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Universidade Federal do Pará Instituto de Letras Mestrado em Letras Disciplina: Teorias Críticas Professor: Sílvio Holanda Do verso ao universo: A Rosa do Povo de Drummond e o percurso crítico de José Guilherme Merquior Belém 2013 1

Do Verso Ao Universo, A Rosa Do Povo de Drummond e o Percurso Crítico de Merquior

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Do Verso ao Universo: A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade

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Universidade Federal do ParáInstituto de Letras

Mestrado em LetrasDisciplina: Teorias CríticasProfessor: Sílvio Holanda

Do verso ao universo: A Rosa do Povo de Drummond e o percurso crítico de José Guilherme Merquior

Belém2013 1

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Do Verso ao Universo:A Rosa do Povo de Drummond e o percurso crítico de

José Guilherme Merquior

Andréa Leitão, Laurenice da Conceição, Maria Madalena Felinto, Raphaela

Rabelo

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José Guilherme Merquior

(Rio de Janeiro, 22 de abril de 1941 – Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1991)

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Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Guilherme_Merquior. Acesso em: 20 maio 2013.

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Introdução à obra crítica

A análise é constituída por três planos:

• Estilístico;• Sociológico;• Dialógico (em relação à literatura ocidental moderna).

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(1945)

(1940)

(1942)Disponível em:

http://www.projetomemoria.art.br/drummond/obra/poesia_livros.jsp 5

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Carlos Drummond de Andrade Itabira, 31 de outubro de 1902 — Rio de Janeiro, 17 de agosto de

1987

Cena de O poeta de Sete faces. Direção de Paulo Thiago. Produção de Gláucia Camargos. Brasil, 2001. 94 min. 6

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CANDIDO, Antonio. “Plataforma da Nova Geração”. In: TALARICO, Fernando Braga Franco. História e Poesia: texto e contexto em A Rosa do povo (1945). Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo. 2006.

__________________. “Fazia Frio em São Paulo”. In: TALARICO, Fernando Braga Franco. História e Poesia: texto e contexto em A Rosa do povo (1945). Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2006.

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_____________. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond. Tradução de Marly de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

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A Rosa do Povo: olhos sujos no relógio da

torre

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89101112

ANDRADE, Carlos Drummond. A procura da poesia. In: ______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 76. 10

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I.1 Este é tempo de partido2 De homens partidos.

3 Em vão percorremos volumes,4 viajamos e nos colorimos.5 A hora pressentida migalha-se em pós na rua.6 Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.7 As leis não bastam. Os lírios não nascem8 da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se9 Na pedra.

[...]ANDRADE, Carlos Drummond. Nosso tempo. In: _____. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 82.

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ANDRADE, Carlos Drummond. O lutador. In: ______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 67.

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BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução [Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit In: Illuminationen. Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1961. p. 148-184.] Tradução de José Lino Grünewald. In Grünewald, José Lino [org]. A Ideia do Cinema. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1969, p. 55-95.

Walter Benjamin1892 - 1940 Disponível em: http://www.filoinfo.bem-vindo.net/Walter-Benjamin.

Acesso em: 14 maio 2013.

“Na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a sua aura” (BENJAMIN, 1969, p. 14)

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A aparente poética da expressão: poesia pela poesia e tempo presente

“Haveria paradoxo em negar preliminarmente os assuntos, para concluir que o objeto da poesia é a manipulação da palavra?” (CANDIDO, 1970, p. 117).

“Para o poeta, tudo existe antes de mais nada como palavra. Para ele, a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no universo do verbo. A idéia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é, significado, graças a escolha de uma palavra que a designa e a posição desta estrutura do poema” (CANDIDO, 1970, p. 117-118).

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A aparente poética da expressão: poesia pela poesia e tempo presente

“Toda veleidade concernente à expressão ‘direta’ do pensamento é ilusória; para exprimir o que quer que seja, é preciso passar pelo estranho reino das palavras. Entretanto, uma vez que aí se tenha ‘vivido’, cada uma das intenções expressivas defendidas na primeira parte do poema se torna princípio válido” (MERQUIOR, 1976, p. 77).

“Para ele [Drummond], a experiência da linguagem, por mais importante, por mais necessária que seja, é o meio, não o fim do discurso literário” (MERQUIOR, 1976, p. 78).

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1 Não rimarei a palavra sono2 com a incorrespondente palavra outono.3 Rimarei com a palavra carne4 ou qualquer outra, que todas me convêm.5 As palavras não nascem amarradas,6 elas saltam, se beijam, se dissolvem,7 no céu livre por vezes um desenho,8 são puras, largas, autênticas, indevassáveis.ANDRADE, Carlos Drummond. Consideração do Poema. In: ______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 75.

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9 Uma pedra no meio do caminho10 ou apenas um rastro, não importa.11 Estes poetas são meus. De todo o orgulho,12 de toda a precisão se incorporam13 ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius14 sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.15 Que Neruda me dê sua gravata16 chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus,

Maiakovski.17 São todos meus irmãos, não são jornais18 nem deslizar de lancha entre camélias:19 é toda a minha vida que joguei[...]ANDRADE, Carlos Drummond. Consideração do poema. In: _____. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 75.

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A negação da hierarquia verbal clássica e o anti-sentimentalismo

Assim, nega o poeta uma arte decorativa, uma “poética da expressão” (MERQUIOR, 1976, p. 74). A poesia nasce do embate com as palavras, em que o lirismo busca não uma expressão do “eu”, mas do “eu” em relação às suas percepções sobre o mundo. Nesse sentido, ocorre um paradoxo na poética drummondiana (segundo Candido, 1970): a fuga de uma poesia confessional que, contraditoriamente, conflui numa poética social.

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01 Onde foi Tróia,02 onde foi Helena,03 onde a erva cresce,04 onde te despi.

05 onde pastam coelhos06 a roer o tempo,07 e um rio molha08 roupas largadas,

09 onde houve, não10 há mais agora11 o ramo inclinado,

12 eu me sinto bem13 e aí me sepulto14 para sempre e um dia

ANDRADE, Carlos Drummond. O poeta escolhe seu túmulo. In:______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p.93. 19

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Com a busca metapoética, pois “nele tudo é palavra” (PIGNATARI apud CAMPOS, 2006), Drummond ensaia uma referência à estética romântica, diz Merquior (1976, p. 74), num lirismo no entanto que ainda não chega à pura ironia da paródia, mas já desnuda o processo de construção da obra de arte, a inevitável carga genética em relação à produção anterior, seja para louvá-la ou como é mais comum no que se refere à Arte de modo geral, para desmistifica-la. Nesse sentido, é óbvio que essa retomada não é ingênua: “trata-se de um romantismo modernizado, isto é, antiidealista e anti-sentimental” (MERQUIOR, 1976, p. 74)

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O falso conflito entre metapoema e poema político

Entretanto, mesmo se privilegiássemos apenas a metalinguagem, encontraríamos uma referência ao tempo presente do poeta: a procura da poesia não é senão a procura da expressão (MERQUIOR, 1976, p. 75), mas de uma expressão muito sua entre outras formas da linguagem. Em outras palavras, mesmo as escolhas linguísticas do poeta situam-se na história de sua linguagem. Nesse sentido, diz Merquior: “Pode acontecer que a dureza, a aspereza das palavras esteja em relação com a revolta reprimida do poeta diante das misérias de nossa época” (MERQUIOR, 1976, p. 75).

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01 Em verdade temos medo. 02 Nascemos no escuro. 03 As existências são poucas; 04 Carteiro, ditador, soldado. 05 Nosso destino, incompleto. 06 E fomos educados para o medo. 07 Cheiramos flores de medo. 08 Vestimos panos de medo. 09 De medo, vermelhos rios 10 Vadeamos.

ANDRADE, Carlos Drummond. O Medo. In:______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 82. 22

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01 A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.02 Os telegramas de Moscou repetem Homero.03 Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo

[novo04 que nós, na escuridão, ignorávamos.05 Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída, 06 na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,07 no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das

[bombas, 08 na tua fria vontade de resistir.

ANDRADE, Carlos Drummond. Carta a Stalingrado. In:______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 132.

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CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: ______. Vários Escritos. São Paulo: Duas cidades, 1970. p. 106.

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É claro que a linguagem poética é quem faz essa molda as percepções do poeta em seu olhar subjetivo. Seria ingênuo declarar que há a correspondência direta entre a produção drummondiana e seu tempo presente. De acordo com Merquior (1976), não há entretanto uma exclusão mútua entre os elementos da obra de Drummond, pelo contrário; a busca metalinguística, que abre os componentes da composição poética, que faz-nos pensar na seleção e combinação das palavras (não rimarei a palavra sono...), abre portanto dois caminhos na poesia drummondiana: o da busca formal, e de uma busca temática poética, uma poesia pela poesia.

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Em contato com as misérias de sua época, é portanto pelas palavras em suas múltiplas combinações, em suas “mil faces secretas sob a face neutra” (em “Procura da poesia”), que o autor encontra a rosa com que luta e pode ser, como as palavras, puro, largo, autêntico e indevassável (“Consideração do poema”). Assim, “Procura da poesia” ou outro poema considerado metapoético de nenhum modo desautoriza a abordagem de temas do “mundo”.

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[...]

16 Penetra surdamente no reino das palavras.17 Lá estão os poemas que esperam ser escritos.18 Estão paralisados, mas não há desespero,19 há calma e frescura na superfície intata.20 Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.21 Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. 22 Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.23 Espera que cada um se realize e consume24 com seu poder de palavra25 e seu poder de silêncio.26 Não forces o poema a desprender-se do limbo.27 Não colhas no chão o poema que se perdeu.28 Não adules o poema. Aceita-o29 como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada30 no espaço.

ANDRADE, Carlos Drummond. O poeta escolhe seu túmulo. In:______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 76.

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31 Chega mais perto e contempla as palavras.32 Cada uma33 tem mil faces secretas sob a face neutra34 e te pergunta, sem interesse pela resposta,35 pobre ou terrível que lhe deres:36 Trouxeste a chave?

37 Repara:38 ermas de melodia e conceito 39 elas se refugiaram na noite, as palavras.40 Ainda úmidas e impregnadas de sono,41 rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

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1 Preso à minha classe e a algumas roupas, 2 Vou de branco pela rua cinzenta.3 Melancolias, mercadorias espreitam-me.4 Devo seguir até o enjôo? 5 Posso, sem armas, revoltar-me?

6 Olhos sujos no relógio da torre: 7 Não, o tempo não chegou de completa justiça. 8 O tempo é ainda de fezes, maus poemas,

alucinações e espera. 9 O tempo pobre, o poeta pobre 10 fundem-se no mesmo impasse.

Disponível em: http://marciamensagem.blogspot.com/2011/11/flor-e-nausea-carlos-drummond-de.html [alterada] Acesso em: 17 maio 2013.

ANDRADE, Carlos Drummond. A flor e a náusea. In: ______. Reunião: 10 livros de Carlos Drummond de Andrade. José Olympio: 1980, p. 75

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Do lirismoà escritura

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Amor, lirismo e outros domínios emocionais

“A crítica da civilização de modo algum exclui, em Drummond, o amor à vida. Por pior que seja o peso das tristezas, por diversas que sejam as fontes da angústia e constante sua ação sobre os homens, uma espécie de aceitação cristã da existência, bem distante da simples resignação histórica, acaba por superar o desespero cotidiano. É sempre possível ‘vencer o desgosto’, ‘calcando o indivíduo’, descobrindo o outro,

pois a hora mais belasurge da mais triste.

(“Uma hora e mais outra” In: ANDRADE, 1980, p. 88)

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“O mito” (ANDRADE, 1980, p. 100)

“O auge da historicização do ‘sentimento do mundo’ está no lirismo erótico de ‘O mito’. É a descrição de uma paixão violenta –

01 Sequer conheço Fulano, 02 vejo Fulana tão curto, 03 Fulana jamais me vê, 04 mas como eu amo Fulana. ..........................................

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09 Amo Fulano tão forte 10 amo Fulana tão dor, 11 que todo me despedaço 12 e choro, menino, choro.

13 mas Fulana vai se rindo... 14 Vejam Fulana dançando, 15 No esporte ela está sozinha. 16 No bar, quão acompanhada.

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• A redondilha maior (medida velha; versos de sete sílabas) se presta com maleabilidade ao contraste entre a intensidade do amor e a situação ridícula do enamorado, totalmente ignordo de sua dama (vejo Fulana tão curto,/Fulana jamais me vê);

• Notas “sóbrias e desidealizantes” não contrariam o tom patético: a ausência “pudica” dos pontos de exclamação nas proposições exclamativas (vv. 4, 12 e 16), a expressão coloquial ( e choro, menino, choro), a indeterminação do nome da mulher amada;

• Estilo mesclado: retratado no perfil de Fulana, a jovem moderna da alta-burguesia e o sofrimento solitário de seu pobre adorador:

(MERQUIOR, 1976, p. 85)34

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• Stilmischung [mescla de estilos]

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental [Mimesis: dargestellte wirklichkeit in der abendlaendischen literatur, 1946]. Tradução coletiva para a língua portuguesa. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 499-500.

Mistura do sublime com o grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. [...] quebraram a regra clássica da diferenciação dos níveis, segundo a qual a realidade quotidiana e prática só poderia ter seu lugar na literatura no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve, colorido e elegante.

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21 E sequer nos compreendemos.22 É dama de alta fidúcia,23 tem latifúndios, iates,24 Sustenta cinco mil pobres.

25 Menos eu... Que de orgulhoso26 me basto pensando nela.25 Pensando com unha, plasma,26 fúria, gilete, desânimo.

25 Amor tão disparatado.26 Disparatado é que é... ................................... 36

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30 Mas eu sei quanto me custa31 manter esse gelo digno,32 esta indiferença gaia33 e não gritar: Vem, Fulana!

34 Como deixar de invadir35 sua casa de mil fechos36 e sua veste arrancando37 mostrá-la depois ao povo

38 tal como é ou deve ser:39 branca, intata, neutra, rara,40 feita de pedra translúcida,41 de ausência e ruivos ornatos. 37

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• A própria intensidade da paixão já tinha sido expressa de modo insólito, com um substantivo em função adverbial (tão dor, v. 10); agora a ironia recorre ao vocabulário démodé (dama de alta fidúcia) e à hipérbole (sustenta cinco mil pobres); o discurso da obsessão amorosa une o concreto e o abstrato (com unha, plasma, fúria, gilete, desânimo), não hesita em servir-se de termos não-“poéticos” (plasma, gilete), e chega até o trocadilho (disparatado/desbaratado).

• O controle humorístico do tema não impede a fantasia do poeta de divinizar o distante objeto de seus desejos –

42 branca, intata, neutra, rara,43 feita de pedra translúcida,44 de ausência e ruivos ornatos.

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O jogo dos timbres em claro-escuro (a/eu,u: intAta, nEUtra, rAra; translúcida: rUivos ornatos), o zeugma tão sugestivo ( feita de ...ausência e ruivos ornatos), tudo contribui para marcar a nudez de deusa de Fulana. Seu apaixonado mal consegue afetar um mínimo de indiferença. Sob esse “manter a aparência” que denota o clichê ( esse gelo digno), seu estado é lamentável. O epíteto-onomatopeia gaia (v. 35) só faz acentuá-lo de forma mais irônica. O sofredor não tardará a lançar-se numa busca delirante da eterna ausente. Obsedado pela imagem de Fulana, não consegue esquecê-la.

81 E são onze horas da noite,82 são onze rodas de chope,83 onze vezes dei a volta84 de minha sede; e Fulana

85 talvez dance no cassino86 ou, e será mais provável,87 talvez beije no Leblon,88 ou talvez se banhe na Cólquida;

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89 talvez se pinte no espelho90 do táxi; talvez aplauda91 certa peça miserável 92 num teatro barroco e louco;

93 talvez cruze a perna e beba,94 talvez corte figurinhas,95 talvez fume de piteira,96 talvez ria, talvez minta.

97 esse insuportável riso98 de Fulana de mil dentes89 talvez 99 (anúncio de dentifrício)100 é faca me escavacando. 40

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• As anáforas traduzem implacáveis a natureza obsessiva de seu amor. A sequência assindética dos talvez não se modera, admitindo conjunções (ou, e será mais provável) senão para dar lugar à suspeita do ciúme (talvez beije no Leblon). Entretanto, a deusa, sem nada perder de seu poder de sedução, já começa a receber referências ligeiramente degradantes: o sorriso é comparado aos rostos dos anúncios publicitários (v. 95) ... Não importa; esse sorriso estereotipado penetra o coração do poeta (ver as aliterações do v. 100: é faca me escavacando); acaba por desesperá-lo, sugerindo-lhe a clássica agressão dos infelizes passionais: o suicídio.

(MERQUIOR, 1976, p. 87)41

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101 Me ponho a correr na praia.102 Venha o mar! Venham cações!103 Que o farol me denuncie!104 Que a fortaleza me ataque!

105 Quero morrer sufocado,106 quero das mortes a hedionda,107 quero voltar repelido108 pela salsugem do largo,

109 já sem cabeça e sem perna,110 à porta do apartamento,111 para feder: de propósito,112 somente para Fulana. 42

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113 E Fulana apelará114 para os frascos de perfume.115 Abre-os todos: mas de todos116 eu salto, e ofendo, e sujo.

117 E Fulana correrá118 (nem se cobriu; vai chispando)119 talvez se atire lá do alto.120 Seu grito é: socorro! e deus.

121 Mas não quero nada disso.122 Para que chatear Fulana?123 Pancada na sua nuca124 na minha é que vai doer. 43

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125 E daí não sou criança.126 Fulana estuda meu rosto.127 Coitado: de raça branca.128 Tadinho: tinha gravata.

129 Já morto, me quererá?130 Esconjuro se é necrófila...131 Fulana é vida, ama as flores,132 as artérias e as debêntures.

133 Sei que jamais me perdoara134 matar-me para servi-la.135 Fulana quer homens fortes,136 couraçados, invasores. 44

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137 Fulana é toda dinâmica,138 tem um motor na barriga.139 Suas unhas são elétricas,140 seus beijos refrigerados,

141 desinfetados, gravados142 em máquina multilite.143 Fulana, como é sadia!144 Os enfermos somos nós.

145 Sou eu, o poeta precário146 que fez de Fulana um mito,147 nutrindo-me de Petrarca,148 Ronsard, Camões e Capim; 45

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149 Que a sei embebida em leite,150 carne, tomate, ginástica,151 e lhe colo metafísicas,151 enigmas, causas primeiras.

152 Mas, se tentasse construir153 outra Fulana que não154 essa de burguês sorriso155 e de tão burro esplendor?

156 Mudo-lhe o nome; recorto-lhe157 um traje de transparência;158 já perde a carência humana;159 e bato-a; de tirar sangue. 46

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160 E lhe dou todas as faces161 de meu sonho que especula;162 e abolimos a cidade163 já sem peso e nitidez.

164 E vadeamos a ciência,165 mar de hipóteses. A lua166 fica sendo nosso esquema167 de um território mais justo.

168 E colocamos os dados169 de um mundo sem classes e imposto;170 e nesse mundo instalamos171 os nossos irmãos vingados. 47

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172 E nessa fase gloriosa,173 de contradições extintas,174 eu e Fulana, abrasados,175 queremos... que mais queremos?

176 E digo a Fulana: Amiga,177 afinal nos compreedemos.178 Já não sofro, já não brilhas,179 mas somos a mesma coisa.

180 (Uma coisa tão diversa181 da que pensava que fôssemos.)

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“Carrego comigo” (ANDRADE, 1980, p. 80)

83 Sou um homem livre84 mas levo uma coisa.

85 Não sei o que seja.86 Eu não a escolhi.87 Jamais a fitei.88 Mas levo uma coisa.

89 Não estou vazio,90 não estou sozinho,91 pois anda comigo92 algo indescritível.

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O individualismo e a liberdade do eu “Movimento da espada” (ANDRADE, 1980, p. 96-97)

01 Estamos quites, irmão vingador.02 Desceu a espada03 e cortou o braço.04 Cá está ele, molhado em rubro.05 Dói o ombro, mas sobre o ombro06 tua justiça resplandece.

07 Já podes sorrir, tua boca 08 moldar-se em beijo de amor.09 Beijo-te, irmão, minha divida10 está paga.11 Fizemos as contas, estamos alegres.12 Tua lâmina corta, mas é doce,13 a carne sente, mas limpa-se.14 O sol eterno brilha de novo 15 e seca a ferida. 50

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16 Mutilado, mas quanto movimento17 em mim procura ordem.18 O que perdi se multiplica19 e uma pobreza feita de pérolas20 salva o tempo, resgata a noite.21 Irmão, saber que és irmão,22 na carne como nos domingos.

23 Rolaremos juntos pelo mar...24 Agasalhado em tua vingança,25 puro e imparcial como um cadáver que o ar embalsamasse,

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26 serei carga jogada às ondas,27 mas as ondas, também elas, secam,28 e o sol brilha sempre.

29 Sobre minha mesa, sobre minha cova, como brilha o sol!30 Obrigado, irmão, pelo sol que me deste,31 na aparência roubando-o.32 Já não posso classificar os bens preciosos.33 Tudo é precioso...34 e tranqüilo35 como olhos guardados nas pálpebras.

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“Idade madura” (ANDRADE, 1980, p. 121-123)

1 As lições da infância2 desaprendidas na idade madura.3 Já não quero palavras4 Nem delas careço.5 Tenho todos os elementos6 Ao alcance do braço.7 Todas as frutas8 e consentimentos.9 Nenhum desejo débil.10 Nem mesmo sinto falta11 do que me completa e é quase sempre melancólico.

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12 Estou solto no mundo largo.13 Lúcido cavalo14 com substância de anjo15 circula através de mim.16 Sou varado pela noite, atravesso os lagos frios,17 absorvo epopéia e carne,18 bebo tudo,19 desfaço tudo,20 torno a criar, a esquecer-me:21 durmo agora, recomeço ontem.

22 De longe vieram chamar-me.23 Havia fogo na mata.24 Nada pude fazer,25 nem tinha vontade.26 Toda a água que possuía27 irrigava jardins particulares28 de atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.29 Nisso vieram os pássaros,30 rubros, sufocados, sem canto,31 e pousaram a esmo.32 Todos se transformaram em pedra.33 Já não sinto piedade.

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34 Antes de mim outros poetas,35 depois de mim outros e outros36 estão cantando a morte e a prisão.37 Moças fatigadas se entregam, soldados se matam38 no centro da cidade vencida.39 Resisto e penso40 numa terra enfim despojada de plantas inúteis,41 num pais extraordinário, nu e terno,42 Qualquer coisa de melodioso,43 não obstante mudo,44 além dos desertos onde passam tropas, dos morros45 onde alguém colocou bandeiras com enigmas,46 e resolvo embriagar-me.

47 Já não dirão que estou resignado48 e perdi os melhores dias.49 Dentro de mim, bem no fundo,50 há reservas colossais de tempo,51 futuro, pós-futuro, pretérito,52 há domingos, regatas, procissões,53 há mitos proletários, condutos subterrâneos,54 janelas em febre, massas de água salgada, meditação e sarcasmo.

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55 Ninguém me fará calar, gritarei sempre56 que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,57 negociarei em voz baixa com os conspiradores,58 transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,59 serei, no circo, o palhaço,60 serei médico, faca de pão, remédio, toalha,61 serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,62 serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:63 tudo depende da hora64 e de certa inclinação feérica,65 viva em mim qual um inseto.

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66 Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade67 com sua maré de ciências afinal superadas.68 Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,69 descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.70 Eles dizem o caminho,71 embora também se acovardem72 em face a tanta claridade roubada ao tempo.

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73 Mas eu sigo, cada vez menos solitário,74 em ruas extremamente dispersas,75 transito no canto do homem ou da máquina que roda,76 aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de

[casa,77 e ganho.

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A solidão, o outro e a família

“América” (ANDRADE, 1980, p. 126-130)

Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de [conhecimento.

Portanto, solidão é palavra de amor.Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.

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“Como um presente” (ANDRADE, 1980, p. 118-120)

................................................................No casarão azulvejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passonoturno, teu pigarro, e sinto os boise sinto as tropas que levavas pela Matae sinto as eleições (teu desprezo) e sinto a Câmarae passos na escada, que sobem,e soldados que sobem, vermelhos,e armas que te vão talvez matar,mas que não ousam.

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...........................................Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,o desconforto deste chão. Mas sempre amasteo duro, o relento, a falta. O frio sente-seem mim que te visito. Em ti, a calma.

...........................................................

Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.

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.....................................................

o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas, [caixeiros, fiscais do governo, beatas, padres,

[médicos, mendigos, loucos mansos, loucos [agitados, animais, coisas:

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..................................................................................

É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.A identidade do sangue age como cadeia,fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.Por que ficar neste município, neste sobrenome?Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,passando por baixo de seus problemas e lavouras, de [eterna agência do correio,e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.

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“No país dos Andrades” (ANDRADE, 1980, p. 125)

No país dos Andrades, onde o chão éforrado pelo cobertor vermelho de meu pai,indago um objeto desaparecido há trinta anos,

.................................................................................

No país dos Andrades, secreto latifúndio,A tudo pergunto e invoco; [...]

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“Nos áureos tempos” (ANDRADE, 1980, p. 90-91).

Nos áureos temposque eram de cobre

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“Retrato de família” (ANDRADE, 1980, p. 118)

a estranha idéia de famíliaviajando através da carne

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“Rua da madrugada” (ANDRADE, 1980, p. 121)

confissões exaustase um paz de lã.

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Escritura-dissipação “Ontem” (ANDRADE, 1980, p. 92)

Até hoje perplexoante o que murchoue não eram pétalas.

De como este banconão reteve forma,cor ou lembrança.

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Nem esta árvorebalança o galhoque balançava.

Tudo foi brevee definitivo.Eis está gravado

não no ar, em mim, que por minha vezescrevo, dissipo.

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Lirismo filosófico

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Tempo e finitude

“Desfile” (ANDRADE, 1980, p. 116)

• A consciência interior do tempo (Husserl):

Tudo foi prêmio do Tempoe no tempo se converte.

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“Vida menor” (ANDRADE, 1980, p. 93)

• A aceitação:

A fuga do real,ainda mais longe a fuga do feérico,Mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,a fuga da fuga, o exíliosem água e palavra, a perdavoluntária de amor e memória

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Elisão “Vida menor” (ANDRADE, 1980, p. 93-94)

• Elisão do tempo e do sujeito:

vida mínima, essencial; um início; um sono;

menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;

o que se possa desejar de menos cruel: vida

em que o ar, não respirado, mas me envolva;

Nenhum gasto de tecidos; ausência deles;

confusão entre manhã e tarde, já sem dor,

porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo

elidido, domado.

Não o morto nem o eterno ou o divino,

apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente

e solitário vivo.

Isso eu procuro. 73

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“Versos à boca da noite” (ANDRADE, 1980, p. 125)

• “A vida mínima”:

“A vida mínima não significa também uma renúncia absoluta, mas antes uma sabedoria mais humana – a economia vital da idade madura” (MERQUIOR, 1976, p. 97).

57 uma ordem, uma luz, uma alegria 58 baixando sobre o peito despojado. 59 E já não era o furor dos vinte anos 60 nem a renúncia às coisas que elegeu,

61 mas a penetração no lenho dócil, 62 um mergulho em piscina, sem esforço, 63 um achado sem dor, uma fusão, 64 tal uma inteligência do universo

65 comprada em sal, em rugas e cabelo. 74

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A estrutura de exceção

“Anoitecer” (ANDRADE, 1980, p. 82)

“Mas é bastante raro que tais poemas metrificados sejam também rimados” (MERQUIOR, 1976, p. 98-99)

01 É a hora em que o sino toca, 02 mas aqui não há sinos; 03 há somente buzinas, 04 sirenes roucas, apitos 05 aflitos, pungentes, trágicos, 06 uivando escuro segredo; 07 desta hora tenho medo.

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01 Vi moças gritando 02 numa tempestade. 03 O que elas diziam 04 o vento largava,05 logo devolvia. 06 Pávido escutava, 07 não compreendia. 08 Talvez avisassem: 09 mocidade é morta. 10 Mas a chuva, mas o choro, 11 mas a cascata caindo, 12 tudo me atormentava 13 sob a escureza do dia, 14 e vendo, 15 eu pobre de mim não via.

(“Rola Mundo” In: ANDRADE, 1980, p. 91).

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Neste segundo período do estilo de Drummond, melopéia e logopéia – para usar uma expressão de Ezra Pound – atingem a maturidade de expressão. Volumoso, A Rosa do Povo, é um livro por vezes desigual; mas a maior parte dos poemas é suficiente para torná-lo a obra central da época de consolidação do modernismo (MERQUIOR, 1976, p. 98).

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O “estilo mesclado”

“Drummond elabora, num primeiro momento (1925-40), uma versão personalíssima de um gênero de elocução caro à poesia moderna desde Baudelaire: o "estilo mesclado" (Auerbach), resultante da fusão do tom problemático com as referências ‘vulgares’”(MERQUIOR, J. G. Kitsch e efeitismo. Disponível em: www.academia.org.br)

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18 Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano, 19 ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta20 moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas,21 rangentes, solidão e asco, 22 pessoas e coisas enigmáticas, contai, 23 capa de poeira dos pianos desmantelados , contai

(“Nosso Tempo” In: ANDRADE, 1980, canto III, p. 82)

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49 nem a pobre hora 50 da evacuação: 51 um pouco de ti 52 desce pelos canos, 53 oh! adulterado, 54 assim decomposto, 55 tanto te repugna,56 recusas olhá-lo: 60 é o pior de ti?

(“Uma hora e mais outra” In: ANDRADE, 1980, p. 88)

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Page 81: Do Verso Ao Universo, A Rosa Do Povo de Drummond e o Percurso Crítico de Merquior

“metaforismos” e “comparações concretas”

não olho os cafés

que retinem xícaras e anedotas.

(“Morte no avião” In: ANDRADE, 1980, p. 112)

.... multidões compactas

escorrendo exaustas

como espesso óleo

que impregna o lajedo

(“Anoitecer” In: ANDRADE, 1980, p. 82)

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Page 82: Do Verso Ao Universo, A Rosa Do Povo de Drummond e o Percurso Crítico de Merquior

Imagística fantástica

Este é tempo de divisastempo de gente cortada.De mãos viajando sem braços,obscenos gestos avulsos.

(“Nosso tempo” In: ANDRADE, 1980, p. 82)

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“A fantasia, o humor” e o grotesco

01 É um antigo 02 piano, foi 03 de alguma avó, morta 04 em outro século.

05 E ele toca e ele chora e ele canta 06 sozinho, 07 mas recusa raivoso filtrar o mínimo 08 acorde, se o fere 09 mão de moça presente.

(“Onde há pouco falávamos” In: ANDRADE, 1980, p. 140).83

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O utopismo e a grandiloquência

28 Um mundo enfim ordenado,

29 uma pátria sem fronteiras,

30 sem leis e regulamentos,

31 uma terra sem bandeiras,

32 sem igrejas nem quartéis,

33 sem dor, sem febre, sem ouro,

34 um jeito só de viver,

(“Cidade Prevista” In: ANDRADE, 1980, p. 130).

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Page 85: Do Verso Ao Universo, A Rosa Do Povo de Drummond e o Percurso Crítico de Merquior

34 Uma flor nasceu na rua! 35 Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço e tráfego. 36 Uma flor ainda desbotada 37 ilude a polícia, rompe o asfalto. 38 Façam completo silêncio, paralisem os negócios, 39 garanto que uma flor nasceu.

(“A flor e a náusea” In: ANDRADE, 1980, p. 78)

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“É preciso reconhecer que o simbolismo fácil, as imagens inorgânicas, esses grandes nomes abstratos (tédio, nojo, ódio) enfraquecem o poema. A cor estética desses versos é tão imperceptível quanto a de seu símbolo. Em Drummond, bem entendido, o patetismo, bastante esporádico, é sempre tímido; mas são precisamente suas inibições que prejudicam o efeito, tornam o verso pouco seguro, a expressão desajeitada” (MERQUIOR, 1976, p. 105).

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44 O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz 45 da vida ficou mais forte, e os naufrágios 46 não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas: 47 que os objetos continuam, e a trepidação incessante 48 não desfigurou o rosto dos homens; 49 que somos todos irmãos, insisto.

(“Os últimos dias” In: ANDRADE, 1980, p. 142).

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A emoção pudica

.............................................05 És condenado ao negro. Tuas calças 06 confundem-se com a treva. Teus sapatos 07 inchados no escuro do beco, 08 são cogumelos noturnos. A quase cartola, 09 sol negro, cobre tudo isto, sem raios. 10 Assim, noturno cidadão de uma república 11 enlutada, surges a nossos olhos 12 pessimistas, que te inspecionam e meditam: 13 Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado, 14 o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde 15 a um mundo muito velho.

(“Canto ao homem do povo Charlie Chaplin” In: ANDRADE, 1980, Canto II, p. 147)88

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“Ele pratica sobretudo, como em José, um tom lírico em que a ausência do picante “mesclado”, entretanto, não cede lugar à eloquência duvidosa” (MERQUIOR, 1976, p. 105)

01 No chão me deito á maneira dos desesperados.

02 Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio, 03 esqueço que sou um poeta, que não estou sozinho, 04 preciso aceitar e compor, minhas medidas partiram-se, 05 Mas preciso, preciso, preciso.

(“Mário de Andrade desce aos infernos” In: ANDRADE, 1980, p. 145)

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“Banida toda efusão lacrimosa, o simbolismo clássico retorna para encerrar a ode fúnebre” (MERQUIOR, 1976, p. 108)

01 Mas tua sombra robusta desprende-se e avança. 02 Desce o rio, penetra os túneis seculares 03 onde o antigo marcou seus traços funerários, 04 desliza na água salobra, e ficam tuas palavras 05 (superamos a morte, e a palma triunfa) 06 tuas palavras carbúnculo e carinhosos diamantes.

(“Mário de Andrade desce aos infernos” In: ANDRADE, 1980, p. 145)90

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Nas tramas da existência: do banal ao “inatingível”

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Uma abordagem estilística: da retórica epidíctica à Stilmischung auerbachiana

“O gênero epidíctico em A Rosa, representado sobretudo por poemas de

guerra (‘Carta a Stalingrado’, ‘Telegrama de Moscou’, ‘Visão de 1944’, ‘Com

o russo em Berlim’) e pelas duas grandes odes a Mário de Andrade [“Mário

de Andrade Desce aos Infernos”] e a Carlitos [“Canto ao Homem do Povo

Charlie Chaplin”], assinala entretanto a ascensão do pathos sublime, se

bem que este não tome necessariamente a forma de idealização

romântica” (MERQUIOR, 1976, p. 108). 92

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• Gênero epidíctico (ou demonstrativo)

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. 2. ed. rev. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 104. v. 8. t. 1.

“No género epidíctico temos tanto o elogio quanto a censura [...] para o gênero epidíctico o tempo principal é o presente, visto que louvam e censuram o eventos actuais, embora muitas vezes argumentem evocando o passando e conjecturando sobre o futuro” (Retórica, 1358b).

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LAUSBERG, Heinrich. Elementos de Retórica Literária [Elements der literarischen rhetorik, 1949]. Tradução, prefácio e aditamentos de R. M. Rosado Fernandes. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967. p. 84.

O género epidíctico ([ou demonstrativo]), com as funções de louvor e de censura, tem como caso paradigmático o discurso festivo, em honra de uma pessoa que deve ser celebrada (e, portanto, louvada), pronunciado por um orador.

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“Do ponto de vista do estilo, há, pois, em Drummond ao menos duas estéticas do sublime: uma prolonga a elocução neo-romântica nascida com Sentimento do Mundo; a outra aborda o sublime com a contenção, o antipatetismo característico da arte moderna. Além disso, o estilo ‘puro’ em A Rosa do Povo contém três esferas temáticas isentas do sublime: a poesia sobre poesia; o lirismo filosófico [...] e enfim, uma certa poesia do cotidiano” (MERQUIOR, 1976, p. 108-109).

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Page 96: Do Verso Ao Universo, A Rosa Do Povo de Drummond e o Percurso Crítico de Merquior

“Encontram-se, com efeito, em A Rosa do Povo textos sobre o

drama do cotidiano cujo estilo é fundamentalmente diferente da

Stilmischung [mescla de estilos] que vimos atuando em, por

exemplo, ‘A flor e a náusea’, ‘Nosso tempo’ ou ‘O mito’”

(MERQUIOR, 1976, p. 109).

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GUIRAUD, Pierre. A estilística [La stylistique, 1955]. Tradução de Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

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• Stilmischung [mescla de estilos]

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental [Mimesis: dargestellte wirklichkeit in der abendlaendischen literatur, 1946]. Tradução coletiva para a língua portuguesa. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 499-500.

Mistura do sublime com o grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. [...] quebraram a regra clássica da diferenciação dos níveis, segundo a qual a realidade quotidiana e prática só poderia ter seu lugar na literatura no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve, colorido e elegante. 98

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Drama do cotidiano

“Morte do Leiteiro” (ANDRADE, 1980, p. 106-107)

“fait divers carioca transfigurado pelo poeta em metade sátira, metade elegia; um burguês toma o leiteiro por um ladrão noturno e o abate a tiros de revólver” (MERQUIOR, 1976, p. 109).

A expressão fait divers remonta a um formato narrativo folhetinesco, o qual reporta a “casos” curiosos e misteriosos.

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BARTHES, Roland. Ensaios críticos [<<Structure du fait divers>> In Essais Critiques, 1964]. Tradução de António Massano e Isabel Pascoal. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 216.

não é preciso conhecer nada para consumir um fait divers, ele não remete formalmente a nada além dele próprio, evidentemente o seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos.

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A poesia fugiu dos livros, está nos jornais.(“Carta a Stalingrado”)

Êste verso manifesta a faculdade de extrair do acontecimento ainda quente uma vibração profunda que o liberta do transitório, inscrevendo-o no campo da expressão. É o que faz Drummond, não apenas com os sucessos espetaculares da guerra e da luta social, mas com a morte do entregador de leite baleado pelo dono da casa, que o tomou por um ladrão (“Morte do leiteiro”).

(CANDIDO, 1970, p. 109).101

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65 Meu Deus, matei um inocente.66 Bala que mata gatuno67 também serve pra furtar68 a vida do nosso irmão.69 Quem quiser que chama o médico, 70 polícia não bota a mão71 neste filho de meu pai. 72 Está salva a propriedade.73 A noite geral prossegue,74 a manhã custa a chegar,75 mas o leiteiro76 estatelado, ao relento,77 perdeu a pressa que tinha.

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78 Da garrafa estilhaçada.79 no ladrilho já sereno80 escorre uma coisa espessa81 que é leite, sangue… não sei82 Por entre objetos confusos,83 mal redimidos da noite,84 duas cores se procuram,85 suavemente se tocam,86 amorosamente se enlaçam, 87 formando um terceiro tom88 a que chamamos aurora.

(ANDRADE, 1980, p. 106).

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ALONSO, Damaso. Poesia española: ensaio de métodos y limites estilísticos. 3. ed. Madrid: Gredos, 1957. p. 33.

El instante central de la creación literaria, el punto central de mira de toda investigación que quiera ser peculiarmente estilística [...] es ese momento de plasmación interna del <<significado>> y el inmediato de ajuste en un <<significante>>.

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• A expressão econômica (observemos as supressões do artigo, v. 66: “Bala que mata gatuno”; contração, v. 67: “também serve pra furtar”)

• O emprego da linguagem coloquial (v. 70-71: “polícia não bota a mão/neste filho de meu pai”

• O adjetivo e o símbolo organicamente ligados ao sujeito (v. 73: “A noite geral prossegue”; o valor simbólico da aurora atribuído à mistura do leite com sangue)

• A marcha hábil da narrativa em redondilha maior, o verso popular por excelência em português, asseguram o mais alto nível poético a essa banal tragédia urbana.

(MERQUIOR, 1976, p. 109).

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“Caso do Vestido” (ANDRADE, 1980, p. 103-105).

é menos “popular” que rústico. Cercada pelas filhas, uma mãe conta o terrível acontecimento passional que primeiro lhe levou e depois lhe devolver o marido. O poema, em 73 dísticos (em geral brancos) heptassilábicos, se abre sob a forma de diálogo:

1 Nossa mãe, o que é aquele2 vestido, naquele prego?

(MERQUIOR, 1976, p. 110).106

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3 Minhas filhas, é o vestido4 de uma dona que passou.

............................................................................................................

7 Minhas filhas, boca presa.8 Vosso pai evém chegando.

HOUAISS, Antônio. Poesia e estilo de Carlos Drummond de Andrade. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira; Instituto Nacional do Livro, 1977. p. 168. O “Caso do vestido” é impressionantemente fidedigno: linguagem coloquial, mentalidade regional, dialogação espontânea, vocabulário regional e até adequação vocabular.

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• A reticência da mãe

MORAES, Emanuel de. As várias faces de um poesia. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira; Instituto Nacional do Livro, 1977. p. 112-113.A evolução desse elemento (a chegada do pai) é, aliás, do maior interesse. Ainda na primeira parte, é uma fuga oposta à indiscrição da pergunta sobre o vestido:

7 Minhas filhas boca presa.8 Vosso pai evém chegando.

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Adiante, é outra demonstração de resistência ao prosseguimento da narrativa, quando a mãe chora [v. 41: “Nossa mãe, por que chorais?”]. E novamente ela se defende, invocando a possível presença do pai, já agora com maior proximidade:

43 Minhas filhas, vosso pai44 chega ao pátio. Disfarcemos.

E, no fim do poema, essa presença se faz sentir inclusive pelo ruído dos passos:

149 Minhas filhas, eis que ouço150 vosso pai subindo a escada.

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• O extravio do pai é admiravelmente traduzido pelos verbos reflexivos

22 se perdeu tanto de nós,

23 se afastou de toda a vida,24 se fechou, se devorou,

• Sua cegueira agressiva, pela aliteração [do fonema /b/]26 bebeu, brigou, me bateu

27 me deixou com vosso berço

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• O acoplamento (verbo + possessivo + substantivo)

33 beberia seu sobejo,34 lamberia seu sapato.

LEVIN, Samuel R. Estruturas lingüísticas da poesia [Linguistic strutuctures in poetry, 1962]. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1975. p. 55.

Somente quando comparamos duas convergências que tais e descobrimos certa relação entre elas é que temos a estrutura importante para a poesia. Essa relação é aquela em que duas convergências abarcam formas naturalmente equivalentes (isto é, equivalentes quanto ao som ou ao sentido, ou quanto a ambos) que ocorram em posições equivalentes; por outras palavras, quanto temos um acoplamento [“coupling”] de convergências. 111

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• Ressaltaremos outros acoplamentos, também cheios de rimas internas, assonâncias e aliterações:

[possessivo + substantivo + verbo reflexivo]

79 minhas mãos se escalavraram80 meus anéis se dispersaram

[verbo reflexivo + substantivo]

105 me puxei pelos cabelos,106 me lancei na correnteza,

107 me cortei de canivete,108 me atirei no sumidouro

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• Muito habilmente, uma rima discreta (cedemos, disfarcemos) [v. 42 e v. 44, respectivamente] estabelece uma conexão entre essa pausa comovida e a última resistência da mãe a retomar a narração:

41 Nossa mãe, por que chorais? 42 Nosso lenço vos cedemos.

43 Minhas filhas, vosso pai44 chega ao pátio. Disfarcemos.

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• As rimas imperfeitas marcam o auge da humilhação

49 E lhe roguei que aplacasse50 de meu marido a vontade.

• O cúmulo da miséria da mulher abandonada é também indicado pela rima

79 minhas mãos se escalavraram80 meus anéis se dispersaram

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• Anadiploses *

67 Saí pensando na morte,68 mas a morte não chegava.

83 Vosso pai saiu no mundo.84 O mundo é grande e pequeno.

* A anadiplose consiste na repetição do último membro de um grupo de palavras no princípio do grupo de palavras que se lhe segue (LAUSBERG, 1967, p. 169).

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• A submissão da mulher, a estabilidade do poder paterno denunciam a profunda ligação da psique brasileira ao sistema social e cultural que presidiu à formação do país: o regime patriarcal.

Neste sentido, Emanuel de Moraes (1977, p. 114) explora o comportamento da mãe como uma “humilde e cristãmente conformada”:

65 Eu fiz meu pelo-sinal,66 me curvei... disse que sim.

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Poesia de interrogação existencial “Desfile” (ANDRADE, 1980, p. 116)

01 O rosto no travesseiro, 02 escuto o tempo fluindo03 no mais completo silêncio. 04 Como remédio entornado05 em camisa de doente; 06 como dedo na penugem 07 de braço de namorada;08 como vento no cabelo, 09 fluindo: fiquei mais moço.10 Já não tenho cicatriz.

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• Os primeiros versos de “Desfile” oferecem uma série de comparações fundadas em duas cadeias de associações semânticas: travesseiro – doente (de cama) – remédio; e travesseiro – (pluma) – penugem.

(MERQUIOR, 1976, p. 117-118).

GARCIA, Othon M. Alguns processos poéticos de Carlos Drummond de Andrade. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira; Instituto Nacional do Livro, 1977. p. 202.

Um dos processos poéticos de que mais frequentemente se serve Carlos Drummond de Andrade em sua obra é o que podemos chamar de associação semântica e paronomástica ou jogo de palavra-puxa-palavra.

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Reflexão metapoética e interrogação filosófica

“Fragilidade” (ANDRADE, 1980, p. 92-93)

01 Este verso, apenas um arabesco 02 em torno do elemento essencial – inatingível. 03 Fogem nuvens de verão, passam aves, navios, ondas, 04 e teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento, 05 ai! já brincou, e tudo se fez imóvel, quantidades e quantidades 06 de sono se depositam sobre a terra esfacelada.

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GOMBRICH, E. H. A história da arte [The Story of Art, 1950]. Tradução de Álvaro Cabral. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1994. p. 143.

Os artífices do Oriente, aos quais não era permitido representar seres humanos, deixaram sua imaginação jogar com padrões e formas. Eles criaram as ornamentações mais rendilhadas e sutis, conhecidas como arabescos.

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Palácio de Alhambra, em Granada. Disponível em: http://www.alfurqan.pt/alhambra.asp. Acesso em: 18 mai. 2013

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“O arabesco, aos olhos de Drummond, não passa de um forma do gratuito: da arte entregue a si mesma, fora do contato íntimo com a verdade” (MERQUIOR, 1976, p. 118).

Pois deixa existir!Irredutível ao canto,superior à poesia,

(“Rola mundo” In: ANDRADE, 1980, p. 92)

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“A segunda parte acrescentará o sentido da finitude. Diversos verbos de movimento (fogem [v. 03], passam [v. 03], brinca o movimento [v. 04], se fez imóvel [v. 05], se depositam [v. 06]) indicam a extrema fugacidade do vivido. [...] A fragilidade da vida, o desejo de entropia em todas coisas – essa destinação à imobilidade de todo movimento vital”

(MERQUIOR, 1976, p. 119).

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• Precedendo os respectivos sujeitos, esses verbos [sobretudo, fogem e passam] aceleram a marcha dos versos e se opõem ao mesmo tempo ao movimento de suspensão de se fez [v. 05] e se depositam [v. 06], movimento esse reforçado pela posição proclítica dos pronomes

• Extensão do motivo da fugacidade no próprio eu, tão bem materializada no advento do passado [v. 04-05: “onde brinca o incerto movimento,/ ai! já brincou”]

• Após imóvel [v. 05], reúnem-se polissílabos que denotam a lenta acumulação do “sono” (quantidades – valorizado pelo enjambement e pela geminatio cum separatione: quantidades / e / quantidades –; depositam; esfacelada)

• O ritmo de toda a segundo parte da estrofe, emoldurado pelo verso longo contribui para o contraste do “incerto movimento” com a lentidão final.

(MERQUIOR, 1976, p. 119-120)

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• O novo aspecto da poesia-arabesco constitui a palavra final: supõe o afastamento das paixões intelectuais e criadoras do eu:

07 Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe 08 subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música 09 feita de depurações e depurações, a delicada modelagem 10 de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais

11 que um arabesco, apenas um arabesco 12 abraça as coisas, sem reduzi-las.

• A verdadeira função do arabesco, órgão poético do nirvana da “vida menor” [a partir de “depurações” (v. 09), o arabesco torna-se uma “delicada modelagem/ de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos” (v. 09-10), que, enfim, “abraça as coisas, sem reduzi-las” (v. 12)]

(MERQUIOR, 1976, p. 120-121).124

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Mas a vida: captada em sua forma irredutível,já sem ornato ou comentário melódico,vida a que aspiramos como paz no cansaço,(não a morte),vida mínima, essencial; um início; um sono;

(“Vida menor” In: ANDRADE, 1980, p. 93)

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“O meio-dia da escrita”: preâmbulos finais

“Com José e A Rosa do Povo, isto é, com a poesia composta de 1941 a 45, Drummond traz ao modernismo três conquistas para o desenvolvimento da literatura brasileira: um realismo social excepcionalmente penetrante, muito acima do lirismo declamatório da poesia engajada; uma poesia metapoética, nutrida de uma espécie de reflexão introspectiva da escrita; um lirismo, enfim, de interrogação existencial, preludiando o desenvolvimento do poema filosófico que caracterizará os livros posteriores como Claro Enigma”

(MERQUIOR, 1976, p. 121). 126

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“Em geral, a crítica considerou A Rosa do Povo como ‘poesia social’ no sentido de arte engajada, levando em conta sobretudo, se não exclusivamente, os trechos ideológicos e o lirismo ‘coral’ dos poemas de guerra. Entretanto, como vimos, a profundidade maior, a visão verdadeiramente sociológica da visão social de Drummond reside antes nos textos mais ‘subjetivos’ como ‘A flor e a náusea’, ‘O mito’ e os poemas do ciclo de Itabira”

(MERQUIOR, 1976, p. 122).

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ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica em sociedade. In: ______. Notas de Literatura I [Noten zur Literatur I, 1958]. Tradução e apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 66.

Obviamente, essa suspeita só pode ser enfrentada quando composições líricas não são abusivamente tomadas como objetos de demonstração de teses sociológicas, mas sim quando sua referência ao social revela nelas próprias algo de essencial, algo do fundamento de sua qualidade. A referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais a fundo para dentro dela.

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Ao contrário, o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido, de não captado, de ainda não subsumido, anunciando desse modo, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fundo do algo particular, acorrente a outro, o universal humano. A composição lírica tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal.

(ADORNO, 2003, p. 66).

O procedimento tem que ser, conforme a linguagem da filosofia, imanente. Conceitos sociais não devem ser trazidos de fora às composições líricas, mas sim devem surgir da rigorosa intuição delas mesmas.

(ADORNO, 2003, p. 67).129

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Tal uma lâmina,o povo, meu poema, te atravessa.

(“Consideração do poema” In: ANDRADE, 1980, p. 76).

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“Não esqueçamos que a essência do lirismo é a subjetivação [...] Não é nos seus hinos de guerra, não é sequer nos seus afrescos da sociedade de massa que Drummond aprofunda a significação social de sua obra – é antes no lirismo “individualista” das paixões do eu – e até mesmo no sentido cultural, no ethos crítico, esboçado por sua poesia filosófica. O realismo urbano, a evocação sociológica da vida patriarcal são firmemente construídos sobre o eixo subjetivo da linguagem lírica”

(MERQUIOR, 1976, p. 122).

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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética [Vorlesungen über die Ästhetik, 1820/1821]. Tradução de Marco Aurélio Werle e de Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004. v. 4. p. 164.

A unidade lírica propriamente dita, todavia, não é fornecida pelo motivo e a realidade dele, mas pelo movimento e o modo de apreensão interiores subjetivos.

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STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética [Grundbegriffe der Poetik, 1946]. Tradução de Celeste Aída Galeão. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 28.

O poeta lírico não produz coisa alguma. Ele abandona-se – literalmente (Stimmung) [“disposição anímica”] – à inspiração. [...] O poeta lírico escuta sempre de nôvo em seu íntimo os acordes já uma vez entoados, recria-os como os cria também no leitor.

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“José e A Rosa do Povo constituem o momento meridiano do lirismo de Drummond. É a idade média da sua obra, o luminoso meio-dia da sua expressão, que dirige o olhar ao mesmo tempo para trás, em direção ao humor ácido de seu estilo de juventude, e para a frente, para as nobres meditações clássicas de sua poesia outonal. [...] Mas o “meio-dia da escrita” assinala também, pela mestria do discurso, uma das etapas mais significativas desta revivificação geral (ainda que inconsciente) do fenômeno retórico, tão característica da vanguarda da literatura contemporânea. Revivificação do retórico não enquanto normativismo prescrito, bem entendido; mas sim, enquanto rede das técnicas graças às quais o poema com seu poder de palavra (‘Procura da poesia’) se torna plenamente capaz de suscitar as emoções humanas”

(MERQUIOR, 1976, p. 122).134

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