuosamente a boca estarrecidado inventor que, por cavalheirismo,não esboçou qualquer reação,apenas aceitando aquele beijo queia até as raias da obscenidade paraa época.

Tudo aconteceu em segundos. Opolicial ainda se levantava do seutombo. Os fotógrafos e cinegrafistaspresentes nem tiveram tempo de

disparar suas máquinas, apesar de prontospara isso, mesmo porque a surpresa foi gerale atingiu também a eles, que são treinadospara trabalhar justamente nos momentos degrandes emoções.

Aida soltou SD com o mesmo sorriso comque o encontrou e agradeceu ao público que,mais uma vez, a aplaudia. Archdeacon, meioaturdido, repetiu a ordem. SD, como seestivesse numa outra galáxia, tardou a recebê-la em seus reflexos. Assim que voltou a si,pulou para a barquilha e pôs seus mecânicosa trabalhar. A multidão afastou-se; motorroncando, o aeroplano mexe-se,posicionando-se para a decolagem. Idempara o automóvel dos Comissários. Volta aexpectativa. Detalhes de hélice, motor,manetes, cabos e mecanismos. Serenamente,com o olhar impassível, SD aciona a maneteà força total. O 14 Bis corre, alça-se a uns 40centímetros do solo e pousa suavemente àfrente. O Comissário berra: - 40 metros.

Aplausos burocráticos e manutenção dosuspense, enquanto o aeroplano retornavagarosamente à posição original.

Nova tentativa. Dessa vez o aeroplano deixapara trás o automóvel e executa dois vôos,na mesma altura do anterior, o primeiro de40 metros e o segundo de 60 metros, comum toque no solo entre ambos. Ao final dosegundo vôo, o piloto fez um teste deviragem em pleno ar, suspendendo-o devidoà proximidade das árvores. Novo retorno eaumento da expectativa. Silêncio geral.

"... o piloto tentou novamente a viragem..."

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no ar vindo, em pleno vôo, na direção damultidão que se assusta e se atropela. Opiloto percebe a situação e aumenta ainclinação do nariz do 14 Bis e sobe a 6metros de altura, passando por cima daperplexa multidão assustada. Mas avelocidade de repente diminui como tambémdiminui o ronco do motor. Rostos aflitosolham o pássaro aéreo com uma interrogaçãonas faces. O aparelho esboça uma curva paraa direita e SD, com todo o seu sangue frio,corta o motor e pousa quase perfeitamente,apenas com um pequeno roçar da asa direitano gramado, sem quaisquer conseqüências.O Comissário berra: - mais de 200 metros! Aplatéia sacudiu-se em aplausos e vivas comchapéus, até de senhoritas, voando junto àbengalas, casacos e outras peças que podiamser atiradas ao ar. Jaques Fauré foi o primeiroa chegar até SD e tirou-lhe da barquilhacolocando-o sobre seus ombros, carregando-o em meio à multidão até à sorridente Aidaque o aguardava. Agora era a vez de SD,todos esperavam, mas ele apenas a abraçoucom ternura e beijou-lhe paternalmente atesta, sob o espocar de dezenas de fotógrafos:- era a Glória!

SD- Aida D’Acosta, A Senhorita é, para mim, aprópria personificação da Glória!

SEQUÊNCIA 63

Festa de arromba nos salões do AutomóvelClube. Todas as personagens do filme queestão em França presentes. Aida D’Acosta dáo seu show de dança à frente de uma banda

cubana. SD entra no salão lotadodebaixo de

Terceira tentativa. Outros dois vôos com umtoque no solo; o primeiro de 50 metros e osegundo de 82 metros, segundo os berrosdo Comissário. Neste vôo o piloto tentounovamente a viragem mas susteve-a pelaproximidade do campo de pólo, quandoquase completava a meia volta. Aplausospara a anunciada quebra do recorde anterior.O aparelho porém não retornou à posiçãooriginal. O piloto decidira fazer o vôo emsentido contrário e fora autorizado pelaComissão.

CAP. FERBER- Ele vai tentar voar contra o vento? É ummaluco! E também, um ignorante; estádesprezando a única ajuda que a Naturezadá aos homens para voar. E ainda a desafia...

BONAPARTE- Quando se trata do Sr Santos-Dumont, Cap.Ferber, é melhor pensar duas vezes antes dearrotar verdades. Aprendi por experiência etestemunho pessoal que, diante de homenscomo ele, tremem as verdades mais absolutase amedrontam-se os mestres mais arrogantes.Vi verdades irrefutáveis tornarem-se asneirasconsagradas por causa de uma única epequena ação de ousadia desse homem, Cap.Ferber. Se Santos-Dumont decidiu desafiar aforça dos ventos, que se cuidem os ventos!...

Um Comissário observa seu relógio de pulso:16:25 h. O dia já ia ao fim. Ouviu-se então o

ronco do motore logo o

aparelhoestava

"... passando por cima da perplexa multidão assustada..."

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

uma chuva de confetes eserpentinas, sob aplausosgerais. A banda ataca osritmos brasileiros. Georges,já totalmente bêbado,aproxima-se dele.

GEORGES (com voz debêbado, pegajoso eabraçado a SD)- Está tudo no prelo, Alberto!No prelo! Amanhã só vai darVocê nos noticiários, e anossa reportagem será amelhor de todas!

SD é sequestrado pela multidão eufórica eGeorges fica só, trocando as pernas na portado salão. Resolve então sair e vai até umacupê estacionada na porta do Clube, entranela e berra ao cocheiro.

GEORGES (berrando)- Vamos pro "Le Temps"!

SEQUÊNCIA 64 (Desatino)

Porta do "Le Temps". A cupê estaciona eGeorges desce dando ao cocheiro tudo oque tem no bolso, sem conferir, e vaicantarolando feliz em direção à porta dagráfica. Entra na oficina gráfica em meio àzoeira da rotativa à toda velocidade, passa

cambaleando pelosoficiais em serviço,trombando nas mesas,arrastando cadeiras e

apoiando-se aqui e ali, até chegar na bocada máquina. Ali reclina-se diante de umapilha de jornais prontos, pega um, senta-sena cadeira do chefe da gráfica e abre o jornal.A câmera mostra o jornal aberto na páginaem que noticia o feito de SD com umamatéria modesta e sem expressividade. Nolugar da sua reportagem havia uma grande“matéria de geladeira”, assinada pelo CoronelRenard, sobre os progressos da aeronáuticanum sentido geral, sem que citasse Santos-Dumont.

De repente, após folhear todo o jornal váriasvezes, Georges parece ter-se curado do porre,ganhando uma nova e desmedida energiavital. Parte o jornal em vários pedaços, nafrente dos operários, amassa os pedaçosformando uma bola e atira-o na máquina.Depois levanta a cadeira do chefe e faz o

"...carregando-o em meio àmultidão até à sorridenteAida que o aguardava.Agora era a vez de SD, todosesperavam, mas ele apenasa abraçou com ternura ebeijou-lhe paternalmente atesta, sob o espocar dedezenas de fotógrafos: - eraa Glória!"(Desenho de ElyseuVisconti)

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mesmo, espatifando-a no meio dasengrenagens. Os oficiais imediatamenteparalisam a impressão e tentam contê-lo. Masninguém podia segurá-lo; ele vira mesas,empastela cavaletes de tipos, ramas prontase quebra tudo o que vê pela frente, até oesgotamento total de suas forças. A essa alturatodos haviam desistido de segurá-lo e apenasassistiam ao tumulto, de braços cruzados ouprotegendo-se das trajetórias perigosas dealguns tipos de chumbo atirados com ódiopara qualquer lado pelo furioso jornalista.Ninguém se movia. Um silêncio toma contado ambiente. Dois guardas chegam tardios esó podem ficar olhando, sem saber o quehavia acontecido. Um gráfico chega-se a umadas gavetas mal derrubadas por Georges eacaba de virá-la ao chão e cruza os braçosem sinal de solidariedade a Georges. Outrosoficiais e operários o imitam, cada umderrubando ou quebrando simbolicamenteum traste qualquer para em seguida cruzaros braços e ficar onde estavam. Os guardasnada puderam fazer. Nos rostos de todos amesma revolta que Georges estampava noseu desde que abrira o jornal.

SEQUÊNCIA 65

Dia seguinte, no gabinete de Adrien. Georgesé uma espécie de ser em bagaços,desconjuntado numa das poltronas.

ADRIEN (falando com irritação)- Decidimos passar uma borracha no quehouve ontem, Georges, e em consideração aVocê, saiba disso! Essa sua indisciplina infantile alcoólatra custou-nos quase 20 mil francosde prejuízos. E por pouco não perdemos arotativa...

GEORGES- Mas, quem Você pensa que sou, Adrien?Foram cinco anos de trabalhos! No últimomês varei madrugadas apurando o texto,caprichando nas imagens e na qualidadegeral do trabalho!... E que começavajustamente por citar Você, com a sua visãogenial, a sua admirável experiência como

jornalista e editor, capaz de farejar umanotícia com cinco anos de antecedência enela investir sem hesitação! E agora Vocêmesmo a corta sem piedade, quando, comoVocê diz, chegara a hora certa?! O que pensaque sou? Uma máquina de escrever?

ADRIEN- Nunca podia imaginar que viria ao jornalapós a festa. Meu plano seria acordá-lo hojecedo e lhe falar antes que visse o jornal. Mas,na madrugada tocou o meu telefone com anotícia desse desatino... que se há de fazer?

GEORGES- Ao menos dizer-me o que se passa...

ADRIEN- Na França de hoje, Georges, maisimportante do que a subida de um aeroplanoé a subida de uma moeda. E o dólaramericano...

GEORGES (pulando da poltrona, com o dedoem riste para Adrien)- Você vendeu o jornal àquele pulha doBenett, não é? E, talvez, tenha se vendidocom ele...

ADRIEN (abaixando o dedo nervoso deGeorges)- Acalme-se, Georges...

GEORGES- Você é um vendilhão! Um...

ADRIEN (interrompendo-o ríspido)- E o que Você quer? Que eu me arruíne nafalência e passe a mendigar em Paris,esperando as esmolas do seu amigo, quandoganhar os seus prêmios? O que acha que éesse jornal? São milhões de francosempatados; mais de um século de dedicaçãoe suor! E não devo satisfações a ninguém!

GEORGES- Mas, Adrien...

ADRIEN- Sim, vendi parte do jornal. Não pense que

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adorei fazê-lo. Nem que tenha sido fácil paramim, Georges. Mas estou velho paraemburrar com os tempos; e não pretendoarruinar-me em prol de uma verdade demerda, qualquer que seja ela, muito menosa do bom-mocismo idealista de sportmansbon-vivants...

GEORGES- Cuidado, Adrien, olhe o que está dizendo...

ADRIEN- Exatamente o que ouviu, Georges. O nossoamigo “petit Santos” não se preocupa comdinheiro, nem com patentes, etc; claro, nãoprecisa, é um criador, está a serviço dasdivindades etc, etc. E quanto à nós? Vivemosde quê? Se o nosso amigo tivesse nas mãoso poder que suas patentes lhe dariam, talvezpudesse comprar esse jornal inteiro. Mas não,ele prefere doá-las à humanidade! Que ahumanidade então o reconheça; porque o"Le Temps" tem seus compromissos e eu osmeus! Não sou mais o único dono dessejornal, Georges, ponha isso na sua cabeça.A nossa hora certa chegou no momentoerrado! E que o Sr Santos-Dumont seja felizcom seus aeroplanos... Aliás, quem omandou fazer aeroplanos?

GEORGES (acalmando-se)- Certo, Adrien, tem seus motivos; mas nãoprecisa atacar Alberto. É um direito, umaopção dele e de qualquer ser humano, a denão se meter nessa espoliação desatinada,de empresários desvairados, que se crêemdonos do mundo e passam a vida a estocarouro em porões suíços. A opção de dar àvida uma construção bela, humanista ecriativa não pode ser simplificada numarotulação banal de idealismo ou ingenuidade.Queiram ou não nossos míseros pasquins,coube a Alberto a glória de ser o primeirohomem a fazer o vôo mecânico, ache Vocêimportante ou não! E esse juizo cabe àHistória, que não pode existir senão dandoganho de causa à verdade e condenando oembuste.

ADRIEN

- Santos-Dumont tem contra si o fato depossuir justamente aquilo que os sereshumanos mais almejam para suas vidas:independência e liberdade. Além disso, édesprendido em relação a dinheiro, e nãopretende recompensas pelos seus feitos. Aspessoas levam isso a mal. Os que pretendem,porque o desinteresse atrai certa sorte quenão saberiam admitir despida demaquinações; os que recompensam porqueos não solicitamos. E, para piorar o quadro,é um brasileiro! E onde estão os brasileiros?!

GEORGES- Os brasileiros?...

ADRIEN- Pelo que posso presumir, o Brasil é umparaíso tropical habitado por um povo gentil,mas dominado por uma elite grosseira eestúpida. Esta só faz aguardar, engordandoem suas redes de siesta, os nossos naviosque vão buscar-lhes o café, plantado ecolhido pelo povo escravizado. Lá chegadoo dinheiro, embarcam com ele para cá, - àsvezes no mesmo navio que traz o café -, agastá-lo nas farras sórdidas dos MoulinRouges e Cassinos Royales da vida, enquantoseu povo chafurda na miséria e na ignomínia.Desde que transferiram Prado - e quetransferência infeliz e idiota! - não se vê umúnico patrício de Santos-Dumont presenteàs suas façanhas que têm repercutido nomundo inteiro! A embaixada brasileira nãomexe um dedo, não faz a menor exigência,e nem sequer pedido ou insinuação em seufavor. Enquanto isso, a embaixada americanajoga pesado, com todos os seus trunfos etodo o seu poder, para garantir-lhes asobrevivência ao menos de um embuste, queé só o que têm! Ah, se tivessem um Santos-Dumont! Transformá-lo-iam no Deus dosdeuses, e com muito menos do que fez.

GEORGES- Nisso tem razão, Adrien. Mas, e o trabalhode mais de cinco anos? Qual será seu destino?

ADRIEN- Como disse o próprio Santos-Dumont,

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citando um poeta seu conterrâneo, resta-nosesperar, Georges: “esperar, eis a doutrina davida; espera e alcançarás a ansiada palma”;ou algo assim, não é?

GEORGES- Nesse caso vou prosseguir. A não ser que o"Le Temps" não o queira mais... e, então...

ADRIEN- Por enquanto sou o diretor desse jornal,Georges, e, como disse, passamos a borracha.Sua função permanece, sem alterações.

O interfone chama e Adrien o atende.

ADRIEN (ao interfone)- Diga para aguardar, estou terminando.(desliga e, para Georges) - É Lazare, temosuma reunião de pauta.

GEORGES- Esse puxa-saco tem crescido nessa casa,não é, Adrien?

ADRIEN- Não preciso apelar para o meu sexto sentidopara prever que ele será meu sucessor no"Le Temps", Georges. Mas um outro "LeTemps" que, do meu, só terá o nome; setiver.

GEORGES- Está derrotista, Adrien!? Deve ser a vendade parte das suas ações. Só agora percebo oquanto isso deve ter sido duro para Você.

Peço-lhe desculpas, Adrien.

ADRIEN- Pertencemos, Você e eu, Georges, ao fimde uma era. À outra que se inicia, pertencemBenett e Lazare, este último, coitado dele!Mas isso é assunto para uma outra conversa.Por enquanto vá para casa e descanse. Eacalme-se; o mundo ainda não acabou!

SEQUÊNCIA 66 (O Número 15)

Novo teste com o 14 Bis, no Campo de StCyr. Um desastre quase total. SD sai ilesopor artes de uma sorte inacreditável.

Corte para o hangar de Neully. Fica prontoo Número 15, que recebe os últimosretoques. Chapin dá as últimas pinceladasna inscrição do seu número de batismo.

Corte para o Número 15 sendo levado, pelasruas de Neully, para o Campo de Bagatelle,com a ajuda do povão.

Teste oficial do Número 15. Multidão, etc.Um curioso passa a mão pela asa doaeroplano e fala com Chapin.

O CURIOSO- Que espécie de madeira é essa?

CHAPIN (atencioso)- Madeira compensada, senhor, pela primeiravez sendo utilizada em projeto aeronáutico.

Começam as tentativas doNúmero 15. Fracasso, oaeroplano corre nogramado e dá um

O Número 15

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"É uma perfeita composição, do ponto de vista estético!"

cavalo-de-pau antes de decolar, entortando-se todo. (foto) O piloto, mais uma vez, escapaileso de um perigosíssimo acidente.

SEQUÊNCIA 67

Interior da oficina secreta onde estão sendoproduzidos simultaneamente um balãodirigível e o “Demoiselle” que já começa atomar forma. Fabrica-se também umdeslizador aquático, como pré-projeto dehidroavião. SD explica a Levavasseur o seuprojeto de motor de 16 cilindros em V, atravésde desenhos e plantas técnicas e mostra aChapin a maquete do hidroavião, umdesenvolvimento do deslizador, já com suas

asas.

SEQUÊNCIA 68 (O Número 16)

Campo de Bagatelle. Teste do Número 16,(foto) um dirigível-avião de belíssima eproporcionadas linhas. Como sempre,curiosos em torno dele. Um homem, comaparência de artista, comenta para o outro.

O ARTISTA- É uma perfeita composição, do ponto devista estético! Um desenho que se aproximada perfeição!

Uma mulher sobe o topo de uma pequenaescadinha auxiliar de três degraus e passaos dedos entre a hélice e o invólucro paraacreditar que não se chocam, e comenta aDazon.

A MULHER- Mas não há perigo de a hélice furar o balão?

Dazon balança negativamente a cabeça comum sorriso condescendente.

"...um cavalo-de-pau antes de decolar, entortando-se todo."

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Amanhece em Paris. O lado leste da AvChamps Elysées, exibe a aurora com seusróseos dedos. No cenário da cidade deserta,perto do Arco do Triunfo, um leiteiro comsua carroça estacionada, enche os vasilhamespara distribuir aos fregueses. Um fiacre depadeiro passa,lépido, na direçãooeste, ao longo dabela avenida.Súbito o cavaloassusta-se, relinchae pinoteia,e s p e r n e a n d o ,quase jogando aochão o assustadopadeiro, quedesvia para a calçada, sem tirar o olho dasua direção, de onde aproximava-se umaespécie de bólido aéreo, em terrívelvelocidade, à semelhança de uma enormebala de canhão. O leiteiro, igualmente pasmo,olha para o mesmo ponto, esquecendo-sedo leite que derrama-se todo na calçada,recebendo os reflexos magentas da belaaurora. O Número 16 vinha sereno, pelo meioda avenida, a poucos metros do solo, numaprecisa linha reta em direção ao Arco doTriunfo e, sem reduzir a velocidade,atravessa-o por dentro, quase que numapenetração fálica. Logo em seguida, estacionatranqüilamente na porta da residência do seupiloto. François e Pierre aguardavam-no nacalçada, pegam as cordas e amarram-nas numhidrante. SD, como sempre elegantementetrajado, desce da aeronave e vai para ointerior do edifício.

Corte para SD,tomando café-da-manhã em seu salão,vendo-se, pelasgrandes vidraças dajanela, o Número 16estacionado e cercadode curiosos.Repórteres começam achegar e fotógrafosbatem chapas.

SD (para August que o servia)- Olhe para a janela, August, e veja o futuro.

AUGUST (olhando pela janela, com a carainterrogativa e a fleuma de mordomo)- E o que é o futuro, Senhor? Será o homem

estacionando suaviatura aérea naporta de suaresidência paraum lanche?

SEQUÊNCIA 69

Voisin testando oseu “ Voisin”, que

ainda não consegue voar (Legenda: Campode St Cyr, Paris, 1907 - Aeroplano de Voisine Bleriot - Piloto: Sr Voisin)

Corte para a oficina secreta. O “Demoiselle”está praticamente pronto . SD, dentro dele,experimenta os comandos.

Corte para um novo teste do aeroplano deVoisin, desta vez pilotado por MauriceFarman. (Legenda: Aeroplano de Voisin eBleriot - Piloto: Maurice Farman) O aeroplanoconsegue levantar vôo sob os aplausos daplatéia e a felicidade estampada nos rostosde seu piloto e construtores.

Corte para a carroça de carga do Sr Louischegando ao hangar de Neully. Chapin e osmecânicos descem com cuidado as partesdesmontadas do “Demoiselle”.

Jornaleiro, nas ruas deParis, exibe manchetede jornal: “ROBERTESNAULT-PELTERIEVOA 600 METROS NOSEU REPL”, naprimeira página do "LeTemps", acompanhadade fotos.

SD, no seu Número 18,o deslizador aquático,O Nº 18, um deslizador aquático com o seu V-16

O aeroplano de Voisin pilotado por Maurice Farman.

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faz demonstrações no Sena, para grandemultidão.

Altas horas da noite no hangar de Neully.SD namora a sua maravilha pronta para voar,e oferece um champagne a todos os seuscompanheiros, que fazem um entusiasmadobrinde.

SEQUÊNCIA 70(O Número 19, o primeiro “Demoiselle”)

Reina a paz no Castelo de Wideville.Tardezinha com o sol se pondo na tranquilapaisagem. (legenda: Castelo de Wideville,Davron, setembro de 1908) Um longínquoruído de motor começa a ser ouvido no céu.Os habitantes do Castelo interrompem suasrotinas e olham na direção da origem do som.Janelas abrem-se, e surgem senhoras ecrianças curiosas. O ruído vai aumentandogradativamente até que surge, cortando a tela,o “Demoiselle”, o Número 19, pilotado porSD. Ele faz um vôo rasante em volta doCastelo e vem para o pouso num longogramado, bem à frente do edifício. Todosacodem para vê-lo. O pequenino avião pousasuavemente, corre um pouco no gramado epára. O rugido do motor eleva-se e o“Demoiselle” segue taxiando, ágil, paradebaixo de uma árvore. A fachada do Castelo

convertera-se numa espécie de balcão deteatro, com todas as frisas ocupadas. SD saido seu aparelho enquanto dois guardas dapropriedade aproximam-se.

SD- Venho em paz, senhores. De quem é essapropriedade?

UM DOS GUARDAS- Pertence ao Conde de Gallard; e quem é osenhor?

SD- Meu nome é Santos-Dumont e sou amigodo Sr Conde. Levem minhas desculpas a elepor essa invasão inesperada. Digam-lhe quefoi uma emergência, e que não oincomodarei. Aguardarei aqui e só peço-lheum único favor: que faça uma ligação para omeu mordomo em Paris ordenando-lhe, emmeu nome, que tome a providência demandar-me buscar.

O OUTRO GUARDA- O senhor Conde não se encontra nomomento. Mas daremos seu recado àCondessa. Aguarde-nos. (e retornam)

SD começa a inspecionar seu aparelhoconferindo-o para ver se não houve algumdano. Os guardas voltam a ele seguidos pela

"Reina a paz no Castelo de Wideville..."

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Condessa, seus filhos esua entourage.

O PRIMEIRO GUARDA- A Condessa desejaconvidá-lo ao Castelo.

A Condessa aproxima-se de SD.

SD (tirando o chapéu)- Senhora Condessa(beija-lhe a mão), mil perdões por tãoinoportuna invasão. Espero que seus criadostenham-lhe informado da emergência em queme encontro.

A CONDESSA- Senhor Santos-Dumont, todos estamosmuito felizes com essa surpresa que nos caido céu. É uma honra recebê-lo em nossacasa. Considere-se meu hóspede.

SD- Muito agradecido, senhora Condessa,tomarei o seu precioso tempo apenas osuficiente para um telefonema, se a Senhoramo permitir...

A CONDESSA- Senhor Santos-Dumont, um hóspede emWideville é meu hóspede. E meus hóspedesnão costumam ser tão apressados. Emboranunca tenhamos recebido um que chegassevoando, eu ficaria ofendida se recusasse anossa humilde hospedagem nessaemergência.

SD- Oh, não, senhora Condessa! Entendeu-memal e peço-lhe outravez desculpas pornão ter me explicadobem. É que eu mesentiria como seestivesse abusandode sua gentileza...

A CONDESSA(interrompendo-o

risonha)- Senhor Santos-Dumont, começo asentir frio. Meuscriados guardarão seulindo aeroplano noestábulo, e emsegurança. Peço-lheque me leve de voltaao Castelo.

SD (oferecendo-lhe obraço)- Não tenho como expressar a minhagratidão, Senhora Condessa.

Caminham em direção ao Castelo e entram.

Ao longe, já de noite, surge a carruagem doConde a todo o galope. De dentro dela, oConde e o Cap. Ferber tentam entender umaestranha movimentação perto do estábulo.A carruagem estaciona ao lado dos criadosque cercavam o “Demoiselle”.

A Condessa e SD saem à porta do Castelopara recebê-los

A CONDESSA (radiante, para o surpresomarido)- Querido, temos uma visita para hoje quenos veio dos céus! O Sr Santos-Dumont emcarne e osso. (e estende a mão para recebero beijo do Cap. Ferber)

O CONDE (cumprimentando SD)- Pensávamos que havia tido um acidente,Sr Santos-Dumont. Vimos o Sr passar pelacopa das árvores em St Cyr e não maisretornou! Fico feliz de vê-lo em minha casa

são e salvo.

SD- Foi umaaterrissagem deemergência, SrConde. Descuidei-me da hora e,quando percebi, eraquase noite...

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A CONDESSA- O Sr Santos-Dumont e o Cap. Ferber serãonossos hóspedes por essa noite, querido.

O CONDE (para SD)- Quer dizer que a sua pequena libélula oleva para onde quiser pelos ares? Sou seuadmirador, Sr Santos-Dumont; fico honradocom essa coincidência. Creio que sou oprimeiro homem do mundo a receber umavisita que me chega pela via aérea!

Corte para a sala de jantar, onde todos jantamum refinado banquete.

SD... e então tive de comparecer pela primeiravez a um tribunal. Precisava garantir ainvenção dos meus motores ao domíniopúblico. Nada tenho contra se os constroeme vendem; nada cobro. Mas não possopermitir que outros cobrem direitos depatentes que eu já houvera concedido aopúblico.

A CONDESSA- Eu simpatizo muito com esse seudesinteresse, Sr Santos-Dumont. Sempre deirazão ao Senhor. O progresso seria muitomais veloz e mais ameno para todos, não é?Os homens não precisariam criar seusinventos às escondidas e haveria menosganância e corrupção.

CAP. FERBER- Mas a Sra há de levar em conta, SraCondessa, que nem todos possuem a mesmasorte do Sr Santos-Dumont. São altos oscustos e os riscos das experiências científicase seus autores precisam ser recompensadospara continuar. É um instituto justo, o daspatentes. E quem não as desejar, é só abrirmão delas, como o faz o Sr Santos-Dumont...

Terminam a refeição e dirigem-se ao salãode fumar.

O CONDE (ao chegar ao salão)- Essa década tem sido de grandes progressosno campo da aeronáutica. Há bem poucotempo lembro-me de uma noitada noMaxim’s em que comemorávamos o retornodo Sr Santos- Dumont, são e salvo, de umatemerária viagem no seu pequeno balãoesférico. Agora o temos aqui, bem chegadonuma aeronave que o leva para onde quer,fazendo em 14 minutos, o percurso quelevamos duas horas e meia de carruagem. Eainda temos os progressos de Bleriot, Voisin,os Farman, Breguet e muitos outros...

CAP. FERBER- Não podemos esquecer dos irmãos Wright,que chegaram há poucos dias em Paris eestarão demonstrando o seu aeroplano nasemana que vem.

SD- Eles trouxeram o “Flyer”, de 1903?

CAP. FERBER- É exatamente o mesmo “Flyer” que voouem 1903, e sobre o qual falei, na época, numareunião do AeroClube, lembra-se, Sr Santos-Dumont?

Sentam-se nas grandes poltronas, servidosde licores e doces. SD recusa um charuto.

SD- Sim, lembro-me. Mas..., não acha um poucoestranho, Cap. Ferber?! Estamos em 1908. De1903 para cá, desenvolvi cerca de 10diferentes projetos e, antes daquela data,outros tantos. Os Srs Voisin, Bleriot, Pelterie,Breguet, Farman e Archdeacon também nosexpuseram nesse período, uma bela trajetóriade experimentos. E, na observação mútua,houve a contribuição de uns para com osoutros. Assim tem sido o progresso daciência. Uma pequena descoberta aqui, outraali, um pequeno novo invento, e, detalhepor detalhe, surgem as grandes invenções.Não somente conosco, mas, também, com

os maiores em outros misteres, como

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Edson, Marconi, Grambell, Goodyear. Só comos Srs Wright é que não. Não se sabe o quefizeram antes de 1903, e agora chegam a Paristrazendo o mesmo modelo que disseram tervoado há cinco anos. Vi há pouco algumasfotos, as primeiras que até hoje nos chegaram.Não parece ser diferente dos nossos antigosmodelos! Percebi que contribuições minhase de meus colegas estão lá aplicadas. Comoexplica isso, Cap. Ferber?

CAP. FERBER- Os Wright trabalham num rigoroso sigilo. Ecreio que, não somente eles, não é, Sr Santos-Dumont? Também o Sr, sabemos, guardagrandes segredos debaixo de sete chaves...

O CONDE- Você desviou da conversa, Ferber. Não ésobre os segredos que Santos-Dumont serefere. É justamente sobre o que não ésegredo. E quanto a isso dou inteira razão aele.

CAP. FERBER- Bem, em breve estaremos vendo a máquinados Wright voar em Paris.

SD- Porque não sugere que façam um vôo deSt Cyr até aqui, nesse agradável Castelo doSr Conde? Seria um belo evento, e de muitobom gosto. Essa casa é um exemplo do quemelhor possuímos em França... (o Conde dáuma gargalhada)

CAP. FERBER (aborrecido, mas sem dar obraço a torcer)- Não deixa de ser uma idéia. Procurareisugeri-la.

O CONDE (ainda rindo)- E diga-lhes que não se preocupem. Pedireia Santos-Dumont que venha na frente,guiando-os, para não se perderem (edá outra gostosa

gargalhada. SD também ri. Ferber emburra).

No dia seguinte, de manhã, toda a vizinhançado Castelo estava presente para ver o Número19 decolar, de volta a Paris. SD despede-seda família, acena ao povo, dá a partida nomotor e entra no seu “Demoiselle”. Aciona amanete da mistura e acelera. O pequenoaeroplano desloca-se lentamente, vaiganhando velocidade e, de repente, sai dosolo, voando serenamente, em linha reta,subindo, distanciando-se. Lá na frente retornae passa veloz sobre as cabeças de todos queo aplaudem, ganha altura e desaparece porcima das copas das árvores.

SEQUÊNCIA 71

Repórteres entrevistam Orville Wright no halldo Grand Hotel de Paris.

ORVILLE... afirmar que o vôo de Santos-Dumont foio primeiro da História, seria o mesmo queadmitir que qualquer outro navegador, quenão Colombo, tivesse descoberto a América,porque ela não foi homologada por nenhumClube de Descobridores!

Os mesmos repórteres entrevistam SD naporta do seu edifício no Champs Elysées .

SD- Foi infeliz o Sr Orville Wright nessaargumentação porque é sabido que muitosaventureiros tentaram arrogar para si oprivilégio de terem sido os primeiros a chegarna América. Mas a História só o concedeu aColombo justamente porque o fez commuitos testemunhos e farta documentaçãooficial; não foi às terras ocidentais emsegredo, e seus relatos, e de seus tripulantes,

foram homologados pela ciência da épocae a dos nossos dias, enquanto

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

O "Flyer" dos Wright e o seu imprescindível "pylon".

aqueles aventureiros só tinham a seu favoros seus próprios testemunhos e documentospor eles mesmos forjados. Porém, eu ficofeliz que o Sr Wright tenha arriscado estesofisma, pois assim acabou por fazer por mimo que ninguém fizera antes, nem mesmo osmeus mais exaltados apologistas: ainda quesem essa intenção, o Sr Wright não fez outracoisa senão comparar-me ao grandeCristóvão Colombo.

SEQUÊNCIA 72

Adrien e Georges viajam numa cupê pelasruas de Paris.

GEORGES- Não entendi bem aquele entrevero doEmbaixador Henry White com o Conde deGallard, ontem, na solenidade do AutomóvelClube, Adrien.

ADRIEN- O fato é que a arrogância dos americanosjá incomoda os franceses, Georges. Depoisda pressão bem sucedida, mas não semconstrangimento, sobre o Aero Clube, paraincluir os irmãos Wright entre os seusprimeiros brevetados, tentaram transferir ademonstração de hoje para Le Mans. Peloque sei, foi idéia do Ferber. Não sei o motivo.Mas o Conde perdeu a paciência e ameaçouboicotar o evento. White não teve saída senãoceder.

GEORGES- Talvez temessem o sobrevôo do“Demoiselle” na hora da exibição.

ADRIEN- É plausível. Mas levaram

longe demais o embustee estão dispostos a ir

com ele até o fim. Os americanos têm umaincrível capacidade de não se preocupar como ridículo.

SEQUÊNCIA 73 (“Os barqueiros do Volga”)

A cupê chega a St Cyr, já com grandemovimento de trânsito e pessoas.

(Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 3 deoutubro de 1908) Os Wright vão finalmenteexibir à França o seu aeroplano secreto. Emgrande lobby da diplomacia americana,apresentavam- se todas as autoridades epersonalidades civis e militares, e, é claro,toda a grande imprensa mundial e a altasociedade em peso. Adrien e Benettconversavam.

ADRIEN- O que é aquilo com um peso pendurado?

BENETT- É o “pylon”. Ao soltar o peso, este puxa acorda que empurra o aeroplano no seuimpulso inicial.

ADRIEN- E como se faz para levantar aquele peso?

BENETT- Lá estão os homens para fazê-lo. Veja, jácomeçam a puxá-lo.

Corte para os dez homens (os “barqueirosdo Volga”) puxando, com esforço, a cordado “pylon”. (foto)

Tudo pronto. Silêncio geral. O EmbaixadorHenry White prepara-se para dar o sinal.Wilbur já está posicionado, deitado dentroda estrutura do “Flyer” e Orville aguarda osinal para girar a hélice. De repente, um

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Barqueiros do Volga? - Não! Apenas os puxadores do "pylon", indispensável auxílio para a partida do "Flyer".

acontecera ao piloto todos aplaudemruidosamente, comandados pelos efusivosaplausos de Benett e White.

O comissário de medição berra doautomóvel: - 30 metros!

WHITE (para Orville)- Uma segunda tentativa!

ORVILLE- Sim, senhor.

Algumas tentativas depois, o públicodemonstrava o seu cansaço. White dá-se por

satisfeito.

WHITE- Ótimo cavalheiros, com este

vôo de 600 metros ficam nítidasas excelentes qualidades dessa

máquina e o futuro que ela nos reserva. (e,para os Wright) - Nós agradecemos aossenhores, por essa pioneira exibição deciência e coragem reunidas; muito obrigado!(e aplaude, seguido pela platéia)

Os Wright agradecem ensaiadamente.

SEQUÊNCIA 74

Na gráfica do "Le Temps", Georges estáreunido com o grupo de operários, oficiaisgráficos e alguns funcionários. Todos ocercam, ouvindo-o com atenção. Ele dá boasrisadas.

GEORGES (entre as risadas)- ... e então surgiu o

ruído de motor aéreo rompe o silêncio,aproximando-se. Todos voltam os pescoçosem sua direção. Henry White, Benett e osWright não escondem o aborrecimento. Surgeum “Demoiselle” por cima da copa de umarvoredo.

ADRIEN (para Georges)- Espero que não seja Santos-Dumont,Georges, isso não é bom. (e, procurando namultidão) - Onde está ele?

GEORGES (protegendo os olhos do sol paraver com clareza o aeroplano aproximando-se)- Não veio... Mas... não, não é ele. Éo piloto de provas do Clément-Bayard, aquele russo, um tal deKazan.

O “Demoiselle”faz umaaproximação rasante perto dos homens quepuxavam a corda, evolui em graciosa curvade retorno e vai-se embora, pelo mesmocaminho que veio. O constrangimento égeral. Henry White porém não dá a mínimae quebra o gelo.

WHITE- Cavalheiros, agora que se foi o “penetra”,vamos dar início à demonstração para a qualforam convidados. (e dá o sinal)

Orville gira a hélice e manda soltar o “pylon”.O peso cai de uma só pancada e o aeroplanoé imediatamente lançado a uns dois metrosde altura e segue em frente, voando instável,até pousar uns trinta metros adiante, parandoabruptamente. Após ter certeza de que nada

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

“Demoiselle” com o russo Kazan olhandotudo, muito curioso, com aquela cara meiomaluca. Foi muito engraçado. Nem seidescrever a cara dos americanos. Difícil foiconter o riso na hora. E depois, soubemosque o Cap. Ferberinterrogou Kazan, parasaber se fora Santos-Dumont que planejaratudo.

A cena passa para o Cap. Ferber interrogandoo russo Kazan.

KAZAN (sentado numa cadeira deinterrogatório sob os olhares ameaçadoresde Ferber e outros oficiais) - Não, seu capitão, eu tava s ótestando um modelo prodotô Clemen e fui pro sulpruquê no norte, como decustume vô, tinha umasnuve danada de preta, seu capitão.Aí vim e dei com aqueles homepuxando a colda qui nem meusconterrano faz lá no Vorga e pensei:será meus conterrano, os barquero do Vorga,como os senhores costuma dizê? Fiqueicurioso de sabê quê queles tava fazendo alinaquela grama. Então fui dá uma ispiada. Aíqueu vi aquela gente toda enfarpeladalá e vi a torre de ferro e u’a máquinaqui paricia daquelas antiga de voá,o sinhô sabe, né?

Ferber dá apenas um rugido econtinua a fuzilar o russo com o seuolhar ameaçador.

KAZAN (continuando, tentando explicar-se)- Num intindi bem mas vi que tavaatrapaiando. Então fui ‘bora. É só isso, seucapitão, num foi pro mal não, seu capitão!

A cena volta para Georges e a sua roda deouvintes na gráfica do "Le Temps". (maisgargalhadas gerais)

GEORGES (quase sem conseguir conter oriso)

- E o coitado tremia que nem uma varaverde, com medo de tomar umasurra do Cap. Ferber. Essa é

boa; “os barqueiros do Volga”! (evoltavam a dar gargalhadas)

Marcel Duchamp, um jovem fotógrafo-desenhista, novo no jornal, interpela Georges.

DUCHAMP- É verdade que o aeroplano deles não temrodas?

GEORGES- Aí é que está o ponto,Duchamp, Você tocou amedula da questão. Há sete

anos venho acompanhando e estudandoas experiências aeronáuticas. Desde queRoger Bacon previu as máquinas de voar,

foram inúmeras as tentativas realizadas.(agora em off, sobre a iconografia animadaou estática) - Já no Século XVIII, homenscomo Besnier, o marquês de Bacqueville

Blanchard, Bartolomeu de Gusmão,Launoy, Bienvenu, Jacob Degen,Vittorio Sarti, Dubochet, Caignard dela Tour, Sir George Wiley, Henson,Stringfellow, Du Temple, e,

recentemente, o príncipe Albert,Palmer, Kauffmann, Gibson,Spencer, Penaud, Tatin, Hureau deVilleneuve, Langley, Thaso,

Lilienthal e ainda, Chanute, Voisin, Bleriot,Farman e os Wright; todos até poderiam tertido êxito, se houvessem colocado rodas em

seus aparelhos. Ader, que foi únicodesses precursores que a

colocou, só nãofez voar a

s u amáquina

p o r que não possuía motor apetróleo. Santos-Dumont já

De cima para baixo: Lilienthal, Chanut,Langley e o "Avion" de Ader.

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colocava rodas em seus inventos desde seusprimeiros dirigíveis. Por isso foi o primeiro avoar pelos próprios meios e capaz de retornarao solo sem problemas. O aeroplano dosWright, apesar dos americanos fingirem nãoenxergar, não passa de uma traquitanaultrapassada e catapultada. Como projeto econstrução, chega a ser ingênua, além deantiquada e superada. Quando perguntei porque não utilizavam rodas em seu aeroplano,disseram-me candidamente que elasexigiriam muita pista para decolar!?...

Um foca aproxima-se

O FOCA- Sr Georges, o Sr Adrien...

GEORGES- Sim, ele me chama. Diga-lhe que estareicom ele em cinco minutos. Preciso ir aotoillete. (despede-se e sai)

SEQUÊNCIA 75

Georges sai do elevador no 4 andar e seguepara o Gabinete de Adrien. Percebe umguarda bem à frente da porta de seu Gabinetemas não dá maior importância. Louise orecebe, abrindo a porta do gabinete.

ADRIEN (com um aspecto aborrecido)- Pedi que viesse porque há novidades quenão gostaremos de ouvir.

GEORGES- Mas é preciso essa cara de enterro?

ADRIEN- Benett está chegando com Chapman, onovo Presidente do Conselho de Acionistas.Hoje deixo de ser majoritário na sociedade.

GEORGES- Já não me aborreço mais com essasnovidades, Adrien. Comprou aquelapropriedade em Avignon?

ADRIEN

- Sim, comprei. Em cinco anos aposento-mee vou morar lá. É o fim do ciclo dos Hébrardsna gráfica francesa. Um dos meus filhos éadvogado e o outro filósofo na Sorbonne.

GEORGES- É uma lástima, Adrien. Foram quatro belasgerações de gráficos-editores: os“informadíssimos Hébrards”! Desde os jornaisrevolucionários de Danton, os manifestos deNapoleão, as parcerias com Hugo, Balzac,Flaubert, até Você com Zola e o casoDreyffus... Não se sente mal?

ADRIEN- Por um lado, sim, é melancólico. Mas, poroutro, fico orgulhoso. Para ser sincero, nãome agradam os novos tempos. Desde oadvento da eletricidade, tudo começou amudar vertiginosamente. Antes fazíamos umjornal caseiro, artesanal, preocupado com osfatos e com os leitores; lembro-me que todaa família participava dos trabalhos... Entãovieram o telégrafo sem fio, o telefone, asrotativas, o automóvel, o aeroplano, enfim,a indústria e a loucura da produção em série.Pressinto maus momentos para aHumanidade, Georges...

GEORGES- Mas ainda não me respondeu...

ADRIEN

- Há uma nova imprensa da qual não somosparte, Georges. Donos de jornais já nãoprecisam ser jornalistas ou editores. Sãoempresários; capachos do poder. Escreverbem, ter faro para notícias, responsabilidadecom os fatos, compromissos com o leitor eoutras coisas que os séculos de imprensatentaram nos ensinar, são coisas do passado;como os “Hébrards”. Não são mais os leitoresque sustentam as publicações diretamente,como antes, através das assinaturas dosnossos antigos e pequenos jornais. É a vendapanfletária e a serviço do poder, e deprodutos industriais de todos os tipos;transformando o jornal num loteamento deespaços gráficos vendidos a x francos a linha.(toca o interfone; ele atende) - Sim, pode

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

entrar. (e, para Georges) - Benett e Chapmanchegaram. Prepare-se, Georges.

Entram Benett e Chapman. Todoscumprimentam-se formalmente.

BENETT- Vamos direto ao assunto. Sr Goursat,pedimos essa reunião em consideração aosenhor e aos serviços que tem prestado aojornal. O que vamos lhe dizer não é pessoal.

GEORGES (sem perder a pose)- É tão grave assim?

BENETT- Apenas negócios. Com a fusão do Heraldde Paris e o "Le Temps", apoiada por grandesbancos franceses e americanos, aprosperidade dessa casa passou a ser a metaprincipal dos nossos acionistas, e, em breve,o "Le Temps" será o maior jornal europeu.Mas a fusão trouxe também algunsproblemas. O histórico anterior de duasempresas publicamente adversárias,disputando um mesmo mercado, alimentousobremaneira os arquivos secretos dos doisjornais com material muito perigoso para anova realidade. Em outras palavras, Adrienandou me espionando e eu também oespionava; Você sabe disso...

ADRIEN (baixinho para Georges)- É capaz de adivinhar quem era o espiãodele?

GEORGES (também baixinho para Adrien)- O patife do Lazare, claro.

CHAPMAN- Exatamente, cavalheiros, intrigas como essaque os senhores acabaram de perpetrarpoderiam multiplicar-se causando gravesdanos à sociedade. Por isso, os acionistas,em decisão majoritária, resolveram lacrar osarquivos secretos dos dois jornais por umperíodo de 20 anos.

GEORGES- Vinte anos?! É bastante tempo... Mas,

cavalheiros, por quê chamaram-me aqui?

BENETT- Entre os arquivos secretos do "Le Temps"que serão lacrados, estão incluídos osarquivos sobre o aeronauta...

Ao ouvir isso, Georges pulou da poltronafurioso. Benett o interpelou, tambémlevantando-se.

BENETT- Acalme-se, Sr Goursat, sabemos do seutemperamento e da sua indisciplina... paranão falar da bebedeira.

GEORGES (avançando sobre ele)- Ora, seu...

ADRIEN (retendo-o)- Georges!

GEORGES (tentando safar-se)- Você também é conivente, Adrien, nãotoque em mim! Já entendi... meus arquivossobre Santos-Dumont... serão destruidos...bando de patifes, eis o que são!

BENETT- Ninguém falou em destruição de arquivos,Sr Goursat; peço-lhe que comporte-se comoum cavalheiro, ou mandarei chamar osguardas. Os arquivos que diz serem seuspertencem, em verdade, à sociedade; issoestá bem claro no seu contrato. O senhordeve entregar suas chaves ao Sr Chapman.

GEORGES (controlando-se e encarandoBenett)- Não sou um criminoso, Sr Benett, e nãotente tratar-me como tal! Não lhe devoobediência, pois não sou seu empregado,nem da sua sociedade, a partir dessemomento! Portanto, não mexa na minha salaenquanto lá estiverem meus pertencespessoais. E nossos advogados é que decidirãoquais são eles...

BENETT- Faça o que bem entender, Sr Goursat, como

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já disse, não é nada pessoal. Sou seu leitor eadmirador. Aqui tratamos apenas negócios...

GEORGES- Em nada me honra a sua admiração, SrBenett, me sinto sufocado aqui, nesse seumundo imundo. Vou sair, passem bem,senhores... (pega o chapéu e sai em direçãoà porta)

BENETT- Damos-lhe 48 horas, Sr Goursat, não mais!Vá perder seu tempo com os advogados. SeuGabinete não é mais seu e seus pertencespessoais serão retirados. Estarão à suadisposição no Departamento de Pessoal. Senão tivermos as chaves no tempo estipuladoarrombaremos os armários e o cofre, fiquecerto. São propriedades dos acionistas etemos autorização deles para fazê-lo.

GEORGES (já na porta, irônico emelancólico)- Arrombar cofres... deve ser essa aespecialidade dos senhores e seus acionistas,não é? E, Adrien, Você me decepcionou;nunca pensei que se chafurdaria num covildesses. Passem bem, senhores! (bate a portacom força e sai)

SEQUÊNCIA 76(O maior espetáculo do Século)

No jornal aberto um anúncio de Clément-Bayard vendendo o Aeroplane Santos-

Dumont Nº 20 por 7500 francos. O jornalestá nas mãos de Georges, sentado numbanco, frente ao hangar de Santos-Dumontem St Cloud. Vários outros hangares ladeiamaquele edifício pioneiro. Oito aeroplanos devários tipos estão dispostos à frente deles,com predominância dos "Demoiselle", comquatro exemplares estacionados e dois emvôo de instrução por sobre St Cloud. Ao lado,no hangar de Clément- Bayard, está SD dandoalgumas instruções aos mecânicos. Do ladooposto, está o hangar de L. Dutheil, R.Chalmers e Cia, anunciando também, numaplaca, um novo modelo do "Demoiselle" por5000 francos. SD vem na direção de Georges.

SD Nº 20 - "Demoiselle": o primeiro avião do mundo; é também o 1º a ser produzido em série e vendido ao mercado.

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD (sorridente)- E então? Como foi o repouso na CoteD’Azur? Divertiu-se?

GEORGES- Que nada, Alberto! Mal consegui dormir.Voltei dois dias antes do previsto. Eu operturbo?

SD- De modo algum. É preciso esquecer o "LeTemps" e os nossos arquivos, Georges. Meusadvogados analisaram o casoexaustivamente.Não temosqualquer direitosobre a decisãodos acionistas. Omáximo quepudemos fazerfoi acompanharo lacre napresença dotabelião e dastestemunhas, econseguir umacordo para queos originaispassem a ser

propriedade dos seus autores, após o prazo.Esqueçamos isso; o L’Illustration é umexcelente jornal; todos lá gostam de Você...

GEORGES- Por favor, Alberto, não tente consolar-me.Só agrava o meu estado. Me sinto como setivesse sido condenado a 20 anos de prisão.

SD (sentando-se no banco, ao lado deGeorges)- Ora, Georges, também me aborreci. Mascomo dizem na minha terra, é melhor “dar avolta por cima”. É preciso também nãoconfundir a posição de Adrien. Compreendo-a perfeitamente. Não teve escolha; os fatosnos atropelaram, e a ele também. É umgrande amigo seu; a influência dele foidecisiva para a sua contratação noL’Illustration...

GEORGES- Não consigo enxergar o Adrien metidonessa patifaria, Alberto, mas ele estava lá...bolas, esqueçamos tudo isso!... Pelo que vejoos "Demoiselle" vão de vento em popa!

SD- É o meu sonho plenamente realizado,Georges. Vendemos já 40 exemplares. E oChalmers está fazendo mais 30 simplificados.Passamos o dia a dar instruções aos novospilotos e mecânicos. Você está assistindo,nesse momento, ao maior espetáculo do

Século: onascimento daaviação civil !Portanto, alegre-se, homem!

SEQUÊNCIA 77

Manchetes dej o r n a i ssobrepõem-sena tela:

“LAHAM TENTAATRAVESSARCANAL DA..."o nascimento da aviação civil"...

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MANCHA”

“BLERIOT É OPRIMEIRO AATRAVESSAR OCANAL NUM MAISPESADO QUE OAR”

“ G R A N DSEMAINE DECHAMPAGNE”

“AERONAUTASDE TODO OM U N D OCHEGAM ÀFRANÇA”

“WR IGHTSRECUSAM-SE A PARTICIPARDO CONCURSO”

(Legenda: Grand Semaine deChampagne, Reims, agostode 1909) Aviões de todos ostipos chegam embalados edesmontados no Campo deChampagne. Namovimentada manhã, asaeronaves vão cobrindo decores o grande gramado,cercadas de mecânicos,aeronautas, visitantes ecuriosos. SD chega trazendoo seu "Demoiselle" no seupróprio automóvel. Vem aoseu lado, Georges, e, atrásdele, no Mercedes, Chapin, ao volante,Gasteau eDazon. AComissão deRecepção osrecebe emf e s t a s ,anunciando apresença do“ A e r o n a u t apioneiro dosares, o Sr

Santos-Dumont”,através do sistemade alto-falantes,p r o v o c a n d oaplausos em todaa extensão docampo. Umenorme públicoacompanha os

dois carrosenquanto sedirigem aoh a n g a rdesignadop e l aComissão.

Começamas provas.Quinhentos

mil espectadores cercam apista de 10 km de extensão.Festa no ar: sete aviões emvôo ao mesmo tempo,anunciam os alto-falantes,“pela primeira vez nomundo”! Um deles, porém,começa a soltar fumaça edesgoverna-se, caindo nomeio da platéia. Susto geral!Duas mortes! Contrai-se orosto de SD.

O alto-falante anuncia umvôo de Bleriot. Ele decola,levando um passageiro. Omotor falha na decolagem eo aparelho precipita-se sobre

a multidão em pânico. Sem mortes, apenasf e r imen t o s .Ambulânciascorrem aolocal. O rostode SDabor r ece - seainda mais.

A n u n c i a mDelagrange, jána decolagem.

"LAHAM TENTA ATRAVESSAR CANAL"

Curtis na "GRANDE SEMAINE"

..."SD chega trazendo o seu Demoiselle"...

"BLERIOT É O PRIMEIRO A ATRAVESSAR O CANAL"

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

Ao seu lado, decola, sem autorização, E.Paulham, numa subida perigosa, choca-se deleve com Delagrange, e cai. SD está aflito.

UMA SENHORA NA MULTIDÃO (bem pertode SD)- Meu Deus! Essa coisa mata!

Outro desastre; o inglês George Cockburn,cai com o aeroplano de Farman. Virou umentulho de panos, madeiras e sangue. Quatromártires só no primeiro dia!

SD (lívido, suado, lacrimejante)- Chapin, não desça o "Demoiselle"; vamosvoltar.

CHAPIN- Mas, senhor, este é o nosso melhor modelo!Voará perfeitamente. Nunca o vi com medode voar!

SD- Não é medo, Chapin. Não pretendotripudiar sobre os restos mortais dos nossoscompanheiros martirizados nessa carnificina.Vamos embora; Georges, Você vai?

GEORGES- Devo ficar, Alberto. Estou em missão detrabalho. Mas dou-lhe razão. O ambiente nãoestá bom. Vejo-o em Paris.

SEQUÊNCIA 78

SD está só na sua oficina secreta, vendo osfilmes do 14 Bis e do "Demoiselle". Suaexpressão demonstra uma profundaamargura. O interfone toca.

AUGUST (in)- É o advogado Romain Lelouch, senhor, jáestá aqui.SD (in)- Sim, August. Leve-o ao Gabinete e peçaque aguarde-me. Demoro uns cinco minutos.

No pequeno Gabinete de trabalho doapartamento de SD, com uma pequena

estante ocupada com as obras completas deJúlio Verne, troféus, copas e, nas paredes,diplomas, quadros de medalhas e fotos defamília, esperava o advogado RomainLelouch. SD entra calmamente, senta-se à suamesa, que é decorada por um grande jarrode flores e a foto emoldurada de AidaD’Acosta.

SD- Como vai, advogado Lelouch?

ROMAIN- Muito atarefado, Sr Santos, espero poderservi-lo no que deseja.

SD- Dr Romain, decidi que vou dar porencerrada as minhas atividades de inventore aeronauta.

ROMAIN- Eu ouvi bem, Sr Santos? O senhor está medizendo...

SD- Exatamente o que o senhor ouviu, DrRomain. Chamei-o para ajudar-me aprovidenciar a aposentadoria do Sr Chapin,o único dos meus fiéis mecânicos quetambém deseja parar. Os demais não terãodificuldade em colocar-se; são os melhoresde Paris...

"...e a foto emoldurada de Aida D'Acosta..."

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ROMAIN- Se é o seu desejo, Sr Santos, nosso escritório,como sempre, está à sua disposição. Daremostodas as providências que nos ordenar. Agorapermita-me informá-lo sobre um assuntodelicado...

SD- A questão das patentes do "Demoiselle"?

ROMAIN- Não, não senhor; esta causa já ganhamos eestá encerrada. O domínio público foiassegurado, conforme o seu desejo. Falosobre a questão da vistoria no imóvel anexoa este. Como já lhe informamos o processopermanece em difícil situação. Somente umacordo poderá tornar as coisas mais fáceis.Creio que agora, o senhor abandonando asatividades...

SD- Dr Romain, não estou disposto a abrir mãode nenhuma das minhas prerrogativas edireitos de proprietário; em hipótese alguma!

ROMAIN- O escritório não sabe até quando poderámanter essa situação, Sr Santos. Tenho odever de informá-lo que é iminente aaprovação da lei de emergência. Se issoacontecer, mais nada poderá ser feito.

SD

- Mas, até lá...

ROMAIN- Sim, até a aprovação, apesar dos altos custosque o senhor terá de desembolsar, é possívelmantê-los longe. Nosso conselho porém...

SD (interrompendo-o)- Mantenha-os longe, Dr Romain. Temosalgum outro assunto? Desculpe-me, masestou bastante ocupado no momento.

ROMAIN- Apenas entregar-lhe o relatório financeirodo último semestre, Sr Santos. Aqui está(entrega-lhe os papéis que retirou da pasta)- As coisas felizmente continuam a ir bempara o senhor. Aliás, sempre andaram bem,não? O senhor é mesmo um homem de muitasorte!

SD (recebendo os papéis e olhando-ossuperficialmente, sem entusiasmo)- Obrigado, Dr Romain. Dê lembrançasminhas ao advogado Heifetz.

SEQUÊNCIA 79 (Despedida)

A oficina secreta está abarrotada dos modelose pedaços de modelos que nela foramconstruídos desde que fora inaugurada.Numa reunião com todos os seus principaismecânicos, incluindo Anzani e Levavasseur,

SD, seus três fiéis mecânicos, Chapin, Gasteau e Dazon e o protótipo do inacabado bimotor.

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

- É muita gentileza deles, Georges. Não estoucerto se a mereço...

GEORGES- Já sentem sua falta por lá. Todos

descobertas. Mas hoje o Aero Clube pareceter perdido a sua independência, senão adignidade. Veja o episódio da concessão dosbrevets. A pressão para a inclusão dos Wrighte do Cap. Ferber foi vergonhosa edemonstrou a fraqueza da nossa direção.

GEORGES- Isso deu-se logo após o golpe do "LeTemps". Estava tudo articulado, desde a visitados Wrights. E o Aero Clube precisava dedinheiro e prestígio para as ampliações. Seeu devo perdoar Adrien, como meaconselhou, perdoe Você também o AeroClube. Estou aqui como embaixador deles,Alberto.

SD- Não me consta que tenha perdoado oAdrien...

GEORGES- Intimamente sim. Apesar de não o terprocurado mais, não guardo ressentimentos.

SD- Eu não tenho o que perdoar em relação aoAero Clube, Georges. Compreendo a posiçãoda Diretoria. Ficarei muito honrado com essahomenagem, pode dizer a eles.

GEORGES- Você comparecerá?

SD- Sim, claro que sim.

SEQUÊNCIA 80 (Apologia)

Na sede do Automóvel Clube, uma grandereunião plenária do Aero Clube.Comparecimento maciço de todos os sócios.Archdeacon faz um discurso.

ARCHDEACON- ... e como ressaltou o Sr Deutsch de LaMeurthe, nosso Aero Clube, o pioneiro dosAero Clubes, que hoje espalham-se pelomundo, ressente-se da ausência voluntária

SD despede-se. Clima de emoção e tristeza.Alguns não conseguem esconder as lágrimas.

SD- Amigos, chegou o fim da minha jornada.Minha saúde não permite a continuação dostrabalhos. Além disso, enfrentamos o boicotede uma imprensa entregue a interessesinescrupulosos. Começo a duvidar se o quefizemos com tanto empenho e dedicação,reverterá mesmo em benefício daHumanidade. De mim sempre haverá oprofundo reconhecimento da importância detodos nessa trajetória de mais de uma décadade intensa atividade criadora. Vocês todosestão de parabéns! Desejo que sejam felizesem seus novos empregos. Muito obrigado.

Comovido, SD começa a abraçar um por um,num clima de enterro. Todos, emocionados,abraçam-no demoradamente, sem conseguiremitir uma palavra, pegam suas maletas esaem da oficina, olhando-a com tristeza, pelaúltima vez.

SD fica só na oficina, prepara um drink,senta-se na mesa de leitura, abre um cadernoe começa a escrever. Entra Georges.

GEORGES- Houve uma reunião de cúpula no AeroClube, Alberto. Estive lá a pedido da diretoria.Estão preparando uma grande homenagempara Você.

SD

reconhecem que o Aero Clube não é mais omesmo. Até seus adversários sentem o vazio.É natural! E essa decisão repentina deabandonar tudo, os atingiu e às suasconsciências.

SD- Também eu sinto saudades, Georges,daqueles tempos felizes de emulações e

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de um dos seus mais ilustres fundadores eaeronautas. Muitos de nós testemunhamos,desde os começos, e até há poucos meses, aenergia com que este homem empenhou-sena construção e crescimento do nosso Clube,sem poupar esforços e recursos, como umachama poderosa e permanente de estímuloe emulação. Foi também, seguramente, omaior orgulho dessa casa e, posso dizer, queo seu espírito, inteligente e empreendedor,foi a pedra fundamental da nossa instituição.Além disso, o Sr Santos-Dumont, foi grandeaeronauta e inventor de alta brilhância,podendo figurar na constelação dos maiores,ao lado de Edson, Marconi, Grambell,Lumière, entre poucos outros. Sua obra, queele já dá como completa, é uma obra degrande mestre, de gênio mesmo! Muitospresenciamos, em 1898, a sua temeráriaascensão no pequenino balão esférico “LeBrésil”, até hoje o menor balão esférico domundo, e agora podemos historiar umaprofícua carreira de 23 projetos aeronáuticos,todos pioneiros e a maioria deles testadosem vôo pelo próprio inventor. Além disso,sete novos motores a petróleo e mais de 300invenções subjacentes e acessórias, grande

parte delas jáincorporando-se ao

cotidiano dosprojetos eoficinas, e atémesmo daspessoas, emtodas as partes domundo. Essa obra

magnífica, cheia de

apogeu com o seu mais expressivo projeto;os pequeninos "Demoiselle", que hoje fazemparte dos céus parisienses e muitas outrascidades, formando novos pilotos eaeronautas. Essa sua pequena e última obra-prima, senhoras e senhores, é nada menosdo que a primeira aeronave de turismo queo homem fabricou em sua indústria! Étambém a matriz de todos os projetosaeronáuticos atuais e futuros, pois emessência, o Sr Santos-Dumont, ao criá-la, deu,incontestavelmente, as asas que o homemprecisa para viver o seu futuro. É preciso,porém, ressaltar que, da primeira até a últimacriação, a obra do Sr Santos-Dumont é, antesde tudo, a obra de um grande humanista.Sim, porque saíram do coração e da mentede um homem que ama profundamente asua própria espécie, sem nada pedir em troca.É notório o desprendimento com que o SrSantos-Dumont legou todos os seus inventosao domínio público. Foram humanistas comoele que deram à humanidade obras de artecomo as Nove Sinfonias, a Divina Comédia,os Lusíadas, Hamlet, a Ilíada e a Odisséia! Eao conhecimento, as Proporções Áureas, asteorias da gravitação universal, as leismatemáticas e filosóficas da Natureza, ospostulados e os teoremas da Ciência, e asrevolucionárias invenções da nossa época.Devemos muito a eles, senhoras e senhores,e posso, com certeza, incluir, entre osgrandes, o nome de Santos-Dumont.Sentimos a sua ausência em nossa casa edevemos-lhe uma homenagem. A casaConteneau e Leliévre, por iniciativa doescultor George Colin, renomado artista deParis, construiu-nos este belo monumentodedicado ao Sr Santos- Dumont (exibe amaquete) que comemora os seusinesquecíveis vôos de 1901 e 1906. Amunicipalidade de Paris consentiu-nos erigi-lo na Praça em frente aos portões doAeroClube, em St Cloud, que tambémreceberá o nome do nosso ilustrecompanheiro e colega. Em 23 de outubropróximo estaremos inaugurando- asolenemente. Todos estão convidados. Muitoobrigado. (demorados aplausos)

conquistas e sucessos,numa sequência

progressiva dei n o v a ç õ e s

revolucionárias,encerra-

se no

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SEQUÊNCIA 81 (O Monumento)

Corte para a inauguração do monumento deSt Cloud (foto), com Archdeacon descerrandoo pano de cobertura, ao lado de SD eDeutsch, em meio à uma grande multidãoencartolada. Aida D’Acosta entrega-lhe umbuquê de flores e beija-o no rosto, sob osaplausos gerais.

Corte para SD dirigindo sua Mercedes, saindoda solenidade encerrada, com Georges aoseu lado. Durante a sequência, percorrem asruas de Paris.

SD- Estou feliz, foi uma homenagem muitosincera. Sinto a sensação satisfeita de tercumprido minha missão.

GEORGES- Está realmente decidido a abandonar,Alberto? É definitivo?

SD- Minhas forças esvaem-se, Georges. Pareceuma certa doença que ataca pessoas comoeu...

GEORGES- O que pretende fazer da sua oficina?

SD

- Ia doá-la ao liceu de artes e ofícios. Mas apressão dos últimos acontecimentos temabalado a minha crença nos homens e nasociedade. Um forte niilismo se apodera daminha pessoa, Georges.

GEORGES- Tenho de admitir que não nos faltam razões,Alberto. No meu desfecho no "Le Temps"senti um desprezo tal pela Humanidade, quealcançou até o seu Criador.

SD- O punho de ferro alemão, a prepotênciaanglo-americana, a pusilanimidade francesae o domínio da estupidez sobre a inteligência,agravam o quadro. Com a aprovação da leide emergência, institui-se a lei das selvas.Minha oficina pode ser invadida a qualquermomento. Sou ao mesmo tempo, em França,homenageado por homens de bem e acusadode espionagem por pseudo-nacionalistas.Não sei que atitude tomar, Georges.

GEORGES- Como? Espionagem?

SD- Exato! A suspeita de que eu posso ser umespião alemão é a base da justificativa que apolícia e o exército francês utilizam paraaplicar a nova lei sobre mim e conseguir apermissão legal para invadir minha

Ícaro vingado: a inauguração do monumento a Santos-Dumont em St. Cloud.

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propriedade.

GEORGES- Ora essa! Só mesmo a cabeça dessespascácios! Mas, nós sabemos o que elesquerem mesmo.

SD- Crêem que escondo o mais importante erevelo apenas o menos importante. Talvezfosse o que fariam em meu lugar.

GEORGES- Conseguirão a ordem judicial?

SD- Sim, vão consegui-la.

GEORGES- E o que vai fazer?

SD- Ainda não sei, Georges. Por enquanto,pretendo descansar um pouco. (pára oautomóvel em frente ao L’Illustration;Georges desce)

GEORGES- Alberto, apenas uma pergunta: quem omandou... ou, melhor, como teve a idéia deconstruir aeronaves?

SD- Acredito em meus sonhos! (e arranca)

FIM DA SEGUNDA PARTE

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PARTE 3

IMPRIMA-SE A LENDA(EPÍLOGO)

*20.7.1873 †23.7.1932

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PARTE 3

SEQUÊNCIA 82

SD almoça com August, François e Pierre namesa da cozinha. Clima de última ceia, todosentristecidos, quase não falam.

SD (ao terminar de comer)- Tive grande felicidade em tê-los comocompanheiros nessa jornada. Não tenhopalavras para expressar minha gratidão.François, Pierre, terminadas as tarefas de hojeestão dispensados. August fica, comocombinado. (François e Pierre quase nãoconseguem conter as lágrimas; August, apesarde profundamente entristecido, não perde afleuma de mordomo) - Estarei na Oficina,August, e lá ficarei o dia todo. Está tudopronto?

AUGUST- Sim, senhor, tudo arrumado. O Senhor crêmesmo que eles virão hoje?

SD- Tudo indica que sim, August. (levantam-setodos, SD aperta a mão, dá um abraço emcada um e sai)

SEQUÊNCIA 83 (Mephisto)

SD está só na oficina secreta, quase às escuras.Apenas a luz do abajur da biblioteca acesa.Vai até o bar, abre uma portinhola,escamoteada com segredo na pequena adega,e retira de lá uma garrafa de absinto. Serve-se num cálice de cristal e bebe-o de um sógole. Depois enche o cálice novamente,coloca-o sobre a mesa, ao lado do abajur, epega o livro que ali está; o “Fausto”, deGoethe. Em seguida, recosta-se no divã ecomeça a ler, abrindo numa página jámarcada, com um marcador de marfim.Súbito, ouve um ruído no interior da oficina.Sobressalta-se, senta-se no divã e devolve olivro ao lugar onde estava, observandoatentamente o interior da oficina em

penumbra. A barquilha movia-se.

SD- Quem está aí?

Ouve-se um risinho cínico e, saindo dapenumbra, percebe-se a barquilhaaproximando-se da Biblioteca, vinda do alto,em “vôo descendente”. Pilotando-a, com amesma mestria do inventor, estava umhomem alto, forte, de barbicha, rosto ovaladoe lustrosa calva, elegantemente trajado e comuma grande capa negra, forrada por dentrode veludo carmin.

SD (assustado)- Quem está aí; quem é Você?!

A barquilha pousa suavemente sobre o beloe enorme tapete persa, como se o piloto fosseo próprio SD, e a figura imponente deMephisto sai jeitosa e equilibradamente dedentro da barquilha, sem qualquerdificuldade.

MEPHISTO (com sua voz gutural e o seusorriso cínico, característico)- Viu como eu também sei? Aqui estou para...

SD (irritado)- Em primeiro lugar quero saber queminvadiu minha oficina de trabalho?

MEPHISTO (sem perder a pose)- Ora, Alberto - permita-me chamá-lo assim?- vim tratar dos nossos negócios...

SD- Negócios?! (e, esfregando-se) - Como estáfrio aqui! - Negócios? - E por quem vos tomariaeu?

MEPHISTO- Uê?! Como posso saber? Mas não ignorasquem sou, ora essa! Não tentes obstinar-teem fingir que não esperas minha visita poragora... Não queres pegar um agasalho?

SD (levantando-se, pegando um capote nocabide e vestindo-o)

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- Diabos! O que está acontecendo aqui?(olhou o grande termômetro marcando 17graus) - Que tipo de negócios haveria eu detratar convosco, que nem conheço?

MEPHISTO- Ora, meu caro Alberto, já se passaram os 24anos do nosso trato! Nesse período, amboscumprimos nossas partes rigorosamente.Chegou a hora do desfecho.

SD- Vinte e quatro anos? Refere-te àquelepesadelo que tive em Ribeirão Preto? Mas eutinha apenas doze anos...

MEPHISTO- Não costumamos observar exigências etáriasem nosso negócios, Alberto. A nós importaos tratos com aqueles que sabem exatamenteo que querem. E tu eras um deles já naquelaépoca. Até pilotavas, com perfeição, aslocomotivas da fazenda do teu pai...

SD- Ah, falas de Vós no plural, não é? Sois umalegião. Naquele sonho, ou pesadelo, foi outroque me apareceu. Um europeu típico, comuma longa barba branca e faces coradas.Cheguei a pensar que era o próprio PapaiNoel!

MEPHISTO- A nossa forma é apenas uma projeçãosubconsciente dos nossos parceiros, Alberto.Daquela feita, tu precisavas de alguém maisbonachão e paternal. Hoje requeres algo entreo teu pai e o Dr Langley. Cá estamos...

SD- Nunca fiz pacto algum com Vocês. Nadadevo aos senhores; tentam aproveitar-se daingenuidade de uma criança...

MEPHISTO- Se insistes em tratar-me no plural, que seja.Mas não venhas com bobagens, tentandoesquivar-te. Pensas mesmo que poderias sairvoando por cima de Paris, e até por entresuas ruas e boulevards, pendurado num

imenso balão de hidrogênio, sem proteçãoalgo mais eficiente do que teus cálculoscientíficos? Já esqueceste de Augusto Severo?

SD- Severo foi imprudente; eu mesmo tenteiavisar-lhe...

MEPHISTO- E tu não foste imprudente?! Essa é boa,meu caro Alberto! Não tens idéia do trabalhoque nos deste, desde o teu primeiro vôonaquele balãozinho petulante. Tua audáciaultrapassou todos os limites!

SD- Ora essa! Sem audácia e ousadia, nãohaveria como fazer o que fiz!

MEPHISTO- Certamente! Mas também não precisávamosir tão longe! O teu Número 1, o Número 5,os vôos em meio às sabotagens - nós mesmos,na Inglaterra e nos Estados Unidos, tivemosde sabotar o Número 7 em terra, para quenão o fizessem em vôo. O episódio deMônaco... E o 14 Bis; aquele mastodonteaéreo em forma de pipa? Tive de entrar em tipela boca daquela bailarina, lembras-te? (afala fica em off enquanto repete-se a cenado beijo demoníaco da bailarina, antes deSD entrar no 14 Bis para a glória) - Somentenós dois, juntos, pilotando, conseguiríamosfazer aquilo voar! Mais ninguém, meu caroAlberto; e não foi fácil, recordas-te?

SD- Foram todos projetos bons e necessários. Ecumpriram seus objetivos.

MEPHISTO- Ah, sim! Claro! Não fazemos tratos commedíocres ou pusilânimes. Sempre demospreferência a espíritos inquietos como o teu;destemerosos, desbravadores e visionários.

SD- Qualquer que tenha sido o trato com Vocêseu não corroborei. A própria tentação daspatentes...

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

MEPHISTO- Patentes? Ora, Alberto, essas banalidadesnão entram em nossos negócios. Pareces umtanto esquecido, meu caro! Absinto emexcesso costuma prejudicar a memória! Devorefrescá-la. Tu querias dar asas ao Homem,ou antes, querias os segredos das máquinasde voar e dá-los aos homens. Deixamos claroque não seria fácil. Outros, no passado, nãoo conseguiram nem com a nossa ajuda. Masprometemos-te tentar. E, se conseguíssemos,pedimos-te, em troca, que não amasses aninguém e, após o prazo, entregasse-nos atua alma. 24 anos, aliás, vencidos há poucomais de três meses...

SD (perdendo a fleuma)- Caluniadores! Não tenho comércio com ossenhores. Não vos convidei; retirem-se!

MEPHISTO- Vejam só! Estás fazendo progressos!Esquentas-te. Abandonas enfim a cortesia ea esquiva. (e, aproximando-se do rosto deSD, olho a olho) - Lembraste, não é?

SD- Eu era apenas um garoto sonhador. Vocêsiludiram-me e agora tentam aproveitar-sedisso. Não passam de escroques sórdidos; eu...

MEPHISTO- Acalma-te, Alberto. Não te esqueças de quetivemos a honestidade de avisá-lopreviamente de tudo. Dos antecedentes e dasconseqüências. Sempre negociamoscorretamente. A outra parte é que tentatrapacear. Deixamos claro que eras umescolhido. Até fornecemos-te um recorte dojornal “Reformador”, publicado em 1º deagosto de 1883, e que trazia uma mensagemprofética a teu respeito, recebida quandoainda tinhas três anos! Ainda o guardasnaquelas pastas de recortes, eu sei. Queresque eu o localize?

SD- Aquela notícia pode ser uma charlatanice,e não diz que seria a minha pessoa que...

MEPHISTO- Charlatanice? Aquele espírita que a recebeupode ser tudo, menos um charlatão. E nãose comprovaram suas previsões? Tu nãoduvidas disso, meu caro Alberto. Mas naquelaépoca achaste mais seguro confiar em nós.Por isso aceitaste o pacto.

SD- Recuso-me em reconhecê-lo. O que fiz foiàs minhas próprias custas e sofrimentos. Nadadevo a ninguém. E para que fique claro,decido agora contrariá-los: vou retornar àaeronáutica e às minhas invenções. Mesmocom as poucas forças que me restam...

MEPHISTO (dá uma poderosa gargalhada)- Ora, Alberto, o que quiseres fazer, faças!Mas nada conseguirás. Custas e sofrimentos?!Sim, é verdade; foste tu. Fizeste quase tudo.Mas o sofrimento foi por tua opção. Foste omais festejado dos mortais deste início deSéculo, meu caro. O mundo todo esteveliteralmente aos teus pés! Não te faltoutalento, não o negamos. Mas não tepreocupes. Nossos métodos não sãoviolentos, como dizem as lendas. Tu mesmosaberás como encontrar-nos na hora em quete convenceres disso. Mas, de agora em diantee até lá, tu não farás mais coisa alguma, serásum pária da sociedade, trarás má sorte àspessoas em tua volta e, aí sim, conhecerás,finalmente, aquilo que chamas sofrimento!

SD (furioso)- Vossas maldições não me atingirão,canalhas!

MEPHISTO- Ora, ora... estás perdendo a fleuma?! Nãose tratam de maldições, é a dura realidade!Nossa proteção sobre tua pessoa encerrou-se; tua alma já é nossa! E tempo é o quenunca nos faltou para aguardar-te. Por issonão te chateies. Não és um cristãozinhoqualquer, e não mereces o tédio que te seriao paraíso cristão. Estarás entre os grandes danossa imensa galeria. Terás, ao teu lado,almas como a tua; muitas delas daqueles queassinam as obras que tu conservas com tanto

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desvelo nessa requintada biblioteca. E nãohá nada que possas fazer para impedi-lo.Portanto, meu caro Alberto, aguardo-te;quando quiseres! (e desaparece)

SD (gritando para o nada)- Vocês não podem!... Vocês não podem....

Cai sentado, exausto, no divã. Olha para ataça vazia sobre a mesa e para a barquilhasobre o tapete. Começa a chorar.

SEQUÊNCIA 84

Noite estrelada em Paris. SD está no seuobservatório astronômico, no alto da cúpulaaberta, observando a sua constelação deCâncer, sobre a qual o planeta Saturno seposiciona naquele dia. Seu rosto está lívido,suas feições entristecidas. Toca o interfone.

AUGUST (in)- Chegaram, Senhor.

SD (in, calmamente)- Faça como combinamos, August. E... August,foi bom tê-lo junto.

AUGUST (quase chorando, sob os sonsinsistentes da campainha)- O mesmo digo eu, senhor. Vá tranqüilo.Não o esqueceremos. Somos orgulhosos detê-lo tido como patrão. Desligo agora, devoatendê-los. (desliga)

August vai até a porta enxugando os olhos eabre-a. Lá estão o Cap. Ferber, o CoronelRenard e o Comandante do Distrito daGendarmeria, que entrega-lhe um papel dajustiça. August recebe o papel, colocademoradamente os óculos de leitura e começaenfim a ler.

RENARD- Temos pressa, senhor. Por favor, o Sr Santos-Dumont está?

AUGUST (ainda lendo o mandato e pedindo,com a mão, que o aguardem acabar)

- Um momento, cavalheiros, o Sr Santos-Dumont não se encontra. Não deve tardar. Omandato diz que não é necessária a suapresença, que podem arrombar cofres eparedes, etc. Mas nada disso será preciso, nãoé? Somos pessoas educadas, civilizadas. O SrSantos-Dumont não é um espião, todossabemos. Não desejariam entrar e aguardarum pouco enquanto tento localizá-lo portelefone? Os cavalheiros hão de convir quenão eram esperados...

O COMANDANTE DO DISTRITO- Não devíamos prender logo esse alemão?...

FERBER- Ele não é alemão; é austríaco.

O COMANDANTE DO DISTRITO- É a mesma coisa...

RENARD- Comandante, apesar de estar cumprindoatribuições legais e judiciárias, está ciente deque está sob o comando do Serviço Secreto?

O COMANDANTE DO DISTRITO- Sim, senhor.

RENARD- Então peço-lhe que limite-se a fazer o quetem de fazer, e obedecer minhas ordens.

O COMANDANTE DO DISTRITO- Sim, senhor.

FERBER (já entrando prepotentemente)- Quinze minutos, no máximo, August. Sirva-nos um café, para começar. E para os nossoshomens. Somos onze ao todo.

AUGUST (trêmulo)- Pois não, Senhor. Mas hoje é dia de folgados criados. Terei eu mesmo de preparar ocafé.

RENARD- Aos diabos, com o café, August. LocalizeSantos-Dumont. Se achá-lo quero falarpessoalmente. E não esperaremos quinze

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

minutos. Cinco, é o que Você tem.Aguardamos aqui no hall. Vá.

August, um pouco afobado, tenta pegar-lheas capas e os chapéus mas Renard não dátréguas.

RENARD- Nós nos arranjamos, August, encontre-o.

August faz uma reverência e sai.

SEQUÊNCIA 85

SD já no piso da oficina aciona o comandode fechamento da cúpula e, em seguida, umasérie de chaves elétricas e alavancas. Depois,acesas apenas as luzes de serviço, vai até umdos bonecos de borracha, tira-lhe o coleteque vestia, pega uma bomba de encher pneude bicicleta e vai para as grandes portas decorrer que dão para o pátio. Aciona aalavanca de abertura apenas o suficiente paraque abram um pouco mais de um metro eretorna-a para a posição de fechar. Enquantoelas se fecham, ele escapa para o pátio. Acâmera fica na oficina e vê as portasfecharem-se e com isso acenderautomaticamente um grande holofotevermelho com foco direcionado para a portaque dá para o apartamento.

Corte para SD no pátio, falando com as mãoscom o Sr Louis. SD sobe para o alto dacarroceria do carroção e o Sr Louis a dirigepara que encoste perto do muro do pátioque dá para a servidão do interior da quadra.SD salta para o muro e pula para o outrolado. A câmera, em grua alta, vê o carroçãosaindo para a rua enquanto SD caminha pelaservidão em direção aos fundos doapartamento de Pedro.

Corte para o carroção do Sr Louis sendorevistado por gendarmes na rua Washington,perto do portão.

Corte para SD no interior do apartamento dePedro Guimarães inflando o colete com a

bomba de bicicleta e vestindo-o, cheio. Emseguida, abre o armário de Pedro eexperimenta roupas do amigo, baixinhocomo ele, mas gordo.

Corte para o Cel Renard, o Cap Ferber e osseus homens impacientes no hall doapartamento de SD. O Cel Renard abre a portada sala de jantar e vê August, afobado, notelefone colocado improvisadamente numcaixote, e os móveis cobertos com pano.

RENARD- Seu tempo esgotou-se, August. Vamosentrar. Parece que estamos de mudanças,hein? Ferber, creio que chegamos bem nahora!

O COMANDANTE DO DISTRITO- Sabia que o alemão estava escondendoalgo...

FERBER- Não é alemão; é...

AUGUST (ainda ao telefone)- Não consigo encontrá-lo, senhor.

RENARD (já abrindo a outra porta)- Penso que não o encontrará mais, August.Vamos, pessoal.

Chegam todos pelo largo corredor até abailarina de Degas. Renard mexe-a e aportinhola abre-se.

RENARD (berrando para August que vinhaatrás dos outros)- Você não sabe o segredo, não é August?

AUGUST- Não, senhor. Somente o patrão o conhece.

RENARD (apontando para o especialista emcofres)- Dê uma olhada.

O rapaz chega-se até a portinhola e observao mecanismo com atenção.

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O ESPECIALISTA- É dos mais sofisticados, senhor.

RENARD- Quanto tempo?

O ESPECIALISTA- Entre dez a doze minutos, se tivermos sorte.

RENARD- Comece. (e, para o Comandante dagendarmeria) - Está tudo cercado?

O COMANDANTE- Sim, senhor. Todo o quarteirão estápoliciado. Ninguém entra ou sai sem seridentificado.

O especialista começa o seu trabalho,colocando ao ouvido um auscultador demédico e aplicando a outra ponta aomecanismo, girando-o lentamente. Pedesilêncio a todos.

Corte para SD saindo do prédio de Pedro,com as roupas, o chapéu e o “corpo” dePedro, e com o rosto enfaixado e engordado,como se estivesse com dor de dente. Opróprio porteiro o cumprimenta como sefosse Pedro. Ligeiro, SD entra numa cupêque já o aguardava na porta. O cocheiroarranca e pára logo em seguida numa barreirade gendarmes. Um deles aproxima-se dajanela da cupê, trazendo uma lanterna namão.

O GENDARME- Documentos, senhor.

SD entrega os documentos de Pedro. Ogendarme aproxima a lanterna dosdocumentos e depois chega-a para perto dorosto de SD, tentando comparar o retrato.

O GENDARME- Está com dor de dentes, senhor?

SD (falando como se não pudesse encostaros dentes)- Sim, tenho de correr ao dentista.

O GENDARME (liberando o cocheiro efazendo sinal para a barreira)- Pode passar!

Corte para o especialista terminando seutrabalho, com os oficiais aflitos em volta.August vê tudo à distância, do outro lado docorredor.

O ESPECIALISTA- Consegui! Posso acionar o mecanismo?

RENARD (para Ferber)- Avise ao General. Vamos entrar. (e, para oespecialista) - Acione!

SEQUÊNCIA 86

Ao acionar a alavanca, o fundo do corredorcomeça a abrir-se lentamente, deixandopassar uma forte luz vermelha que cega atodos.

Corte para o detalhe interior da portaacionando um mecanismo de disparo, aoencostar no batente.

Ao ser disparado, corte para um fonógrafode rolo sendo acionado automaticamente, noobservatório, perto da cúpula.

Corte para a câmera no piso da oficina comvárias luzes vermelhas piscando e umacampainha tocando insistentemente em altovolume, e mostrando o Cel Renard e seushomens entrando na oficina com as mãossobre os olhos, para protegê-los do foco deluz vermelha do holofote. Ouve-se uma vozmetálica, emitida por vários alto-falantes.

A VOZ- Atenção! Atenção! Mecanismo deautodestruição acionado! Invasores devemretirar-se imediatamente para desativação dosistema. (repete, e continua) - Trinta segundospara a autodestruição... 29 segundos...(campainhas e sirenes começam a tocarensurdecedora e intermitentemente)

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O Cel Renard percebe o mecanismodisparador no batente da porta de entrada edá um sinal para um de seus homens paraque pegue rápido uma picareta que viu derelance na ferramentaria. Renard, enquantoisso, tenta observar a oficina, em meio àsluzes piscando, e faz uma exclamação dedeslumbramento. O homem chega com apicareta. A voz continua: 23 segundos... 22segundos...

RENARD (apontado um lugar na parede)- Quebre aqui!

O homem mete a picareta na parede. Quandoa voz diz “20 segundos...”, uma série depequenos relâmpagos e coriscos elétricoscomeça a percorrer assustadoramente toda aextensão das estruturas, trilhos, e tubulaçõesmetálicas da oficina. Os homens ficamdesnorteados dentro da oficina,amedrontados, sem saber o que fazer. Ohomem da picareta paralisa-se assustado. Avoz continua: 17 segundos... 16 segundos...15 segundos... Renard, o único que não perdea calma, ordena.

RENARD- Quebre aí, para desativar o sistema. (ohomem vacila, ele reforça) - Quebre!

O homem mete outra vez a picareta na paredee ela enterra-se fundo, encostando num canode condução de eletricidade. Imediatamente,um raio, como se saísse de dentro da paredepela sua picareta, fulmina-o e ele caidesmaiado no chão.

13 segundos... 12 segundos...

RENARD (para os outros)- Peguem-no, depressa, levem-no para fora!

Ao dar 10 segundos, as bocas da tubulaçãode ar temperaturizado começam a expeliruma grossa fumaça roxa, em grandes edensos vômitos, que vai tomando todo oambiente rapidamente, criando umaalucinada atmosfera de luzes piscando,coriscos faiscando, campainhas tocando e

sirenes azucrinando e desorientando todosos homens. E a voz continua: 7 segundos... 6segundos...

FERBER (da porta)- Vamos sair daqui! Vou fechar a porta!

Todos correm para a portaatabalhoadamente, trombando-se,engarrafando-se nela, carregando o corpodesacordado do homem fulminado. Renardé o último deles e vai saindo calmamente,tentando ainda observar a oficina,deslumbrado.

FERBER- Fechando a porta! Fechando a porta!

4 segundos... 3 segundos...

Renard passa pela porta já fechando-se quaseque totalmente.

2 segundos... 1 segundo... Súbito, pequenascargas de dinamite estrategicamente dispostasao longo das paredes e locais chaves daoficina começam a disparar em ritmoprogramado, uma a uma. A porta fecha-se,cortando a poeira e a fumaça das explosões.A câmera permanece lá dentro, focalizandodetalhes das explosões, numa sequênciavertiginosa de pedaços de bonecos,aeronaves, máquinas, tecidos, rolos de filmes,ferramentas, livros preciosos, móveis, produtosquímicos, tudo voando pelos ares,estilhaçando-se em pedaços incandescentes.Começam a ruir tubulões e pedaços dasestruturas em chamas, fumaça negramisturando-se à fumaça roxa. O grandetermômetro de um dos pilares centrais mostraa temperatura elevando-se rapidamente,ultrapassando os 80 graus centígrados. Emseguida explode.

Corte para uma vista externa, em grua alta,com o galpão em primeiro plano e Parisnoturna ao fundo. A cúpula de vidro daoficina explode violentamente e começa adeixar passar um grosso e espesso rolo defumaça negra subindo em direção ao céu

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estrelado. A câmera vai afastando-se,mostrando, na rua, carros de bombeirosaproximando-se em meio ao grande tumultoe movimentação de guardas, militares ecuriosos.

SEQUÊNCIA 86

Nessa sequência, as imagens ocorrem juntocom as vozes em off, de Georges, em Paris,correspondendo-se por cartas, com sua irmãfreira, no Convento em Petrópolis. Duasdiferentes narrativas, editadassimultaneamente, uma nas imagens a outraem áudio, aqui dispostas alternadamente,primeiro o áudio e, em seguida, as imagenscorrespondentes.

VOZ DE GEORGES (em off)- “Querida mana, a destruição da oficina deSantos-Dumont com todos os seus arquivosfoi um segundo golpe na minha infelizexistência. A imprensa abafou o caso e oGoverno Francês chegou até a pedirdesculpas formais a Alberto. Porém, muitotarde. A loucura e a alucinação já tomavamconta do meu grande amigo. Longo tempoainda tenho de aguardar para reencontrar-me com os meus próprios arquivos, se é queum dia os reencontrarei. A Europa prepara-se para uma guerra cruel. Aleijados mentaisdominam poderes bélicos de grandecapacidade de destruição e não resistem aodesejo de utilizá-los sobre nossas cabeças.Escrevo-lhe para pedir sua bênção, porquetodos esses fatos fazem aumentar o meudesprezo pelahumanidade aoponto de atingir oseu próprioCriador.”

SD está a bordo doLutéce, que enfrentauma furiosatempestade em altomar. Sozinho noconvés deserto,vestindo um

impermeável e segurando o chapéu, eleparece querer desafiar a fúria dos ventos, dachuva torrencial, e dos relâmpagos insistentese poderosos. Seu rosto impassível receberajadas de vento e de água sem mexer ummúsculo.

Corte para SD passeando tranqüilamente nosjardins do Palácio Imperial em Petrópolis.Lindo dia, de luz solar fulgurante da serra.Um pequeno monoplano passa voando,cortando o céu azul.

Manchetes de jornais brasileiros:“ÁUSTRIA DECLARA GUERRA A SÉRVIA”“ALEMANHA DÁ ULTIMATUM”

VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)“Querido irmão. Já aprendi a perdoar heresiase compreender os homens e seus desatinos.Você sempre terá a minha bênção e o queela lhe valer. Pode abrir-se comigo quandodesejar; sei que enfrenta terríveis dificuldadese rezo muito por Você. Não perca a sua fé. OSr Santos-Dumont veio visitar-nos aoConvento. Foi um alvoroço! Todas as irmãsqueriam vê-lo, conhecê-lo, pois ele é o maisfamoso dos brasileiros. Foi muito gentil ecavalheiro com todas nós e, especialmentecomigo, dando-me uma atenção especial eparticular. Pude sentir de perto os seussofrimentos: como é atormentada a sua alma!Um pandemônio de paixões!”

SD sobe a escadinha da “Encantada”,construída de tal forma que só se pode subi-la começando-se com o pé direito. Pedreiros

dão os últimosretoques na parteexterna da pequenacasa. SD observa ecomenta detalhes.Um barulhentobiplano passa embaixa altura sobre otelhado.

É noite na“Encantada”. Napouca luz de um

A "Encantada": "construida de tal forma que só se pode subí-lacomeçando-se com o pé direito."

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

abajur, o atormentado SD tenta escrever.Rascunha alguma coisa, lê-a, e, nervoso,amarrota o papel e joga-o na cesta.

Outra manchete de jornais brasileiros:“8 DE AGOSTO: ALEMANHA DECLARAGUERRA À FRANÇA E INVADE A BÉLGICA”

VOZ DE GEORGES (em off)“Querida irmã. Sei que entende de almas maisdo que eu. Quando me fala das paixões daalma de Alberto, creio que refere-se àspaixões latentes,n u n c aexteriorizadas. Poisa aeronáutica foi asua única etirânica paixão!Nunca amou nadaou ninguém alémda aeronáutica eseus modelos, porele mesmoinventados e construídos. Não mais o vi desdeque se foi. Mas sei que o Alberto que Vocêconheceu é um morto-vivo! Não existeAlberto Santos-Dumont sem o seu próximoprojeto “número tal”! Não é possível sequerimaginá-lo sem os impulsos dessa energiacriadora ininterrupta. Sua vida foi como a deuma flecha disparada ao alvo por umpoderoso Maciste. E o acertou em cheio. Aofazê-lo, abriu as portas à humanidade para ovôo mecânico. E ninguém mais quer saberda flecha, imóvel, inútil e desgastada, apóster cumprido o seu papel.”

SD arruma bagagens na“Encantada”.

Corte para SD em Cabangu,passeando a cavalo peloslindos grotões das gerais,num belíssimo dia. Umpequeno bimotor, muitobarulhento, sobrevoa aregião.

SD de novo na “Encantada”,atormentado, nervoso,

preparando um café com leite à sua maneira:mistura uma certa quantidade de pó ao leitequase fervendo. Espera ferver e passa oconteúdo coando-o direto para uma xícaragrande. Bebe-o devagar. Ao dar um golepercebe uma sombra do lado de fora de umadas janelas. Vê o vulto de Mephisto, vai até aporta e abre-a. Aos seus pés, a luz da manhãbate sobre o jornal do dia com a manchete:

“KAISER MANDA AVIÕES BOMBARDEARESCOLAS E HOSPITAIS: 2OO MORTOS!”

SD estarrecido lêa manchete.Embola o jornal efaz uma fogueiracom ele na portada “Encantada”.Os passantes dão-no como doido,através de gestoscom o dedo ao

ouvido. A câmera aproxima-se do fogo atéque as labaredas tomem conta do quadro.Ao afastar-se novamente mostra as labaredasde uma fogueira frente ao rosto de SD, numaanimada festa junina, em Cabangu, ondetodos dançam, cantam e brincam, menos ele.Por trás do fogo, o sombrio semblante de SDé o único infeliz da festa de São João, commuitos balões acesos subindo aos céus.

VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)“Irmão querido. Seu ceticismo é fruto dasgrandes adversidades que está passandoagora; não culpe o passado. Recebi cartas de

papai e todos em casa estãoempenhados em ajudá-lonessa crise terrível. Contar-lhe-ei, por isso, um segredo,que talvez o alivie um pouco.Quando o Sr Santos-Dumontesteve no Convento, deixoucom a Madre Superiora, doisenvelopes. Um com umaexpressiva quantia emdinheiro brasileiro, comodonativo ao Convento, eoutro, aromatizado em"... passeando a cavalo pelos grotões..."

A casa de Cabangu, Minas Gerais, onde nasceu SD.

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almíscar, para mim, contendo um cheque de50 000 francos de um Banco Suíço e umbilhete pedindo-me para enviá-lo a Você, poissabia que atravessava dificuldadesfinanceiras. Pedia-me também que nada lhedissesse. Enviei o dinheiro para papai,rogando-lhe que também lhe ajudasse. Vocêsabe, a situação tem sido difícil em nossacasa paterna. E, como vê, o Sr Santos-Dumontnão é apenas uma flecha morta. Seu coraçãoé sensível, e, apesar de dolorido, está vivo epulsando por Você, por nós e pela fé.”

Imagens da Primeira Grande Guerra. Ataquesaéreos furiosos de biplanos com bombas emetralhadoras cuspindo fogo sobre vilas elugarejos. Bombas espatifam frágeis telhadosde cerâmica, e arruínam estábulos econstruções de madeira. Rostos de pilotos comóculos e capacetes de couro. Superposiçãocom máscaras de gases. Canhões antiaéreosacoplados em vagões de trens. Esquadrilhasaéreas em vôo.

SD, na solidão da noite, na “Encantada”, choracopiosamente.

VOZ DE GEORGES (em off)“Querida mana. Minha vida é toda umasequência de desastres. E o maior deles é asituação em que coloquei nossa família comminhas trapalhadas. Tudo parece cair sobreminha cabeça como um terrível castigo, semdeixar-me opções. Não sou talhado para aguerra. Não possuo talento para sangrarhomens e estripá-los em batalhas. Sei apenasusar o pincel e a pena. Não devia ter-me ditosobre a ajuda de Alberto. Meu orgulho agoraimpede-me de escrevê-lo. Nunca haviamencionado a ele minhas dificuldades, eainda não sei como ele o soube; espero quenão tenha sido Você, querida irmã, na suaboa fé e ingenuidade cristã. Sei que nossopai assumiu a ajuda como dívida e que elafoi a salvação de um tenebroso impasse. Masisso ainda não basta para o orgulho com quefui criado desde a infância.”

Manchetes de jornais brasileiros:“2 DE NOVEMBRO DE 1917: ALEMANHA E

ÁUSTRIA RENDEM-SE AOS ALIADOS”“CONFERÊNCIA DE VERSAILLESESTABELECE CONDIÇÕES DE ARMISTÍCIO”

SD, sempre solitário, auxiliado apenas poruma mucama, organiza uma grande bagagempara viagem.

Corte para dentro do trem, na baixadafluminense, indo para o Rio. Sentado, eleobserva uma esquadrilha de biplanosexercitando-se sobre o Campo dos Afonsos.Seu rosto parece de pedra.

VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)“Mano. Nada disse ao Sr Santos-Dumont eVocê precisa convencer-se de que ele é oseu maior e mais leal amigo. É precisotambém que pare com suas lamúrias eenfrente a vida de cabeça erguida. Você nãoé um tolo nem um pusilânime. Todos temosorgulho de Você em nossa casa, e ninguémse queixa dos sofrimentos que estamospassando, nem o culpamos por eles. Sabemosque Você é uma vítima desses acontecimentose da crueldade humana, que tem boa índolee, como bons cristãos, o amamos, rezamospor Você e o ajudamos com tudo o quepossuímos, sem lamentar.”

SD no convés do moderno “La Bohéme”,num belo dia, aproximando-se da Ilha daMadeira. Um hidroavião sobrevoa o navio epousa perto do cais.

Sequência de um passeio solitário de SD pelomundo: Egito, Grécia, Arábia, Itália, nosclássicos cartões postais. Sempre, um ou maisaviões interferem nos “cartões postais” emmovimento.

VOZ DE GEORGES (em off)“Querida irmã. Enfim acabou-se a malditaguerra. A Europa hoje é um mar de aleijadose mutilados. Músicos sem braços, escritoressem mãos, pintores sem olhos, atores sempernas, cantores sem voz, e mais restoshumanos arrasados e espalhados por todosos cantos. Mas o pior é que o aleijado mentalainda sobrevive e permanece impune depois

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

da catástrofe que provocou. A saída que vejopara a Humanidade é a experiência de Lenin,na Rússia Soviética, mas não creio que possadurar muito tempo. Aleijados mentaisproliferam-se por todas as partes e tambémlá já devem estar realizando o seu trabalhode destruição. Só não sou ainda umcomunista porque não consigo ser ateu.Confesso-lhe que tentei, mana, e perdoe-meo desabafo. Sinto a falta de Alberto mas nãoconcordo com Você quando diz que ele é omeu maior amigo. Ele é o meu único amigo!Peço-lhe que procure notícias dele, passe-lhe o meu novo endereço e as minhaslembranças. Diga-lhe que tenho saudades.”

SD chega em Paris e vai de táxi até o seuvelho endereço no Champs Elysées. Descedo automóvel e começa a refazer a pé, opercurso que gostava de fazer nos bonstempos. A Paris outonal está linda, mas aspessoas estão feias e pobres. Mutilados deguerra, em muletas, cadeiras de rodas oupedindo esmolas a todo instante.

SEQUÊNCIA 87

Ao chegar na complicada travessia da Placede la Concorde, reconhece o guarda quesempre parava o trânsito para ele passar.Alegra-se, um raro sorriso começa a esboçar-se em seu rosto, e, sem pensar, começa aatravessar perigosamente a rua em direçãoao gendarme. Este, furioso, dá um estridenteapito, faz um sinal autoritário para que sevolte e olha bem nos olhos de SD.

O GENDARME (vociferando)- Onde pensa que vai, velho idiota! Quermorrer?

O rosto de SD transfigura-se. A tormenta oabate novamente.

Corte para um táxi parando na porta de umcortiço num bairro infecto de Paris. SD,elegante, desce do carro, sobe uma pequenaescada até a porta do cortiço e bate. Umamenina escrofulosa, de uns seis anos de

idade, abre a porta. Por trás dela, uma bruacaimunda, de uns quarenta, surge, segurandona mão uma coxa de pato, mastigando-a coma boca aberta.

A BRUACA (olhando SD de cima abaixo, seminterromper a barulhenta mastigação)- O que deseja?

SD (olhando o envelope de uma velha carta)- O Senhor Georges Goursat reside nesseendereço?

A BRUACA- Quem?

SD ia repetir mas um voz rouca de homem,vinda de dentro do cortiço se fez ouvir.

A VOZ DE HOMEM- É o artista, mulher, o tal do Sem!

SD balançou positivamente a cabeça.

A BRUACA- Ah, sim! Mudou há tempos. Deve terrecebido algum dinheiro. Pagou o que deviapor aqui e foi-se.

SD- Deixou algum endereço?

A BRUACA- Qual! Mal deu boa noite. Pegou suas coisase sumiu.

SEQUÊNCIA 88

Corte para SD na estação ferroviáriacomprando passagem para Biarritz.

SD dentro do trem observa uma esquadrilhaaérea exercitando-se sobre a sua conhecidapaisagem das propriedades dos Rothschild,onde pousou com Machuron após suaprimeira ascensão em balão esférico (asaudosa cena do passado repete-se diantedos seus olhos envelhecidos e tristes que,por alguns instantes, se tornam alegres e

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rejuvenescidos). O trem chega a Biarritz.

SD desce de um táxi no Sanatório de Biarritze entra.

No seu apartamento privativo no Sanatório,SD, completamente enrolado nas cobertas,como se fosse uma múmia, deixando de foraapenas o nariz para respirar, acordasobressaltado em meio aos pesadelos.

SD (sobressaltado na cama)- Eles não podem!... Eles não podem!...

Entram um médico euma enfermeira eaplicam no trêmulo edoentio SD uma dosecavalar de calmante. Elenão opõe resistência aotratamento. Aceita-op a s s i v a m e n t e ,balbuciando “eles nãopodem...”

Corte para SD sentadonuma cadeira de vimeao lado de uma janelado sanatório, enroladonum cobertor. É dia eneva lá fora. SD estácatatônico e imóvel.Batem a porta. Ele nãose move. Repetem a batida com mais força.Nada. Enfim ouve-se o ruído de uma chavee entra Prado, também envelhecido, seguidopor um enfermeiro.

PRADO (meio afobado)- Alberto! Alberto!

SD reage. Seus olhos brilham. Um sorrisochega a despontar em seus lábios. Elelevanta-se com dificuldade diante doestarrecido Prado.

SD (abraçando Prado em prantos)- Pradô, meu amigo. Você não se esqueceude mim...

SEQUÊNCIA 89

Prado na estação de Biarritz recebe o jovemJorge Villares. Neva forte. Ambos estãopesadamente agasalhados.

PRADO (ajudando Jorge com as bagagensde mão)- O quadro não é bom, Jorge. Mas os médicosdizem que está melhorando depois quecheguei.

JORGE- E como ele está agora,Dr Prado.

PRADO- Fraco. A doença estáprogredindo mas não éa maior preocupação.Mentalmente temperíodos de melhoras erecaídas. Fica a repetir“eles não podem..., elesnão podem...”, mas elesquem, meu Deus?!

JORGE- Precisará companhiapermanente. A famíliaenfim começou a meouvir. Não poderá ficarsozinho nunca mais. Seu

telegrama decidiu a questão.

Entram no táxi e saem.

SEQUÊNCIA 90

A limusine de Adrien pára frente ao edifíciode apartamentos onde mora Georges, numbairro pobre de Paris. (Legenda: Paris, agostode 1928) Georges aguardava-o na calçada. Aporta de trás da limusine abre-se e ele entra.Dentro da limusine, Adrien e Georgescumprimentam-se calorosamente.

ADRIEN (envelhecido, mas forte e saudável)- Vinte anos, meu velho! E milhares de fios

"... seus olhos brilham..."

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

brancos em nossas cabeças, hein? Senti faltade Você, Georges.

GEORGES (também envelhecido, mas fracoe acabado)- Eu também de Você, Adrien. Como está emAvignon?

ADRIEN- Dedico-me a editar e revisar os livros domeu filho Jean Paul, o jovem filósofo -revelação da Sorbonne. Mas a maior partedo meu tempo entrego-o às delícias daagricultura e do pastoreio no campo. Nuncaentendi tão bem Dionisius como agora, meucaro, só faltou-me tê-lo visto em carne e osso.

GEORGES- Pois, para mim, a vida tem sido umamadrasta, Adrien. Não sei quantos pecadoscometi para merecer tantas desditas.

ADRIEN- Ora, Georges, não fique se culpando.Nossos arquivos estão à nossa espera. Hojeé o dia do resgate, meu amigo; o resgate daHistória!

GEORGES (amargo)- A História é um pesadelo do qual não possodespertar.

ADRIEN- Trouxe comigo toda a documentação e jápeguei ao tabelião o alvará de liberação. Ésó chegar ao jornal e pegar tudo. Contrateiuma camioneta e dois homens. Vamos levartudo para o meu castelinho em Avignon,inclusive Você. E por tempo indeterminado!Só o solto depois de vê-lo gordo e bemdisposto. Enquanto isso trabalharemos nosarquivos, desenterrando os nossos tesouros.Tudo regado a bons vinhos e excelentecomida do campo, hein? Que tal?

SEQUÊNCIA 91(O novíssimo “Le Temps”)A limusine estaciona em frente ao novíssimo“Le Temps”, que agora ocupa um grande

arranha-céu, estilo art-deco, com néons eluminosos na fachada. Começa a anoitecerem Paris.

Os dois entram no imenso hall de mármorede carrara, no interior do edifício. Umfuncionário uniformizado os aguarda.

O FUNCIONÁRIO- Sr Adrien Hébrard?

Adrien cumprimenta-o.

O FUNCIONÁRIO- Sigam-me por favor, cavalheiros.

Os três entram por uma porta térrea que dápara um interminável corredor interno, e,após percorrê-lo quase todo, descem doislances de escada para o subsolo e entrampor uma porta de uma sala cheia de grades epesadas portas de cofres. Os carregadorescontratados por Adrien já aguardavam. Umafuncionária do setor os atende. Adrienentrega-lhe os papéis, a moça os confere edá ordens para os funcionários dentro docofre.

A MOÇA- Lotes número 38, 39, 40, 41...

Os funcionários vão trazendo as caixaslacradas com assinaturas sobrepostas aoslacres, passam-nas ao exame de Adrien eGeorges, que conferem os lacres e osobrescrito de conteúdo, e, depois, entregam-nas aos carregadores, que as levam embora.

A MOÇA- Lotes 48, 49, 50, 51, 52....

Georges começa a ficar aflito. Confere váriasvezes o documento que lista o conteúdo doslotes. Seus arquivos, rotulados “Aeronáutica”,estão indicados com os números de 57 a 62.Ele ouve então a moça a ditar.

A MOÇA- Lotes 63, 64, 65, 66...

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GEORGES (interrompendo-a)- Espere, moça, e os lotes 57 a 62?

A moça pega novamente a lista e confere-a.

A MOÇA- Tem razão, Senhor, saltei esses números. Éporque as caixas devem estar fora de ordem.Um momento, sim?

Entrou no cofre e lá demorou-se por algumtempo. Georges e Adrien entreolhavam-seaflitos. Enfim, a moça retornou.

A MOÇA- Não temos os lotes 57 a 62, senhores, nãosei o que dizer...

Georges quase desmaiou, ficou branco feitocera. Adrien avermelhou-se de ódio.

ADRIEN- Esses patifes!

Reparou que Georges preparava-se para fazero bafafá. Conteve-o.

ADRIEN- Ninguém aqui tem haver com isso, Georges.Vamos ao Lazare, siga-me.

SEQUÊNCIA 92

Georges e Adrien de caras feias, sobem noelevador. No 12º andar descem e entramdecididos pela porta do Gabinete onde se lia“DR LAZARE WEILLER - PRESIDENTDIRECTEUR”. A secretária tenta contê-los naante-sala mas Adrien já havia aberto a portado Gabinete de Lazare e entrava, seguido deGeorges e da apavorada secretária.

Lazare, agora gordo e mais velho, vestidocom elegância excessiva e de mau gosto, foipego de surpresa com dois de seus assessores,mas não perdeu a hipocrisia. Dispensoueducadamente a secretária e os assessores edirigiu-se, em seguida, a Adrien, sem sequerolhar ou cumprimentar Georges.

LAZARE (presunçoso e petulante)- A que devo essa repentina visita, Sr Adrien,para não dizer invasão?

ADRIEN (quase sem se conter, abanando ospapéis do tabelião na cara de Lazare)- A que deve? Sabe que dia é hoje, Sr Lazare?(e, como sempre, indo direto ao assunto) -O que foi feito dos arquivos sobre Santos-Dumont?

LAZARE (cínico, com uma ponta dearrogância)- Eu não sei, Sr Adrien. Como é do seuconhecimento nada tenho que ver com essesarquivos. Eram secretos também para mim,lembra-se?

ADRIEN (contendo Georges que já queriapartir para cima de Lazare)- Não nos trate como idiotas, Lazare. Exijorespostas!

LAZARE (olhando sem interesse os papéisque Adrien voltava a lhe exibir e continuandoa demonstrar desprezo por Georges)- O que sei é que houve problemas nasmudanças para cá, Sr Adrien. Ouvi falar deum incêndio num dos caminhões. É tudo quesei, posso mandar averiguar; e é só o queposso fazer. Agora, se me derem licença,senhores, sou candidato a uma cadeira naCâmara de Deputados e estou em plenacampanha... (toca a campainha, chamandoos assessores, que entram imediatamente)

ADRIEN (sem dar bola para eles)- Sei que está metido nisso, Lazare. E vaipagar caro, eu prometo. Quem pensa que é?E quem pensa que eu sou, garoto? Vai searrepender! Sei que Benett não precisa maisdo Banco de seu pai, que, por sua vez, estáse arruinado por causa das suas pretensõespolíticas...

LAZARE (interrompendo-o, com osassessores ao seu lado, todos de carafechada)- Sr Adrien, não tenho de ficar aqui escutandosuas acusações e nem sendo ameaçado por

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

jornalistas fracassados. Procurem seusadvogados, nós temos os nossos! Hoje ascoisas resolvem-se assim no mundo civilizadodos negócios, Sr Adrien.

ADRIEN- Isso é o que Você pensa, menino! Em poucotempo vai ver que não é bem assim! Sim,vamos aos advogados. Mas Você podecomeçar a contar, nos dedos de uma mão,os seus dias aqui, seu canalhazinho insolente!Vamos Georges! Vamos ao Hipólito! (e saiarrastando Georges sob os olhares cínicos epetulantes de Lazare e seus puxa-sacos)

SEQUÊNCIA 93

Adrien e Georges entram no luxuoso escritóriode advocacia do “DR HYPPOLITEHÉBRARD”. Este já os esperava em sua salade trabalho.

HIPÓLITO- Não é um pouco tarde, papai? Nãopoderíamos deixar para amanhã? Hoje eu...

ADRIEN- Hipólito, eu não saio de Paris sem terresolvido esse assunto com todos os pingosem seus devidos iis, entendeu? Portanto, sequiser, pode avisar sua esposa que hoje nãohaverá Teatro, nem Ópera, nem festas ou sejalá o que for. Vamos sentar e trabalhar.

Hipólito aquiesce, rendido.

GEORGES- Não vai acreditar no que acabamos de viver,Dr Hipólito. O tipo mais sórdido de vingançaque pode haver, não somente contra mim,mas contra o seu pai!...

HIPÓLITO- Lazare ligou-me e deu-me a sua versão. Severdadeira, ainda bem que meu pai oconteve, Georges, do contrário as coisas nãoficariam boas para Você...

ADRIEN

- Ora, Hipólito, aquele patife merecia muitomais do que umas boas pancadas. Eu só acheique não valia a pena Georges sujar as mãosna cara daquele porco!

HIPÓLITO- Aquele “patife” a que se refere é o diretorpresidente do maior jornal da Europa, papai.E hoje, ser diretor de um jornal como o “LeTemps” é muito mais do que foi no seu tempo,o senhor sabe disso...

ADRIEN- Eu sei muito bem, meu filho. Mas sei outrascoisas que Você e o imbecil do Lazare nãosabem, mas agora vão ter de aprender.

HIPÓLITO (impaciente)- Essa discussão parece ser demorada, papai.Vamos direto ao assunto, como o senhor gostade dizer. Lazare ofereceu um acordo de 50mil francos para por fim nessa confusão.Penso que está sendo até generoso, diantedo que ocorreu...

GEORGES- 50 mil francos? Ora, Dr Hipólito,francamente! É toda uma vida que está emjogo. E não digo apenas a minha, mastambém a do seu pai e a do Sr Santos-Dumont, essa última, principalmente. É ohomem que criou a aeronáutica moderna, enaqueles arquivos estavam todas as provasincontestáveis!

HIPÓLITO-Eu não confiaria muito nesses argumentosem juizo, Georges. Lembre-se que o SrSantos-Dumont não é um francês, nem umeuropeu; é um brasileiro! E destruiu elepróprio os seus arquivos. Conheço juizes quea última coisa que leram sobre o Brasil foiescrita por Villegagnon há mais de trêsséculos. Acham que por lá habitam índiosselvagens e jacarés, e não cientistas inventorese aeronautas. Quanto a ser o pai daaeronáutica, eu também conheço juizesque perderam famílias, parentes, amigos eaté pedaços do corpo estraçalhados por essasmáquinas na última guerra. Lamento,

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Georges, ninguém mais, diabos, lembra-sede quem foi esse Santos-Dumont.

GEORGES- Mas é justamente para isso que servem essesarquivos, para resgatar a verdade! Lá temcoisas que o mundo e o senhor precisammuito conhecer.

HIPÓLITO- Ao que nos consta hoje, não sabemos seesses arquivos realmente existem, Georges...

Durante esse diálogo Adrien ficavaaborrecido, pensando com seus botões, semprestar atenção no que falavam. Ao perceberGeorges novamente irritado com Hipólito aoponto de uma briga séria, interrompeu-os.

ADRIEN- Um milhão de francos, Hipólito! Um milhãoem “cash” como dizem os homens denegócios de hoje, não é?E para amanhã! Esseé o nosso acordo.Depois de amanhã será odobro.Estes prazos são o limite da minhapaciência!

Até Georges surpreendeu-se

HIPÓLITO- Como, um milhão?! Ora, papai, Lazare nemdiscutirá essa proposta. Não gastará mais de20 mil para levar essa causa para as calendasgregas... Pondere, papai, Lazare quernegociar, mas assim...

ADRIEN- Chegou a hora de Vocês, garotos,aprenderem certas coisas, Hipólito. Você vailigar ao Lazare e dizer que não aceitamosmenos de um milhão, com prazo de soluçãoainda para hoje, e depósito em dinheiroamanhã pela manhã. Diga-lhe para falar aoBenett agora (olha seu relógio de pulso) -ainda é expediente em Nova York - e passar-lhe um recado meu de três palavras: “monpetit cahier”. Precisa anotar? Então anote.Georges e eu vamos esperar a resposta nocafé aqui embaixo, o da esquina daboulevard Diderot, sei que Você sabe o

número do telefone de lá. Passe-lhe tambémesse número. O próprio Benett vai desejardar-me a resposta pessoalmente. VamosGeorges. (levanta-se e puxa o aparvalhadoGeorges pelo braço, e saem)

HIPÓLITO- Mas... papai, papai!

SEQUÊNCIA 94

Adrien e Georges chegam ao café Diderot.Adrien vai até o maitre, orienta-o sobre otelefonema, e pede bebidas, enquantoGeorges senta-se numa mesa e aguarda coma cara triste e pensativa. Adrien chega e senta-se também.

GEORGES- Adrien, Você está mais louco do que eu,homem?! Um milhão?! Eles querem nos verarrasados e maltrapilhos, acha mesmo que...E o seu filho, hein? Que pustulazinha! Oh,perdoe-me, Adrien.

ADRIEN- Não escolhemos nossos filhos, Georges.Você não os tem por isso não entende certascoisas. Mas é preciso que comece a entenderalguma coisa desse novo mundo. Hipólitonão é o canalha que pareceu a Você, acredite.É apenas um advogado, sem qualquergenialidade, admito, mas que, por issomesmo, está se saindo muito bem. Assimcomo Lazare. Só que hoje, escaldei, e perdia paciência.

O garçom chega trazendo champagne DonPerignon e duas taças.

GEORGES- Don Perignon? O que estamoscomemorando?

ADRIEN- Comemoração mesmo nenhuma, Georges.A perda dos arquivos de Santos-Dumont éimpagável. Mas quando se ganha um milhãode francos é justo que se beba ao menos um

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bom champagne, não? (e oferece um brinde)

Georges, um pouco a contragosto, aceita obrinde.

GEORGES (após sorver o conteúdo da taçade um só gole)- É, reconheço que não entendo mais nada.E que história é essa de “mon petit cahier”?

Adrien dá uma sonora gargalhada. O garçomaproxima-se.

O Garçom- Senhor Hébrard, o telefonema que o senhoraguardava...

ADRIEN (ainda rindo e levantando-se)- Conto a Você num minutinho, Georges, nãodevo deixar Benett aguardando na linha,numa ligação de Nova York. Volto já. (e sai)

Georges fica só, pensativo e acabrunhado,duvidando da loucura do amigo. Serve outrataça de champagne, bebe-a, e mais outra.Adrien demora-se. Mais outra taça. Enfim,Adrien retorna, com um largo sorriso noslábios.

ADRIEN- Tudo resolvido, Georges. Vamos a outrobrinde! (enche a sua taça e completa a deGeorges, esgotando o conteúdo da garrafa) -Rapaz, c’est fini! Você enxuga mesmo, hein?Garçom, traga-nos outra garrafa!

GEORGES (brindando novamente, mas aindaincrédulo)- O que está resolvido, Adrien?

ADRIEN (após virar de um só gole)- O que? Ora, o dinheiro, bolas! Inclusive,Georges, (mudou o tom de voz e a expressãodo rosto para dizer algo sério) tomei aliberdade de dizer a Hipólito que 500 000devem ser pagos diretamente ao resgate dahipoteca das terras de seu pai, no Banco daAgricultura...

GEORGES (interrompendo-o)

- Como soube disso? Só mesmo o“informadíssimo Hébrard”! A família manteveum sigilo quase sepulcral de tudo!...

ADRIEN (falando baixinho, aproximando oseu rosto do amigo)- Sei tudo sobre Você e suas enrascadas, etambém das que Você meteu seus pais e suafamília. Desde que fui para Avignon tornei-me Conselheiro do Banco da Agricultura. Foipor mim que aprovaram a hipoteca das terrasdo seu pai naquele valor. Seu próprio paiveio agradecer-me. É um grande homem.Poucos pais que conheço dariam tudo o quetem pela liberdade de um filho, como elefez.

Georges estava completamente apatetado,não conseguia articular palavra.

ADRIEN (continuando)- O resto do dinheiro é todo seu. Não precisode mais dinheiro em minha vida. Tenho maisdo que o suficiente e meus filhos estão melhorainda do que eu. Amanhã já estarádepositado, em seu nome, no Banco daAgricultura. (e, voltando a sorrir) - Vamos,anime-se, Georges, o que vai fazer com suanova fortuna?

GEORGES (ainda inteiramente surpreendido)- Eu... eu... eu..., não sei ainda. (erecuperando-se) - Ora, Adrien, diga-me, o queaconteceu? Como conseguiu? É tudo tãorápido, estou confuso...

ADRIEN (brincalhão)- Até se esqueceu do “mon petit cahier”, nãoé, meu velho? É a chave da história. (e,baixinho) - Vou dizer-lhe o que significa: esseé o apelido que o Benett dava ao sexo dasua amante, a ex-senhora Henry White,naqueles bons tempos do “Le Temps”,lembra-se dela?

GEORGES (tapando a boca de pasmo)- Martha? Sim, claro, era linda. Quer dizerque Você também, hein, seu patife?!(começou a rir, pela primeira vez)

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ADRIEN (rindo também)- Sim, e só hoje Benett o soube! (gargalhadas)- Achava que era exclusiva dele. Ficou uma“arara”. Mas é hipócrita mais do que suficientepara não perder a fleuma. Sabe o que medisse ao telefone? (mais gargalhadas, ogarçom e as pessoas das mesas vizinhasolhavam-nos com reprovação, mas ele nãose continha e continuou rindo e imitandoBenett ao telefone) - Vou lhe devolver outrastrês palavras que bem merece, seu grandepatife: “son of bitch”! (mais gargalhadasestrondosas)

Enfim consegue conter-se e continua.

ADRIEN- O Benett é sério candidato a Presidente dosEstados Unidos. Lá ele é o pai da moral e dareligião mais castiça; sua plataforma principalé dar escolas moralistas para todas as criançasamericanas. (começa a rir novamente) - Jápensou se seus inimigos - que são muitos etão poderosos quanto ele - ficam sabendoque aquele pai da moral, da religião e daeducação chamava o sexo da sua amante,por sinal, então esposa de seu maior amigo,de “my little notebook”?

GEORGES (agora já solto nas risadas)- Começo a entender... mas Você de fatoaprendeu bem nessa escola, hein? Tornou-seum canalha igual ou maior! Isso é chantagem,Adrien...

ADRIEN- Prefiro dizer vingança, meu caro, e damelhor qualidade! É o grande deleite dosdeuses; às vezes concedido a alguns mortais.E Você não sabe da outra: pedi também acabeça do Lazare! Estará no olho da ruaamanhã mesmo! E o filho da mãe do Benetté tão canalha que ainda me disse (volta aimitar Benett): - Nem precisava exigi-lo, meunobre canalha, será um prazer atendê-lo; jánão precisamos mais daquele palerma!(ambos dão outra grande gargalhada)

GEORGES (conseguindo conter o riso)- E Martha? E Eva, sua esposa? O que diriam

se viesse à tona uma história dessas?

ADRIEN- Uma história dessas nunca viria à tona,Georges, a não ser que Benett fosse louco.Só ele e eu, e agora Você, sabemos disso.Com esse acerto nos sentimos pagos e elesabe que pode confiar nisso. Morre aqui.Quanto à Martha e Eva, são ambas belasparisienses, cosmopolitas, satisfeitasintelectualmente, cultas e soberanas de simesmas. Iriam rir dessa história, como nós.Rir do Benett, é claro. Também elas tiveramde aturar a prepotência daquele garanhãoamericano, até mesmo Eva, minha esposa.Martha cedeu para se vingar de White, comquem casou por interesse familiar, e não poramor. Em verdade não suportava o marido

GEORGES- E quanto aos arquivos de Santos-Dumont?Será que aqueles canalhas...

ADRIEN- Benett jurou-me, e pareceu-me sincero, quefoi acidente mesmo. (e, em off sobre a cenada explosão do caminhão, com a cara cínicade Mephisto dando gargalhadas, passandoem 1º plano) - O caminhão estavareabastecendo quando tudo foi pelos ares.Não sabiam ainda quais arquivos tinham sidoperdidos. (de novo, em in) - Ele mesmolamentou a perda, Georges, e não estavasendo hipócrita... São artes do demônio... elasexistem, sabia? Mas, diga—me, o quepretende fazer com a sua pequena fortuna?

GEORGES- Acho que em primeiro lugar ajeitar minhavida que está num caos. Reconciliar a famíliae voltar às boas com os meus pais, que estãobem velhos. São moralistas e religiosos deverdade, mas não como a pústula do Benett,mas como camponeses, legítimos francesesque são. Sofreram muito com minhas desditas.Depois quero realizar o velho sonho de ir aoBrasil visitar minha irmã e ver o nosso velhoamigo e herói Santos-Dumont.

ADRIEN

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

- Santos-Dumont!... toda essa históriadevemos a ele, pobre homem. Sua famosasorte parece que não o protege mais. Hápouco participei da revisão francesa de umagrande enciclopédia editada em mais de 40línguas e financiada por bancos americanos.Vi o verbete do seu nome; é uma bazófia!Tiraram-lhe toda a parte do mais pesado queo ar, Georges, e ainda inventaram-lhe umbalão chamado “A Música”, que sei quenunca existiu. Eis no que se transformou aimprensa dita “moderna”.

GEORGES- De fato procuram eliminar todos os registrosdos seus feitos. E o mais grave tem sido acriminosa omissão do seu nome em tudo quediz respeito aos começos da aeronáutica. Esobre os irmãos Wright, o que publicaram?

ADRIEN- Nada, meu caro, absolutamente nada. Nissoaprenderam comigo. Estão guardando-os paraa hora certa, entendeu? O momento não épropício, muitos que sabem do embusteainda vivem... E quanto a Você, Georges, e àsua arte, o que andou fazendo?

GEORGES- Ao deixar o jornalismo, abracei osmovimentos renovadores do surrealismo e davanguarda modernista, com MarcelDuchamp, Picabia, Picasso, Max Ernst emuitos outros. Mas também deixei-me cairna miséria e na ruína, e creio que perdi obonde da história, Adrien.

ADRIEN- Os homens verdadeiramente profundos,Georges, não sobem; enterram-se. Muitosanos depois de suas mortes, descobre-se, derepente ou pouco a pouco, o que na realidadevaliam. A consagração oficial entronizaapenas os comediantes e os fantoches da arte,meu caro, enquanto os verdadeiros criadoresficam na sombra.

GEORGES- Talvez seja assim, Adrien, e o melhorexemplo certamente não será o meu, mas o

de Santos-Dumont. Desde que se foi não maiso vi. Mas deve estar sofrendo terrivelmentepor esse injusto boicote de que é vítima.

ADRIEN- Soube que andou enlouquecido e internadoem Biarritz, mas a última notícia que tive jáera bem melhor... Onde estará ele agora?...

GEORGES- Recebi ontem uma carta de minha irmã(olhou seu relógio de pulso) - se o fusohorário não me engana e o Cap Arcona nãoatrasou...

SEQUÊNCIA 95

A voz de Georges fica em off sobre a imagemda chegada do Cap Arcona na Baía daGuanabara numa tarde bela com o Pão deAçúcar (já com o bondinho) e o Corcovado(já com o Cristo Redentor) ao fundo.

GEORGES (continuando em off)... está entrando agora na Baía de Guanabara.Os brasileiros, um tanto arrependidos pelodescaso para com ele, quando mais precisoudo apoio de sua pátria aqui em Paris, tentamrecuperar tardiamente o erro dando-lhe umaestrondosa recepção, segundo minha irmã,com preparativos ainda mais retumbantes doque a de 1903...

O Cap Arcona entra na Baía e segue para ocais. Vários barcos estão a comboiá-lo. Umhidroavião trimotor, da empresa Condor,batizado às pressas de “Santos-Dumont”,desliza sobre o mar decolando perto do cais,e voando rasante em direção ao navio, noconvés do qual estão SD e Jorge Villares. Aopassar pelo navio jogam do avião um rolode papel, dentro de um tubo de borracha,que cai sobre o convés. Jorge corre para pegá-lo, mas um marujo se antecipa e entrega-o aJorge. Jorge abre o rolo de papel e vemsorridente na direção de SD.JORGE- É uma mensagem, tio Alberto. Vou ler parao senhor. (e começa a ler a mensagem em

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2), com o som dasexplosões das bombasjogadas sobre a cidade deSantos, como se fossetambém o eco, ainda emáudio, da explosão dohidroavião sobre o mar.

SD (balbuciando)- Quantas vidassacrificadas por minhahumilde pessoa!....

Corte para o português davenda em Guarujá,voltando para o balcãocontando o troco de Jorge,ainda balançando a

cabeça em sinal de reprovação pelobombardeio.

O PORTUGUÊS (olhando para os lados paraver se encontrava Jorge)- Senhor?! Senhor? O seu troco! (e percebendoque já se fora) - Esses apressadinhos!...

Corte para Jorge correndo pela rua da Vilade Guarujá, desesperadamente, segurando ochapéu com uma das mãos, a gritar deaflição, como um louco.

JORGE- Tio Alberto! Tio Alberto!

Corte para SD virando-se paradentro do apartamento do hotel.Na poltrona que ocupavafrente à mesa do café, viuMephisto sentado confortávele petulantemente, sob a formade Albertinho, aos 12 anos deidade, porém com as feições dacriança original alteradaspara uma expressãoendiabrada e maliciosa,agravada pelas agressivass o b r a n c e l h a spontiagudas. O garotovestia uma roupa igual ada aparição anterior com

"SD vira o "Santos-Dumont" cair e naugragar..."

SD aos12 anosde idade

voz alta, empostada, eorgulhoso do tio) - “Doalto do hidroavião que temo seu glorioso nome,precedendo a recepção quelhe preparou o povo daCapital do Brasil, vimosapresentar ao grandebrasileiro que realizando aconquista dos ares elevouo nome da pátria noestrangeiro, os nossos votosde boa vindas...”

Mas SD não prestavaatenção à leitura empoladado sobrinho. Seus olhosansiosos e preocupadosseguiam a manobra imprudente dohidroavião ao fazer um retorno perigoso apoucos metros acima da linha d’água. Namanobra, o infeliz piloto permitiu uma leveglissada da aeronave, fatal àquela altitude, ea ponta da asa direita tocou a água,derrubando o hidroavião que espatifou-senuma horrível explosão. Em poucossegundos o oceano engoliu todos osdestroços; alguns poucos pedaços emchamas ainda boiavam sobre a água. Santos-Dumont vira o “Santos-Dumont” cair enaufragar, diante dos olhares estarrecidos dospassageiros e da tripulação do navio e dasembarcações que o comboiavam; sem deixardúvidas sobre a possibilidade desobreviventes.

A câmera vai aproximando-se em close dorosto arrasado de SD em lágrimas atéenquadrar somente osseus dois olhos tristes,abertos e lacrimejantes.

SEQUÊNCIA 96

Ao afastar-se, no movimento oposto,aparentemente sem cortes, a câmera jáencontra SD na janela do Hotel de La Plage,na Praia do Guarujá, exatamente como odeixara no início do filme (final da Sequência

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

a indefectível capa preta forrada de veludocarmin. Sob o olhar atordoado de SD, eletira do bolso do colete uma charuteira queestava na oficina secreta destruída. Retira delaum charuto e o acende, como umconnaisseur, usando o fogo saído da pontado dedo indicador da sua mão esquerda,acedendo primeiro o braseiro e depoismordendo o outro lado, sem perder o sorrisocínico e irreverente.

SD- Vocês? ... Vocês não podem...

MEPHISTO (com a mesma voz gutural)- Homem voa, Albertinho? (dá umagargalhada, que logo interrompe comcinismo) - Então? Satisfeito com vossa obra?(outra gargalhada) - Ora, Alberto, nãoentristeça-te! Sabes que, por força da nossaarte, não é possível ao Homem inventar alocomotiva sem que invente, também, odescarrilhamento.

SD (resoluto, como se tivesse recuperado,instantaneamente, a saúde)- Vamos embora daqui! (e sai em direção aoquarto)

No caminho SD retira o cinto de seda do seurobe-de-chambre, enrola-o pelas pontas nasduas mãos e dá um forte puxão, como setestasse a resistência de uma corda. Ao chegarà porta ouve a voz de Mephisto.

MEPHISTO- Não te culpes, Alberto. Esse mundo não émais o teu. O mundo é dos boçais! (e dáoutra gargalhada)

SD passa pela porta e bate-a por trás delecom energia.

MEPHISTO (levantado-se e caminhando emdireção à câmera)- Respeitável público! Aqui encerro minhaparticipação nessa história que, além deverdadeira, é instrutiva e reveladora. Sintonão ter vos dado as doses de romance, sexoe violência a que estão habituados nessa sala,

mas essa é uma questão de estilo. Ficai agoracom o seu epílogo trágico, que haverá desaciar vossa curiosidade e sede de saber.Muito obrigado. (faz uma reverência e acâmera aproxima-se em macro do seu olhoesquerdo até tê-lo todo na tela, ele pisca edesaparece)

Corte para Jorge subindo os degraus daentrada do hotel, esbaforido, correndo,segurando o chapéu e gritando feito louco.

JORGE- Tio Alberto! Tio Alberto!

Ele sobe as escadas sob os olhares doshóspedes e serviçais que agora enchem ohall de entrada e chega ao corredor, emcorrida estabanada, trombando em pessoas,em carrinhos de café, em garçons ecamareiras, até chegar à porta do apto 8, quenão se abre por fora. Ele procura a chave,mas não a levara. Então soca a porta comforça.

JORGE (aos berros)- Tio Alberto! Tio Alberto!

Garçons e camareiras chegam para acudi-lo.Ele tenta forçar a porta com os ombros, masnão consegue. Uma camareira chegacorrendo com a chave mestra, mete-a nafechadura, abre-a e Jorge escancara a porta,entrando na ante-sala, seguido pelos outros.

A câmera mostra o primeiro alvo do olhar deJorge: a poltrona vazia! Um vento sopra acortina quase transparente da janela ondeestava SD.

JORGE (farejando o ar)- Hum!? Parece cheiro de tabaco?!...

A CAMAREIRA (também farejando o ar eesfregando-se)- Eu não sinto cheiro nenhum, doutor, sintoapenas uma friagem esquisita...

Um garçom chega perto da mesa do café, vêa charuteira com as iniciais “SD”, e embolsa-

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a furtivamente, sem que ninguém percebesse,colocando-a dentro do bolso do paletó.

Jorge corre até a porta do quarto, abre-a aosgritos de “Tio Alberto!”. Ninguém. Olha aporta do banheiro e corre até ela, abrindo-a.Por trás da cortina do box do chuveiro, asombra de SD pendurado ainda balança.

JORGE (já em lágrimas)- Oh, meu Deus!

SEQUÊNCIA 97

O tiroteio continua intenso na rua dacidadezinha do interior de São Paulo. Dolado varguista, um homem pega ummegafone e um outro hasteia uma bandeirabranca. O tiroteio cessa repentinamente.Silêncio. Ninguém se mexe da posição nembaixa as armas. Tensão.

SARGENTO MIRANDA (berrando aomegafone)- Aqui é o Sargento Miranda do 33ºRegimento de Infantaria do Exército Federal.Recebemos pelo telégrafo a notícia dofalecimento do nosso ilustre patrício SenhorSantos-Dumont, o Pai da Aviação. Tenhoautorização para propor uma trégua a fimde homenagearmos em paz o grande heróida nossa pátria.

Tensão e silêncio. O outro lado confabula.Alguns segundos depois...

TENENTE CHUMBINHO (berrando, fazendocom as mãos o seu megafone)- Aqui é o Tenente Chumbinho do 8ºBatalhão do Exército Constitucionalista.Aceitamos a trégua. Dois dos nossos sairãopara encontrar dois dos seus e discutir ostermos.

Os dois lados baixam as armas e os homenslevantam-se descobrindo-se de suas posiçõese esconderijos.

SEQUÊNCIA 98 (Réquiem)

Sinos dobram em todo o Brasil. Umasequência de fusões rápidas de torres dediversas arquiteturas; neoclássicas, barrocas,góticas, rústicas, kitsch, simplórias, etc.

Corte para o cortejo fúnebre, a multidãoseguindo pelas ruas do Rio de Janeiro. Emáudio o réquiem indígena “Canide Ioune”,extraído e traduzido por Murilo Araujo eorquestrado por Heckel Tavares.

RÉQUIEM DOS ÍNDIOS ARITIS

CANTO (CORO DE MENINOS)(LEGENDA/TRADUÇÃO)

Canide Ioune... Canide Ioune...(Ave dourada, ave dourada)

Tia ua! Tia ua!(O corpo chora, o corpo chora!)

Canide Ioune... Canide Ioune...(Ave dourada, ave dourada)

Cemati, mamalô!(Atende a nós, oh mãe vossa)

Queracarê(O escravo)

ma cauê(assim sofre...)

Cecô(Tão longe)

Zoricê(As estrelas,)

Anuim caui(Abelhas de luz)

Aiçati acô(Matam dentro de nós)

Ololi olô(As pequenas flores de ouro...)

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Canide Ioune... Canide Ioune...(Ave dourada, ave dourada)

Tia ua! Tia ua!(O corpo chora, o corpo chora!)

Sobre a música, em determinado momento,entra a voz da irmã de Georges, em off.

VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)“- Querido irmão. Moro há tanto tempo noBrasil e ainda surpreendo-me e enterneço-me com a natureza profundamente humanado seu povo. A morte do Sr Santos-Dumontfoi um verdadeiro trauma nacional, ainda quetodos soubessem que ele estava fraco edoente. Repare no mapa: o Brasil tem a formade um coração! E cada um de seus habitantesparece trazer no peito um coração tão grandequanto a sua imensa nação. (durante essetempo a câmera passeia sobre o cortejofúnebre e mostra detalhes do povo humildee em lágrimas) - Aqui acontece de modomais nítido o que também ocorre nas demaisnações. O povo humilde e pobre é maissensível, mais humano e mais delicado doque as elites, geralmente, arrogantes egrosseiras, principalmente nessa terra defortes contrastes. É tão grande e tão elevadoo coração dessa gente que pediram paraguardar, como relíquia e recordação do seumaior herói nacional; justamente o seucoração! O coração do seu amigo Albertofoi então retirado e conservado num escríniode ouro para a eternidade. (a câmera mostrao detalhe de um coroinha carregando oescrínio) - O escrínio que encerra o coraçãode Santos-Dumont, é uma esfera de ouro,com perfurações representandoestrelas que simbolizam, noconjunto, o universo. Dentro daesfera se contém outra,hermética, de cristal; e dentrodesta, em líquido adequado, seacha imerso o coração doaeronauta.”

O cortejo chega na via principaldo Cemitério São João Batista,orlada por uma multidão de

corbeilles e coroas de flores, mostrando oscartões remetentes das diversas procedências,reis, rainhas, estadistas, cientistas, jornalistas,instituições, personalidades, aeronautas e aeroclubes do mundo inteiro.

O caixão, coberto com a bandeira do Brasil,prossegue em direção à escultura de Ícaro,réplica da de St Cloud, que ornamenta otúmulo da família do inventor.

Perto dele o cortejo pára e uma sequênciade oradores exaltados, como sempre em cenamuda, superpõem-se em fusões rápidas.Enfim Jorge, ao lado de Prado, dá uma ordematravés de um breve sinal com a mão. DoisDragões da Independência dobramritualmente a bandeira do Brasil e a entregampara a irmã mais velha de SD. A câmera assisteo caixão descer à tumba.

SEQUÊNCIA 99 (A Dama de Negro)

Cemitério de São João Batista, no Rio deJaneiro, limpo, vazio e silencioso, num lindodia. A câmera chega na sepultura de Santos-Dumont junto com um imponente Rolls-Royce negro estacionando. De dentro, sai ummotorista negro todo vestido de negro, abreo porta-malas e retira uma corbeille de florese coloca-a sobre a sepultura. Em seguida,volta ao automóvel e abre a porta de tráspara que saia uma mulher toda vestida denegro, com um véu sobre o rosto. Ela andacom elegância até a sepultura, trazendo nasmãos um porta-retratos com a fotoautografada de Santos-Dumont. Ao chegar

inclina-se, abrindo o véu parabeijar o retrato. A câmera, emclose lateral, revela suaidentidade: Aida D’Acosta, umaartista mais madura, e sempremais bela. Ela beija com ternuraa fotografia e deposita o porta-retratos sobre o túmulo,arranjando-o, em destaque, nocentro da corbeille. A câmerafecha em close sobre o retrato doaeronauta e depois, abrindo

"... e conservado num escríniode ouro para a eternidade."

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novamente, sobe até a estátuade Ícaro, e em seguida vai parao céu onde encontra umasnuvens e pára.

Ouve-se a voz cândida deAlbertinho, aos 7 anos de idade,fazendo a Criança-mestre dabrincadeira infantil.

CRIANÇA-MESTRE (com a vozde Albertinho)- Homem voa?

CRIANÇAS EM CORO- Voa!

SEQUÊNCIA 100

Entram os primeiros créditos sobre as nuvens.

Corte para um “Demoiselle” decolando doCampo de St Cyr, em filme documentárioP&B.(Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 1908)

Corte para mais créditos sobre as nuvens.

Corte para filmes documentários P&Bmostrando os aviões de Bleriot, Breguet,Farman e Lindemberg em pleno vôo, comrespectivas legendas com seus nomes, massem datas.

Corte para mais créditos sobre as nuvens.

Corte para filmes documentários P&Bmostrando os aviões dos primeiros correiosaéreos em pleno vôo, pilotados por SaintExupéry, Mermoz, Gago Coutinho, SacaduraCabral e outros, com respectivas legendasnominais, sem datas.

Corte para mais créditos sobre as nuvens.

Corte para filmes documentários em P&Bmostrando os primeiros aviões de passageirosdas décadas de 20 e 30, em pleno vôo, comrespectivas legendas dos nomes das

aeronaves, sem datas.

Corte para mais créditos sobreas nuvens.

Corte para filmes documentáriosem P&B e cores mostrando osaviões de passageiros dasdécadas de 40 e 50, em plenovôo, com as respectivas legendasdos nomes das aeronaves, semdatas.

Corte para mais créditos sobre as nuvens.

Corte para filmes documentários a coresmostrando os aviões turbo-hélices, depassageiros, da década de 60, em pleno vôo,com respectivas legendas dos nomes dasaeronaves, sem datas.

Corte para mais créditos nas nuvens.

Corte para filmes documentários a coresmostrando os imensos aviões à jato depassageiros, da década de 70 e 80, em plenovôo, com respectivas legendas dos nomes dasaeronaves, sem datas.

Corte para os créditos finais, sobre as nuvens.

Corte para o supersônico de passageiros, oConcorde, pousando em Orly. (Legenda:Aeroporto de Orly, Paris, 1998). Ao tocar asrodas no solo, a cena “congela”, sai a legendae entra a palavra

FIM

90 ANOS DA AVIAÇÃO CIVIL1º CENTENÁRIO DA 1ª ASCENSÃO-SOLO

DE SANTOS-DUMONT NO BALÃO “LE BRÉSIL”

Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995.

Túmulo de SD

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Composto e diagramado pelo autor em PC486 DX2, utilizando fonte True Type"Gatineau" e software Aldus PageMaker.Originais feitos em impressora jato-de-tintamarca Canon, modelo BJC - 4000 sobrepapéis RENKER "Safir", cor branca, com90 g/m2. Trabalhos encerrados em BeloHorizonte, no dia 22 de abril de 1996.

L A V S D E O

Destes originais foram tiradas 12fotocópias, feitas pela N.A. COPIADORALTDA em máquina Minolta mod. EP 5400.Os 12 exemplares, uma vez encadernados,foram numerados e assinados pelo autor.

Exemplar Nº

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