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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL. GT03 - Sociologia e antropologia das emoções Emoções em contexto: apontamentos de um estudo junto a pessoas com “deficiência intelectual” Pedro Lopes [email protected] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social PPGAS/USP Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença Numas/USP Bolsista pela FAPESP 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE

e PRÉ-ALAS BRASIL.

GT03 - Sociologia e antropologia das emoções

Emoções em contexto: apontamentos de um estudo

junto a pessoas com “deficiência intelectual”

Pedro Lopes

[email protected]

Mestrando do Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social – PPGAS/USP

Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre

Marcadores Sociais da Diferença – Numas/USP

Bolsista pela FAPESP

04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.

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Emoções em contexto: apontamentos de um estudo junto a

pessoas com “deficiência intelectual”

Pedro Lopes (NUMAS/PPGAS/USP)

RESUMO: Nesta comunicação são exploradas emoções que constituem a

experiência da “deficiência intelectual” na trajetória de certos sujeitos.

Considera-se como ponto central o caráter biomédico, mas também

significativamente moral e social, que a “deficiência intelectual” assume com a

expansão e fortalecimento dos saberes de orientação psico-biológica na

contemporaneidade, especialmente tendo-se em vista a centralidade de

noções como “intelecto” e “razão” para a conformação da noção moderna de

sujeito. Observar o conjunto de emoções que emergem de situações de

entrevista à luz dessa perspectiva contextualizada sobre a noção de

“deficiência intelectual” torna visível a construção das emoções enquanto uma

linguagem social que responde a um tempo e espaço localizados.

Introdução

Este paper tem por objetivo uma primeira aproximação do campo de

discussão da antropologia das emoções como ferramenta para a compreensão

de situações e discursos vinculados à temática da “deficiência intelectual”1. O

material aqui em foco é diverso, e vem sendo reunido em minha pesquisa de

mestrado2. O que se propõe a seguir, nesse sentido, não é explorar uma

questão ou problema específicos, mas se aproximar do campo de debates

acerca das emoções como chave para a identificação de problemáticas.

A elaboração deste texto teve como ponto de partida uma percepção

elaborada em campo de que o próprio tema da “deficiência intelectual” é um

1 O uso das categorias associadas à “deficiência” entre aspas pretende frisar seu tratamento

como classificações sob investigação. 2 Iniciada em março de 2012 pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/USP, a

pesquisa tem por título Negociando deficiências: sobre identidades, subjetividades e corporalidades entre pessoas com “deficiência intelectual”, orientada pela Professora Laura Moutinho, com bolsa da FAPESP.

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ponto sensível na trajetória dos sujeitos com quem venho conduzindo

entrevistas em profundidade. Trata-se de uma temática que oscila entre algo

como um tabu e uma categoria mobilizadora de engajamento político nas vozes

de alguns entrevistados. Seja qual for o tom e o contexto no qual a questão é

abordada, a classificação de alguém como pessoa com “deficiência intelectual”,

ou “pessoa especial” é emocionalmente mobilizadora.

Essa observação, contudo, não se restringe aos contextos de entrevista.

Também em produções audiovisuais, blogs, textos ou situações de interação

menos formais, as categorias vinculadas à “deficiência intelectual” e seu uso na

designação de sujeitos fazem aflorar afetos significativos.

É preciso reconhecer, antes de delinear um debate sobre “deficiência

intelectual”, que as classificações, ou os chamados marcadores sociais da

diferença, estão, em diversos contextos, fortemente associadas a economias

afetivas e emocionais. Intimamente referidos à pessoa dos sujeitos que

classificam, categorias de diferenciação social têm seu sentido constantemente

moralizado e, assim, atravessado por enunciados inflamados. Desse modo, na

análise de Axel Honneth (2003) acerca das lutas por reconhecimento e direitos,

as emoções e o reconhecimento afetivo têm um espaço significativo. Honneth

visibiliza o sentido emocional que acompanha os processos de reconhecimento

social, amplamente organizados em função de identidades culturais e políticas:

[...] vai de par com a experiência da estima social uma confiança emotiva na apresentação de realizações ou na posse de capacidades que são reconhecidas como “valiosas” pelos demais membros da sociedade; com todo o sentido, nós podemos chamar essa espécie de autorrealização prática, para a qual predomina na língua corrente a expressão “sentimento do próprio valor”, de “autoestima”, em paralelo categorial com os conceitos empregados até aqui de “autoconfiança” e de “autorrespeito”. [Honneth, 2003, p.210]

De fato, nos mais diversos movimentos de identidade, a categoria

“autoestima” parece ser um denominador comum, associada a sentimentos de

“orgulho”.

Nesse campo de disputas políticas, organizado sob a égide dos direitos

humanos, muitas discussões vêm se focando na figura da vítima. Embora a

associação entre movimentos de identidade e discursos de vitimização seja

tensa, há aproximações que aqui interessam na medida em que esses

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discursos mobilizam uma linguagem emotiva, especialmente em termos de

sofrimento, na construção da legitimidade moral de demandas sociais.

As reflexões de Cynthia Sarti (2011) a respeito do recente alargamento

do espaço social ocupado pela figura da vítima permitem construir essa

problemática. A autora observa que a emergência e o fortalecimento da vítima

como uma figura pública vinculam-se aos contextos de demanda por justiça e

consolidação da democracia. Precisamente associada a políticas de reparação

elaboradas em resposta a certas experiências de guerra, a vítima foi se

tornando uma imagem chave no cenário internacional de combate à violência e

aos “crimes contra a humanidade”. Contudo, a temática da violência ultrapassa

os contextos de guerra. Nas palavras da autora:

Os trabalhos desse campo temático evidenciam a complexidade da formulação de ações e políticas sociais em um cenário de novas configurações da violência, identificada, hoje, com aquilo que afeta existências singulares, pessoais ou coletivas, para além do que afeta a ordem social e política [...], resultado do impacto de movimentos sociais em defesa dos direitos das "minorias" socialmente desfavorecidas, que contribuíram decisivamente para tirar da esfera privada e trazer à luz a questão da violência. [Sarti, 2011, p.52-53]

Nesse contexto, o recurso a discursos de vitimização é compreendido

como uma estratégia de legitimação de demandas sociais, pertinente a

determinados contextos políticos. Trata-se, portanto, de uma linguagem

específica:

No que se refere, pelo menos, ao mundo ocidental moderno, a identificação da vítima faz parte dos anseios de democracia e justiça, dentro do problema da consolidação dos direitos civis, sociais e políticos de cidadania. Remete à responsabilização social pelo sofrimento em face de catástrofes de várias ordens, desde guerras até acidentes naturais (terremotos, etc.) e à questão do reconhecimento como exigência básica do ser no mundo. Categoria histórica, seu significado define-se contextualmente, na dinâmica dos deslocamentos de lugares que marca as relações intersubjetivas, situadas em estruturas sociais de poder no interior das quais os conflitos são negociados. [...] A noção de vítima configura, assim, uma maneira de dar inteligibilidade ao sofrimento de segmentos sociais específicos, em contextos históricos precisos, que se produzem ou são produzidos como tal, conferindo legitimidade moral a suas reivindicações. [Sarti, 2011, p.54]

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Nesse debate, a construção de inteligibilidade ao sofrimento, e de

legitimidade moral às reivindicações a que Sarti faz referência parecem ser

elementos constantemente associados por meio de uma linguagem emotiva.

As emoções, assim, constituiriam uma forma de comunicação que, ao mesmo

tempo em que está inevitavelmente referida ao indivíduo – expresso na

centralidade da figura da vítima –, remete-o a uma coletividade.

Nesse jogo, entre indivíduo e sociedade, a referência do trabalho de

Marcel Mauss ([1921]1980) é inaugural. O autor, ao identificar a expressão dos

sentimentos como uma linguagem, defende que ela não somente comunica

emoções aos interlocutores do sujeito da enunciação, como a si mesmo.

Seguindo por essa trilha, as emoções podem ser lidas também como

produtoras de subjetividades – e não somente expressões delas. Nesse

sentido, a contribuição de Foucault (1999) também pode ser aproximada: sua

noção de poder segue uma abordagem positiva, que entende o poder como

algo produtivo, e não somente proibitório. Assim, o poder não apenas

restringiria possibilidades de ser, como inscreveria a norma nos sujeitos. São

Claudia Rezende e Maria Claudia Coelho (2010) que apresentam essas

aproximações, sugerindo assim, a análise da micropolítica das emoções.

Conforme as autoras:

[...] uma “micropolítica das emoções”, ou seja, [...] sua capacidade para dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual. É assim, então, que as emoções surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre os grupos sociais [...] [Rezende e Coelho, 2010, p.78]

Tendo em vista o caráter micropolítico das emoções – entendidas,

portanto, enquanto uma linguagem que, ao mesmo tempo em que comunica

sentimentos, conforma sujeitos – é interessante retomar os termos (ou efeitos)

associados por Cynthia Sarti a discursos de vitimização: a inteligibilidade ao

sofrimento e a legitimidade moral às reivindicações. Nessa chave, vê-se a

conformação de uma subjetividade específica, referida a uma arena política e

que produz um enunciado comunicável.

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A dor da violência, como experiência traumática, pode, no entanto, ser ressignificada em momentos posteriores de elaboração, o que torna relevante o contexto de sua manifestação e o de sua elaboração, a partir do discurso de quem fala. Essa perspectiva implica discutir as condições de possibilidade de elaboração das experiências de dor e sofrimento, articulando aspectos subjetivos e contexto social e político, de forma a buscar o que permite falar ou o que faz silenciar; ou ainda, o que é permitido vir à tona e o que é deixado na sombra. [Sarti, 2011, p. 57]

Dar forma discursiva a experiências de sofrimento e dor, nesse caso,

não seria uma decorrência imediata da violência. Trata-se, nesse caso, da

produção de uma subjetividade que engendra uma busca por legitimidade

moral.

A reflexão acerca da produção de subjetividades, inspirada em Foucault

(1999), contudo, não pode deixar de conter em seu horizonte um debate acerca

da noção de corpo, caro também às discussões acerca das emoções (Rezende

e Coelho, 2010). A “vontade de saber”, a incitação de discursos sobre a

sexualidade em Foucault (1999), mediada por diversos dispositivos de poder

produtivo, tem como horizonte de referência, e alvo das tecnologias

disciplinares, o corpo. Assim, saberes – especialmente vinculados à

biomedicina, à psicologia ou à demografia – produziriam verdades sobre os

corpos. Não é preciso recorrer a muitos exemplos aqui para verificar a ampla

penetração dessas verdades. No caso das representações acerca das

emoções, sua suposta localização no corpo ou na psique de qualquer sujeito,

independente de sua localização social, é um discurso vastamente difundido

(Rezende e Coelho, 2010).

Em meio a forças sociais que caminham no sentido da biologização (se

não patologização, e mesmo medicamentalização) de formas de ser e

comportamentos, a distinção entre saúde e doença emerge como um foco de

tensão política3. Nesse sentido, experiências de sofrimento ganham

significados ambíguos, apontando tanto para a construção de discursos de

legitimidade moral conforme delineado acima, quanto para a formulação de

critérios para a identificação de estados patológicos em discursos biomédicos.

3 Nesse tópico, ver a reflexão de Judith Butler (2009) a respeito da disputa entre a identidade

transexual e o diagnóstico de “transtorno de identidade de gênero”.

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Nesse cenário, a temática da “deficiência” se apresenta como um

terreno fértil para a reflexão sobre tais processos.

Entre “deficiência” e “deficiência intelectual”

Diversos autores localizam os movimentos de pessoas com “deficiência”

no contexto das lutas de minorias por reconhecimento, ou, mais

especificamente, como um movimento de identidade. Assim, multiplicam-se as

analogias – e a delimitação de fronteiras e articulações – entre “deficiências” e

outros marcadores sociais da diferença, tais como cor/raça/etnia, gênero ou

sexualidade. Essa aproximação tem dois sentidos. Em primeiro lugar, significa

que o movimento das pessoas com “deficiência”, assim como os outros

movimentos, tem de lidar com os diversos dilemas já amplamente debatidos

acerca da delimitação de identidades políticas e a ameaça dos

“essencialismos”. Como observa Lennard Davis:

One could interrogate the unity of novel, science, even physics, but one could not interrogate one’s right to be female, of color, or queer. Given this resistant notion of identity, the disability movement quite rightly desired to include disability as part of the multicultural quilt. [Davis, 2010, p.303]

Inserindo-se, assim, a temática da “deficiência” na cena das lutas por

reconhecimento, é interessante notar, em segundo lugar, que essa inflexão

política na forma como a categoria é construída pelos movimentos sociais se

dá em diálogo intenso com uma nova compreensão do fenômeno por parte do

pensamento social. Assim, a “deficiência” passa a ser pensada em uma chave

que baliza também inúmeras análises acerca de sistemas classificatórios de

cor/raça/etnia, gênero e sexualidade: o esforço das ciências sociais por se

contrapor às explicações biológicas para tais classificações. No caso da

discussão sobre raça, a questão já é debatida pelo menos desde o clássico

Franz Boas ([1931]2004), na virada do século XIX para o XX. No caso do

debate sobre a distinção entre sexo e gênero, o trabalho de Thomas Laqueur

(2001) evidencia a precedência de critérios sociais e morais sobre a produção

de “fatos” biomédicos – assim, subscrevendo a sugestão de que o gênero

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fundamenta o sexo, e não o contrário. As discussões acerca da sexualidade

são especialmente interessantes, no caso, na medida em que muitos

comportamentos e identidades sexuais constaram e constam nos manuais de

psiquiatria como desvios patológicos. Jane Russo e Ana Teresa Venâncio

(2006) evidenciam algumas forças que conspiram na produção de tais (novas e

prolíficas) verdades, tal como o peso da indústria de psicofármacos. No campo

de estudos sobre a “deficiência”, a crítica a uma visão biológica da “deficiência”

ocupa um lugar de destaque, embora o peso das experiências de limitação

impostas por lesões gere ambiguidades nas próprias análises (Shakespeare,

2010). Nesse sentido, Débora Diniz observa:

O argumento do modelo social [compreensão da “deficiência” como fenômeno social, distinto da lesão corporal propriamente dita] era o de que a eliminação das barreiras mostraria a capacidade e a potencialidade produtiva dos deficientes, uma idéia duramente criticada pelas feministas. A sobrevalorização da independência poderia ser um ideal perverso para inúmeros deficientes incapazes de alcançá-la. [,,,] Foram as feministas que mostraram o quanto o modelo social era uma teoria desencarnada da lesão, uma fronteira impossível de ser sustentada em qualquer caso, mas especialmente quando se incluíam lesões provocadas por doenças crônicas ou por lesões intelectuais. [Diniz, 2003, p.4-5]

Assim, a “deficiência” surgiria nos debates políticos e acadêmicos

marcada por ambiguidades. Trata-se simultaneamente de um estado vinculado

a diagnósticos biomédicos – que, conforme apontaram Russo e Venâncio

(2006), são produzidos em função de contextos sociais, políticos e econômicos

específicos –, e de uma categoria agregadora de mobilização política por meio

da produção de identidade.

Frente a esse quadro, o caso da “deficiência intelectual” apresenta

alguns deslocamentos em relação a “deficiências físicas” ou “sensoriais”, tanto

do ponto de vista clínico quanto político. Na organização dos movimentos

sociais, a representação de pessoas com “deficiência intelectual” apresenta-se

como um tema constantemente problemático (Lanna Júnior, 2010).

Recentemente, todavia, movimentos de auto-defensoria – que se baseiam na

auto-representação de pessoas com “deficiência intelectual”, e não por seus

pais ou profissionais – em diversos países, inclusive no Brasil (Glat, 2004),

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assim como algumas publicações (Associação Carpe Diem et al., 2012;

Docherty et al., 2010) vêm trazendo novos contornos essa situação.

Esses discursos estão amparados por diversas políticas e ações

nacionais e internacionais, num contexto de crescente visibilidade da

“deficiência” como foco de atenção pública. Na cena internacional, mas

também brasileira, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência, promulgada pela ONU e ratificada pelo Brasil em 2008, é talvez o

maior símbolo dessa visibilização (Brasil, 2008).

No caso específico da “deficiência intelectual”, vale destacar o Dia

Mundial da Síndrome de Down, oficialmente celebrado pela primeira vez pela

ONU em 21 de maio de 2012. Na ocasião, a Associação Carpe Diem,

instituição sediada em São Paulo, lançou o livro Mude seu falar que eu mudo

meu ouvir, escrito em parceria com um grupo de seis jovens com “Síndrome de

Down” (Associação Carpe Diem et al., 2012). No livro, nota-se a tensão entre o

diagnóstico biomédico e a possibilidade de construção de uma identidade:

A deficiência intelectual é geralmente causada por algum tipo de comprometimento no tecido cerebral, dado por fatores genéticos (como a Síndrome de Down, por exemplo),

infecções, oxigenação no cérebro insuficiente durante a gestação ou parto. [...] Mesmo quando há um comprometimento no tecido cerebral, a deficiência intelectual não é uma doença e sim uma condição muito peculiar no modo de compreender e apreender as situações. Se a forma de compreender é diferente, a maneira de se estar no mundo também fica “configurada” de forma diferente. É uma maneira de existir, não uma doença. [Associação Carpe Diem et al., p.54]

Esses novos discursos políticos que têm despontado acerca da

“deficiência intelectual”, além de a modularem como mais uma identidade

social, lançam mão de uma linguagem emotiva na construção de sua retórica.

Falar sobre emoções no caso da classificação de pessoas como

“deficientes intelectuais” certamente não deve ignorar uma constate discursiva,

presente nas falas das mais diversas famílias, acerca da dor e do sofrimento

vivenciados com a notícia do diagnóstico quando do nascimento de uma

pessoa com “deficiência intelectual”. Nas falas apresentadas no premiado

longa Do luto à luta (Mocarzel, 2005), a notícia da “deficiência” do bebê é em

geral recebida com alguma surpresa, e luto. As representações sociais

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negativas associadas à “deficiência” como categoria associada a estados de

doença e incapacidade aparecem em diversas falas, mas, mais que isso, a

própria noção de pessoa está em jogo – ou mesmo uma noção de

humanidade. São trazidas à tona nesse momento perspectivas de restrição à

leitura, à fala e à possibilidade de independência motora, e social. Em muitos

relatos, a falta de conhecimento técnico – além dos constantes relatos de

insensibilidade – por parte dos médicos e seus prognósticos fatalistas

conspiram na vivência do sofrimento. No longa, contudo, o estado quase

inominável de luto transforma-se em luta. Esse discurso é encontrado também

por Olga Maria Bastos e Suely Deslandes (2008) em sua análise das falas de

mães de jovens com “deficiência intelectual”:

Partindo do momento de ruptura com o status anterior (mãe ou futura mãe de uma "criança normal") para o de mãe de uma criança com deficiência mental4, relatam as vivências iniciais de perplexidade, humilhação, vergonha e, sobretudo, de perda momentânea de referências culturais e psíquicas que ordenassem aquela experiência. A partir daí suas narrativas se atualizam, realizando uma apresentação social de si como mulheres sofridas, abnegadas e corajosas, capazes de se dedicarem incansavelmente ao filho (agora adolescente) e de buscar e cobrar das instituições de saúde e de educação uma atenção que elas considerem (ou mesmo fantasiem) como realmente eficiente. [Bastos e Deslandes, 2008, p.2148] 5

É interessante notar, nesses depoimentos de dor e desestruturação de

significados, que a referência ao luto torna-se uma condição para a construção

atual de si em luta. Trata-se de uma economia sentimental que se aproxima

dos discursos de vitimização acima debatidos, mesmo que não

necessariamente nos mesmos termos. Contudo, vale notar: aqui também se vê

o sofrimento operando como um legitimador moral da atual condição das mães

entrevistadas por Bastos e Deslandes, inclusive mediando sua atuação frente a

instituições de saúde e educação.

4 O termo “deficiência mental” é amplamente usado no Brasil. Contudo, desde a Conferência de

Montreal (OPS/OMS) em 2004, convencionou-se o uso da categoria “deficiência intelectual”, que emprego neste texto nas situações nas quais não há outros termos sendo reivindicados em campo. 5 Richard Roy Grinker (2010) adiciona a essas percepções elementos interessantes ao lembrar

que diversos discursos de saberes psicológicos tendem a responsabilizar especialmente as mães pelo desenvolvimento de “transtornos psiquiátricos” em seus filhos. O foco do trabalho de Grinker é o “autismo”, que não necessariamente é enquadrado como “deficiência intelectual”. Porém, as constâncias entre suas observações e as análises de outros autores permitem aproximá-lo.

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O que pensamos e como ouvimos: duas publicações escritas por pessoas com

“deficiência intelectual”

Duas publicações recentes a que tive acesso permitem pensar esses

processos emocionais desencadeados por atos classificatórios segundo vozes

dos próprios sujeitos classificados. Nos dois casos, trata-se de sujeitos que

propõe representar a si próprios na cena política, e que reivindicam para si

termos associados à “deficiência”.

A primeira publicação é um artigo encontrado em uma coletânea

britânica organizada por Lennard Davis, The Disability Studies Reader. Na

coletânea, o artigo localiza-se numa subseção intitulada “Identities and

Intersectionalities”. Seu título é sugestivo: “This is what we think” (Docherty et

al., 2010). O artigo foi escrito em colaboração entre pesquisadores com

“learning disability”6 e pesquisadores universitários. A escrita do artigo se deu

no contexto da criação de um curso de Learning Disability Studies na

Universidade de Manchester, que baseia seu discurso institucional no

estabelecimento de parcerias entre os alunos e pessoas com “learning

disability”7.

O artigo explora a organização do movimento das pessoas com

“deficiência”, enfocando especialmente a atuação de pessoas com “learning

disability”. São abordados temas como a terminologia de nomeação das

“deficiências”, os enfrentamentos vividos em instituições, as atitudes negativas

socialmente difundidas, os modelos de compreensão da “deficiência” (modelo

médico e modelo social), e a atuação dos autores, especialmente no

oferecimento de oficinas de formação para diversos públicos.

De saída, os autores com “learning disability” marcam um ponto de

diferenciação em relação aos outros pesquisadores que também contribuíram

com o texto: “Some of us know what it is to be learning disabled; others are

university researchers who don’t know what it is like” (Docherty et al., 2010, p.

432). Em seu discurso, ser uma pessoa com “learning disability” significa deter

6 No Reino Unido, o termo “learning disability” é comparável ao termo mais internacionalizado

“intellectual disability”, usado no Brasil. 7 Para uma apresentação institucional do curso, ver manchester.ac.uk/undergraduate/Learning-

Disability-Studies.pdf (acesso em maio de 2012).

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um conhecimento específico, amplamente baseado em experiências nomeadas

por sentimentos exclusão:

We think it’s important that people get learning disabled people’s point of view instead of listening to the lies from people in day services and places like that. We wanted to do an article like this, putting stuff down in writing about what we feel like, about what it’s like to get bullied time and time again. [Docherty et al., 2010, p. 433]

Diversas vezes, os autores apontam o cuidado que tiveram, na escrita

do artigo, com os sentimentos das pessoas com “learning disability”. Eles

identificam sentimentos de dor associados ao confinamento em instituições

especializadas e a diagnósticos e prognósticos fatalistas.

We need to tell people what’s come out of the hurt and pain and nightmare but we don’t want to be reminded of it every day. […] No doctor can diagnose a person and get it right for their whole life. They get it wrong. They did it with two of us. Both of us got told that we would be a ‘cabbage’. How pathetic is that?! How wrong is that?! [Docherty et al., 2010, p. 433]

A partir desse momento inicial que mobiliza a dor, falando de um estado

de “feeling sick”, o artigo parte para uma revisão crítica de textos de outros

autores e para um levantamento de pautas políticas. Aqui também o recurso a

um discurso emotivo opera como baliza moral para a construção de

reivindicações. Mais que isso, fica evidente a forma como o posicionamento

como vítima de injustiças confere inteligibilidade às experiências de sofrimento.

Não se trata, conforme os autores apontam, de rememorar toda a dor vivida,

mas fazer remissão a determinados episódios sofridos no sentido de abrir um

espaço legítimo de reivindicação. Constrói-se, simultaneamente às

reivindicações, um sujeito específico, marcado por uma identidade e uma

experiência – social, e fortemente emocional – próprias.

A segunda publicação é o livro Mude seu falar que eu mudo o meu ouvir

(Associação Carpe Diem et al., 2012), escrito em parceria entre a Associação

Carpe Diem e seis jovens com “Síndrome de Down” e lançado neste ano na

celebração ao Dia da Síndrome de Down na ONU. A proposta do livro é

compor um manual sobre acessibilidade para pessoas com “deficiência

intelectual”. Em um contexto nacional no qual começam a ganhar espaço

formas de auto-representação por pessoas com “deficiência intelectual”,

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despontam demandas por acesso aos debates públicos por parte desses

representantes – acesso tanto em termos de possibilidade de entendimento

quanto em termos de direito a voz.

O livro é composto por trechos de texto corrido, escrito por profissionais

da Associação, e trechos de fala, nos quais são apresentadas as reflexões e

depoimentos dos autores com “Síndrome de Down” produzidas em contextos

de debate, contando também com uma mediadora da Associação.

Nesse caso, o ponto de partida não se centra exatamente na discussão

sobre as experiências de sofrimento e exclusão vividas pelas pessoas com

“deficiência intelectual”, como no artigo anterior, mas na discussão acerca da

acessibilidade. A primeira sessão do livro traz definições e exemplos acerca do

que seja a acessibilidade para pessoas com “deficiência”, e se fecha com o

caso da “deficiência intelectual”:

Mediadora: Vocês têm deficiência intelectual. O que é isso? Bia Paiva: São pessoas que entendem mais lentamente. Carol Maia: Eu falo direto sobre Síndrome de Down em casa. Eu sinto muito feliz de ter Síndrome de Down. Tem gente que não aceita quem tem Síndrome de Down. É preconceito! Mas a pessoa tem que saber que tem o lado bom da gente. O lado bom é que a pessoa é inteligente, especial, pode muito bem entender as figuras, as falas, as linguagens. Mediadora: Exatamente! Vocês podem entender tudo, mas precisam de que? Bia Paiva: Imagens e figuras. Thiago: Teatro. Carol Maia: Escrita. [Associação Carpe Diem et al., 2012, p.26-27]

Nesse trecho, apresenta-se uma compreensão do que seja a “deficiência

intelectual”. A fala de Carolina Maia desponta em meio ao texto em

comparação com o tom que marcara o artigo anteriormente explorado. A

primeira observação que ela faz a respeito de sua identidade como pessoa

com “deficiência intelectual” é o sentimento de felicidade. Embora esteja ciente

do preconceito, para ela ter “Síndrome de Down” significa motivo para orgulho

e engajamento. O sentimento de felicidade apresentado por Maia é

interessante aqui na medida em que aponta uma construção de si não tão

marcada pelo sofrimento como ponto de inflexão narrativa. Não se trata, ao

menos nesse trecho, da conversão “do luto à luta”, mas da assunção e

reconhecimento de uma identidade que posiciona o sujeito, no caso, de forma

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destacada – tendo-se em mente que os autores do livro, de modo geral,

relatam trajetórias de relativa inclusão e satisfação pessoal se comparadas

com outros relatos8.

As situações de preconceito e sofrimento, contudo, também estão

presentes no texto de Mude seu falar que eu mudo meu ouvir, como anuncia

Carolina Golebski:

Carol Golebski: Eu fui convidada para participar deste livro porque, o que a gente quer mostrar para as pessoas? Mostrar a deficiência intelectual! Neste livro a gente vai falar do nosso dia a dia, dos nossos conflitos. [...] Todos nós vai contar coisas neste livro, como o que a gente acha interessante, como a gente foi discriminado, falar sobre preconceito. Mas não só isso! A gente vai falar o que a gente sentiu na sociedade. [...] A gente vai dizer coisas que ninguém nunca ouviu, nunca viu, nunca leu. [Associação Carpe Diem et al., p.44]

O tom geral na publicação é no sentido da divulgação de informações.

Não há acusações a instituições especializadas – há que se considerar aqui o

contexto de sua produção – ou um discurso crítico em relação a práticas

biomédicas. Ao que parece, os sujeitos que se apresentam nesse livro não se

constroem tanto pela referência ao sofrimento, mas antes pela referência ao

sucesso e à satisfação.

Bia Paiva: Porque a gente está fazendo um livro de como as pessoas devem lidar com pessoas com deficiência intelectual. Para isso estamos montando um livro para todas as pessoas consigam abrir os olhos, os ouvidos, o coração e as mentes para entenderem melhor o mundo das pessoas que têm a deficiência. [Idem, p. 43]

As duas publicações, tanto o artigo “This is what we think”, quanto o livro

Mude seu falar que eu mudo meu ouvir, podem ser aproximadas, senão pela

economia de sentimentos e afetos presentes nos textos, pelo seu discurso

identitário. Em ambos os casos, estão oferecidas narrativas a partir das quais

se estruturam tanto o movimento das pessoas com “deficiência intelectual” e

“learning disability”, quanto as trajetórias pessoais de seus autores. No primeiro

caso, a narrativa de dor e sofrimento abre espaço para a legitimidade moral da

organização política – tanto do movimento mais amplo, quanto dos sujeitos que

escrevem o artigo. Ou seja, apresenta-se aí uma narrativa modelar a partir da

8 Ver, por exemplo, Rosana Glat (1989).

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qual é possível constituir-se como sujeito político e organizar pautas legítimas.

No segundo caso, o sentimento de felicidade e a afirmação de uma identidade,

localizados num contexto de relativo sucesso e satisfação pessoal, legitimam a

produção de um material informativo destinado a produzir referenciais para a

acessibilidade de pessoas com “deficiência intelectual”. Nesse segundo caso,

afirmar-se como pessoa com “deficiência intelectual”, entendendo-se a

categoria como sigo de pertencimento identitário, justifica a formulação de

propostas técnicas de acessibilidade. Aí também se observa uma narrativa

modelar, que explica tanto a trajetória dos autores do livro, quanto sua própria

produção.

“Normal, normal mesmo é só Deus”: duas narrativas de entrevistados

Em duas entrevistas que realizei com pessoas que têm trajetórias

marcadas pela noção “deficiência intelectual” – sem, no entanto, que a

reconheçam como legítima para caracterizar a si –, contudo, os sentimentos

associados a essa categoria não parecem poder ser explicados segundo esses

referenciais. As falas de Rodrigo e Paula9 coincidem exatamente na recusa da

noção de “deficiência”, ou mesmo de “pessoa especial” para pensar a si

mesmos. Ambos identificam essas noções a experiências de incapacidade e

restrição, dificilmente referidas a suas próprias trajetórias.

Rodrigo tem 30 anos e, à época da realização da entrevista, estava

desempregado, depois de uma trajetória de 12 anos como auxiliar de escritório

em uma empresa de assessoria de imprensa. De uma família de classe média,

moradora da região do Jardim da Saúde, na cidade de São Paulo, ele já

frequentara a Apae São Paulo e a Associação Carpe Diem, para citar apenas

algumas instituições.

Embora tivesse uma trajetória marcada pela circulação por instituições

especializadas, é interessante notar como, em sua apresentação e reflexão

sobre si, Rodrigo não lançou mão das exatas categorias que mediaram sua

circulação por tais espaços. Pelo contrário, em nossas conversas sobre

“deficiência”, termo que ele evitou – e me disse, literalmente, que o avalia como

9 Nomes fictícios.

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“muito pesado” –, os “deficientes” eram sempre os outros. Quando falamos

sobre acessibilidade, os exemplos que emergiram em suas reflexões foram de

“deficiências físicas”, “visuais” ou “auditivas”. Algumas vezes, estimulado por

minhas perguntas, a “Síndrome de Down” apareceu como mais um referencial

para pensar acessibilidade e a situação das “pessoas com deficiência” na

sociedade brasileira – ou, em termos genéricos, na sociedade. Contudo,

Rodrigo dificilmente incluiu a si mesmo nessas reflexões. Quando o assunto

era o acesso ou os preconceitos, o nível da discussão parecia se tornar

genérico e os exemplos a partir dos quais pensávamos se tornavam

impessoais. Em um ou outro caso, Rodrigo citou algum amigo, especialmente

recorrendo à marcação da dificuldade de fala, para tornar a discussão mais

palpável. Quando eu o perguntei sobre sua trajetória, contudo, ele foi evasivo e

evitou pensar-se como pessoa com “deficiência”. Ele sabia perfeitamente, no

entanto, que se enquadrava como “deficiente intelectual”: algumas vezes, ele

me confessou que nossas conversas o estavam ajudando a notar que o tema

não era necessariamente um “bicho de sete cabeças” a ser evitado.

Falando do diagnóstico de sua “deficiência”, Rodrigo fez questão de

marcar uma exterioridade da categoria biomédica frente a sua trajetória e a seu

vocabulário cotidiano. Repetidas vezes ele me diz “como é que é mesmo?

Hidro... Hidrocefalia”. No seu caso, o diagnóstico biomédico não somente não

lhe oferecia um terreno fértil para a construção narrativa de si, como sua

“hidrocefalia” era algo um pouco estranho, um tanto deslocado, difícil de

reconhecer em si mesmo.

Do ponto de vista das emoções, em diversos momentos de nossa

interlocução o que me pareceu é que Rodrigo buscou evitar que emoções

aflorassem na discussão sobre “deficiência”. Embora ele sinalizasse o pesar

com que encarava a noção, o “bicho de sete cabeças”, seu discurso a respeito

do tema poucas vezes mobilizou emoções que não, talvez, a empatia por

aqueles a quem ele identificou como “deficientes” em suas reflexões. Longe do

tema da “deficiência”, Rodrigo manifestou satisfação com sua própria narrativa

em muitos momentos.

A noção da “deficiência” como um tema “pesado” apareceu também na

entrevista de Paula. Paula é uma mulher com “deficiência intelectual” de 42

anos, moradora do bairro do Itaim Bibi, também em São Paulo, onde divide um

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grande apartamento com a mãe, que tem mais de 90 anos. Suas experiências

e percepções a respeito da “deficiência”, bem como o modo de construir

narrativamente a si mesma em contextos de entrevista a aproximam dos

relatos produzidos por Rodrigo.

Quando liguei para Paula para agendarmos uma entrevista formal, ela já

sabia que minha pesquisa focalizava trajetórias de pessoas com “deficiência

intelectual”, o que eu retomei na ligação. Pelo telefone, me disse que “esse é

um assunto que a gente precisa começar a mexer”. Eu interpretei, a princípio,

essa afirmação com ambiguidade: Paula estava falando que precisávamos

começar a mexer nesse assunto porque entendia que ele era pouco tematizado

em sua própria trajetória, ou estava me dizendo que era preciso que

tratássemos das histórias de vida de pessoas com “deficiência intelectual” em

função de sua relativa invisibilidade social, ou da falta de acesso a direitos?

Mais a frente na conversa, Paula me disse, a respeito de pessoas com

“deficiência intelectual”, ou, em suas palavras, pessoas que têm “problema”:

“são pessoas que, se você não trabalha, você olha e fala ‘ah, esse aí é um

besta’”. Durante entrevista formal, Paula contou de uma peça a que fora assistir

havia pouco tempo, em uma instituição especializada na qual estudara, que a

sensibilizou a ponto de fazê-la chorar. Segundo ela, o que a tocara na situação

seria a beleza em ver pessoas com tantas “dificuldades”, ou “problemas” – ela

me falou de amigos que atuavam na peça e que praticamente não articulavam

a fala, ou que tinham mobilidade reduzida –, fazendo uma apresentação tão

“perfeita”.

Em um dado momento da entrevista formal, perguntei a Paula o que ela

achava da expressão “deficiência”, que, até então, ela não utilizara nenhuma

vez. Sua resposta: “Nossa! Muito pesada! [risos]”. E seguiu:

A pessoa pode ser deficiente e tudo... Mas eu não sei... Não sei. É uma palavra muito forte pra dizer que uma pessoa é deficiente... Parece que a pessoa tá ali e não... Como é que eu posso dizer?... Ela tá ali e nunca vai fazer nada, sabe? “Ah, então a pessoa é deficiente? Ih, então não vai fazer nada”... Pelo menos é o que eu penso.

Ao que parece, em suas reflexões, a noção de “deficiência” estaria

irremediavelmente associada a uma exacerbada limitação intelectual, motora e

social, marca de um destino infeliz. O termo “pessoa especial” apareceu, em

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seu discurso, somente como uma alternativa mais polida, mais delicada, para

nomear uma mesma condição. A saída que Paula observou seria pela

expressão “ter um problema”, que configuraria um modo de nomear

experiências mais universalizadas, já que, segundo ela, “Normal, normal

mesmo é só Deus” – mesmo assim, ela evita falar sobre seus próprios

“problemas”.

As duas narrativas aqui apresentadas, de Rodrigo e Paula, convergem

em muitos sentidos. Em ambos os casos, há uma recusa à noção de

“deficiência”, e mesmo uma resistência à noção de “pessoas especiais”,

notadamente para pensarem suas próprias trajetórias. Nesse sentido, é

significativo que ambos apresentem sinais distintivos que os colocam em

posições privilegiadas entre outras pessoas com “deficiência intelectual”:

ambos dominam a leitura e a escrita, e falam com desenvoltura. Além disso,

Rodrigo tem uma trajetória profissional de longa data, enquanto de Paula

desloca-se com autonomia pela cidade. Sem dúvida, essas habilidades

pessoais informam e abrem espaços de reconhecimento para construções de

si menos marcadas por noções de “deficiência” ou “pessoa especial”. Por outro

lado, fica evidente no discurso dos entrevistados que essa recusa não se dá

senão “à custa” da acusação de outros como “deficientes” – tendo-se em vista

que ambos enxergam a categoria com forte conotação negativa.

Assim, ser identificado como “deficiente”, para esses sujeitos, expressa

uma ambiguidade não nomeada. Do mesmo modo, os afetos que a categoria

mobiliza são difíceis de localizar. Não se trata de recusar os diagnósticos

biomédicos que lhes foram atribuídos, ou mesmo o estatuto social de “pessoa

especial”. O que suas falas sinalizam é uma dificuldade de encontrar um lugar

para a noção de “deficiência” em suas próprias trajetórias de vida – nem tanto

marcadas por experiências de exclusão social, mas amplamente pontuadas por

um esforço por se diferenciar da noção de incapacidade:

Rodrigo: Se você perguntar pra mim “Você se acha especial?”, eu respondo: “Em algumas coisas sim”. Daí: “Pra quê?” “Eu não posso dirigir, não posso andar sozinho na rua...”. Mas isso se me perguntar, porque se não perguntar eu deixo quieto. Agora, se vier com pergunta meio besta... Pesquisador: Tipo o quê? Rodrigo: Tipo, “Você se importa de ser pessoa especial?” “Eu não!”, “E como é pra você?” “Ué, normal”. Eu tenho meus

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amigos, faço tudo. Eu trabalho, eu pinto. Se bem que agora não tô na ativa... E falam que pessoa especial não pode trabalhar...

Na voz de Paula, a emoção aflora com a beleza do espetáculo realizado

por pessoas com “comprometimentos” intelectuais e motores muito visíveis, e

surge em seu relato um sentimento de indignação com pessoas que supõem

que “Ah, então a pessoa é deficiente? Ih, então não vai fazer nada”. Esses

sentimentos parecem contribuir na construção de um discurso sobre si

somente por oposição. Nesse caso, não se trata da assunção de uma

identidade, mas da recusa de uma marcação “muito pesada”.

Os casos apresentados pelas falas de Rodrigo e Paula remetem à

ambiguidade da construção de identidades sociais em tensa negociação com

diagnósticos biomédicos. Em seus casos, contudo, a possibilidade de se

construir como vítima do sofrimento ocasionado pela exclusão ou pelas dores

da condição de “deficiente” não aparece em seus horizontes. Por outro lado,

afirmar-se como sujeitos felizes e bem-sucedidos também não os remete a

uma construção exemplar de si, como articuladores de mobilização política.

Considerações Finais

Este paper teve por objetivo explorar algumas observações preliminares

de campo à luz das discussões sobre emoções. Mais que fechar conclusões ou

mesmo apontar respostas a questões, pretendeu-se, antes, identificar

problemas de pesquisa a serem investigados. Tratou-se, portanto, de um

esforço de mapeamento das tensões presentes no campo tendo em vista as

perspectivas construídas no debate acerca das emoções e dos afetos. Essas

tensões, que se apresentam como retóricas ambivalentes (Moutinho et al.,

2010), configuram-se agora como pistas que devem ser investigadas nas

próximas etapas desta pesquisa. Estiveram em foco aqui duas narrativas

específicas, de sujeitos com trajetórias relativamente comuns para sua geração

– nascidos entre as décadas de 1970 e 1980, estudaram somente em escolas

especiais, longe dos projetos de inclusão hoje crescentemente visibilizados.

Nesse cenário, suas habilidades e anseios pessoais os localizam

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peculiarmente no campo. Frente à ampliação e difusão dos discursos de

inclusão e direitos humanos – visibilizados pelas duas publicações

apresentadas –, suas vozes trazem ambiguidades para as lutas por

reconhecimento, levantando dilemas, especialmente geracionais, na

construção biográfica de sujeitos marcados como pessoas com “deficiência

intelectual”.

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