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E N T R E V I S T
ENTREV1STA COM TO B I E NATHANPor I'clicia knob loclt
Tobic Nathan nasceu no Egito. cm 1948. Etnopsicanalista e dirctor da U FR dc
Psicologia da Univcrsidadc dc Paris VIII. Saint-Denis. E professor dc Psicologia
clinica c patologica c dirctor do C'cntro Georges-Devcreux — ccntro
univcrsitario de ajuda psicologica as familias imigrantcs. Rcdator-chefe da
Revista Native He Revue d Ijlmopsychictlrie. Criou o prinieiro ambulatorio dc
etnopsiquiatria cm 1979. no Hospital Aviccnnc (Bobigny). Desde cntao. nunca
dcixou dc aprofundar a pcsquisa nessc dominio. Suas inumcras viagens para a
realizaQao dc pcsquisas de campo (Africa. America. Pacifico Sul), scu contato
com curandeiros tradicionais c sua intensa atividadc clinica na rcgiao parisiense
permitiram-lhc invcstigar os sistemas terapeuticos dc um grande numero dc
culturas nao-ocidcntais. Tobic Nathan rcuniu a scu rcdor uma equipe dc
pesquisadores c cstudantcs dc pos-gradua^ao provcnicntcs dc todo o mundo.
Publicou nove livros c mais dc 150 artigos. alcm dc dois romances policiais.
Algumas de suas obras foram traduzidas cm varios paiscs.
F .K .1 Achamos muito rclevantcs as suas obscrva^ocs. cm rcssonancia, , , com Isabelle Stengcrs. sobre a importancia dc sc pensar cm uma "psicopatologia
que sc arrisca". Gostariamos cntao que o senhor descnvolvesse um pouco cssa
sua ideia "de uma psicopatologia que sc arrisque. que sc cngajc na descriQao
mais fina possivcl do terapeuta c das tecmcas terapcuticas. c nao dos docntcs” .
Como seria tal dcscri^ao do terapeuta. e como cvitar que a dcscri<;ao de tecmcas
caia num tccnicismo garantindo que a unplicagao terapcuta-tccnica-proccgso de
tratamento-pacicnte nao fiquc dcla cxcluida? fl I I ^( trtb 0 Lexeme xjlOU-bUyV
Psicanalista. profcssora da PUC-SP c doutoranda pclo Programa dc Estudos Pos- Graduados cm Psicologia Clinica na mcsma instituifao.Tradugao: Martha Gambini
9
T.N . Evidentemente, estou me referindo a riscos de pensamento. Fazer
com que o pensamento se arrisque significa flexiona-lo numa diregao que forga o
pesquisador a encontrar novos dispositivos, exatamente aqueles capazes de
xonvocar o cornparecimento de testemunhas para o julgamento da existencia de
novos seres. Vivemos hoje o pos-fracasso dc todas as tentativas ocorridas entre a
metade do seculo X IX c a metade do seculo X X para construir uma
, psicopatologia estrutural, que busca constantes por tras das aparencias dos
Sintomas. que tenta estabelccer a existencia de entidades nosologicas universais.
E desse fracasso que nasceu a nova psiquiatria americana, a do D SM , que
percebe — e e esse seu merito — a impossibilidade das tentativas estruturais.
tendo-as substituido pela busca de um consenso entre os profissionais. A
estrutura escapando a observagao dos doentes podia ser apreendida de modo
estatistico mediante questionarios dirigidos aos profissionais. Essa posigao.
decidindo contomar o obstaculo, nao deixa de ser interessante. Censuro apenas o
fato de que ela exclua do campo dc investigagao a grande maioria dos
verdadeiros profissionais que realmente tratam dos doentes: nao somente os
psiquiatras e os psicologos. mas tambcm os curandeiros, os xamas. os pastores
dos grupos de oragao carismaticos etc. Minlia proposigao tecnica consiste cm
mobilizar todos os recursos para que esse tipo de tecnico nao seja excluido do
campo da analise. Embora suas teorizagoes sejam necessariamente
desqualificadas desde o inicio pclo pensamento ocidental, por se basearem na
existencia de seres invisiveis. suas praticas, pelo contrario. sao suscetiveis de
analises finas c profundas e sens resultados climcos podem ser avaliados. E
quando falo cm investigar suas praticas. esse trabalho deve reportar-se a sens
atos. mas tambcm a seu ser. sua formagao e seus objetos — ou seja: sens
instrumentos, mas tambem suas tcorias. seus pensamentos c. e claro (antes de
mais nada!). seus seres sobrenaturais.
Essa atitude decorre de um pressuposto metodologico: considcro que as
terapias '"tradicionais" (por exemplo, os rituais de possessao, a luta contra a
feitigaria. a restauragao da ordem do mundo apos uma transgressao de tabu, a
fabricagao de 'objetos terapeuticos” . .) nao sao nem cngodos. nem sugestao. nem
placebos. Para mini, essas praticas sao realmente o que seus utilizadores pensam
que clas sao: lecnicas de influencia, quase sempre eficazes, e conseqiientemente
dignas de investigagoes serias.
HIf . I ' f f C c ■ ; /■'
J I o
i . . '■ ''=■ '
Quando comefamos a considcrar a prdtica da psicoterapia scgundo
cssas prcmissas. somos forvados a modificar nidicalniente a percep^lio desse
dlicio. A questao para o terapeuta nao c mais a do scr antes de tudo mcmbro de
uma escola cjnc deteria a verdade sobre a natureza do mal c a classifica<;ao dos
doentes, da qual teriani sido deduzidos seus dispositivos terapeuticos — de fato
matingivcis. O psicoterapeuta passa a se pareeer mais coin um pesquisador de
laboratorio informando-se ativamente sobre uma realidade “ natural” — o s ,V,i I
procedimentos de tratamento reais e concretos invcntados pelas p o p u la te s — e
apropriando-se deles para, por sua vez. experimenta-los gramas a fabricacjao de
dispositivos especificos.
Foi o que tentamos realizar no Centro Georges Devereux. na Univer-
lidade de Paris VIII. onde uma mesrna equipe:
1) investiga eoncretamente os procedimentos locals dc tratamentos (na
A f r ic a Negra, A frica do Norte. Antilhas, ilhas francofonas do Oceano Indico...
mas tambem nos suburbios parisienses);
2) constroi dispositivos originais capazes dc por cm funcionamento as
Inpoteses sobre a eficacia dos dispositivos de tratamento.'
Tal oficio. redefinido a parti i dessas constata^oes. nao tendo mais
nenhuma razao para macaquear as atitudes da ortodoxia, afasta-se da pratica da
medicina normativa naquilo que cla tem de mais grosseiro. para sc aproximar da
parte criativa da medicina e da psicologia, geralmente a da pesquisa
fundamental.( y ) L a nowi -*>•
w f, / _F .K . Bmno Latour. comentando sua vivencia de quando participou das ^
consultas no Centro Georges Devereux. escreve: “ ...uma curiosa experiencia:
aquilo que as consultas de psicologia podem fazer. uma sessao de etnopsiquiatria ; ^
pode desfazer” .3 Latour esta se refcrindo ao que denominou de despsico-
logiza9ao que ocorre no proccsso terapeutico da consulta etnopsiquiatrica. o que ^
nomeou "trabalho scin sujeito” . Minha questao se refere ao deslocamento dessa
identidade que. segundo Latour. estaria sendo colocada nos espiritos. no exterior.
Essa perda do sujeito seria um deslocamento para uma exterioridade objetiva
concebida como uma contraposi^ao a um interior subjetivo. ou poderiamos
pensar que a estrategia clinica permite este encontro com o Fora (tcmatizado por
Blanchot, depois por Michel Foucault e por Gilles Deleuze), um Fora que
implica sempre um outro do dentro?
T.N . Foi Bruno Latour quo. durante o "cstagio" quo rcalizou no Centro
Georges Devereux. propos a idcia de uma "despsicologizapao do sujeito” por
ocasiao das sessdes do etnopsiquiatria — idcia com a qual. alias, estou
completamente de acordo.
Em primoiro lugar. nao recebemos "um paciente". mas escolhemos um
problema — seja trazido por uma pessoa. por uma familia ou uma instituigao.
As realidades sociais. quase scmpre. conduziram as pessoas para os
profissionais. todos formados dentro dos mesmos a prio n filosoficos e tecnicos.
Sogundo esses a priori, o problema se encontra dentro do sujeito e resulta do
complexidadcs inerontos a sua naturoza do suioito. O desonrolar do uma sessaona-'
de etnopsiquiatria. ao devolver a palavra aos seres invisiveis (divindades.
espiritos. demonios). ao discutir soriamonte agoes invisiveis (feitiq;aria.
maleficios. oneantamento). leva progressivamente as pessoas a se desfazerom das
mascaras psicologicas com as quais tinham se fantasiado durante as
in vestig ates precodentes.
Notamos que o fato dq. evocar os seres e as a<?oes invisiveis forgava o
pensamento do paciente a se conectar com:
a) as represonta<;6es reais desses sores:
b) os grupos 110s quais elos transitam.
A conexao entre um pretonso "dentro" (a psique) o um hipotctico "fo ra"
nao decorre dc uma mtengao (de uma estrategia) torapeutica. Ela e uma
conseqtiencia inelutavel — foi o que verificamos! — da ovoca^ao desse tipo do
seres.
Exemplos:
Discutir soriamonte com um zairense on com um congoles sobre um
' 'tltaquo do feitigaria forga-o a considerar os moios de luta contra a feitigaria — o
eles sao scmpre culturalmentc coditlcados — . leva-o a considerar o encontro com
profissionais desse tipo do luta etc
Da mesma forma, evocar com uma mac de origem arabo da A frica do
Norto a ncccssidadc da circuncisao do sou filho faz com quo naturalnionte ela
busque os locais culturais obrigatorios: ondo encontrar o circuncisador. ondo
oncontrar o carnoiro quo dove ser sacrificado. como ontrar cm relagao com a
familia quo sera naturalnionte convidada para a cerimonia etc.
I K Como o sonhor p aisa a apro\ima(;3o tcrapcutica do imivcrso
multiplo com o "pensamento branco” a partir dc sua cxpericncia?
T.N . Em materia de psicoterapia. como c facil perceber. o ' pensamento
branco” (que clianio assim na falta de uma melhor tcrminologia) contcntou-se
apcnas cm eliminar qualqucr trago dc invisiveis nao-hunianos. mas contimiou
conscrvando as principals ideias dos sistemas tradicionais. Von usar apcnas um
exemplo para iiustrar essa constatagao: ijAh- [nwi- < i - <-•<Nos sistemas tradicionais os sonlios sao cm geral:
• A materializagao dc uma comunicagao entre os Inunanos c um on outro
tipo dc invisiveis nao-humanos (divindades. espiritos. moitos. feiticciros. destmo
etc.) Esta comunicagao. incompreensivel para o profano que cm gcral o ^
sonhador e. scmpre ncccssita da intervengao de um prot'issional. Um sonlio c. >,
portanto. o sinal de uma conexao exigindo sua explicagao. por medo de que ela
possa continuar agmdo dc outra maneira. cventualmente negativa para a pessoa.
sua familia. uni outro membro de scu grupo oil mcsmo o grupo inteiro.
• O sinal de uma agao comegada cm plena noite que continua durante o
dia. Assim. nunca se trata de uma simples informagao. mas de um sinal
mdicando que ccrto processo foi desencadeado. Esse tipo de agao pode gerar uma
divida contraida com os invisiveis. •.;/>.(/,t «,■> b-A teoria psicanalitica do sonho restringiu-se cm fazcr desaparecer os
invisiveis. O sonho tornou-se cntao a materializagao de uma comunicagao entre
dois fragmentos dc sua pessoa: 'scu psiquismo iiieonsciente e seu psiquismo
consciente” . ” seu id e seu ego” , "o investimento inconsciente dc scu corpo e seu
ego" etc. Tambcm aqui o soiiho pode indicar a existencia dc 11111 processo. e
Freud assinala varias vezes que certas doengas somaticas 011 mcsmo
psiquiatricas podcm anunciar sua chegada 110 sonho.
Trata-se. portanto. d,o niesmo tipo de processo postulado pelos sistemas
tradicionais. apcnas privados dc seus invisiveis nao-humanos. Mas as
conseqiiencias tecnicas sao radicalmente diferentes. Se nao cxisteni nao-
humanos. a interpretagao de 11111 sonho ira scmpre produzir a de-soeializagao do
sonhador que sera rcmctido a sens proprios descjos (sc.xuais. de ambigao.
assassinos) e scmpre contra scu grupo. Ao passo que uma interpretagao do sonho
cm fungao dos invisiveis seniprc conduz a pessoa a praticas ntuais que a
vincularao mais ao grupo ao qual pertence. Entre as maos de 11111 curandeiro. 11111
sonho forga a solidariedade; entre as maos dc um psicologo, c um convitc para
que a pessoa sc transforme cm um clctron livrc.
F .K . Sobre a 110930 de desordem o senlior escreveu: "Escolhi volunta-
riamente tais exemplos para mostrar que nossos recortes entre medicina do corpo
e medicina da alma so tern interesse por contribuirem para a construgao de uma
disciplina. Prefiro de longe a nogao de ‘ desordem’ que deixa abertas as
possibilidades de se inscrever o sofrimento do doente nos diversos paradigmas” .
o senlior explica: "Considerando que qualquer fenomeno que se vincule ao
'tratamento' pode entrar 11a categoria que defini grosseiramente sob o nome
'desordem'. podcmos agora enunciar tres constatagoes que, acredito. estao
doravantc claramente estabelecidas:
a) O principio scgundo o qual todo acontecimento produzindo desordem
revela uma intengao invisivel, na verdade um principio lecnico.
b) Ele se destina a gerar agoes. O que implica que tal principio nao e
uma teoria falsa (uma crenga'. uma intuigao empirica, uma proto-teoria
cientifica), mas uma especie de interface entre o pensamento e o niundo. Ele e 1 im instrumento.
c) Ora, o instrumento nao e o pensamento! Este se encontra oculto.
condensado nas maneiras de fazcr das agoes tecnicas assim mobilizadas e
nunca. apesar das aparcncias, nos enunciados que soam tao esotericos.
Portanto. a aplicagao desse principio desencadeia sempre seqiiencias
complexas associando quatro elementos: a constatagao da desordem: 0 postulado
da intengao do invisivel; a explicagao desta intengao; a seqiiencia mais
importante, e muitas vezes a unica seqiiencia visivel ao observador: a resposta
adcquada. sempre dirigida ao invisivel'’.4
E 0 senlior escreve mais adiante: “ A adivinhagao nao tem por missao
trazer a luz um invisivel oculto; sua fun quo e inslaitrcir o htgar mcsmo do
invisivel. Se eu realizo uma adivinhagao, a tecnica que mobilizo prcssupoe a
existencia dc um universo outro".'
Neste sentido, se entendi bem. 0 invisivel nao seria nem exterior ao
sujeito, nem interior.
Poderia nos explicar um pouco mais a conscqiiencia de se trabalhar com
a nogao de desordem e como ela opera na pratica? Como podcriamos opcrar com
esta nogao nas situagoes clinicas cm geral. pensando. por exemplo. nos delirios
psicotieos, ou nas cxprcssOes somaticas t|iic freqiicntcmcntc tom inotivado as
queixas dos pacientes? 1 ^ ^i r ,
* U * dc*T.N . Como sua questao lembra, o invisivel nao e nem "'exterior" (uma I
"crenga” ) nem “ interior” (um “ fantasma” ou um “ delirio” ). mas uma cspecie de
postulado tccnico. Se admitimos essa prcmissa. o trabalho clinico torna-sc cntao ^ I*
ao mesnio tempo muito preciso e muito complcxo Prcciso. de fato. por im p lic a r ^
os mais amplos conhecimentos sobre a naturcza dos invisiveis. sua ccologia. seus W '
modos de manifestagao. seus gostos e as negociagoes que podem admit ir Entao.
nao se trata mais para o terapeuta de dcmonstrar suas capacidades de empatia 011
de improvisagao, mas seus conhecimentos tecnicos concretos. O trabalho e
tambem muito mais complcxo por exigir uma leitura atenta dos sinais que serao
buscados nao exclusivamente nas lnformagoes fornccidas pclos doentes. mas
tambem cm todos os sentidos: sobre a casa, os parcntes, o corpo do doente, sua
respiragao. seu modo de falar etc. v < ( : 'UD
Quando um paciente delira, e prcciso vir sc interpor entre a pessoa e os
invisiveis quc ela percebe. ate se tornar seu interlocutor exclusivo. Pois tratar de
um delirante tambem significa pensar cm seu pos-delirio. O que, por exemplo,
pode aconteccr com alguem sobre o qual se pensou que sua maquinaria psiquica
sc avariou, mesmo provisoriamente? Como nao pensar nessa pessoa como 11111
ser deficiente? Ao passo que imagina-lo cm contato com forgas reais. c. portanto. U.I ■
como informante privilcgiado sobre um universo que nos diz respcito. a nos. j
terapeutas, libera-o e nos enriquecc. E nisso que reside o principio da agao —
mas as maneiras de po-lo cm pratica sao multiplas. Aqui. a utilizagao dos locais !c'-^
culturais e indispensavel Um terapeuta torna-se assim um tipo dc mediador entre
mundos cm conflito: lugares de cuitura desertados e familia do doente.
divindades esquecidas c universos profissionais, dramas sociais dos ciumes e da
inveja. problcmas conjugais etc: AvUr£ r ^ t. 4 ^I W, rfrrf'& Jo
F.K . Gostariamos que falasse 11111 pouco mais das considcragoes que tem
elaborado sobre os objetos ativos. E muito interessante sua idcia. onde o senlior
contrapoe a fiingao do medicamento nas sociedades nao-ocidentais como 11111
objeto ativo que permite manter c perenizar a disjungao entre sintoma e pessoa. e
a do medicamento como objeto ativo cm nossa sociedade que cria. mantem e
pereniza a jungao de sintoma e pessoa. » . I ̂ , J t<
fetM* < h t y f*
T.N. Ncsta questao vou scr rapido. pois o essencial da resposta sc
cncontra na obra citada. Direi apcnas o scguintc: um medicamento contcm a
tcoria inteira que presidiu sua formagao. Poderiamos mcsmo avaliar o cfeito da
teoria como sendo de 70%. e somente de 30% o cfeito proprio. ' transteorico".
Ora. as tcorias das socicdades tradicionais afirmam que um sintoma inmca sc
refcre apcnas a uma iinica pessoa. Ele constitui um fardo para o casal. para a
familia. a linhagem. a aldcia. Nao c. portanto. surpreendentc que o medicamento
venha reforgar o impacto do dispositivo tcrapeutico. de alguma mancira
duplicando seu cfeito. rcpetindo os principios contidos na tcoria. Assim . os
medicamentos tradicionais nao sao absolutamentc "proto-mcdicamcntos". mas
objetos ativos por inteiro. % f j j iU , | f ~f 0 '* ■ - "
F.K . Se para o senlior a pratica clinica consiste cm :
a) permitir que sc saia dc um estado de paralisagao (a docnga) e que
sejam buscados novos modos dc existencia;
b) trabalhar com o invisivel;
c) criar sistemas terapeuticos, sistemas conceituais que lcvcm cm con-
sidcragao a singularidadc da situagao cm suas confluencias, ou ate misturar
sistemas irredutiveis entre si.
Entao: por que trabalhar com o "pensamento negro” e com o
'pensamento branco” como dois blocos distintos? Nao tcriamos o preto-branco.
o branco-preto. o mestizo, o "caboclo” cm todos nos? E a questao. assim. nao
scria encontrar os meios de sairmos dc uma certa identidadc paralisante (tanto
teorica quanto pratica. propria da cicncia racional. cm busca da vcrdade)? Sc a
idcia anterior fizer sentido. havcria diferenga entre o etnopsiquiatra Tobic Nathan
e o psicanalista Tobie Nathan?
T N. Em primeiro lugar quero dizer que reconhcgo aqui uma questao
brasiTeira. pois tendo visitado um pouco scu tao belo pais, fiquci surpreso com a
vigorosa ideologia da mistura cultural predominante entre voces. E claro que nao
cstou esqueccndo as singularidades dc sua historia c a urgentc nccessidade de
integral- a vida economica e social uma enorme populagao rcsultante de todos os
tipos de misturas. M as devo dizcr que diferencio radicalmcnte mestigagem e
crioulismo. Nao e preciso ser um grande sabio para pcrccbcr que os homens se
16
mU ,1 .... .. v** ' \ * v
misturam todo 0 tempo. ftito que os estudos de genetica confimiaram
dcfinitivainente. Mas pareco-me que citibora as p o p u la te s sc misturem
inccssantejrtcntes os douses fazem-no muito pouco. E caracteristica dos lugarcs
cnoulos precisamente acollior no interior da mesma populagao iocais ondo se
pode distinguir novamente os douses das origons. Assim. tive a oportunidade do
trabalhar/durante algum tempo na ilha da Reuniao. quo c tambem um grande
"dopartamento de alom-mar'V’ o vou relatar um pouco do que vi Os habitantes
dossa ilha provem dos quatro cantos do nuindo. tendo la cliegado cm ondas
sueossivas do povoamonto. Podomos cncontrar descendontes dos colonos
franceses. dos escravos trazidos da Africa, dos opcrarios agricolas quo vioram do
Sul da India, comerciantes chinosos. emigrantes da vizinha M adagascar ctc.
Embora seja possivol oncontrar todas as cores dc pclc. dc ollios. dc tipos dc
cabclo quo cxistcm cm nosso planeta. os dispositivos terapeuticos permanccem
praticamonto os mcsmos quo os pratieados nos paiscs dc origcm Estranho!
Quando constatei isso. senti-mo subitamcnte tornado por uma perspectiva
vortiginosa. Os habitantes da ilha toriam entao esquccido qualquer conhocimonto
mais profundo de sua etnia original, abandonando a custodia do sua identidade a
seus terapoutas. C'aso isso fosse vcrdade. a torapia nao soria ncste caso apenas
um simples tratamento num curandciro. mas um vcrdadeiro periplo. onde so pula
do 'adivinho' a "ad ivinho '. do "curandeiro*’ a "curandciro" ate sc chegar a um
conhocimonto vivido das origons. E todo periplo terapeutico torminaria como
uma verdadeira iniciagao no ultimo curandoiro. E por qual razao uma populagao
teria de alguma forma "estocado " todos os sous invisiveis nos profissionais dc
Ctira? Sistcma cngonhoso. que na verdade permitc que um homcm nao pertenga
110 mcsmo ancostral quo seu pai ou scu irmao. Perfeitamcntc comproensivol num
pais onde um loiro do ollios azuis pode tor 11111 irmao. do mesmo pai c mac. com
pole negra e cabelos crcspos. Sistcma do combate. tambcm de resistcncia a
USCravidao c dcpois a exploragao selvagoinente capitalista dos fazendciros dc
cnna-de-agiicar. Os oscravagistas — alias, assim como os capitalistas — cxigem
Nempre homens dcsctnicizados. selvagens. para poder impodir qualquer rcvolta.
Pois as etnias tom 0 detcstavcl liabito dc reagnipar suas tropas 0111 torno de sous
aiKCStrais. de lutar por suas linguas. sous costumes, sous rituais. enfim. dc
constituir um grupo dianto dos colonos. Atraves do sou sistema. os habitantes da
I Ilia da Reuniao podiam do 11111 lado mostrar-sc como desculturalizados. como se
cuItliralniente nao fosscm ningucm. despistando assim a deseonfianga do seusII <&( <f (< A ~ ®
scnliores, e dc outro rcencontrar sua identidade no scgrcdo dc seus misteriosos
rituais terapeuticos.
Nao sei, na verdade, se um processo de mesma naturcza trabalha as
profundezas do Brasil, mas tendo participado de alguns rituais dc candomblc na
Bahia e no Rio. notei que os pais-de-santo tinham o habito de reunir no mesmo
terreiro divindades provenientes de multiplos horizontcs, ofcrecendo assim a seus
adeptos a possibilidade de ■escolher'’ entre divindades beni diferentes. Nao vejo
ai, de forma alguma, o sinal de uma mistura, mas, ao contrario. de um esforgo no
sentido de sempre diferenciar as origens.
Penso que um terapeuta sempre tem interesse cm distinguir os mundos
- e mesmo coloca-los em eonflito — para ofereccr a seus pacientes. que nunca
dcixam dc mistura-los, um lugar onde encontrar as diferengas dos grupos
originarios.
Livros do autor:
- Sexualite ideologique et nevrose. Essai de clinique ethnopsychiatnque.
Grenoble, Editions de la Pensee Sauvage, 1977.
- La fo lie des autres. Traite d'ethnopsychiatrie clinique. Paris, Dunod. Bordas,
1986.
- Le sperme du dictble. Paris. PUF. 1988.
- Fier de n 'avoir ni pays, ni amis, quelle sottise c 'etait. Principes d 'ethnopsy-
chiatrie, Grenoble, Editions La Pensee Sauvage, 1993.
- L 'Influence qui guerit, Paris, Editions Odile Jacob, 1994.
- Psychanalyse Pafenne, Paris, Editions Odile Jacob. 1995.
Em co-autoria:
-Tobic Nathan e Isabelle Stengcrs: Medecins et sorciers - Manifeste pour une psychopathologie scientifique - Le medecin et le charlatan. Collection Les
Empecheurs de Penser en Rond, Synthelabo, 1995.
-Tobie Nathan et Lucien Hounkpatin: La Parole de la foret initiate. Paris.
Editions Odile Jacob. 1996.
Notas
1. Entrevista claborada com base na lcitura do livro Medicins et sorciers. Manifeste pour une psichopatologie e scientifique.
18
2. Par;) a descrigilo prccisa dos dispositivos Iccnicos. cf. a cxposigilo cm T N athan,Fier de n ’avoir ni pays, ni amis, quelle solti.se c'etait' Principes d'ethnopsychiatrie, Grenoble, La Pensee Sauvage. 1993.
i Bruno Latour assistiu e participou, durante tres mcscs. das consultas ctnopsiquialricas dc Tobie Nathan 110 Centro Georges Devereux. 0 livro citado foi cscrito a partir do scminario que realizou, a pedido de Isabelle Stengers, para explicar 0 ' cfeito dc tal expcriencia sobre esta antropologia dos modernos” . que Bnino Latour vein definindo nos ultimos anos (N. Entrevistadora), escreveu 0 livro Petite reflexion sur le culte moderne des dieux Foitiches. (Colegao Les Einpecheurs dc Penser en Rond, Synthebalo, 1996).
4. Nathan, Tobie e Stengers, Isabelle. Medecins et .sorciers, Manifeste pour une psv- chopathologie scientifique et Le rnedecin et le charlatan, Paris, Collection Les Einpecheurs dc Penser cn Rond. 1995. pp. 58-9.
5. Idem, p. 68.
6. "Departamentos dc alem-mar” e a designagao usada para as antigas colonias fran- cesas que passaram a integrar o Estado frances. (N T.)