Upload
dangdien
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
TESE DE DOUTORADO
O QUE É O SOCIAL?
DIGRESSÕES ACERCA DE SUA NATUREZA
E DE SEU CONTEÚDO
SANDRA DA SILVA SILVEIRA
Porto Alegre, março de 2008
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
TESE DE DOUTORADO
SANDRA DA SILVA SILVEIRA
O QUE É O SOCIAL?
DIGRESSÕES ACERCA DE SUA NATUREZA
E DE SEU CONTEÚDO
Porto Alegre,
2008
SANDRA DA SILVA SILVEIRA
TESE DE DOUTORADO
O QUE É O SOCIAL?
DIGRESSÕES ACERCA DE SUA NATUREZA E DE SEU CONTEÚDO
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Serviço Social.
ORIENTADORA: PROF. DRA. JUSSARA MARIA ROSA MENDES
Porto Alegre,
2008.
SANDRA DA SILVA SILVEIRA
A COMISSÃO EXAMINADORA, ABAIXO ASSINADA, APROVA A TESE:
O QUE É O SOCIAL?
DIGRESSÕES ACERCA DE SUA NATUREZA E DE SEU CONTEÚDO
Como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço Social na
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Em 31 / 03 / 2008.
COMISSÃO EXAMINADORA:
Prof. Dra. Jussara Maria Rosa Mendes (orientadora)
Prof. Dra. Ana Lúcia Suárez Maciel
Prof. Dr. Carlos Nelson dos Reis
Prof. Dra. Marilene Maia
Prof. Dra. Miriam Dias da Silva
Dedico esta tese A Deus, por me iluminar, À minha filha Naiara e ao meu companheiro de vida, Fernando, por estarem sempre aqui, do meu lado!
A G R A D E CIM E N TO SA G R A D E CIM E N TO SA G R A D E CIM E N TO SA G R A D E CIM E N TO S
O amor antigo
O amor antigo vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de presença. Nada exige nem pede. Nada espera, mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas, feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito, e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mais pobre de esperança. Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro, tanto mais velho quanto mais amor.
Carlos Drummond de Andrade
A m ores antigos e novos, am ores. Sem eles, jam ais existiria essa tese. O brigado m eus
am ores!
O brigada Profa. D ra. M aria Jussara R osa M endes, pela paciência, cum plicidade e
apoio inconteste. Sem dúvida, se aqui cheguei, foi porque acreditaste em m im . A gradeço
tam bém ao PPG SS-PU CR S a oportunidade, bem com o ao P rogram a CA PE S.
O brigada Profa. M estre Ivone R anheim er, pela sapiência, justeza, m as
principalm ente por m e acolher. G rata, m eus queridos colegas da U lbra, pelo apoio e pela
cobertura nesta reta final.
O brigada A ngelita Cam argo, am iga e parceira. Foste essencial nesta reta de chegada.
O prem io tam bém é teu .
O brigada E lisabete G rabin de O liveira, pelo apoio prático e silencioso. É s m uito
especial em nossas vidas.
RESUMO
Apresente tese tem por objetivo problematizar a natureza, a funcionalidade e o
conteúdo do social na constituição e na reprodução do sistema capitalista, partindo
do pressuposto de que, do ponto de vista da sua natureza, ele é próprio da Questão
Social, da qual emerge como uma ameaça ao sistema capitalista. Por outro lado, o
social é absorvido e transformado, pelo próprio sistema, em uma de suas estratégias
de reprodução e legitimação, tendo como finalidade principal garantir a coesão
social. Essa coesão, por sua vez, é legitimada e garantida nos grandes pacto s
sociais, produzidos no âmbito da esfera pública burguesa. Esses pacto s têm como
lógica hegemônica o liberalismo, base teórica e ideológica do modo capitalista de
produção. Para evidenciar como, na contemporaneidade (séc. XXI) esse processo
contraditório se expressa e reproduz e como a lógica liberal vem se mantendo, são
problematizadas as ações sociais empreendidas por um agente central do sistema
capitalista: o empresariado. Para responder ao adensamento das desigualdades
sociais produzidas pelas profundas e permanentes transformações que (re)atualizam
o capitalismo, esse agente se apresenta como portador de pretensas “novas” formas
de condução das práticas sociais. Entretanto, o estudo de caso de um dos
instrumentos que ele utiliza para demonstrar suas ações, o Relatório Social,
evidência que essas têm caráter limitado, tanto do ponto de vista do investimento
quanto dos resultados (para os beneficiários). Da mesma forma, o estudo também
evidencia que o foco dessas ações não se diferencia muito das antigas, e por tais
agentes tão criticadas, práticas de filantropia.
Palavras – chave: Esfera pública; Questão Social; Pacto social.
ABSTRACT
The present dissertation has as objective to discuss the nature, importance
and social content in the creation e reproduction of the capitalist system. It begins in
the idea that, because of its own nature, it is inherent of Social Question, from where
appears as a threat to the system. On the other hand, it is absorbed and transform by
the own system, in one of your reproduction and legitimation strategies, having as
major function to guarantee social cohesion. This cohesion, its, is legitimated and
guaranteed by social pacts, made on scope of Public Bourgeois Sphere. This pact
has his hegemonic logic lying on Liberalism, which is the theoretician and ideological
base of Capitalist Production Way. In order to show how this contradictory process
express and reproduce nowadays, and how liberal logic has been kept, social acts
made by a central agent of capitalist system – entrepreneurs - are discussed. Loking
to explain growth of social inequalities, that are made by deep and permanent
transformations, which renew the capitalism, entrepreneurs present themselves as
carriers of "new" ways of lead social practical. However, studying one of the
instruments used by these agents to show theirs actions – Social Report –
demonstrates that their acts has limited character, by the point of view not only from
investment, but also if analyzed the results to the beneficiaries. The present study
also evidence that the focus of this acts are not too different from the old philanthropy
practical that are critized by them.
Keywords: Public Sphere; Social Question; Social Pact.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 008 2 ESFERA PÚBLICA E SOCIAL: DEMARCAÇÕES PRELIMIRES.................. 011 2.1 SOCIAL: VARIAÇOES SOBRE M MESMO TERMO.................................... 013 2.2 ESFERA PÚBLICA: DA GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE.................. 017 3 A NATUREZA DO SOCIAL............................................................................. 026 3.1 O SOCIAL NA PERSPECTIVA MATERIALISTA HISTÓRICA..................... 027 3.2 O SOCIAL NA PERSPECTIVA LIBERAL..................................................... 032 4 O PACTO SOCIAL: ESTRATÉGIA DE GESTÃO E LEGITIMAÇAO DO
SISTEMA CAPITALISTA..........................................................................
041 4.1 DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO – UM PACTO SOCIAL NA
PERSPECTIVA LIBERAL CONSERVADORA..............................................
050 4.2 DIREITOS SOCIAIS – UM PACTO SOCIAL NA PERSPECTIVA DO
LIBERALISMO SOCIAL................................................................................
058 5 O CONTEÚDO: O SOCIAL E SUAS OBJETIVAÇÕES.................................. 072 5.1 GOVERNABILIDADE E GOVERNANÇA – OU CAPACIDADE POLÍTICA
E ECONÔMICA.............................................................................................
073 5.2 VARIAÇÕES SOBRE OS MESMOS TEMAS – SAÚDE E EDUCAÇÃO...... 079 5.3 O ESTADO DA ARTE DO SOCIAL – UMA PERSCRUTAÇÃO ÀS
PRÁTICAS DE RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA.............
098 5.3.1 O Percurso Metodológico........................................................................... 105 5.3.2 O Estado da Arte: o caso de uma indústria do setor petroquímico............ 109 6 CONCLUSÕES................................................................................................ 118 BIBLIOGRAFIA..................................................................................................... 123
8
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por objetivo (e pretensão) evidenciar a natureza e a
função da esfera social na sociedade moderna, aqui delimitada como aquela que
tem no sistema capitalista sua base de produção e reprodução social. Para
investigar a questão original (problema de pesquisa) O que é e como se constitui a
esfera social na sociedade moderna?. do ponto de vista metodológico, optei pela
pesquisa bibliográfica de natureza sócio-histórica, fundamentada em saberes das
áreas dos direitos humanos e das ciências sociais, em que pese também explorar,
com menor envergadura, evidências empíricas de caráter documental (Relatório
Social).
A tese que aqui busco afirmar é a de que O social se constitui
historicamente como uma das estratégias de legitimidade e reprodução do
sistema capitalista, tendo como uma de suas principais funções garantir a
coesão social. O percurso metodológico teve como direção as seguintes hipótese:
(a) hipótese de fundamento, cujo pressuposto é que, em termos de concepção, e
considerando que o social se constitui na esfera pública e se concretiza nos grandes
pacto s societários, a lógica hegemônica subjacente é o Liberalismo, em que pesem
as resistências operadas pelas concepções de base humanista cristã e socialista; (b)
hipótese de processo, segundo a qual a objetivação dos pressupostos liberais na
área social contemporânea (séc. XXI) tem produzido ações alicerçadas segundo
padrões de governança, definidos pela lógica de mercado – eficiência e
custo/benefício. Essa lógica, por seu turno, alcança sua performance máxima nos
princípios da subsidiariedade e da eqüidade; (c) hipótese projetiva, pela qual, em
relação ao protagonismo, e considerando o adensamento das desigualdades sociais
produzidas pelas profundas e permanentes transformações que (re)atualizam o
capitalismo, o que se observa é a emergência de pretensas “novas” formas de
condução das práticas sociais. Dentre esses ditos novos atores, destaca-se o
empresariado, autodefinido como o agente que, através de uma nova racionalidade,
irá responder, efetivamente, aos “problemas sociais”.
Interessa aqui destacar que este estudo se insere no que Montaño (2002)
qualifica como o “novo” trato da Questão Social, com vistas a substituir o pacto
social estabelecido sob os liames do capitalismo monopolista e do Estado de Bem
9
Estar Social da segunda metade do séc. XX. Com isso, intenta- se gestar um novo
social, no qual o trato das expressões da Questão Social são privatizadas e
transferidas para o mercado e para a sociedade; as necessidades sociais são
naturalizadas como próprias do indivíduo, e a dimensão política dessas é esvaziada.
A dinâmica metodológica que permitiu a investigar o problema de pesquisa
Como vem se constituindo historicamente o social, qual seu fundamento e
conteúdo na sociedade moderna? fundou-se, como já delimitado, na perspectiva
materialista-histórica e, nesse sentido, exigiu a imersão em inúmeras produções
teóricas das áreas já citadas. As hipóteses constituíram- se elementos balizadores
do processo investigativo e permitiram resguardar, muitas vezes, o foco da pesquisa.
Outrossim, são elas portadoras dos saberes (práticos e teóricos) que acumulei ao
longo de minha jornada profissional, política e acadêmica, os quais coloco à prova
nesta tese.
Já o processo de exposição não segue a mesma lógica do investigativo, pois
se para a produção do primeiro foi necessário operar um démarche do objeto social,
no intuito de compreendê-lo a partir de suas diversas interfaces (com a economia, os
direitos positivos, os movimentos sociais), para torná-lo inteligível ao leitor, organizei
o argumento no sentido histórico.
Dessa forma, no Capítulo 2, busco especificar o lugar e a origem do social
para, em seguida, no Capítulo 3, envidar esforços para explicitar a origem e a
natureza do mesmo – a Questão Social. Essa tarefa levou-me a encontrar dois
derivativos: um ligado à tradição liberal, e outro ligado à tradição materialista-
histórica. Estes dois primeiros capítulos são produtos da hipótese de fundamento,
mais especificamente correspondem à assertiva que se refere à concepção
hegemônica no âmbito da sociedade capitalista (mas que não é única). Também
neles se expressa o argumento da tese acerca da finalidade última do social: a
garantia da coesão da sociedade moderna.
A hipótese de fundamento levou-me ainda a compreender o modo como o
social é tratado no âmbito de dois grandes pacto s produzidos pela sociedade
moderna: o dos Direitos do Homem e do Cidadão e o dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, ambos foco do Capítulo 4. O Capítulo 5, por seu turno, tem a
tarefa de validar, ou não, a hipótese projetiva, no que concerne a um dos “novos”
10
protagonistas da esfera pública social: o empresariado, através do estudo das
chamadas práticas de Responsabilidade Social Corporativa. Além dessa análise,
forjo demonstrar em que medida os princípios de subsidiariedade e da eqüidade
(hipótese de processo) e de governança e governabilidade incidem, hoje (séc. XXI),
nas práticas sociais.
Cabe destacar que a escolha deste agente (empresariado) não retrata a
complexidade dos interesses presentes e beligerantes no âmbito do social, mas,
sem dúvida, expressa indícios dos princípios valorativos que têm orientado a
sociedade moderna: a lógica liberal. A matéria-prima dessa avaliação é um relatório
social e seu respectivo balanço social, que analiso na perspectiva de método de
Estudo de Caso, por entender que ele expressa o caráter típico desses
empreendimentos. Cabe ressalvar, novamente, que a produção que ora apresento é
resultado de extensa pesquisa de cunho histórico (bibliográfico e documental), e que
o recurso de analisar a prática social empresarial compõe esse todo, não se
destacando dele em termos de ênfase.
As principais categorias teóricas e de análise que orientaram tanto o processo
de conhecimento quanto o de análise são: historicidade, como recurso para
compreender a relação entre as transformações econômicas operadas pelo modo de
produção capitalista na reprodução da sociedade moderna, em seus principais
momentos históricos; contradição, processo social produzido no e pelo conflito entre
classes, motor de avanços e retrocessos no âmbito dos Direitos Humanos; e
hegemonia, reconhecido princípio organizador da sociedade, através do qual uma
classe se impõe a outras através da força e da sujeição (reformas, concessões,
consciência).
11
2 ESFERA PÚBLICA E SOCIAL: DEMARCAÇÕES PRELIMIRES
Parto do pressuposto de que a esfera pública1 e, mais especificamente, um
dos produtos dessa esfera – os pacto s sociais – se constituem como um dos
processos pelos quais se opera a governabilidade (legitimidade) e a governança
(manutenção / reprodução)2 do sistema capitalista. No intuito de fundamentar esse
pressuposto procurarei demonstrar, primeiramente, que o social tem peso
semelhante ao econômico no processo de sustentabilidade do sistema capitalista
(em que pese a retórica liberal da secundarização do primeiro em relação ao último),
tendo visto sua utilidade última: a de garantir a coesão social. Daí porque o social é
engendrado a partir e no substrato dos grandes pacto s societários, de onde
emanam concepções, políticas, práticas e protagonistas que lhe dão concretude.
Considerando isso, ratifico a concepção de social que adoto: a de que este é,
juntamente com o econômico, o objeto mesmo da esfera pública moderna. Assim
procedo no intuito tanto de diferenciá-lo de outros significados que lhe são
atribuídos, quanto no de situar a discussão / problematização aqui proposta3 na
perspectiva materialista histórica4. Perspectiva esta que qualifica o social, e
1 No pensamento arendtiniano, é o lugar da transcendência da ação humana, sendo esta última a capacidade de se contrapor à efemeridade do tempo humano, fundando e preservando corpos políticos e, com isso, criando condições para a lembrança, isto é, a história e, em última instância, para a própria imortalidade. No contexto do presente trabalho, esfera pública qualifica-se como os espaços nos quais se apresenta, fomenta e se define aquilo que diz respeito à vida em sociedade. Necessariamente, entretanto, o que se apresenta não é o que, efetivamente, diz respeito aos interesses da maioria; contudo, precisa ser assumido como tal, no que têm relevante papel as formas de convencimento (ideológicas e de coerção), conforme será abordado ao longo deste estudo. 2 Por governabilidade compreende-se a capacidade de um determinado grupo ou classe social, e de seu projeto (econômico, político, social, cultural), de fazer com que todos aqueles que dele participam ou sejam atingidos, aceitem-no como certo e justo. Por ser essa uma difícil tarefa, várias estratégias são mobilizadas, sempre em dois campos: o da coerção e o da ideologia. De forma reducionista, esta última compreende um conjunto de crenças, valores e atitudes que fomentam e, ao mesmo tempo, justificam e legitimam, o status quo, uma vez que, do ponto de vista marxiano, refletem os interesses dos grupos dominantes, isto é, seus privilégios e domínios. Mormente, também pode produzir movimentos e forças de oposição, visto que, para serem aceitos, precisam ser publicizados. Já governaça diz respeito, aqui, à capacidade de mobilizar eficientemente, em um processo de gestão, um conjunto de medidas (práticas, legais, estruturais), saberes e tecnologias, com a finalidade de otimizar resultados na direção de determinados interesses de um segmento ou classe social. O termo tem íntima relação com a atual face do capitalismo, que em seu caráter transnacional exige de seus agentes nada menos que a excelência (nos processos, produtos e resultados). Do ponto de vista da ação estatal implica, especialmente, excelência na condução do orçamento (gastar eficientemente, isto é, muito menos do que arrecada) sem, contudo, perder de vista sua prerrogativa de garantir coesão social em prol da lógica hegemônica (capitalista). Apresento aqui uma restrita concepção de governaça e governabilidade, visto que a delimitação dessas categorias terá lugar próprio, no Capítulo 5. 3 Por hora, desafio-me a estabelecer parâmetros conceituais que me permitam refutar, ou não, a hipótese referida. 4 Nessa perspectiva, a matéria constitui a realidade fundamental e primeira, uma vez que “O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é
12
especialmente a constituição e a emergência deste, como elemento central do
processo de ascensão dos interesses burgueses à condição de interesses coletivos,
e também do processo de democratização do Estado moderno, no sentido de seu
alargamento para as demandas e representações da classe trabalhadora (Raichelis,
1998).
Antes de especificar mais detalhadamente as concepções supracitadas, cabe
evidenciar, mesmo que sucintamente, a concepção de Estado aqui referenciada: a
de Estado Ampliado, da tradição gramsciana5. Isso se faz procedente uma vez que a
esfera pública se qualifica, também, como um dos suportes de legitimidade do
Estado. Este último, para Gramsci, compreende duas esferas: a sociedade política –
o Estado no sentido da coerção – e a sociedade civil – constituída pelas
organizações responsáveis pela difusão das ideologias; ambas formam, nos termos
do autor, a hegemonia revestida de coerção (Gramsci, 1978). A esfera pública,
seguindo essa perspectiva, transcende o estatal e o privado, forjando um mundo
comum, que advoga expressar consensos das forças em confronto, no intuito de
atenuar as contradições e as manifestações mais graves de um dos produtos
resultantes da relação capital e trabalho: a Questão Social, cujas diferentes formas
de expressão ameaçam a coesão da sociedade capitalista.
Isto posto, passo, então, a justificar, primeiramente, o porquê da
compreensão do social como objeto da esfera pública, recorrendo ao recurso da
etimologia6 e da semântica7 do termo para, em seguida, fundamentar, em termos
filosóficos e teóricos essa opção.
a consciência dos homens que determina seu ser; é inversamente, seu ser social que determina sua consciência.” (Marx, 1977, p. 54). 5 Para maior aprofundamento, ver Coutinho (1981; 1995) e Bobbio (2004). 6 Parte da gramática que trata da origem das palavras (Ferreira, 1975:591). 7 Parte da lingüística que tem por objeto a linguagem, do ponto de vista do significado das palavras, isto é, do que elas pretendem comunicar (Russ, 1994:269).
13
2.1 SOCIAL: VARIAÇOES SOBRE UM MESMO TERMO
O esforço empreendido para compreender, em termos conceituais, o que seja
social levou-me a demarcá-lo a partir de um campo específico, o da esfera pública,
pois, nas pesquisas empreendidas, o que mais se destacou foi uma “polissemia
semântica” e epistemológica que se atualiza ao longo da história e, ao mesmo tempo,
esvazia-o de sentido. Essa inflação semântica se expressa nas diferentes e, por
vezes, divergentes noções relacionadas ao termo social, que tanto pode designar um
dos veículos ideológicos de que a classe dominante se utiliza para expressar seu
poder, as colunas sociais, como pode, também, denominar um histórico mecanismo
político de contenção e/ou atendimento das demandas dos segmentos sociais mais
vulnerabilizados economicamente, a assistência social. Pode, ainda, nominar uma
profissão - Serviço Social -, bem como uma área de conhecimento - Ciências
Sociais. Da mesma forma, o termo social presta-se tanto para configurar a própria
sociedade - corpo social - como mecanismos específicos de funcionamento dessa -
política social; legislação social -, e regras de comportamentos, como ordem
social; etiqueta social.
Essa aparente ausência de fronteiras e o emprego quase universal do termo
levaram-me, então, a investigar seu estatuto gramatical. Nessa perspectiva, social é
uma palavra utilizada para designar a qualidade ou o estado de um substantivo,
sendo, portanto, um adjetivo. Ora, se não é substantivo (que, por si só, designa a
própria substância de um ser real ou metafísico8) é, portanto, acidental, variável. Dito
de outro modo: a substantividade refere-se à natureza, à essência, àquilo que não é
nem pode ser qualificado como aparente, fenomenal; a adjetividade refere-se ao
subjetivo, portanto, é volátil e mutável. Essas qualidades - acidental, variável,
fenomenal - atribuídas ao termo social podem ser explicadas pela gramática
transformacional (Chomsky, 1977)9, na qual os termos lingüísticos expressam uma
8 Ferreira (1975:1332). 9 Na década de 50, do sec XX, Noam Chomsky introduziu na língüística a noção de gramática ge(ne)rativa, que renovou completamente a investigação nessa área do conhecimento. É possível conceber tipos diferentes de gramática ge(ne)rativa, e o próprio Chomsky definiu e discutiu vários tipos diferentes em seus primeiros trabalhos. Mas, desde o início, ele defendeu um tipo particular, ao qual deu o nome de gramática transformacional. Nessa perspectiva, a gramática é um mecanismo finito que permite gerar (engendrar) o conjunto infinito das frases gramaticais (bem formadas, corretas) de uma língua. Essa gramática constitui o saber lingüístico dos indivíduos que falam uma língua, isto é, a sua competência lingüística; a utilização particular que cada um faz da língua, em uma situação também particular de comunicação, depende da performance que quer alcançar em termos de convencimento do outro. Daí a dimensão de poder da gramática e da linguagem.
14
gramática do poder. Nesse sentido, justificam-se os usos e os abusos da palavra
social, sempre vinculada à aparência, ao desconsubstancializado, ao acidental e
acessório.
Sem uma força discriminadora, necessária aos conceitos, o social logra ter
algum sentido quando situado em um campo específico, como no das Ciências
Sociais, no qual assume a qualidade de objeto de conhecimento. Nessa perspectiva,
destaca-se Dowbor (2001), que inscreve o social como o novo paradigma da pós-
modernidade, capaz de apresentar as respostas à crise instalada pela
Modernidade10, através de tecnologias e referenciais pautados na solidariedade da
sociedade civil. Tal defesa, no meu entendimento, carece de um olhar mais crítico no
que se refere à dinâmica socioeconômica contemporânea, cuja força produtiva tem
na sua base o individualismo, a acumulação e a concentração da renda, o
fetichismo, visto que, cada vez mais,
[...] as relações de classe dissolvem-se em um individualismo de maximização da utilidade e os produtos inanimados do trabalho parecem possuir as propriedade animadas dos que as produziram, bem como passam a exercer domínio sobre eles (Dicionário do Pensamento Social do séc. XX, 1996: 461-462).
A concepção de Dowbor inscreve-se entre aquelas que independizam o social
do Estado e do mercado, através da figura genérica de um “terceiro setor”, no qual
prevalecem “[...] valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mútua” (Montaño,
2002:184), em franca oposição aos valores da solidariedade social11 na oferta
universal de bens e serviços, na perspectiva dos direitos humanos. Da mesma
forma, essa concepção contribui para consolidar a tendência de despolitização do
social, pois ignora que os avanços até então alcançados no âmbito da redistribuição
10 A Modernidade compreende os últimos quatro séculos, tendo início na Renascença, período também inicial do Mercantilismo, este último propiciado pelas necessidades econômicas e políticas dos Estados europeus e que contribuiu, em larga escala, para o desenvolvimento da então incipiente, economia de mercado (Polanyi, 2000). No que se refere à chamada crise da Modernidade, Hobsbawm (1995) demarca como eventos centrais: o aprofundamento do modelo de desenvolvimento capitalista, agora na modalidade transnacional, com forte ênfase no mercado financeiro, promotor da fragilização do Estado-nação, refém de um incontrolável mercado mundial, com uma economia maciçamente projetada para expulsar a mão-de-obra humana; o colapso das economias do bloco soviético, que se tornaram “O triunfo da teologia neoliberal na déc. de 1980, mas que na verdade traduziu-se em políticas de privatização sistemática e capitalismo de livre mercado impostas a governos demasiadamente falidos para resistir-lhes, fossem elas imediatamente relevantes para seus problemas políticos ou não”(idem, p. 420). 11 A solidariedade social foi um padrão de resposta às refrações da Questão Social, sendo que um dos seus pilares era o financiamento, pelo conjunto da sociedade (considerando a capacidade econômica de cada um), dos direitos constitutivos da cidadania e a objetivação destes, através da oferta de bens e serviços pelo Estado.
15
parcial do poder e da riqueza socialmente produzida (direitos sociais; políticos;
econômicos) só foram possíveis pelos confrontos instaurados pelas classes
desfavorecidas, através de movimentos sociais, trabalhistas, urbanos, etc.
Mas vale ressalvar qu, da questão unívoca o que é o social?, continua a
emergir uma familiar multiplicidade de respostas, muitas complementares, outras
ambíguas. Uma breve retrospectiva no trato e no sentido dado ao termo social nas
disciplinas específicas do campo científico revela formulações de social que
expressam imagens e concepções fundadas ora nas ciências naturais, ora nas
ciências exatas, ora no senso comum (Jamur, 1997).
Do ponto de vista teórico, o esforço em caracterizar o social mobiliza e
mobilizou notáveis personalidades, como Rousseau (2004), que recorre à figura do
edifício para expressar as possibilidades da estabilidade social.
Assim o arquiteto, antes de erguer um grande edifício, observa e sonda o chão, e observa se pode sustentar o peso da construção; assim o sábio instituidor não principia a formar boas leis em si mesma antes de ter observado se o povo a quem ela se destina é capaz de as suportar”(Cap. VIII, Do Povo, 2004:53).
Marx também se utiliza da metáfora de construção para explicitar as esferas
da realidade social – base e superestrutura. No texto A Ideologia Alemã, o Estado,
a política, a cultura e as estruturas jurídicas compõem uma superestrutura
construída sobre a base de relações de produções, sendo esta última compatível
com um nível definido dos meios de produção.
A forma como os indivíduos manifestam a sua vida reflete muito exatamente aquilo que são; o que são coincide, portanto com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como a forma que produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção. (Marx, 2006:8)
Com o intuito de se aproximar da lógica (e do prestígio) das ciências exatas,
as Ciências Sociais também produziram qualificações do social baseadas no e/ou
articuladas com o campo da física, denominada mais especificamente de física
social, cuja norma é a compreensão de que existe uma “ordem natural” baseada na
interdependência das partes, expressa, por exemplo, nos textos de Comte, para
quem o genuíno espírito positivo consiste em ver para prever, em estudar o que é, a
fim de concluir o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis
naturais:
16
A pura imaginação perde então de modo irrevogável a sua antiga supremacia mental e subordina-se necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado lógico plenamente normal, sem deixar contudo de exercer, nas especulações positivas, um papel tão capital como inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação, quer definitiva, quer provisoriamente. Em uma palavra, a revolução fundamental que caracteriza o estado viril de nossa inteligência consiste em substituir por toda a parte a inacessível determinação das causas propriamente ditas, pela simples pesquisa das leis, isto é, das relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos menores ou dos mais sublimes efeitos, do choque e da gravidade, quer do pensamento e da moralidade, deles não podemos conhecer realmente senão as diversas ligações mútuas próprias à sua realização, sem nunca penetrar o mistério da sua produção. (Comte, 1976: 38)
Mais contemporaneamente, e ainda no rastro dos avanços da física, situam-
se concepções que imprimem ao social a lógica de um campo de forças em analogia
ao campo magnético. Como destaque, tem-se Bourdieu, que empreende um
contraponto às concepções estritamente morfológicas do social. Para esse autor,
campo é o espaço social constituído pelo conjunto de ações, representações e
interações sociais, ou nos seus termos, a "[...] estrutura objetiva que define as
condições sociais de produção do habitus" (Bourdieu, 1983:65). Por habitus
compreende os "[...] sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas
predispostas a funcionar como estruturas estruturantes" (idem, p.61).
Ainda nessa perspectiva, no Serviço Social, Faleiros incorpora a idéia do
confronto com foco no consenso temporário, constituído nos rearranjos das forças
em presença:
A construção de estratégias de fortalecimento dos sujeitos (...) implica, justamente, o trabalho das relações de força para que se possa desvendar e construir mediações de mudanças de trajetórias, sem o equívoco do voluntarismo e do determinismo (Faleiros, 1999:90).
Para além dessas qualificações, outras se fazem presentes no meio das
Ciências Sociais, como a de jogo, cujo exemplo emblemático é Goffman (1975), ao
sugerir, que na vida cotidiana em sociedade, o que se observa é a representação de
papéis:
O indivíduo solicita aos outros que tomem a sério a impressão promovida; que acreditem que ele tem, na verdade, os atributos que aparenta possuir; e que, portanto, sua ação terá as conseqüências que ele implicitamente pretende - que, enfim, tudo é como parece ser. (Goffman, 1975, p. 25).
Maffesoli (1984) analisa a realidade social como um tecido relacionado à idéia
de “trama”, “fios”, “tessitura”, que, dependendo da época e do contexto, ora é
17
resistente, ora é ameaçado de ruptura. A preocupação, aqui, recai sobre a
possibilidade de rompimento, pois
O que chamamos de vida cotidiana é constituída de microatitudes, de criações minúsculas, de situações pontuais e totalmente efêmeras. É, stricto sensu, uma trama feita de minúsculos fios estreitamente tecidos, onde cada um, em particular, é totalmente insignificante (Mafessoli, 1984:46).
Em que pesem essas dispersões em torno da concepção de social no âmbito
das Ciências Sociais, algo parece comum: a articulação do social com a idéia de
“vínculo” ou “coesão” da sociedade que, entendo, se reporta à preocupação com o
trato e/ou enfrentamento da Questão Social. Nesse sentido, proponho compreender
o social no âmbito da esfera pública, por ser esse o lugar, hoje, privilegiado de
conformação dos consensos que, em larga medida, alcançam produzir a
governabilidade necessária às instituições políticas, jurídicas e econômicas
capitalista. Por outro lado, essa opção se distingue de todas aquelas que situam o
social como um espaço autônomo, independente da dinâmica econômica e política,
constituído unicamente pela (boa) intencionalidade de sujeitos apolíticos, que
buscam realizar o possível dentro de uma ordem considerada imutável (cultura do
possibilismo, segundo Montaño (2002).
Para fundamentar esta última assertiva impõe-se, antes, uma imersão na
história, em busca da gênese e das diferentes conformações dessa esfera.
2.2 ESFERA PÚBLICA: DA GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE
A compreensão de social como objeto da esfera pública moderna determina
um (re)olhar para a história em busca dos fundamentos que a pautaram e a
formataram nos diferentes períodos societários. Isto porque a configuração desta
esfera tem se transformado radicalmente desde sua gênese (aqui veiculada da
tradição grega) até a modernidade, como procuro evidenciar a seguir. Cumpre
destacar que a Esfera pública clássica e a moderna são fenômenos distintos, mas
que permitem descortinar os sucessos e os fracassos da ação humana sobre a
sociedade, pois essa ainda é sua natureza. Didaticamente, a evolução da esfera
pública pode ser dividida em duas grandes fases: uma primeira, que compreende a
gênese no contexto da Antigüidade Clássica e se estende pela Idade Média, e pelo
Renascimento, atravessando, inclusive, dois eventos importantes da modernidade:
18
as revoluções francesa e norte-americana (Arendt, 2004); e uma segunda
correspondente ao advento da Modernidade e aos conseqüentes constituição e
desenvolvimento da sociedade burguesa, que compreende três subfases a serem
exploradas na ordem cronológica.
O surgimento da esfera pública tem registro na Grécia Antiga, com o
fenômeno de ascensão da pólis12 como o “lugar” privilegiado da ação humana, em
franca contraposição à esfera privada - o oikos. Arendt (2004) refere-se ao oikos
como o campo das necessidades, cujo centro é a família – aqui compreendida como
esfera privada, e a pólis como seu contraponto, o campo político, da liberdade –
esfera pública.
Liberdade e igualdade denotam a elevada função da política no que concerne às deliberações sobre os interesses coletivos para a construção do mundo. Essa experiência política se diferencia daquelas estritamente subjetivas e pessoais que só têm validade na esfera privada. (Castro 1999:11).
O que não se pode perder no horizonte é que tanto a dinâmica quanto a
estrutura da sociedade grega – escravagista e patrimonial13 - formatarão essa
concepção de esfera pública. Nessa lógica, o exercício político da liberdade e da
igualdade, realizado unicamente na pólis, estava diretamente vinculado à superação
das necessidades relacionadas ao oikos – reino da família e das necessidades.
Evidencia-se, assim, uma diferença radical entre o conceito de igualdade, produzido
na Antiguidade, e seu moderno significado, engendrado na contemporaneidade:
igualdade, para os gregos, pressupunha a convivência entre pares e a existência de
excluídos – o grande contingente de pessoas que vivia na cidade-estado. A
cidadania, nesse contexto, significava ser livre e exercer a igualdade nas decisões
de âmbito universal. Portanto, essa forma de cidadania tinha caráter excludente,
visto que exigia “[...] a vitória sobre as necessidades da vida, pois para conquistar a
liberdade do mundo era necessário libertar-se antes das necessidades da vida.”
12 Denominação dada às antigas cidades gregas, que dominaram a cena político-cultural desde a Antigüidade Clássica até o período helenista, quando, então, perderam importância, devido ao domínio romano. Por suas características, o termo pode ser usado como sinônimo de cidade, definindo um modo de vida urbano que seria a base da civilização ocidental, cujo legado fundamental foi a constituição do homem como um "animal politico". 13 Forma específica de dominação tradicional na qual o acesso ao poder se dá por progenitura, isto é, ascendência parental (por exemplo, os monarcas); por gerontocracia ou critério de idade (por exemplo, os conselho dos anciões); e pela posse de bens, como a terra (patrimônio). Nessa forma de dominação, a relação entre dominados e dominadores não tem por base um sistema jurídico ou o apelo às ordens arbitrárias dos últimos, mas, sim, regras baseadas no costume vigente, na tradição e/ou na lealdade.
19
(Raichelis, 1998:11). Em outros termos, só tinham acesso ao exercício político no
espaço público, na pólis, os homens livres e economicamente independentes.
No cenário público grego, os princípios que orientavam e caracterizavam a
esfera pública eram a ação14, a política, a liberdade e a pluralidade; já os que
caracterizavam e formavam a esfera privada eram o trabalho, a violência, a
economia, as necessidades e a uniformidade. Neste ambiente, a sociabilidade
estava restrita ao âmbito da esfera pública, fato que excluía qualquer digressão
sobre, por exemplo, o que se referisse ao trabalho, uma vez que as decisões acerca
da produção e da reprodução da vida ficavam restritas aos espaços privados, do
oikos.
O advento da Modernidade produziu uma inversão histórica nos conceitos de
público e privado: o público passou a representar os interesses vinculados às
necessidades, perdendo, assim, a sua principal qualidade, que é a dimensão
política. Com isso, o espaço público deixou de ser um canal de comunicação –
sociabilidade – e ancoragem no qual o cidadão era reconhecido na ação com o
outro, processo necessário à construção de parâmetros a deliberações comuns,
para tornar-se espaço de regulação pública de interesses privados, interesses estes
fundados no pragmatismo burguês. Este último, de forma reducionista, tem por foco
a satisfação ou a resolução das necessidades imediatas, tratadas do ponto de vista
quantitativo (investimento/retorno), desconsiderando princípios teóricos ou morais
presentes.
Esse movimento se operou na primeira fase da constituição da esfera pública
burguesa, tendo na sua base “pequenos proprietários privados” que auferiam aos
seus interesses privados o status de interesses comuns, impondo a esfera pública
questões antes resolvidas no âmbito do clã ou do privado familiar, como as formas
de controle e acesso a mão-de-obra. Até então, as atividades de trabalho não
estavam subordinadas as leis de mercado e tampouco a normas jurídicas, pois o
que as regiam eram as relações de lealdade, profissão e parentesco. O que rompeu
com essa conformação, de forma muito eficiente, foi o “princípio da liberdade de
14 “[...] única atividade humana que se exerce diretamente entre os homens sem mediação das coisas e da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade” (Arendt, 2004:15). É essa atividade que proporciona ao ser humano a possibilidade de, mesmo sendo todos da mesma espécie (humanos), ser diferente e reconhecido por essa diferença, uma vez que “[...] ninguém é exatamente
20
contrato”; contudo, a instauração deste como medida legal, reconhecida
publicamente, exigiu a destruição das instituições tradicionais do feudalismo (dentre
elas, as famosas leis dos pobres15), que não permitiam que o indivíduo ficasse à
mercê das atividades laborais para a sobrevivência. (Polanyi, 2000).
A formação de uma autoconsciência16 foi o aspecto decisivo para que os
pequenos proprietários passassem a pleitear e a justificar sua representação no
âmbito da esfera pública, que se tornou, então, um princípio organizativo desse
segmento. Mais do que um lugar nessa esfera, o que eles demandavam era a
transformação dos seus interesses privados em interesses coletivos.
A partir daí, a função da esfera pública burguesa passou a de mediação entre
os interesses da burguesia e o Estado, este último manifestando-se, “[...] do ponto
de vista jurídico, na forma de governo parlamentar, e do ponto de vista social, ao
coordenar o mercado liberalizado.” (Castro, 1999:14). Isto porque o foco da
mediação era o de identificar o interesse coletivo com os interesses privados da
nascente classe burguesa, promovendo a instrumentalização e a submissão das
instâncias políticas aos interesses econômicos. Nesse cenário, a reprodução social17
tornou-se objeto de jurisdição e controle estatal, a partir de diretrizes de um governo
parlamentar cuja representação garantia, em larga medida, os princípios burgueses,
pois
[...] a autojustificativa desse tipo de representação da sociedade é dado pelos pressupostos da economia clássica: livre concorrência, equilíbrio dos sistemas, autoregulamentação do mercado. Assim, todos estão em condições “iguais” para conseguir, com talento e “sorte”, o status de proprietário e cidadão, qualificação necessária para que o homem privado seja admitido na esfera pública. (Raichelis, 1998:50).
Esse Estado, denominado Estado de Direito, teve por base a publicidade
politicamente ativa, pela qual segmentos burgueses apresentavam e representavam
publicamente seus argumentos e interesses, objetivando o consenso sobre os
igual a qualquer outra pessoa que tenha existido ou venha a existir” (idem, p.16). O discurso e a oratória, assim como as artes, são os mediadores dessa relação. 15 Ver Capítulo 4. 16 “A autoconsciência da família burguesa, enquanto constituída por indivíduos livres de qualquer constrangimento, é transferida para o mundo dos negócios como autonomia das pessoas privadas, livre de controles estatais e submetidas apenas às leis de mercado [...] é esta sociedade capitalista de mercado, concebida como ordem natural, que possibilita a todos indivíduos, de modo igualitário e universal, as condições de acesso a esfera pública burguesa: a propriedade privada e a instrução.” (Raichelis, 1998:50).
21
interesses universais, produto principal da primeira fase de constituição da esfera
pública burguesa.
O que caracteriza a segunda fase da esfera pública burguesa é o ingresso
das classes sociais não proprietárias e não, ou pouco, instruídas nos partidos
políticos, em sindicatos, em associações, no parlamento e na imprensa. Esse
advento foi recorrente do próprio processo de desenvolvimento do modo capitalista
de produção, no qual
[...] em vez de uma constituição de pequenos proprietários, forma-se uma sociedade de classes, na qual a ascensão do trabalhador assalariado à condição de proprietário é cada vez mais inviabilizada. Os mercados conformam-se de modo oligopolista e, nas chamadas formas de liberdade contratual burguesa, reproduzem-se novas relações de poder, especialmente entre proprietários e trabalhadores assalariados. (Raichelis, 1998:51)
Essa ampliação de interesses complexifica as intermediações operadas na
esfera pública burguesa, ameaçando a ordem estabelecida, conquanto esses novos
sujeitos coletivos são portadores dos antagonismos inerentes ao sistema capitalista.
Essa ameaça obriga o poder político – Estado – a integrá-los, decorrendo daí um
processo de socialização do Estado e de estatização da sociedade. Cabe destacar
que a socialização do Estado não significa que esse passa a estar ancorado nos
interesses de todos (ou da maioria), mas sim que ele passa a ser exigido como
mediador do conflito entre classes. Entre os instrumentos mobilizados para tal,
ganham destaque os mecanismos de regulação social e econômica, tanto na forma
de legislações quanto na de intervenções. Daí emerge o processo de estatização da
sociedade, que somente tem acesso a esfera pública, e aos seus benefícios, através
da mediação do Estado. Com isso, constituem-se as condições necessárias para a
passagem do Estado de Direito (de ordem unicamente liberal) para o Estado Social,
cuja função é de suporte à coesão social (mas não em detrimento da tradição
jurídica de ordenamento liberal, que continuará a alimentar).
Daí a emergência das políticas sociais como instrumentos de mediação entre
diferentes interesses e para atenuar as desigualdades sociais criadas pelo mercado,
17 Do ponto de vista strictus senso, a reprodução social da-se, sobretudo, no escopo econômico, incluindo relações de produção, forças produtivas e a força de trabalho. Em um sentido mais amplo, engloba desde as formas de instituições religiosas, linguagens e demais produtos culturais.
22
[...] o deslocamento da luta de classes do âmbito da esfera privada para uma esfera pública [...] não é algo aleatório ou conjuntural, assenta-se nas instituições que integraram o chamado Estado de Bem Estar Social e deram origem às Políticas Públicas Sociais (Raichelis, 1998:57).
Esse modelo de Estado entrou em colapso nos anos 70, do século XX,
concomitante a mais uma das cíclicas crises do sistema capitalista, que viria a
abonar o resurgimento das teses liberais, que denunciavam a crise fiscal e a
ineficiência e burocratização dessa forma de gerência da coisa pública. Este cenário
repercutiu, diretamente, na formatação da esfera pública contemporânea, que,
segundo muito autores, enfatiza a
[...] superação da antinomia estatal-mercado pela via fecunda da valorização da sociedade civil, procurando reverter a tendência de secundarização desta. É uma perspectiva que abre possibilidades de identificar e analisar a emergência de novos sujeitos políticos e processos de interação social e cultural que podem contribuir para redimensionar as relações estatal-privado na busca de construção de uma nova esfera pública. (Raichelis, 1998:62).
Nessa perspectiva, a terceira e contemporânea fase da esfera pública
burguesa é marcada pela emergência de um público de organizações privadas,
formais e informais, como associações, corporações, movimentos sociais e
organizações privadas sem fins lucrativos, com o objetivo de substituir o tradicional
do raciocínio burguês, nos termos de Castro (1999). Seguindo essa lógica, a esfera
pública passa a entrelaçar, cada vez mais, o público e o privado, ampliando à
dimensão política (herança da experiência greco-romana), à dimensão econômica
(herança da experiência burguesa), e à dimensão social (legado e exigência dos
trabalhadores) as dimensões culturais, de gênero, etnia, etc.
No entanto, entendo que não se pode perder de vista que essas “novas”
interações se efetivam, sempre, nos limites possíveis das correlações de forças
entre capital e trabalho e que, portanto, os avanços defendidos e alcançados são
instáveis, constituindo-se como produto das pressões e das forças presentes na
esfera pública. Da mesma forma, não se pode esquecer que desde os últimos 30
anos do séc. XX até hoje (1.a década do séc. XXI), aquilo que se constitui na esfera
pública, e que diz respeito ao provimento social, não é mais objeto e
responsabilidade exclusiva do Estado. Ao contrário, o que se observa é um claro
redirecionamento deste no sentido de subsidiar o grande capital, através do
financiamento (tanto do capital produtivo quanto do financeiro), da flexibilização legal
(em especial nas áreas comercial, trabalhista e fiscal), dentre tantas outras medidas.
23
Com isso, o que se tem são processos de refilantropização do social e
despolitização da esfera pública. O primeiro é produto direto da política de
minimização (redução das áreas de ação) e focalização (investimento exclusivo nos
segmentos mais vulnerabilizados) do Estado na área social, deixando a descoberto
amplos segmentos populacionais que, não tendo acesso aos serviços e aos
produtos pela via do mercado, são transferidos para as diferentes organizações da
sociedade civil, que passam a assisti-los em “[...] práticas voluntárias, filantrópicas e
caritativas, de ajuda mútua ou auto-ajuda” (Montaño, 2002,p.197). Quanto ao
processo de despolitização da esfera pública, este se evidência, por exemplo, na
atual ênfase do trabalho em redes, no qual os encontros não têm por base discutir o
fundamento das práticas sociais18, mas a otimização dessas, reduzindo o conceito
de gestão à administração otimizada dos parcos recursos financeiros (idem, p. 192).
Na esteira desses dois processos emergem as figuras do terceiro setor e da
responsabilidade social corporativa, consagradas na mídia e na sociedade. Montaño
(2002) infere que a natureza e a estrutura das organizações sociais contribuem para
despolitizar e desmobilizar os pobres, na medida em que amenizam as tensões
causadas pelas desigualdades, atendendo, infimamente, aos seus sintomas mais
superficiais.. A responsabilidade social corporativa, para além de despolitizar e
desmobilizar, os submete, seja através das denominadas ações externas19,
direcionadas às comunidades mais carentes, para as quais é ofertado aquilo que
entende como “ideal” na sua lógica (liberal), em uma clara posição autoritária; seja
nas ações internas, dirigidas aos seus próprios trabalhadores, para os quais
“oferece” o que, via de regra, potencializa seu desempenho labora, educação e
saúde, como tem informado os balanços e relatórios sociais produzidos pelas
empresas e seus braços “sociais”, as fundações. Em termos de despolitização,
penso que essas (empresas) superam as organizações sociais, pois ignoram, em
18 Até porque esse parece já estar dado: a solidariedade individual, não classista. 19 Ações cujo foco são as comunidades mais próximas da empresa. Incluem doações de produtos e equipamentos, transferência de recursos tecnológicos e financeiros para órgãos públicos e organizações sociais; prestação de serviço voluntário pelos funcionários e pela direção; patrocínio de projetos sociais e também implantação de projetos próprios. Têm como áreas prioritárias a educação, a saúde, a assistência social e o meio-ambiente (Neto; Froes, 1999).
24
larga escala, as esferas públicas de direitos tão arduamente conquistados na
Constituição Federal 1988: os conselhos de direitos e de políticas20.
Afora os dois processos abordados (refilantropização e despolitização do
social), outro não pode ser desconsiderado, tendo em vista sua funcionalidade à
“sanha” capitalista: a mercantilização de áreas sociais, que, quando convenientes ao
mercado, são convertidas em produtos rentáveis, casos da previdência; da saúde e
da educação. Mas, para que se tornem atrativas do ponto de vista do “consumidor”,
faz-se necessário que agreguem diferenciais, em termos de qualidade, exigência
esta que passa pela precarização dos serviços públicos – estatal e pela focalização
dos ofertados pelas organizações sociais.
Tais rearranjos, na área de definição e de constituição de parâmetros para os
serviços e os produtos sociais (ou de redistribuição da renda, tecnologia e
conhecimentos socialmente produzidos) ainda se dão nos marcos da esfera pública
burguesa e da luta de classe. Isso porque, em que pese o discurso do consenso
não-classista, o que, mais do que nunca exige respostas são as profundas refrações
da Questão Social, reatualizadas e aprofundadas no cenário contemporâneo do
Capital transnacional. Iamamoto (2007, p.125) afirma que “[...] mais do que
expressar pobreza, miséria e exclusão” a Questão Social hoje “[...] condensa a
banalização do humano, que atesta a radicalização da alienação e a invisibilidade do
trabalho social e dos sujeitos que o realizam.”
As distensões produzidas na esfera pública burguesa, neste capítulo
delineadas, não foram suficientes para que esta se esgotasse, pois “Do ponto de
vista do ordenamento político, a esfera pública assume posição central: trata-se do
princípio organizativo dos estados burgueses” (Raichelis, 1998, p. 49).
Considerando-se algumas das necessidades do capitalismo
contemporâneo21, como a flexibilização das regulamentações trabalhistas e a
minimzação das formas de resistências e enfrentamento dos trabalhadores, além da
propalada crise fiscal do Estado, o cenário hoje produzido na esfera pública para a
área social evidencia um novo padrão de resposta à Questão Social fundado, como
20 Mecanismos de participação política representativa, assegurados na Constituição Federal de 1988, que têm por finalidade o “controle social”, isto é, a fiscalização da política pública pela sociedade organizada. 21 Ultimas três déc. do sex XX e primeira do séc. XXI.
25
bem sinaliza Montaño (2002: 189-192): (a) na transferência sistemática das políticas
sociais da órbita do Estado para a do mercado e para as organizações sociais; (b)
na focalização das políticas sociais que se mantêm sob responsabilidade estatal
para os segmentos da sociedade mais vulnerabilizados economicamente, e que,
exatamente por conta disso, não exigem padrões de qualidade; (c) na
desconcentração administrativa e financeira das políticas sociais para os municípios
e desses para as organizações sociais, em igual medida da manutenção da
concentração normativa e política do Estado.
Ora, se os enfrentamentos e consensos efetivados nos marcos dos grandes
pacto s sociais, no âmbito da esfera pública burguesa, têm privilegiado um
determinado segmento socioeconômico – a burguesia –, cabe, então, investigar
quais mecanismos de ordem ideo-políticos convergem para esses resultados, a
partir do (re)conhecimento do pensamento liberal. Antes, porém, proponho situar e
reconhecer o lugar e a importância da Questão Social na qualidade de processo
social e político que impõe à ordem capitalista constituir mecanismos e espaços de
legitimidade, como a esfera pública e os pacto s sociais que dela emergem.
No intuito de finalizar a reflexão acerca da constituição da esfera pública e do
lugar do social nela, retomo a questão inicial: O que é o social? Em síntese:
compreendo-o o não só como o provimento das necessidades de produção e
reprodução social, mas como campo de disputa de projetos de sociedade. Em outros
termos, e seguindo a tradição marxiana, qualifico como social o campo político das
necessidades humanas que diz respeito à produção e à reprodução social, e que se
materializa através do usufruto de bens e serviços produzidos pela sociedade. O
conteúdo e o acesso a esses bens22 e serviços se definem e redefinem no embate
político e ideológico da esfera pública, entre os interesses do capital e do trabalho,
mediatizado pelo Estado (que também tem seus interesses específicos, mormente
aliado constante do capital). Dependendo do período histórico (fase do
desenvolvimento capitalista), do espaço geográfico e das forças em litígio23, esses
bens e serviços se qualificam como “direitos” ou como “benesses”. Essas duas
perspectivas, que balizam o conteúdo dos bens e serviços sociais, têm em suas
22 Por bens compreenda-se toda a sorte de bens materiais (imóveis, alimentos, insumos, tecnologia; recursos monetários, etc.) 23 Como também do nível de consciência dos interesses em jogo.
26
bases concepções diferenciadas quanto à natureza do social, as quais serão
enunciadas no capítulo a seguir.
27
3 A NATUREZA DO SOCIAL
Como já sinalizado na Introdução, a sociedade moderna produziu duas
concepções sobre a natureza do social. Uma situa-se na tradição materialista
histórica24 e a outra na tradição liberal. Esta última descreve a natureza do social
como própria de toda e qualquer sociedade humana, independentemente da díade
espaço-tempo. Dito de outra forma, na acepção liberal, as necessidades de ordem
social são conseqüências diretas dos inevitáveis desequilíbrios produzidos em todas
as sociedades humanas; esses desequilíbrios, por seu turno, são produtos “naturais”
(a-históricos, portanto) e requerem medidas de concessão (liberalismo clássico) ou
de redistribuição (liberalismo social), ambas as perspectivas visando ao mesmo fim:
melhorar e/ou restabelecer o equilíbrio social necessário à manutenção do sistema
capitalista. É, portanto, objetivo deste Capítulo analisar essas duas concepções;
mas, para efeito introdutório, cabe destacar que por liberalismo clássico, também
conhecido como liberalismo conservador, se compreende aquele que defende,
fundamentalmente, a limitação do poder estatal como forma de garantir a liberdade
individual. Já o liberalismo social enfatiza a importância de ações positivas do
Estado no âmbito da regulamentação do mercado e no provimento de políticas
sociais, como forma de garantir aos indivíduos o usufruto de suas potencialidades e
de sua liberdade (Dicionário do Pensamento Social do Séc. XX, 1996; Johnson,
1997).
A concepção materialista histórica, por seu turno, compreende o social como
produto das lutas de classe, nas quais uma delas (capital) defende sua hegemonia e
reprodução, e a outra (trabalho) luta por sua emancipação e por melhores condições
de vida (Bobbio, 2004). Essa perspectiva afiança que o atendimento às
necessidades sociais25, de forma programática e do ponto de vista jurídico, só foi
possível à medida que a Questão Social tomou a cena na sociedade capitalista (isto
é, publicizou a miséria e a exploração dos não-proprietários), dando visibilidade às
desigualdades sociais e constituindo-se como espaço de luta e transformação das
24 Derivação do materialismo que afirma a primazia causal do modo de produção dos seres humanos e de seu ser natural (físico), ou do poder do trabalho, de maneira geral, no desenvolvimento da história humana. (Dicionário do Pensamento Social do Século XX, 1996, p.453). 25 Por necessidades sociais estou aqui me referindo às necessidades de proteção (catástrofe, condição de classe, de ciclo de vida) e de desenvolvimento das potencialidades.
28
necessidades, antes consideradas individuais, em “questões” a serem incorporadas
legitimamente na agenda pública.
Evidenciar os argumentos que fundamentam e justificam cada uma das duas
concepções é, portanto, o desafio deste capítulo.
3.1 O SOCIAL NA PERSPECTIVA MATERIALISTA HISTÓRICA
Quanto maior a riqueza social, o Capital em
funcionamento, o volume e energia de seu
crescimento, portanto também a grandeza absoluta
do proletariado e a força produtiva de seu trabalho,
tanto maior o seu exército industrial de reserva. A
grandeza proporcional do exército de reserva cresce,
portanto, com as potencias de riquezas. [...] Quanto
maior, finalmente, a camada lazarenta da classe
trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto
maior o pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta geral
da acumulação Capitalista (Marx, Livro I do Capital)
Inauguro a abordagem do social na perspectiva materialista histórica
creditando-o à emergência da Questão Social. E é nessa direção que referencio a
citação acima citada, sobre a Lei Geral da Acumulação, que credita parte
significativa da reprodução do capital ao decréscimo relativo do componente variável
do processo de produção – qual seja, o elemento humano – operando, com isso, a
produção e a reprodução da Questão Social. Nesse sentido, ela é tributária das
inúmeras e cambiantes expressões produzidas pelo conjunto das desigualdades
sociais engendradas nas diferentes fases do desenvolvimento capitalista. Mais do
que expressar as disparidades econômicas, políticas e culturais entre as classes, a
Questão Social conforma disputas entre diferentes projetos societários, “[...]
informados por distintos interesses de classe, acerca de concepções e propostas
para a condução das políticas econômicas e sociais.” (Iamamoto, 2001, p. 10).
Contudo, cabe ressaltar de início que nem sempre as expressões da Questão
Social são explícitas e até mesmo reconhecidas como produto da espoliação
capitalista, visto que “[...] a velha dominação capitalista, sob nova configuração,
subordina, às necessidades do capital, parcelas consideráveis da população do
29
planeta, impedindo-as de situar-se como iguais nas sociedades divididas em
classes.”(Pereira, 2001:52). Esse estágio de “latência” dificulta a organização das
forças sociais e, por tabela, a incorporação de suas demandas na agenda pública.
Com isso, expressões contemporâneas da Questão Social, como desemprego
estrutural e as diversas formas de trabalho precarizado, isentam-se de serem
tratadas como subprodutos do atual estágio de desenvolvimento das forças
produtivas, ficando ao encargo do próprio indivíduo, de sua comunidade próxima
(auto-ajuda) ou das organizações sociais e de algumas ações da iniciativa privada
de caráter filantrópico, ambas fundadas na ideologia do “possibilismo”, que, ao
naturalizar a realidade capitalista, elimina qualquer forma de superação dessa
ordem. O que funda a cultura e a prática do possibilismo é a perspectiva de, no
interior do próprio sistema (capitalista), busca-se a melhora, a participação e a
mudança possíveis (Montaño, 2002).
Isso posto, proponho, primeiramente, identificar e expor os mecanismos de
ordem ideo-políticos que convergem para a hegemonia da lógica liberal26 no âmbito
do trato da Questão Social, a partir do reconhecimento dos fundamentos socio-
históricos que confluíram no processo de estabelecimento e desenvolvimento do
modo de produção capitalista. Para tanto, recorro às teses de Polanyi (2000), que
ressaltam não somente as implicações econômicas, provocadas pela emergência do
capitalismo, via disseminação da lógica do livre mercado (para produtos, terra e
trabalho), mas também as confrontações sociais e culturais daí decorrentes. Assim o
faço, por entender que a emergência da Questão Social é contemporânea à
emergência do capitalismo, que em sua fase inicial, criou um sistema de mercado
livre. Com essa premissa contraponho-me às teses que remetem à emergência da
Questão Social à terceira década do século XIX, quando da instauração do capital
industrial monopolista e da conseqüente visibilização do fenômeno conhecido por
pauperização massiva da classe trabalhadora (Stein, 2000).
Cumpre destacar que essas teses são preconizadas, inclusive por teóricos de
matrizes opostas, como Friedrich Engels, que, na obra Situação das Classes
Trabalhadoras na Inglaterra, escrita em1845, denunciava as precárias condições de
vida e trabalho dos operários da indústria, e Aléxis Tocqueville, liberal francês, no
30
texto Memória Sobre o Pauperismo, apresentado à Academia de Cherboung, em
1835 (Netto, 2001). Essas teses foam fundadas no reconhecimento de uma nova
dinâmica da pobreza, que se generalizava e agigantava em igual proporção à
riqueza socialmente produzida. Netto (2001, p.42) informa que “Para os mais lúcidos
observadores da época, independente de sua posição ideo-política, tornou-se claro
que se tratava de um fenômeno novo, sem precedentes na história anteriormente
conhecida”.
Esse fenômeno, denominado, então, de Questão Social, se deslocou para a
cena pública e ganhou relevo na ordem burguesa pelos seus desdobramentos
sociopolíticos, uma vez que o inconformismo massivo dos trabalhadores se tornou
uma ameaça real e inconteste às instituições sociais existentes. Nos termos de
Castel (1998), a Questão Social impõe uma problematização (ao poder constituído,
às forças produtoras e ao pensamento sociológico) que diz respeito à coesão e aos
riscos de decomposição dos vínculos sociais.
Ora, partindo-se do pressuposto de que ela é constitutiva das relações sociais
capitalista, então, sua emergência é contemporânea a do próprio capitalismo, e não
especificamente ao momento histórico em que ganhou visibilidade, no séc. XIX, com
as ameaças do pauperismo27 e do chamado Movimento Operário28. E é nessa linha
que sigo a argumentação, tomando agora como referência Polanyi (2000), na busca
de traços essenciais constitutivos da sua origem, e que perduram até hoje (primeira
década do séc. XXI).
Dentre estes traços, destaca-se a necessidade de submeter ao sistema
econômico as relações sociais. Dito de outra forma, é preciso modelar a sociedade
para que funcione de acordo e a partir das leis de mercado29, o que só foi possível
na medida em que dois fatores da produção, até não mercantis, se transformassem
26 Em que pese a Questão Social conformar diferentes interesses de classe, a análise do ordenamento jurídico e das políticas sociais voltadas a atendê-los (interesses) tem evidenciado a prevalência da lógica liberal, como procuro mostrar ao longo desta tese. 27 Fenômeno caracterizado pelo estado de miserabilização endêmica da população, observado no final do séc. XVIII e início do séc. XIX, que se constituiu como efeito imediato da instauração do capitalismo em seu estágio concorrencial. 28 Hobsbawm (1995, p. 299) informa que este movimento se organizou a partir de uma crise de consciência quando “No fim do séc. XIX as próprias populações misturadas e heterogêneas, que ganhavam a vida nos países desenvolvidos vendendo seu trabalho braçal por salários, aprenderam a ver-se como uma única classe trabalhadora, e a encarar esse fato como de longe a coisa mais importante em sua situação como seres humanos na sociedade”.
31
em mercadorias, a saber: terra e trabalho. Esse fenômeno, processado a partir da
segunda metade do séc. XVI, foi acompanhado, desde seu início, por iniciativas de
restrições que buscavam cercear seu desenvolvimento. Essas restrições, fundadas
no que Polanyi (2000) rotula de “contramovimento”, buscaram proteger a sociedade
do que chamou “Moinho Satânico”. Esse contramovimento, tentava salvaguardar a
substância humana e natural da sociedade - homem e natureza -, bem como
proteger a indústria e o comércio locais de um sistema que, por isso mesmo,
ameaçava de aniquilamento o habitat e desorganizava profundamente as relações
humanas.
Neste primeiro movimento contra o estabelecimento de um livre-mercado para
o trabalho e para a terra, operaram, na Europa, a aristocracia fundiária, a Coroa e o
clero, através de estatutos legais e instituições de apoio. Entre as formas de
resistência, situa-se a legislação anti-cercamento, ainda do séc. XV, que se, por um
lado, não impediu o curso de desenvolvimento desse fenômeno, que culminaria com
a transformação da terra em mercadoria, por outro, o retardou. Para Polanyi (2000,
p.56),
Não fosse a política conseqüente mantida pelos estadistas Tudors e os primeiros Stuarts, o ritmo desse progresso poderia ter sido ruinoso, transformando o próprio desenvolvimento em um acontecimento degenerativo, ao invés de construtivo.
O outro elemento do processo de produção que se buscou retirar da “zona de
perigo”, decorrente da emergência do livre mercado, foi o trabalho (mais
precisamente o fator humano). Nesse intuito foram erigidos, também, alguns
estatutos legais como a Poor Law30, datada de 160,1 e o Statute of Artificers31, de
1563. Identifico nisso um dos primeiros, senão o primeiro, movimentos de rebeldia
contra as desigualdades intrínsecas à lógica capitalista, operado não diretamente
29 Leis que orientam uma sociedade onde todas as transações se transformam em transações monetárias. 30 Lei dos Pobres, que configurou o início de um sistema de abonos destinado a todas as pessoas que não possuíam renda suficiente, o que, na época, abrangia todo o “povo comum” (Polanyi, 2000). Consistia na contrapartida dos mesmos em forma de trabalho oferecido pelas paróquias, para aqueles capacitados para tanto. Contudo, o fundamento que aqui cabe citar, para tais benefícios, é de que se tratava de “[...] um artifício maquinado pelas classes proprietárias rurais para enfrentar uma situação em que já não podiam mais negar a mobilidade física da mão de obra [...]” (Idem, 2000, p. 113). 31 O Estatuto dos Artífices visava proteger aqueles que tinham profissão (ligada à agricultura e artesanato). Baseava-se em três pilares: preparação para a profissão (de sete anos); obrigatoriedade do trabalho; salário determinado pela autoridade pública. Polanyi (2000) infere que essa forma de organização estabeleceu as bases do trabalho vinculado a princípios de regulamentação e paternalismo (eu chamaria de coorporativismo).
32
pelos trabalhadores (até porque era, então, incipiente o reconhecimento de uma
natureza específica de classe), mas, sim, patrocinado pelas elites conservadoras em
declínio (clero e proprietários rurais principalmente). Cabe destacar que essas
medidas (tanto no âmbito do trabalho como no da propriedade) retardaram, mas não
evitaram, o avanço das forças do mercado auto-regulável. Por outro lado, também
procede destacar que o sistema de abonos (posteriormente denominado
Speenhamland) acabou por se constituir em um instrumento de desmoralização
daqueles que o acessavam, pois
Desde que o homem fosse para um asilo de indigentes, (e acabava indo para lá se ele e sua família dependessem dos impostos por muito tempo) a armadilha se fechava e era raro ele escapar. A decência e o auto-respeito incultados durante séculos de vida organizada desapareciam rapidamente na promiscuidade do asilo de indigentes, onde um homem tinha que ser cuidadoso para não o julgarem melhor que seu vizinho, pois, do contrário, seria forçado a sair a casa de trabalho (...) (Polanyi, 2000, p. 123)
É nesse sentido que é creditada à abolição da Speenhamland não somente a
liberação do fator trabalho para o mercado livre (e aqui não se pode ausentar
créditos às investidas liberais que denunciavam o incentivo à “vagabundagem”
promovido pelo sistema de abonos), mas também o nascimento da classe
trabalhadora, no sentido de sua consciência como representante dos interesses
coletivos constrangidos pela supremacia do mercado e, consequentemente, da
mercadoria.
É, pois, o descontentamento com o descompasso entre o desenvolvimento
econômico e o da sociedade (e as lutas aí gestadas) que historicamente coloca em
xeque a direção social dada pela lógica liberal. As mediações acessadas por esta
última, como forma de enfrentamento aos antagonismos gerados, oscilam entre
debate, controle e negociação. É sistemático, e por que não dizer “sintomático”, o
processo de tentar equacionar as expressões de resistências da Questão Social, e
suas ameaças através de métodos de gestão focados nas conseqüências mais
visíveis da mesma, sem empenho real em desvelar a trama das relações que
produzem e reproduzem as desigualdades sociais, culturais e econômicas aí
operantes.
A produção desses métodos de enfrentamento constitui-se no âmbito de
convencimentos ideológicos, e estes, por sua vez, produzem os consensos
possíveis entre os interesses antagônicos. O produto de tais consensos consolida-se
33
no que se denomina “pacto s sociais32” que, por sua vez, evidenciam, em maior e
menor escala, os interesses beligerantes. Uma das assertivas que aqui defendo
atribui maior alcance, no âmbito dos pacto s constituídos na sociedade moderna, aos
interesses liberais, uma vez que as respostas últimas à Questão Social reiteram a
governabilidade e a governança dos regimes de ordem Capitalista. Em busca de
evidências para essa assertiva, proponho-me, a seguir, a mapear, primeiramente, as
concepções e as propostas liberais para o social e, no próximo Capítulo, a abordar
os dois principais pacto s sociais acordados na sociedade moderna, no âmbito do
ordenamento jurídico - social.
3.2 O SOCIAL NA PERSPECTIVA LIBERAL
Pretendo delinear, aqui, uma revisão conceitual com o objetivo de identificar
os princípios que fundamentam o liberalismo, tanto na sua dimensão política, quanto
na econômica e também social – aqui compreendidas como os mecanismos de
proteção e segurança social. Pretendo, também, avançar na compreensão da lógica
que orientou um dos dois pacto s sociais em análise no Capítulo 4 desta tese
(Declaração dos Direitos dos Homens) e que também orienta os programas
responsabilidade social corporativa, empreendidos pelas organizações de mercado
(foco do último capítulo). Cabe salientar que não tenho, aqui, a pretensão de esgotar
a análise da doutrina liberal, mas sim de alcançar uma compreensão dos
fundamentos que informam o ideal e o pertinente ao social, a partir de alguns dos
próceres desse pensamento.
O esforço em identificar os fundamentos que sustentam o pensamento e a
doutrina liberal a partir dos seus próprios ideólogos evidenciou uma das
características centrais dos fenômenos sociais: a sua dimensão histórica, que impõe
a necessidade de datá-los e situá-los concretamente. Dito de outra forma, como
fenômeno histórico, o liberalismo só pode ser compreendido e definido quando
estudado através da díade tempo-espaço. Desse modo, fez-se necessário, mais do
que analisar e definir o Liberalismo, compreender sua trajetória histórica,
considerando, para efeito didático, duas grandes vertentes: o liberalismo clássico e o
liberalismo social.
32 Aqui delimitando claramente que tais pacto s são produtos possíveis dos enfrentamentos
34
Na perspectiva do liberalismo clássico, o mercado é o agente capaz de suprir
todas as necessidades de autodesenvolvimento humano, uma vez que acredita
deter as condições objetivas para isso (Couto, 2004). Por liberalismo clássico,
entendem-se desde as correntes pioneiras – protoliberalismo, situado entre a
Revolução Gloriosa, de 1789 e a Revolução Francesa, de 1899 - passando pelos
clássicos do séc. XIX - Locke, Montesquieu, Constant, Toqueville e Mill – e
alcançando o séc. XX sob a denominação de neoliberalismo – com destaque para
Mises e Hayek.
Merquior (1991) defende que os pilares do liberalismo se anunciam já nos
objetivos que culminaram com a Revolução Gloriosa contra Jaime II, da Inglaterra:
tolerância religiosa e governo constitucional. A partir daí, a contenção do poder
arbitrário do Estado e a liberdade individual – especialmente a religiosa e a civil –
tornaram-se bandeiras do nascente credo. Carl Schmidt, na obra Teoria
Constitucional, datada de 1928, refere que, exatamente por ter se insurgido contra
os abusos do poder estatal, o liberalismo institui tanto “ [...] uma limitação da
autoridade quanto uma divisão da autoridade” (Schmidt apud Merquior, 1991, p.17).
Limitação no sentido da intervenção estatal no âmbito da esfera da liberdade
individual – e de mercado – e divisão no sentido de demarcação da autoridade
estatal em esferas de competências – Legislativo, Executivo e Judiciário. Nos termos
do autor “[...] divide-se a autoridade de maneira a manter limitado o poder.”(idem, p.
17).
Cabe destacar que, em seus primórdios, o liberalismo constituiu-se como uma
doutrina que pregava tanto uma monarquia limitada quanto um poder popular
também limitado, visto que a democracia se restringia a uma casta – os prósperos
cidadãos, nos termos de Constant, ou os prósperos burgueses, nos termos de
Polanyi (2000). Para este último, ainda em 1840, os liberais eram contrários à idéia
do voto popular, sendo que
Somente depois que a classe trabalhadora aceitou os princípios de uma economia capitalista e os sindicatos profissionais fizeram do pleno funcionamento da indústria a sua preocupação máxima foi que as classes médias concederam o voto aos trabalhadores mais bem situados. (Polanyi, 2000, p. 208).
decorrentes da Questão Social.
35
Considerando as proposições de Polanyi, o liberalismo emerge no âmbito da
esfera política, mas amplia-se para o dos interesses econômicos de uma classe
nascente. Dessa forma, a inicial defesa sobre a necessidade do Estado de adotar
métodos não burocráticos para a condução econômica evoluiu para um fervor
evangélico de defesa de mercados plenamente livres de intervenção estatal
(Polanyi, 2000). Do ponto de vista da literatura liberal, a análise aponta o
alargamento da esfera política, e não uma nova direção rumo à esfera econômica.
Nesse sentido, há consenso sobre o legado tanto dos pioneiros quanto dos clássicos
– especialmente Locke, Madison, Constant, Torqueville – para o pensamento
político, uma vez que
Os liberais clássicos, tomados em conjunto, deram duas contribuições decisivas ao desenvolvimento do pensamento liberal. Em primeiro lugar, fundiram traços liberais numa advocacia coerente da ordem social liberal secular que estava então tomando forma nos governos representativos da época. Em segundo lugar, introduziram e desenvolveram dois outros temas no pensamento liberal: democracia e libertarismo. Juntos, esses temas essenciais constituíram uma defesa do indivíduo não apenas contra o governo opressivo, mas também contra a intromissão de constrangimento social. (Merquior,1991, p.66).
Locke é, senão a primeira, a principal referência liberal no que concerne à
noção do contratualismo, ao propor um contrato social, de caráter individualista, que
edifica um governo legal com poderes limitados. Sua obra Dois Tratados Sobre o
Governo, na qual desenvolve as teorias do consentimento e da confiança, constitui-
se como legado para todas as correntes liberais que se seguiram. Para Merquior
(1991), um dos méritos da filosofia política de Lock foi o de estabelecer condições de
liberdade que deveriam estar lastreadas no consentimento (que conferia legitimidade
ao governo dada pelo povo) e na confiança (reciprocidade na relação entre povo e
governo). Assim, a tradição cede lugar ao consentimento que, por sua vez, se torna
a principal característica de legitimidade da política liberal.
Os princípios de legitimidade, nos quais se apoiavam os liberais clássicos,
postulavam a liberdade religiosa e o governo constitucional, de representação
limitada. Já no limiar do séc. XX observou-se uma rendição lenta ao curso
democrático. Como expoentes na defesa da democracia, entre os liberais,
destacam-se Greem e Hobhouse (Merquior, 1991). O primeiro “[...] deu ao
liberalismo um recomeço de vida, conjugando os valores básicos dos direitos e
liberdades individuais com uma nova ênfase na igualdade de oportunidades e no
ethos da comunidade” (Merquior, 1991:154). Já Hobhouse defendia que a
36
humanidade avança por força da cooperação, e seu ideal consistia em proporcionar
“[...] uma igualdade viva de direitos”, com oportunidade para o auto-desenvolvimento
individual (idem, p.163). Antes desses, Tocqueville, na obra A Democracia na
América (1840), defendeu a democracia, ora como sistema representativo fundado
em amplo sufrágio, ora como
[...] sinônimo de sociedade igualitária, coisa com que ele não designava uma sociedade de iguais, mas uma sociedade em que a hierarquia já não era a regra do princípio aceito de estrutura social (Merquior, 1991, p.89).
Em síntese, à herança dos protoliberais (contratualismo), os liberais clássicos
somaram o princípio da legitimidade. Outro elemento da doutrina liberal clássica,
inaugurada por Adam Smith, foi a economia clássica. Na obra A Riqueza das
Nações, de 1779, Smith proclama a divisão do trabalho como fator subjacente da
prosperidade moderna e coloca a produção – comércio e manufatura – acima da
política, da atividade da guerra e da prática jurista (Smith, 1987, vol. I). Grosso
modo, para os liberais clássicos, a ordem econômica tendia a se estabelecer
espontânea e eficazmente no âmbito do mercado, caso o Estado não impedisse o
livre jogo da concorrência entre os indivíduos. Esse pressuposto ancora-se na
concepção de homem econômico, isto é, na sua capacidade inata “[...] para
barganhar, permutar e trocar uma coisa por outra” (Smith, 1987, p.93, vol. II).
Para Polanyi (2000), se por um lado essa análise do passado foi errônea, por
outro tornou-se profética. Isso porque se, na análise do autor, esse imperativo – do
mercado na ordem econômica – não havia, até então, se manifestado em escala
considerável no curso da história, cem anos depois a profecia se realizou. Mas não
por vocação humana, visto que
A alegada propensão do homem para a barganha, permuta e troca é quase que inteiramente apócrifa. A história e a etnografia conhecem várias espécies de economia, a maioria delas incluindo a instituição mercado, mas elas não conhecem nenhuma economia anterior a nossa que seja controlada e regulada por mercados, mesmo aproximadamente. (idem, 2000, p.63).
O êxito do livre-mercado, propalado pelos economistas liberais, foi garantido,
segundo Polanyi, tanto pela regulação do Estado quanto por um pacifismo
pragmático que durou quase 100 anos – de 1815 a 1914. No que se refere à
intervenção estatal, o autor destaca que, mais do que desejada, ela foi planejada,
visto que sem as tarifas protetoras às exportações subvencionadas e os subsídios
37
indiretos aos salários33 e à indústria de manufatura do algodão, expoente do livre-
comércio, este jamais teria alcançado a escala mundial. A paz arbitrária também foi
planejada e garantida, pois “[...] deve ficar claro que a organização pela paz
repousava sobre a organização econômica” (Polanyi, 2000, p.33).
A influência do liberalismo clássico implicou a completa transformação da
estrutura da sociedade: o sistema econômico, que até então era apenas uma das
funções da ordem social, adquiriu status de organizador da própria sociedade, que,
por sua vez, se tornou acessório do sistema econômico. A sujeição do trabalho às
leis de mercado e sua mutação à mercadoria exigiu o aniquilamento das instituições
tradicionais que protegiam o indivíduo. Para Polanyi, “A sociedade humana poderia
ter sido aniquilada, não fosse a ocorrência de alguns contramovimentos protetores
que cercearam a ação desses mecanismos autodestrutivos” (2000, p.98).
Hayek, na obra O Caminho da Servidão, (1949) defende que um mínimo de
alimentos, abrigos e roupas, suficientes para manter a saúde e a capacidade para o
trabalho podem ser garantidos a todos. Também nos casos de eventualidades de
foro estranho ao trabalho (doenças, acidentes, catástrofes naturais), admite a
importância de seguros sociais, prestados pelo Estado. Porém, em relação a
proteções pecuniárias que incidam sobre a renda dos trabalhadores, compreende
ser inconciliável, pois, segundo ele, “[...] no mundo, tal como é, torna-se improvável
que um homem dê o melhor de si durante muito tempo, a não ser que seus
interesses estejam nisso envolvidos diretamente”(idem, 1949, p.185). Em termos de
proteção, entende que o elemento essencial que o sistema de mercado pode
oferecer é, nos seus termos, a variedade de oportunidades. Ainda nessa obra,
encerra o capítulo sobre segurança e liberdade com a citação de Benjamin Franklin,
um liberal que expressa, com excelência, a concepção dos clássicos sobre o tema:
“Aqueles que se propõem a renunciar à sua liberdade essencial para adquirir uma
pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança” (idem,
1949, p. 287).
Os preceitos do liberalismo clássico perduraram até as duas primeiras
décadas do séc. XX, quando, então, se instalou uma crise que culminou com o
colapso econômico do entre-guerras (1918-39). Do ponto de vista econômico,
33Sistema Speenhamland Law inglês, que será mais detalhado no próximo capítulo.
38
Hobsbawm (1995) destaca dois aspectos como sendo decisivos para esse colapso:
(1o) um crescente desequilibro na economia internacional, decorrente da assimetria
entre o desenvolvimento dos EUA e do resto do mundo; (2o) a não produção, pela
economia mundial de uma demanda para a crescente produtividade do sistema
industrial, que gerou superprodução e especulação, culminando com a crise de
1929.
Com uma economia mundial visivelmente em apuros, os Estados nacionais
inauguraram uma série de medidas com vistas a proteger suas economias.
Buscavam, também, proteger-se da crescente organização da classe operária e, em
conseqüência, da Revolução Russa de 1917 (Couto, 2004). O panorama político e
econômico que se avizinhava colocou em xeque a primazia do livre-mercado e,
como “remédio”, inaugurou uma nova vertente: o liberalismo social.
Em contrapartida à concepção clássica, surgiram reivindicações também de
foro liberal, que questionavam o “individualismo mais velho”. Mas antes de explorar
essa “nova” perspectiva liberal, considero importante demarcar que assim como a
passagem do Estado de Direito para o Estado Social, as propostas dos liberais
clássicos e dos liberais sociais não são irreconciliáveis e mesmo excludentes, uma
vez que assumir um caráter mais social não coloca em xeque os fundamentos e a
validade do capitalismo.
Do ponto de vista histórico, o liberalismo social ou novo liberalismo de
esquerda constitui-se em um dos matizes desse pensamento, situado no início do
séc. XX. Como outras formas de liberalismo tem a liberdade individual como um
objetivo central; mas se a liberdade, para o liberalismo clássico, é a inexistência de
compulsão e coerção nas relações entre os indivíduos, para o liberalismo social a
falta de oportunidades de emprego e de acesso a educação, à saúde e à
previdencia pode ser tão prejudicial para a liberdade como a coerção do Estado.
Os responsáveis diretos pela emergência do liberalismo social foram Jonh
Hobson e Leonard Hobhouse, ambos ingleses. Hobson via o mercado como fonte de
desemprego e desperdício e defendia a tese de que cabia ao Estado propiciar
oportunidades iguais. Ele não propunha o fim do capitalismo, mas, sim, uma
regulamentação do mesmo por taxas redistributivas, pois o que
39
[...] pleiteava era alguma propriedade pública do solo, que permitisse habitação decente; transporte público; nenhum monopólio; uma rede nacional de escolas públicas [...] e um sistema legal mais justo. (Merquior, 1991:163)
Por suas prerrogativas, Hobson é considerado o precursor das idéias
defendidas por Keynes poucas décadas depois. Hobhouse, por sua vez, creditava à
cooperação humana o progresso da sociedade. Seu livro Liberalismo, de 1911,
pregava como ideal uma sociedade orgânica, que proporcionasse a todos igualdade
viva de direitos. E, como no caso de Robson, creditava às agencias estatais a oferta
de oportunidade. Contemporâneos, esses dois autores foram largamente
influenciados por Green34, cujo legado contribuiu diretamente para o liberalismo
social.
Outros liberais merecem destaque e, dentre eles, Hans Kelsen, autor da
Teoria Pura do Direito, de 1934, responsável pela restruturação do positivismo
jurídico e defensor do Estado Democrático. Contudo, do ponto de vista programático,
isto é, de aplicação dos princípios de redistributividade nas políticas econômicas dos
Estados Nacionais, no período das duas grandes guerras, a figura central foi John
Keynes, filósofo e economista que reformulou a teoria economia. Para ele o
problema central consistia em combinar três fenômenos: eficiência econômica,
justiça social e liberdade individual, “ Os principais defeitos da sociedade econômica
em que vivemos são sua incapacidade para proporcionar o pleno emprego e sua
arbitrária e desigual distribuição de riqueza e de rendas.” (Keynes, 1996, p.341)
Hobsbawn (1995) denomina o período inaugurado no após Segunda Grande
Guerra, sob forte influência da política keynesiana, como os anos dourados do
capitalismo. Segundo o autor, a política macroeconômica dos economistas dessa
escola dava por encerradas as crises episódicas que assolavam o sistema
Capitalista, como o desemprego em massa e a pauperização de parcelas da
população. Da mesma forma, a existência de um Estado previdenciário universal e
generoso impunha-se em casos de situações e/ou tempos difíceis. O capitalismo
pós-guerra foi inquestionavelmente “[...] reformado a ponto de ficar irreconhecível”
(idem, p.265) graças, ainda nos termos de Hobsbawn, à aliança entre liberalismo
econômico e democracia social. Além desses dois elementos também concorreram
para o estabelecimento e o sucesso desse sistema, o consenso de que o livre-
40
mercado estava fora de cogitação; a ameaça comunista; a modernização da
economia e o compromisso com o pleno emprego.
Todavia, em que pese o sucesso do que ficou conhecido por Estado de Bem
Estar Social, proposto pelos liberais sociais ou de esquerda, sua permanência
alcançou apenas uma geração. As novas tecnologias de capital intensivo gestadas
ao longo desse período exigiam pouca ou até nenhuma mão-de-obra. E, nesse
cenário que se avizinhava, grande parte dos trabalhadores só seriam essenciais em
um aspecto: como consumidores de bens e serviços.
Em termos gerais, hoje (séc. XXI), os liberais contemporâneos –
conservadores, neoconservadores e até mesmo os sociais – entendem “[...] ser
necessário liquidar o Estado empresário e obrigá-lo ao exercício de sua funções
indeléveis, no plano da saúde, da segurança e da educação” (Rocha, 1998, p.61).
No campo da Previdência Social, o que buscam é eliminar o que chamam de
disparidade em termos de aposentadoria pública (entenda-se nivelamento por
baixo). Para além disso, ampliou, por um lado, a base de arrecadação, incluindo
setores até então excluídos (como os autônomos e os trabalhadores informais) e,
por outro, incentivou o mercado de previdência privada complementar, ao criar
condições de “[...] afastamento dos setores médios assalariados ou não do sistema
público em virtude da deterioração / desestruturação dos serviços, acenando com o
canto da sereia da Excelência dos serviços privados, considerados
complementares.” (Braga; Cabral, 2007, p. 143). Na área da Assistência social essa
vertente liberal propõe o atendimento às indigências, através de parcerias com
iniciativas da própria sociedade (idem, p.63), como observado no Capítulo 2, que
trata da esfera pública moderna.
Guy Sorman, considerado como um dos principais agitadores das idéias
liberais da França contemporânea, aponta o que considera os três princípios do
novo liberalismo: (a) superioridade da ordem econômica espontânea, (leia-se, livre
mercado); (b) desconfiança em relação à Lei (leia-se, Estado) e (c) o dever de
solidariedade (leia-se, iniciativas da sociedade civil). Os dois primeiros são reedições
claras do liberalismo clássico, e o último, que se pretende inovador, também reedita
uma máxima liberal – a da solidariedade como eixo gerador de crescimento.
34 Julien Green (1900-98, Paris, França), de nome Julian Hartridge Green, escritor norte-americano de expressão francesa, escreveu inúmeros livros, dentre eles La liberté (1974).
41
No plano brasileiro, esses pressupostos econômicos se consolidaram a partir
da última década do séc. XX, sob os auspícios do Consenso de Washington35, em
franca contraposição ao pacto social consolidado na Constituição Federal de 1988.
Em linhas gerais, os ajustes aqui implementados incluíam: programas de
privatizações; abertura para o comércio internacional, através de redução de tarifas
para importação e incentivo à exportação; adoção de política econômica
monetarista; liberalização dos preços e política de austeridade nos gastos públicos.
Do ponto de vista social, esta última medida repercutiu, especialmente, no
esvaziamento das conquistas alcançadas no plano jurídico-formal, com o
deslocamento das responsabilidades das políticas sociais do Estado para a
sociedade, resgatando assim a antiga regra do liberalismo clássico, pela qual o que
não se aceita é “[...] um Estado que ponha limites políticos-democráticos à lógica do
Capital (Netto, 1999, p.86-87).
É na esteira desses princípios que se desenrolam às práticas sociais
contemporâneas, incluindo aquelas encetadas pelas organizações sociais e as
configuradas no âmbito da chamada responsabilidade social corporativa. Isto porque
o abandono da população à sua sorte já comprovou ser nefasto ao sistema
capitalista, como bem observaram os liberais sociais, e que serão retomados no
próximo Capítulo, no contexto da discussão de dois importantes pacto s sociais
(Declaração dos Direitos dos Homens e Declaração dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais) e de suas objetivações no âmbito estatal.
De toda forma, o que se observa é que, independentemente da fase de
desenvolvimento das forças produtiva, a tensão entre apropriação restrita dos
resultados versus exploração ampliada do trabalho tem exigido ao capital e ao
Estado a formulação e a implementação de respostas concretas às pressões sociais
e às profundas desigualdades daí decorrentes. Dentre essas respostas, têm
destaque os pacto s sociais consensuados na esfera pública, que se qualificam
como estratégias mobilizadas pelo Capital para neutralizar suas contradições.
35 Reunião realizada em Washington, em 1989 por organismos financeiros internacionais (FMI, BID, Banco Mundial) e representantes do Banco Central Americano, resultando em orientações que, nos termos de Montaño (2002, p.29), promoveram “[...] uma verdadeira contra-reforma, operada pela hegemonia neoliberal, que procura reverter as reformas desenvolvidas historicamente por pressões e lutas sociais e dos trabalhadores.”
42
4 O PACTO SOCIAL: ESTRATÉGIA DE GESTÃO E LEGITIMAÇAO DO SISTEMA
CAPITALISTA
Os pensamentos da classe dominante são também,
em todas as épocas, os pensamentos dominantes;
em outras palavras, a classe que é o poder
materialmente dominante numa determinada
sociedade é também o poder espiritualmente
dominante. (Marx)
O fundamento que aqui justifica apresentar o conceito de pacto social e
também os argumentos históricos de sua constituição remete ao tese de que O
social se constitui historicamente em uma das estratégias de legitimidade e
reprodução do sistema capitalista, tendo como uma de suas principais
funções garantir a coesão social. Em outros termos, pretendo, por ora, confirmar o
argumento de que o social, mais do que ações direcionadas para a redistribuição de
produtos e serviços36 e/ou controle social37, é uma das bases de sustentação da
sociedade moderna e que, portanto, está presente nos pacto s encetados nela e por
ela. Da mesma forma, justifico sua abordagem por ser ele uma das principais
estratégias da sociedade capitalista para responder as demandas e pressões
produzidas pela Questão Social, no âmbito da esfera pública.
A opção pela terminologia pacto social justifica-se por seu contraponto ao
conceito stricto sensus de contrato social, muito embora encontre, neste último, a
sua origem, uma vez que ambos têm por referência a idéia central de um acordo
institucional, cujo objeto é a regulação de relacionamentos entre as partes
implicadas. Para efeito de exposição didática, apresento, sumariamente e de forma
cronológica, a evolução do conceito de contrato social; em seguida, justifico a opção
pelo conceito de pacto social como base para apresentar os pactos aqui
36 Por produtos são aqui considerados todas as formas de repasse de bens materiais, incluindo benefícios monetários. Por serviços são arrolados as ações de diferentes áreas: saúde; educação; assistência social. 37 Por contenção social refiro-me aos mecanismos ideológicos que têm por objetivo condicionar determinada população a aceitar normas e condutas necessárias à sustentação das instituições políticas e econômicas (Guareschi, 2003).
43
considerados como fundantes da modernidade38: dos Direitos do Homem e do
Cidadão e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Antes de iniciar o percurso histórico aqui proposto, delimito, com apoio da
citação que inicia este Capítulo, a concepção de que os objetos concretos de estudo
(os pacto s citados) expressam, em larga medida, a ideologia constitutiva do
pensamento liberal – concepção dominante no período sócio-histórico de
emergência do pressuposto de contrato social e hegemônico até a
contemporaneidade (séc. XXI).
O pressuposto da necessidade de se estabelecerem acordos pactuados
(contratos) em prol de uma civilizada convivência social é anterior ao surgimento dos
primeiros teóricos contratualistas (Hobbes; Rousseau; Locke), haja vista que 2000
anos antes, Platão em A República e Críton, já se ocupava em descrever leis
convencionadas entre os cidadãos e destes com uma instituição por eles formada.
Na primeira obra citada, Gláucon, personagem principal, expõe como senso comum
a necessidade de as pessoas estabelecerem leis e convenções, através de um
acordo mútuo, no intuito de evitarem ações injustas e o prejuízo dessas para a
sociedade. Nessa concepção, o que sustenta a manutenção do contrato é a
existência de um bem universal, assumido como justo, sem coação ou engano e,
portanto, a ser assegurado por todos. Essa idéia de “bem universal” é ilustrada na
segunda obra, quando o personagem Sócrates se recusa a fugir da prisão, mesmo
condenado à morte, sob o argumento de que “[...] cometeria uma injustiça contra si e
os seus concidadãos, rejeitando a noção de viver bem, de acordo com o justo, que
fora reconhecido e assumido por ele mesmo espontaneamente.” (Hobbes, 1993,
p.89). Nas duas obras, é possível observar que o consenso fundador do contrato
social é mais o bem comum (constituição de uma cidade justa) e menos os
interesses meramente particulares (Hobbes, 1993), forjando, com isso, uma visão
organicista de sociedade.
Já a enunciação teórica do moderno conceito de contrato social tem raízes na
perspectiva liberal, stem sido fundada por Thomas Hobbes, no séc. XVII, o primeiro
autor a propor explicitamente uma teoria do Estado baseada no contrato social.
38 Não é objetivo, do presente Capítulo, exaurir a análise do universo dos pacto s sociais constituídos na sociedade moderna, mas sim, identificar e analisar aqueles que contribuem ou contribuíram diretamente para a compreensão e a condução do que se refere ao social na esfera pública.
44
Hobbes, em De Cive, produzido em 1642, apresenta como justificativa para o
estabelecimento do contrato social a razão humana, e não mais a busca do bem
supremo. A base de sua proposta tem por pressuposto o voluntarismo
(consentimento voluntário em outorgar poder de representação e decisão a outro.
nesse caso, a autoridade política). O alicerce desse voluntarismo seria, segundo
essa tradição, a busca do próprio bem-estar, cujo alcance exige superar a natureza
humana, uma vez que essa tem como produtos:
Primeiro a competição; segundo a desconfiança; terceiro, a glória. A primeira leva os homens a matarem por lucro; a segunda, por segurança; a terceira, por reputação [...] Com isso é evidente que durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de inspirar respeito a todos, eles estão na condição a que se chama de guerra; uma guerra que é de um contra todos. (Hobbes, 1993, p.56)
Nessa perspectiva, o contrato social funda-se no princípio do dever e não do
direito do indivíduo, uma vez que este é, por natureza, auto-interessado e, portanto,
destrutivo no âmbito da relação com o outro, fato que exige a presença de uma força
de contenção externa: o Estado. Este, através do contrato social, teria a função de
cessar e/ou conter as ameaças presentes no denominado “estado de natureza”,
aquele no qual vigora apenas a lei da selva ou o poder dos mais fortes. Vale
demarcar que a filosofia de Hobbes vai se constituir em um dos fundamentos e
justificativa à conquista, pelo Estado Absolutista, do poder diluído entre os senhores
feudais.
Hobbes defendeu intransigentemente o poder absoluto do soberano sobre os
seus súditos - incluindo a força, usada para a manutenção da paz e da integridade
do Estado. Em que pese ter legitimado a coerção como recurso do Estado, o poder
que ele atribuiu ao indivíduo - de instituir a autoridade dos governantes - inaugurou a
Era Moderna, ao preconizar que são os indivíduos que decidem, de posse da razão,
estabelecer uma instituição na esperança de serem protegidos (por ela) contra todos
os outros.
Na esteira de Hobbes, ainda no séc. XVII, emergiram as contribuições de
Locke, que reserva ao contrato social o papel de assegurar os direitos naturais do
ser humano, e, entre esses, o direito à propriedade privada. Se, para Hobbes, a
propriedade privada se legitimava somente pelo contrato social consubstanciado
pelo soberano, (sendo, portanto, um produto socialmente produzido e passível de
intervenção estatal), para Locke a sua legitimidade era “divina” (Chauí, 2000). Ele
45
justificava essa concepção com base na interpretação dos textos bíblicos, segundo
os quais Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à
propriedade privada, como fruto legítimo do trabalho, ao professar: “Ganharás o teu
pão com o suor de seu rosto.” Com isso, mais do que exigir deveres dos indivíduos,
sob o argumento do bem comum, o Contrato Social passa a ter, também, a função
de assegurar direitos.
Essa demarcação de contrato social como signatário de direitos tem por
substrato a oposição a Hobbes, e é condizente com o espírito anti-absolutista
característico do Iluminismo. Segundo Locke, o Estado não pode tirar qualquer
porção da propriedade do cidadão, sem que esse tenha dado seu consentimento
direto ou por representantes.
Ainda na perspectiva de revisar a natureza da concepção hobbsiana de
contrato social, destaca-se a contribuição de Rousseau (séc. XIII), para quem, ao
contrário de Hobbes, no estado da natureza as relações entre os homens não se
constituíam de forma violenta, mas sim como o estado de felicidade original.
Rousseau é considerado um precursor do socialismo por creditar a emergência da
disputa e da guerra ao estabelecimento da propriedade privada, isto é, a divisão
entre o que é meu e o que é teu (Rousseau, 2004). A superação desse estado, em
si destrutivo, para ele, exige a constituição de um poder central e neutro – o Estado
– e o estabelecimento de normas a serem regidas por ele – o contrato social, uma
vez que
[...] em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, uma igualdade moral e legitima a toda desigualdade física, que entre os homens lançara a natureza, homens que podendo ser dessemelhantes na força ou no engenho, tornam-se todos iguais por convenção e por direito. (Rousseau, 2004, p. 37)
Com isso, estaria sendo superado um problema fundamental: estabelecer um
modelo de sociedade que defenda, ao mesmo tempo, a pessoa e seus bens, e no
qual “[...] unindo-se cada um a todos, não obedeça todavia senão a si mesmo e fique
tão livre quanto antes”(idem, p.37). Rousseau foi uma das principais inspirações
ideológicas da segunda fase da Revolução Francesa, e de revolucionários que
defendiam o princípio da soberania individual e da igualdade de direitos. Em
contraponto, Do Contrato Social (1762) inspirou muitos dos regimes nacionalistas e
opressivos subsequentes a esse período, em parte da Europa.
46
O princípio de liberdade é comum aos contratualistas citados. Entretanto, se
para Locke e Hobbes liberdade é precondição para validar o contrato social, o qual
expressa o livre consentimento do indivíduo em submeter-se ao poder de outro
(soberano)39. Para Rousseau, liberdade é condição humana (uma vez que derivada
da sua própria natureza) e direito inalienável a ser garantido pelo Contrato Social.
Em ambas as perspectivas, o Estado é figura para a qual se transfere o poder de
direção do pacto, sendo que para Hobbes, ele é o corpo político (uma pessoa
artificial criada pela ação humana) e para Rousseau, é a vontade geral. (Chauí,
2000).
Cabe destacar que a proposta de contrato social na perspectiva que aqui
denomino clássica (Hobbes e Locke) opera uma inversão histórica no pensamento
político: passa-se da concepção de comunidade para a de sociedade. Na primeira
concepção (comunidade), subjaz o pressuposto da existência de um grupo humano
uno e homogêneo em termos crenças, idéias e desejos; já da segunda (sociedade),
emerge o pressuposto do livre arbítrio de indivíduos que, em sendo independentes e
isolados, optam voluntariamente por se associar a um contrato com vantagem e por
interesses recíprocos (Chauí, 2000). Daí porque Rousseau não pode ser
considerado um liberal no sentido clássico do termo: sua proposição de contrato
social não pressupõe antagonismo entre indivíduo e coletivo e a sobrevalorização do
primeiro sobre o último. Em outros termos, na concepção de comunidade, a parte
(indivíduo) está em função do todo; na concepção de sociedade, o todo é que está
em função da parte. Bobbio (2004, p.129) anuncia esta última concepção como
“individualista”, derivando dela o atual conceito de democracia, que não mais
corresponde ao poder do povo, mas sim ao “(...) poder dos indivíduos tomados um a
um”. (idem, p.129)
A preocupação em justificar a eficácia do contrato social40, isto é, o real e
concreto cumprimento das bases do acordo, chegou à contemporaneidade nas
proposições de John Rawls (1981), que reatualizou a teoria clássica do
contratualismo (individualismo), ao constituir o sistema de princípios a partir do que
denomina “contrato original”. Tal contrato tem como parâmetro ideal e ponto de
39 E, nesse sentido, Locke admite a perda da liberdade em nome da sujeição consentida ao Soberano.
47
partida a sociedade moderna (liberal) e não mais o “estado da natureza”, como
professado por Rousseau. Da mesma forma que os contratualistas aqui citados
(Hobbes, Locke e Rousseau), Rawls parte da necessidade de gestão dos interesses
em conflito, visto reconhecer que a sociedade, embora se constitua como uma
experiência humana de cooperação com vistas a vantagens mútuas, é claramente
marcada tanto pelo conflito como pela identidade entre os indivíduos, nos termos do
autor.
Como princípio central, Rawls propõe a “justiça social com base na eqüidade”,
constituída por determinados direitos e deveres, como também por critérios de
distribuição de encargos e benefícios cujos signatários seriam os indivíduos
interessados na cooperação social. Eqüidade, para o autor supõe uma situação
inicial de igualdade e liberdade que permita ao individuo, com razoabilidade e
racionalidade,41 constituir os princípios de justiça social a serem assegurado no
contrato social. Pressupõe, portanto, um nivelamento inicial hipotético denominado
“posição inicial”, na qual os participantes desconheceriam sua (própria) posição na
sociedade, situação de classe e atributos pessoais (inteligência, habilidades).
Com essa proposição Rawls acaba por se aproximar da premissa também
hipotética de “estado da natureza”, profetizada pelos contratualistas clássicos como
situação inicial de Contrato. Partindo da “posição inicial” de simetria entre os
participantes do contrato, o autor esboça a “teoria dos bens primários”, em outros
termos, aqueles bens presumivelmente mais necessários à consecução dos distintos
projetos pessoais e que, portanto, têm a possibilidade de mediar os diferentes
interesses. Como bens primários, arrola as liberdades; as oportunidades e a
distribuição de riqueza e poder. Em termos das liberdades e oportunidades (política,
expressão, associação, propriedade privada, etc.) defende que o sistema seja
extensivo a todos os indivíduos; já em termos acesso e posse de riqueza, admite as
“desigualdades econômicas e sociais”, desde que a situação dos menos afortunados
não seja radicalizada. Os princípios da Teoria da Justiça com Eqüidade de Rawls
40 O conceito de contrato social vem sofrendo, ao longo da história da Filosofia, uma série de ataques de autores das mais diversas correntes e origens. Desde Platão até Ernst Tugendhat, passando por David Hume, no que concerne à sua eficácia, em que pese não haver objeções à sua necessidade. 41 Por razoável, entende o reconhecimento, pelo individuo, dos fins próprios e pessoais à luz dos fins moralmente justificados dos outros; por racional, entende a ação orientada para a satisfação dos próprios fins. (RAWLS, 1981).
48
orientam as políticas públicas de vários países, integrando o conjunto de
proposições do Liberalismo Social.
Postas as condições iniciais do contrato, Rawls passa a constituir condições
de gestão que permitam a exeqüibilidade do mesmo. Para tanto, parte do processo
social que tem a função de questionar e pressionar42 a eficiência do contrato: a
“desobediência civil”. Por desobediência civil entende todo o ato público não
violento, de natureza política e cujo objetivo é provocar mudanças nas leis ou
políticas executadas pelo governo. Segundo Rawls (1981), esse conceito só pode
ser aplicado em sociedade justas e ordenadas, mas nas quais ainda persistam
violações da justiça (bens básicos já descritos). Com isso, novamente Rawls opera a
defesa do liberalismo social, pois, ao delegar à desobediência civil a função de
mecanismo de aperfeiçoamento do próprio sistema liberal, contribuiu para manter e
fortalecer as instituições burguesas.
Ainda na seara do liberalismo de esquerda, têm-se as contribuições de
Amartya Sem (2000), que entre outras atividades foi membro da Diretoria do Banco
Mundial, no ano de 1996. Sem parte do princípio da primazia das “liberdades
substantivas43” como fundamento do desenvolvimento das economias nacionais.
Segundo o autor (2000, p. 55), a expansão e o usufruto das liberdades reais, por
uma pessoa, dependem e são determinadas, diretamente, pelo seu nível de acesso
(a) às liberdades políticas; (b) às facilidades econômicas; (c) às oportunidades
sociais; (d) às garantias de transparência; (e) à segurança protetora. Essas cinco
garantias são denominadas “liberdades instrumentais”, pois é através delas que se
avalia (e alcança) a liberdade substancial e o desenvolvimento socioeconômico. Ao
propor a produção de pacto s sociais baseados nas necessidades e na centralidade
do indivíduo Sem reedita o individualismo de Rousseau, agora não só como
condição de coesão e sustentabilidade social, mas especialmente como estratégia
para o desenvolvimento econômico.
Se, por um lado, não há unanimidade em relação ao conteúdo do contrato
social (garantir direitos ou deveres, promover o desenvolvimento) cumpre destacar
que também não há consenso quanto à sua eficácia no plano prático. Esta última
(eficácia) tem sido questionada tanto em decorrência do aspecto extremamente
42 Mas não impedir ou inviabilizar. 43 Ou processo de expansão das liberdades humanas, como finalidade última do desenvolvimento.
49
formal e artificial que tem caracterizado os diversos contratos sociais encetados,
quanto por estes não garantirem a manutenção dos acordos firmados sem apelar
para recursos coercitivos externos. As críticas antigas e modernas dirigidas à forma
do contrato, como fundamento de coesão da sociedade moderna, concentram-se no
fato de que o estabelecimento formal de um acordo entre as partes não é o
suficiente para sua consolidação, necessitando a interferência de um poder que os
críticos situam no âmbito da coerção – violência (sistema jurídico).
Para efeito da hipótese aqui estudada, demarco um outro instrumento tão ou
mais eficaz que a violência/coerção para incitar a adesão a um determinado contrato
social: a ideologia. Esta é aqui compreendida como um dos instrumentos de
manutenção e, portanto, legitimidade de dominação de uma classe social por outra,
visto que
A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção intelectual [...]. Os pensamentos dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes (Marx, 2006, p. 48).
Não creio ser possível partir de uma situação hipotética como marco de
constituição de um contrato social, pois não é a consciência – discurso abstrato -
que determina a vida, mas, sim, o modo e as condições de vida que determinam a
consciência (Marx, 2006). Por vida aqui se compreendem as condições materiais de
reprodução da sociedade, que por sua vez refletem o que e como ela se produz.
Nesse sentido, não há como isolar sujeitos de sua experiência concreta, de suas
necessidades social e historicamente constituídas, como propõem tanto os
contratualistas clássicos quantos os contemporâneos. Assim o fazendo, ignoram as
contradições constitutivas da sociedade moderna, de classes, como a contradição
entre o valor de uso e o valor de troca44 de um produto ou serviço; contradição entre
trabalho concreto e trabalho abstrato, dentre outras.
A contradição dos interesses de classes (e não de interesses de indivíduos
como querem acreditar os contratualista citados) se expressa, por exemplo, na
44 “Afirmar que a mercadoria tem valor de uso significa dizer que, por suas qualidades, ela é útil. Permite assim satisfazer um certo número de necessidades concretas e especificas dos homens [...] Afirmar que uma mercadoria é um valor de troca quer dizer que ela aparece como a proporção na qual valores de uso de diferentes espécies (automóveis e geladeira) são trocados entre si. Mas não se pode comparar diretamente as mercadorias como valores de uso: não há relação entre as qualidades de uma lâmina de barbear e aquelas de uma caneta. Portanto, há necessidade de uma medida; ora, a única propriedade comum a todas as mercadorias é o fato de serem produzidas pelo trabalho humano.” (Salama, 1975, p.7-8).
50
ruptura do contrato social constituído no pós-guerra entre capital e trabalho, pelo
primeiro, que executa hoje, de forma aberta, uma ofensiva contra o trabalho
organizado45. Esse contrato teve como determinantes, por um lado, o processo de
organização do movimento operário, expresso pela crescente força e
representatividade sindical, e, por outro, um período de crescimento econômico
estável que permitiu uma redistribuição dos dividendos, associado ao medo da
ameaça socialista. Mais do que a manutenção justa das desigualdades sociais (nos
termos e moldes propostos por Rawls), o contrato social efetivado alcançou como
produto a despolitização e a desradicalização da classe trabalhadora.
Cabe ressalvar que a ideologia do contrato social como instrumento de
mediação de justiça social em prol dos desfavorecidos (aqui compreendidos como a
classe destituída dos meios de produção), mas que realmente está a serviço da
propagação do pensamento liberal e, conseqüentemente, do sistema capitalista, não
é recurso recente. Até mesmo a constituição dos Direitos Humanos e dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais tem berço nesse propósito, como pretendo expor na
análise a seguir.
Antes, porém, retomo e justifico uma das proposições iniciais deste capítulo: a
opção pelo termo pacto social em detrimento de contrato social. A terminologia
contrato social tem sido utilizada, desde os primeiros contratualistas, para justificar e
nomear um tipo de tratado/acordo específico: aquele que se objetiva formalmente
através do ato positivo - convenções e leis46 - e que, além do caráter formal, é
regido por um corpo político (Estado).
Na tese que aqui defendo47, a legitimação e, em última instância, a
reprodução do sistema capitalista exige, cada vez mais, o conformismo da
sociedade como um todo. Daí o necessário estabelecimento de acordos que
requerem, para além do consentimento formal (convenções e leis), também a
aprovação moral, operada através da persuasão ideológica. Esse último elemento –
o ideológico – tem-se mostrado cada vez mais eficaz do que a coerção, instaurando,
45 São constantes as ofensivas que buscam desregulamentar as proteções sociais constituídas a partir dos anos 20 até meados dos anos 60 do séc. XX. 46 Para Rousseau, as leis são as condições mesmas da associação civil, pois somente através delas é possível “[...] unir os direitos aos deveres e levar a justiça ao seu objeto (2004, p. 47)”. Para efeito deste texto, as leis assumem sentido estritamente jurídico, como regra da conduta humana que é imposta e ministrada aos cidadãos de um dado Estado.
51
através do que Marx denomina falsa consciência, reconhecimento e condutas
favoráveis à lógica liberal, incluindo-se aí aquelas que não têm consolidada
exigência e concretude legal; isto é, não tem resguardo no sistema jurídico. Nesse
âmbito situo, a título de exemplo, as práticas de responsabilidade social corporativa,
louvadas por significativa parcela da sociedade como aquelas capazes de,
finalmente, garantir a justiça social. Essa forma de acordo e organização social,
instituida para além da regra positiva, extrapola os limites do conceito de contrato
social, na direção de um outro que aceita convenções e acordos implícitos. O
pensamento contemporâneo tem optado, neste sentido, pelo termo pacto social48,
sendo que seu uso tem sido recorrente nos meios políticos nacional e internacional.
Encerro os primeiros esforços de situar o lugar do social no âmbito dos
grandes pacto s contemporâneos, sinalizando que é nesse campo que se justifica e
se legitima hoje (séc. XXI) a condução e o protagonismo das ações sociais que se
dizem do interesse da sociedade, pelo chamado “novo agente social”: a empresa
Corporativa. Para esta, o pacto social é concebido como uma aliança
supraclassista, constituída, como quer Rawls, por “[...] uma aliança harmônica entre
cidadãos com independência de suas procedências e interesses de classe”
(Montaño, 2002, p.87).
4.1 DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO – UM PACTO SOCIAL NA
PERSPECTIVA LIBERAL CONSERVADORA
A emergência dos direitos humanos, do ponto de vista legal e institucional, é
demarcada por um litígio em relação à sua origem: há uma tese que defende a
influência da Declaração de Independência dos Estados Unidos, proclamada em
1776, sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 1789,
pela Assembléia Nacional, em Paris; e há uma segunda tese que nega os influxos
da primeira sobre a segunda. Uma compreensão menos maniqueísta49 da história
exige o recurso aos antecedentes e aos fundamentos de cada um desses dois pacto
47 De que na sociedade capitalista, a dimensão social – reprodução das condições de vida – é tão essencial quanto a dimensão de produção e circulação das mercadorias.” 48 Ao qual me alinho, considerando os argumentos antes expostos, em termos de abrangência. 49 Filosofia dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo, na qual a matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos, do bem e do mal. (Johnson, 1997)
52
s que inauguram a era do contrato social, uma vez que a questão da origem remete
menos à determinação cronológica e mais a especificidades (diferença e
similaridade) dos conteúdos. Cabe demarcar, de início, que ambos são produtos de
revoluções cujo objeto comum foi a ruptura com o Estado Absolutista50 e o legado,
também comum, foi o de uma nova concepção de sujeito, que a partir de então
passou à condição de portador de direitos naturais51. Com isso, operou-se uma
mutação histórica, na qual os tradicionais e assegurados direitos dos governantes e
os também tradicionais e incontestáveis deveres e obrigações dos súditos são
invertidos completamente. Essa aventura só foi possível a partir do momento em que
na relação entre o poder (soberano) e liberdade civil (do indivíduo), a última se
sobrepôs ao primeiro (Bobbio, 2004).
Entre os princípios proclamados em ambas as declarações, dois ganharam
destaque como signos dessa nova concepção de sujeito: liberdade e igualdade. Na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estes princípios têm resguardo já
no art. 1º, onde está registrado que “Todos os homens nascem e são livres e iguais
em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”; também
na Declaração de Independência dos Estados Unidos, o segundo parágrafo afirma
que
Consideramos per se evidentes as verdades seguintes: que todos os homens são criaturas iguais; que são dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis; e que, entre estes, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade.
Os movimentos revolucionários que originaram esses dois contratos tinham
como base doutrinária autores contratualistas, sendo que a declaração francesa se
fundava nas concepções de Rousseau e a Constituição norte-mericana apoiava-se
nas de Locke, o que gerou diferenças significativas.
Dentre essas diferenças, a mais significativa refere-se à abrangência: a
declaração francesa pretendia a alforria (liberdade, igualdade e fraternidade) para
50 Forma de governo onde o soberano ou rei exerce o poder absoluto, sem o uso dos preceitos constitucionais. Tem como principal característica a inexistência da divisão dos três poderes e se fundamenta na teoria política que defende a ideia de que o poder real deriva de Deus (é, portanto, sagrado), cujos principais mentores foram Agostinho de Hipona, Paulo de Tarso, Jacques-Bénigne Bossuet, e Thomas Hobbes (Flores, 1996). 51 Tese doutrinária e filosófica que preconiza um conjunto de regras consideradas como pertencentes ao homem em decorrência de sua natureza ou de sua essência (ou da natureza em geral), independentemente, portanto, de qualquer direito positivo ou histórico. Afirma que os direitos
53
todos os indivíduos de todos os povos, sem distinção, daí seu título: Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. A declaração norte-americana, por seu turno,
pretendia a alforria da população de uma colônia específica (América do Norte) em
relação à metrópole (Londres). Uma pretendia a derrocada de um regime e a
instituição de uma nova ordem; a outra, a constituição de uma nova nação, fundada
à imagem e semelhança da metrópole. Esse aspecto em muito justifica o fato de a
Revolução Francesa e de sua declaração constituir-se como referência para todos
os povos ou segmentos políticos que lutaram e, arrisco afirmar, lutam por
emancipação, em que pese ter sido proclamada treze anos após a declaração norte-
americana.
Outro aspecto relevante, em termos de diferença entre as duas declarações,
é o que se refere ao alcance do direito à igualdade política, expresso na concepção
de democracia, A primeira - Francesa - defendia a democracia de massas, desejo de
um povo que se rebelava contra séculos de exploração. De fato, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão foi tanto precedida quanto acompanhada por
levantes civis, como o episódio da Queda da Bastilha52, nos quais “[...] a população
faminta e miserável busca tomar em suas mãos o poder político, impondo novas
regras e normas legais, que traduziam suas esperanças de criação de um novo
Estado.” (Odalia, 2003, p. 165).
Já a concepção norte-americana de democracia guarda traços da tradição
inglesa de representação, que remonta à Carta Magna de 1215. Nesse sentido,
proclamava a democracia representativa de base liberal, como expresso no Art. 2º,
seção 1, da Constituição norte americana de 1787, que conferiu legalidade e
institucionalidade à Declaração de Independência:
Cada Estado nomeará, de acordo com as regras estabelecidas por sua Legislatura, um número de eleitores igual ao número total de Senadores e Deputados a que tem direito no Congresso; todavia, nenhum Senador, Deputado, ou pessoa que ocupe um cargo federal remunerado ou honorifico poderá ser nomeado eleitor.
------------------------------------------------------------------------------------------------------
humanos são de natureza declarativa, ao que se opõem aos juspositivistas, que só consideram direito aquilo que esta positivado em forma de Lei. (Porto, 2006). 52 Símbolo do antigo regime, era a prisão na qual ficavam encarcerados os inimigos do Rei. Foi tomada pela população enfurecida, em 14 de julho de 1789, e se constituiu como um dos marcos da Revolução Francesa.
54
O Congresso pode fixar a época de escolha dos eleitores e o dia em que deverão votar; esse dia deverá ser o mesmo para todos os Estados Unidos.
As restrições ao sufrágio universal estendiam-se a parcelas específicas da
população - indígenas; brancos pobres e mulheres. A estas últimas somente na
primeira década do séc. XX foram-lhes auferidos os direitos políticos, através da
Emenda Constitucional XIX, cujo texto afirmava que “O direito de voto dos cidadãos
dos Estados Unidos não será negado ou cerceado em nenhum Estado em razão do
sexo.” Nesse sentido, vale reconhecer que o conteúdo da Declaração de
Independência dos Estados Unidos, apesar das grandes novidades do texto,
apresenta o Estado de forma idealista e vê o ser humano de maneira abstrata, e não
o homem e a mulher numa sociedade de classe, da qual o Estado é o guardião da
classe dominante (Karnal, 2003).
Ainda quanto às diferenças referentes ao princípio da igualdade no que
concerne às oportunidades econômicas, no contexto da Revolução Francesa, o que
se pleiteava, era o direito de controle do gasto público, bem como da tributação (art.
14º), uma vez que esta onerava, sobremaneira, a população53. Já no âmbito da
realidade norte-americana, esse princípio instaurava, antes, mais privilégios a
minorias do que à universalidade, visto que até a metade do séc. XVII – portanto 78
anos após a promulgação da Constituição - a escravidão ainda era legítima, bem
como as disparidades sociais. Penso que aqui é significativo identificar o tipo de
desigualdade que acionava cada revolução: na francesa, o que operava eram as
desigualdades sociais internas, expressas nas diferenças entre nobreza e população
comum. Na revolução norte-americana, o motor eram as desigualdades externas,
entre colônia e metrópole, mais especificamente, a exploração da primeira pela
segunda.
Em termos do princípio de liberdade, o litígio entre os dois pacto s também diz
respeito tanto a abrangência quanto ao conteúdo. A liberdade requerida pela então
nascente nação situava-se no plano restrito da liberdade negativa, aquela que
advoga a não intervenção do Estado no âmbito da sociedade civil. Esse movimento
da sociedade norte-americana - de autodefesa em relação ao Estado - é decorrente
da luta contra a Inglaterra, e se expressa claramente na Declaração de
Independência: “Os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar
55
seus direitos e os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados
[...]”. Essa perspectiva negativa de Estado foi referendada na Constituição de 1787
ao apresentar, no art. 1º, as prerrogativas e a organização do Legislativo (que
representa a vontade do povo) e, no 2º e no 3º artigo, a organização e as funções do
Executivo e do Judiciário, respectivamente, sob a tutela do primeiro – Legislativo. As
liberdades firmadas na Declaração de Independência e, posteriormente, confirmadas
na Constituição (e mais especificamente nas emendas subseqüentes) são: opção
religiosa, expressão e associação pacífica e autonomia sobre o patrimônio privado.
No contexto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o conceito
de liberdade está expresso, claramente, no art. 4º, e “[...] consiste em poder fazer
tudo aquilo que não prejudique outrem [...]”. Já a sua objetivação se expressa no
direito à liberdade civil e de ampla defesa (artigos 7º e 8º); e no direito a liberdade de
expressão política, religiosa, de opinião (artigos 10º, 11º e 12º). Cumpre destacar
que, diferentemente do movimento norte-americano, a preocupação não se situava
na desconfiança única com o poder do soberano, uma vez que no ambiente francês
eram diversas as forças em litígio (nobreza; clero; burguesia; camponeses;
profissionais liberais). Daí a necessidade de assegurar a liberdade frente não
apenas ao Estado, mas também aos diferentes interesses presentes na massa
associada sob a bandeira da liberdade e da igualdade civil. Contudo, a prevalência
dos interesses da nascente burguesia sobre os das demais pôde ser demonstrada
no conceito de indivíduo e na defesa da propriedade privada, presentes nas duas
declarações.
Como já demarcada anteriormente, a concepção de indivíduo é o amálgama
de uma sociedade cuja associação tem por base a livre vontade das partes e onde o
todo (sociedade) é hierarquicamente inferior às partes (indivíduo). Nesse sentido,
segundo Bobbio (2004) a declaração francesa é intransigentemente mais
individualista que a norte-americana, uma vez que esta última precondiciona os
direitos do indivíduo ao bem da sociedade, enquanto a primeira afirma
exclusivamente os direitos do indivíduo. Contudo, à medida que, nos EUA, foi se
consolidando a concepção liberal de Estado, essa precondição foi abandonada, sob
a alegação de que a “[...] verdadeira finalidade do Estado deve ser dar aos súditos
53 Além de menor taxação, os burgueses demandavam maior liberdade de comercialização (em termos de produtos e mão-de-obra) e os camponeses pleiteavam acesso a terra.
56
tanta liberdade que lhes permita buscar, cada um deles, a seu modo, a sua própria
felicidade” (Bobbio, 2004, p. 105). É produto direto desse pressuposto a crença
norte-americana de “terra das oportunidades”, onde, dadas as condições
necessárias (de liberdade), qualquer indivíduo, desde que dotado de desejo e força
de vontade, pode alcançar progresso material. Por conseguinte, é herança desse
pressuposto a concepção de que pobreza é fruto direto da incapacidade do
indivíduo, seja por falta de vontade, seja por limitações físicas (deficiência, etnia,
faixa etária).
A defesa da propriedade privada demarca, de forma clara, o legado liberal em
ambas as declarações. Concebido como direito natural, fica a salvo de qualquer
interferência, exceto por razões de utilidade pública e assim mesmo quando
amplamente justificável e indenizável. Com esse princípio assegurado, foi possível
constituir formas outras de acesso, uso e lucro da terra, fundamentais para o
estabelecimento de uma economia de mercado. Vale lembrar que até então
(Antiguidade Clássica e Idade Média) a propriedade (especialmente a imobiliária) era
regida por padrões de hereditariedade e/ou militares (por mérito ou apropriação),
não se configurando como objeto de compra, venda e tampouco de lucro. (Polanyi,
2000).
É ponto pacífico entre os diversos estudiosos aqui citados que o projeto de
sociedade que começou a se edificar a partir das duas declarações tem por base um
Estado fundado no contrato social, que, por sua, vez defende liberdades e direitos.
Esse projeto só foi possível com o advento do que Marx denominou “consciência de
classe54”. Essa consciência se processou a partir do momento em que as
desigualdades sociais perderam o caráter de fenômeno natural, instituído pela
vontade divina, e passaram a ser compreendidas como produto histórico das
relações de dominação. A burguesia foi a classe que primeiro compreendeu a
história como um produto social e o papel da força revolucionária para alterar os
rumos antes dados como imutáveis.
54 Categoria histórica marxista aqui concebida como produto histórico que se constitui no processo em que sujeitos, inseridos em uma sociedade estruturada a partir de relações de produção, suportam e/ou subvertem-se (trabalhadores) ou buscam manter e ampliar a exploração (Capital); no decurso desse processo de luta, os sujeitos aproximam-se de alguns por semelhança de interesses e afastam-se de outros pelo antagonismo.Isso proporcionou a constituição de uma “consciência de classe” – daí ser ela sempre produto de um processo histórico real, e não uma categoria a ser reduzida a puras e simples medidas quantitativas.
57
A classe trabalhadora, que emergiu no espaço público com e pelo advento da
Revolução Industrial, e que lutou ao lado da burguesia pela conquista dos direitos
civis, aprendeu a usar da revolução como estratégia de luta na direção de seus
interesses de classe, o que foi decisivo para o reconhecimento dos direitos sociais
(séc. XIX e XX). O principal símbolo desse processo foi o estabelecimento do Estado
de Bem Estar Social, um dos objetos de estudo e análise do próximo item.
Como já referido, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tornou-
se símbolo do inicio de uma nova era, a Moderna, apresentou ao mundo aqueles
que seriam os princípios orientadores desse novo tempo: os 17 artigos que definiam
os direitos civis – isto é, os direitos daqueles que vivem em sociedade. Fruto de uma
revolução sangrenta, que mobilizou os segmentos mais pauperizados da França e
de uma Assembléia Constituinte na qual, pela primeira vez, o homem comum,
através do denominado Terceiro Estado55, assumiu o seu papel político e logrou
expressar suas reivindicações. Mas, em que pese reconhecer a sua importância,
não há unanimidade quanto ao conteúdo e a finalidade da Declaração. Logo após
ter sido publicizada, e até hoje, a declaração francesa sofreu rigorosas críticas, que
operam em dois sentidos: uma perspectiva que denuncia ser o seu conteúdo
excessivamente abstrato (criticas de caráter liberal); e outra perspectiva que a acusa
de referendar, unicamente, os interesses burgueses (criticas da chamada esquerda).
Para os primeiros, o conceito de indivíduo carece de objetivação, e os princípios de
liberdade, igualdade e fraternidade são dogmas abstratos, metafísicos, contraditórios
e, portanto, suscetíveis de significações dúbias. Já as criticas opostas denunciavam
exatamente o contrário: que a Declaração tutela os interesses concretos de um
indivíduo também concreto e tangível: o burguês, símbolo do egoísmo e do
individualismo.
55 Luiz XVI, soberano francês à época da Revolução Francesa, viu-se pressionado, por conta dos conflitos sociais indiscriminados, a convocar, em maio de 1789, os chamados Estados Gerais, compostos por representantes da nobreza, do alto clero e do Terceiro Estado. Este último era constituído por representações da burguesia emergente, profissionais liberais, operários, artesãos e do baixo clero. O objetivo oficial da convocação era votar o orçamento do Estado, tarefa que não logrou êxito, pois houve cisão entre os nobres, o alto clero e o Terceiro Estado. Este último, em junho do mesmo ano, com a adesão do alto clero e de parte dos nobres, declarou-se Assembléia Nacional, com apoio da população. O soberano foi constrangido a aceitar a idéia de uma nova Constituição, uma vez que não dispunha mais do uso da força e convocou uma nova Assembléia Constituinte, com todas as representações. No processo de elaboração e discussão da nova carta, o Terceiro Estado defende e, logo após, proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens.
58
Considero necessário, porque justo, destacar também o legado positivo da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e da Declaração de
Independência dos Estados Unidos da América. Se por um lado, é indiscutível a
prevalência dos interesses burgueses em ambas as declarações, por outro, também
é inegável sua influência na luta daqueles que não foram “tão” beneficiados
diretamente – os trabalhadores e as minorias. Nos EUA, a expressão “Todos os
homens foram criados iguais” alimentou os movimentos de ampliação dos direitos
civis – especialmente liberdade e igualdade política -, desde a Guerra de
Secessão56, que culminou com o fim da escravatura, até a luta contemporânea pela
igualdade racial, cujo símbolo é Martin Luther King Jr. (Karnal 2003). Quanto à
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, já foi ressaltada sua influência
nos movimentos sociais que advogam direitos e acessos a outros direitos humanos
além dos civis, e cujo protagonismo inclui a chamada classe que vive da venda da
sua força de trabalho. E, por último, cabe o recurso a Bobbio (2004, p. 486),
Depois da Declaração Universal, a proteção dos direitos naturais passou a ter ao mesmo tempo eficácia jurídica e valor universal. E o indivíduo, de sujeito de uma comunidade estatal passou a ser também sujeito da comunidade internacional, potencialmente universal.
Não obstante, visto seu imenso legado, vale lembrar que o horizonte último da
Declaração não é a superação das estruturas capitalistas que impedem a
emancipação humana, e por isso mesmo, se rende ao que Fukuyama denominou
como o “Fim da História57”. O interesse e a justificativa de sua análise no presente
56 A guerra civil norte-americana, também conhecida como Guerra de Secessão, ocorreu entre 1861 e 1865, e causou a morte de 3% da população americana à época. As sua causas, seu desfecho, e mesmo os próprios nomes da guerra, são motivos de controvérsia e debate até os dias atuais. Consistiu na luta entre 11 estados do sul, latifundiários aristocratas e que eram a favor do trabalho escravo, contra os estados do norte, industrializados e abolicionistas, dedicados a estilos mais modernos de vida. Enquanto o norte passava por um período de expansão econômica graças à industrialização, à proteção ao mercado interno e à mão-de-obra livre e assalariada, a economia do sul dependia da exportação de produtos agropecuários - especialmente do algodão, cujas exportações eram a principal fonte de renda desses estados – e do uso do trabalho escravo. Em 1860, Abraham Lincoln, um republicano contrário à escravidão, venceu as eleições presidenciais e encontrou um País com 19 estados nos quais a escravidão era proibida, e 15 Estados onde a ela era permitida. Em 4 de março, antes que Lincoln assumisse o posto de presidente, 11 Estados escravagistas declararam secessão da União, e criaram um novo país, os Estados Confederados da América. A guerra começou quando forças confederadas atacaram o Fort Sumter, um posto militar na Carolina do Sul, em 12 de abril de 1861, e terminaria somente em 28 de junho de 1865, com a rendição das últimas tropas remanescentes da Confederação. (LAROUSSE CULTURAL, Grande Enciclopédia Ilustrada. Nova Cultural, São Paulo, 1999). 57 Teoria iniciada no século XVII por Georg Wilhelme Friedrich Hegel e retomada posteriormente no último quartel do século XX, no contexto da crise da historiografia e das ciências sociais em geral. Como o nome sugere, essa teoria afirma o fim dos processos históricos caracterizados comos processos de mudança. Para Hegel isso iria acontecer no momento em que a humanidade atingisse o equilíbrio, representado, de acordo com ele, pela ascensão do liberalismo e da igualdade jurídica.
59
trabalho é ser esta, senão o principal, o primeiro pacto social de largo alcance e
legitimidade, constituído no âmbito da esfera pública burguesa.
4.2 DIREITOS SOCIAIS – UM PACTO SOCIAL NA PERSPECTIVA DO
LIBERALISMO SOCIAL
Inicio este item destacando que os direitos sociais se constituiram, tanto do
ponto de vista legal quanto institucional, ora como uma das ações de um conjunto de
medidas econômicas, ora como um dos direitos que forma o arcabouço dos direitos
humanos, não alcançando nunca o status que os direitos civis e os políticos
lograram na dita sociedade moderna58. Isso se explica, em parte, pela lógica da
sociedade capitalista: que qualifica o social como secundário ao econômico, uma
vez que, relembrando um princípio central do liberalismo, no âmbito do mercado
todas as relações são eficientemente conduzidas. E, ainda, referendando esse “não
protagonismo” do social vale destacar que a necessidade de atendimento (político e
administrativo) das demandas sociais surge de um produto do próprio Capitalismo: o
trabalhador moderno. É esse sujeito quem mais depende dos produtos e serviços de
caráter social, uma vez que o acesso antes garantido solidariamente no âmbito da
comunidade e da família (na Antiguidade Clássica e na Idade Média) foi destruído e
em, seu lugar, se erigiu o livre mercado.
Para Castel, as proteções sociais ocupam as lacunas da sociabilidade
primaria, produzidas pelo desenvolvimento industrial e pela urbanização que
fragilizaram profundamente as formas de proteção comunitárias. Nesse ínterim “Os
poderes públicos recriam proteções e vínculos, mas com um registro completamente
diferentedaquele do pertencimento a comunidades concretas.”(1998, p. 508).
A consolidação normativa desses direitos em termos internacionais é recente,
datando de dois eventos protagonizados pela Organização das Nações Unidas
Para seus seguidores contemporâneos essa teoria adquire hoje concretude, pois defendem que a História, compreendida como processo contínuo de mudança, terminou no episódio da Queda do Muro de Berlim. De acordo com essa perspectiva os antagonismos entre projetos societários diferentes chega ao fim com o sucesso do capitalismo que, consequentemente, alcançou total estabilidade. 58 Os direitos civis e os políticos orientaram, além das declarações anteriormente abordadas (dos Direitos do Homem e do Cidadão e Declaração de Independência dos EUA), também a Declaração de Direitos Inglesa, de 1689, conhecida como Bill off Rights, e importantes cartas magnas (Constituições norte- americana; francesa – especialmente as de 1791 e de 1793).
60
(ONU): o primeiro, em 1944, quando da Declaração da Filadélfia59, e o segundo dois
anos após, quando da Declaração Universal dos Direitos do Homem60. Contudo, o
recurso a ações de foro social não é novo, visto que é mobilizado, desde a
emergência do capitalismo, como medida para amenizar as expressões da Questão
Social, e também como forma de mediação entre protestos e transgressões dos
trabalhadores e os interesses do Estado e/ou do capital.
Antes de analisar, do ponto de vista histórico, como o fenômeno dos direitos
sociais vem se constituindo, entendo importante situar algumas observações acerca
da natureza desses direitos. Quando me refiro, aqui, à natureza desses direitos não
estou adentrando no tradicional litígio entre jusnaturalistas, juspositivistas e realistas,
quanto à natureza e à justificação dos mesmos, mas sim demarcando a direção e a
significação que esses direitos empreenderam ao longo de sua trajetória. Em outros
termos, ouso demarcar que estes direitos que se constituíram e se consolidaram na
sociedade capitalista, apresentam elementos intrínsecos a esse sistema, e dentre
esses elementos, sublinho os interesses em termos de classe social61.
O antagonismo entre esses interesses criou uma cisão quanto à prioridade
dos conteúdos dos direitos humanos a serem assegurados em pacto s
internacionais, sob resguardo das Nações Unidas: de um lado estavam os países de
capitalismo avançado, na defesa intransigente dos direitos civis e de outro, os países
comunistas, com a premissa dos direitos sociais. Como resultante desse litígio, ao
invés de um grande pcto social, foram produzidos dois: o Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (1966).
59 A Declaração da Filadélfia é reconhecida como o primeiro manifesto internacional que eleva os direitos sociais ao nível dos Direitos Humanos, tendo seu texto adotado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT. Para além de proclamar a segurança econômica como um direito social, delimita como tutor o Estado, uma vez que somente este é capaz de garantir “(...) o direito de cada cidadão de participar do consumo do produto social por ser membro da comunidade nacional”. (Singer, p. 190-263, 2003). 60 Os artigos XXIV, XXV e XXVI dessa declaração versam sobre os direitos sociais e econômicos, que serão oportunamente destacados ainda neste capítulo. 61 De forma simplificada estou aqui trabalhando com a idéia de que, na sociedade capitalista, existem duas classes sociais que, além de distintas, são antagônicas: capitalistas e trabalhadores. Em termos de distinção considera-se que os primeiros são todos aqueles que não necessitam exercer qualquer atividade remunerada uma vez que detêm condições econômicas para tanto (com isso não estou afirmando que os capitalistas são ociosos, mas, sim qe têm condições de assim ficar, se desejarem). Já a classe trabalhadora apresenta duas conformações: aquela que vive exclusivamente da venda da sua força e da sua capacidade de trabalho – assalariado – e aqueles que, através de seus próprios instrumentos, produzem serviços e insumos que lhes garante renda. Em comum, têm o trabalho como condição de sobrevivência.
61
Em termos de significação (conteúdo) operou-se, também, uma dupla e
distinta qualificação: (a) aquela informada pela lógica liberal mais ortodoxa, que
atribui às políticas sociais uma conotação pejorativa e desqualificadora; e (b) uma
outra concepção que afiança serem as políticas sociais o fundamento central da
cidadania, as quais têm a qualidade de “[...] promover a igualdade de acesso a bens
socialmente produzidos, a fim de restaurar o equilíbrio para a coesão social.” (Couto,
2004, p. 48).
Entretanto, a tomada de consciência desses direitos pelos trabalhadores não
foi um processo instantâneo ou seque uniforme; ao contrário, em larga medida, foi
negado pelos mesmos, sob influência da ideologia liberal, dominante na sociedade
capitalista, que atribuia aos seus beneficiários o status da desqualificação. Sob o
discurso da liberdade e da igualdade civil, os liberais preconizavam que os direitos
civis
Davam a cada homem, como parte de seu status individual, o poder de participar, como uma unidade independente, na concorrência econômica, argumento que tornou possível negar-lhes a proteção social com base na suposição de que o homem estava capacitado a proteger a si mesmo (Marshall, 2002, p. 27)
É próprio da sociedade capitalista tratar os direitos sociais como secundários
aos direitos civis e aos políticos. Não obstante, e em que pese o discurso liberal que
condena a desqualificação aqueles que acessam62 os recursos sociais, há que se
destacar que os princípios que lhes são caros – igualdade e liberdade – não
garantem (e nem pretendem) o fim ou mesmo a contenção das desigualdades
sociais. Até porque essas (as desigualdades) são constituintes do capitalismo,
ingrediente necessário, e por demais indispensável, ao seu desenvolvimento. Daí
que algumas ações são imperiosas para conter o fenômeno da pauperização
extrema uma vez que, diferentemente da pobreza, este é incontrolável e incomoda
como a “[...] fumaça negra que escapava, sem fiscalização, das chaminés de nossas
62 Ainda hoje é relevante o discurso da desqualificação social como bem prova a reportagem do jornal Zero Hora, de 04 de fevereiro de 2007, ano 43, n. 15.135, sob o titulo Bolsa – Família para Sempre. No conteúdo são expressas críticas de especialistas que denunciam o perigo da dependência dos beneficiados e a necessidade de controle sobre os mesmos, dada a pretensa incapacidade de conduzirem autonomamente suas vidas. A mesma reportagem saúda os 4,2% dos beneficiários que tiveram a iniciativa de renunciar ao benefício quando superada a condição inicial de vulnerabilidade. Em nenhum momento é aventada a precariedade dessas famílias em termos de formação e organização para alcançar o patamar aludido pelos especialistas (em outros termos: a real possibilidade dessas famílias de atender às expectativas dos padrões burgueses). São referidos como necessários programas de microcrédito e de formação profissional, mas não é questionado quais são as possibilidades reais do mercado em acolher esses sujeitos nos seus circuitos de troca.
62
fábricas” (Marshall, 2002, p. 27). Portanto, algumas ações sociais eram e são
imprescindíveis, desde que não alterem o padrão de desenvolvimento do livre
mercado – e aqui, com destaque, o mercado de trabalho.
Seguindo essa lógica, Singer (2003) informa que na sua origem os direitos
sociais tiveram como sujeito o trabalhador, e em especial aquele que não dispunha
de trabalho e que por sua situação de indigência representava um risco para a
sociedade e para os trabalhadores ocupados. Nesse sentido, a natureza dos direitos
sociais seria eminentemente assistencialista e corretiva, como bem comprova a
primeira lei instituída no período de transição entre a Idade Média e a Idade
Moderna – a Poor Law, ou Lei dos Pobres, instituída em 1601 na Inglaterra. O autor
argumenta que essa medida se fez necessária como forma de enfrentar a
instabilidade social que assombrou o final do séc. XVI e a primeira metade do séc.
XVII, promovida por vários fenômenos integrados:
Guerras derivadas de conflitos religiosos assim como políticos e econômicos, travadas por exércitos cada vez maiores, que ocorriam quase incessantemente, devastando amplas regiões e destruindo as atividades de camponeses e citadinos. A tendência ao controle Capitalista da manufatura também continuou com seus efeitos desestruturadores sobre a força de trabalho: salários baixos, falta de oportunidade de ascensão e rápidas oscilações no nível da produção, levando ao desemprego. (Singer, 2003, p.193).
Um outro fenômeno correlato que contribuiu para desencadear uma série de
medidas de contenção e apoio social foi o deslocamento de massas humanas em
direção às cidades, expulsas de suas ocupações no campo, as quais, devido à
extrema pauperização, aterrorizavam os moradores urbanos tradicionais. As
primeiras leis direcionadas aos pobres emergiram nesse contexto e apresentavam,
ainda segundo Singer, medidas de natureza pecuniária e repressiva. Entre as
medidas pecuniárias destacavam-se as atividades laborativas, nas denominadas
“workhouse63”, sob o controle das paróquias locais, cuja renda (precária) era
repassada parcialmente aos beneficiários. Já entre as medidas repressivas havia a
prática de marcar a ferros aqueles acusados de vadiagem e outros delitos, e
também o banimento dos “indesejáveis” para as colônias além-mar. Um outro sub-
produto dessas legislações foi extremamente benéfico ao florescente processo de
63 As workhouse eram, literalmente, casas do trabalho, lugar onde os acusados de práticas de mendicância e vadiagem eram, involuntariamente, postos a trabalhar.
63
industrialização: a submissão aos baixos salários, pelos trabalhadores, frente à
possibilidade de escravização nas workhouses.
Esse subproduto – tolerância com o assalariamento baixo – evidencia a já
aludida negação, pelos próprios trabalhadores, dos produtos e serviços sociais como
direitos, mesmo sob condições extremamente severas de trabalho – além dos baixos
salários, coexistiam, por longos períodos, em ambiente insalubres, com jornadas de
trabalho diárias de até 15horas. Com isso negavam, por tabela, uma das liberdades
mais propaladas pelo liberalismo: a liberdade do sujeito de alienar sua capacidade
de produção a quem lhe aprouver. Isso, repito, se devia tanto a fatores ideológicos
como a fatores coercitivos. A conquista dessa liberdade iniciou-se, de forma mais
programática, a partir do séc. XVIII, quando os trabalhadores se lançaram a lutas por
melhores condições de trabalho. Antes de destacar alguns dos principais eventos
dessa longa luta, farei uma digressão, para dar voz a uma outra versão sobre a Poor
Law, com o intuito de melhor expressar o papel desse pacto para a sociedade
moderna.
Polanyi (2000) defende o argumento de que a Poor Law simboliza o
derradeiro esforço da antiga ordem – feudalismo – em salvaguardar os vestígios
últimos de sua tradição. Nessa lógica, as leis direcionadas à crescente população
pobre se constituíram em uma investida da monarquia inglesa no sentido de
proteger do livre mercado aquilo que seria o último elemento da produção ainda
intocado: o fator humano, isto é, a mão-de-obra. Neste último ataque, a velha ordem
instituiu um sistema denominado Speenhamland Law, cuja proposta incluía, dentre
outras, o abono mínimo e o abono família, combinados com atividades laborais. Com
isso os legisladores pretendiam instalar, pela primeira vez na história, um elemento
previdenciário, que acabou por não lograr sucesso uma vez que suas
conseqüências práticas foram desastrosas do ponto de vista do beneficiário, pois
não proporcionou uma real proteção, prestando-se mais a gerar dependência e a
promover o controle dos mesmos.
Do ponto de vista da nova ordem emergente, tal proposta – pecuniária – era
prejudicial uma vez que ofensiva ao espírito liberal – que, lembrando, preconizava a
livre iniciativa a partir de uma pretensa liberdade. O sistema proposto pela
Speenhamland Law, que teve início oficial em 1795 e vigorou até 1834, foi
substituído por uma reforma social impiedosa denominada Poor Law Reform Act,
64
que preparou o terreno para a constituição do mercado de trabalho competitivo.
Essa reforma separou, por um longo tempo, os trabalhadores da assistência social
e, por conseguinte, dos indigentes, o que fomentou a identificação de classe, pois,
segundo Polanyi (2000, p. 105), “Se a Speenhamland Law impedira a emergência
de uma classe trabalhadora, agora os trabalhadores pobres estavam sendo forçados
nessa classe pela pressão de um mecanismo invisível”.
Em que pesem as críticas à Speenhamland Law e à Poor Law nas suas
diversas versões, o certo é que o visível agravamento do pauperismo tem em sua
origem um outro determinante: a embrionária formação do processo de desemprego
invisível, que, por sua vez, confluiria para o que Engel e Marx denominaram mais
tarde como “exército industrial de reserva”. E, indubitavelmente, o enfrentamento as
suas conseqüências mais visíveis (em especial as violências urbana e rural) fez-se
necessário como medida de manutenção da ordem e coesão social. Daí porque,
inicialmente, a Poor Law se constituiu mais em auxílio e menos numa ameaça para o
Capitalismo, como já demarcado, o que se evidencia no apoio de alguns ícones do
pensamento emergente às medidas de cunho social, como Paine, Owem e
Bentham.
Este último, Jeremy Bentham, tornou-se o mais célebre dos projetistas sociais
do séc. XVI ao propor a industry-house (casa de indústria, literalmente) na qual os
desempregados eram comercializáveis segundo sua classificação, que poderia ser:
mão-de-obra fora do lugar (os recentemente demitidos em função de trabalho
sazonal); mão-de-obra superada (aquela descartada em função da tecnologia) e
mão-de-obra dispersa (a não adaptada ou em fase de transição entre trabalho rural
e trabalho urbano). O Plano Panopticon (1794), de autoria de Bentham, no qual era
detalhado o funcionamento da industry-house, foi adotado e passou a constituir a
Poor Law Reform, sob o argumento de proporcionar trabalho aos desocupados. Mas
os principais beneficiados eram os membros de “[...] uma comissão central
localizada na capital, seguindo o modelo da comissão do Banco da Inglaterra, e
tendo direito a voto todos os membros que possuíssem ações no valor de cinco ou
dez libras.”(Polanyi 2000, p. 132).
Já Tom Paine notabilizou-se como defensor do princípio da liberdade, pelo
qual lutou na revolução norte-americana e na Revolução Francesa. Pleiteava a
igualdade entre homens e mulheres e o sufrágio universal, e neste sentido foi autor
65
de panfletos e periódicos em linguagem popular. Na área social, Paine elaborou um
proposta tributária redistributiva, com base no estabelecimento do imposto
progressivo sobre todas as propriedades que rendessem mais de 5.000 libras por
ano, que reverteriam em
[...] uma renda de quatro libras por ano para toda criança com menos de 14 anos e uma pensão de seis libras a todos com mais de cinqüenta anos. Um beneficio à maternidade por filho também poderia ser instituído e um grande valor residual poderia ser aplicado em um sistema nacional de educação e para promover o trabalho aos desempregados pelo Estado. (Cole; Postgate apud Singer, 2003, p. 220).
Além da tributação progressiva e redistributiva, Paine aventava a idéia de que
cabia ao Estado promover trabalho para os desempregados, o que consistia, além
de uma originalidade para a época, um contra-senso à lógica liberal da qual se
intitulava defensor. Mas suas reivindicações somente migraram do plano teórico
para o programático a partir do segundo quartel do séc. XX, primeiramente na
Alemanha de Bismark e, após, na Inglaterra, com a implementação do Relatório de
Beveridge. Mas do ponto de vista legal suas proposições foram encampadas pela
Constituição Francesa de 1793, da qual foi protagonista. Seu legado produziu
algumas “transgressões sociais” para a época, como as expressas nos artigos 21 e
22, que tratam do direito à educação e à garantia social. O primeiro definiu a
assistência pública como “[...] uma dívida sagrada. A sociedade deve aos cidadãos
mais desafortunados quer granjeando-lhes trabalho, quer assegurando-lhes meios
de existência se não tiverem meios de trabalhar.” O segundo artigo, por sua vez,
afirmava que “A instrução é necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com
todo seu poder o progresso da razão pública e por a instrução ao alcance de todos
os cidadãos.” Mesmo não vigorando, os dispositivos dessa Constituição lograram
influenciar a evolução dos direitos sociais dos séculos vindouros.
Robert Owel fundou, na segunda déc. do séc. XIX, o movimento social
denominado como owenismo que, segundo Polanyi (2000), se qualifica como uma
religião da indústria que tinha como portador a classe trabalhadora e como meta
uma nova sociedade, construída e baseada no esforço comum. Considerado o
primeiro industrial filantropo, Owel aplicou, na prática, as idéias de um pensador
liberal da época, William Godwin, segundo o qual o caráter dos homens, seus vícios
e maus hábitos, são formados pelos ambientes familiar e laboral. Para superar essas
más prerrogativas, propunha a educação e a justiça social (Singer, 2003), premissas
66
que levou a cabo no que foi a maior fábrica algodoeira da Inglaterra. Nesse
empreendimento, o industrial eliminou o trabalho infantil e proporcionou instrução
para os filhos dos trabalhadores, bem como moradias decentes e condições de
trabalho sem similar na época. Essas circunstâncias imprimiram maior produtividade,
mas não maiores salários (Polanyi 2000). Não obstante, a experiência inspirou
Owem a propor à Câmara dos Comuns um projeto instituindo as aldeias
cooperativas, financiadas pelo Estado. Tais aldeias produziriam para sua
subsistência e o excedente seria trocado com outras, sendo que parte do lucro teria
como finalidade amortizar o Capital e pagar os juros da dívida contraída com o erário
público. Sua proposta não foi aprovada, pois não era do interesse nem do Estado,
nem dos grandes proprietários, mas foi encampada, 120 anos depois, por Keynes,
em solo Inglês, que instaurou, na prática, o princípio do pleno emprego.
Para tanto, Kenes defendeu a tese de que o Estado deveria intervir nas fases
recessiva dos ciclos econômicos, forçando a taxa de juros para baixo (também
estimulando o investimento) e redistribuindo a renda, com o objetivo de estimular os
gastos de consumo. Outorgou ao Estado o papel de interventor e estabilizador da
economia nacional.
Mas antes de Keynes, e ainda no final do séc. XIX, mais exatamente em
1883, a Alemanha inaugurou uma série de medidas do que se convencionou
denominar “seguro social”, sob a tutela do estadista Otto Von Bismarck. A iniciativa
teve por objetivo enfraquecer as aspirações democráticas64 através da cooptação
dos trabalhadores, no que logrou êxito. As primeiras leis versavam sobre acidente e
adoecimento no trabalho; em seguida propôs e implantou legislações protetivas à
velhice e a invalidez. O sistema bismarckiano, de custeio tripartite (governo, capital e
trabalhadores), caracterizou-se pela cobertura tão somente daqueles inclusos no
mercado de trabalho formal, isto é, daqueles que contribuíam financeiramente. O
legado dos trabalhadores, por terem abdicado das aspirações democráticas, foi a
instituição do nacionalismo e do militarismo extremo em todos os âmbitos da
sociedade alemã, o que propiciou solo fértil para as idéias e práticas fascistas
vindouras.
64 Em 1875 os dois únicos partidos operários - marxista e lassaliano –unificaram-se e com isso iniciaram uma escalada progressiva no Parlamento, o que desencadeou uma série de medidas de contenção por parte do então Chanceler Otto Von Bismarck.
67
Entretanto, em que pese a tradição inglesa no âmbito de medidas de caráter
social, o primeiro país a implantar, programaticamente, no séc. XX, políticas de
seguro social foram os EUA, em 1935, através do pacto social chamado New Deal,
ou Novo Acordo. Premido pela depressão desencadeada com a crise capitalista de
superprodução65, que culminou com a queda da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, o
então Presidente Roosevelt implantou duas leis de proteção ao trabalho: (a) a Lei
Wagner, que autorizou os trabalhadores a se organizarem por meio de sindicatos e
(b) a Lei de Padrões Justos de Trabalho, que, entre outros, fixava a jornada de
trabalho, proibia o trabalho infantil e fixava o salário mínimo. Complementarmente a
essas duas leis, implantou também uma legislação de seguro social, a célebre Social
Security Act. Desde então, todo cidadão norte-americano, concomitantemente ao
registro de nascimento, tem seu registro na Seguridade Social, o que lhe garante
contra os riscos sociais em geral. Na sua origem, tal seguro teve ampla cobertura,
visto que o desemprego alcançava patamares de 27% (Hobsbawm, 1995, p. 96),
mas cabe destacar que, hoje, o modelo de seguridade social norte-americano é de
natureza residual, uma vez que tem por foco exclusivo a população em risco social e
não a População Economicamente Ativa, a qual resta, como única alternativa, a
proteção social da iniciativa privada.
A percepção de catástrofe e descontrole por conta do desemprego, do
colapso dos preços, do comércio internacional (este último caiu 60%) e o fantasma
do socialismo real, ativado pela Revolução de 1917, na Rússia, incidiram
pesadamente sobre os políticos e economistas do novo e do velho continente,
gerando uma urgência de respostas estatais, agora não mais baseadas no sistema
da economia liberal. Em outros termos, “A grande Depressão obrigou os governos
ocidentais a dar às considerações sociais prioridade sobre as econômicas em suas
políticas de Estado.” (Hobsbawm, 1995, p. 99) Nessa corrida, os EUA e a Alemanha
precederam a Inglaterra na implantação de um plano de seguro social, mas a
experiência inglesa foi a que melhor instaurou as idéias do Relatório Beveridge,
65 Segundo Hobsbawm (1995, p. 96-97) o que se observou foi “(...) uma crise na produção básica, tanto de alimentos quanto de matérias primas, porque os preços, não mais mantidos pela formação de estoques como antes, entraram em queda livre. (...) Em suma, tornou a depressão global no sentido literal. (...) Para aqueles que, por definição, não tinham controle ou acesso aos meios de produção (a menos que pudessem voltar para uma família camponesa no interior), ou seja, os homens e mulheres contratados por salários, a conseqüência básica da Depressão foi o desemprego em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais tempo do que qualquer um já experimentara.”
68
produzido entre 1941 e 1942 por uma comissão coordenada pelo Lorde William
Beveridge, e que também serviu de inspiração à proposta de Roosevelt (EUA).
Os princípios pautados no Relatório Beveridge consagravam: (a) a
universalidade da cobertura social; (b) a unicidade administrativa; e (c) a
uniformidade do atendimento independentemente do nível de renda (Singer, 2003).
Esses princípios nortearam o grande pacto social inglês que legitimou o
denominado Welfare State, ou Estado de Bem Estar Social, e produziu um
rompimento com a tradição de atender apenas a alguns segmentos populacionais ou
de focar a seguridade social apenas nos grupos mais vulnerabilizados. Esse
referencial, portanto, se constituiu como um novo paradigma: o social como direito.
Hobsbawm (1995) refere que frente à turbulência econômica e política do
entre-guerras, e à eminente crise operária, o capitalismo precisou apelar e/ou aceitar
medidas interventivas do Estado no âmbito da econômico e da sociedade, algo que
ele sinalizou como muito próximo do fascismo. Tal argumento dá vistas a um dos
aspectos centrais que promoveram as políticas de corte social: o político, expresso
no temor do Estado Capitalista frente a alternativa do socialismo. Nesse sentido, o
Estado de Bem Estar Social serviu, também, como uma recompensa aos
trabalhadores pela renúncia à luta de classes. Assim, o pacto social que deu
sustentabilidade a esse Estado condensou interesses dos capitalistas sim, mas
também os da classe trabalhadora que, pela primeira vez, chegava à esfera pública
em condição similar a dos proprietários. Esse fenômeno se espalhou pelo antigo
continente, instaurando uma série de medidas que permitiram aumentar o tamanho
do andar inferior da pirâmide social capitalista (política do pleno emprego), bem
como propiciar melhoras nas suas condições (de saúde, formação e manutenção),
mas não alterou o seu lugar, que continuou sendo o porão, e tampouco a hierarquia
e os privilégios dos andares superiores.
Quanto às melhorias, vale ressaltar aquelas preconizadas pela Declaração da
Filadélfia (1944), considerada a primeira manifestação internacional a elevar os
direitos sociais ao nível dos direitos humanos, isto é, como objeto programático da
gestão pública estatal, expresso na exigência do “[...] pleno emprego e elevação
dos padrões de vida; extensão da seguridade social para promover uma renda
básica a todos que tenham necessidade de tal proteção e cuidado médico integral”.
Somente 22 anos após, em 1966, a sociedade Capitalista constituiu uma outra
69
proposta de pacto social do porte dessa Declaração: o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Mas sua elaboração e, principalmente, sua
publicização, ocorreu em meio à disputa ideológica acerca do conteúdo dos direitos
humanos, no período que se convencionou chamar de Guerra Fria. De um lado
estavam as forças liberais mais ortodoxas, lideradas pelos países capitalistas de
centro (em especial os EUA), e de outro as forças socialistas e liberais de esquerda.
Essas últimas advogavam a apresentação de um único pacto, no qual estivessem
resguardados todos os direitos humanos, inclusive aqueles de foro social, ao que se
opunham os liberais ortodoxos, que acabaram por vencer o pleito. Os direitos
sociais, limitados ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ganharam
em conteúdo66, mas perderam em relevância, uma vez efetivada a sua separação do
escopo dos direitos civis e políticos, cuja longa trajetória e tradição amealhou não só
reconhecimento como mecanismos concretos para sua efetivação.
Mas essa maioridade dos direitos sociais seria logo abalada por mais uma
das violentas crises periódicas do sistema capitalista, para a qual os liberais
atribuiriam como uma das principais culpadas a institucionalização desses direitos.
Milton Friedman, teórico do monetarismo (vertente do liberalismo diametralmente
oposta ao Estado de Bem Estar Social), foi um dos ícones desse movimento, que se
denominou neoliberalismo. Antes de analisar essa reviravolta no âmbito dos direitos
sociais, é importante destacar algumas de suas características que os fragilizavam,
segundo Castel (1998, p. 500- 512).
Seu caráter intermediário: apesar dos avanços significativos, registrados no
30 anos após a segunda grande guerra, a democracia nunca foi uma prática na
empresa, visto que mesmos os sindicatos não tiveram papel de decisão sobre a
política geral das empresas. Nesse universo e nessa conjuntura, a classe
trabalhadora estava “virtualmente vulnerável”, sem o saber, pois “[...] seu destino
estava concretamente ligado à busca de um progresso do qual não controlavam
nenhum dos parâmetros.”(p. 503);
As ambigüidades das conquistas sociais: aqui a crítica recai sobre o
“preço” pago pela segurança e pelo conforto propiciados pelo Estado Social e sua
66 São 31 artigos que tratam não só do conteúdo e da natureza desses direitos, mas também da vigilância dos mesmos, para o que institui comitês e tribunais específicos, e da responsabilidade dos estados nacionais para sua efetividade.
70
gestão tecnocrática, cuja mais importante inflexão foi a despolitização da
sociedade. Contra o “torpor” da vida cotidiana, onde tudo parecia estar decidido
antecipadamente, insurgiram-se os movimentos sociais das décadas de 60 e 70,
que denunciavam a “[...] responsabilização dos atores sociais anestesiados pelas
formas burocratiza e impessoais de gestão do Estado Social”(p. 505);
As contradições dos Estados Sociais: ao mesmo em tempo que nivelava o
“sujeito portador de direitos” a um coletivo abstrato, os serviços estatais produziam
uma ruptura deste com as formas e redes de pertencimento concreto, a começar
pelas solidariedades elementares de vizinhança. Os perigos dessa dependência se
evidenciaram a partir do momento em que o poder público passou a ter dificuldades
de promover a proteção individual, devido, em parte, a uma crise fiscal do Estado.
Essa crise foi promovida, por seu turno, por um processo global de
transformação do modus operandi do sistema capitalista (do modelo de produção
em alta escala –fordismo – para o modelo de produção flexível – toyotismo), bem
como de acumulação (do capital produtivo para o financeiro). Com isso, interrompeu-
se a trajetória de consolidação dos direitos sociais, visto que esses estavam
diretamente relacionados com a condição de assalariamento massivo. Ora, no
Brasil, onde que sequer havia sido instalada a política de pleno emprego, a então
recente conquista no plano do ordenamento jurídico desses direitos (CF 1988) foi
solapada mesmo antes de se institucionalizar, sob argumentos de base neoliberal67.
Os princípios das propostas de cunho neoliberal foram implantados,
paulatinamente, nos países de capitalismo avançado, a partir da década. de 70, e
nos anos 90 nos paíacionais financeiras. O Consenso de Washington configurou-se
como um pacote de medidas de reformas econômicas, consensuadas em 1989, na
Cidade de Washington, entre os organismos financeiros internacionais – Fundo
Monetário Internacional e Banco Mundial –, com o respaldo do Tesouro dos Estados
Unidos para os países que pretendessem acessar recursos externos e/ou rolar suas
dívidas com o aval desses organismos (Birdsall, La Torre, 2001, p:11). Tais medidas
se faziam necessárias, segundo seus afiançadores, para reverter o quadro da
estagnação econômica que assolava tanto os países desenvolvidos quanto os em
67 Doutrina econômica que defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e, ainda assim, num grau mínimo.
71
desenvolvimento e subdesenvolvidos, desde o início dos anos 70. Constituído por 10
princípios de orientação liberal, esse pacto tinha por foco a soberania do mercado
auto-regulável, através da macroeconomia, da economia de mercado, da abertura
comercial e da reforma do Estado (Baptista, 1994). Como já salientei, essa reforma
situou-se, em grande escala, na redução do Estado e no alargamento do mercado
para aquelas áreas até então livres da mercantilização: a das políticas de corte
social.
A partir de então, a condução do social, mais que partilhada com
organizações não governamentais (incluindo-se aí as organizações de mercado),
passou a ser objeto das mesmas, na medida exata em que se tornou subsidiária a
ação estatal. Isso imprime algumas perspectivas futuras para o trato do social, e
dentre elas a gestão da responsabilidade social corporativa, próximo foco de análise.
O objetivo deste capítulo foi o de examinar um dos padrões de resposta da
sociedade moderna às ameaças de ruptura que a Questão Social lhe impõe - os
pactos sociais. Estes, para serem legitimados, usam como recurso a esfera pública,
haja vista que o ordenamento jurídico, um dos suportes principais da doutrina liberal,
tem como mediação a publicização ativa que é o processo de tornar público, na
forma de representação, os interesses divergentes, para que possam ser
confrontados e negociados. Mas, para Montaño (2002:45) nada mais é, na ordem
contemporânea, do que uma estratégia de “[...] transferência de questões públicas
de responsabilidade do Estado” para a sociedade civil (as organizações sociais, para
o autor, e as organizações de mercado, para a presente tese).
Entretanto, para melhor adentrar nos liames do que seja o conteúdo dos
pacto s sociais contemporâneos analisados68 (séc. XXI), cabe antes destacar duas
categorias (teóricas e práticas) com as quais o pensamento liberal opera no sentido
de garantir sua legitimidade e reprodução: governança e governabilidade. Essa
ênfase na forma e na condução parece indicar que, na esfera pública
contemporânea, dado o estágio atual das forças produtivas, o que se observa é o
deslocamento, nos pactos sociais que aí se engendram, da disputa e do confronto
entre os diferentes interesses para a preocupação com a forma, ou, em outros
termos, a ênfase se desloca do “o que”e “para que” na direção do “como”, em um
68 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Declaração de Independência dos Estados Unidos da América e a Declaração dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
72
claro processo de instrumentalização69 e esvaziamento político dessa esfera, seus
produtos (pacto s) e o conteúdo dos mesmo.
69 No sentido de tornar a área social funcional aos interesses e sistema capitalistas, como será mais aprofundado no próximo e último capítulo.
73
5 O CONTEÚDO: O SOCIAL E SUAS OBJETIVAÇÕES
Por conteúdo, estou aqui me referindo à substância, à materialização de
determinado conceito, categoria ou objeto. Em se tratando do social, e considerando
o conceito do termo aqui adotado70, entendo que seu conteúdo compreende toda
sorte de bens, serviços e espaços de participação necessários e indispensáveis ao
pleno desenvolvimento das capacidades humanas, bem como ao enfrentamento das
desigualdades sociais. Esses bens, serviços e espaços de participação, por sua vez,
constituem e ganham materialidade como tal nas políticas sociais que, por seu turno,
expressam a intencionalidade de dada sociedade em relação à distribuição do poder
e da riqueza socialmente produzidos. Do ponto de vista strictus senso do liberalismo,
o conteúdo do que é próprio do social tem se restringido, via de regra, a quatro
áreas específicas, quais sejam: (a) geração de trabalho; (b) transferência ou
complementação de renda mínima; (c) saúde e; (d) educação e formação
profissional. Um dos objetivos deste último capítulo é verificar essa assertiva,
através da análise de duas áreas, saúde e educação, pois são elas as que mais
contribuem diretamente para a expansão do capitalismo, ao garantirem as condições
minimamente necessárias para a reprodução e a qualificação da mão-de-obra,
favorecendo sua governança - sustentabilidade. Da mesma forma, ambas também
contribuem para a governabilidade - legitimidade do Estado -, uma vez que a
educação se configura, especialmente, como espaço privilegiado de difusão e
assimilação da ideologia hegemônica; a saúde, por sua vez, incorpora o conjunto de
práticas que convergem para o controle e o disciplinamento dos corpos, pois, nos
termos de Foucalt (1999, p. 80),
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade Capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política.
70Não é o objetivo deste capítulo explorar como o materialismo-histórico tem tratado e definido o conteúdo do social; contudo, para efeito de demarcação do que compreendo como tal, cabe a seguinte enunciação: o social é o campo político das necessidades humanas que diz respeito à produção e à reprodução social, e que se objetiva através da redistribuição e do usufruto de bens e serviços produzidos pela sociedade. Nessa ótica, seus produtos têm a qualidade de “direitos” ,que, por sua vez, respondem as necessidades reais e historicamente situadas, que exigem a solidariedade social e obrigações positivas do Estado.
74
Mas, antes mesmo de servir ao capital, na qualificação da força de trabalho
para as necessidades das indústrias, Foucalt argumenta que a saúde serviu como
qualificação da força do Estado, isto é, “[...] dos indivíduos e enquanto constituem
globalmente o Estado.” (Idem, p. 84). Em outros termos, essa medicina estava a
serviço do Estado, uma vez que o cidadão se constituía, em última instância, na
força de defesa das fronteiras e dos conflitos políticos.
A fim de contribuir para uma melhor análise dessas duas políticas sociais que
dão conteúdo e materialidade ao social, entendo importante evidenciar duas
categorias que conferem sustentabilidade ao modus operandi capitalista e ao Estado
contemporâneo: governabilidade e governança. Tais categorias (que são
pressupostos de práticas) formatam não só as diretrizes econômicas e políticas, mas
também as sociais, “contagiando” o conteúdo destas últimas com sua lógica
pragmática71. Por último, pretendo explicitar uma das formas como hoje (primeira
década do séc. XXI) a sociedade capitalista vem respondendo às demandas de
âmbito social: a responsabilidade social corporativa. Com isso pretendo evidenciar:
(a) que independentemente do período histórico, a retórica liberal continua a
conduzir o conteúdo das políticas e das práticas sociais, e, (b) que produzir e
oferecer bens e serviços sociais, mais que uma opção, é uma condição vital para a
reprodução do sistema Capitalista.
5.1 GOVERNABILIDADE E GOVERNANÇA – OU CAPACIDADE POLÍTICA E
ECONÔMICA
É sabido que na área das disciplinas humano-sociais consenso não é um dos
predicados recorrente aos conceitos e as categorias teóricas que lhes dão
sustentação, atualização e legitimidade. Em outros termos, a semelhança e a
homogeneidade de nomenclatura – forma – não se fazem necessariamente
acompanhar em termos de significado de conteúdo, emergindo, assim, as
ambigüidades conceituais. Daí a imprescindível delimitação conceitual como recurso
para a explicitação das categorias em tela – governança e governabilidade.
Inicio a delimitação conceitual da categoria governança com Rosenau (2000),
autor de Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial, na qual o autor
75
alerta para a existência de formulações que concebem governança em termos
exclusivamente funcionais, como tarefas a serem executadas no intuito de assegurar
a rotina necessária à manutenção de uma ordem instituída. Da mesma forma,
observa que existem formulações outras que associam governança à capacidade de
regulação dos diversos procedimentos de um processo determinado no sentido de
torná-los rotineiros. Outrossim, Rosenau destaca que o conceito de governança
pode ser associado unicamente às circunstâncias e às condições em que o poder é
exercido, independentemente de autoridade governamental. Ainda segundo ele,
governança é também identificada como sistema de regras e recursos para
solucionar problemas. Em que pese o recurso ao reducionismo, é possível, a partir
dos conceitos acima, destacarem-se duas características recorrentes às diversas
concepções: (a) a dimensão instrumental e (b) a perspectiva de que governança,
enquanto um conjunto de regulações rotineiras estruturadas, prescinde de um
governo nacional, ou autoridade central, mas não de um consenso que leve à
adesão às regras e à introjeção destas como justas e fundamentais.
Ora, se cabe afirmar que a governança prescinde de autoridade central –
governança sem governo72 – não cabe inferir que esse mecanismo prescinde de
“ordem”, (Rosenau, 2000). No âmbito da esfera da regulamentação econômica, a
ordem constitui-se a partir de acordos (no sentido de pacto s) sobre as regularidades
que incidem sobre a política mundial como, por exemplo, livre mobilidade do capital,
tendência de equalização de impostos, etc. Esses regramentos tanto podem ser
resultado de planejamento sistêmico como podem ser acordados contingencialmente
para responder a problemas emergentes. É no cruzamento dessas duas formas que
se instituem os mecanismos de governança contemporâneos, sempre no intuito de
otimizar e garantir a sustentabilidade de um sistema de mercado em concorrência
imperfeita, regulamentando minimamente as atividades que ultrapassam as
fronteiras nacionais.
Do ponto de vista social, existem critérios de governança que zelam pela
procedência dos produtos e dos processos de produção e distribuição de produtos e
mercadorias, a partir, por exemplo, de critérios de “justiça internacional” fundados
em pacto s produzidos no âmbito da Organização das Nações Unidas (OIT,
71 Concepção que valida e legitima uma ação em função de sua eficácia. (Russ, 1994, pág. 225).
76
UNICEF, OMS73). São regras que prevêem sansões (como embargo comercial, por
exemplo) aos países e às empresas que cometem infrações no âmbito da saúde, do
trabalho e da infância e adolescência. Convém lembrar que o cumprimento desses
critérios também beneficia as corporações privadas, pois agrega valor “moral” aos
produtos e serviços, que, em última instância, se constitui como um diferencial
competitivo.
Cabe,novamente destacar que governança é uma categoria teórica e
instrumental não restrita à política estatal ou as áreas temáticas internacionais.
Scherer (s/d), por exemplo, a problematiza no universo das empresas corporativas.
Em seus estudos identifica dois conceitos para o termo: um que o projeta como “[...]
processo social que determina a alocação dos recursos e dos investimentos.”
(Lazonick; O’Sulllivam apud Scherer, p. 04, s/d.); e outro que o compreende como
“[...] modo pelo qual os financiadores das empresas podem se assegurar de receber
um retorno sobre seus investimentos.” (idem, p.03, s/d). Nos dois conceitos,
evidencia-se, novamente, a natureza instrumental da governança como mecanismo
regulatório e prescritivo de operar com foco na eficiência e rentabilidade (segundo
conceito) e na eficiência e efetividade (primeiro conceito).
Para efeito da presente tese, governança - no âmbito da gestão pública
estatal - é compreendida como um sistema de coordenação que articula estatutos
formalmente instituídos e interesses intersubjetivos74 de determinados segmentos.
Tais estatutos – normas, legislações e procedimentos – expressam os interesses em
litígio, mesmo que de forma assimétrica. É exemplo de ordenamento jurídico o
arcabouço legal que disciplina a relação entre o Estado e as diversas organizações
privadas que executam ações de provimento de bens e/ou serviços sociais. A Lei
Federal nº. 8.742, de dezembro de 1993, nos artigos 3 e 7, define:
art. 3 – Consideram-se entidades e organizações da assistência social aquelas que prestam, sem fins lucrativos, atendimentos e assessoramento aos beneficiários abrangidos por essa Lei, bem como as que atuam na defesa e garantia dos direitos.
72 Conceito aprofundado na obra Governança sem Governo – ordem e transformação na política mundial, de Rosenau, J. et al, 2000. 73 Organização Internacional do Trabalho, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura e Organização Mundial da Saúde. 74 Por intersubjetividade, entende-se a cooperação entre atores governamentais e não-governamentais em prol de interesses partilhados, que justificam, assim, a assunção de princípios, normas e procedimentos que projetem eficácia e coerência aos regimes implicados (políticos e econômicos, nesse caso específico).
77
art. 7 – As ações de assistência social no âmbito das entidades e organizações de assistência social, observarão as normas expedidas pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS.
A referida Lei, nos artigos citados, ao mesmo tempo em que condiciona as
ações das organizações sociais no âmbito da gestão pública, abre espaço para as
organizações de mercado e suas práticas de ativismo social75, uma vez que se
ocupa em qualificar as entidades e organizações de assistência social, mas não
referencia que as ações dessa área serão unicamente executadas por elas. Além
disso, abre espaço para que também o capital estenda ao social sua natureza
mercantil, transformando os serviços e aos produtos sociais em algo a ser comprado
e vendido no mercado e/ou em argumento de legitimação - governabilidade -
expresso contemporaneamente no discurso da responsabilidade social.
São, ainda, exemplos de ordenamento jurídico de governança todas as
normas pactuadas entre Estado e organismos internacionais de cooperação
financeira que incidem sobre a condução das políticas sociais no âmbito estatal. Os
diversos acordos assinados pelo Governo brasileiro com o Fundo Monetário
Internacional apresentam diretrizes para os investimentos da área social. A título de
exemplo, a seguir, apresento o Memorando de Política Econômica, elaborado pelo
Governo Federal, em março de 1999, no qual presta contas ao Comitê do Fundo
Monetário Internacional sobre a política de reajuste fiscal
O Governo logrou inicialmente implementar com sucesso os elementos do pacote fiscal que constituíam o núcleo do seu programa. Antes da aprovação do arranjo stand-by pela Diretoria Executiva do FMI em 2 de dezembro de 1998 o Governo havia promulgado ou conduzido pelos trâmites legislativos a emenda constitucional relativa à reforma da seguridade social bem como uma medida visando aumentar a alíquota da COFINS – uma contribuição vinculada calculada com base no giro das empresas. 76
O texto acima expressa um dos “acordos” formatados no final do séc. XX –
década de 90 – para o alinhamento dos países ditos subdesenvolvidos e em
desenvolvimento aos parâmetros internacionais de governança no âmbito das
políticas sociais: a reformulação dos sistemas de previdência na direção de mínimos
sociais77. Essa perspectiva justifica, sob o discurso da eqüidade, o abandono de
75 Conceito será melhor explorado no último item do presente capítulo. 76 Disponível em http://www.fazenda.gov.br/portugues/fmi/fmimpe02.asp. Acessado em 15/10/2006, às 14:00h. 77 Referencio o conceito de mínimos sociais em Potyara Pereira, que os apresenta “(...) com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social.”(2000, p. 26).
78
políticas sociais distributivas e universais em favor das políticas sociais focalizadas,
apoiadas no princípio da eficiência – fazer pouco, mas fazer bem.
O que não se pode esquecer é que a justificativa de mudança nos critérios de
condução daquilo que é público (nesse caso, as políticas sociais), com base na
capacidade de governança, tem por base o discurso de satanização do Estado -
denunciado como ineficiente do ponto de vista administrativo e incompetente do
ponto de vista fiscal -, em contrapondo à santificação da sociedade civil
(transmutada em terceiro setor) ágil, eficiente e democrática (Montaño, 2002), como
bem expressa o ex- Ministro Bresser Pereira, responsável pela projeto de Reforma
do Estado Brasileiro, em marcha desde 1990:
Minha convicção é de que os serviços sociais e científicos são realizados com mais qualidade e eficiência por organizações públicas não estatais, que além disso garantem mais liberdade a seus membros, ao passo que a produção de bens e serviços controlados pelo mercado, que não necessitam de subsídio estatal, são melhor executados pelo setor privado. (Pereira, 1999: 91)
Na perspectiva de Bresser, governança equivale à capacidade financeira e
administrativa de um governo, efetivamente, implementar políticas e realizar
decisões; e é com base nessa concepção reducionista que ele faz a crítica ao
Estado, desconsiderando todo o cenário de reestruturação produtiva internacional
que se instalou nas três últimas décadas do séc. XX, e que legou ao Estado uma
crise fiscal provocada pela renúncia e pela evasão fiscal, compromisso prioritário
com o pagamento dos serviços das dívidas interna e externa; subvenções e
empréstimos ao capital produtivo e comercial, dentre outras medidas favoráveis ao
mercado,
Em relação à delimitação conceitual da categoria governabilidade, inicio
descortinando o fenômeno que a colocou na agenda oficial: o discurso da ameaça
de ingovernabilidade, que rondou os países em desenvolvimento e
subdesenvolvidos, no fim do séc. XX. Os organismos financeiros internacionais e os
bancos centrais das principais economias capitalistas anunciavam que esse quadro
poderia ser revertido desde que se adotasse a racionalidade política, que implicava
a primazia do pagamento da dívida externa e o retorno às moedas estáveis. Sob
essa perspectiva, nenhum sofrimento particular, e mesmo nenhuma violação de
soberania nacional, eram considerados um sacrifício demasiado para o alcance da
integridade financeira. Com isso, o debate público brasileiro sobre governabilidade,
79
principalmente no final dos anos 80 e ao longo dos 90 do séc. XX, teve como tem
central a reconstituição das instituições de mercado, nutrido pelas reformas de
matriz neoliberal.
O papel ativo das agências multilaterais “[...] potencializou a visibilidade
pública do debate em torno das vicissitudes dos arranjos institucionais que suportam
os sistemas produtivos” (Rosenau, 2000, p.29). Dentre os arranjos institucionais
possíveis, ganharam destaque a democracia, como única forma possível de
eficiência administrativa, política e econômica, e a subsidiariedade do Estado78 como
princípio organizador das questões locais (sociais, econômicas, culturais). Nessa
linha, Bresser Pereira (1999) define governabilidade como a capacidade política de
governar em um ambiente no qual a legitimidade desse mandado é prerrogativa da
sociedade, constituindo-se em regimes nos quais há amplo espaço para a
intervenção da sociedade. Intervenção esta no campo da publicização, concebida
como o processo de transferência, para o setor público não-estatal, os serviços
sociais e científicos.
Resumindo, a sociedade globalizada do final do séc. XX, em especial, a
parcela denominada como em desenvolvimento e/ou subdesenvolvida, foi conduzida
a uma reestruturação econômica e social, capitaneada pelos Estados Nacionais,
cuja tarefa mais premente era a sua própria reforma, nos marcos dos princípios da
governabilidade e da governança, uma reforma orientada para o livre-mercado de
concorrência imperfeita, que exigia um Estado mínimo. Dentre as medidas adotadas
nessa reestruturação econômica, interessa aqui a redelimitação das suas funções,
como forma de reduzir seu tamanho, seja em termos de pessoal, seja em termos de
iniciativas consideradas como de natureza privativa. Premidos pela ameaça da
ingovernabilidade, os governos nacionais iniciaram programas de privatização,
terceirização e publicização de práticas antes quase circunscritas ao setor público
estatal, como já foi algumas vezes demarcado ao longo desta tese.
Essa necessidade de governabilidade é também fundamental no âmbito da
economia, devido a sua atual configuração (de concorrência imperfeita
transnacionacionalizada), que instaura a insegurança, ao romper com a forma
78 No sentido de auxiliar, complementar, mas não protagonizar.
80
política (social-democracia79) e de produção (taylorismo / fordismo) que sustentavam
a sociedade salarial e os sistemas de seguridade social conquistados no séc. XX. É
nesse cenário que o “interesse” pelas necessidades e demandas sociais, por parte
do empresariado, ganha utilidade política, pois divorcia as desigualdades sociais do
mercado, e dá legitimidade às empresas, ao melhorar a sua imagem, a qual,
supostamente, colabora para a manutenção da paz social (mas de fato, o que busca
é a coesão com vista a sua própria manutenção).
Após essas digressões acerca dos dois princípios que orientam a gestão
pública80 e privada contemporâneas (séc. XXI), bem como sobre os pactos sociais
que os legitimam, retomo a História com a finalidade de evidenciar os fundamentos
liberais que informam quais os conteúdos ideais e os pertinentes ao social (e as
suas respectivas políticas).
5.2 VARIAÇÕES SOBRE OS TEMAS – SAÚDE E EDUCAÇÃO
No âmbito das práticas e dos produtos sociais, muito se tem realizado e
produzido ao longo da trajetória da sociedade moderna, como já oportunamente
destacado. É possível afirmar que a sociedade moderna já tem constituído um
arcabouço de experiências do ponto de vista quantitativo e também do qualitativo. A
passagem histórica da Idade Média para a I Moderna contou, em larga escala, com
esse recurso, como as já referidas casas de trabalho (workhouse) e os sistemas de
abono (Speenhamland). Mas, em sua maior parte, a finalidade desses
investimentos, nos períodos citados, voltava-se mais ao provimento de condições
mínimas de subsistência, como forma de controle da população, do que como
afirmação de direitos. Não obstante, tais provimentos serviam mais à emergente
79 As propostas e programas social-democratas, que sustentaram os Estados de Bem Estar Social das economias centrais após a segunda guerra (Europa e EUA), tinham por base a participação ativa do Estado, que utilizava seus recursos e autoridade para manter estável os mercados, intervindo na economia e na regulação social. (Johnson, 1997). 80 No Rio Grande do Sul o Programa de Governo da Governadora Ieda Crusius, (gestão 2007-11) é uma clara evidência da forma de gestão contemporânea da área social, com sua forte ênfase no ajuste fiscal e na modernização da gestão pública. Organiza-se na lógica de Programas Estruturantes, que “[...] são projetos multissetorais que contemplam ações imprescindíveis ao crescimento do Estado e à melhoria da qualidade de vida de povo gaúcho. Os programas estruturantes equivalem a projetos de modernização para o Rio Grande do Sul. São pautados por transparência, ética e participação popular e têm a inovação como uma de suas principais marcas. Muitos concretizam-se por meio de parcerias público-privadas e contam com participação do terceiro setor da formação de redes solidárias. Disponível em ” http://www.estado.rs.gov.br/. Acessado em 13/03/2008, as 19:00h.
81
classe burguesa (proprietários industriais e rurais, mercadores) e ao Estado
Absolutista do que aos beneficiários, uma vez que criavam as condições necessárias
para o desenvolvimento das forças produtivas81 e a governabilidade dos nascentes
Estados nacionais. Também a decadente elite medieval (clero, latifundiários e
nobreza) beneficiava-se com as medidas de caráter social, uma vez que, através
das mesmas, logravam adiar as transformações econômicas e sociais em marcha
(Polanyi, 2000).
Com o avanço do ideário liberal e do capitalismo como sua objetivação
econômica e social, os serviços e produtos sociais passaram à condição de
“subsidiários” do desenvolvimento. Ou seja, tornaram-se recursos de qualificação e
sustentabilidade do mesmo, e, sobre esse aspecto, cabe destacar o papel das
políticas públicas de educação e da saúde. Isto porque essas duas áreas incidem,
de forma positiva, na qualificação e na reprodução da força de trabalho.
Do ponto de vista legal, a ascensão das práticas sociais assistencialistas e
corretivas para o patamar de direito normativo, isto é, para a condição de direito
reconhecido socialmente e garantido e/ou subsidiado pela ação estatal, teve início
com a vinculação desses às cartas magnas, ainda no séc. XVIII. Esse processo foi
tímido inicialmente, limitando-se a ser objeto de um ou dois artigos (Quadro 1).
Conforme o modo de produção capitalista se expandia, também se expandiam as
suas contradições, como as desigualdades sociais e suas correlatas formas de
resistência - como as pressões do movimento operário por melhores condições de
vida e repartição da riqueza produzida. Por outro lado, a perspectiva de um outro
projeto societário - comunismo - projetou esses direitos a uma trajetória ascendente,
que culminou com o seu resguardo em inúmeras cartas magnas (México, Alemanha,
Brasil) constituídas na primeira metade do séc. XX. Pretendo, aqui, dar visibilidade à
trajetória desses direitos sociais, através da sua veiculação legal, mas não me
restringirei a ela, visto que os compreendo como produtos de processos sociais que
precedem as cartas constitucionais.
No âmbito da educação e da formação profissional, merecem destaque as
propostas do movimento owenista (séc. XIX), que defendia a educação (dos
trabalhadores e familiares) como um dos seus princípios básicos, por crer que
81 Termo da economia marxiana que compreende os recursos humanos (como agentes) necessários à produção, que exercem influência direta sobre a natureza. (Larousse, vol. XX, 1999, pág. 2551).
82
A educação de crianças e dos adultos, a provisão do lazer, da dança e a música e a suposição geral de uma moral elevada e padrões pessoais para velhos e jovens criavam a atmosfera na qual a população industrial como um todo atingia um novo status. (Polanyi, 2000, pág. 206).
Como um dos subprodutos desse novo status, amplio-se a produtividade, pois
preparava mão-de-obra qualificada para operar equipamentos cada vez mais
sofisticados. A Inglaterra foi o berço desse movimento, mas as iniciativas e as
exigências na área da formação profissional não se restringiram nem a esse país e
tampouco são creditadas todas ao movimento owenista. Nesse sentido, cumpre
destacar as conquistas promovidas pelas revoluções de 184882, especialmente na
França e Alemanha, como a garantia de alguma educação para os trabalhadores
que, em última instância, os capacitou para melhor operarem as tecnologias
emergentes na época. Menos de um século depois, em 1908, na Inglaterra, passou
a vigorar uma lei que regulamentava o trabalho de escolares, com vistas a garantir e
proteger a formação profissional, inaugurando o que, mais tarde, ficaria conhecido
como seguridade social (Singer, 2003). A partir de então, a preocupação com a
formação profissional foi recorrente, tendo os Estados nacionais assumido, em
grande parte, essa responsabilidade, visto que foi surpreendente “[...] o crescimento
de ocupações que exigiam educação secundária e superior. A educação primária e
universal, isto é, a alfabetização básica, era na verdade a aspiração de todos os
governos.” (Hobsbawm, 1995, p. 289).
O Quadro 1, contém algumas das primeiras garantias sociais na área da
educação e formação, que são contemporâneas às revoluções francesa e a norte-
americana e que, portanto, receberam forte influência do ideário liberal.
82 Também chamadas de Primavera dos Povos, tais revoluções, de caráter liberal democrático e nacionalista, eclodiram na Europa Central e na Ocidental em função de regimes governamentais autocráticos, crises econômicas, falta de representação política das classes burguesas; foram iniciadas por membros da burguesia e da nobreza que exigiam governos constitucionais, e por
83
Quadro 1
Evolução dos direitos relativos à educação nas primeiras constituições dos Estados
Modernos
Países Constituições Artigos
França Constituição de
03/09/1791
art.22º A instrução é necessidade de todos. A sociedade
deve favorecer com todo seu poder o progresso da razão
pública e por a instrução ao alcance de todos os cidadãos.
Espanha Constituição de
Cádis, de 19/03/1812
art. 366º Em todas as povoações da monarquia abrir-se-
ão escolas de primeiras letras, em que se ensinarão as
crianças a ler, escrever e contar e o catecismo da religião
católica, que compreendera, também, uma breve
exposição das obrigações cívicas.
art. 367º Também se determinará e criará o número
adequado de Universidades e outros estabelecimentos
que se julgue convenientes para o ensino de todas as
ciências, letras e belas-artes.
art. 368º O plano geral de ensino será uniforme em todo o
reino, e a Constituição Política da Monarquia devera ser
explicada em todas as universidades e estabelecimentos
literários em que se ensinem as ciências eclesiásticas e
políticas.
art. 370º As cortes regulamentarão, por meio de planos e
estatutos especiais, tudo quanto pertença ao importante
domínio da instrução pública.
Portugal Constituição de
23/09/1822
art. 237º Em todos os lugares do reino onde convier
haverá escolas suficientemente dotadas, em que se
ensine a mocidade portuguesa de ambos os sexos a ler,
escrever e contar e o catecismo das obrigações religiosas
e civis.
art. 239º É livre a todo cidadão abrir escolas para o ensino
público, contando que haja de responder pelo abuso
dessa liberdade nos casos e nas formas que a lei
trabalhadores e camponeses que se rebelaram contra os excessos e a difusão das práticas capitalistas. (Larousse, vol. XIX, p. 4789).
84
determina.
Brasil Constituição de
25/03/1824
art. 179º A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos
cidadãos brasileiros, que têm por base a liberdade, a
segurança individual e a propriedade, é garantida pela
Constituição do Império, pela maneira seguinte:
§ 32º A instrução primaria é garantida a todos os
cidadãos;
§33º Colégios e Universidades, onde serão ensinados os
elementos das ciências, belas-artes e artes.
Bélgica Constituição de
07/02/1831
art. 17º O ensino é livre, são vedadas as medidas
preventivas; a repressão dos delitos que lhe digam
respeito só podem ser reguladas por lei. A instrução
pública por conta do Estado rege-se igualmente por lei
Fonte: MIRANDA, J. Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Imprensa Nacional,
Casa da Moeda, 1990.
Nas primeiras constituições liberais, a educação é tratada como objeto de
regulamentação social (Espanha, Bélgica) e presta-se como espaço e instrumento
de difusão do espírito cívico e religioso (Portugal, Espanha), indicando, assim, a
presença do componente ideológico. Em que pese todas as constituições
reconhecerem a importância da educação e assegurarem, no plano normativo, o
acesso da população a ela (França, Espanha, Portugal, Brasil), nenhuma determina
a obrigação do Estado, seja no seu financiamento, seja na sua execução,
expressando claramente a influência liberal. Por outro lado, não se pode esquecer
que o conceito de cidadão das referidas cartas não era extensivo a toda a
população, mas sim a alguns grupos específicos da mesma.
O Quadro 2 expressa, em larga medida, os avanços alcançados na área da
educação e da formação profissional nas constituições dos Estados Providência ou
de Bem-Estar Social, já no séc. XX, quando, então, essa política foi, finalmente,
alçada à condição de direito.
85
Quadro 2
Evolução dos direitos relativos à educação em constituições nacionais que
demarcam transição para o Estado Social
Países Constituições Artigos
México Constituição
de 31/01/1917.
art. 3º A educação ministrada pelo Estado – federação,
estados, municípios tenderá a desenvolver harmonicamente
todas as faculdades do ser humano e a fomentar nele o amor
à Pátria e a consciência da solidariedade internacional na
independência e na justiça.
I – Garantida a liberdade religiosa pelo art. 24º, o critério que
orientará a educação manter-se-á alheio a qualquer doutrina
religiosa e, baseado nos resultados do progresso cientifico,
lutará contra a ignorância e os seus efeitos e contra qualquer
espécie de servidão, fanatismo e preconceitos.
II – Os particulares poderão ministrar educação de todos os
tipo e grau. Tratando-se, porém, de educação primária,
secundária e normal (e de educação de qualquer tipo ou grau
destinada a operários e camponeses), deverão obter,
previamente, em cada caso, autorização expressa do poder
público.
VI – A educação primária será obrigatória.
VII – toda educação ministrada pelo Estado será gratuita.
art. 31º São deveres dos mexicanos:
I) Fazer com que seus filhos ou pupilos, menores de 15 anos,
freqüentem as escolas públicas ou privadas para obter
educação primaria elementar e militar pelo tempo determinado
pela lei de instrução pública de cada estado.
Alemanha Constituição
de Waimer de
11/08/1919
art. 142º As artes, as ciências e o ensino são livres. Incumbe
ao Estado protegê-las e contribuir para o seu desenvolvimento.
art. 143º Para a educação da juventude existem
estabelecimentos públicos. O Império, os estados e as
comunas colaboram na sua organização.
86
art. 145º O Estado assegura o princípio da escolaridade
obrigatória. Para esse efeito existe a escola popular única,
com oito anos de estudos, e a escola de aperfeiçoamento, que
se destina ao ensino até os 18 anos de idade completos. São
gratuitas a instrução e a assistência escolar nas escolas
populares e de aperfeiçoamento.
art. 147º É livre o estabelecimento de escolas particulares,
enquanto suprem as escolas públicas, e estão sujeitas às leis
do país. Deve ser dada autorização para sua criação quando
os seus programas, as suas instalações e formação científica
do pessoal docente não forem inferiores aos das escolas
públicas e quando não favorecerem uma separação de alunos,
segundo situação econômica dos pais. Deve ser recusada a
autorização quando não for suficientemente assegurada a
situação econômica e jurídica do pessoal docente.
art. 149º A instrução religiosa faz parte do programa ordinário
das escolas, exceto das que sejam independentes de qualquer
crença religiosa, É ministrada em harmonia com os princípios
da igreja interessada, sem prejuízo do direito de fiscalização
do Estado.
Brasil Constituição
de 05/10/1988
art. 6º São direitos sociais a educação, o trabalho, a
segurança, a previdência social a proteção à maternidade e à
infância, à assistência aos desamparados, na forma dessa
Constituição.
art. 205º A educação é direito de todos e dever do Estado e da
família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho.
art. 206º O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios:
I – Igualdade nas condições de acesso e permanência na
escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber;
87
III – pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, e
coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos
oficiais;
V – valorização dos profissionais de ensino, garantido, na
forma da lei, plano de carreira para o magistério público, com
piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por
concurso público de provas e títulos, assegurado regime
jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade.
art. 208º O dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de:
II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao
ensino médio;
III - atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a
seis anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e
da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições
do educando;
VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental,
através de programas suplementares de material didático-
escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde
§1ºO acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público
subjetivo.
§2ºO não-oferecimento do ensino obrigatório pelo poder
público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da
autoridade competente.
88
§3ºCompete ao poder público recensear os educandos no
ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos
pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.
art.209º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as
seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II - autorização e avaliação de qualidade pelo poder público
art.210º Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino
fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum
e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e
regionais.
§1ºO ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental.
§2ºO ensino fundamental regular será ministrado em língua
portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a
utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem.
art.211º A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios organizarão em regime de colaboração seus
sistemas de ensino.
§1ºA União organizará e financiará o sistema federal de ensino
e o dos Territórios, e prestará assistência técnica e financeira
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o
desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento
prioritário à escolaridade obrigatória.
§2ºOs Municípios atuarão prioritariamente no ensino
fundamental e pré-escolar.
art.21º A União aplicará, anualmente, nunca menos de
dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte
e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de
impostos, compreendida a proveniente de transferências, na
manutenção e desenvolvimento do ensino.
89
§1º A parcela da arrecadação de impostos transferida pela
União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, ou
pelos Estados aos respectivos Municípios, não é considerada,
para efeito do cálculo previsto neste artigo, receita do governo
que a transferir.
§2º Para efeito do cumprimento do disposto no caput deste
artigo, serão considerados os sistemas de ensino federal,
estadual e municipal e os recursos aplicados na forma do art.
213.
§3º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade
ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, nos
termos do plano nacional de educação.
§4º Os programas suplementares de alimentação e assistência
à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com
recursos provenientes de contribuições sociais e outros
recursos orçamentários.
§5º O ensino fundamental público terá como fonte adicional de
financiamento a contribuição social do salário-educação,
recolhida, na forma da lei, pelas empresas, que dela poderão
deduzir a aplicação realizada no ensino fundamental de seus
empregados e dependentes.
art.213º Os recursos públicos serão destinados às escolas
públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias,
confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I - comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus
excedentes financeiros em educação;
II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola
comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao poder público,
no caso de encerramento de suas atividades.
§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser
destinados a bolsas de estudo para ensino fundamental e
médio na forma da lei, para quem demonstrar insuficiência de
recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da
rede pública na localidade da residência do educando ficando
poder público obrigado a investir prioritariamente na expansão
90
de sua rede na localidade.
§2º As atividades universitárias de pesquisa e extensão
poderão receber apoio financeiro do poder público.
art.214º A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de
duração plurianual, visando à articulação e ao
desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à
integração das ações do poder público que conduzam à:
I - erradicação do analfabetismo;
II - universalização do atendimento escolar;
III - melhoria da qualidade do ensino;
IV - formação para o trabalho;
V - promoção humanística, científica e tecnológica do País.
Fonte: Fonte: MIRANDA, J. Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Imprensa
Nacional, Casa da Moeda, 1990. www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/, 28/02/07.
Coube ao México, em 1917, inaugurar a série de constituições de caráter
eminentemente social, pois, até então, os países que já haviam implantado sistemas
de seguridade social não os tinham garantido em suas cartas constitucionais. Neste
sentido, e antes de destacar os avanços e as características da legislação
constitucional mexicana no que se refere à educação, devo lembrar, como já
evidenciado, que a Alemanha, de Bismarkc, foi o primeiro país a assumir o seguro
social como campo de ação programático, seguido pela Inglaterra, 25 anos depois.
Mas esta última também não salvaguardou os direitos sociais em termos
constitucionais, embora o modelo de Estado de Bem-Estar Social que implantou seja
considerado como o mais abrangente em termos de garantias sociais. Seu sistema
tendia a equalizar todos os segmentos sociais a um denominador comum: a
cidadania, sob a inspiração do Relatório Beveridge, elaborado por um grupo
coordenado pelo nobre inglês Lorde Beveridge em 1942, que postulava: “[...] a
população não deveria sofrer indigência nem os cinco gênios malignos da história: a
enfermidade, a ignorância, a dependência, a decadência e a habitação miserável.”
(Bairoch apud Singer, 2003, p. 247).
91
Diferentemente do relatório inglês, a Constituição mexicana foi forjada pela
aliança da classe trabalhadora do campo com a da cidade, sendo fruto de
revoluções e movimentos políticos promovidos pela mesma. Seu texto expressa
claramente os interesses classistas, e em termos de educação, postula, por
exemplo, a primazia da sua condução pelo Estado e a primazia da responsabilidade
deste. Pela primeira vez, a educação primária tornou-se obrigatória, ficando a
freqüência ao encargo dos pais ou responsáveis, e ao Estado a oferta universal do
serviço. O texto constitucional mexicano também inova ao mencionar a formação
dos camponeses e operários e ao vincular o conteúdo dessa formação à promoção
da independência e da justiça internacional.
A Constituição de Waimer, por seu turno, logrou compensar o povo alemão
pelas perdas (principalmente moral) impostas pelo fim da primeira Grande Guerra e,
nesse intento, foi generosa em termos de garantias sociais. Nela ficou instituída a
escolaridade obrigatória, e foram demarcados os parâmetros de escolas populares e
de aperfeiçoamento. Prescreveu, também, o estabelecimento de escolas privadas,
mas subordinou as mesmas às condições do ensino público.
Contudo, em termos de detalhamento e amplitude de garantias, nenhuma
supera a Constituição brasileira de 1988. Em seu texto, a educação assume a
integralidade do caráter de direito, ao definir como objetivos o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. Inovou, também, ao instituir o caráter democrático no
processo de gestão; ao fixar conteúdos mínimos, objetivando uma formação básica
comum, e ao definir um regime de financiamento público.
Já a proteção e a promoção da saúde, como iniciativa governamental, tem
registro ainda no séc. XVIII, a partir do que Foucalt (1999) denominou de medicina
social. Segundo o autor, esta organizou-se a partir de três modelos diferenciados: o
alemão (já referenciado), o francês e o inglês, respectivamente modelo de medicina
do estado; modelo de medicina urbana e modelo de medicina da força de trabalho.
O primeiro a ser instituido foi o modelo alemão, cujo projeto consistia em investir no
seu maior capital, a saúde da população, com o objetivo enfrentar a estagnação
econômica. Vale lembrar que a burguesia alemã do final do séc. XVII foi bloqueada
no seu desenvolvimento econômico, especialmente pela Inglaterra e pela França, e
precisou se refugiar no aparelho do Estado, fundando, assim, a burocracia estatal.
92
Com isso, enquanto as demais nações se preocupavam com as condições de saúde
pertinentes ao estágio mercantilista, a Alemanha ocupava-se das condições de sua
população. Neste sentido, instituiu a primeira política de saúde do Estado para o
Estado, em 1764, sob o título de Política Médica, que consistia: (a) em um complexo
sistema de observação da natalidade, mortalidade e morbidade; (b) na normatização
da prática e dos saberes médicos; (c) na subordinação dos médicos a uma
administração central e (d) na integração desses ao corpo estatal (Foucalt, 1999).
O segundo modelo, experimentado na França, teve como projeto investir na
urbanização do território nacional, uma vez que este era constituído “[...] por uma
multiplicidade de territórios heterogêneos e poderes rivais.” (Foucalt, 1999, p.84).
Dentre esses poderes ganhava relevo o do nascente proletariado, expresso nas
revoltas urbanas. Amontoadas no ambiente urbano, essa população, cada vez mais
numerosa, convivia com esgotos a céu aberto e cemitérios nos quais os corpos
ficavam, por vezes, expostos. Nesse cenário, as epidemias e a desobediência civil
grassavam, e, para enfrentá-las criou-se um plano de saúde pública que tinha como
objeto não os indivíduos, mas o controle das coisas e dos elementos, como as vias
de acesso, as galerias e esgotos subterrâneos, os cemitérios, a água e o ar. Foucalt
(1999) definiu a medicina urbana como uma forma de controle do espaço, da
confusão e perigo urbano.
Ainda referenciando Foucalt (1999), o terceiro e último modelo de medicina
social teve origem em solo inglês, sendo um projeto com foco na população pobre e
trabalhadora, com o objetivo de, através do controle da sua saúde e dos seus
corpos, tornando-a mais apta ao trabalho fabril e, portanto, aos interesses do capital.
Essa forma de controle da saúde coletiva constituiu uma das políticas da Lei dos
Pobres, e implicava no binômio controle e assistência. Na sua versão mais
elaborada consistiu em um sistema de (a) controle de vacinação; (b) registro das
epidemias e (c) localização e destruição dos focos de insalubridade. A síntese
desses três modelos inspirou, já no séc. XX, a proposta de saúde do Relatório
Beveridge, documento que orientou intervenções em saúde, educação e previdência
social dos modernos sistemas de seguridade social.
Mas a perspectiva de saúde como seguro social é recente, tendo sido alçada
à condição de programática de Governo somente a partir da segunda metade do
séc. XIX, inicialmente na Alemanha, de Bismack. É importante lembrar que a
93
promoção de políticas de proteção contra acidentes e doenças do e no trabalho
tinha também, no conflituoso ambiente da Alemanha bismarckeana, o papel de
compensar e, mais ainda, de conquistar a confiança dos trabalhadores para o
projeto imperial alemão, como já denunciado anteriormente. Rosanvallon (1998)
destaca que o Estado Alemão foi o primeiro de seu gênero na história da sociedade
moderna a instituir um sistema de proteção social como contrapartida de
contribuição, no qual a saúde foi incorporada na secção II, que trata Da Vida Social,
e mais especificamente no art. 119, como evidencia o Quadro 3.
Não obstante, coube novamente à Inglaterra instaurar inovações na área do
acesso aos produtos e serviços sociais, com a constituição de um sistema não
contributivo que, como já evidenciado, pretendeu cuidar do indivíduo do berço ao
túmulo. Também merece crédito, aqui, o maior responsável pela generalização dos
direitos sociais, e dos direitos relativos à saúde, ao trabalho e à educação em
particular: a Organização Internacional do Trabalho - OIT83. No preâmbulo de sua
Constituição estabelece que
Uma paz universal e duradoura pode ser estabelecida somente se estiver baseada na justiça social; e considerando que há condições de trabalho que impõem tal injustiça, sofrimento e privação a um grande número de pessoas que provocam tanta agitação que a paz e harmonia do mundo estão em perigo; uma melhoria dessas condições é urgentemente exigida.84
Este texto, de 1919, inspirou-se e inspirou algumas constituições em
particular, como é possível visibilizar no Quadro a seguir.
83 A OIT foi criada pela Conferência de Paz após a Primeira Guerra Mundial. A sua constituição converteu-se na Parte XIII do Tratado de Versalhes, assinado pelas potências européias, que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial. 84Disponível em: http://www.oitbrasil.org.br/inst/fund/docs/index.php. Acessado em 27/02/2007, as 23h.
94
Tabela 3
Evolução dos direitos relativos à saúde nas constituições nacionais
Países Constituições Artigos
Portugal Constituição de
23/09/1822
art. 240º As Cortes e o Governo terão particular cuidado da
fundação, conservação e aumento das casas de Misericórdia e de
hospitais civis e militares, especialmente daqueles que são
destinados para os soldados e os marinheiros inválidos, e, bem
assim, de rodas de expostos, montepios, civilização de Índios e de
quaisquer outros estabelecimentos de caridade.
México Constituição de
31/01/1917.
art. 123º O Congresso da União, sem infringir as bases seguintes,
devera emitir leis sobre o trabalho, nestes termos:
XIV – Os empresários serão responsáveis pelos acidentes de
trabalho e as enfermidades profissionais dos trabalhadores,
sofridas por motivos ou em exercício da profissão ou trabalho que
executarem; e os patrões deverão pagar a indenização
correspondente. Essa responsabilidade subsistirá mesmo nos
casos em que o patrão contratar através de algum intermediário.
XV – O patrão será obrigado a observar na instalação de seus
estabelecimentos os preceitos legais sobre higiene e salubridade
no uso das máquinas, instrumentos e materiais de trabalho, assim
como a organizar o trabalho de tal maneira que se dê à saúde e a
vida dos trabalhadores a maior garantia compatível com a natureza
do trabalho, sobre pena das sanções que a lei estabelecer.
XXI – A Segurança Social será organizada de acordo com as
seguintes bases mínimas:
a) Cobrirá os acidentes e as doenças profissionais, as doenças não
profissionais e a maternidade; e a aposentadoria, a invalidez; a
velhice e morte.
d) Os familiares dos trabalhadores terão direito a assistência
médica e medicamentosa, nos casos e na proporção a determinar
por lei.
Alemanha Constituição de
Waimer de
art. 119o Incumbe ao Estado e as comunas velar pela pureza, pela
saúde e pelo desenvolvimento social da família. As famílias
95
11/08/1919 numerosas têm medidas de assistência que ocorrem aos seus
encargos.
Brasil Constituição de
05/10/1988
art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social:
Redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de
saúde, higiene e segurança.
art. 196º A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário as
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
art. 197º. São de relevância pública as ações e serviços de saúde,
cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua
regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser
feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa
física ou jurídica de direito privado.
art. 198º As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único,
organizados de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de
governo;
II – atendimento integral, com prioridade as atividades preventivas,
em prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.
art. 199º A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
1º As instituições privadas poderão participar de forma
complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes
deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo
preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou
subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
3º É vedada a participação direta ou indireta de empresas
estrangeiras na assistência à saúde no País, salvo nos casos
96
previstos em lei.
4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a
remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de
transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta,
processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo
vedada todo o tipo de comercialização.
art. 200º Ao sistema único de saúde compete, além de outras
atribuições, nos termos da lei:
I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de
interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos,
equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem
como as de saúde do trabalhador;
III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;
IV - participar da formulação da política e da execução das ações
de saneamento básico;
V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento
científico e tecnológico;
VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de
seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo
humano;
VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte,
guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e
radioativos;
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido
o do trabalho.
Fonte: MIRANDA, J. Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1990.
www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/, Acessado em 28/02/07, às 19h.
97
Nas constituições dos séc. XVIII e XIX analisadas, a única que traz referência
à saúde é a de Portugal, e mesmo assim na forma de recomendação ao Governo e
às Cortes de que apóiem as instituições de atendimento à população mais
vulnerabilizada. Somente após 95 anos a saúde foi tratada como direito social, na
Constituição mexicana, de duas formas: (a) como responsabilidade do patronato
junto aos trabalhadores e, (b) como responsabilidade do Estado, no âmbito da
seguridade social. Penso que o maior mérito dessa Constituição, no referente a
saúde pública, é o de reconhecer os processos de adoecimento do e pelo trabalho.
Já a Constituição de Wainer inscreve a saúde no âmbito dos direitos da família,
contudo não a universaliza, uma vez que prioriza as famílias numerosas.
Novamente, o texto constitucional a inovar por excelência foi o brasileiro de
1988, que, já no art. 7º referenda a saúde como um direito universal, de
responsabilidade do Estado. Dentre as novidades destacam-se: a constituição de
um sistema único, regionalizado e descentralizado, sob a condução estatal e o
controle social; a priorização das ações preventivas frente às assistenciais
(curativas); a caracterização da vigilância sanitária e epidemiológica e de proteção
ao meio ambiente como objeto de saúde pública; o incentivo às inovações
tecnológicas e científicas, dentre outras.
Os avanços na qualificação e na normatização dos conteúdos dos direitos
sociais tiveram, nas duas áreas estudadas (saúde e educação), uma trajetória
ascendente expressando, em maior ou menor escala, o compromisso firmado entre
as classes sociais para assegurar o crescimento econômico e por vezes o
enfrentamento às desigualdades sociais. Mas esse quadro perdurou até o momento
em que as taxas de crescimento econômico começaram a despencar e passaram a
surgir, no seu encalço, os ideais liberais mais puristas, renomeado de neoliberal. Os
últimos 30 anos do séc. XX foram férteis à lógica que denuncia a intervenção estatal
na área social como negativa, com o renascimento do mito de que as políticas
sociais redistributivas e universais são perniciosas ao desenvolvimento econômico.
Contudo, o receituário neoliberal não alcançou aquilo que prometia: o tão propalado
retorno das taxas de crescimento econômico. Ao contrário, o que se observou foi o
alargamento e o aprofundamento das desigualdades sociais, uma vez que, aos
países sob pressão das agências econômicas internacionais, só restaram três
caminhos: “[...] cortar gasto público; imprimir dinheiro ou vender títulos do Tesouro a
98
juros atraentes.”(Behring; Boschetti, 2006, p. 139). Tais medidas foram acatadas,
redundando no que ficou conhecido como a “década perdida”, na qual as taxas de
crescimento não ultrapassaram a média dos 2,1%, e a inflação chegou a média de
200% ao ano (Hobsbawm, 1995).
Esse prognóstico negativo, operado nas últimas décadas do séc. XX,
repercutiu, em solo brasileiro, num quadro de aridez e hostilidade aos direitos sociais
assegurados na Constituição de 1988. Ademais, a jurisdificação desses direitos, no
caso brasileiro, não havia alcançado ainda a sua completa materialização, visto que
“A concretização dos direitos sociais depende da intervenção do Estado, estando
atrelada às condições econômicas e à base fiscal estatal para serem garantidos.”
(Couto, 2004, p.48).
Pochmann (2005) acredita que, nos marcos do atual modelo econômico em
curso, não há mais perspectiva possível de ampliação da inclusão social no cenário
brasileiro. Em termos da política de educação, o autor denuncia que a ampliação do
acesso da população ao ensino fundamental, em especial às primeiras séries desse,
se deu à custa da deterioração das já precárias condições funcionais e materiais,
implicando a baixa qualidade dos serviços prestados. Em termos de ensino médio, a
crítica recai não somente sobre a qualidade do serviço, mas, sobretudo, sobre a
cobertura do mesmo, uma vez que dados oficiais revelam que apenas um terço da
população entre 15 e 17 anos está nele inserida (Idem, 2005, p.69). Em termos do
ensino superior o que se observa, ainda, segundo dados do Atlas da Exclusão nº 5,
é um processo onde apenas 1,8% da população é beneficiada, o que explica o baixo
nível de formação das forças produtivas de forma geral.
No que diz respeito à saúde e ao seu trato como um dos bens sociais mais
valorizados, tanto na perspectiva individual quanto na coletiva os dados evidenciam,
mais uma vez, a realidade da segregação social e concentração de riqueza. A
capacidade de responder à demanda de saúde através da capacidade instalada de
leitos e de servidores disponíveis (médicos e enfermeiros) denuncia a disparidade
entre as Regiões Sul / Sudeste e Norte / Nordeste, pois as duas primeiras
concentram 71% dos médicos e 57 % dos leitos em termos absolutos. Por outro
lado, a cobertura do Programa de Saúde da Família, que se fundamenta “[...] nos
eixos transversais da universalidade, integralidade e eqüidade, em um contexto de
descentralização e controle social da gestão, princípios assistenciais e organizativos
99
do SUS85”, teve em 200586 cobertura de 44,4% da população brasileira, sendo que
dados do mesmo ano informam que os pobres e indigentes somava 42 milhões, ou
46% da população no período, evidenciando, assim, o quão longe da
universalização se ncontra esse programa (Pochhmann, 2005, p.74).
Entre as formas para enfrentar esses quadros da educação e da saúde
públicas, e no intuito de amenizar os efeitos das reformas econômicas e sociais
levadas a cabo pelo Estado brasileiro na década de 90 do séc. XX, instituíram-se
parcerias público-privadas87 entre Estado e organizações sociais, bem como houve
incentivos à iniciativa privada, principalmente na forma de renúncia fiscal. É nesta
última que se localizam as práticas de responsabilidade social corporativa, escolhida
como um dos exemplos de condução e trato das políticas sociais, não só pela
importância dessas políticas na reprodução da força de trabalho, mas também pelo
valor que elas agregam à imagem da empresa e aos seus produtos. Por outro lado,
não se pode esquecer que na composição da sociedade moderna, a empresa tem
interesses estratégicos na conformação dos pacto s sociais que sustentam a frágil
coesão social.
5.3 O ESTADO DA ARTE DO SOCIAL – UMA PERSCRUTAÇÃO ÀS PRÁTICAS
DE RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA
Do ponto de vista jurídico, são três as modalidades de organizações privadas
prestadoras de serviços e/ou repassadoras de produtos sociais, conforme a
legislação brasileira: (a) as organizações filantrópicas (área da saúde, educação e
assistência social); (b) as organizações sociais, constituída por empresas “híbridas”
(privadas, porém mantidas com recursos e supervisão públicas), como a Associação
Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), e o
Sistema S – Serviço Social da Indústria (SESI), Serviço Social do Comércio (SESC),
Serviço Nacional de Aprendizagem e ensino do Comércio (SENAC); e (c) as
85 Disponível em http://dtr2004.saude.gov.br/dab/atencaobasica.php#saudedafamilia. Acessado em 03/03/2007, as 08:30h. 86 Disponível em http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata, Acessado em 03/03/2007, as 10:40h. 87 Lei No 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública.
100
organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIP88. Esses três marcos
legais fazem parte do Plano de Reforma do Estado Brasileiro89, e têm por
fundamento a desestatização do social, operada pela transferência de grande parte
da execução das políticas sociais para agentes do setor privado.
Para além dessas organizações, outras expressões da relação público-
privada ganham espaços na área social, como a responsabilidade social corporativa,
também denominada de ativismo social empresarial90 (Beghin, 2005). A opção que
faço ao eleger essa prática como evidência e, portanto, como objeto de análise de
uma das formas contemporâneas de condução e determinação do conteúdo da
esfera social se justifica na medida em que expressa a concepção de um “novo” ator
social, cujo fundamento claro é a concepção liberal, que, por sua vez, se materializa
em ações de cunho eminentemente moral. Com o grifo no termo novo denuncio uma
reconceituação, pois, se é possível demarcar a última déc. do séc. XX como o de
expansão acelerada das práticas empresarias sociais, não o é sinaliza-la como a de
emergência dessas práticas, haja vista que a relação empresa privada-sociedade,
desde há muito é mediatizada por ações de caráter social91.
Outrossim, nas primeiras décadas do séc. XX deu-se início a um processo de
mudança de atitude do empresariado brasileiro em relação à Questão Social. Até
então, predominava a máxima de que as diversas expressões de miséria que
grassavam na vida da população trabalhadora92 eram produtos direto dos maus
hábitos (morais, de higiene) desses sujeitos. Essa concepção “contaminava”, por se
88 Respectivamente, Lei 9.732, de 11/12/1998 (da Filantropia) cujos objetos são a assistência social e a saúde gratuita; Lei 9.637, de 15/05/1998 (das OSCIPs) que regulamente organizações das áreas da educação, do desenvolvimento tecnológico, do meio ambiente, da cultura e saúde; e Lei 9.790, de 23/03/1999 (das organizações sociais), que além das áreas citadas, inclui também serviços na área de tecnologias alternativas. 89 A ser abordado ainda neste capítulo. 90 Nomenclatura que identifico mais pertinente, uma vez que qualifica a prática como ativista, isto é, como ação cuja finalidade última é a propaganda ativa de uma ideologia ou doutrina (Dicionário Luft). 91 As práticas e propostas de Owem, no contexto internacional, são evidências que já demarquei. No âmbito nacional, cabe destacar o empresário Jorge Street que, em 1912, construiu a Vila Maria Zélia, onde oferecia moradia, igreja, creche e escola aos trabalhadores e seus familiares, sob o argumento de que incentivos materiais e morais aos operários proporcionavam maior produtividade. (Cappellin et al, 2002). Cunhados de vilas operárias, esses empreendimentos empresariais ganharam capilaridade nos principais centros industriais brasileiros (notadamente, Rio de Janeiro e São Paulo), no primeiro triênio do séc. XX, como meio de apoio à industrialização. 92 O termo população trabalhadora inclui, como já conceituado anteriormente, todos aqueles que dependem e/ou dispõem única e exclusivamente da sua força de trabalho como meio de acesso à renda e, portanto, à sobrevivência. No contexto que ora refiro diz respeito também àqueles que, além dessa situação, não dispõem de saberes e/ou qualificações que tornem sua força de trabalho empregável e/ou necessária ao mercado.
101
turno, as reivindicações e os protestos populares, que eram tratados como objeto de
repressão do aparato estatal. Mas, com o aprofundamento do movimento operário e
sua organização em torno de estratégias de pressão (greve, em especial) o
empresariado sentiu-se obrigado a sair de sua “zona de segurança93” e assumir
parte do financiamento e da gestão do sistema de proteção social. É emblemático
desse período o exemplo do empresário e industrial Jorge Street, um dos
[...] promotores do movimento do Centro Industrial do Brasil, no governo de Afonso Pena, que propugnava pelo protecionismo industrial. Inaugurou em sua fábrica de juta, Maria Zélia, a primeira creche para filhos de operários. Em 1919 defendeu o direito de greve e mais tarde, com a criação do Ministério do Trabalho (1930) dirigiu o Departamento Nacional da Indústria e Comércio. Publicou muitos artigos na imprensa diária e em revistas, esclarecendo a necessidade da formação de uma consciência capitalística brasileira e de medidas de proteção aos operários.94
Além de creche, oferecia moradia e escola com o propósito de modelar seus
trabalhadores, segundo os princípios da moral burguesa. Para tanto, o cotidiano da
Vila era similar ao da fábrica, expresso no controle dos horários, dos movimentos, e
dos hábitos e nas políticas de bonificação. Zedner95 denuncia esse processo como a
forma pela qual
[...] as classes operárias eram condicionadas a aceitar e adotar as normas e condutas necessárias à sustentação de uma rápida industrialização da sociedade [...] meio pelo qual um grupo ou classe impõe sobre a outra suas idéias do que são os hábitos e atitudes adequados a essa classe.
Góes (1988), em suas pesquisa sobre a formação da classe trabalhadora no
Brasil, argumenta que a invasão da vida privada do operariado, possibilitada pela
construção de vilas no entorno da fábrica, se constitui como um dos principais
instrumentos de controle e coerção. As casas eram apêndices da fábrica e a
disciplina comum aos dois ambientes promovia a submissão, em um cenário no qual
“Os moradores não tinham liberdade de entrar e sair a qualquer hora e não podiam
receber visitas sem a prévia autorização da fábrica” (idem, 1988:49).
As péssimas condições de higiene nas fábricas, observadas no período (1900
-30), eram agravantes das já debilitadas condições de saúde dos trabalhadores96;
93 Ate então, o empresariado passava ao largo das manifestações populares, visto que, ideologicamente, se recusava a atender as demandas sociais, pois as via, como caso de policia e, portanto, competência do Estado. 94 Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Street. Acesso em 31/05/2007, as 20:27h. 95 Dicionário do Pensamento Social do Século XX, 1996, p.139. 96 As jornadas de trabalho estendiam-se de 10 a 18 horas, em ambientes insalubres, sem acesso à água potável e com alimentação no nível mínimo sustentável.
102
surtos de doenças infecto-contagiosas eram comuns e, com isso, também as faltas
ao trabalho. Para enfrentar essa situação, duas medidas foram tomadas: o Estado
interviu com campanhas de vacinação obrigatórias, e alguns empresários passaram
a oferecer “[...] médico e farmácia que atendiam aos operários e eram pagos por
esses” (Góes, 1988, p.50).
É emblemático da concepção moral subjacente à conduta do empresariado
na área social, no início do séc. XX, a iniciativa de Monteiro Lobato (que, dentre
tantas atividades, era também empresário), ao criar um personagem que
evidenciava a frágil índole do brasileiro “pobre”: o Jeca Tatu. O personagem
expressava o caboclo miserável, que passava os dias de cócoras, fumando cigarros
de palha, sem ânimo para fazer coisa nenhuma; morava no mato, em uma casinha
de sapé, em companhia da mulher (muito magra e feia) e de vários filhos pálidos e
tristes. Inicialmente, Lobato tinha por objetivo mostrar, através dessa figura, uma das
pragas nacional, o caboclo, “[...] funesto parasita da terra [...] homem baldio,
inadaptável à civilização” (Silva, 2007, s/p) 97. Contudo, e logo em seguida, o autor
redimiu o personagem, transformando-o num novo símbolo de brasilidade
[...] no curso das décadas de 1910 a 1940, Lobato refina a caracterização do “Jeca Tatu”, submetendo o personagem a três metamorfoses: na primeira, “Jeca” se encontra doente e desassistido pelo Estado; na segunda transformação sofrida pelo personagem, “Jeca” consiste em uma representação do Brasil agrário e rural, subdesenvolvido, em total descompasso com a tessitura urbano-industrial que tipificava os países que comandavam o cenário político e econômico internacional; por fim, em sua última metamorfose, o “Jeca” é convertido em “Zé Brasil”, arquétipo literário do trabalhador explorado e de um país submetido à espoliação internacional. (Silva, 2007, s/p)
Segundo o autor, a redenção de Jeca Tatu, que, no fundo, buscava forjar a
identidade do povo, teve como produto concreto, em 1924, a criação de um
personagem radiofônico, Jeca Tatuzinho, que ensinava noções de higiene e
saneamento às crianças. Outra contribuiçao do personagem foi o apoio à política
higienista de Osvaldo Cruz, levada a cabo no primeiro quartel do séc. XX, que
reafirmava o imperativo investimento na saúde do fator trabalho como conteúdo do
social.
97 A história do Jeca Tatu relaciona-se com a de Lobato. Segundo seus biógrafos, em 1911 ele herdou do avô a fazenda Buquira, no Vale do Paraíba (SP), tornando-se fazendeiro. Desentendeu-se com os empregados e criaou uma figura desqualificada do caipira, considerado preguiçoso demais para promover melhorias no seu modo de vida. (Disponivel em http://pt.wikipedia.org/wiki. Acessada em 25/07/2007, as 19:51h.).
103
Esse imperativo foi ratificado na década de 40 do mesmo século, com a
fundação do Sistema S: Serviço Social da Indústria (1947); Serviço Social do
Comércio (1946); Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (1948) e o
Serviço Nacional de Aprendizagem da Industria (1942), respectivamente SESI;
SESC; SENAC e SENAI. Produzidos pela aliança da elite industrial e do comércio
com o Estado, esses macroorganismos, com capilaridade nacional, tinham por
objetivo “[...] organizar o atendimento à saúde dos trabalhadores e criar sistemas
educacionais voltados para as necessidades técnicas do processo de
industrialização” (Couto, 2004, p.105). Subsidiado por subvenções estatais, cuja
base de arrecadação eram os próprios trabalhadores e o patronato, o Sistema S
lograva enfrentar a defasagem histórica nessas duas áreas, que impedia os avanços
da industrialização e do mercado nacional.
As formas de condução e de compreensão do social (seus produtos e
conteúdos), por parte do empresariado, muito pouco se alteram até 1980, mantendo-
se nos limites da tradição filantropo-caritativa e controladora. Essa forma de ativismo
social tem sua matriz na tutela moral, a qual busca somente a redução da miséria (e
suas manifestações) e dos perigos a ala inerentes. A perspectiva moral reduz o
sujeito assistido e/ou beneficiado à condição de “quase” ou totalmente incapaz,
instaurando “[...] redes de dependência entre superiores e inferiores, entre povo
miúdo e seus guias preocupados com o bem-estar comum.” (Castel, 1998, p.319).
Tem-se, assim, uma estratégia político-operacional “à brasileira”, que permite, ao
mesmo tempo, contornar os riscos postos pelo mercado98, como também evitar a
condução das relações sociais pelo âmbito da esfera jurídica (leia-se lógica do
direito).
Não cabe aqui, nem tampouco é objeto desta tese, reconstituir, no detalhe e
nas entrelinhas, a trajetória das práticas sociais empresariais, mas, sim, demarcar
alguns eventos e sujeitos históricos que “modelaram” o sentido dessas práticas. O
esforço que empreendo é para compreender uma das formas contemporânea de
produção e condução do social, como recurso para justificar o papel deste último: o
de coesão social. Daí, justifico o salto histórico para 1980, período marcado pela
98 Riscos estes produzidos, em especial, mas não somente, pelas baixas remunerações e frágeis condições de salubridade dos ambientes laborais.
104
reestruturação produtiva99 que, além dos ganhos significativos propiciados ao
capital, ampliou as fraturas sociais, dramatizou a situação dos instáveis e
aprofundou o contingente de sobrantes100 (Castel, 2000).
No campo da responsabilidade e das práticas público-estatal, o período
referido (1980-90) foi demarcado pelo discurso da subsidiariedade do Estado na
área social e pela resignificação do papel e da responsabilidade da sociedade civil,
que passou à condição de parceiro estratégico. O princípio da subsidiariedade
demarca uma forma de organização social e política que tem por premissas,
segundo Marcoccia (2006, p. 67 ), “[...] a confiança na capacidade dos atores sociais
e na origem do interesse geral; intuição de que a autoridade não é detentora de
competência absoluta; na qualificação e realização do interesse em geral [...]”. De
outra forma, esse princípio prioriza a responsabilidade e a resolutividade da
sociedade civil na condução daquilo que lhe é próprio ou lhe diz respeito, deixando
para a administração pública estatal tão somente aquilo que ela (sociedade) não
quer ou não é capaz de fazer. Daí a origem do termo Estado Suplência, em clara
negação ao definido pelo ordenamento jurídico da área social pós-Carta de 1988,
em especial, ao regulamentado pelas Leis nº 8080/90 (que trata do sistema de
saúde nacional); nº 8742/93 (que normatiza a política de assistência social) e nº
9394/96 (que dá as diretrizes e bases da educação).
Sobre as parcerias do Estado com as organizações sociais e de mercado na
área social, interessa que mais do que compensar a retirada paulatina do Estado na
área, elas atendem a uma função ideológica: encobrir o processo de
vulnerabilização dos direitos sociais e produzir a aceitação do vazio que aí se instala
(Montaño, 2002). Daí porque a ênfase em destacar a excelência dessas
99 Reestruturação esta marcada, dentre outros tantos fenômenos, pela passagem do modelo de produção fordista (que empregava massivamente mão-de-obra) para o modelo de produção toyotista (que tem, na otimização do trabalho humano, um elemento chave); pela intensificação do uso da tecnologia digital e robótica; pela internacionalização da comunicação em tempo real e pela globalização dos mercados. 100 Castel, no texto As armadilhas da exclusão social, apresenta como fraturas sociais os processos de exclusão gerados pelo reordenamento produtivo capitalista contemporâneo, que tornam inválidos (pela conjuntura política e econômica) um contingente de potenciais trabalhadores, em plena condição de atividade. Essas fraturas “[...] decorrem de novas exigências da competitividade e da concorrência, da redução das oportunidades de emprego, fazendo com que não haja mais lugar para todo mundo na sociedade onde nos resignamos a viver” (2002, p.31). Nesse cenário, há os instáveis, caracterizados pela situação de provisoriedade e fragilidade (ora dentro, ora fora dos circuitos de trabalho e trocas) e existem, ainda, os sobrantes, também designados de “inúteis ao mundo”, ou, aqueles que não acessaram e tampouco acessarão a condição de estáveis (inseridos no mercado de trabalho formal e nos seus circuitos de trocas e sociabilidade).
105
organizações, através do recurso, por exemplo, de premiações e reconhecimentos
públicos.
O marco de referência da dinâmica das parcerias público-privadas tem âncora
na Reforma do Estado proposta e promovida no governo Fernando Henrique
Cardoso (1994-02), sob a batuta do Ministro Bresser Pereira, que delagava ao
Estado a maior parcela de responsabilidade pela crise em curso, conforme texto a
seguir:
Quando dizemos que esta Grande Crise teve como causa fundamental a crise do Estado - uma crise fiscal do Estado, uma crise do modo de intervenção do Estado no econômico e no social e uma crise da forma burocrática de administrar o Estado - está pressuposto que o Estado, além de garantir a ordem interna, a estabilidade da moeda e o funcionamento dos mercados, tem um papel fundamental de coordenação econômica. [...] Sua causa fundamental será agora a crise do Estado - do Estado Intervencionista, que, de fator do desenvolvimento, se transforma em obstáculo. [...] Na medida em que o Estado via sua poupança pública tornar-se negativa, perdia autonomia financeira e se imobilizava. Suas limitações gerenciais apareciam com mais nitidez. A crise de governança, que no limite se expressava em episódios hiperinflacionários, tornava-se total: o Estado, de agente do desenvolvimento, se transformava em seu obstáculo101.
Sob o argumento dessa crise de governança, Bresser projetou a Reforma do
Estado segundo os critérios do que denominou de centro-direita pragmática102, com
apoio inconteste às prescrições dos organismos de regulação financeira
internacional (Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Fundo
Monetário Internacional). Como já enunciado, a reforma implicava, dentre outras
medidas, na delimitação das funções do Estado, reduzindo seu tamanho pela via
das privatizações, das terceirizações e da publicização (este último processo
implicando na transferência dos serviços sociais e científicos103 para o setor público
não-estatal). Foi nesse espaço que as empresas encontraram solo fértil para suas
iniciativas de foro social, cuja conformidade com o discurso oficial se expressa na
preocupação e na leitura unicamente gerencial da Questão Social. Nessa
transmutação do âmbito político (das lutas de classe) para o âmbito puramente
101 Disponível em www.preac.unicamp.br/arquivo/materiais/bresser_reforma_do_estado.pdf. Acesso em 27/03/2007, às 22:46h. 102 Segundo Bresser, as propostas da perspectiva de centro-direita pragmática condicionavam-se aos fundamentos macroeconômicos - ajuste fiscal, políticas monetárias ortodoxas, preços de mercado, taxas de juros positivas, mas moderadas, e taxas de câmbio realistas - e à realização de reformas orientadas para o mercado. Contudo, o autor demarca que essas políticas não bastavam, porque o mercado apenas - o mercado auto-regulável do equilíbrio geral neoclássico e da ideologia neoliberal - não garante nem o desenvolvimento, nem o equilíbrio e a paz social. (Idem) 103 Disponível em www.preac.unicamp.br/arquivo/materiais/bresser_reforma_do_estado.pdf. Acesso em 27/03/2007, às 22:46h.
106
gerencial, a Questão Social torna-se, unicamente, um instrumento para o alcance da
finalidade última do capital: a acumulação ampliada seja otimizando o fator trabalho
(através do acesso a saúde e à formação) seja mercantilizando em proveito próprio
aquelas áreas que possam interessar ao consumidor.
O trato gerencial da Questão Social (relação custo / benefício como critério de
eficiência), por seu turno, retira os potenciais conflitos gerados pela má distribuição
da renda e do poder da esfera pública, colocando-os no patamar de uma “nova
contratualidade”, de base informal, mediada pelo Estado gerencial e por
organizações privadas, em prejuízo flagrante à cidadania fundada no Estado de
Direito e potencializada no Estado Social. No universo do ativismo social empresarial
essa transição, segundo Lautier (1998), exigiu (re)fundar as práticas sociais visto
que, mesmo incompleto e questionado, o pacto assegurado pela Constituição
Federal de 1988 não poderia ser ignorado. Os valores que o fundaram - democracia,
participação, igualdade de oportunidade e de condições (direitos sociais e políticos) -
foram, então, capturados pelos novos discurso e prática empresariais, da ética, da
solidariedade e da parceria.
Mas, sob o discurso da solidariedade, mantém-se intacta a natureza
individualista e competitiva do empresariado, uma vez que, em última (ou primeira?)
instância, o que sempre esteve presente foi o interesse do controle da produtividade
da força de trabalho. Por outro lado, cabe novamente destacar que essas práticas
sociais se revestem ainda da áurea da filantropia, guardando especial apreço à
lógica da “ajuda”, que, por sua vez, não se ancora na perspectiva do direito.
Agregando a essa concepção a vocação do patronato às relações paternalistas,104
cuja tradição vem de longe delineando a relação público-privado, torna-se
plenamente justificável o modelo próprio de condução do social que esse segmento
vem constituindo.
Do ponto de vista institucional, são referências dessa nova postura
empresarial a fundação da organização Pensamento Nacional das Bases
empresarias (PNBS) em 1987, como uma entidade não-governamental, de âmbito
104 Forma de relação cujo substrato é a dominação com laços de dependência. Parte de envolvimento pessoal baseado na lealdade e na reciprocidade entre aquele que dá e aquele que recebe, instituindo uma dívida moral do último com o primeiro.
107
nacional, formada por empresários de todos os portes e dos inúmeros ramos de
atividade econômica de todas as regiões do país, que
[...] lutam pelo aprofundamento da democracia nas diversas instâncias da nação - governos da União, Estados, Municípios, bem como entidades da sociedade civil - e pelo amplo exercício dos direitos da cidadania no Brasil105.
Essa organização surge com a missão de mudar a representação social e a
visão dos empresários brasileiros, a partir de um trabalho de conscientização
destes últimos sobre temas emergentes, como meio ambiente e responsabilidade
social corporativa106.
Com igual intento, um ano antes (1986), foi formalizada a Fundação Instituto
de Desenvolvimento Empresarial e Social (FIDES), entidade privada de caráter
educativo e cultural, sem fins lucrativos, visando à humanização das empresas e à
sua integração com a sociedade, com base nos princípios éticos envolvidos nas
relações entre empresa e seus diferentes públicos interno e externo107. A essa
Fundação são creditados os fundamentos das políticas de responsabilidade social
corporativa, posteriormente detalhados nos indicadores desenvolvidos pelo Instituto
Ethos de Empresas e Responsabilidade Social (1998). Este último é uma
organização não-governamental, que, segundo informações contidas em seu site, foi
“(...) criada com a missão de mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir
seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na
construção de uma sociedade sustentável e justa”108.
Muitas outras fundações, associações e entidades empresariais foram se
constituindo, nos mais diversos níveis e setores, no lastro das acima citadas. Para
efeito do presente estudo, interessa o Instituto Ethos, pelo reconhecimento público e
alcance de seu trabalho junto ao empresariado. Precursor no desenvolvimento de
ferramentas de análise das práticas de gestão social109, que disponibiliza on-line,
promove o Prêmio Balanço Social, cujas empresas da Região Sul vencedoras foram
contatadas para participar deste estudo, conforme descreverei ainda neste capítulo.
105Disponível em http://www.pnbe.org.br/. Acessado em 27/07/2007, as 20:30h. 106 Idem. 107 107Disponível em http://www.fides.org.br/. Acessado em 27/07/2007, as 20:46h. 108 108Disponível em http://www.ethos.org.br. Acessado em 27/07/2007, as 21:00h. 109 Primeiros Passos, Matriz de Evidências, Guia de Balanço Social, Localizador de Ferramentas, Banco de Práticas e Indicadores Ethos.
108
Se à década de 80 (séc. XX) é consagrado o mérito da emergência desses
novos mecanismos empresarias, os anos 90 notabilizaram-se pelo crescimento e o
aprofundamento das práticas fundadas sob o paradigma da responsabilidade social,
que Beghin (2004, p.68-69) assim sistematiza: (a) reconhecimento do agravamento
dos problemas sociais no Brasil e de que as empresas não podem se eximir dessa
responsabilidade; (b) reconhecimento de que práticas sociais e rentabilidade não
são excludentes; (c) reconhecimento da importância da imagem da empresa como
promotora da ética, do bem comum e da cidadania; (d) o princípio de que o Estado
não detém conhecimento e domínio suficiente das tecnologias de gestão, e que,
portanto, não intervém de forma competente no âmbito social - produção de bens e
serviços, redistribuição de renda e poder; (e) reconhecimento da importância da
comunicação com a sociedade (produção e divulgação de informações, prêmios,
selos, redes de interação).
O argumento transversal desta tese, de que o social, mais do que uma esfera
de produção e redistribuição de renda, bens, serviços e poder tem a função basilar
de garantir a coesão da sociedade, a partir da difusão da ideologia que dá suporte e
legitimidade ao modo de produção capitalista: o liberalismo, nas suas diversas fases
e matizes.
Nessa arena de disputa entram também as necessidades corporativas de
reprodução e qualificação da força de trabalho, que passam a ser consideradas
como benefício concedido pela consciência social do empresário, em detrimento da
perspectiva sociojurídica, que dá qualidade de direito ao usufruto da produção
social. Na lógica e no discurso da responsabilidade social corporativa, os
investimentos em saúde, formação e previdência social estão na categoria de
“benessses”, como procuro evidenciar no último item desse Capítulo. Antes, cabe
destacar os critérios que estabeleci para escolha das empresas, o processo de
acesso as mesmas e à definição da que seria foco do Estudo de Caso.
5.3.1 O Percurso Metodológico
Importa, inicialmente, ressaltar que o interesse aqui não é uma análise
quantitativa ou histórica das práticas sociais empresariais, mas, sim, a de um dos
instrumentos que informa a racionalidade destas no que se refere ao social.
109
Portanto, justifica-se a escolha do relatório social110, documento considerado
signatário e porta-voz do que esses sujeitos denominam como a “nova” prática social
empresarial: a responsabilidade social corporativa.
O critério de escolha da empresa objeto do estudo de caso, foi o de ter
recebido o Prêmio Balanço Social111 da Ethos / Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (IBASE). Essa distinção tem notório reconhecimento social,
pois os indicadores avaliados consolidam a concepção de responsabilidade social
corporativa, na área empresarial. As empresas contatadas foram vencedoras (nos
termos do próprio Instituto) das edições de 2002 a 2005, da Região Sul. Das quatro
empresas, duas aceitaram enviar e/ou conceder seu relatório e balaço social para o
estudo; uma alegou impedimento administrativo, e outra não retornou os contatos
telefônicos e eletrônicos.112 Das duas que cederam o documento, apenas uma foi
selecionada, visto que o relatório da outra empresa não continha as informações
necessárias para a análise, sendo por isso descartado.
A seguir, inicio a exposição da análise do Relatório com uma breve
apresentação da empresa, segundo informações constantes no próprio documento.
Após, são analisadas as seguintes categorias:
a) tipologia dos investimentos no corpo funcional, priorizando as áreas
saúde, educação e formação profissional, com o objetivo de validar a
hipótese de que são estas as de interesse do empresariado;
b) tipologia dos canais de comunicação internos e externos e objetivo dos
mesmos e;
c) tipologia das ações destinadas à comunidade.
Mas, antes da apresentação da empresa e da análise das categorias
qualitativas acima citadas, cabe apresentar um breve checklist dos aspectos
considerados como vetores da responsabilidade social corporativa, e de seus
respectivos investimentos financeiros, segundo preceitos do Instituto IBASE,
110 Não há um consenso sobre as denominações e conteúdos de balanço social e de relatório social. Para efeito dessa pesquisa, balanço social é o demonstrativo físico-financeiro, nos moldes do balanço fiscal, e relatório social é a sistematização mais detalhada dos investimos presentes no balanço social. 111 Disponível em http://www.premiobalancosocial.org.br/. Acessado em 30/07/2007, as 22:10h
110
adotados pela Ethos. São eles: (a)Indicadores sociais internos e indicadores sociais
externos; (b) indicadores ambientais; (c)indicadores do corpo funcional;
(d)Informações de cidadania empresarial.
Destes interessam mais aqui os indicadores sociais internos e os externos,
cujo montante de investimentos financeiro esta compilados na Tabela 1, para efeito
de comparação entre os investimentos nesses indicadores e a Receita Líquida -
RL113 - da empresa em análise.
Segundo o modelo do IBASE, os indicadores sociais internos compreendem:
alimentação; encargos sociais compulsórios; previdência privada; saúde; segurança
e medicina do trabalho; educação; capacitação e desenvolvimento profissional;
creches e auxílio-doença; participação nos lucros ou resultados e outros. Os
indicadores externos são: cultura; educação; saneamento e saúde; esporte, combate
à fome e segurança alimentar; contribuições para a sociedade e tributos (excluídos
encargos sociais). Os indicadores ambientais compreendem: investimentos na
produção e/ou operação da empresa; investimentos em programas ou em projetos
externos.
Como esses documentos são públicos e, conforme a própria Ethos, têm por
objetivo promover a transparência das ações e criar um canal de comunicação e de
diálogo entre as empresas e a sociedade, entendo que não são necessários termos
de consentimento para uso das informações neles contidos.
5.3.2 O Estado da Arte: o caso de uma indústria do setor petroquímico
O estudo de caso, aqui apresentado, tem como objeto o Relatório Social de
uma empresa de grande porte do setor petroquímico (compõe o ranking das maiores
do Cone Sul), responsável por 40% da produção nacional de eteno, matéria-prima
básica de origem do petróleo, a partir da qual se fábricam resinas, como
polipropileno e polietileno, usadas pela indústria de plásticos. Situada em um dos
municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre, a empresa iniciou suas
atividades em 1977, em plena crise internacional do petróleo. Com uma Receita
112 Nesses, eu me identificava e evidenciava o interesse / motivo do acesso ao balanço social da empresa.
111
Bruta - RB114- de R$ 7.348,3 milhões, e uma Receita Líquida – RL - de R$ 5.616.420
milhões no ano de 2005, contabilizava em seu quadro funcional 940 pessoas
empregadas diretamente; 2.112 terceirizadas e 69 estagiários. Segundo o relatório,
no ano de 2006, ela alcançou o maior lucro líquido societário ajustado de sua
história (3,7 % maior do que o de 2004, ano até então de referência.) A Tabela
abaixo apresenta alguns dados a serem analisados logo a seguir:
Tabela 1
Demonstrativo de Dados do Balanço Social da Empresa
Indicadores Valor (R$) % sobre RL
Sociais Internos (sem encargos sociais
compulsórios).
57.295 1,02
Sociais Externos (sem os tributos) 10.284 0,19
Balanço Social Modelo IBASE da Empresa A, 2005.
a) Análise da tipologia dos investimentos no corpo funcional
Em contraponto ao recorde de rentabilidade alcançado em 2005 pela
empresa, interessa destacar que o número de funcionários com contrato direto
reduziu em 2006, na relação com o ano anterior; também se verificou um aumento
de 23% de funcionários terceirizados, o que permite problematizar o nível de preparo
destes últimos em relação à segurança e à saúde ocupacional, uma vez que são
significativos os riscos desse tipo de produção (doenças dermatológicas, pulmonares
e incêndios). O Relatório informa que as atividades de treinamento em segurança,
saúde e meio ambiente ocuparam 0,89% do total de horas trabalhadas, tendo como
público alvo os colaboradores e os prestadores de serviço. Contudo, não evidencia
claramente os tipos de treinamentos, e tampouco informa o quanto atingiram em
cada um dos dois públicos. Ora, sabe-se que um dos treinamentos a que é
submetida toda e qualquer pessoa que transita no interior desse tipo de planta
113 Receita Líquida é a diferença entre a Receita Bruta e as deduções das vendas, os abatimentos e os impostos. (Junior, Rigo, Cherobim, 2005). 114 Receita Bruta é a receita total decorrente das atividades-fim da organização. (Junior; Rigo; Cherobim, 2005).
112
industrial é o de assistir a um vídeo institucional com informações sobre
procedimentos de segurança a serem observados e de evacuação, quando em
situação de emergência. Se esse recurso é contabilizado como treinamento, então,
pouco sobra para outras modalidades.
A empresa adota uma sistemática de auditorias (não especifica se quem as
realiza são agentes internos ou externos) que tem por objetivo, segundo o Relatório,
verificar se os “[...] perigos decorrentes das atividades estão sendo corretamente
identificados e os riscos devidamente gerenciados e controlados” (p.61). Como
evidência, apresenta um gráfico que demonstra os custos fixos e os investimentos
nessa área, sendo que os primeiros (custos) aumentaram 1,9 em relação ao ano
anterior, e o segundo reduziu-se em 1,6. Novamente, não há elementos suficientes
para uma compreensão adequada desses dados. Hipoteticamente, pode-se inferir
que a queda nos investimentos é decorrente da suficiência e da adequação da
capacidade instalada, ou da não priorização da mesma em detrimentos dos custos
fixos. O aumento de investimentos nos custos é creditado ao tratamento dos
afluentes líquidos e resíduos sólidos, mas não há registro de ampliação do
tratamento ou do aumento por conta de alterações nos preços dos insumos.
Ainda sobre investimentos, o Relatório destaca a implantação do Sistema
Centralizado de Atendimento à Saúde Ocupacional para as empresas parceiras
(p.41), mas não o traduz em números e cifras. No âmbito do público interno da
empresa (funcionários dos três diferentes regimes de contratação) a saúde
ocupacional é regida por um sistema denominado Gestão de Segurança e Saúde
Ocupacional, que se subdivide em Gestão de Riscos Ocupacionais e Gestão de
Saúde Integral. A primeira compõe-se por três programas: Programa de Prevenção e
Controle de Riscos Ambientais Ocupacionais; Programa de Ergonomia115 e
Programa de Prevenção de Acidentes Pessoais. No subsistema de Gestão de
Saúde Integral, tem-se o Programa de Promoção da Saúde; o Programa de Controle
Médico e Outras Iniciativas de Controle da Saúde Integral. A globalidade do sistema
115 A ergonomia (ou fatores humanos, como é conhecida nos Estados Unidos da América) é a disciplina científica relacionada ao entendimento das interações entre seres humanos e outros elementos de um sistema, e também é a profissão que aplica teoria, princípios, dados e métodos para projetar a fim de otimizar o bem-estar humano e o desempenho geral de um sistema. Esta é a definição adotada pela Associação Internacional de Ergonomia (International Ergonomics Association - IEA ) em 2000.Disponivel em http://pt.wikipedia.org/wiki. Acessado em 12/09/2007, às 22:40.
113
atende aos padrões da OHSAS 18001116, cuja certificação a empresa já alcançou. O
balanço social que compõe o Relatório informa que os investimentos em saúde
foram na ordem de 0,10% da RL, e os em Segurança e Medicina do Trabalho,
0,08%. Como não há convergência entre os nomes dos programas do Sistema de
Gestão de Segurança e Saúde Ocupacional e os indicadores do balanço social, é
possível supor que o subsistema com maior aporte seja o de Gestão de Saúde
Integral, com 0,2% a mais do que o de Gestão de Riscos Ocupacionais. E, seguindo
essa suposição, pode-se inferir que a tendência do empresariado em investir na
promoção da saúde dos trabalhadores, como forma de garantir força de trabalho, se
confirma.
No que se refere aos investimentos na formação profissional, outro suposto
da presente pesquisa, o relatório evidência dois enfoques: um no fomento à
formação profissionalizante e outro no desenvolvimento para o modelo de gestão da
Empresa. O primeiro centra-se na educação formal (ensinos técnico, médio,
graduação, pós-graduação e idiomas) e em treinamentos (parceria com SENAI)
relacionados diretamente com o conhecimento e/ou domínio técnico e com o
negócio da empresa. O relatório informa que foram investidos R$ 3,2 milhões em
treinamento, e R$ 687 mil na educação formal. Destaca que 200 funcionários foram
beneficiados pelo Programa de Apoio à Educação Formal, sem, no entanto,
explicitar quais benefícios foram disponibilizados.
O segundo enfoque (desenvolvimento para o modelo de gestão da empresa)
tem por objetivo mudanças de ordem comportamental em três direções: (a) mudança
interior das pessoas; (b) assimilação e internalização da cultura organizacional e (c)
reforço de valores e conceitos corporativos (p. 79). Os setores que participaram dos
cursos de desenvolvimento foram aqueles que trabalham diretamente com os
processos de comunicação: informática; controle de processos e informações
industriais; assessoria de gestão de pessoas; assessoria de comunicação e
marketing. Também foram “beneficiados” os trabalhadores das áreas de segurança:
prevenção e controle de emergências; segurança e meio ambiente. Esse
investimento na disseminação e na consolidação dos valores organizacionais tem
por fundamento constituir uma cultura da adesão, e inscreve-se no âmbito das
116 É uma especificação que fornece às organizações os elementos de um Sistema de Gestão da Segurança e Sáude no Trabalho (SST). Significa Occupational Health and Safety Assessment Series,
114
práticas ideológicas de que o capital tem se utilizado para garantir sua reprodução e
legitimidade. A escolha dos setores supracitados não parece aleatória, uma vez que
esses são, em larga medida, os produtores de consciência (ou falsa consciência),
pois são responsáveis por formular e disseminar os conhecimento, saberes e operar
os controles organizacionais.
Outro fator que se presta a “aliciar” o trabalhador para a ideologia da
organização é o intrincado sistema de remuneração: sua política articula um valor
fixo e outro variável. Neste último, a margem é feita considerando os resultados
alcançados pela empresa; os resultados das unidades e os resultados dos “times”.
Com isso, instaura-se um ambiente laboral competitivo, que tem como produto
último o estranhamento entre os próprios trabalhadores. Além disso, a empresa
pratica uma política denominada Gestão da Evolução Profissional, pela qual atrela a
remuneração fixa a um determinado número de habilidades certificadas e praticadas.
Cada habilidade corresponde a uma pontuação, e essa a um valor fixo; conforme a
desenvoltura, o trabalhador pode aumentar ou perder pontos. Com isso, instaura-se
uma “corrida” individual por reconhecimento, e, na contrapartida, amplia-se ainda
mais a competição interna, antes restrita aos níveis de gestão. O relatório apresenta
os seguintes números em relação a essa política: “Em 2005 ocorreram 1.289
certificações e 512 perdas de certificações (pessoas que deixaram de praticar
alguma habilidade)” (p.84). Em termos de investimentos, o balanço social informa
que a educação formal recebeu 0,01% da RL, enquanto os Programas de
capacitação e desenvolvimento ficaram com 05%, evidenciando, assim, a
priorização deste último. Com isso, é possível afirmar que o investimento na
qualificação profissional não é mais a prioridade do empresariado, haja vista que,
contemporaneamente, e no ambiente das grandes corporações, o foco se deslocou
para o desenvolvimento ideológico da cultura organizacional.
b) Análise da tipologia dos canais de comunicação internos e externos
Com essa categoria, cumpro investigar as formas pelas quais o grande capital
se legitima (governabilidade) e garante parte de sua reprodução (governança), bem
como influi na reprodução das relações sociais117. Essas informações não constam
entrou em vigor em 1999, e sua certificação tem prazo de três anos. 117 O valor não é uma relação técnica, mas uma relação social entre pessoas, que caracteriza as relações sociais no capitalismo. Partindo da mercadoria, Marx identifica que elas possuem valor de
115
no modelo de balanço social do IBASE, mas são visíveis em alguns itens do relatório
como, por exemplo, quando trata das formas de comunicação empresa-
colaboradores (p. 89). Segundo o texto institucional, são canais de comunicação
interna: fóruns sistematizados; eventos informais (almoços e reuniões com a
diretoria); intranet e impressos periódicos editados pela Empresa. Estes últimos são
suportes importantes no processo de legitimidade, uma vez que reproduzem e
reforçam os valores organizacionais. Na empresa em tela são três as publicações:
(a) um jornal com duas tiragens semanais, com foco na divulgação de informações
sobre os assuntos considerados relevantes pela empresa; (b) um segundo jornal,
com publicação trimestral, com foco na cultura organizacional, reportagens sobre os
“colaboradores” de destaque e sobre o relacionamento empresa–comunidade; e (c)
um último, com periodicidade quinzenal, que atinge também os trabalhadores das
empresas parceiras; tendo como objetivo disseminar a cultura da segurança, da
saúde e do meio ambiente. Essas investidas logram sucesso por reiterarem a
importância dos colaboradores (trabalhadores) para a empresa, mas principalmente
por induzirem a internalização dos valores e dos objetivos da mesma.
c) Analise da tipologia das ações e de apoio social à comunidade
O balanço social qualifica em dois tipos os investimentos sociais externos: (a)
os que incluem educação; cultura; saúde e saneamento; esporte; combate à fome e
segurança alimentar, e (b) os tributos, excluídos os encargos sociais. Aqui se
evidencia claramente a alocação de obrigações fiscais e legais no âmbito da
responsabilidade social corporativa, fato que já se anunciava, por exemplo, nos
indicadores de segurança e saúde ocupacional. Somados, os ditos investimentos de
ordem moral118 da responsabilidade social não atingem mais do que 0,19% da RL,
enquanto os tributos alcançam 27,45%.
uso e de troca. No processo da troca expressa-se uma propriedade comum a todas as mercadorias: o trabalho humano em geral, diga-se, trabalho abstrato. O valor, então, é a objetivação do trabalho abstrato. O valor de uma mercadoria é o tempo em média gasto para produzi-la (trabalho socialmente necessário). O valor de uma mercadoria é diretamente proporcional à quantidade de trabalho abstrato nela materializado e inversamente proporcional à produtividade do trabalho concreto que a produz. O valor tem uma realidade puramente social, já que se revela e realiza apenas no contexto da circulação onde há troca entre mercadorias equivalentes, produzidas por produtores independentes, sendo o dinheiro o equivalente geral. Portanto, o valor é incorporado no momento da produção, mas se realiza na relação de troca (Bottomore, 1988, p.397). 118 No sentido de que não são obrigações (fiscais ou legais), mas, sim, contribuições desvinculadas de qualquer obrigatoriedade, que não a moral ou a política.
116
De toda forma, cabe destacar que tais investimentos são inferiores aos
deslocados pela empresa para o âmbito interno (1,15% da RL), o que parece indicar
que a prioridade da organização é o corpo funcional, em que pese 0,13% se referir
aos encargos sociais compulsórios, os quais, na minha concepção, não são
indicadores de responsabilidade social, mas, sim, obrigações fiscais e trabalhistas.
O Relatório inicia a apresentação do seu envolvimento com a comunidade
externa expondo os prêmios e as distinções alcançadas por seus “feitos” nessa área.
E, mais interessante, é que esses não se resumem ao reconhecimento pelas ações
e práticas sociais, mas atingem especialmente o reconhecimento do mercado, a
exemplo da distinção de Empresa com Melhor Retorno para seus Investidores, em
2004, conferido pela Agência Estado / Economática. Outro exemplo é o Troféu
Transparência 2005, pela clareza dos balanços contábeis, da Associação Nacional
dos Executivos de Finanças (ANEFAC), da Fundação Instituto de Pesquisa
Contábeis (FIPECAFI) e da Associação dos Dirigentes de Vendas do Brasil,
seccional Rio Grande do Sul (SERASA).
Em seguida, o relatório apresenta três premiações relacionadas às condições
e às oportunidades de trabalho, que colocam a empresa no ranking das melhores
para se trabalhar; uma outra da Bolsa de Valores da São Paulo, pelo nível elevado
de sustentabilidade empresarial; o reconhecimento da Associação dos Dirigentes
Varejistas Brasileiros (ADVB/RS), pelo alto índice de exportação; duas premiações
na área do meio ambiente (uma nacional e outra norte-americana), as cerificações
ISSO 9001 e 14001; OHSAS 18001; e como referência única da área social, o
Prêmio Balanço Social IBASE/ETHOS/FIDES, em 2004.
Os investimentos sociais externos não seguem uma programática alinhada
com o negócio da empresa, formando um grande mosaico. A ênfase é dada à área
cultural (0,11% da RL), na qual investe recursos próprios, utiliza subvenções e
incentivos fiscais. As iniciativas são diversas: publicações bibliográficas, cinema,
participação em feiras do livro, patrocínio de shows musicais, exposições,
seminários, institutos culturais e revitalização de espaços públicos urbanos.
Também os investimentos na comunidade revestem-se de pluralidade, indo
desde a fundação e a manutenção de quatro abrigos para crianças e adolescentes
até programas de geração de renda. No âmbito da saúde, o financiamento de
117
equipamentos e a reforma de unidades hospitalares são privilegiados. No que se
refere à educação, as ações da empresa são de formação profissional para
adolescentes; atualização de professores de escolas públicas; oficinas para crianças
e adolescentes em situação de rua e repasse de computadores e impressoras
usadas para organizações sociais. Há, também, os investimentos de ordem
socioambiental, de apoio financeiro e técnico a catadores de resíduos urbanos, e a
artesãs de lã de ovelha.
Em se tratando de uma empresa que produz a chamada “energia suja”, por
seu alto poder de contaminação e agressão ambiental, era de se esperar que os
investimentos em pesquisa de produtos de nova geração, chamados “limpos”,
tivessem interesse, orçamento e visibilidade garantidos. Por outro lado, também
estão ausentes as práticas de educação ambiental, fato que evidencia o descaso
com um dos principais problemas de ordem global. Se, por um lado, não é possível
negar os avanços a que os pressupostos da responsabilidade social empresarial
condicionam, como os investimentos em saúde ocupacional, por outro, também, é
impossível não demarcar que a principal responsabilidade do mercado não está
sendo considerada: a de produtor e socializador de trabalho. Ao contrário, há uma
redução crescente de utilização do fator humano, e, em especial, daquele não
capacitado para atender aos infindáveis e quase inatingíveis pré-requisitos das
empresas. Daí a flagrante dissolução do tecido social, da coesão que dá
sustentabilidade ao sistema capitalista, e que se impõe exigindo respostas que as
empresas não podem mais oferecer. Como medida compensatória, elas passam a
subsidiar algumas iniciativas sociais, que se revestem da lógica da eficiência e da
qualidade, mas cujo alcance e cobertura denunciam desde já as limitações dos
mesmos.
Por outro lado, o discurso de uma “nova consciência e prática” também não
se fundamenta, pois, se forem aplicados a essa dita “nova” prática e seu
protagonista os critérios que Arendt (in Sader, 1988, p.10) utiliza para identificar um
novo ator social, constata-se que estes não se adaptam ao empresariado vinculado
à responsabilidade social corporativa, quais sejam: (a) ser criado pelo próprio
processo, isto é, “[...] sem que teorias prévias os houvesse constituído e designado”
(idem); (b) ser “[...] um sujeito coletivo e descentralizado, despojado das duas
marcas que caracterizaram o advento da concepção burguesa: individualidade
118
solipsista [...] e o sujeito como consciência individual” (idem) e (c) ser um sujeito que
mesmo sendo coletivo “[...] não se apresentaria como portador de uma
universalidade definida a partir de uma organização determinada que operaria como
centro [...] para a qual não haveria propriamente sujeitos” (Arendt in Sader, 1988,
p.10)
Ora, a responsabilidade social corporativa é um desdobramento das antigas
práticas filantrópicas, mantendo, inclusive, alguns focos ao longo da História: a
ênfase em ações que contribuem para a reprodução do próprio trabalhador (saúde e
formação, por exemplo) e sua adesão as formas de reprodução das relações sociais,
por sua capacidade de unificar, através da ideologia, e de manter unificados classes
sociais antagônicas (Gramsci, 1991). Da mesma forma, a empresa dita socialmente
responsável tem como marca a individualidade, pois o que deve aparecer, nos
espaços públicos, é ela, nominalmente, atendendo à sua necessidade: de
visibilidade e de reconhecimento público. Tampouco ela nega ser portadora de uma
ideologia, inclusive denominando-a de “nova consciência cidadã”.
Por fim, mas não menos importante, essa prática se inscreve no âmbito do
novo padrão de respostas à Questão Social, em especial, naquele que se pauta nos
valores da solidariedade e no fetiche da doação, pelo qual uma atividade rentável é
transmutada em aparente doação (Montaño: 2002). E, tudo isso, sob a égide de um
“novo contrato social”, supraclassista, aos moldes de Rawls (1981).
119
6 CONCLUSÕES
“No meu olhar participa meu corpo por inteiro”
Kosík
Esta tese, mais do que produto de cinco anos de investimentos, é resultado
de minha trajetória política e profissional na área dos direitos sociais. E, se é
possível delimitar o início das indagações que alimentaram essa produção, ele se
situa no primeiro semestre do curso de Serviço Social da PUCRS, em 1996, quando,
então, eu questionava: O que é mesmo o social?
Essa “questão original” acompanhou minha formação acadêmica e minha
inserção profissional, esta ultima no âmbito da política de Assistência Social, espaço
de luta e resistência no qual me inscrevo desde os estágios curriculares. Em minha
monografia de conclusão de curso tive por foco o Controle Social exercido nos
conselhos de políticas públicas, que, entendo hoje, se constituiu no meu primeiro
esforço teórico em entender o social a partir do papel dos agentes implicado nessa
arena: Estado, organizações sociais, usuários e trabalhadores da área. Já formada,
ingressei no serviço público e fui lotada em uma fundação de assistência social, na
qual tive oportunidade de trabalhar com população em situação de rua e também
migrantes. Mas a resposta continuava ainda inconclusa, pois o cotidiano profissional
teimava em não evidenciar, claramente, o que era, enfim, o social: se um campo de
lutas, no qual interesses antagônicos de classes se enfrentam; se um espaço de
controle, na acepção primeira, isto é, como meio e/ou instrumento de cooptação,
ajustamento e/ou coerção dos segmentos populacionais subalternizados, através do
acesso à renda, aos bens e serviços sociais; ou uma nova área de mercantilização
da sociedade.
Entendi, por fim, que a resposta (se é que havia uma), só poderia emergir no
âmbito da produção científica. Então, o mestrado impôs-se, e voltei ao ambiente
acadêmico, revigorada na dúvida e no desejo da aventura científica. Mas mais do
que promover a descoberta acerca da natureza do objeto (social), o mestrado foi um
momento de aprendizado de um modo especifico de indagar a realidade e produzir
conhecimento: o cientifico - racional. Não saldei a conta: o social continuou
indefinido; algo que ninguém explica, mas todo mundo parece que sabe o que é.
120
Mas, sem dúvida, obtive um valioso legado: aprendi que conhecimento é, antes e
acima de tudo, um argumento que se funda na realidade e exige senso critico, rigor
metodológico e clareza na escolha teórica.
A pesquisa, antes uma “paixão” despertada na iniciação científica, tornou- se
uma exigência cotidiana, uma prática indissociável da realidade profissional. Nesses
tempos, eu já estava no exercício da docência, talvez o caminho “natural” da
curiosidade científica. E, nessa condição, senti-me constrangida a enfrentar
novamente a “questão original”, agora não mais em causa própria, mas como
requisito mesmo de uma profissional que tem a sua frente a responsabilidade pela
formação de outros profissionais. E aí a epopéia, que se condensa nessa tese, de
que O social se constitui historicamente como uma das estratégias de legitimidade e
reprodução do sistema capitalista, tendo como uma de suas principais funções
garantir a coesão social, teve (re)início.
No esforço de encontrar um significado para a “questão original”, fui desafiada
a construir um sistema de mediações que me permitisse compreender o objeto a
partir de algumas de suas particularidades como, por exemplo, o seu conteúdo ao
longo do tempo, os determinantes ideo-políticos que lhe conferem legitimidade, os
diferentes sujeitos que de e para lá convergem. Essas mediações autorizam-me, por
ora, a inferir que o social é o elemento, a “argamassa” mesmo, que tem a função de
manter em um nível aceitável a coesão social, uma vez que a sociedade capitalista
guarda uma contradição inevitável (porém amplamente negada): o discurso da
igualdade e a realização da desigualdade. Dito de outra forma, se, por um lado, a
acumulação exige a apropriação do excedente do trabalho socialmente produzido,
por outro, exige a constituição de estratégias e mecanismos que dissimulem essa
contradição, sob pena e risco de desagregação do sistema. Do ponto de vista
histórico, essas estratégias oscilaram entre controle, ajustamento e solidariedade,
em larga medida, e concessão forçada à lógica da justiça social, em menor escala.
O percurso empreendido pela Declaração dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais e pela Declaração dos Direitos dos Homens, assim como pela
contemporânea e fragmentada forma de tratar a Questão Social (via privatização
para as organizações sociais, para o mercado, para as próprias comunidades e para
as iniciativas individuais), permite afirmar que, independentemente de vontade ou
121
desejo voluntário e solidário, a sociedade moderna tem sido forçada a dar respostas
a essas necessidades.
Seguindo essa lógica, também é possível validar a hipótese de que, para a
sociedade capitalista, o social é tão importante quanto o econômico, mas não por
uma questão principiológica e sim pelo risco que ele, ao mesmo tempo, impõe e
consegue continente. O argumento para essa assertiva emerge já no Capítulo II,
quando o percurso histórico evidencia o recorrente uso da ideologia como forma de
contenção da Questão Social. Esta, por seu turno, é tratada no âmbito dos grandes
pactos sociais, estratégia que promove legitimidade ao sistema capitalista, pois
condiciona à cooperação os sujeitos que logram partilhar as “deliberações”em uma
esfera que tem a pretensão de ser pública. Contudo, esses não são acordos fáceis,
mas, sim, os possíveis, uma vez que os processos decisórios são atravessados, em
maior ou menor grau, pela contradição entre o pressuposto da igualdade e a
existência da desigualdade.
Este último argumento confirma a primazia de um fundamento ideológico na
constituição dos acordos possíveis sobre o conteúdo do social: o liberalismo, o qual
se esforça para realizar sua reforma moral e social, imprescindível para a
reafirmação de sua hegemonia, nos termos de Behring (2005) Mas, também aqui, há
que se destacar a existência de determinadas conjunturas (política, social,
econômica) nas quais outro fundamento garante seus interesses, a exemplo das
políticas sociais que têm por respaldo o pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais.
A exposição textual aqui apresentada leva a se deduzir que o modus operandi
dos sujeitos e das organizações que materializam o social expressa uma tendência
histórica à reificação de determinados produtos e/ou serviços, como saúde,
educação e transferência de renda. O Capítulo 5 permite ratificar esse suposto,
como também o que vincula, contemporaneamente, essas práticas aos padrões e à
instrumentalidade do mercado, uma vez que a questão posta, hoje, não é de
transformação das relações sociais capitalistas, mas de mudanças individuais, no
sentido de ajustamento dos mais aptos (lógica da meritocracia). O social é, pois,
uma questão de racionalização da gestão, sob a ótica da eficiência e não mais da
efetividade, ou, de desviar a atenção do conflito entre direitos e poder para as
questões de sociabilidade e de gestão.
122
Essencial ao estabelecimento dessa lógica é o processo que informa a
subsidiariedade – Estado como ator suplementar – no trato da Questão Social, que
privatiza e desloca para a sociedade civil a execução, a oferta e, em alguns casos, a
mercantilização dos produtos e serviços sociais. Com isso, o custo e o risco da
democratização dessa esfera, que se pronuncia através do direito constitucional do
controle social, é eliminado significativamente, pois a submissão a esse controle só
se realiza quando há repasse direto de recurso público estatal. No caso das práticas
empresariais, a forma de cofinanciamento de suas iniciativas é a da renúncia fiscal,
em que pese ser esta também um modp indireto de acesso ao fundo público. Nesse
sentido, as práticas de responsabilidade social corporativa acabam por se revestir do
caráter filantropo, porque estão associadas a uma “consciência moral”. Essa
conversão se processa como resultado da inconsistência entre o discurso do direito
e as práticas sociais focalizadas, que beneficiam um reduzido número de “eleitos”.
Em termos de projeção, o que o estudo salienta é que a responsabilidade
social corporativa de “novo” tem, no limite, a racionalidade instrumental que imprime
às suas práticas, pois, de resto, o que se observa são as reedições supra-citadas,
agora muito mais voltadas para o elemento ideológico do que para a reprodução de
seus trabalhadores, no que se refere às ações ditas internas. Do ponto de vista das
ações externas, em especial as dirigidas à comunidade, persiste o discurso da
cooperação extraclasses, não como devolução de um serviço já pago, através da
apropriação do excedente do trabalho socialmente produzido (Iamamoto, 1995, p.
96).
Da mesma forma, é possível sublinhar que os investimentos sociais não têm
por fundamento o enfrentamento às desigualdades sociais, até porque tal intenção
exigira medidas efetivas, como a de ampliação da oferta de postos de trabalho com
suas correlatas proteções sociais, perspectiva esta na contramão da expansão
material do capital hoje, que necessita menos do trabalho vivo do que do produzido
pelas complexas tecnologias da informação e da automação. E, mesmo quando da
necessidade de ocupação do fator trabalho, a opção tem sido pelas formas mais
precarizadas de contratação, como aquelas que regem os contratos terceirizados.
A lógica da solidariedade local, mediatizada pela relação direta entre doador e
beneficiário, indica uma recusa à solidariedade universal, mediatizada pelo Estado a
um sujeito portador de direitos. Como resultado, tem-se o esvaziamento da
123
cidadania em seu eixo político (o do controle social, como anteriormente aludido), e,
com isso, a negação do social não só como a esfera da redistribuição da riqueza
socialmente produzida, mas principalmente como um campo político de luta pela
direção teleológica da sociedade.
BIBLIOGRAFIA
ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
BAPTISTA, P. N. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. In Em defesa do interesse nacional: desinformação e alienação do patrimônio público. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
BEGHIN, N. A Filantropia Empresarial: nem caridade, nem direito. São Paulo: Cortez, 2005.
BEHRING, E.; BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2006.
BIRDSALL, N.; LA TORRE, A. El disenso de Washington – políticas económicas para la equidad social en Latinoamérica. Fondo Carnegie para la Paz Internacional y Diálogo Interamericano, 2001.
BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BOTTOMORE, Tom (Org.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
BOURDIEU, P. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003.
_____. Esboço de uma teoria da prática. In: Ortiz, R. (org.) Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
_____. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas: Ed. Papirus, 1996.
BRAGA, L.; CABRAL, M. do S. R. O Serviço Social na Previdência: trajetória, projetos profissionais e saberes. São Paulo: Cortez, 2007.
CAPPELLIN, P; GOMES, E.; KIRSCHNER, A. M. Empresas, Empresários e Globalização. Rio de Janeiro: Relume Dumará / Faperj, 2002.
CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão Social – uma crônica dos salários. Petrópolis: Vozes, 1998.
_____, ____; (et al) Desigualdade e a Questão Social. São Paulo: Educ, 2000.
125
CASTRO, A. T. B. Espaço Público e Cidadania - uma introdução ao pensamento de Hannah A. In Serviço Social e Sociedade, n. 59, Ano XX, 1999.
CHAUÍ, M. Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000.
CHOMSKY, N. Linguagem e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1977.
COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo: ordem e progresso. Porto Alegre: Globo, 1976.
COUTINHO, C. N. Contra a Corrente: ensaios sobre a democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 1995.
______________. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981.
COUTO, B. R. O direito social e a assistência social na sociedade brasileira: uma equação possível? São Paulo: Cortez, 2004.
DICIONÁRIO DO PENSAMENTO SOCIAL DO SÉCULO XX. Trad. ALVES, Eduardo Francisco, CABRAL, Álvaro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
DOWBOR, L. Economia social no Brasil. São Paulo: SENAC, 2001.
FALEIROS, V. de P. Estratégias em Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1999.
FLORES, M. Dicionário de História do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. (1 ed. 10 im.) São Paulo: Novas Fronteira, 1975.
FOUCALT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o Último Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas Técnicas para o Trabalho Científico: Elaboração e Formatação. Explicitação das Normas da ABNT. 14. ed. Porto Alegre: s.n., 2006.
GOFFMAN, E. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975.
HAYEK, F. A. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, 1985.
______. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro: Globo, 1945.
______. O caminho da servidão.Porto Alegre: Globo,1946.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOBBES, T. De Cive. Petrópolis: Vozes, 1993
______. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
GOÉS, M. C. P. A Formação da Classe Trabalhadora: movimento anarquista no Rio de Janeiro, 1888-1911. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
126
GRAMSCI, A. Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
GUARESCHI, P. A. Sociologia Crítica : alternativas de mudança. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
IAMAMOTO, M. V. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social: ensaios críticos. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1995.
______. Serviço Social em Tempo de Capital Fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007.
______. Serviço Social na Contemporaneidade. São Paulo: Cortez, 2001
JAMUR, M. Reflexões Sobre Uma Esfera Construída e Conflitual – o “social”. In O Social em Questão. Vol. 1, n. 1. Rio de Janeiro: PUCRJ, DSS, 1997.
JOHNSON, A. G. Dicionário de Sociologia: guia pratico da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,. 1997.
JUNIOR, A. B. L.; RIGO, C., M.; CHEROBIN, A. P. M. S. Administração Financeira: princípios, fundamentos e práticas brasileiras. Rio de Janeiro: Elzevier, 2005.
KARNAL, L. Revolução Americana: Estados Unidos, Liberdade e Cidadania. In PINSKY, J. & PINSKY, C.(orgs.) Histórias da Cidadania.Sao Paulo: Contexto, p. 135-158, 2003.
KEYNES, J. M. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Coleção os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
LAROUSSE CULTURAL. Grande Enciclopédia Ilustrada. Vol. I à XXV, São Paulo: Nova Cultural, 1999.
LAUTIER, B. Representações e Regulações Estatais da Pobreza na América Latina. In Sociedade e Estado, v. XIII, n. 1, 1998.
LEWIN, K.. Teoria do Campo em Ciências Sociais. São Paulo: Pioneira, 1970.
MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
MARSHALL, T. H. Cidadania e Classe Social. Brasília: Senado Federal, Centro de Estudos Estratégicos, Ministério da Ciência e Tecnologia, 2002.
MARCOCCIA, R. M. O Princípio da Subsidiariedade e a Participação Popular. In Serviço Social e Sociedade, n. 86, Ano XXVII, 2006.
MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
______. O Capital. Ed resumida. Rio de Janeiro: LTC Editora S. A. 1982.
______; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martin Claret, 2006.
MERQUIOR, J. G.O Liberalismo Antigo e Moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
127
MIRANDA, J. Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1990.
MONTAÑO, C. Terceiro Setor e Questão Social: critica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.
NETO, F. P. de M.; FROES, C. Responsabilidade Social e Cidadania Empresarial: a administração do terceiro setor. Rio de Janeiro: Qualitmark, 1999.
NETTO, J. P. Cinco Notas a Propósito da Questão Social. In Temporalis, Ano 2, n. 3 (jan/jun.2001) Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001.
______. FHC e a Política Social: um desastre para as massas trabalhadoras. In LESBAUPIN, I. (org.) O Desmonte da Nação: balanço do governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999.
ODALIA, N. Revolução Francesa: Liberdade como Meta Coletiva. In PINSKY, J. & PINSKY, C.(orgs.) Histórias da Cidadania. São Paulo: Contexto, p. 158-169, 2003.
PEREIRA, L. C. B. Sociedade Civil: sua democratização para a reforma do Estado. In PEREIRA, L. C. B.; WILHEIM, J.; SOLA, L. (org.) Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo: UNESP; Brasília: ENAP, 1999.
PEREIRA, P. (et al) Questão Social, Serviço Social e Direitos da Cidadania. In Temporalis, Ano 2, n. 3 (jan/jun.2001) Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001.
______. .Necessidades Humanas: subsídios à critica dos mínimos sociais. São Paulo: Cortez, 2000.
POCHMANN, M (et. al.) Atlas da Exclusão Social: agenda não liberal da inclusão social no Brasil. Vol. 5, São Paulo: Cortez, 2005.
_______________ (et. al.) Atlas da Exclusão Social: dinâmica e manifestação territorial. Vol. 2, São Paulo: Cortez, 2003.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campos, 2000.
PORTO, P. R. da F. Direitos Fundamentais Sociais: considerações a cerca da legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2006.
RAICHELIS, R. Esfera pública e Conselhos de Assistência Social: caminhos da construção democrática. São Paulo: Cortez, 1998.
RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça. Brasília: UNB, 1981
ROCHA, V. O Liberalismo Social: uma visão doutrinária. Cadernos Liberais. São Paulo: Lis Gráfica, 1998.
ROSANVALLON, P. A Nova Questão Social: repensando o Estado Providência. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998.
ROUSENAU, J. N. Governança, ordem e transformação na política mundial. Brasília: UnB, 2000.
128
RUSS, J. Dicionário de Filosofia: os conceitos, os filósofos. São Paulo:Scipione, 1994.
ROUSSEAU, J. Do Contrato Social. Sao Paulo: Martin Claret, 2004.
SADER. E. Quando novos Personagens entram em Cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SALAMA, P. e VALIER, J. Uma Introdução à Economia Política. Trad. Coutinho, C. N. Rio de Janeiro: Civilizações Brasileiras, 1975.
SCHERER, A. L. F. O Modelo Norte-Americano de Governança Corporativa - gênese, instrumentos e conseqüências (mimeo). PUCRS, s/d.
SEM, A. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia da Letras, 2000.
SILVA, R B. O Jeca Tatu' de Monteiro Lobato: Identidade do Brasileiro e Visão do Brasil. In: 19&20 - A revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume II, n. 2, abril de 2007. Disponível em http://www.dezenovevinte.net/.
SINGER, P. Direitos sociais - a cidadania para todos. In PINSKY, J. & PINSKY, C.(orgs.) Histórias da Cidadania. São Paulo: Contexto, p. 190-263, 2003.
SMITH, A. Riqueza da Nações. Vol. I e II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkiam, 1987.
SORMAN, G. A Solução Liberal. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1989.
STEIN, R. A (Nova) Questão Social e as Estratégias de seu enfrentamento. In Ser Social n.6. Revista do Programa de Pós- Graduação em Serviço Social. UNB, DF, jan. 2000, p.133-168.