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7/25/2019 Entre Infiis e Chirus - A Representao Do Indgina Nas Obras de Jos Hernndez e Joo Simes Lopes Neto
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RAFAEL EISINGER GUIMARES
ENTRE INFIIS E CHIRUS:
A REPRESENTAO DO INDGENA NAS OBRAS DE
JOS HERNNDEZ E JOO SIMES LOPES NETO
PORTO ALEGRE2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRASESTUDOS DE LITERATURA
ESPECIALIDADE: LITERATURA COMPARADA
ENTRE INFIIS E CHIRUS:
A REPRESENTAO DO INDGENA NAS OBRAS DE
JOS HERNNDEZ E JOO SIMES LOPES NETO
RAFAEL EISINGER GUIMARES
ORIENTADORA: PROFa. DRa. MRCIA HOPPE NAVARRO
Dissertao de Mestrado em LiteraturaComparada, apresentada como requisito parcialpara a obteno do ttulo de Mestre peloPrograma de Ps-Graduao em Letras daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE2008
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Para Cludia, por fazer com quea construo da minha identidade
no dependa apenas de mim.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo minha famlia, pelo apoio e pelo incentivo.
Agradeo aos meus amigos, por fazerem parte desta caminhada desde os primeiros passos.
Agradeo, de forma especial, a Mrcia Hoppe Navarro, por ter acolhido meu projeto e ter
feito de sua orientao uma experincia nica.
Por fim, agradeo ao CNPq, cujo apoio financeiro foi imprescindvel para a concluso deste
trabalho.
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RESUMO
A literatura gauchesca configura um dos elementos-chave para o processo demitificao do gacho histrico e a conseqente transformao desse mito na base para a
construo do pertencimento identitrio de uma significativa parcela dos sujeitos argentino e
sul-rio-grandense. Tendo em vista esse aspecto e a inegvel relevncia que o ndio assumiu na
formao tnica e cultural da identidade gacha, tanto no lado brasileiro como no lado
argentino, investiga-se o papel que essa etnia assume nas obras literrias gauchescas.
Este trabalho descreve e analisa a forma como a imagem do indgena elaborada nos
poemas El gaucho Martn Fierro e La vuelta de Martn Fierro, de Jos Hernndez, e nos
contos Os cabelos da china e Melancia coco verde, de Joo Simes Lopes Neto,
contrapondo a representao dos autctones argentino e sul-rio-grandense respectivamente s
imagens do gauchoe do gacho. Uma vez que a anlise est focada no contraponto que se
estabelece entre identidade e alteridade, o referencial terico escolhido compreende tanto as
concepes da imagologia, corrente terica dedicada ao estudo da imagem literria do
estrangeiro, quanto as contribuies de pensadores dedicados compreenso do processo de
construo da identidade.
Para alcanar os objetivos estabelecidos, a metodologia adotada segue as propostas do
terico francs Daniel-Henri Pageaux, e inicialmente analisa a representao do autctone nos
nveis lexical e discursivo para, posteriormente, verificar o grau de conformidade da imagem
literria s ideologias e ao imaginrio dominantes no contexto de produo da obra.
A partir da abordagem do corpus, observa-se de imediato uma explcita distino entre
as representaes do autctone que Martn Fierro e Blau Nunes narradores dos referidos
textos de Jos Hernndez e Simes Lopes Neto, fazem, uma diferena que, como se verifica,
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est diretamente relacionada aos projetos de construo de uma identidade nacional
sustentados por esses dois escritores.
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RESUMEN
La literatura gauchesca configura uno de los elementos clave para el proceso demitificacin del gaucho histrico y la consecuente transformacin de ese mito en la base para
la construccin de la identidad de una significativa parcela de los sujetos argentino y sul-rio-
grandense. Considerando ese aspecto y la innegable relevancia que el indio asumi en la
formacin tnica y cultural de la identidad gaucha, tanto en el lado brasileo como en el lado
argentino, investigase el rol que esa etnia asume en las obras literarias gauchescas.
Este trabajo describe y analiza la manera como el imagen del indgena es elaborada en
los poemasEl gaucho Martn FierroyLa vuelta de Martn Fierro, de Jos Hernndez, y en
los cuentos Os cabelos da china y Melancia coco verde, de Joo Simes Lopes Neto,
contraponiendo la representacin de los autctonos argentino y sul-rio-grandense
respectivamente a los imgenes del gaucho y del gacho. Una vez que el anlisis enfoca la
oposicin entre identidad y alteridad, el referencial terico escogido contiene tanto las
concepciones de la imagologia, corriente terica dedicada al estudio de la imagen literaria del
extranjero, cuanto las contribuciones de pensadores dedicados a la comprensin del proceso
de construccin de la identidad.
Para alcanzar los objetivos establecidos, la metodologa adoptada siegue las
propuestas del terico francs Daniel-Henri Pageaux, y inicialmente analiza la representacin
del autctono en los niveles lxico y discursivo para, posteriormente, verificar el grado de
conformidad del imagen literario a las ideologas y al imaginario dominantes en el contexto
de produccin de la obra.
A partir del abordaje de las obras, observase de inmediato una explcita diferencia
entre las representaciones del indgena hechas por Martn Fierro y Blau Nunes narradores de
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los referidos textos de Jos Hernndez y Simes Lopes Neto , una diferencia que, como se
puede verificar, est directamente relacionada a los proyectos de construccin de una
identidad nacional, sustentados por esos dos escritores.
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SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................................111 AS VISES SOBRE O "OUTRO" E SOBRE NS MESMOS .....................................17
1.1 OLHARES TERICOS SOBRE A CONSTRUO DA ALTERIDADE..................17
1.1.1 Pageaux e a imagem do "outro" como representao essencializada ..............18
1.1.2 Dyserinck e a ficcionalizao da fronteira entre o eu e o outro ................23
1.2 OLHARES TERICOS SOBRE A CONSTRUO DA IDENTIDADE...................26
1.2.1 O tnico e o nacional na formao das identidades coletivas ............................31
2 A IMAGEM DO NDIO EMELGAUCHOMARTNFIERROELAVUELTADE
MARTNFIERRO ..................................................................................................................382.1 MARTN FIERRO E A CONSTRUO DO NDIOCOMO SELVAGEM E INFIEL ..........................................................................................39
2.1.1 O ndio e seus traos de civilidade........................................................................39
2.1.2 O ndio e seus traos de religiosidade ..................................................................58
2.2 A HETEROIMAGEM DO INDGENA PLATINO E SEU CONTEXTO DEPRODUO: O PROBLEMA DO NDIO NA ARGENTINA DO SCULO XIX.......73
3 A IMAGEM DO NDIO EM CONTOSGAUCHESCOS .................................................86
3.1 BLAU NUNES E A CONSTRUO DO NDIO COMO CHIRU..............................903.1.1 O ndio e suas habilidades.....................................................................................91
3.1.2 O ndio e sua aparncia fsica .............................................................................103
3.1.3 O ndio e seus valores ..........................................................................................106
3.2 A HETEROIMAGEM DO INDGENA SUL-RIO-GRANDENSEE SEU CONTEXTO DE PRODUO: O REGIONALISMO NACIONALISTADE SIMES LOPES NETO ..............................................................................................116
CONCLUSO.......................................................................................................................124
REFERNCIAS ...................................................................................................................130
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Mestios do sangue do homem branco menosprezaram-no;mestios do sangue do homem vermelho foram seus inimigos.
(...)Viveram seu destino como em um sonho,
sem saber quem eram ou que eram.O mesmo acontece, talvez, conosco.
(Osgachos, Jorge Luis Borges)
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INTRODUO
A relao entre as literaturas gauchescas platina e sul-rio-grandense, assim como aprpria questo da identidade do gacho, tm sido alvo de debates de longa data. Do lado de
c da linha que separa castelhanos e brasileiros, a figura do gacho, sua mitificao e
elevao categoria de denominador comum da identidade dos habitantes do Rio Grande do
Sul e o carter fronteirio que, por extenso, tal identidade acabou por assumir em sua relao
com um pertencimento nacional mais amplo so questes que h tempos sustentam acaloradas
e inconclusivas discusses. No centro desses debates esto posies antagnicas que, por um
lado, destacam as ntidas semelhanas culturais verificadas entre gauchosplatinos (argentinose uruguaios) e gachos sul-rio-grandenses e, por outro, ressaltam o pertencimento destes
ltimos a uma identidade brasileira, heterognea, porm unificada. Paralelamente aos embates
apaixonados que gera como no poderia deixar de ser, em se tratando de uma discusso
em torno da identidade , a questo tem sido recentemente abordada sob um enfoque distinto,
mas igualmente relevante, que se detm no nos limites exteriores (platino e brasileiro), mas
nos elementos tnicos e culturais, que internamente constituem a identidade do gacho.
Muito embora crticos como Jos Hildebrando Dacanal afirmem categoricamente que
a participao do elemento indgena na constituio gentica e sociocultural do Rio Grande
do Sul foi desprezvel,1parece inegvel que o autctone desempenhou papel relevante na
formao tnica e cultural da identidade gacha, tanto no lado brasileiro como no lado
argentino. Nesse sentido, corroborando a importncia que o indgena assume na elaborao da
identidade dos habitantes do Rio Grande do Sul, Eliana Inge Pritsch assinala o fato de as
Misses jesuticas, espao historicamente relacionado aos autctones do Estado, terem se
1 DACANAL, Jos Hildebrando. A miscigenao que no houve. In: DACANAL, Jos Hildebrando;GONZAGA, Sergius (orgs.). RS: cultura e ideologia. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1980, p. 32.
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convertido, no imaginrio sul-rio-grandense, na representao do lugar de origem do gacho
autntico.2Porm, no obstante tal importncia, o que se verifica uma escassa presena da
figura indgena na literatura gauchesca, em especial no Rio Grande do Sul. Um silenciamento
que acabou apontando para a necessidade de se debruar sobre o tema.
Tendo em vista que a literatura constitui um dos elementos-chave para o processo de
mitificao do gacho histrico e a conseqente transformao desse mito na base para a
construo do pertencimento identitrio de uma significativa parcela dos sujeitos argentino e
sul-rio-grandense, parece pertinente questionar como se apresenta e que papel assume a figura
do ndio nas obras literrias que tratam da temtica gacha. Dentre todos os textos que
compem as literaturas gauchescas platina e brasileira, inegvel a relevncia que assumem
as produes do argentino Jos Hernndez e do sul-rio-grandense Joo Simes Lopes Neto,
seja pelo amplo nmero de leitores que atingiram, seja pela importncia que assumiram em
seus respectivos sistemas literrios, seja pela volumosa fortuna crtica que tem se acumulado
ao longo das dcadas. Publicados respectivamente em 1872 e 1879, os poemas El gaucho
Martn Fierro e La vuelta de Martn Fierro, de Hernndez, tambm foram veiculados, na
ntegra ou em trechos, em diversos jornais da Argentina e do Uruguai, tornando-se obras
fundamentais no apenas para a literatura desses dois pases, como para a produo do lado
brasileiro da fronteira. Superando limites polticos, lingsticos e at temporais, os versos de
Hernndez, na concepo de La Masina, podem ser considerados um dos fundadores da
gauchesca sul-rio-grandense, servindo de matriz, em maior ou menor grau, para a obra de
autores como Alcides Maya, Amaro Juvenal, Aureliano Figueiredo Pinto, Apparcio Silva
Rillo, Cyro Martins, Ivan Pedro Machado, alm de Simes Lopes Neto.3
Se a relevncia do poema de Hernndez em terras platinas tal que faz com que seja
objeto de anlise de escritores como Ezequiel Martnez Estrada, Jorge Luis Borges, Miguel deUnamuno y Jugo e Tulio Halpern Donghi, entre tantos outros, por sua vez, a obra de Joo
Simes Lopes Neto, em especial seu Contos Gauchescos, assume igual importncia para a
constituio do sistema literrio e da prpria identidade do gacho brasileiro. Pea-chave para
a literatura regionalista, a narrativa do escritor pelotense atinge, na anlise dos mais diferentes
crticos, uma dimenso que extrapola o carter local em direo a uma universalidade que faz
2
PRITSCH, Eliana Inge. As vidas de Sep.2 v. Porto Alegre : UFRGS, 2004 [tese Doutorado], p. 10.3MASINA, La Slvia dos Santos. A gauchesca brasileira: reviso crtica do regionalismo. In: MARTINS, MariaHelena (org.). Fronteiras culturais: Brasil Uruguai Argentina. So Paulo : Ateli Editorial, 2002, p. 103-104.
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com que sua produo, por exemplo, seja aproximada obra de Joo Guimares Rosa, um dos
mais inovadores e importantes escritores da literatura brasileira. Dentre os autores que
compem a fortuna crtica de Simes, corroborando a relevncia da sua obra, pode-se destacar
os nomes de Flvio Loureiro Chaves, Guilhermino Csar, Jos Clemente Pozenato, Ligia
Chiappini e Regina Zilberman.
Levando em conta a imagem literria do ndio apresentada nas obras que constituem o
corpusdeste trabalho e o jogo que esta estabelece com a construo da identidade dos sujeitos
argentino e sul-rio-grandense, observa-se de imediato uma explcita distino entre as
representaes que Martn Fierro e Blau Nunes narradores dos referidos textos de Jos
Hernndez e Simes Lopes Neto, respectivamente fazem do autctone. Sendo to clara a
diferena entre o ndio selvagem e infiel da obra de Hernndez e o chiru companheiro do
texto de Simes, a seguinte questo coloca-se para a pesquisa aqui proposta: o que est por
trs de tal contraste? Conforme se buscar demonstrar, a diferena verificada entre tais
representaes est diretamente relacionada aos projetos de construo de uma identidade
nacional sustentados por esses dois escritores.
Com o propsito de descrever e analisar a forma como os versos de Fierro e a
narrativa de Blau constroem a imagem do indgena, em especial no que diz respeito relaoque esta estabelece com as identidades do gauchoplatino e do gacho sul-rio-grandense, as
pginas que seguem buscaro inicialmente delimitar os conceitos de identidade e alteridade a
serem manuseados na abordagem do corpus. Posteriormente, ser observado o processo de
representao do autctone nas obras dos dois autores, buscando assinalar as semelhanas e
diferenas que se estabelecem entre as imagens do ndio e do gaucho/gacho. Paralelamente,
tambm se pretende aproximar os textos de Hernndez e Simes Lopes Neto, com o intuito de
verificar convergncias e divergncias nas relaes entre as representaes do ndio e domestio campesino, buscando, com isso, comprovar a adequao de tais imagens aos projetos
de nao que perpassam a produo literria desses autores.
Em termos metodolgicos, a pesquisa a ser desenvolvida se valer das proposies do
terico francs Daniel-Henri Pageaux voltadas especificamente para os estudos da
imagologia, ou seja, os estudos da imagem do outro.4Segundo a concepo de Pageaux, as
investigaes imagolgicas apresentam trs nveis, cada qual atendo-se a um dos trs
4 PAGEAUX, Daniel-Henri. Da imagtica cultural ao imaginrio. In: BRUNEL, Pierre; CHEVREL, Yves.Compndio de literatura comparada. Lisboa : Fundao Calouste Gulbenkian, 2004, p. 133-166.
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elementos constituintes da imagem do outro: a palavra, as seqncias discursivas e o
cenrio. Porm, diferentemente do que prope o terico francs, o trabalho aqui desenvolvido
no ir observar os nveis lexical e discursivo de forma independente. Assim, em um primeiro
momento, o foco estar direcionado tanto s palavras quanto s seqncias textuais que
descrevem e qualificam o ndio, em contraste com os elementos lexicais e discursivos que
elaboram a imagem do gaucho/gacho. Em um segundo nvel de anlise, ser realizado o
cruzamento dos dados obtidos na anlise lxico-discursiva com informaes de ordem
histrico-cultural, a fim de verificar o grau de conformidade da imagem literria s ideologias
e ao imaginrio dominantes no contexto de produo da obra.
Sendo notrias tanto a forma pela qual Martn Fierro identifica o ndio como o outro
quanto a aproximao identitria que Blau Nunes estabelece em relao ao indgena por ele
apresentado, alm da contribuio terica e metodolgica da imagologia, a partir das idias do
j referido Daniel-Henri Pageaux e do terico belga Hugo Dyserinck, este trabalho tambm
lanar mo das concepes de alguns pensadores dedicados compreenso do processo de
construo da identidade, dentre os quais se destacam Kathryn Woodward, Stuart Hall e
Federico Navarrete. Uma vez que ntida a concepo de identidade nacional que subjaz s
obras de Hernndez e Simes, tambm as idias de Benedict Anderson acerca das
comunidades imaginadas, em especial o papel da religiosidade no estabelecimento das
comunidades arcaicas, so imprescindveis para que se compreenda a forma como os dois
personagens demarcam seus pertencimentos, diferenciando ndios e gauchos/gachos, ora de
maneira sutil, ora de maneira explcita. Por sua vez, os estudos de Pageaux e Dyserinck sobre
a construo da imagem do outro, apesar de seu interesse especfico na representao do
indivduo ou da cultura de outro pas nas obras de uma dada literatura, contribuem de forma
significativa para o entendimento de como o gaucho/gacho constri a imagem do ndio, em
especial no caso do texto de Jos Hernndez, cujo protagonista pode facilmente ser visto
como algum que narra o que presenciou em uma terra estrangeira: o desiertoindgena.
Tendo em vista os procedimentos necessrios para elaborar adequadamente a pesquisa
proposta, o Captulo 1 deste trabalho desenvolver uma abordagem do referencial terico que
sustentar a anlise, aprofundando e delimitando conceitos-chave acerca da construo e
representao tanto da alteridade quanto da identidade. No segundo captulo, o olhar ser
direcionado aos dois poemas escritos por Jos Hernndez, El gaucho Martn Fierro e Lavuelta de Martn Fierro, buscando, em um primeiro momento, identificar e analisar os
elementos que constroem a figura do indgena como infiel e selvagem, em contraposio
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a uma imagem do gauchocristo e, em certa medida, civilizado. Posteriormente, luz
dos dados histricos que permitiro reconstruir o contexto poltico e cultural em que foram
produzidos os versos do poeta argentino, ser observado o grau de adequao da
representao do ndio em relao ideologia e ao imaginrio dominantes poca.
Por sua vez, no Captulo 3, dedicado anlise dos contos Os cabelos da china e
Melancia coco verde, de Joo Simes Lopes Neto, igualmente ser descrita e analisada a
forma como se elabora a imagem dos indgenas apresentados no texto literrio, em
contraposio representao dos mestios gachos. No entanto, diferentemente da
abordagem dos poemas de Hernndez, a anlise das narrativas do escritor sul-rio-grandense
ter como base trs elementos a habilidade, a aparncia fsica e os valores , os quais, como
se busca demonstrar ao longo do trabalho, so pontos-chave para que se estabelea uma
aproximao identitria entre o outro autctone e o eu gacho. Igualmente, realizada a
anlise do processo de elaborao da imagem do indgena nos dois contos de Simes Lopes
Neto, o presente trabalho buscar verificar a sintonia de tal imagem com o contexto histrico
em que a obra foi produzida.
Cabe aqui assinalar que paralelamente abordagem das obras de Jos Hernndez e
Joo Simes Lopes Neto, a ser desenvolvida nos captulos 2 e 3 deste trabalho, a anlise nose furtar de recorrer s idias e interpretaes dos estudiosos que compem a fortuna crtica
dos dois autores em questo, dedicando especial ateno s referncias feitas construo da
imagem do ndio em um ou em outro autor. No entanto, dada a dimenso da recepo das
obras que compem o corpus, tanto na Argentina quanto no Rio Grande do Sul, importante
alertar para a impossibilidade de abarcar a totalidade da produo crtico-interpretativa acerca
de tais textos, de forma que a leitura proposta ser conduzida nos limites de alguns nomes,
dentre os quais se destacam os de Antonio Hohlfeldt, Antonio Pags Larraya, Carlos Astrada,Carlos Reverbel, Ezequiel Martnez Estrada, Flvio Loureiro Chaves, Guilhermino Cesar,
Jorge Luis Borges, Jos Clemente Pozenato, Jos Mara Salaverra, Julio Mafud, La Masina,
Ligia Chiappini, Miguel de Unamuno y Jugo, Raymundo Faoro, Regina Zilberman, Rodolfo
Borello e Tulio Halpern Donghi.
Por fim, na concluso, sero retomadas as constataes obtidas nas anlises do corpus,
para contrapor as imagens do autctone e do campesino apresentadas nas obras dos dois
autores, buscando identificar e avaliar as semelhanas e diferenas verificadas entre essas
representaes. Somado a esse cotejo, luz do referencial terico delimitado no Captulo 1,
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sero apresentadas as concluses a que chegou a anlise aqui desenvolvida, em especial no
que diz respeito s representaes literrias dos indgenas argentino e brasileiro e suas
relaes com os projetos de construo de identidades nacionais que permeiam as obras de
Jos Hernndez e Joo Simes Lopes Neto.
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1 AS VISES SOBRE O OUTRO E SOBRE NS MESMOS
1.1 OLHARES TERICOS SOBRE A CONSTRUO DA ALTERIDADE
Em certa medida, a literatura comparada, desde seus primrdios at os dias de hoje,
sempre esteve vinculada existncia de um outro, seja este um escritor ou uma obra
estrangeira, seja um sistema literrio de um pas distinto. Parafraseando Yves Chevrel, Nora
Moll, por exemplo, afirma que el encuentro con el otro, con los textos literarios extranjeros
y con las culturas distintas de la nuestra y distintas entre s, es el punto de partida y el inters
esencial de la literatura comparada.5Apesar de todas as ressalvas feitas ao longo de dcadasem relao a tal interesse, que por muito tempo assumiu a forma de uma relao de dbito e
crdito literrio entre pases, o questionamento sobre a presena e a construo simblica
desse outro ainda possui grande pertinncia, encontrando espao entre os diferentes
procedimentos metodolgicos que compem o campo dos estudos comparados em literatura.
Nesse sentido, a imagem do estrangeiro e a forma como o eu elabora e relaciona-se com o
outro tm sido recentemente foco de um renovado interesse por parte dos pesquisadores,
originando duas linhas terico-metodolgicas distintas nos estudos em Literatura Comparada.Uma delas centra-se no que hoje se entende por estudos interculturais; a outra, de maior
interesse para este trabalho, refere-se corrente identificada pelo nome de imagologia.
A imagologia, ou seja, o estudo da imagem do outro, tem como objeto tanto os
textos antigos, nos quais busca analisar a relao que tal constructo estabelece com o contexto
ideolgico e cultural de produo, quanto os textos contemporneos, buscando identificar
nestes as divergncias e convergncias em relao s imagens construdas por outras formas
5 MOLL, Nora. Imgenes del otro: la literatura y los estudios interculturales. In: GNISCI, Armando (org.).Introduccin a la literatura comparada. Barcelona : Editorial Crtica, 2002, p. 347.
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culturais, como o cinema, por exemplo. Assim, os estudos imagolgicos buscam, em ltima
instncia, revelar e compreender o papel desempenhado pelas determinantes ideolgicas e
culturais do autor na viso que este tem do outro, bem como identificar, a partir desse
olhar sobre o sujeito e a cultura estrangeiros, a concepo que tem de si e de sua prpria
cultura. Dito de outra forma, tanto ou mais do que a representao do outro, a imagologia
desvenda a auto-representao de quem v este outro.
Tendo em suas primeiras investigaes, ainda na dcada de 1890, uma orientao
fortemente positivista, centrada na anlise dos caracteres nacionais forjados pela influncia da
raa, do meio e do momento, a imagologia figurou no centro da crtica que Ren
Wellek dirigiu chamada escola francesa em seu famoso pronunciamento no Congresso
Internacional de Literatura Comparada, realizado em Chapel Hill, em 1958.6Marco para os
estudos comparados de uma maneira geral, a fala de Wellek teve, dentre outros mritos, o de
denunciar o foco excessivo dos estudos imagolgicos em uma psicologia dos povos,
problema cuja superao tornou-se o horizonte dos pesquisadores da rea a partir da dcada
de 1960. Dentre os autores que buscaram essa reviso, destacam-se dois, em torno dos quais
se desenvolveram as principais correntes da imagologia atual: o francs Daniel-Henri Pageaux
e o belga Hugo Dyserinck.
1.1.1 Pageaux e a imagem do outro como representao essencializada
Com uma explcita inteno de revalorizar a imagologia, a obra de Daniel-Henri
Pageaux, dentre outras questes, estabelece objetivos, define conceitos e desenha uma
metodologia para os estudos sobre o outro. Em sua proposta terica, o autor procura deixar
bastante claro o carter interdisciplinar das pesquisas da rea, em especial a proximidadedestas com as investigaes desenvolvidas por etnlogos, antroplogos e socilogos, tendo
em vista sua concepo de imagem literria como um elemento inserido em um contexto mais
abrangente: o imaginrio social. Nas palavras de Pageaux, a imagem literria encarada
como um conjunto de idias sobre o estrangeiro inseridas num processo de literarizao, mas
tambm de sociabilizao.7
6WELLEK, Ren. A crise da literatura comparada. In: COUTINHO, Eduardo; CARVALHAL, Tania Franco.Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro : Rocco, 1994, p. 108-119.7PAGEAUX, op. cit., p. 135.
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Mais do que simplesmente observar a forma como a representao do estrangeiro
construda na narrativa, a imagologia literria importa-se com as condies de produo e
difuso desse constructo simblico. Assim, o estudo imagolgico, no seu intuito de desvendar
a construo do outro, acaba por revelar como operam as foras ideolgicas e culturais do
eu, em especial no que diz respeito a questes como racismo e exotismo. Uma vez que a
construo da prpria identidade jamais prescinde da existncia de uma alteridade ao
mesmo tempo seu oposto e complemento , o terico ressalta o fato de que a elaborao de
uma imagem nasce da tomada de conscincia de si prprio em relao a um outro, e que o
imaginrio nada mais do que a percepo, em nvel coletivo, da relao de interdependncia
entre alteridade e identidade.8
Como procura deixar claro Daniel-Henri Pageaux, a imagem do estrangeiro no pode
ser vista como a materializao de um comportamento mdio desse indivduo, idia muito
prxima da to criticada viso etnopsicolgica que dominou os primrdios desses estudos.
Longe de tal concepo, o terico francs ressalta que o objetivo maior da imagologia
levantar e analisar as diferentes imagens do outro que coexistem em uma mesma literatura ou,
de uma maneira mais abrangente, em uma mesma cultura.9
To importante quanto essa renovada viso acerca do conceito de imagem aconcepo desta no como algo plstico, um cone que mais ou menos semelhante quilo
que representa, mas sim como algo referencial, algo que se liga quilo que representa por uma
referncia a uma idia ou a um sistema de valores. Na esteira de tal distino, Pageaux aponta
para um distanciamento de toda e qualquer ligao que a palavra imagem possa ter com a
constelao de metforas ticas (viso, olhar, leitura, etc.). Segundo o terico, imagem no
percepo de uma realidade, mas sim representao, construo simblica e cultural, em
uma palavra, linguagem.10
Sendo a imagem uma representao, qualquer preocupao com o teor de verdade
ou de falsidade de uma determinada construo literria do estrangeiro distancia-se por
completo do foco dos estudos imagolgicos, uma vez que, apropriando-se das palavras de
Pageaux, possvel questionar a partir de que dado objetivo pode julgar-se a fidelidade da
imagem relativamente ao que designamos por real?11Assim, a imagologia deve ocupar-se
8Ibid., p. 136.9Ibid., p. 136.10Ibid., p. 137.11Ibid., p. 137.
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menos do pretenso grau de fidelidade da representao do outro em relao cultura
observada e mais da anlise do grau de conformidade dessa construo simblica com o
modelo ideolgico da cultura observadora.
No que diz respeito delimitao de seu objeto de estudo, a imagologia pode optar
entre dois recortes em termos histricos, cada qual capaz de responder a um questionamento
especfico. Em uma abordagem sincrnica dos textos, a anlise da imagem trataria de revelar
as opinies compartilhadas por uma coletividade em uma dada poca, ao passo que,
observadas diacronicamente, as obras ajudariam a elencar as imagens que se mantiveram e as
que se modificaram ao longo de determinado perodo, bem como identificariam as foras
ideolgicas e culturais que motivaram tais mudanas ou manutenes.12
Por sua vez, a concepo de imagem como uma linguagem sobre o outro leva a
aproximar a imagologia da semiologia. Traando um paralelo com a proposio de Emile
Benveniste a respeito da lngua, Pageaux afirma que tambm a imagem enuncia algo, tambm
ela composta de unidades distintas (signos), as quais so compartilhas por um grupo
determinado e atualizam seus significados em seu uso, ou seja, no ato de comunicao entre
os indivduos desse grupo. Nesse sentido, parece natural uma aproximao entre essas duas
reas do conhecimento, no apenas por ser a semiologia o campo de estudo da representao,mas tambm pelo fato de a imagem ser, acima de tudo, um ato de comunicao. No entanto,
como o terico francs ressalta, essa funo signo inerente imagem do outro no
pressupe, de forma alguma, um carter polissmico, sendo tal construo, ao contrrio,
extremamente codificada, para ser assimilada de forma mais ou menos imediata por seu
receptor.13
Tendo em vista o entendimento da elaborao e difuso de imagens como um ato de
comunicao na maioria das vezes programado, Pageaux destaca um conceito, ou melhor,
uma forma muito particular de imagem, que adquire uma relevncia toda especial no estudo
da representao do outro: o esteretipo. Vista de imediato como um perigo ao estudo e
compreenso dos povos, em funo de seu reducionismo esquemtico e seu grau de falsidade,
essa construo, no entanto, desempenha um papel fundamental na imagologia. Mantido o
paralelismo entre a corrente imagolgica e as teorizaes sobre comunicao, observa-se que
o esteretipo se constitui em uma mensagem unvoca, que remete a apenas uma interpretao
12Ibid., p. 143.13Ibid., p. 138-139.
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possvel. Em outras palavras, enquanto a comunicao convencional um processo de
simbolizao e produo plural de sentido, a comunicao por esteretipos se d por meio da
atribuio de um sentido nico.14
Tal reducionismo e simplificao justifica-se pela funo que o esteretipo
imagolgico desempenha na e para determinada cultura. Sendo representao sintetizada
das caractersticas do estrangeiro, essa imagem simplificada passvel de ser transmitida a um
nmero mximo de receptores, muitas vezes tendo o mesmo significado para sujeitos em
contextos histricos distintos. Assim, conforme lembra o terico francs, se, por um lado, o
esteretipo jamais polissmico, por outro, ele sempre ser policontextual.15
Alm desses aspectos, Daniel-Henri Pageaux tambm alerta para o fato de que a
elaborao e o potencial comunicativo do esteretipo esto diretamente ligados a uma
confuso entre duas ordens distintas e complementares de elementos: a natureza e a cultura.16
Assim, a construo estereotipada do outro est calcada na transformao de um atributo
acessrio em essncia de um povo, em um processo que, inevitavelmente, estabelece uma
hierarquizao entre quem observa e quem observado. A partir dessa lgica, a caracterstica
do estrangeiro, na maioria das vezes seu aspecto fsico, funciona com uma justificativa para
determinada situao ou prtica cultural. Nesse sentido, o atributo essencializado,geralmente algo inferior em relao ao padro determinado pelas caractersticas do eu,
configura uma prova natural e irrefutvel da deficincia do estrangeiro.
Desenhado o objeto central de investigao da imagologia, Pageaux distingue os trs
elementos constituintes da representao literria do outro, cada qual correspondendo a um
nvel do processo de anlise imagolgica: a palavra, a relao hierarquizada e o cenrio.17No
que diz respeito primeira dessas unidades, o crtico deve proceder a uma anlise lexical,
identificando o repertrio de termos que, em determinada poca, constri a imagem do
estrangeiro, em especial o que se refere ao espao, ao tempo e sua caracterizao interior e
exterior. Nesse estgio inicial do estudo imagolgico, o terico francs distingue duas
categorias de palavra as palavras-chave e as palavras-fantasma , que se desdobram em dois
nveis distintos: as palavras provenientes do contexto que observa e as palavras estrangeiras
transpostas sem traduo da cultura observada. O primeiro grupo, o das palavras-chave,
14Ibid., p. 140.15Ibid., p. 141.16Ibid., p. 142.17Ibid., p. 144.
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corresponde aos termos que caracterizam diretamente tudo o que se refere ao estrangeiro. No
que diz respeito a essas adjetivaes do outro, Pageaux alerta para a necessidade de estar-se
atento a provveis transposies entre os eixos semnticos do eu e do outro, reveladoras
de importantes aproximaes ou distanciamentos entre as duas culturas. As palavras-
fantasma, por sua vez, so aquelas que operam uma comunicao simblica em vez de direta,
como, por exemplo, as palavras harm, odalisca e deserto, que, indiretamente, ajudam a
compor uma imagem extica do contexto do Oriente Mdio para o sujeito ocidental.18
Em um segundo nvel de anlise, correspondente s relaes hierarquizadas, o crtico
dever estar atento s seqncias discursivas, buscando compreender o processo de produo
e funcionamento textual e revelar a conscincia enunciativa do narrador. Muito prximo da
anlise estrutural dos mitos, elaborada por Claude Lvi-Strauss, o procedimento sugerido por
Pageaux visa a identificar o sistema de oposies que contrape tempo, espao e indivduo
nativos e estrangeiros.19Por sua vez, o nvel de anlise do terceiro elemento constitutivo da
imagem denominado cenrio refere-se, conforme o terico francs, ao cruzamento das
concluses das anlises lexicais e estruturais com os dados fornecidos pela histria a respeito
do contexto de produo do texto, para avaliar o grau de conformidade do texto com as
ideologias dominantes no momento histrico do escritor.20
Por fim, em sua construo terica, Pageaux ainda destaca as trs maneiras distintas de
relao possveis entre o eu e o outro. Na primeira delas, a mania, a cultura estrangeira
tida como superior, estando diretamente relacionada a uma viso depreciativa da cultura de
origem. Em um movimento inverso, a fobia traz uma representao que inferioriza a cultura
estrangeira, valorizando de forma extrema a cultura de origem. Na terceira possibilidade, a
filia, a cultura de origem e a cultura estrangeira so consideradas igualmente positivas pelo
observador, havendo, diferentemente da assimilao pura e simples que ocorre na mania, umdilogo de igual para igual entre as culturas em contato, com uma constante avaliao e
interpretao dos elementos estrangeiros. Alm dessas, o terico francs ainda identifica uma
quarta relao, o cosmopolitismo, na qual o dilogo abolido para que se estabelea um
processo de unificao entre o eu e o outro, visando reconstruo de unidades
18Ibid., p. 144-147.19Ibid., p. 147-151.20Ibid., p. 151-153.
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perdidas, um tipo de agrupamento que, na opinio de Pageaux, pouco interesse pode ter s
anlises literrias e culturais.21
1.1.2 Dyserinck e a ficcionalizao da fronteira entre o eu e o outro
Paralelamente ao desenvolvimento da linha terica de Daniel-Henri Pageaux, o belga
Hugo Dyserinck elaborou suas prprias concepes acerca da imagologia. A exemplo da
posio do pensador francs quanto crtica formulada por Ren Wellek em 1958, tambm
Dyserinck colocou-se frente de uma defesa dos estudos imagolgicos, em especial com o
intuito de desfazer qualquer dvida quanto ao carter literrio do estudo da imagem. No
cerne dessa discusso estava a viso, defendida por Wellek, de que algumas abordagens
dentre elas a imagologia , por estarem focadas de forma to clara nos aspectos extra-
literrios e desconsiderarem os traos estticos da obra, no deveriam ser vistas como cincia
da literatura. Buscando responder crtica de que a pesquisa imagolgica no apresenta um
valor intrinsecamente literrio, o terico belga alerta para o fato de que, no obstante a
ntima relao interdisciplinar que tal linha mantm com os trabalhos desenvolvidos pelos
socilogos e antroplogos, as imagens so fatos essencialmente literrios, cuja construo
determinante para a compreenso da obra.
Acima de qualquer discusso acerca de uma maior valorizao dos caracteres
intrnseco ou extrnseco do texto literrio, os estudos imagolgicos esto essencialmente
ligados literatura comparada, em especial pelo compartilhamento de duas preocupaes
centrais: a anlise da experincia com o estrangeiro e o constante movimento de superao de
fronteiras. Nesse sentido, de uma forma um pouco distinta da concepo de Pageaux, a
imagologia comparada, denominao dada por Dyserinck a este campo de pesquisa, estalicerada em uma perspectiva verdadeiramente supranacional e em uma neutralidade
cultural que, em todos os aspectos, se distingue da viso que orienta os pesquisadores
advindos das literaturas nacionais, cujo objetivo , na maioria dos casos, aprofundar o
conhecimento a respeito do prprio pas a partir da imagem que se constri da cultura e da
literatura de outro.22Assim, tomando os exemplos formulados pelo prprio terico, em vez de
21
Ibid., p. 155-157.22 DYSERINCK, Hugo. Sobre o desenvolvimento da imagologia comparada. Traduo: Jael Glauce daFonseca. Disponvel em: . Acessoem: 9 de abril de 2007.
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os franceses perguntarem a si mesmos como vem a cultura alem e em que aspectos tal
pesquisa contribui para uma melhor compreenso da literatura e do contexto cultural
franceses, o questionamento deveria ser no sentido de compreender como franceses e alemes
(e ingleses, espanhis, portugueses, etc.) se vem uns aos outros. Tal concepo de dilogo
entre naes, explicitada ao longo dos textos de Dyserinck por termos como superao de
fronteiras, desideologizao do conceito de povo ou compreenso e manuteno do
esprito europeu, remete ao quarto tipo de relao possvel entre o eu e o outro
apontado por Pageaux o cosmopolitismo , cuja relevncia, em termos de pesquisas
cientficas na rea da literatura, vista com ressalvas pelo terico francs.
Alm dessa, outra grande diferena pode ser apontada entre as duas correntes
imagolgicas aqui abordadas: ao passo que as idias de Daniel-Henri Pageaux direcionam-se
para o contexto de produo das imagens, o interesse de Hugo Dyserinck volta-se
principalmente para os efeitos que estas produzem na recepo dos autores estrangeiros e na
relao entre o pas que observa e aquele que observado. Nesse sentido, os estudos
imagolgicos, por exemplo, auxiliariam na compreenso das escolhas feitas no processo de
traduo de determinados autores estrangeiros, bem como na rejeio de outros, aspecto
que adquire um interesse menor ao trabalho aqui proposto.
Postas as divergncias e as convergncias entre as formulaes conceituais e
metodolgicas de Pageaux e Dyserinck, importante destacar, dentre as contribuies deste
ltimo, os aspectos relevantes para a pesquisa a ser desenvolvida aqui. Nesse sentido, cabe
ressaltar uma distino, apontada por Celeste Ribeiro de Sousa,23entre esteretipo, termo-
chave nas concepes do pensador francs, e imagotipo, expresso utilizada pelo terico
belga. Embora ambos os conceitos remetam construo de uma imagem simplista e redutora
do estrangeiro, diferentemente do esteretipo, que traz em si um sentido nico, originrio datransformao de um trao acessrio em algo essencial, a noo de imagotipo, ou de
estruturas imagotpicas, pressupe o que se pode chamar de uma maior maleabilidade
simblica, visto que compreende a imagem como um constructo que, apesar de manter uma
essncia inalterada, apresenta nuanas e variaes que o carregam de uma maior
complexidade, em especial no ato de sua decodificao.
23 SOUSA, Celeste Henriques Marqus Ribeiro de. Do c e do l: introduo imagologia. So Paulo :Associao Editorial Humanitas, 2004, p. 26.
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Igualmente importante a referncia feita pelo terico belga ao carter de falsidade
das imagens, questo tambm abordada por Pageaux. Uma vez que as construes simblicas
sobre o outro no representam, sob nenhuma hiptese, a essncia desse estrangeiro, a
imagologia deve buscar no uma oposio entre imagens falsas e verdadeiras, mas uma
anlise tanto da estrutura destas quanto das suas repercusses sociais, polticas e culturais.24A
partir de uma analogia com a caracterizao, feita por Karl Popper, dos objetos do chamado
mundo 3, Dyserinck conclui que as imagens so construes simblicas e decodificveis
elaboradas pelo ser humano, acessveis a qualquer momento, que no apenas influenciam esse
mesmo ser humano como tambm possuem leis prprias, podendo gerar conseqncias
involuntrias e imprevisveis. Em ltima anlise, a imagologia tem por objetivo uma
desmistificao das vises sobre o outro e sobre si mesmo que, de to arraigadas, acabampor se tornar verdades absolutas. Sob esse aspecto, interessante observar que, apesar de
sua concepo acerca da falsidade de toda viso sobre o outro, Dyserinck estranhamente
sustenta uma oposio entre imagem e miragem, o que leva compreenso de que existe
uma imagem verdadeira do estrangeiro, em oposio qual o terico afirma que existe uma
imagem falsa a miragem.
Outro ponto relevante da formulao terica de Hugo Dyserinck diz respeito ao
imbricamento dos conceitos de heteroimagem e de auto-imagem, ou seja, o fato de que a
imagem que uma cultura faz do estrangeiro est diretamente relacionada com a imagem que
ela faz de si prpria. Tanto a concepo do elemento nacional quanto a do estrangeiro se
fundamentam em elementos imagotpicos, os quais, em sua maioria, so elaborados e
difundidos pelo sistema literrio a partir de especulaes bizarras e ingnuas,25repercutindo
posteriormente nos mbitos poltico, social e ideolgico. A relao entre heteroimagem e
auto-imagem j foi destacada, com outros termos, na produo terica de Pageaux. No
entanto, cabe identificar algumas diferenas na viso dos dois tericos a respeito dessa
questo. Enquanto para o pensador francs o estudo da imagem do outro, dentre outros
aspectos, procura desvendar as foras ideolgicas, mais ou menos explcitas, que atuam sobre
o eu, para Dyserinck a proximidade entre heteroimagem e auto-imagem revela, acima de
tudo, o carter fictcio da nacionalidade de alguns pases. Dito com outras palavras, a
24DYSERINCK, Hugo. Imagologia comparada: para alm da imanncia e transcendncia da obra. Traduo:Mori de Souza Torres. Disponvel em: . Acesso em: 3 de abril de 2007.25 DYSERINCK, Hugo. Sobre o desenvolvimento da imagologia comparada. Traduo: Jael Glauce daFonseca. Disponvel em: . Acessoem: 9 de abril de 2007.
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desideologizao, que para o primeiro se refere ao ato de revelar as idias polticas,
religiosas ou filosficas que esto por trs de determinadas imagens, para o segundo,
representa, mais do que isso, a prpria desconstruo das fronteiras erguidas entre pases que
compartilham de uma unidade supranacional (nos casos abordados por Dyserinck,
materializada em um esprito europeu).
Ampliando a concepo de Pageaux, que coloca em dvida a construo simblica do
outro que realizada pelo eu, Dyserinck questiona igualmente a construo simblica que
o eu faz de si mesmo, ou, melhor dito, a distino que o eu constri em relao ao
outro. Para ele, o carter relativo e ideolgico, bem como a falta de veracidade de toda e
qualquer imagem literria, seja ela referente a si mesmo ou ao estrangeiro, no podem estar
dissociados do grau de ficcionalidade de conceitos como os de povo e nao, uma vez
que tanto as pretensas caractersticas atribudas a determinado povo por meio das imagens
quanto as caractersticas da prpria nao que elabora tais imagens no so, em hiptese
alguma, registro de uma realidade etnopsicolgica ou de um momento histrico, mas sim
construes ideolgicas a servio de um objetivo bastante especfico.
1.2 OLHARES TERICOS SOBRE A CONSTRUO DA IDENTIDADE
Como possvel depreender das idias de Daniel-Henri Pageaux e Hugo Dyserinck, a
anlise da imagem do outro indissocivel de um interesse pela elaborao da imagem
daquele que constri a representao desse outro. Porm, falar em identidade, haja vista a
amplitude de significaes e apropriaes do conceito, exige, antes de tudo, que seja
delimitado o sentido que se pretende para o termo. Dessa forma, com vista aos objetivos
estabelecidos para o presente trabalho, importante frisar que o uso feito de tal expressotranscende o mbito do individual, referindo-se, portanto, sempre a uma identidade coletiva,
exceto quando especificado o contrrio.
A exemplo das teorias imagolgicas, que tm como uma de suas preocupaes
centrais a estreita relao entre auto-imagem e heteroimagem, as concepes sobre identidade,
seja ela individual ou coletiva, no se abstm de assinalar que a imagem elaborada a respeito
de si mesmo est fortemente vinculada forma como o outro visto. Conforme lembra
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Kathryn Woodward,26a identidade sempre relacional, uma vez que a idia de um eu ou
a idia compartilhada de um ns, no caso das identidades coletivas constituda pela
percepo da existncia de um outro, que diferente. Na esteira desse raciocnio, a noo
de diferena, fundamental para as anlises no campo da imagologia, igualmente crucial
para os estudos focados na questo da identidade. No entanto, ao contrrio do que dita o senso
comum, a diferena no se estabelece como um par opositor da identidade, ou seja, no
representa algo que pertence a eles e, portanto, est fora da imagem do ns. Nas palavras
de Woodward, a identidade no o oposto da diferena: a identidade depende da
diferena.27
Compreendida como elemento integrante do processo de construo de uma
identidade coletiva, a diferena materializa-se no nvel simblico a partir do que Kathryn
Woodward denomina de significantes de identidade.28Tais significantes podem ser mais
explcitos, como o caso da utilizao de determinados objetos, ou mais sutis, como a prtica
de certas atitudes ou a expresso de idias e vises de mundo especficas. Em ambos os casos,
esses elementos simblicos associam-se a determinado grupo, marcando de forma bastante
clara a oposio binria entre ns e eles. Esses significantes so fundamentais para a
construo e o reconhecimento de identidades, delimitando fronteiras de pertencimento por
meio de sistemas classificatrios, os quais aplicam um princpio de diferena a uma
populao de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas caractersticas) em
ao menos dois grupos opostos ns/eles.29De maneira muito semelhante aos procedimentos
adotados no primeiro e segundo nveis de anlise propostos por Daniel-Henri Pageaux, a
associao a um ou a outro elemento de determinada relao binria estabelece o
pertencimento categoria do ns ou do eles.
Dentre os exemplos de sistemas classificatrios relacionados por Kathryn Woodwardesto a oposio que mile Durkheim estabelece entre o sagrado e o profano, a distino
que Lvi-Strauss verifica entre o cru e o cozido e o binarismo, destacado por Mary
Douglas, entre o sujo e o limpo. Retomando o pensamento de Durkheim, Woodward
lembra que as categorias desses sistemas classificatrios no correspondem a caractersticas
26 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: uma introduo terica e conceitual. In: SILVA, TomazTadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos
culturais. 3. ed. Petrpolis : Vozes, 2004, p. 07-72.27Ibid., p. 39-40 (grifo da autora).28Ibid., p. 10.29Ibid., p. 40.
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inerentes a determinado objeto ou atitude. Antes, so simbolizaes ou, melhor dito, so atos
de produo de sentido cujo objetivo organizar as relaes sociais. Assim sendo, ao associar
determinado artefato ou ao, por exemplo, categoria simblica do profano, do cru ou
do sujo, em detrimento de uma associao, respectivamente, ao sagrado, ao cozido ou
ao limpo, o que se d, em termos sociais, o reconhecimento de determinado sujeito como
um de ns ou como um dos outros.30
Embora o reconhecimento da diferena do outro seja condio sine qua nonpara a
constituio do eu, Kathryn Woodward assinala que tal afastamento no obrigatoriamente
negativo. Mesmo que, em muitos casos, o no-pertencimento a uma identidade implique
excluso social, a diferena identitria , por vezes, vista como algo positivo, podendo ser
celebrada como fonte de diversidade, heterogeneidade e hibridismo.31
Tendo em vista que o estabelecimento de diferenas representa um fator indispensvel
para a construo identitria, as bases em que tais diferenas so estabelecidas acabam por
revelar a prpria concepo de identidade que subjaz ao processo em questo. Assim, como
recorda Stuart Hall, o pertencimento a determinado grupo pode ter por trs de si uma
concepo de identidade como essncia ou como processo.32 No primeiro caso, a
sustentao de uma identidade coletiva se d ou pela suposta existncia de um passadocompartilhado ou por uma pretensa natureza comum. Em ambos, o que diferencia o ns
do eles so traos fixos e imutveis, heranas histricas ou biolgicas a serem recuperadas.
Por sua vez, a segunda concepo no visualiza a identidade como algo coeso e uniforme,
mas como algo que, alm dos aspectos em comum, tem em seu interior profundos e relevantes
pontos de descontinuidade e diferenas. Nesse sentido, a identidade tida como um processo
contnuo de transformao do passado, como um tornar-se, e no apenas como um ser, o
que torna a diferena que marca a fronteira identitria algo fluido e diferido.
As palavras de Stuart Hall no escondem sua crtica em relao a uma concepo
essencialista e imutvel de identidade coletiva. Semelhante a postura do mexicano Federico
Navarrete, que alerta para as conseqncias de buscar no passado as marcas de uma
identidade genuna e autntica.
30Ibid., p. 40-49.31Ibid., p. 50.32 HALL, Stuart. Cultural identity and diaspora. In: RUTHERFORD, Jonathan. Identity: community, culture,difference. London : Lawrence & Wishart, 1990, p. 223-225.
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Ao analisar a construo da identidade coletiva dos indgenas de seu pas, Navarrete
afirma que tal essencialismo
coloca a las culturas indgenas fuera de la historia, pues ve los cambios queinevitablemente han experimentado en los ltimos quinientos aos desde la llegadade los europeos como negativos y como una prdida de su autenticidad. As, niega alas culturas indgenas la posibilidad de cambiar sin perder su identidad y por ello laspriva de un futuro propio.33
Na viso de Navarrete, uma determinada identidade no pode ser caracterizada ou
definida apenas por seu passado, uma vez que ela se transforma conforme vo se modificando
as relaes que estabelece com as demais identidades coletivas em dado contexto histrico.
Assim sendo, a exemplo das concepes de Woodward e Hall, a idia defendida pelo autor
mexicano compreende as identidades coletivas como processos que aliam uma continuidade,
a qual recupera caractersticas de um passado compartilhado, a uma inovao que reelabora
constantemente essa identidade no contato estabelecido com as demais identidades coletivas,
ou seja, no contato com seu outro.
Ao analisar as duas concepes possveis de identidade a essencialista e a no-
essencialista , Stuart Hall retoma o pensamento de Kevin Robins para dividi-las, em outros
termos, entre aquelas que se constroem sob a gide da tradio e aquelas que soconstitudas a partir de um processo de traduo.34Assim, ao passo que, no primeiro caso,
h uma tentativa de recuperar no passado aspectos puros e imutveis que alicercem e
justifiquem o pertencimento de alguns indivduos, outras identidades, por sua vez, cientes da
impossibilidade de resgatar uma pureza ancestral, dialogam e negociam com as diferentes
culturas com as quais mantm contato, transformando e inovando aspectos da tradio,
construindo, assim, pertencimentos hbridos, abertos e mutveis. Segundo a concepo de
Hall, essa traduo refere-se a um processo identitrio bastante especfico, produto das novasdisporascriadas pelas migraes ps-coloniais.35Em suas palavras, tal conceito
descreve aquelas formaes de identidade que atravessam e intersectam as fronteirasnaturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terranatal. Essas pessoas retm fortes vnculos com seus lugares de origem e suastradies, mas sem a iluso de um retorno ao passado. Elas so obrigadas a negociar
33NAVARRETE, Federico. Las relaciones intertnicas en Mxico. Mxico : Universidad Nacional Autnomade Mxico, 2004. Disponvel em:
Acesso em: 31 de agosto de 2007.34HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro : DP&A, 1999, p. 87.35Ibid., p. 89 (grifo do autor).
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com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elase sem perder completamente suas identidades.36
No obstante o fato de serem essas identidades traduzidas uma conseqncia direta
das mudanas socioeconmicas verificadas na dita ps-modernidade, possvel apontar
semelhanas entre esse processo e a elaborao identitria, por exemplo, do sujeito auto-
exilado em fins do sculo XIX, como o caso do protagonista da obra de Jos Hernndez.
Se, por um lado, a identidade em si, em especial a coletiva, tida como malevel e
fluida em seu processo de constituio, por outro, no que tange ao reconhecimento e
afirmao de uma identidade individual por parte do sujeito, tal processo revela-se marcado
pela multiplicidade. Nesse sentido, os indivduos no apresentam uma, e sim vrias
identidades, provenientes de pertencimentos tnicos, polticos, religiosos, de classe, de
gnero, dentre outros. Tal heterogeneidade, na opinio de Stuart Hall, impede a existncia de
uma identidade mestra que sirva de lastro e ponto de convergncia para todas as identidades
do sujeito. Para o autor, em especial no contexto da ps-modernidade, nem o pertencimento a
uma classe social pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora
atravs da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas
possam ser reconciliadas e representadas.37
Obviamente, diante de tamanha diversidade de pertencimentos e da impossibilidade de
que estes se alinhem sob uma identidade unificadora, o processo de construo e
reconhecimento da identidade individual pode gerar contradies, exigindo que sejam
negociadas as demandas de pertencimentos especficos, como, por exemplo, as
incompatibilidades de uma identidade religiosa catlica em relao a uma identidade de
gnero homossexual. Em outras palavras, se, no nvel social, o sujeito assume determinada
identidade por meio do reconhecimento da diferena em relao a um outro, no nvelindividual, ele se depara com uma srie de diferenas que erguem fronteiras entre as distintas
identidades que o constituem como sujeito. No entanto, nem todos os pertencimentos
apresentam o mesmo peso na composio identitria individual. Assim, como assinala
Woodward, algumas diferenas so vistas como mais importantes que outras, especialmente
em lugares particulares e em momentos particulares.38
36Ibid., p. 88 (grifo do autor).37Ibid., p. 20-21.38WOODWARD, op. cit., p. 11.
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A partir da constatao de que, a exemplo das identidades individuais, as coletivas so
tambm multifacetadas por natureza, possvel aliar-se ao pensamento de Federico Navarrete
e distinguir estas ltimas em voluntrias e obrigatrias. Ao passo que o primeiro grupo
composto por pertencimentos mais flexveis, como a filiao a um partido poltico, as
identidades coletivas obrigatrias dizem respeito a traos mais rgidos, como nacionalidade ou
etnia, os quais acabam por estabelecer fronteiras entre sociedades que se consideram distintas.
1.2.1 O tnico e o nacional na formao das identidades coletivas
Tendo em vista uma melhor compreenso das idias expostas por Federico Navarrete,
importante que se esclarea o significado de alguns conceitos utilizados por ele. Em
primeiro lugar, deve-se assinalar a distino que o antroplogo mexicano estabelece entre os
termos categoria tnica e identidade tnica. Este ltimo conceito diz respeito sensao
de pertencimento e ao processo de reconhecimento que o sujeito tem de sua prpria etnia,
sendo, nesse sentido, algo bastante especfico, ao passo que as categorias tnicas possuem um
sentido mais geral, tendo por finalidade classificar aqueles que no pertencem ao grupo do
ns ou reunir diferentes grupos tnicos sob uma mesma denominao pretensamente
homognea. Assim, como o prprio Navarrete exemplifica,
cuando los espaoles llegaron a Mxico los habitantes de estas tierras estabanorganizados en muchos grupos diferentes, cada uno de ellos con un fuerte sentido desu identidad tnica, pero todos fueron inscritos en la categora tnica de "indios" encontraste con la de "espaoles" (que por cierto, tambin estaban divididos en variosgrupos tnicos diferentes).39
A exemplo do que afirma Navarrete a respeito do contexto mexicano, tambm no
Brasil a categoria tnica indgena acabou por ocultar importantes distines verificadas entreas identidades tnicas dos nativos que viviam na terra descoberta pelos portugueses. Como
lembra Darcy Ribeiro, embora os autctones fossem, em sua maioria, descendentes do tronco
tupi, o territrio brasileiro era tambm habitado por outros povos, tais como os Paresi, os
Bororo, os Xavante e os Kaingang, os quais no apenas apresentavam caractersticas culturais
bastante distintas entre si, como tambm, no raras vezes, tinham os outros grupos indgenas
como seus inimigos.40
39NAVARRETE, op. cit.40RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil. So Paulo : Companhia das Letras,1995, p. 35.
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Alm da distino entre categoria tnica e identidade tnica, importante observar
que, ao longo de seu trabalho, Federico Navarrete toma a expresso identidades culturais
como um sinnimo de identidades coletivas, uma vez que, a seu ver, estas ltimas estn
constituidas por elementos culturales, una forma de pensar, una forma de vestir, una forma de
comer, una forma de actuar.41Em outras palavras, possvel compreender as identidades
culturais como um grande grupo heterogneo, que abrange distintos pertencimentos, como o
religioso, o social ou o de gnero, entre outros. Por sua vez, aquilo que Navarrete denomina
como identidade tnica corresponde a um tipo especfico de identidade cultural a de
carter poltico , a qual distingue-se dos demais pertencimentos pela relevncia que adquire
na construo de fronteiras sociais. Nas palavras do autor,
podemos decir que las identidades tnicas, es decir las identidades que adquieren unsentido poltico para definir grupos sociales diferenciados, suelen ser ms fuertes,rgidas y efectivas que las identidades con una menor carga poltica.42
Tamanha a fora adquirida pela etnia no reconhecimento identitrio de um grupo
que, no raras vezes, ela assume o papel de mito fundador, de trao unificador da identidade
de uma nao, homogeneizando as diferentes composies tnicas sob a imagem de uma
identidade nacional coesa. Nesse sentido, como aponta Stuart Hall, uma das formas de
unificar as identidades nacionais tem sido a de represent-las como a expresso da cultura
subjacente de um nico povo.43No que concerne a esse aspecto, importante ressaltar a
distino feita entre os conceitos de etnia e raa. Assim, ao passo que o primeiro termo
possui um carter estritamente cultural, referindo-se lngua, religio e s tradies de um
grupo social especfico, o conceito de raa, em seu sentido mais corriqueiro, refere-se a um
conjunto de traos fsicos tido como caracterstico de determinada coletividade. No entanto, a
despeito de aparentemente configurar uma categoria biolgica, a raa, como alerta Hall,
uma categoria discursiva
organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representao e prticassociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqentemente poucoespecfico, de diferenas em termos de caractersticas fsicas cor da pele, texturado cabelo, caractersticas fsicas e corporais, etc. como marcassimblicas, a fimde diferenciar socialmente um grupo de outro.44
41
NAVARRETE, op. cit.42Ibid.43HALL, 1999, op. cit., p. 62.44Ibid., p. 63 (grifo do autor).
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Uma vez estabelecida a distino entre o pertencimento a uma etnia ou raa e o
pertencimento cultural, cabe aqui delimitar alguns dos termos a serem utilizados ao longo
deste trabalho. A fim de dirimir qualquer equvoco metodolgico ou conceitual, importante
especificar que, em se tratando da esfera do tnico, o contraponto identidade indgena ser
sempre estabelecido em relao categoria do mestio, ao passo que, em termos de
identidade cultural, a oposio entre o eu e o outro se dar a partir das categorias do
indgena e do gaucho ou gacho. Assim, diferentemente do sujeito indgena, cuja
identificao envolve elementos tanto culturais (como uma forma distinta de pensar ou de
alimentar-se, por exemplo) quanto tnico-raciais (como cor da pele ou outra peculiaridade
fsica), as identidades do mestio e do gaucho ou gacho no podem ser tomadas a
prioricomo coincidentes. Nesse sentido, como assinala Ezequiel Martnez Estrada, no restadvida que o gaucho
se trataba del mestizo, engendrado en los azares de la marcha del conquistador o delcolono, establecirase o no en un paraje. Pero el tipo social ms que tnico se perfilacuando comienzan a constituirse las castas de los hacendados y los militares y acodificarse el rango de las personas por su estirpe o posicin econmica.45
Na mesma direo aponta Sergius Gonzaga, ao lembrar que, muito embora
inicialmente a designao se referisse a indivduos errantes, filhos de ndias violentadas porbandeirantes e soldados portugueses ou espanhis, com o passar do tempo e a incorporao
desses indivduos marginalizados ao processo produtivo das estncias, o termo gacho
comearia a aambarcar as vrias facetas do proletariado rural, impondo-se a gaudrio
(agora com sentido restrito de errante), at se tornar, em fins do sculo XIX, o nome
gentlico.46
Retomando as concepes de Stuart Hall, se possvel conceber que a idia de raa
algo discursivamente construdo, tambm parece lcito aventar que justamente o carter
discursivo das pretensas identidades raciais que possibilita a estas no apenas estabelecer
fronteiras sociais como tambm, a exemplo do pertencimento tnico, assumir um papel
central na construo de identidades nacionais. Nesse sentido, se tanto a etnia quanto a raa
podem estabelecer slidos alicerces de identidades nacionais, bem como justificar os
processos de excluso social que decorrem do sentimento de pertencimento a essas
45MARTNEZ ESTRADA, Ezequiel. Muerte y transfiguracin de Martn Fierro: ensayo de interpretacin dela vida argentina. 4. ed. Rosrio : Beatriz Viterbo, 2005, p. 521.46GONZAGA, Sergius. As mentiras sobre o gacho: primeiras contribuies da literatura. In: DACANAL, JosHildebrando; GONZAGA, Sergius (orgs.). RS: cultura e ideologia. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1980, p. 118.
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identidades, natural que, como afirma Hall, o sujeito compreenda sua nacionalidade como se
fosse algo essencial, algo que fizesse parte de sua natureza.47 Muito desse sentimento de
pertencer a uma grande famlia nacional48decorre do fato de que a nao no se configura
apenas como uma entidade poltica, mas tambm como um sistema de representao cultural.
Assim, a nao, para que se constitua como tal, produz sentidos sobre si prpria de tal forma
que permita que os sujeitos possam se identificar com ela ou, em outras palavras, possam
perceber como sendo seus os traos que pretensamente correspondem identidade nacional.
A aproximao que Stuart Hall prope entre o reconhecimento de uma nacionalidade
como sendo prpria do sujeito e o sentimento de pertencer a uma famlia ecoa na idia de
nao formulada por Benedict Anderson, uma vez que, na concepo deste, a nao deve ser
compreendida como algo prximo no de conceitos polticos, como o liberalismo ou o
fascismo, mas de questes como o parentesco ou a religio.49
Nos termos de Benedict Anderson, a nao uma comunidade poltica imaginada e
imaginada como implicitamente limitada e soberana.50 Por conseqncia, como o prprio
autor destaca, a nacionalidade tem como base quatro relevantes concepes: a existncia de
uma comunidade, pois, no obstante a desigualdade e a explorao verificadas entre seus
integrantes, toda nao sempre concebida como um companheirismo profundo e horizon-tal;51o fato de ser imaginada, uma vez que um indivduo, mesmo sem jamais conhecer ou
sequer ouvir falar da maioria de seus compatriotas, ter sempre presente um sentimento de
comunho com estes; a percepo de ser limitada, pois at mesmo a maior delas [das
naes], que abarca talvez um bilho de seres humanos, possui fronteiras finitas, ainda que
elsticas, para alm das quais encontram-se outras naes;52e tambm a pressuposio de ser
soberana, ou seja, livre e governada de uma forma totalmente distinta daquela que
caracterizava as dinastias divinamente institudas. Na esteira dessa concepo, a comunidadeimaginada nacional apresenta, em muitos aspectos, pontos de convergncia com as
comunidades imaginadas religiosas da Idade Mdia. Apesar de no relacionar diretamente
esses dois momentos histricos, Anderson no deixa de interligar o fim da hegemonia das
grandes culturas sagradas e a ascenso dos modernos estados nacionais, ao afirmar que,
47HALL, 1999, op. cit., p. 47.48Ibid., p. 59.49 ANDERSON, Benedict. Nao e conscincia nacional. Traduo: Llio Loureno de Oliveira. So Paulo :
tica, 1989, p. 14.50Ibid., p. 14.51Ibid., p. 16.52Ibid., p. 15.
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dentre as causas do desvanecimento das comunidades imaginadas religiosamente, est a
descoberta do continente americano, que acabou por revelar uma outra viso de mundo e,
conseqentemente, por destituir o carter de nica verdade do pensamento cristo europeu,
lanando, em suas palavras, as sementes de uma territorializao das fs, que faz antever a
linguagem de muitos nacionalistas (nossa nao a melhor em um campocomparativo,
competitivo).53
Mesmo sem explicitar sua postura de forma veemente, Benedict Anderson alinha-se
crtica de Stuart Hall com relao crena em uma identidade nacional que seja unificada,
homognea e natural, ao conceber a nao como algo imaginado portanto, construdo
sob a forma de discurso por um grupo de sujeitos ideologicamente determinados , que se
configura no espao simblico de um sentimento de partilha identitria entre indivduos que,
mesmo sem se conhecerem, esto convictos de que so semelhantes. Tanto uma quanto
outra concepo, como no poderia deixar de ser, mascara um forte impulso pelo apagamento
das diferenas culturais que se verificam no interior das fronteiras nacionais. Um exemplo
desse processo apresentado por Federico Navarrete, ao descrever aquilo que denomina
ideologia da mestiagem.54Embora a verificao desse fenmeno esteja restrita ao contexto
mexicano, a ideologia da mestiagem apresenta muitos aspectos que podem ser transpostos
para as demais realidades latino-americanas, em especial para a Argentina e a poro
meridional do Brasil, regies que so alvo do interesse deste trabalho.
Diferentemente da mestiagem biolgica, resultante do contato entre o europeu e os
povos autctones, que ocorreu de forma semelhante em toda a Amrica desde o final do
sculo XV, o processo descrito por Navarrete assumiu o carter de um projeto oficial do
estado mexicano ao final do sculo XIX, cujo objetivo era suplantar a heterogeneidade tnica
mexicana a partir da construo de uma identidade mestia coesa e unificadora. Em linhasgerais, tal ideologia entendia a categoria tnica do mestio como a prpria encarnao da
identidade nacional mexicana, herdeira tanto da milenar tradio dos povos pr-hispnicos
quanto da cultura e modernidade europias. Embora reconhecesse como identidade mestia
oficial apenas aquela resultante da mescla do descendente de espanhol nascido na Amrica
com o indgena americano, excluindo, portanto, as demais etnias dessa pretensa composio
identitria coletiva, o projeto nacionalista mexicano possibilitava que os negros e os
53Ibid., p. 26 (grifo do autor).54NAVARRETE, op. cit.
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imigrantes assumissem uma identidade mestia e pertencessem nao, bastando, para isso,
que abandonassem suas identidades tnicas particulares. Tendo em vista esses aspectos,
Federico Navarrete observa que, se por um lado, o projeto identitrio mexicano apresenta uma
expressiva tolerncia racial, na medida em que possibilitou um pertencimento nacional a todas
as etnias existentes no pas, por outro, tal ideologia marcada por uma profunda intolerncia
cultural, uma vez que exige que o sujeito abandone sua cultura e identidade tnicas
particulares, sob risco de ser considerado um inimigo da paz e da integridade nacional.
No que diz respeito forma como a ideologia da mestiagem foi posta em prtica,
Federico Navarrete observa que esta se constituiu em um processo de castelhanizao dos
povos indgenas. Em outras palavras, os ndios foram considerados como pertencentes
categoria tnica dos mestios pelo simples fato de passarem a utilizar o idioma espanhol. No
entanto, como o prprio antroplogo mexicano destaca, a mudana da lngua representa uma
troca de categoria tnica, mas no necessariamente uma alterao na identidade tnica do
sujeito. Exemplo disso o fato de diversas comunidades indgenas do Mxico, apesar de se
expressarem apenas em espanhol, ainda conservarem muitas prticas tradicionais de sua
cultura, sustentando assim sua identidade tnica.
Para que se esclarea melhor a distino entre as mudanas verificadas ao nvel dacategoria tnica e aquelas mais profundas, que alteram a identidade tnica do sujeito,
necessrio retomar as duas formas de mestiagem propostas por Federico Navarrete: a
mestiagem individual e a mestiagem coletiva. Como exemplo dessa primeira forma de
mestiagem, o autor cita o caso de alguns lderes liberais que, mesmo tendo nascido em
comunidades indgenas, assimilaram totalmente a cultura ocidental, rompendo os vnculos
identitrios com suas comunidades originais e aderindo identidade nacional mexicana. Por
sua vez, o processo que Navarrete denomina de mestiagem coletiva pode ser exemplificadopelos casos em que as relaes estabelecidas entre as comunidades indgenas e os habitantes
de cidades prximas acabaram fazendo com que aqueles adotassem a lngua espanhola em
detrimento do uso de seu prprio idioma, sem, no entanto, modificar em nada os demais
aspectos de sua cultura original.
Ao analisar mais atentamente essa distino entre as mestiagens individual e coletiva,
percebe-se um curioso paradoxo entre o processo de assimilao de uma identidade mestia
nova em detrimento da identidade tnica original e a amplitude da populao inserida em
tal mudana identitria. Dito de outra forma, possvel observar claramente, a partir dos
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exemplos apresentados pelo antroplogo mexicano, que, quanto maior o nmero de sujeitos
inseridos em uma experincia coletiva de assimilao cultural, menos profundos sero os
efeitos desta. Assim, ao passo que as mestiagens coletivas acabam por infligir mudanas
culturais no to significativas a um expressivo nmero de sujeitos, resultando, em geral,
apenas na adoo de um novo idioma, as mestiagens individuais acarretam o total abandono
da identidade tnica primeira do sujeito.
Como fica claro a partir do exposto at aqui, longe de ser tomada como algo slido e
imutvel, a identidade parece figurar um constructo no apenas permevel, mas tambm
malevel. Em outras palavras, se a identidade precisa tanto da alteridade para estabelecer os
prprios limites de seu pertencimento, o dilogo com o outro acaba tambm redesenhando
as fronteiras que separam o que prprio daquilo que alheio. Apesar de os termos aqui
discutidos estarem inseridos em um contexto historicamente muito especfico os debates
sobre ps-colonialismo e ps-modernidade realizados na passagem do sculo XX ao sculo
XXI , parece perfeitamente possvel estender os conceitos e idias apresentados anlise das
representaes da identidade e da alteridade em textos como os de Jos Hernndez e Joo
Simes Lopes Neto, obras to distantes em termos temporais dos tericos anteriormente
elencados, mas to prximas deles em termos temticos.
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2 A IMAGEM DO NDIO EM EL GAUCHO MARTNFIERRO
E LA VUELTA DE MARTN FIERRO
Partindo da constatao de que o jogo entre identidade e alteridade , em ltima
anlise, fruto de uma construo simblica, interessa agora elucidar a forma como as
concepes do eu e do outro so elaboradas nos textos literrios que compem o corpus
deste trabalho. Embora a metodologia a ser adotada tenha por base as j referidas concepes
tericas de Daniel-Henri Pageaux, diferentemente da distino sugerida pelo terico francs, o
presente trabalho analisar concomitantemente os nveis do lxico e da seqncia discursiva,
uma vez que, conforme se observar facilmente ao longo das prximas pginas, um est
intimamente relacionado ao outro. Assim, em um primeiro momento, sero observadas tanto
as palavras-chave quanto os blocos textuais que contrapem a heteroimagem do indgena
auto-imagem do gaucho. Posteriormente, retomando a concepo terico-metodolgica de
Pageaux, ser analisado o contexto social em que o texto de Jos Hernndez foi produzido,
procurando, com isso, observar o grau de adequao da obra ideologia dominante poca.
No que concerne aos poemas de Jos Hernndez,El gaucho Martn FierroeLa vueltade Martn Fierro,55 possvel constatar de imediato que a figura do ndio estrutura-se, em
linhas gerais, em dois grupos de adjetivaes, que podem ser resumidos pelas palavras
selvagem e infiel. Por meio desses termos, e de todos os que derivam deles, o
protagonista do poema argentino deixa bastante claro o carter de estrangeiro do indgena,
55 Os excertos de El gaucho Martn Fierro e La vuelta de Martn Fierro apresentados neste trabalho foramextrados de GARGANICO, John F.; RELA Walter. Antologa de la literatura gauchesca e criollista.
Montevideo : Delta Editorial, 1967, p. 53-291. Nas citaes que seguem dos versos de Hernndez seroindicadas apenas as pginas que correspondem obra referida. Com o intuito de facilitar a leitura, os excertossero acompanhados dos cdigos MF IDA, identificando os trechos correspondentes El gaucho MartnFierro, e MF VOLTA, que identifica os trechos que correspondem La vuelta de Martn Fierro.
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tanto no que diz respeito a um grupo de indivduos civilizados quanto em relao a uma
comunidade crist, qualidades que, em maior ou menor grau, identificam os personagens
gauchos. Dito de outra forma, as caracterizaes do ndio como selvagem e infiel so
contrapostas, respectivamente, s adjetivaes mais ou menos explcitas do gaucho como
civilizado e cristo.56Colocando a questo nesses termos, parece inevitvel aproximar a
forma como Jos Hernndez contrape as imagens do autctone e do mestio da dualidade
entre civilizao e barbrie, imortalizada na obra Facundo, de Domingo Sarmiento,
publicada em 1845.57Como aponta Bella Jozef,Martn Fierroe Facundo representam as duas
faces da nacionalidade argentina: Hernndez, federalista, representa a civilizao pastoril das
estncias, ao passo que o unitrio Sarmiento representa o cosmopolitismo da capital Buenos
Aires.58Semelhante a opinio de Ezequiel Martnez Estrada.
Sarmiento haba puesto frente a las ciudades en que se guareca la civilizacin, elcampo en que los caudillos reclutaban sus huestes brbaras para llevarles el sitio y elasalto. ElMartn Fierro nace de una idea inversa. Para Hernndez las ciudades yen primer trmino la ciudad de las ciudades, Buenos Aires encierran casi todos losmales polticos: el germen de las discordias, el manejo arbitrario de las rentas, losgobiernos unitarios y despticos, el olvido y desprecio del campesino.59
Assim, valendo-se dos mesmos termos de seu adversrio poltico, Jos Hernndez no
apenas elabora a imagem do ndio a partir de uma noo de barbrie que pretensamente seoporia civilizao a qual pertence o gaucho, como amplia esse contraste para o campo
religioso, traando um paralelo entre o civilizado cristo e o selvagem infiel.
2.1 MARTN FIERRO E A CONSTRUO DO NDIO COMO SELVAGEM E INFIEL
2.1.1 O ndio e seus traos de civilidade
No que se refere ao grupo de palavras-chave ligadas ao conceito de barbrie,
observa-se de imediato que um dos pontos que denota de forma mais marcante o carter de
56Contrariando a percepo de Carlos Astrada de que o protagonista da obra de Hernndez est fuera del marcode la fe cristiana (ASTRADA, 2006, p. 23), as marcas de uma identidade crist so facilmente percebidas aolongo do poema. No que diz respeito noo de civilizao, mesmo no sendo explicitamente referida nosversos do poema, ela pode ser depreendida, por exemplo, da ao da Justia, da qual o protagonista se diz vtima.57 SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: civilizao e barbrie no pampa argentino. Traduo: Aldyr
Garcia Schlee. Porto Alegre : Ed. Universidade/UFRGS/EDIPUCRS, 1996.58 JOZEF, Bella Karacuchansky. Histria da literatura hispano-americana. 3. ed. Rio de Janeiro : FranciscoAlves, 1989, p. 71.59MARTNEZ ESTRADA, op. cit, p. 576-577.
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no-civilizado do ndio a reiterada comparao deste a animais, com o intuito de destacar
os aspectos pretensamente negativos da cultura desse outro. o caso, por exemplo, das
comparaes feitas entre o ndio e o porco (cerdo, em espanhol), no que concerne sujeira de
ambos.
Y son, por Cristo bendito!los ms desasiaos del mundo;esos indios vagabundos,con repunancia me acuerdo,viven lo mesmo que el cerdoen esos toldos inmundos. (MF VOLTA, p. 165-166)
interessante observar que, da mesma forma como o ndio tomado por porco pela
sua falta de asseio, Martn Fierro tambm se vale da associao a esse animal para descreveruma de suas qualidades pessoais. Obviamente fugindo da referncia sujeira, o personagem
aproxima-se do porco para ilustrar um dos traos que definem a figura do gauchovaqueano: a
facilidade com que se localiza e se desloca pelo pampa.
Entro y salgo del peligrosin que me espante el estrago;no aflojo al primer amagoni jams fi gaucho lerdo:
soy pa rumbiar como el cerdoy pronto cai a mi pago. (MF IDA, p. 100)
As comparaes com animais denotam a ntima relao que o gauchomantm com o
espao geogrfico que habita. Como bem observa Jos Mara Salaverra, o pampa exige que
aquele que nele habita rena tanto as qualidades do ser instintivo quanto as do ser racional, de
tal forma que no seja possvel distinguir en dnde acaba el animal y empieza el hombre.60
O forte vnculo do gauchocom a natureza, longe de ser depreciativo, representa um valor,
uma caracterstica que o distingue dos demais indivduos e que o habilita a viver nas inspitascondies do pampa argentino. No entanto, a vantagem que o gauchotem de assemelhar-se a
animais, vantagem essa que, em grande medida, o aproxima do indgena, assume um valor
depreciativo quando passa a ser vista como uma caracterstica do autctone.
60SALAVERRA, Jos Mara. Vida de Martn Fierro: el gaucho ejemplar. Madrid : Espasa-Calpe, 1934, p. 44.
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Ainda com o intuito de ressaltar o aspecto no-civilizado das atitudes do indgena,
Martn Fierro recorre a outro animal o peludo61 para ilustrar outro trao comum a esse
povo.
Primero, entierran las prendasen cuevas, como peludos;y aquellos indios cerdudos,siempre llenos de recelos,en los caballos en pelosse vienen medio desnudos. (MF VOLTA, p. 162)
Assim como o tatu esconde sua caa para que nenhum outro animal a leve, tambm o
ndio enterra seus pertences por medo de que sejam roubados, ressaltando uma desconfiana
que, na viso do protagonista, inata ao indgena. No entanto, semelhana do que ocorrecom a metfora do porco, Martn Fierro, em determinado momento, lana mo da figura do
tatu tambm para ilustrar sua prpria condio.
Volva al cabo de tres aosde tanto sufrir al udo,resertor, pobre y desnudo,a procurar suerte nueva,y lo mesmo que el peludoenderec pa mi cueva. (MF IDA, p. 100)