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Ehrenberg - Culte Performance
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EHRENBERG
CULTE
PERFORMANCE
2
O CULTO DA PERFORMANCE
A sociedade globalizada converteu-se ao culto da performance. Os
movimentos sociais cederam lugar aos ganhadores, o conforto foi substituído
por uma hiperatividade, e as paixões políticas foram suplantadas pelo charme
da concorrência1. A ação individual torna-se um valor de referência, inclusive
no consumo que promete uma relação ativo com os objetos, os serviços e os
lazeres. A concorrência ganha um status de mitologia porque ela leva qualquer
um, independentemente de sua posição na hierarquia social, a construir-se por
si mesmo, trabalhando a partir de sua autonomia e de sua aparência. Líderes,
esportistas, empresários, executivos simbolizam uma versão empreendedora e
atlética da vida em sociedade. O discurso econômico é hoje motor em política e
o empresário é a personagem de vanguarda de uma atitude de massa. A
empresa passou de instrumento de dominação sobre as classes populares a
modelo de conduta para todos os indivíduos. Simultaneamente, a competição
esportiva mudou de natureza: o esporte saiu do esporte e tornou-se um estado
de espírito, um modo de formação do vínculo social, da relação a si e para o
outro para o homem competitivo no qual precisamos tornar-nos numa
sociedade de competição generalizada.
A generalização da competição acontece num quadro de
fragmentação da existência caracterizada pelo duplo movimento
interdependente de um neo-individualismo e de um neo-comunitarismo. O
primeiro manifesta-se pela valorização do indivíduo flexível, autônomo e
independente que encontra-se em si mesmo suas referências existenciais e se
realiza pela sua ação pessoal. O segundo manifesta-se por formas de pertença
comunitária novas (renovação carismática por exemplo); as mais duras
(fundamentalismo islâmico, movimentos de extrema direita) são o resultado de
um processo de exclusão social que o Estado não conseguiu dominar.
A concorrência é uma pedagogia de massa que encarna para
qualquer um ao mesmo tempo a possibilidade e a obrigação de tornar-se
alguém. Essa versão atlética da vida em sociedade empurra para o indivíduo
1 EHRENBERG, Alain, Le culte de la performance, Paris, Hachette, 1991, introdução
3
responsabilidades antes assumidas pela esfera política. Esse estilo de vida que
passa necessariamente pela tomada de riscos convida cada um tornar-se
responsável por si mesmo num universo cada vez mais marcado pela incerteza
e a complexidade.
A sensibilidade igualitária é um modo geral de pensar e de resolver a
contradição central das sociedades democráticas entre igualdade de princípios
e desigualdades reais. Ela constitui um paradigma que opera a divisão entre a
percepção do justo e do injusto, entre as desigualdades toleráveis e as que não
o são, definindo assim o campo dos enfrentamentos do atores, suas tomadas
de posição e seus ideais. As políticas assistenciais e as políticas
revolucionárias opunham a concorrência à justiça. A individualização do ator
que torna visível o pelo que ele é indivíduo somente é possível num estilo de
relações sociais marcado pela comparação permanente que toca os mais
diversos campos da existência.
COMPETIÇÃO ESPORTIVA COMO ANTROPOLOGIA DA IGUALDADE DOS
INDIVÍDUOS
Qual é o significado cultural do esporte, qual sua dimensão
antropológica?2 Ele representa uma experiência imaginária da igualdade dos
indivíduos que não passa pela política.
Os espectadores não vivem uma forma primitiva de vida social. Se o
esporte enlouquece as massas, ele não as aliena ou as faz regredir. Ele é um
vetor de modernização ideológica, é um meio não político de popularizar os
valores de igualdade porque os faz agir enraizando eles no cotidiano mais
banal do lazer.
A sociedade moderna é caracterizada pelo individualismo, quer dizer
a primazia do indivíduo sobre o tudo social. Ora, o individualismo ativa
mecanismos impessoais atravessados por uma tensão que tira de um lado na
direção do anonimato, a indiferenciação e do outro em direção da individuação,
a diferença. Essa tensão é a conseqüência do caráter igualitário da cultura
moderna, o que significa também que todos podem entrar em competição
contra todos. O esporte é escola da vida porque a vida é considerada com um
2 Ibid, primeira parte
4
combate que opera constantemente seleções. Contudo, sabemos bem que
tudo mundo não é igual perante a igualdade e que as lutas as vezes são
manipuladas. Somos em princípio iguais, mas, na prática, hierarquizados em
função de critérios não igualitários porque vivemos numa sociedade
estratificada. O esporte resolve no espetáculo, quer dizer na aparência, o
dilema central e indefinido da igualdade e da desigualdade porque todos
podem entrar sempre em competição com todos. Assim, o espetáculo esportivo
deve ser considerado horizontalmente na suas relações com outros fenômenos
sociais que privilegiam a imagem, a aparência, o visível. É um aspecto de uma
história geral das aparências.
A aparência é, por definição, algo que mistura o real e o observável.
Ela não tem a ver com a ilusão que pressupõe um critério de distinção nítido do
verdadeiro e do falso, mas com o indiscernível. Numa sociedade de igualdade
individual, a aparência não é um critério seguro de classificação social porque
não corresponde a status atribuídos e conhecidos de antemão. Só pode ser
uma referência instável, uma rota de fuga aberta num universo social
trabalhado pela indeterminação. Platão tinha condenado as aparências porque
eram cópias de um modelo ou de um original transcendente. Numa sociedade
que não é mais guiada por referências transcendentes e fixas, as aparências
são menos cópias do que “ficções realistas”. Elas substituem a transparência
das sociedades hierárquicas onde cada um possui seu lugar na ordem do
mundo. Nas sociedades onde nada é fixo, a aparência é uma referência
suficientemente realista para ser crível na medida em que ela depende da
relação de enfrentamento. Esta, quando é tão bem codificada como no esporte,
torna visíveis e sem contestação as qualidades e os méritos pessoais de uns
em relação aos outros. Aqui, o outro é a medida de mim mesmo porque a
classificação é sempre justa desde que a definição das regras do
enfrentamento escapam à influência dos competidores. O antagonismo, a luta,
a concorrência de todos contra todos não remetem ao universo da guerra mas
ao da identidade social. O enfrentamento é um dos modos de relação
privilegiado numa cultura fundada sobre a primazia e a autonomia da pessoa,
sobre a existência do “eu” separado da ordem do mundo. A primazia passa da
interioridade para a exterioridade. Só existe uma identidade social divulgada
5
num espaço público onde um outro olha. A identidade é, para nos,
primeiramente legível no parecer e na ação.
A competição esportiva encena relações entre os homens e
significados que tornam visíveis certas representações coletivas centrais que
moldam a igualdade individualista. A competição possui a função de mostrar
resultados incontestáveis num mundo onde tudo é matéria para contestação
porque não tem mais ponto de vista último: mostra com clareza absoluta
sentimentos ou valores que experimentamos de modo oscilante, confuso,
contraditório na nossa experiência cotidiana. Torna os resultados inteligíveis
para todos. O valor demonstrativo do esporte consiste no fato que ele permite
perceber na experiência cotidiana de homens ordinários uma certa
formalização da convivência humana. Mostra como qualquer um pode tornar-se
alguém independentemente da filiação, da origem social, pelo próprio mérito.
Ela representa a ilusão realista onde a justiça é produto da concorrência e a
desigualdade o fruto do enfrentamento de iguais, não do acaso ou da fortuna. A
tríade igualdade – individualismo - aparência forma o núcleo duro do
espetáculo esportivo. É porque o esporte é o único espetáculo de massa a
operar essa junção que ele é a imagem mesma da igualdade do mérito. As
vedetes do esporte ocupam um lugar importante porque o mecanismo
competitivo é pensável e praticável somente se os homens são supostamente
iguais e, por conseqüência, não somente comparáveis qualitativamente, mas
principalmente, comensuráveis quantitativamente. A comensurabilidade de
todos numa relação de enfrentamento é o nó da competição. Numa sociedade
hierárquica, o princípio da medida não pode funcionar porque existe uma
diferença de natureza entre o cidadão grego e o escravo. Numa sociedade
igualitária, a medida distribui uns e outros no mesmo contínuo quantitativo: não
existe salto qualitativo direto.
Para que o campeão se torne o estereótipo do herói popular, foi
preciso que sua imagem cristalize uma história que cada um pode contar-se e
um modo de ação ao qual cada um pode referir-se: a epopéia ideal do homem
comum e anônimo que, sem ter nenhum privilégio de nascimento, arranca-se
do destino coletivo da massa indiferenciada e de semelhantes, para construir
uma história por si mesmo, uma superioridade acessível por todos. O herói é
sempre da ordem do mesmo, do comparável, sem o qual nenhuma
6
identificação não seria pensável nem possível. Torna visível um ideal supra-
humano que permanece à altura do homem. Na sua exceção, é a prova da
própria humanidade.
O esporte é um mundo de relações definidas pela força na regra. Ele
reconcilia o que toda uma tradição da filosofia política constantemente opôs: a
força e o direito. No esporte, a força não é arbitrária porque ela se dobra diante
do direito. A competição, no objetivar as relações de forças numa regra frente à
qual cada um é igual, é o palco onde o direito do mais forte nunca é a força que
vilipendia o direito. Todo mundo está convencido de que a concorrência pura e
perfeita reina absoluta. Se ganha ou se perde, mas cada um se classifica
dentro de uma problemática igualitária. A classificação é o subproduto de um
enfrentamento entre iguais, porque a desigualdade é resultado e não princípio.
A imensa popularidade do esporte vem do fato que ele consiste
numa ilusão realista que neutraliza no imaginário as regras cotidianas da
ordem social (seu conjunto de desigualdades, suas trapaças, suas seleções
injustas) dramatizando uma relação de enfrentamento e valorizando-a como se
ela representasse por si só o conjunto das relações sociais. É uma gramática
da relação conflituosa que se materializa nos estádios onde, apesar do
problema de doping, do dinheiro, a concorrência parece pura o suficiente para
fornecer uma imagem transparente de uma sociedade que tenta desatar, no
espetáculo, a contradição inicial a partir da qual ela se pensa e pensa na
relação aos outros. Pelo seu estilo de eliminação da ambigüidade, a
competição esportiva aviva uma paixão pela igualdade que ela satisfaz muito
melhor do que qualquer outra distração; ela preenche as aspirações igualitárias
de uma sociedade hierarquizada e não hierárquica.
No universo fluído das sociedades igualitárias, o espetáculo
esportivo reintroduz referencias certas mas temporárias por classificações e
medidas diretas ou indiretas. É um elemento de fuga na aparência, na imagem,
no visível que acompanham a indeterminação crescente da realidade. Não é a
representação de uma realidade: é a tradução de um imaginário. Ele não
esconde nada, torna visível o invisível. Não é a imagem de uma realidade: ele
transforma o imaginário (uma relação social ideal numa sociedade
individualista que privilegia a igualdade em relação à hierarquia) em imagem. A
7
competição nos religa com nossa própria cosmologia, com significados que nos
fazem sentir (o esporte dirige-se primeiramente às emoções) o que nos
poderíamos ser. É uma história, no condicional, da condição moderna. É a
gramática encarnada da igualdade do merecimento. Somos atravessados pela
inquietante estranheza de ser simultaneamente iguais e desiguais.
DA AVENTURA EMPREENDEDORA ATÉ A DEPRESSÃO NERVOSA3
O EMPREENDEDOR OU O INDIVÍDUO QUALQUER NA IDADE DO
HEROISMO
Empresa – paixão é a mensagem principal dos sacerdotes da
performance. A política da cidadania, já submissa à concorrência do consumo
na vida privada, explode na vida pública por causa da pressão da empresa que
se torna também um espaço de realização pessoal. A sociedade globalizada
está ultimamente prestando muito mais atenção a concorrências e
enfrentamentos entre empresas mais do que à concorrências entre projetos
políticos. Empreendedores, craques do esporte, executivos líderes povoam o
novo imaginário social. As figuras de conquistadores se multiplicam e se
referem umas às outras até formar um sistema de representações. Isto significa
um deslocamento decisivo na mitologia da auto-realização. Antes, o homem
qualquer (quelconque) contentava-se em admirar seus heróis ou suas estrelas.
Era o ponto de vista do espectador, que continua sendo solicitado em particular
através dos processos de consulta interativa. Hoje, porém, o indivíduo não
pode mais acomodar-se com esses devaneios: ele é cada vez mais cobrado a
aceder realmente à própria individualidade passando para a ação. A
democratização do parecer não está mais limitada aos confortáveis consumos
da vida privada: invade a vida pública sob o ponto de vista de uma performance
que leva cada um a singularizar-se tornando-se si mesmo. Hoje, só conta a
ação do indivíduo que revela somente o indivíduo, a parte puramente pessoal
do indivíduo qualquer, cujo ato de destaque também é qualquer o que legitima
qualquer proeza.
É porém na figura do empreendedor e no desenvolvimento recente e
rápido dos modos de ação empreendedores que o heroísmo encontra sua
8
forma dominante. O empreendedor é mostrado como modelo de vida heróica
porque ele resume o estilo de vida que coloca no comando a tomada de risco
numa sociedade que faz da concorrência inter-individual uma justa competição.
Quando a salvação coletiva representada pela transformação política da
sociedade está em crise, a logorréia de desafios, performances, dinamismo e
atitudes conquistadoras constitui um conjunto de disciplinas de salvação
pessoal. Diante da aventura empreendedora que virou a vida em sociedade,
onde faltam os meios institucionais que ajudem as pessoas a enfrentar
determinadas situações, a obrigação de ganhar é acompanhada de uma crise
de identidade e a depressão nervosa atinge um número cada vez maior de
pessoas. Os movimentos neo-comunitários no espaço político-social e a
depressão nervosa no espaço psíquico estão profundamente interligados. São
os novos estragos do progresso.
O ESPORTE AVENTURA: NOVO MODO DE SE PENSAR
Segundo Max Weber,
“a partir do momento em que não se pode remeter diretamente o “cumprimento do dever profissional” aos valores espirituais supremos da cultura – ou que, vice-versa, também não se pode mais experimentá-lo subjetivamente como uma simples coerção econômica – aí então o indivíduo de hoje quase sempre renuncia a lhe dar uma interpretação de sentido. Nos Estados Unidos, território em que se acha mais à solta quando despida de seu sentido metafísico [ou melhor: ético-religioso], ambição de lucro tende a associar-se a paixões puramente agonísticas que não raro lhe imprimem até mesmo um caráter esportivo.”4
A intuição weberiana é estimulante. A paixão agonística invadiu
nossa vida mais intensamente que o próprio Weber podia prever. A abundância
de proezas não nos retém mais. O esporte constitui o vetor principal e a força
de atração da difusão de uma cultura de heroísmo. Fornece sua forma ideal a
uma dupla transformação: a multiplicação dos usos não esportivos do esporte e
“esportivização” da aventura! Esse duplo movimento que se pode chamar
esporte fora do esporte e o esporte-aventura é a razão de sua nova
popularidade porque faz trabalhar junta a dimensão da justa desigualdade, que
se encontra na competição esportiva tradicional, e a da imprevisibilidade e do
3 Ibid, terceira parte
4 WEBER, Max, A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, São Paulo, Companhia das
Letras, 2004, p. 165-166
9
risco que é essencial à aventura. O casamento do esporte e da aventura são
uma resposta à crise da ação pública centralizada. Não é mais uma maior
participação do cidadão na decisão política que constitui uma referência
possível: é a formação de um civismo puramente privado, de uma política fora
da cidadania onde cada indivíduo deve assumir as responsabilidades que a
ação pública é incapaz de assumir.
O nó dessa mitologia que casa a performance com a autonomia
reside nas transformações da narratividade esportiva: ela rompeu com a moral
disciplinar da submissão a interesses superiores (pátria, homem novo...). Hoje
o esporte é uma aspecto da “galáxia da autonomia): não mais uma obrigação
imposta em nome de uma realidade superior, mas sim uma libertação auto-
imposta em nome de si mesmo, do próprio estresse, da própria aparência
física. Para um esportista, ser o próprio dono não significa excluir os vendilhões
do templo: significa, pelo contrário, integrá-los como parceiros. A
independência é obtida tornando-se o empreendedor de si mesmo, onde “si
mesmo” é o produto e a imagem do produto, aliás a empresa e a imagem da
empresa.
Numa sociedade onde a desestabilização dos sistemas de
referências é generalizada, o esporte é o princípio fundamental de uma cultura
do heroísmo que nos leva não a sonhar diante das proezas dos outros mas de
inventar a nos mesmos contando somente com nossas próprias forças. Ele
atrai os valores da ação aos quais ele dá uma legitimidade e uma credibilidade
incomparável por toda a potência imaginária de sua tradição que faz da justiça
o produto da concorrência. Ele define a imagem do indivíduo ideal: um
indivíduo puro, sem raízes e sem passado, que refere-se somente a si mesmo.
Hoje,o esporte simboliza e promove a imagem do indivíduo autônomo,
gerenciando tanto a própria saúde e a própria aparência física quanto sua
implicação na sua vida profissional como o empreendedor da própria
existência.
O atleta torna-se um dos símbolos da autonomia porque a relação
dominante que a sociedade mantém com a igualdade se deslocou. Não é mais
o estado que é o campeão das lutas contra a desigualdade: é o direito dos
indivíduos. Em relação às políticas sociais, o objetivo não é mais a proteção
das populações contra os riscos sociais que caracteriza a luta contra as
10
desigualdades: é a implementação de condições que permitam que cada
indivíduo possa assumir sua inserção ou reinserção profissional e social.
Entramos, então, numa relação de igualdade que não é mais concebida numa
política exclusiva de proteção de riscos, mas na busca de mecanismos que
permitem que cada um assuma alguns. É permitindo que cada um entre em
concorrência com os outros que se espera minimizar as desigualdades.
Antigamente, o heroísmo do aventureiro consistia em arrancar-se da
condição humana comum, na experiência mística ou revolucionária. Precisava
estar fora do mundo para poder mudá-lo. Hoje, não se trata mais de subjugar o
mundo por um poder incomparável (divino, mágico ou sobre-humano). Trata-se
de expressar o ponto de vista ideal o mais espalhado ou o mais banal sobre a
condição humana comum alçando-o à altura do extraordinário. Assim, o herói
trágico opõe-se totalmente ao herói popular, a vedete esportiva. Destino,
autenticidade, separação do mundo para atingir uma transcendência e um
elitismo caracterizam o primeiro. Carreira, popularidade, mergulho no mundo e
modelo para a massa caracterizam o segundo. O destino de uma elite é
substituída por uma história possível para todos. A aventura é um meio de
reencantamento da vida cotidiana e um instrumento para melhor se integrar no
mundo. A auto-referencia dos aventureiros entre as duas guerras mundiais faz-
se contra o mundo para transformá-lo, enquanto os estereótipos populares
mostram uma auto-referencia que encontra sua fonte sua ratificação no mundo.
A competição esportiva vem de um regime de progresso em situações
estáveis, enquanto a aventura refere se a um regime de mudança numa
situação instável. Se a competição esportiva é um ideal social de justiça
meritocrática, a aventura é um modo de viver a mudança quando o futuro é
dificilmente previsível e quando a crescente complexidade do mundo
embaralha as referencias estabelecidas. Quando a crise constitui o
funcionamento normal da realidade social, o escopo do esporte-aventura
consiste em deslocar, em descentralizar sobre o indivíduo as tensões antes
assumidas de modo centralizado pelas instituições. Assim, as dificuldades de
planificação dos mercados assim como das técnicas e dos produtos nas
empresas, a instabilidade do futuro e da percepção de uma situação onde reina
a hiper-complexidade acham uma solução no fato de exigir do indivíduo uma
flexibilidade, uma velocidade de reação e de adaptação que um sistema
11
totalmente centralizado e burocratizado não pode produzir nem gerir
eficazmente. A autonomia do individuo é ao mesmo tempo a expressão de uma
aspiração geral das populações mais educadas do que antigamente, e uma
exigência funcional que só pode tornar eficaz o governo de uma organização
ou de uma sociedade num ambiente instável.
Portanto, o esporte-aventura é um modo de resolver, apoiando se na
ação individual, simultaneamente a crise dos modos de ação clássicos do
político onde as desigualdades são apreendidas de um modo centralizado e
coletivo – ou seja o tema do individuo que governa a si mesmo – e os
problemas colocados pelas modificações das nossas relações com a mudança
onde o otimismo do progresso linear e estável é questionado pelas crises de
representações do futuro. Porque é simultaneamente uma relação com a vida e
uma relação com a igualdade, é o esporte aventura que tem um impacto mais
importante na imaginação contemporânea. Metáfora do mundo onde vivemos e
norma de comportamento, ele fornece uma resposta heróica para a incerteza,
ele é sua superação numa lógica de desafio onde cada um deve produzir a
própria liberdade.
OS VENCEDORES OU O EMPRESÁRIO NA HORA DE SUA REPRODUÇÃO
DE MASSA5
Nas revistas de negócios, aparece um estilo de homem que
sincretiza tradições vindo do ideal competitivo do esporte e de um antigo
modelo empreendedor com um culto recente do sucesso social. Como o que foi
o símbolo da exploração do homem pelo homem pôde tornar-se um herói
popular? A heroicização do empreendedor tem um aspecto institucional, mas
seu impacto está no outro ponto porque o próprio significado da palavra
empresa mudou. Não se trata mais uma acumulação, mesmo se tratando
sempre de acumular, mas de um modo de comportar-se. O fato de empreender
algo simboliza uma criação pessoal, uma aventura possível para todos. Essa
repentina promoção da ação de empreender como valor e principio de ação
tanto no domínio da vida privada quanto da vida profissional faz do sucesso, e
principalmente do sucesso na vida empreendedora, como no esporte aventura,
5 EHRENBERG, Alain, Le culte de la performance, Paris, Hachette, 1991, terceira parte cap. 2
12
um verdadeiro sistema de normas endereçado para todos, não importando qual
seja o lugar de cada um na hierarquia social. As figuras e as formas do
espetáculo escapam à especialização para tornar-se um modo de ser na
sociedade. A empresa sai da empresa como o esportista saiu do esporte: a
vida cotidiana e ordinária é palco! É a possibilidade da conquista da própria
individualidade que está em jogo nesse show.
O que significa ter êxito? Por que o êxito refere-se ao
empreendedor? Ter êxito, hoje, significa poder inventar o próprio modelo,
desenhar a própria unicidade, mesmo se for idêntica à de todos os outros. Ter
êxito é tornar-se si mesmo tornando-se alguém. Como perceber se somos
alguém? Como saber se somos nos mesmos? A conquista da identidade
pessoal confunde-se com o êxito publico, a busca da autenticidade confunde-
se com a busca da visibilidade. A identidade é fruto da conquista assim como
um recorde ou um mercado. Os modelos de sucesso apresentados não são
inacessíveis: são ao alcance de todos porque são guias da própria
modelização.
Ter êxito é colocar-se como figura do inicio. Construir a si mesmo,
ter como passado o que foi produzido por nos mesmos, que não foi legado da
transmissão de uma herança ou de uma filiação. Entre o sucesso e o
esquecimento das origens, existe um estreito vínculo. Se o sucesso individual
foi durante muito tempo o domínio reservado das classes burguesas, as outras
devendo permanecer no seu lugar, embaixo, é daqui para frente promovido
como ideal e norma de conduta de massa. Não se pede mais a ninguém que
permaneça no próprio lugar: pelo contrário, cada um deve construí-lo. A
mitologia da auto-realização de massa que predomina hoje é assimilável a um
sistema de heroicização de si mesmo onde cada um deve fazer o esforço de
ser para si mesmo o próprio modelo de conduta. Essa identidade de um
modelo de conduta personalizado que vai do mesmo para o mesmo não dá
mais lugar a um discurso sobre a sociedade de massa onde cada um é
indiferenciado, anônimo porque parecido, uniforme porque semelhante. Pelo
contrário, vamos sempre do mesmo ao mesmo, pela diferença, pela
singularidade. É um outro modo de viver a similitude. As formas tomadas pela
ambição levam até o fim um dos desenvolvimentos possíveis do imaginário
democrático, a aceitação antropológica da soberania. O homem que somente
13
representa a si mesmo, sem raízes e sem passado porque age inteiramente
sobre si mesmo em nome de si mesmo, em vez de ser comandado e
representado por outros, pensa a si mesmo como domínio e posse a mais
absoluta de si mesmo. A nova imagem do empreendedor é exemplar dessa
inflexão da sensibilidade igualitária porque é o símbolo e o ponto de atração do
êxito social.
O show empreendedor parece ter como conseqüência dois
fenômenos solidários que ilustram o alargamento considerável do acesso à
individualidade e constituem as condições indispensáveis para que sejam um
ideal de massa crível. Primeiramente uma de-hierarquização das atividades
sociais e econômicas. O importante é ter êxito, não importa em qual ramo de
atividade. O objeto do êxito é menos importante do que o fato do êxito. O outro
ponto é a generalização dos públicos do êxito. Existe sempre um caminho
suscetível de levar alguém para um caminho de notoriedade. Isso leva a uma
de-legitimação da tradição que se expressava na herança do status e do nome.
A chegada dos “vencedores” corresponde a uma supervalorização da
velocidade de ascensão e dos valores voltados para o futuro. O valor
referencial do vencedor reside na abertura ao infinito de múltiplas
possibilidades: o importante é ter estofo e trabalhar para ter sucesso. O
sucesso é uma atitude diante da vida. O vencedor é um prêt à porter, um ready
made que faz funcionar um imaginário da automobilização numa competição
ampliada onde cada um deve encontrar o próprio lugar independentemente dos
seus trunfos e limitações de origem. A identidade não é mais o que se
transmite e fecha numa filiação coletiva. É o que se constrói num projeto
inteiramente voltado para o futuro numa performance individual. A
profissionalização da identidade sob o domínio da imagem embaça a
diferenciação entre o espaço íntimo da identidade (quem sou eu?) e o espaço
público do sucesso (o que faço?). Ela assimila a identidade à aparência onde
sou o que pareço.
O radicalismo da subjetividade que nos obriga a ser responsáveis de
nos mesmos quando somos somente os filhos das nossas próprias obras, é
produzido pela perda crescente de referenciais absolutos. A concorrência é
uma das formas sociais tomada pela resposta ao problema onde o outro só
funciona como ponto de comparação e diferenciação, onde o outro é métrica,
14
assim como nos mecanismos que sustentam a competição esportiva. Mais
ainda, porque a concorrência está sendo pensada como uma competição, ela
dá credibilidade a idéia que ela produz desigualdades justas. Ela se torna a
demonstração do possível para todos. O outro é instrumentalizado como meio
de mobilização, de adaptar-se em permanência à incerteza da existência. Por
isso, o fim das crenças transcendentes é aparente: ela não desemboca numa
desagregação atomística do vínculo social, mas no desenvolvimento geral de
um estilo de relações sociais que faz funcionar em permanência a comparação
dos indivíduos. O indivíduo é somente a última transcendência disponível,
sendo porém uma transcendência reversível que não garante uma hierarquia
estável. Todos, podemos ser nossos próprios modelos, somos todos únicos
como as estrelas do show business. Não existe superioridade: existe uma
diferença de visibilidade. Somos cada vez mais donos do nosso devir subjetivo;
aparentemente, não tem mais nada além da nossa subjetividade.
UMA EMPRESA PÓS-DISCIPLINAR?
A narrativa central da literatura da excelência gerencial é sempre o
mesmo: os sistemas clássicos de gestão que impunham ao pessoal uma
disciplina exterior acabam sendo considerados obsoletos, colocando mais
problemas do que eles podem resolver. Acaba sendo desenhada a perspectiva
de uma empresa pós disciplinar onde os assalariados não são mais pensados
como executores mas sim como parceiros. O esporte aventura é um meio de
consolidar o espírito empreendedor na empresa, de ancorar essa cultura
empreendedora nos comportamentos de cada um de cada um dos
assalariados, independentemente da sua posição hierárquica. O esporte
aventura e o espírito de empresa não expressam simplesmente normas gerais
de conduta em sociedade, não são simplesmente um problema de imagem e
de mídia: são modos de ação concretos para resolver problemas concretos.
A disciplina foi no século XIX um modo de ancorar as populações
camponesas e camadas urbanas "nomadizadas" na regularidade do tempo
industrial. Prolongava, recompondo-a uma tradição hierárquica numa
sociedade que tinha abolido as ordens. Desse ponto de vista, ela constituiu um
meio de exercer o poder fundado na base antropológica da igualdade dos
indivíduos, abolindo a parte de liberdade embutida nessa igualdade. A
15
disciplina constituía uma técnica colocando em forma a coexistência dos
semelhantes. Ela era uma igualdade na ausência de liberdade, repousando
sobre uma hierarquia onde cada um devia encontrar seu justo lugar.
O esporte aventura e o espírito de empresa constituem um modo de
exercer o poder fundado sobre a estimulação da autonomia. Eles constituem
um meio de fabricar uma mentalidade de massa que faz a economia da
disciplina e das formas burocráticas que ela gerou.
DA GESTÃO BUROCRÁTICA PARA A GESTÃO EMPREENDEDORA
Num relatório encomendado por Jacques Chirac em 1987 a André
Riboud, CEO de BSN, existe o seguinte texto:
"O principio de unidade desse relatório, é que se consegue a mudança tecnológica, e, mais amplamente, se consegue êxito econômico quando se tem êxito com os homens. (...) Entre os grandes equilíbrios que mudam na empresa, existe o preço relativo do trabalho em relação ao do investimento. O ato produtivo dos homens é eficaz e rentável quando ele mobiliza todo o potencial produtivo. Para isso, ele precisa de todo o potencial dos homens: seu rigor, sua imaginação, sua motivação, sua autonomia, sua responsabilidade. A capacidade de obediência, de força, de repetição e tudo que vai na direção de uma rotina bem dominada, caem em obsolescência. Não se pode mais, portanto, praticar o mesmo estilo de comando e de animação, nem ter a mesma divisão do trabalho ou a mesma definição das qualificações."6
Assim está resumido por um alto executivo francês as razões que
obrigam a gerenciar de um modo diferente. Se essas transformações estão
longe de ser generalizadas, se os problemas que elas colocam concretamente
nas empresas estão longe de ser resolvidas (contração da massa salarial e
bloqueio das promoções que são o outro lado do gerenciamento participativo),
seu enunciado tornou-se hegemônico e tomou o nome de "gerenciamento
participativo".
A participação tem vários significados. Ela pode ser vista como uma
adaptação psicológica à organização racional da produção (por exemplo, nas
experiências de Elton Mayo). Um segundo significado pode ser mais político: a
repartição do lucro e dos resultados da empresa entre os vários atores do
processo empresarial. O terceiro significado é mais institucional: diz respeito às
instituições representativas do pessoal. Esses três registros veiculam uma
6 RIBOUD, André, Modernisation, mode d'emploi,UGE, Paris, 1987, p. 21 a 24.
16
representação da empresa como universo da obrigação para a maioria, ou o
conjunto dos assalariados. Espaço da exploração ou da alienação da força de
trabalho ou pura imposição econômica natural decorrendo da divisão técnica
do trabalho, visão crítica da empresa ou perspectiva tecnicista somente
declinam esse paradigma.
O "participativo" como método de gestão e modo de exercício da
autoridade é o registro no qual se focalizam hoje as preocupações dos
managers. Integra as participações psicológica e econômicas, embora
renovando-as. A implicação do trabalhador torna-se tão essencial quanto era
sua exclusão na gestão burocrática. Ela veicula uma outra representação da
empresa como espaço de realização pessoal, de conquista identitária onde a
hierarquia anima trabalhadores responsáveis em vez de comandar executores
indóceis ou retrógrados. O management participativo acompanha o recuo de
uma visão puramente hierárquica das relações comando/obediência. A
disciplina não é mais o fundamento da eficácia do trabalho e o método principal
na direção das condutas. O chamado generalizado para a revolução gerencial
nas empresas remete a um outro sistema de representação da eficácia que
consiste em transformar os trabalhadores em empreendedores das próprias
tarefas.
DO OPERÁRIO EXECUTOR AO OPERÁRIO EMPREENDEDOR
Henry Ford escrevia na suas memórias "precisei eliminar a arte dos
homens do trabalho". Georges Raveleau, presidente da Associação Francesa
para os círculos de qualidade escreve: "Ninguém é melhor qualificado do que o
trabalhador para saber o que vai bem ou o que não vai bem no próprio
trabalho."7 Entre essas duas proposições, é a concepção global do trabalhador
que não é mais a mesma, é o princípio da racionalidade da gestão da mão de
obra que muda, é o imaginário managerial que é diferente.
O taylorismo tinha substituído a disciplina moldada pela arte militar e
o arbitrário patronal fundado sobre o direito de propriedade por uma disciplina
cientifica apoiando-se nas competências do engenheiro e modelada pela
máquina. Ao regime militar na fábricas sucedia a visão tecnocrática das
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relações industriais. A gestão taylorista e fordiana era fundada na referencia à
ciência numa visão hierárquica marcada pela mística do chefe ou do
engenheiro que tendia a excluir o operário do ato de produção porque esse era
uma figura do atraso ou da indocilidade. A gestão participativa refere-se ao
operário responsável, que busca em si a boa conduta a ser seguida em vez de
seguir o ditado externo do superior. O ideal do bom comportamento não é mais
a execução irrefletida, automática das ordens e das regras, mas sim a
capacidade de trabalhar como se não tivesse superior hierárquico para indicar
a via a ser seguida. A autonomia não deve mais ser erradicada: é o meio de
governo eficaz. O management pós disciplinar é uma tentativa para forjar uma
mentalidade de massa que economiza ao máximo o recurso às técnicas
coercitivas tradicionais.
DO COMPROMISSO INSTITUCIONAL À POLÍTICA DE ADESÃO
A acentuação da imposição de uma concorrência cada vez mais
acirrada teria podido desembocar num reforço dos procedimentos disciplinares.
Na realidade, se a burocracia permitia obter um equilíbrio interno a partir de um
cérebro centralizador único num ambiente de mercados estáveis, a
desburocratização torna-se essencial num quadro de mercados instáveis. A
associação do conjunto dos atores da empresa na busca da performance
torna-se a missão do management. Daí a necessidade de passar de uma
gestão do compromisso, onde a dominação coletiva dos trabalhadores é
compensada por uma representação coletiva no sindicalismo e nas instituições
representativas do pessoal, para uma política da adesão. É pelo processo de
implicação que o conjunto do pessoal integrará essa racionalidade econômica
antes atribuída à direção da empresa.
O desenvolvimento da crise econômica, cujo resultado é o aumento
da imposição da concorrência no nível do ator individual, não levou a um
reforço dos sistemas disciplinares nem por um reforço institucional, mas à
promoção de modos de ação que reforçam a autonomia. A gestão dos recursos
humanos é, daqui para frente, uma luta contra a desmotivação dos
assalariados e todos os instrumentos que ela usa buscam mobilizar cada um e
7 Citados em EHRENBERG, Alain, Le culte de la performance, Paris, Hachette, 1991, p. 224 e
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toda a equipe. Além dos efeitos de linguagem, existe uma concepção da
eficácia que tenta casar um modelo baseado numa concorrência acirrada e um
modelo de realização pessoal. Essa síntese está totalmente compatível com as
normas que regem o esporte aventura e o consumo. Ela torna indistinta a nítida
separação entre as normas da vida privada e as da vida profissional. Enquanto
a primeira se profissionaliza, a segunda torna-se um lugar potencial para a
realização pessoal. A gestão dos recursos humanos passa de uma
problemática do comando que visa a incrementar de fora uma força passiva
para a da animação que visa não a erradicação da autonomia, mas sua
estimulação de qualquer moda dentro do sujeito para que ele aja
autonomamente. Agir sobre si mesmo não tendo outro representante que si
mesmo é o nó da gestão participativa assim como a obediência imposta de fora
era o nó da disciplina.
Para atrair a adesão, esse estilo de gestão implica casar a eficácia,
sem a qual ele só pode o sentido de uma gestão dos patrimônios e dos
privilégios, e uma forma crível de justiça, sem a qual ele é só retórica. Por isso,
é suscetível de encontrar seu modelo no esporte aventura: ele elimina a
suspeita de arbitrariedade ao mesmo tempo que promove um modo de
aceitação da imprevisibilidade que encontra sua fonte no lazer. Ele funciona de
um modo análogo à referência do engenheiro na concepção taylorista: é um
outro modo de fabricar algo "indiscutível", um modo adaptado à conjuntura das
mudanças e das incertezas constantes. É o que dá a ele tanto status e
credibilidade. Sua equação subjacente, concorrência, justiça e imprevisibilidade
o projeta para frente, faz dele uma referência e um princípio de ação
socialmente críveis e economicamente eficazes para motivar o pessoal de uma
empresa.
O esporte aventura na empresa é um programa que consiste em
fabricar nos assalariados uma verdadeira mentalidade de empreendedor ao
mesmo tempo que os transforme em torcedores da empresa na qual eles
trabalham. Ser capaz de enfrentar um desafio, é ser colocado em condições de
assumir as próprias responsabilidades até o ponto de assumir a própria
reinserção profissional e social. O novo estilo das políticas de busca de
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emprego e de reinserção profissional, análogo ao que governa o
comportamento de todos os assalariados de uma empresa é cada vez mais
focalizado numa autonomia concebida em termos de tomada de risco. É dando
a cada um a possibilidade de assumir mais riscos que se luta atualmente
contra a exclusão e as desigualdades.
Os procedimentos de reforma gerencial, de transformações do
exercício da autoridade, que nem todos apelam para o esporte aventura,
desenvolvem-se no momento onde os modos de ação empreendedores
difundem-se na sociedade em contraposição aos modos de ação
administrativos e assistenciais, onde a forma empresa torna-se ao mesmo
tempo um modo de governo para a sociedade e um modo de conduta para o
indivíduo. A aspiração para a autonomia leva por um poderoso investimento
imaginário na forma empreendedora. À autonomia pensada como resistência
sucede a autonomia pensada como integração.
PARCERIA E OUTPLACEMENT
A parceria é o jeito que toma a responsabilidade social na empresa.
Essa forma de regulação das relações entre os atores participa do recuo de
uma visão disciplinaria e hierárquica na gestão da força de trabalho a favor de
uma visão relacional e empreendedora. Essa integração do social na gestão
repousa sobre as idéias, as redes, o contrato e o consenso. Trata-se de evitar
os efeitos negativos da concorrência e da centralização burocrática
privilegiando modos de ação cooperativos. A parceria é uma respostas às
novas formas de concorrência onde a qualidade e a velocidade de reação ao
mercado tornam-se trunfos essenciais. A contratualidade das relações
organizadas em rede permite reagir muito mais rapidamente às variações de
mercado que a forma integração ou a terceirização tradicional, marcadas por
relações de dominação entre as partes.
O outplacement tem por finalidade ajudar, a partir de uma demanda
do empregador, os colaboradores que devem achar uma nova situação,
fornecendo para eles os meios mais eficazes de valorizar seu pessoal e sua
experiência durante a duração de sua procura. O principio do outplacement é
que se gera a separação em função de uma avaliação pessoal de cada
assalariado eventualmente envolvido e não mais simplesmente em função do
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número de postos a ser suprimidos usando critérios exteriores às qualidades
pessoais do assalariados, definidos por exemplo pela antiguidade. Em troca de
uma demissão sob medida, desenvolvem-se procedimentos personalizados de
reinserção onde os assalariados são levados a se assumirem e implicar-se na
própria reinserção. É o prolongamento do espírito de empresa na ruptura do
contrato de trabalho. O outplacement deve ser entendido em relação ao tipo de
demissões onde a competência e o potencial pessoais de desenvolvimento do
assalariado tornam-se fatores de exclusão. Esse tipo de demissão não consiste
em suprimir postos por causa de redução de quadros, mas em demitir
assalariados incapazes, segundo a direção, de se adaptar, por causa de um
nível de educação insuficiente, a inovações tecnológicas. Esse tipo de
demissão questiona o assalariado no nível pessoal, sobre sua incapacidade a
evoluir. O potencial pessoal é ao mesmo tempo o ponto de referencia da
inserção e da exclusão. Para gerir os dois problemas da inadaptação da mão
de obra e de excesso de efetivos, procurando ao mesmo tempo de não
desmobilizar quem permanece, a empresa assume a recolocação profissional
ao mesmo tempo que empurra os assalariados a implicar-se na própria
reconversão. O outplacement permito o funcionamento da solidariedade sem a
assistência porque reintroduz a responsabilidade econômica e social da
empresa ao mesmo tempo em que permite a passagem de uma lógica da
proteção coletiva para uma lógica de responsabilização individual do
assalariado.
O INDIVÍDUO SOB PERFUSÃO
A "empreendedorização" dos comportamentos dos assalariados em
todos os níveis da hierarquia das firmas procura fabricar uma mentalidade de
massa na qual cada um é levado a governar a si mesmo. A rarefação dos
contrapesos à aventura empreendedora e o recuo dos meios de proteção
assistencial têm uma contraparte: nesse estilo de existência, cada um carrega
cada vez mais o peso das próprias responsabilidades. Daqui para frente, os
erros são cobrados a vista. A realização pessoal e a individualização de cada
um numa sociedade onde não existe mais nada fora de uma lógica de
concorrência se paga por uma depressão nervosa generalizada.
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Depressão, insônia, estresse, angustia, nervosismo e outros mal-
estares individuais são objeto de uma atenção por parte da mídia. Contudo, é o
uso dos tranqüilizantes e dos soníferos que suscita a inquietação, ao ponto de
ser colocados num campo da toxicomania. A ação de uma droga sobre o
sistema nervoso central consiste em modificar ou a alterar os estados de
consciência do mesmo modo que a possessão, a transe. As drogas são assim
definidas como um conjunto de práticas de alteração dos estados de
consciência, que produzem artificialmente alteração mental, como nas psicoses
experimentais que estiveram na origem da descoberta dos neurolépticos, com
a cocaína ou o álcool, o torpor com a heroína, ou reduzem a angústia e
relaxam o indivíduo com os tranqüilizantes. Quaisquer que sejam os efeitos
psicológicos, o discurso atual sobre os medicamentos psicotrópicos os vincula
com a concorrência. São daqui para frente mais um meio artificial para
enfrentar quando o "natural" falha do que um instrumento terapêutico. São
substâncias dopantes para o indivíduo obrigado numa sociedade de
concorrência a ir até o fim de si mesmo, como esportista obrigado em superar
os próprios limites numa competição. São um meio de ser si mesmo que,
segundo o caso, contorna ou reforça o trabalho já exercido sobre si mesmo.
DO ÓPIO DO POVO À SOCIEDADE DOPADA
A abundância pode parecer "uma euforia psico-química que
anestesia as raízes do mal, mascara por um tempo os caminhos da
ansiedade"8. "Tranqüilizantes e euforizantes, as campanhas de intoxicação da
radio-televisão, da imprensa-propaganda e da publicidade contribuem para
alienar o indivíduo."9
Hoje, não são mais os valores materialistas e o consumo,
considerado como um poderoso narcótico social (o ópio adormece as
consciências enquanto a política as acorda) que são as referências do debate,
mas sim a sobrevivência do indivíduo colocados numa concorrência sem lado
de fora. Passou-se de uma visão sedativa para uma visão psico-estimulante. A
inflexão do discurso sobre os medicamentos psicotrópicos substitui o ópio do
povo pela sociedade dopada. O indivíduo sob perfusão é um aspecto da
8 ELGOZY, Georges, Les damnés de l'opulence, Paris, Calmann-Lévy, 1970, p.11
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"empreendedorização" da vida. A obsessão de ganhar, de ser bem sucedido,
de ser alguém e o consumo massificado de medicamentos psicotrópicos são
estreitamente ligados porque uma cultura da conquista é necessariamente uma
cultura da ansiedade que é sua sombra.
Já para Baudelaire, o haxixe e o vinho são
"dois meios artificiais pelos quais o homem, exasperando sua personalidade cria, por assim dizer, nele mesmo um tipo de divindade. (...) Ninguém ficará surpreso que um pensamento supremo brote no cérebro do sonhador: eu me tornei Deus!"10
O individuo é, in abstracto, o deus da sociedade democrática. É sua
transcendência, mas uma transcendência móvel com limites determinados: é
ao mesmo tempo todo poderoso e impotente. A subida até os extremos do
individuo até a divindade não é o infinito dos possíveis, mas a liberdade
indeterminada do individuo.
Uma lógica de modificação de estados de consciência pelo
psicotrópicos ao mesmo tempo muito extensa e nova está acontecendo na
sociedade. Muito extensa porque atinge populações muito mais numerosas do
que as afetadas pelo uso de outras drogas alucinógenas; nova porque rompe
com o imaginário delituoso e da insegurança que organiza a percepção social
das outras drogas. Se as drogas tradicionais existem para ajudar a fugir da
realidade, os medicamentos estão aí para ajudar a enfrentar a realidade, para
estar de igual para igual com os outros na concorrência. São drogas de
integração social e relacional. Elas servem a aliviar o peso da responsabilidade
quando ele se torna pesado demais. Os medicamentos expressam a busca
incansável de agüentar o tranco quando a relação com o outro, incluindo as
formas de solidariedade, é cada vez mais considerado pelo lado da
concorrência; eles permitem estimular-se ou acalmar-se para ser competitivo e
tornar-se independente das imposições sociais embora permanecendo
socializado. Eles são uma auto-assistência, principalmente quando a aparência
do indivíduo torna-se essencial para seu êxito profissional. A relação com o
trabalho e a empresa acaba funcionando do mesmo modo que a competição
9 Ibid, p.101
10 BAUDELAIRE, Charles, Les paradis artificiels, Paris, Gallimard, Folio, p. 81 e 141, citado por
EHRENBERG, ibid, p. 258
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para um esportista de alto nível, cuja carreira é exclusivamente regrada pelas
competições.
Para poder ser aceitos, esses modos de gestão das condutas
humanas deveriam ter as responsabilidades como objetivo e não como
postulado. A possibilidade de ser responsável reside menos na injunção e mais
nos procedimentos, nas formações e nos degraus institucionais que a empresa
deve fornecer para cada um. Quando são ausentes ou mal organizados, a
tarefa do indivíduo torna-se intolerável porque ele suporta todo peso das
responsabilidades antes assumida pela hierarquia sem os meios de responder
por elas. Na medida em que o êxito individual tornou-se a forma dominante da
participação na sociedade, os processos de individualização do qualquer
apareceram nos modos de ação e nas referencias dos grupos sociais
desprovidos dos meios de ser incluídos, por causa de suas carências culturais
e escolares, na concorrência empreendedora.
A aspiração para a toxicomania no registro da socialização é um
indicador cultural da paixão de ser si mesmo e de ser somente isso. Viver
somente para ser, ou tornar-se, si mesmo é a face escura, cheia de sofrimento,
a face depressiva e ansiosa desse tipo de igualdade dos indivíduos. O outro
desapareceu, servindo simplesmente de métrica!