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2017 TEORIA DA LITERATURA I Prof. a Elaine Hoffmann Prof. Tiago Hermano Breunig

eoriA DA LiterAturA i - UNIASSELVI

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2017

teoriA DA LiterAturA i

Prof.a Elaine Hoff mannProf. Tiago Hermano Breunig

Page 2: eoriA DA LiterAturA i - UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2017

Elaboração:

Profa. Elaine Hoff mann

Prof. Tiago Hermano Breunig

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfi ca elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

372.64 H699t Hoffmann, Elaine

Teoria da literatua I / Elaine Hoffmann; Tiago Hermano

Breunig. Indaial : UNIASSELVI, 2017. 232 p. : il. ISBN 978-85-515-0104-7

1.Literatura – Estudo e Ensino. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

Impresso por:

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III

ApresentAção

Caros acadêmicos, a disciplina de Teoria da Literatura I leva-nos a um olhar mais aguçado sobre o material escrito. Quando somos instigados a responder o que é um texto literário, geralmente a primeira resposta que nos vem à mente é a de que a literatura deve demonstrar o belo, deve ser valorizada por suas características estéticas. Essa resposta é verdadeira, mas, como vamos estudar, há ainda muitas outras funções exercidas por essa nobre arte.

Neste momento, quando deixamos de ser apenas apreciadores para sermos estudiosos da literatura, cabe-nos descobrir a fórmula da beleza e senti-la ainda mais bela por perceber as sutilezas das quais ela é feita.

Desde já, advertimos que analisar a literatura está longe da construção de opiniões comuns, há diferentes perspectivas assumidas por grandes estudiosos da área. Como você irá perceber, a confusão já começa com a pergunta: o que é literatura? As respostas são muitas, talvez nenhuma errônea, mas também nenhuma completa ou definitiva, por isso, temos conceitos e não definições.

Quando estudamos a literatura, desmontamos suas peças e procuramos entender como tudo se encaixa, e a dimensão de sua beleza se eleva. Quando fazemos isso nos transportamos a outro mundo. Somos Alice através do espelho!

Bem-vindos!

Prof.a Elaine HoffmannProf. Tiago Hermano Breunig

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IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

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V

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VI

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VII

UNIDADE 1 – LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? ........................................................................ 1

TÓPICO 1 – LITERATURA E SEUS CONCEITOS ........................................................................... 31 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 32 COMO A LITERATURA ACONTECE .............................................................................................. 3RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 9AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 10

TÓPICO 2 – NOÇÕES DE ARTE E CULTURA.................................................................................. 111 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 112 A ARTE .................................................................................................................................................... 113 A CULTURA ........................................................................................................................................... 14RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 16AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 17

TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES DA LITERATURA ................................................................................. 191 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 192 IDENTIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DA LITERATURA ............................................................... 19

2.1 FUNÇÃO ESTÉTICA ...................................................................................................................... 202.2 FUNÇÃO COGNITIVA ................................................................................................................... 222.3 FUNÇÃO POLÍTICO-SOCIAL OU ENGAJADA ....................................................................... 232.4 FUNÇÃO PRAGMÁTICA .............................................................................................................. 262.5 FUNÇÃO CATÁRTICA .................................................................................................................. 272.6 FUNÇÃO LÚDICA .......................................................................................................................... 29

RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 30AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 31

TÓPICO 4 – O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO ......................................................... 351 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 352 A FORMAÇÃO DO CÂNONE ........................................................................................................... 363 AFINAL, O QUE É UM CLÁSSICO? ................................................................................................ 37RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 40AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 41

TÓPICO 5 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO .................................................. 431 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 432 GÊNERO LÍRICO (POESIA)............................................................................................................... 433 GÊNERO NARRATIVO ...................................................................................................................... 494 GÊNERO DRAMÁTICO ..................................................................................................................... 57LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 63RESUMO DO TÓPICO 5........................................................................................................................ 67AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 69

sumário

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VIII

UNIDADE 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO ..................................... 71

TÓPICO 1 – A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS ................................................................. 731 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 732 A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS: CONTEXTUALIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO ........................................................................................................................ 73

2.1 A APLICABILIDADE DA TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS HOJE ............................. 81RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 87AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 88

TÓPICO 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS ......................................................................................... 891 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 892 O GÊNERO DRAMÁTICO E O GÊNERO LÍRICO ....................................................................... 893 O TEXTO DRAMÁTICO: ORIGEM E EVOLUÇÃO ..................................................................... 96

3.1 BREVE PANORAMA DO TEATRO AO LONGO DOS TEMPOS ............................................ 963.2 OS TIPOS DE TEATRO ................................................................................................................... 105

4 O TEXTO POÉTICO: CARACTERÍSTICAS ................................................................................... 1064.1 A ESTRUTURA DO POEMA ......................................................................................................... 1124.2 O VERSO .......................................................................................................................................... 116

4.2.1 A rima ....................................................................................................................................... 1184.2.2 Metrificação e escansão ......................................................................................................... 1204.2.3 Poemas: formas fixas e visuais .............................................................................................. 1224.2.4 Método de análise e interpretação de poemas ................................................................... 130

RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 137AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 138

TÓPICO 3 – LITERATURA DE CORDEL ........................................................................................... 1391 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1392 LITERATURA DE CORDEL ............................................................................................................... 139RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 144AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 145

UNIDADE 3 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO......................................... 147

TÓPICO 1 – O GÊNERO ÉPICO ........................................................................................................... 1491 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1492 O GÊNERO NARRATIVO E AS RELAÇÕES DA LITERATURA COM OUTRAS ÁREAS DO CONHECIMENTO ....................................................................................................................... 150

2.1 GÊNERO ÉPICO .............................................................................................................................. 1542.1.1 A origem do gênero épico ..................................................................................................... 1542.1.2 Características do gênero épico ............................................................................................ 1562.1.3 A trajetória das epopeias ....................................................................................................... 163

RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 175AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 176

TÓPICO 2 – O GÊNERO NARRATIVO .............................................................................................. 1771 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1772 O GÊNERO NARRATIVO .................................................................................................................. 178

2.1 CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO NARRATIVO .................................................................... 1802.2 OS TIPOS DE NARRATIVAS ......................................................................................................... 1822.3 OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NARRATIVA: ENREDO, PERSONAGEM, TEMPO, ESPAÇO E NARRADOR ................................................................................................ 186

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IX

RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................205AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................206

TÓPICO 3 – LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE .....2091 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................2092 LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE .........................210LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................216RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................225AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................226

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................227

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X

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UNIDADE 1

LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade, você será capaz de:

• analisar criticamente os conceitos de literatura e os meios de onde eles surgem;

• compreender algumas noções de arte e cultura e suas implicâncias na construção literária;

• identificar as diferentes funções da literatura;

• reconhecer as condições de produção dos cânones/clássicos e suas implicações sócio-temporais;

• distinguir a estrutura e semântica dos diferentes gêneros literários.

Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles você encontrará autoatividades que auxiliarão no seu aprendizado.

TÓPICO 1 – LITERATURA E SEUS CONCEITOS

TÓPICO 2 – NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES DA LITERATURA

TÓPICO 4 – O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

TÓPICO 5 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

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TÓPICO 1UNIDADE 1

LITERATURA E SEUS CONCEITOS

1 INTRODUÇÃO

“Só se pode chamar ciência ao conjunto de receitas que funcionam sempre. Todo o resto é literatura”. Paul Valéry

Conceituar o que é Literatura não é tarefa fácil. Desse termo advêm conceitos que estão implicados por questões sociais e históricas. Tal conceito pode ser bastante amplo e abarca os conhecimentos dos indivíduos sobre vários ramos do saber (matemática, filosofia, história...). Podemos observar que o uso da palavra literatura de forma genérica, abrangendo escritos de várias áreas, ainda é bastante corrente, fala-se em literatura do direito, da medicina, entre outras.

A ideia de literatura como uma arte específica, tal como a música, a pintura, a arquitetura etc., historicamente, ainda é recente. Atualmente, incorpora o sentido de fenômeno estético e produção artística. Surge, então, um entendimento da palavra literatura como referente a textos imaginativos e criativos em oposição aos textos de caráter científico.

Nesse viés, poderíamos definir literatura como a expressão da criatividade humana. Não há para ela fórmula exata, é fruto da imaginação, ainda que possa ser baseada na realidade.

2 COMO A LITERATURA ACONTECE

A grande diferença entre ciência e literatura é que a primeira exige um grau elevado de racionalidade e busca a comprovação dos fenômenos da natureza, do funcionamento do corpo humano ou da sociedade etc. Já a literatura pode basear-se em fenômenos da natureza e da sociedade, abre espaço para a subjetividade, para a criação do impossível dentro dos limites do racional, criando mundos paralelos ao que conhecemos.

No excerto a seguir, Alice estava em um dia normal como tantos outros, na chatice da rotina. Por certo, não teríamos motivação para ler sobre uma tarde rotineira da vida real, mas é aí que aparecem os elementos mágicos. Na história, Alice é um ser real ou vê-se como tal, mas que descobre um mundo fantástico, criativo. Numa compreensão de literatura como textos de aspecto imaginativo, este certamente é um texto literário. Baseia-se em aspectos da realidade, mas transcende-os, levando o leitor a conhecer um mundo diferente.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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Assim, meditava com seus botões (tanto quanto podia, porque o calor aquele dia era tal que ela se sentia sonolenta e entorpecida) se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforço de levantar-se e colher as margaridas, quando de repente um coelho branco com olhos rosados passou correndo perto dela.

Não havia nada de tão notável nisso; nem Alice achou tão estranho ouvir o Coelho murmurar para si mesmo, “Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Estou muito atrasado!” (quando pensou nisso, bem mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter estranhado; porém, naquele momento, tudo lhe pareceu perfeitamente natural).

Mas quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, deu uma olhada nele e acelerou o passo, Alice ergueu-se, porque lhe passou pela cabeça que nunca em sua vida tinha visto um coelho de colete e muito menos com relógio dentro do bolso. Então, ardendo de curiosidade, ela correu atrás dele campo afora, chegando justamente a tempo de vê-lo sumir numa grande toca sob a cerca.

No instante seguinte, Alice entrou na toca atrás dele, sem ao menos pensar em como é que iria sair dali depois.

A toca do coelho, no começo, alongava-se como um túnel, mas de repente abria-se como um poço, tão de repente que Alice não teve um segundo sequer para pensar em parar, antes de se ver caindo no que parecia ser um buraco muito fundo. (CARROL, 2000, p. 19)

Há outras correntes que compreendem a literatura como o processo de interação entre obra, autor e receptor/leitor. O que é ou não literário nessa perspectiva se definiria por meio da recepção. Dessa forma, o texto já não diz tudo, nem seu autor é o dono de um sentido para ele, o leitor tem sido considerado peça fundamental no processo de leitura. Assim, o conceito do que é ou não é literário é bastante subjetivo, certo? Como descreve Orlandi (1993, p. 9), “há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Em termos que chamamos de ‘formações imaginárias’”. A esse fenômeno, Marques (2003) chama “leitor imaginário”. Vamos pensar juntos. Se, no ato da escrita, existe na mente do criador um leitor virtual, que interfere na construção do texto, seria este uma espécie também de autor? Barthes (1988, p. 68) menciona que “todo texto é escrito eternamente aqui e agora”. Compreende-se por essa afirmação uma concepção do conceito de literatura como produto da recepção, ou seja, o texto se reconstrói eternamente no processo dialógico. Cada leitura é implicada por processos sociais e históricos que fazem parte da formação de quem escreve e do leitor em questão.

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TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS

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Machado de Assis demonstra de maneira clara e consciente em seu trabalho essa relação com o seu interlocutor, estabelecendo com o leitor um diálogo aberto. Observe: “Morri de pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e, todavia, é verdade. Vou expor-lhe sumariamente caso”.

NOTA

Quanto à citação acima, a mesma foi retirada de e-book kindle e não dispõe de numeração de páginas e editora.

Para demonstrar a complexidade da ideia de autoria que foi surgindo, o filósofo Michel Foucault demonstrava-se bastante liberal quanto a questões de apropriação das palavras. Segundo Cascais e Miranda (1992, p. 6), para ele, “a única solução, a única lei sobre a edição, a única lei sobre o livro que gostaria de ver instaurada seria a da proibição de utilizar duas vezes o nome de autor, para que cada livro seja lido por si mesmo”. O autor promovia aulas no Collège de France e nunca se importou que as mesmas fossem gravadas, o que é condizente com o seu pensamento de não apropriação das ideias.

Ironicamente, logo após a sua morte, e contradizendo seus princípios, as aulas outrora gravadas foram publicadas sob seu nome, o que certamente garante a elas um valor simbólico dado pelo renome do filósofo. Ao mesmo tempo em que, nessa perspectiva da recepção, seria o leitor quem definiria as melhores obras literárias, está ele também sujeito às leis de mercado, às grifes de que fala Bourdieu em “A Produção da Crença”.

A definição do que é ou não literatura varia de acordo com o tempo e o espaço e, conforme Zappone e Wielewicki (2014), está implicada nas coerções das instituições e do mercado. Assim, a literatura é definida por uma comunidade (professores universitários, críticos literários, mercado editorial, escola) que determina os critérios para se reconhecer o texto como literário. As autoras ainda alertam que instituições como a escola, as universidades e a crítica especializada, além de formarem uma comunidade que define critérios para reconhecer o texto como literário, definem também as leituras possíveis para os textos literários, ou seja, formam uma comunidade interpretativa. É a partir das instituições escolares e acadêmicas que, de maneira geral, adquirimos uma consciência sobre quais obras são consideradas literatura e quais não o são. São as instituições que nos inculcam noções sobre o que considerar literatura e o que considerar boa ou má literatura. O interessante é que a própria literatura pode demonstrar essa relação das instituições com a palavra escrita. Exemplo disso está no excerto de um conto intitulado “Um Encontro”, de James Joyce, publicado pela primeira vez em 1914:

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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Certo dia, o padre Butler nos examinava sobre quatro páginas de história romana e o desajeitado Leo Dillon foi surpreendido com um exemplar do The Halpenny Marvel. — Esta página ou esta outra? Agora, Dillon, vamos! O dia mal... Vamos! Mal amanhecera o dia... Estudou isto? Que tem aí no bolso? Nossos corações dispararam quando Leo Dillon entregou-lhe o folhetim e nós todos assumimos um ar inocente. Padre Butler virou as páginas, franzindo o cenho. — Que porcaria é esta? — perguntou ele. — O Chefe Apache! É isto que você lê ao invés de estudar história romana? Que eu não encontre mais esta maldita droga no colégio. O indivíduo que escreveu isto, suponho, é um desses pobres-diabos que escrevem para ter com que pagar sua bebida. Surpreende-me que um menino como você, educado, leia tais tolices. Compreenderia se se tratasse de... de alunos da Escola Nacional (JOYCE, 2003, p. 18).

No excerto acima fica claro que, para o padre há textos que são considerados literatura e outros que não o são. Ao entendermos a literatura como “formações imaginárias”, Orlandi (1993) observa que é necessário compreender que estamos em um terreno movediço, visto que, bem como observa Barthes (1988), o texto é escrito sempre aqui e agora. Junto aos conceitos que podemos depreender acerca do que é literatura, observamos, também, vários pré-conceitos que estão imbricados pelos costumes sociais e temporais. Afinal, como observamos no excerto do conto de James Joyce, há textos que historicamente e dentro de um espaço determinado não são considerados. Julgando-se, nesse exemplo, não só a obra quanto o seu escritor e leitor.

Como observa Hoffmann (2014), muitas vezes, o único conceito capaz de distinguir um clássico da literatura de outras obras é a efemeridade. Considera-se, nesse aspecto, o clássico como a literatura aceita e propagada por “classes/instituições”, sejam elas as escolas, sejam as academias, que fazem valer o nome de alguns autores e obras ao longo do tempo.

Nesse aspecto, Pierre Bourdieu (2004) aponta que a literatura, bem como outros bens de consumo, adquire uma grife, um conceito ou moda que são suscetíveis conforme o tempo e os anseios do mercado. Daí as obras que vendem milhares de exemplares (muita gente lendo a mesma coisa), o que gera um capital tanto financeiro para as editoras quanto um capital social, que serve de espaço para a discussão entre membros detentores das mesmas leituras, mas são substituídas constantemente por outras novas obras. Porém, é complicado pensar que, por si só, os denominados clássicos estão além das leis de consumo. Eles continuam porque existem instituições que mantêm o seu status ao longo dos tempos, na condição de textos de estudo obrigatório. Seu consumo não se dá em quantidade tão grande quando as obras que chamamos best-sellers, mas é permanente.

“Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, e “A Mão e a Luva”, de Machado de Assis, hoje são considerados grandes ícones da literatura, mas surgiram como folhetins de entretenimento cotidiano e numa linguagem sempre preocupada em interagir com o seu leitor. Esses, geralmente membros de uma elite burguesa, portanto difundiam valores de acordo com esse público.

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TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS

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Nessa perspectiva, compreende-se que a definição entre o que é ou não literatura entra e sai de moda conforme a estação, ou seja, é efêmero, afinal torna-se difícil estabelecer critérios imutáveis aplicados a todas as obras. Já as obras tidas como clássicas, podemos compará-las ao “pretinho básico”, visto que a permanência de sua elegância está garantida ao longo dos tempos pelos críticos e pelas instituições.

Compreendemos aqui que a literatura como arte é capaz de levar o homem a vivenciar experiências e emoções, aquela capaz de emocionar ou mesmo provocar o seu leitor, ou seja, deverá existir uma identificação entre a obra e o seu leitor. Quando isso não acontece entre a obra literária e os seus críticos, possivelmente ela será desclassificada, como observamos no excerto de James Joyce, anteriormente citado. Assim, a definição de literatura passa pelo crivo: é arte para quem?

Dessa forma, o escritor deve estabelecer um diálogo estético e crítico com a realidade, mas deve também ser um criador de mundos imaginários, trazendo à tona os sonhos e frustrações das pessoas do seu tempo, levando-as a uma produção de sentidos do texto das formas mais diversas, indo além das linhas, do dito explícito, fazendo conexões entre arte e realidade.

Para encerrar este tópico, podemos concluir que a literatura como arte é um clássico, ou seja, aquela que permanece na memória com o passar do tempo. No entanto, Ítalo Calvino (2002, p. 10) aborda que “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. Nesse viés, podemos apontar ainda que aquilo que é literatura pode ser um consenso, mas também cada um de nós pode ter aquelas obras que consideramos literatura de forma individual, à revelia do senso comum. Como vimos, há certa dificuldade em distinguir a literatura de conceitos valorativos.

NOTA

Mimetizando-se tem sentido de: adaptando-se à mente como se sempre estivesse ali.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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A literatura faz parte do produto geral do trabalho humano, isto é, da cultura. E a cultura de um povo são suas realizações, em diversos sentidos, como as ciências e as artes. É um conjunto socialmente herdado, que de certo modo determina a vida do indivíduo (SAMUEL,1985, p. 7).

São as relações humanas que formam nossa cultura, é através do contato com o outro que nos transformamos naquilo que somos, na maneira como agimos, como construímos nossas crenças, definimos características de linguagem, modo de vestir etc.

Consideramos que todas as criações humanas que visam expressar o mundo de modo sensível, através de recursos das artes plásticas, da linguística, da sonoridade, todas essas formas de exprimir emoções e percepções são arte. É pela arte que expressamos a nossa cultura. Por isso, estudar e compreender a arte e a cultura é um exercício de autocompreensão.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A princípio, o termo literatura abarca o conteúdo das mais variadas áreas: direito, astronomia, medicina etc. Com o passar do tempo surge o conceito de literatura como expressão artística da oralidade e da escrita.

• A literatura distingue-se da ciência, apesar de que, como ela, pode basear-se em fenômenos naturais ou sociais, transcende os limites da realidade/racionalidade, acrescentando criativamente à ficção e à fantasia.

• Algumas correntes consideram a literatura como o processo interativo entre autor, texto e leitor, compreendendo que o sentido não está pronto no texto imóvel, mas constrói-se dialogicamente.

• Compreender o leitor como construtor de sentidos remete-nos à teoria da morte do autor, defendida por Roland Barthes, já que os sentidos do texto, nessa perspectiva, estariam sendo construídos sempre e continuamente pelo ato da leitura.

• O conceito do que é literatura varia de acordo com o tempo e o espaço e qualquer tentativa de consenso tende a ser frustrada.

• Os conceitos que aprendemos sobre literatura normalmente são construídos por instituições acadêmicas e críticos da área. Porém, existe um conflito entre o que se considera boa literatura pelas instituições e o que se considera boa literatura sob a ótica do consumidor dos produtos editoriais contemporâneos, especialmente os best-sellers.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Leia o texto a seguir:

Sabemos que o reino das palavras é farto. Elas brotam de nosso pensamento de maneira natural, não temos a preocupação de elaborar o que dizemos ou até mesmo escrevemos. As palavras, contudo, podem ultrapassar seus limites de significação. Podendo, assim, conquistar novos espaços e passar novas possibilidades de perceber a realidade. O caminho que a literatura percorre é este. O artista sente, escolhe e manipula as palavras, as organiza para que produzam um efeito que vá além da sua significação objetiva, procurando aproximá-las do imaginário (DANTAS, 2017).

Com base nesse texto, podemos afirmar que:

a) ( ) A literatura é pautada sempre na realidade.b) ( ) No texto literário, o sentido – a interpretação construída –, diferentemente

dos textos não literários, é subjetiva, conta com a imaginação do escritor e leitor.

c) ( ) O texto literário afasta-se da realidade, não busca nela inspiração, pois assim seria tomado por simplório.

d) ( ) O texto literário geralmente tem caráter objetivo e sai do pensamento do seu criador de forma espontânea, sem uma preocupação com a forma de sua elaboração.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Podemos entender cultura como o cultivo da mente humana e as práticas que dela advêm. Estas estão ligadas à sociedade em que se insere e sua história. O termo culturas, no plural, refere-se ao fato de que em diferentes espaços os indivíduos desenvolvem culturas singulares, o que as distingue das demais. Dessa forma, a identidade de cada indivíduo se desenvolve em relação à cultura a que está exposto e às suas experiências particulares.

A literatura, bem como outras artes, está implicada pela cultura e esta é capaz de criar mundos, no plural. Ao falar de arte não há como dissociá-la da cultura na qual ela nasce. Porém, a cultura não é estática, visto que, com o tempo mudam-se os valores, os costumes, a maneira que cada sociedade tem de ver o mundo e de organizar a vida.

Assim também a arte há de renovar-se constantemente e, apesar de nascida dentro de cultura específica, que por sua vez dialoga com outras culturas, é produto do pensamento do artista, que tem uma identidade própria, tornando cada obra de arte singular.

A arte representa a sociedade e a cultura, expressa maneiras de contemplar o mundo, mas o recria de acordo com a forma de expressar de seu criador. A arte, antes de tudo, está ligada à estética, à contemplação, mas muitas vezes mostra-se crítica, subversiva e desafiadora, trazendo-nos o desafio nem sempre tranquilo de ver e pensar além.

2 A ARTE

"A ciência descreve as coisas como são; a arte como são sentidas, como se sente que são". Fernando Pessoa

A palavra arte deriva do latim ars ou artis, que significa maneira de ser ou de agir, habilidade. Na cultura greco-romana possuía o sentido de ofício. Nesse aspecto, a arte está ligada ao fazer, construir manualmente. A ela também se atribui o sentido de conhecimento, visão ou contemplação. Nesse sentido, não se coloca como arte apenas o aspecto exterior, mas um sentido próprio de visão da realidade.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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Compreende-se, assim, a arte como o espaço de fazer, de conceber o conhecimento e produzir uma visão possível, mas não única. Valores estéticos, criação e atividades humanas estão implicados em determinados períodos históricos, diferentes culturas sociais ou mesmo interpretações individuais.

Se, por um lado pode parecer difícil dar uma explicação incontestável sobre o que é arte, por outro, se nos pedem para dar exemplos de artistas ou obras artísticas, certamente lembraremos alguns itens que de maneira geral compreendem-se como tal: o romance Dom Quixote de Cervantes, as pinturas Mona Lisa de Leonardo da Vinci ou Abaporu de Tarsila do Amaral etc. Explicar o porquê essas obras são arte é mais complexo.

Podemos entender por arte manifestações da atividade humana que nos trazem sentimentos de admiração, reflexão da realidade etc. Podemos dizer, ainda, que a interpretação da arte consiste no entendimento do que é belo, do que nos faz ver novas perspectivas da realidade. Nesse aspecto, perceber a arte seria mais interessante que a definir.

No entanto, a própria arte e seus artistas podem trazer desafios a esse entendimento e aí voltamos à pergunta: Isso é arte?! Jorge Coli (1995) exemplifica um desses desafios ao mencionar Marcel Duchamp, que leva à exposição um mictório igual a tantos outros, sem nenhuma mudança estética, levando apenas sua assinatura. Seria essa uma crítica à arte que aceita como tal quaisquer criações existentes sob a assinatura de um artista já consagrado?

FIGURA 1 - MICTÓRIO

FONTE: Marcel Duchamp (1917)

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TÓPICO 2 | NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

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O artista faz o mesmo com outros objetos do cotidiano, como rodas de bicicleta ou garrafas, incitando o público a pensar que um objeto é artístico simplesmente porque deslocado de seu ambiente cotidiano para um espaço destinado às obras de arte e aceito como tal. O que poderia ser compreendido como uma crítica daquilo que se considera cultura ou um questionamento de valores continua exposto como arte.

Sob esse viés, podemos interpretar que a atitude dos “detentores da dita alta cultura” estariam tão submissos quanto os consumidores comuns de determinada marca de roupa ou calçado, atribuindo-lhes um valor agregado pelo seu nome? Algo que já não se pode mais ser questionado? Por outro lado, tal objeto, convertido em peça de museu, torna-se peça de contemplação e provoca sentimentos específicos. Estaria aí seu estatuto de arte? Ou antiarte, que ganha outros adeptos?

Assim como a valorização de textos, pinturas, músicas etc., dá-se pelas condições de recepção da arte, existem as condições culturais, estéticas específicas de um dado espaço institucional ou social etc. Dessa forma, não conseguimos aqui definir um conceito unânime do que vem a ser arte. Se Mona Lisa é uma arte maior que Duchamp ou não. Estes são conceitos movediços e cada um tem seu espaço próprio.

Adorno (1997) explica que a arte em si não tem utilidade, logo não se pode comparar com um utensílio. Ela não pode ter uma finalidade, pois é já uma finalidade em si mesma. Só objetos são definidos não pelo que são, mas para o que servem. A arte seria o espaço da liberdade, não visa a nada além de si mesma.

O autor ressalta, ainda, que o valor de comércio de dada arte não tem relação com o valor estético, visto que o valor de uma obra de arte é inestimável. Tampouco saber se um artista ganha muito dinheiro corresponde ao valor de sua arte e sim a um valor de mercado.

Sobre isso, Pierre Bourdieu, em “A Produção da Crença” (2004), menciona que a arte tem um capital simbólico, ou seja, o valor que se atribui em termos de cultura ao detentor de uma obra; um valor social, que permite ao possuidor e consumidor de determinadas obras circular em determinados meios sociais, e o capital material, medido em dinheiro, vale mais que aquele que possui trabalhos mais valorizados pela crítica, sendo que os nomes dos autores ou obras funcionam mesmo como uma grife.

Daí possamos talvez inferir que o exemplo do mictório de Marcel Duchamp foi retirado da sua condição de objeto e não tem mais serventia, resta-lhe o papel de arte, acentuado pela assinatura (marca) do artista.

Parece-nos bastante complexa essa discussão, não? Mas temos até aqui uma boa reflexão a fazer.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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3 A CULTURA

A cultura é a própria identidade nascida na história, que ao mesmo tempo nos singulariza e nos torna eternos. É índice e reconhecimento da diversidade. Campomori

A palavra cultura surge no século XV com o entendimento de cultivo da terra, daí o fato de hoje usarmos palavras como agricultura, floricultura, suinocultura etc. No século XVI, cultura passa a referir-se também ao cultivo da mente humana, afirmando-se que somente alguns indivíduos, classes ou grupos sociais têm mentes e maneiras cultivadas e que somente alguns possuem nível elevado de cultura e civilização. Já a palavra culturas, no plural, refere-se a diferentes modos de vida, valores e significados compartilhados por grupos distintos.

A cultura está intrinsecamente ligada à comunicação humana, ao uso de linguagens, visto que o homem vive em comunidade e é preciso que exista uma língua e uma cultura semelhantes para que possam interagir.

As diferentes linguagens é que distinguem uma sociedade das demais. É através da linguagem que o homem consegue acumular os conhecimentos e transmiti-los às próximas gerações. Essa linguagem, por sua vez, está em constante mutação, porque está relacionada com as atividades sociais e se adéqua às necessidades que vão surgindo. Está ligada à forma de enxergar o mundo, de encarar as dificuldades e as alegrias. A cultura é que determina os hábitos particulares de um povo. Nesse sentido, não há, como muitas vezes ouvimos, povo sem cultura. O que há são culturas mais ou menos valorizadas em determinados espaços sociais.

É através da literatura como elemento cultural que se desfaz a ideologia de homem como objeto, instrumento para funcionalidades práticas, para dar espaço ao homem como momento do espírito humano, como ser cultural. É a percepção do homem por si mesmo. A literatura trabalha para o desenvolvimento de conceitos interiores, do espírito humano, para os estímulos artísticos. É através do conhecimento da literatura e de outras artes que compreendemos tanto a nossa cultura quanto nos tornamos mais sensíveis às culturas alheias. Por meio da literatura compreendemos a visão de sociedade de outras épocas e de outros povos. É por meio da literatura que nos detemos por mais tempo a contemplar uma obra e a pensar nas culturas nela descritas ou expostas.

A literatura é uma das artes capazes de mostrar e estudar a cultura de um povo, ou mesmo a construção de dadas culturas. Mesmo que talvez o conceito mais comum sobre literatura esteja ligado à arte por ela mesma, também encontramos várias outras funções da literatura. Sobre isso, trataremos no próximo tópico.

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TÓPICO 2 | NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

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DICAS

SUGESTÃO DE FILME: O SORRISO de Mona Lisa. Direção de Mike Newell. Produção de Revolution Studios e Columbia Pictures. 2003.O filme é protagonizado por Julia Roberts, no papel de Katherine Watson, uma professora de História da Arte muito empolgada por conseguir uma vaga para lecionar em Wellesley. Porém, logo percebe o tamanho do desafio que teria de enfrentar. Na primeira aula, ao fazer uma introdução da história da arte, conforme foi passando slides com obras, suas alunas sabiam o nome de todas elas, de quando datavam e já tinham até as suas interpretações. O que deixa a protagonista meio sem chão.Isso porque tinham lido todo o livro destinado à disciplina, talvez justamente para pôr a nova professora numa saia justa. Daí por diante, Katherine muda a estratégia e desafia suas alunas a interpretar outras obras de arte, que não aquelas previstas no livro didático, instiga as estudantes a construírem seus entendimentos. A arte que se estuda institucionalmente costuma ser arte conforme os critérios de quem? Mas aí entra em jogo o papel da direção da escola que questiona os métodos da professora por priorizar o ensino de obras “clássicas”.Além do conceito de arte, o filme abrange também questões culturais, especialmente sobre a vida e o papel social das mulheres nos anos 50. O que esperar delas? É um drama que vale a pena você conhecer e que certamente conseguirá fazer um link com o que estamos estudando sobre arte e cultura.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A arte é amplamente entendida como representação estética, singular da realidade e da criatividade humana. Está ligada a períodos históricos e às sociedades em que se insere, mas é produto do fazer/da atividade humana e como tal cada obra será singular, produto de uma mente individual. Não conseguimos ter uma definição fechada do que vem a ser arte, de maneira que se torna mais fácil identificá-la do que a definir.

• Como vimos com o exemplo de Marcel Duchamp, corre-se o risco de o produto confundir-se com a assinatura de um artista consagrado, de forma a identificar quaisquer objetos como arte. É dessa forma que o conceito de arte se confunde com o conceito de grife/marca.

• Por cultura compreendemos o fazer humano, suas práticas em relação à sociedade em que se insere. Diferentes culturas representam diferentes realidades e formas de ver o mundo, e a arte é a expressão da cultura, porém reconstruída sob a ótica particular do artista.

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1 O conceito de arte está ligado ao trabalho humano que provoca admiração, seja por sua beleza ou criatividade. Há uma corrente que defende que, apesar de ser fruto do trabalho humano, a arte tem uma finalidade em si mesma enquanto objeto artístico e, portanto, não pode comparar-se a um utensílio. Não há uma definição conclusiva sobre o que é arte, logo a mesma está sujeita às condições de aceitação da crítica e do público. Observamos que, às vezes, o nome do artista ganha renome e logo tudo que venha da ação dele acaba sendo considerado arte, ou seja, acontece com a arte o mesmo que acontece com quaisquer produtos de consumo em massa: a marca do sabão em pó, da calça jeans, do tênis etc. Dessa forma, muitas vezes, o nome do artista ou o espaço em que se localiza determinado objeto simplesmente acaba por defini-lo como arte, mas essa é uma questão que gera muita discussão.

Sobre isso, assinale V (verdadeiro) ou F (falso) para cada uma das alternativas a seguir.

( ) Qualquer objeto deslocado do seu espaço original para um espaço artístico torna-se arte e ninguém discute isso.

( ) Segundo o que estudamos, a arte, assim como a roupa ou outros produtos, estão sujeitos a ter no nome do seu autor um efeito de marca, grife.

( ) Para Adorno, a arte em si não tem utilidade, logo não se pode comparar com um utensílio.

( ) Geralmente um objeto é determinado como arte por um grupo de pessoas que o aceitam como tal, mas não é possível dar um conceito fechado sobre o que é ou não é arte.

A sequência correta é:

a) ( ) V,V,V,Vb) ( ) F,F,F,Fc) ( ) F,V,F,Vd) ( ) F,V,V,V

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3

AS FUNÇÕES DA LITERATURA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Assim como a arte pode ter um conceito mais comum, que está ligado ao belo, à apreciação, essa é, também, uma das definições mais recorrentes de literatura, sendo que, nesse viés, a literatura não teria outro compromisso além do estético. Essa é a primeira função da literatura, a estética. Seria assim a contemplação do belo.

No entanto, a literatura também pode ser pragmática; atende a anseios ideológicos de determinados grupos; atua como forma de protesto à política e à sociedade; informa, de maneira particular, ativando sentimentos e sensações; funciona como catarse, de forma a purificar o espírito do autor e do leitor.

São essas as funções da literatura e, de acordo com o descrito acima, são nomeadas como: função cognitiva, político-social, pragmática, catártica e lúdica. Veremos com mais detalhes cada uma delas a seguir.

2 IDENTIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DA LITERATURA

Assim como outras formas de arte, a literatura tem o intuito de mobilizar sentimentos e sensações através da palavra, não se trata apenas de usá-la como meio de comunicação, embora também o faça. Enquanto outros textos têm uma finalidade talvez mais objetiva, a arte literária permite transpor o mundo do nosso cotidiano sem dele se perder, permitindo-se à subjetividade dos textos de caráter conotativo, ou seja, que adquirem uma interpretação polissêmica.

Apesar disso, a literatura está ligada à sociedade que representa, afinal, os escritores são cidadãos de um meio social específico. Dessa forma, é comum ouvirmos que o artista recria a realidade, tornando-a mais interessante e, por vezes, mágica ou mística.

O que vamos observar a seguir é que a literatura não tem uma finalidade específica, porém não é ingênua, nem vaga, não acontece simplesmente ao acaso, ela exerce várias funções em relação ao público leitor que vai desde a contemplação da beleza à emotividade e à mobilização política e social.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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NOTA

Conotativo: que tem sentido figurado, diferente daquele dicionarizado, quando uma palavra ou expressão adquire novos sentidos. Polissêmica: que pode ter diferentes sentidos conforme o contexto e os sujeitos envolvidos (nesse caso, escritor/leitor/sociedade).

2.1 FUNÇÃO ESTÉTICA

Podemos afirmar que esta talvez seja a mais representativa das funções da literatura, visto que se encontra mesmo no cerne daquilo que a maioria dos conceitos aponta sobre o que vem a ser arte e literatura. Como identificamos neste material, ao falar sobre a literatura e seus conceitos, ela tem o sentido de fenômeno estético e produção artística. É o fazer estético, criativo, que difere o texto literário do científico, jornalístico etc.

Não é apenas o tema que toca o leitor, mas principalmente a maneira como ele é retratado, a maneira como ele interpela o seu público, os sentimentos e emoções que desperta. Não se trata apenas de dizer, mas principalmente a maneira como é dito.

A capacidade de apreciar o belo, o bonito e as sensações que sentimos em contato com a obra literária se relacionam ao emprego adequado da metrificação, do ritmo, da rima, das figuras de linguagem, da articulação de personagens, estruturação do enredo etc.

Olavo Bilac, poeta brasileiro que muito se esmerou em utilizar técnicas perfeitas na produção de sua literatura, expressa seu ideal de escritor no poema Profissão de fé, comparando o trabalho do poeta à produção de uma joia.

Invejo o ourives quando escrevo:Imito o amorCom que ele, em ouro, o alto relevoFaz de uma flor.Por isso, corre, por servir-me,Sobre o papelA pena como em prata firmeCorre o cinzel.Torce, aprimora, alteia, limaA frase: e, enfim,

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TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

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No verso de ouro engasta a rimaComo um rubi.Quero que a estrofe cristalinaDobrada ao jeitoDo ourives saia da oficinaSem defeito:Assim procedo. Minha penaSegue esta norma,Por te servir, Deusa serena,Serena Forma!

Nota-se a preocupação estética tanto pelas palavras do poeta quanto pela apresentação das rimas e da estrutura do poema em questão.

Vinícius de Moraes escreveu sonetos, sempre se preocupando com as características formais. O soneto, por natureza, deve sempre ser composto por duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas estrofes de três versos (tercetos), se não for assim, não será um soneto.

Além disso, o escritor traz a seus poemas melodia, rima e métrica perfeita. O que nos leva a compreender: existe uma preocupação com a forma, prevista pela função estética. Você pode notar que aqui fazemos a escanção de cada verso do poema (divisão em sílabas poéticas), de maneira que se observa mesmo uma preocupação matemática do poeta ao fazer cada verso com o mesmo número de sílabas.

Soneto de Fidelidade

De/ tu/do ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/toAn/tes/ e /com/ tal /ze/lo, e/ sem/pre, e/ tan/to

Que/ mes/mo em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to De/le /se en/can/te /mais/ meu/ pen/sa/men/to

Que/ro/ vi/vê/-lo em/ ca/da/ vão/ mo/men/to E em/ seu/ lou/vor/ hei/ de es/pa/lhar/ meu/ can/to E/ rir/ meu/ ri/so e/ de/rra/mar/ meu/ pran/to Ao/ seu/ pe/sar/ ou/ seu/ con/ten/ta/men/to

E as/sim/ quan/do/ mais/ tar/de/ me/ pro/cu/re Quem/ sa/be a/ mor/te, an/gús/tia/ de/ quem/ vi/ve Quem/ sa/be a/ so/li/dão/, fim/ de/ quem/ a/ma

Eu/ pos/sa/ me/ di/zer/ do a/mor (que/ ti/ve): Que/ não/ se/ja i/mor/tal,/ pos/to /que é/ cha/ma Mas/ que/ se/ja in/fi/ni/to en/quan/to/ du/re

Vinícius de Moraes

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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Veja que as rimas são as mesmas em cada verso das duas primeiras estrofes e se intercalam na penúltima e última estrofe. Quanto à métrica, temos um soneto decassílabo, ou seja, todos os versos têm dez sílabas poéticas, que não são contadas como na divisão de sílabas de palavras para outros fins. As sílabas poéticas fazem-se de acordo com a sonoridade, de maneira que, por vezes, a sílaba final de uma palavra aglutina-se à inicial de outra, geralmente isso acontece quando há encontro de vogais.

Isso pode parecer um pouco complexo agora, mas não se preocupe, as regras de metrificação serão estudadas na segunda unidade deste material. Nesse momento, as trouxemos com o intuito de exemplificar o seu uso como uma das regras estruturais com vistas à estética literária.

Apesar de a preocupação estética estar no cerne da produção literária, os textos podem ter funções práticas, como informar e fazer perceber o conhecimento. É o que veremos a seguir ao tratar da função cognitiva.

2.2 FUNÇÃO COGNITIVAEntende-se por função cognitiva aquela em que o escritor descreve a

percepção do conhecimento de maneira particular, a forma pessoal como visualiza o mundo ao seu redor é o espaço em que razão e emoção se fundem.

Leia o poema a seguir e observe que, além das características do gênero poesia, como o ritmo e sonoridade, a informação transmitida faz parte do cotidiano, porém o texto literário está impregnado da emoção, da percepção pessoal de uma dada realidade. O poema informa uma realidade a partir do ponto de vista do eu lírico.

O bicho

Vi ontem um bichoNa imundície do pátioCatando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava:Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

Analisemos agora uma reportagem que trata do mesmo tema:

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TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

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Homem cata comida no lixo perto de local de reunião da Rio+20

Ele contou que recolhe restos de carne crua para alimentar a família. Sem trabalho, ele mora nas ruas do Rio de Janeiro há oito anos.

Um homem foi visto catando comida no lixo em frente ao prédio onde ocorria uma reunião sobre segurança alimentar da Rio+20. O flagrante foi feito bem em frente ao Centro de Convenções Sul América, a Cidade Nova, no Centro do Rio de Janeiro, durante uma reportagem para o Globo Rural, nesta sexta-feira (22).

Como mostrou o RJTV, Luciano da Silva, de 26 anos, contou que há oito anos mora nas ruas e depende dos restos de comida para sobreviver. O que ele cata no lixo serve de alimento para toda a família. Como não trabalha, ele diz que costuma pegar no lixo pedaços de carne crua e de comida pronta.

O flagrante foi feito no dia em que o documento final da Rio+20 foi divulgado. Entre os temas tratados está justamente a erradicação da pobreza.

FONTE: HOMEM CATA COMIDA NO LIXO PERTO DE LOCAL DE REUNIÃO DA RIO+20. Rio de Janeiro, 22 jun. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/natureza/rio20/noticia/2012/06/homem-cata-comida-no-lixo-perto-de-local-de-reuniao-da-rio20.html>. Acesso em: 23 abr. 2017.

Nesse último texto, o tema é bastante semelhante ao do poema de Manuel Bandeira, porém é escrito de maneira impessoal, tem caráter comunicativo e não explora aspectos emotivos. Poderíamos ainda dizer, segundo algumas definições de literatura, que essa característica de sobriedade e imparcialidade diante da informação categoriza esse segundo texto como não literário.

Tanto o poema quanto a reportagem têm caráter informativo, porém o primeiro imprime uma marca pessoal e podemos até dizer que, além disso, caminha para uma crítica social. Este aspecto, aliás, é trabalhado pela função político-social ou engajada, sobre a qual trataremos a seguir.

2.3 FUNÇÃO POLÍTICO-SOCIAL OU ENGAJADA

Compreende-se como aquela que trata de problemáticas características de determinado contexto espaçotemporal. Conforme Paviani (2003, p. 85), “a arte em sua suprema determinação é um passado. No momento atual cabe antecedência à reflexão”. Ou seja, nessa perspectiva, a arte como função social deve prevalecer à perspectiva de existência da arte pela arte. Segundo ele, Hegel afirmava que “A ciência da arte é muito mais necessária em nossa época do que em outras nas quais a arte chegava por si mesma a obter inteira satisfação” (PAVIANI, 2003, p. 85). Contemporaneamente, a arte e a literatura adquirem o espaço de discussão político-social, retrata as carências da sociedade atual.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

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O poema O bicho, que usamos para tratar da função cognitiva, ao mesmo tempo que explicita uma realidade de maneira pessoal, traz uma crítica social a respeito das desigualdades sociais, de forma que, além da função cognitiva, traz também a função de literatura engajada. Um autor brasileiro de bastante destaque nesse aspecto é Ferreira Gullar, definido por Costa (2017, p. 58) como escritor que tem “autenticidade temática pelo engajamento político-social; na verdade, um letal ‘punhal de fina lâmina’ quando ativista verbal, o que lhe garante lugar de destaque na poesia brasileira”.

Leia o poema a seguir e observe nele a função de que estamos falando.

Não há vagas

O preço do feijão não cabe no poema. O preço

do arroz não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás a luz

o telefone a sonegação

do leite da carne

do açúcar do pão

O funcionário público não cabe no poema

com seu salário de fome sua vida fechada

em arquivos. Como não cabe no poema

o operário que esmerila seu dia de aço

e carvão nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores, está fechado:

“não há vagas” Só cabe no poema

o homem sem estômago a mulher de nuvens

a fruta sem preço O poema, senhores,

não fede nem cheira.

Ferreira Gullar

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TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

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IMPORTANTE

As obras costumam ter direitos autorais até 70 anos após a morte de seu autor. Ferreira Gullar faleceu em 2016. Porém, segundo Ana Beatriz Nunes Barbosa

(2017), “há usos que são permitidos, MESMO NO CASO DE OBRA PROTEGIDA. Seriam estes casos os das chamadas limitações ao direito autoral: [...]• A citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens

de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra.

• A reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

Observação da autora deste material: Esse critério também é utilizado em outras obras que constam neste estudo, onde poemas são citadas na íntegra para fins de entendimento e análise, mas não obras completas dos autores. É muito importante saber distinguir o que é a utilização necessária para fins de estudo do simples plágio (cópia, sem o resguardo da autoria). Este último constitui crime.

Publicado em 1963, o poema acima retrata problemas sociais e econômicos do país que, por ironia, continuam muitíssimo atuais, como o custo de vida, o desemprego, a falta de espaço e importância para a poesia, como o autor demonstra através da metalinguagem do poema referindo-se a ele mesmo. Afinal, nesse contexto, o poema “não fede nem cheira”. Podemos compreender a palavra poema como a beleza da vida e, num contexto social em que falta às pessoas o básico para sua subsistência e o seu tempo é ocupado com a mera sobrevivência, não há espaço para interpretar o belo ou se ocupar da arte.

Outros autores, como Castro Alves, já apresentavam uma poesia engajada em Navio Negreiro, por exemplo. Veja o trecho a seguir:

E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!..."

Castro Alves, também conhecido como o poeta dos escravos, retrata nesse poema a dor dos negros durante as viagens marítimas, e vai brincando entre essa dor (chora, de raiva delira, enlouquece) e elementos “lúdicos” (como a dança, a risada, a canção...). Uma combinação sarcástica e cruel, retratando uma realidade em que alguns seres humanos são torturados e têm suas vidas anuladas em prol do conforto alheio. Da maneira como está configurado, faz uma crítica feroz a essa realidade e esse jogo entre a dor e o riso que nos mostra a loucura de tal situação. O mesmo poema foi musicado por Caetano Veloso e Maria Bethânia e enaltece, além do problema representado pela poesia, toda a sua rima e melodia. Vale a pena conferir.

Ao falar a respeito de literatura engajada, é nítido que o conceito de arte como expressão do belo não se desfaz da função estética, mas agrega nova função relacionada à crítica, ou seja, a literatura adquire caráter prático. Sobre isso, vamos tratar ao abordar a função pragmática da literatura.

2.4 FUNÇÃO PRAGMÁTICA

Também conhecida como utilitária, passa pelo viés de uma literatura que busca outro fim além da estética, busca um fim não artístico, não sendo valorizada por si mesma apenas, mas pela sua finalidade. Analisa-se aqui a capacidade que a arte tem de pregar uma ideologia. Observamos isso desde o período romântico, em que a obra Iracema, de José de Alencar, tem um pano de fundo histórico, a começar pelo próprio título, que é um anagrama da palavra América. O romance conta ao mesmo tempo a história de amor entre Iracema e o europeu Martim. Dessa união nasce Moacir, que, filho de índia e europeu, representa a formação da identidade nacional. Outros aspectos, como a valorização da natureza e celebração das características brasileiras, elementos típicos do período romântico, são ideologias inculcadas pela obra. Esta representa ainda a chegada do branco como a quebra de harmonia existente nas comunidades indígenas, representada pelos conflitos causados pela presença de Martim.

No modernismo observamos também algumas ideologias trazidas pela arte. Prega-se a ideologia de uma cultura nova, a ruptura com o que é estrangeiro para dar espaço a elementos nacionais, à valorização da cultura brasileira. Essa ruptura, porém, não se dá completamente.

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TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

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Passamos a descrever o nacional, mas após “devorar” os conceitos europeus, especialmente das artes de vanguarda, daí o conceito de antropofagismo. “Devora-se o outro”, deglute-se, “vomita-se”, restando dele apenas a forma, mas trazendo a valorização dos temas nacionais, ideologia pregada pela arte. Marcou esse período a frase de Oswald de Andrade: “Tupi or not tupi, that is the question”. Cultivar ou não o nacional. Porém, a brincadeira de substituir o tupi pelo verbo to be (ser) joga justamente com essa questão de construir uma ideologia nacional, mas sobre uma concepção artística europeia.

Trouxemos aqui apenas exemplos de quando essa função lúdica ocorre, porém acontece em quaisquer textos ou obras de arte que busquem inculcar no público determinada ideologia.

Retomando o termo “vomitar”, compreendemos que esse ato equivale a uma “limpeza do organismo”, uma forma de pôr para fora o que está a incomodar. Em sentido semelhante surge a função catártica da literatura, que se refere não a detritos humanos, mas à expurgação (purificação) de sentimentos e emoções através da literatura.

2.5 FUNÇÃO CATÁRTICA

Conforme o Dicionário Priberam (2017), a palavra catarse foi utilizada por Aristóteles como a purificação sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramática. Também apresenta os sentidos de libertação de emoção ou sentimento que sofreu repressão.

Quando a literatura provoca esses efeitos, ela estará exercendo a função catártica. Alguns escritores sentem a catarse durante a escrita, bem como o leitor ou espectador de uma determinada obra escrita ou cinematográfica pode ter esse sentimento de catarse/purificação emocional, sentindo alívio de suas tensões e frustrações, identificando-se com determinado personagem e suas ações.

Giacon (s.d., p. 6) observa que “nas peças teatrais e no cinema essa função atinge seu grau máximo pelo uso de visão e audição, contudo nos textos literários é necessário que o escritor faça o leitor percorrer um caminho tortuoso até o conflito para atingir o máximo do grau catártico de uma obra”.

Um conto, por exemplo, de maneira geral é composto pela apresentação do enredo, conflito, busca pela solução desse conflito, clímax e desfecho. O clímax é o ponto alto do conto, momento de maior tensão, quando ficamos numa grande expectativa para saber o desfecho. Se compararmos a uma telenovela, esse seria justamente o ponto em que acaba o capítulo e tem-se de esperar pelo próximo capítulo, no dia seguinte. O desfecho é quando o conflito se resolve, “a justiça é feita”. O clímax é o momento de maior tensão para a personagem e também para o espectador ou leitor, já no desfecho ocorre o alívio, a descarga de toda tensão.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

A Cartomante, de Machado de Assis, conta a história do casal Vilela e Rita e seu amigo, Camilo. Rita e Camilo são amantes e este receia que Vilela tenha descoberto o caso porque o chamou à sua casa para uma conversa. O caminho de Camilo até a residência do casal é de extrema tensão, o leitor acompanha o drama psicológico do personagem durante todo o percurso. O clímax se dá no momento em que Vilela recebe Camilo e o leva até uma sala, onde se dá o desfecho da situação. O clímax cria o ápice de tensão, que é liberada com o desfecho trágico do conto.

A função catártica também pode ser identificada quando o autor descarrega no texto os sentimentos guardados, talvez em busca de alívio. É o que se pode perceber em Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos.

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de sua última quimera.

Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera! O homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos

NOTA

quimera = esperançaEscarro = Matéria viscosa expelida pela boca depois dos esforços da expectoração. Chaga = pancada ou feridaAfaga = acariciaEscarra = O ato de expelir pela boca matéria viscosa.

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TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

29

É possível interpretar que no poema o autor coloca todo o seu rancor, sua decepção e descrença em relação ao mundo e às pessoas e, possivelmente, o desejo de uma contrapartida, como forma de vingança representada pelos dois últimos versos. A função catártica aparece de forma bastante nítida no poema.

Assim como a literatura provoca no leitor momentos onde há certo “descarrego de emoções”, exercendo seu caráter catártico, pode também ter uma função lúdica, quando se apresenta como uma forma de jogo, de prazer e entretenimento, como ocorre com a função lúdica.

2.6 FUNÇÃO LÚDICA

Conforme Giacon (s.d.), o autor escreve por prazer, seja como forma de trabalho, seja como forma de passatempo. Há uma ligação entre escritor e leitor, visto que o segundo também encontra o prazer na fruição da leitura, ou seja, ainda que a interação de ambos com o texto não aconteça simultaneamente, ocorre entre eles um pacto.

Essa função da literatura fica bastante explícita em alguns textos de Machado de Assis, quando este estabelece um diálogo aberto com seu leitor, chamando-o à reflexão sobre o texto. Temos a seguir um excerto de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que exemplifica bem o caso.

Era fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja e não esteja aí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem.

NOTA

O exemplar do livro utilizado para a citação acima está em e-book Kindle e, por esse motivo, não possui data de publicação e numeração de páginas.

Este é um exemplo nítido de autor que literalmente dialoga com o leitor como se ele estivesse à sua frente, supondo o que pensa e prevendo suas reações. Em outros textos, Machado convida seu leitor a ser um leitor ruminante, ou seja, rumina suas leituras, reflete a respeito delas.

As funções da literatura que abordamos são as mais recorrentes nos materiais de Teoria literária, no entanto, alguns autores podem trazer também outras funções ou, ainda, diferentes nomenclaturas.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura exerce distintas funções. Retomamos a seguir cada uma delas de forma breve.

o Função estética: é a responsável pelo mais recorrente dos conceitos de arte, que é a representação do belo, daquilo que é digno de contemplação, está ligada aos aspectos formais considerados ideais a cada gênero.

o Função cognitiva: descreve o conhecimento de forma particular, fundindo razão e emoção. Tem caráter informativo, mas apresenta uma visão particular sobre um fato ou situação, apelando para a emotividade.

o Função político-social ou engajada: preocupa-se com as problemáticas políticas e sociais, assumindo uma posição crítica e, por vezes, até militante.

o Função pragmática: compreende que a literatura não é apenas produto da estética, mas deve ser utilitária. Vai além da arte e, por vezes, pode servir a ideologias específicas.

o Função catártica: tem a capacidade de provocar no autor e no leitor a libertação de sentimentos ou emoções reprimidas, causando um efeito de purificação.

o Função lúdica: Geralmente é representada por textos em que há um diálogo explícito entre escritor e leitor. O prazer do autor no ato da escrita é visível ao leitor.

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1 A literatura é conhecida como a arte da palavra e, como tal, funciona como instrumento de comunicação e interação social. Há uma concepção de que o papel primordial da literatura é estético, porém observamos que ela vai além da mera contemplação e assume outras funções, como o lazer e o entretenimento, informação, reflexão, conhecimento, cultura, ou ainda, traz questionamentos políticos e denúncia de fatos sociais.

Com base nesse contexto, relacione as colunas de forma a indicar as características adequadas a cada função da literatura.

I- Função estéticaII- Função cognitivaIII- Função político-social ou engajadaIV- Função pragmáticaV- Função catárticaVI- Função lúdica

( ) Comumente é representada por textos em que há um diálogo explícito entre escritor e leitor. São textos em que o prazer do autor no ato da escrita é perceptível.

( ) Provoca no leitor o sentimento de libertação de uma emoção ou sentimento reprimido, causando a purificação, alívio das tensões.

( ) A literatura, de acordo com essa função, tem um caráter utilitário. Deve ir além da arte e, por vezes, pode mesmo trabalhar a favor de determinadas ideologias.

( ) Trata de problemáticas de determinado contexto social, ou seja, traz uma discussão sobre fatos políticos e sociais.

( ) Descreve o conhecimento de forma particular, pessoal, fundindo razão e emoção, ou seja, tem caráter informativo, mas apresenta uma visão emotiva e particular.

( ) Está no fundamento daquilo que se considera arte e tem o sentido de fenômeno do belo e da produção artística.

As características de cada função da linguagem são apontadas corretamente na seguinte ordem:

a) ( ) VI, V, IV, III, II, Ib) ( ) V, VI, IV, III, II, Ic) ( ) I, II, III, IV, V, VId) ( ) VI, I, V, II, IV, III

AUTOATIVIDADE

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2 Leia os poemas seguir e responda qual função da literatura está mais presente em cada um deles.

POEMA 1

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênese da infância, A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas — Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há-de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

a) ( ) Função estéticab) ( ) Função Cognitivac) ( ) Função Político-social ou Engajadad) ( ) Função Pragmáticae) ( ) Função Catárticaf) ( ) Função Lúdica

POEMA 2

Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva

Vestiu o índio Que pena!

Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido

O português.

Oswald de Andrade

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a) ( ) Função estéticab) ( ) Função Cognitivac) ( ) Função Político-social ou Engajadad) ( ) Função Pragmáticae) ( ) Função Catárticaf) ( ) Função Lúdica

POEMA 3

“Sete quedas por mim passaram, e todas sete se esvaíram.

Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele a memória dos índios, pulverizada, já não desperta o mínimo arrepio.

Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes, aos apagados fogos

de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se os sete fantasmas das águas assassinadas por mão do homem, dono do planeta”.

Carlos Drummond de Andrade

a) ( ) Função estéticab) ( ) Função Cognitivac) ( ) Função Político-social ou Engajadad) ( ) Função Pragmáticae) ( ) Função Catárticaf) ( ) Função Lúdica

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TÓPICO 4

O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Para falarmos sobre cânone, primeiramente é necessário que você compreenda o significado dessa palavra. O cânone literário é entendido como um conjunto de autores e obras considerados exemplos de literatura ideal. Para que uma obra seja considerada um cânone é necessário que alguém a eleja como tal. Por que na escola estudamos determinadas obras e outras não? Você já deve ter observado que para cada período/escola literária estudada no Ensino Médio, por exemplo, há algumas obras que são referência. Nelas encontramos as características específicas da escola literária em questão.

Ao falarmos sobre os conceitos de literatura, no início desta unidade, também pincelamos um pouquinho sobre a questão dos clássicos. Essa palavra tem sentido semelhante a cânone, visto que se refere a obras que se impõem como modelos de uma escola literária. Neste estudo, tomaremos as palavras clássico e cânone como sinônimos. Os clássicos são tomados como referência para o ensino nas instituições escolares e acadêmicas.

Porém, para que existam as obras denominadas clássicas, deve haver uma organização para tal. É o que veremos a seguir.

UNI

A palavra clássico vem de classe, justamente por se referir aos livros lidos nas salas de aula. O Dicionário Priberam (2017) define clássico como: 1. Que é de estilo impecável. 2. Próprio para servir nas aulas. 3. Que de há muito é habitual; inveterado no uso.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

2 A FORMAÇÃO DO CÂNONE

Uma história da literatura, de maneira geral, está preocupada em relacionar história e literatura. Textos que fogem aos padrões estabelecidos, muito provavelmente não se destacarão ou até mesmo serão ignorados no processo de canonização. Há estudiosos que comentam que em todas as épocas temos não uma história da literatura, mas uma delas apenas representa o ápice que é canonizado.

Contemporaneamente, muitos analistas da literatura opõem-se a essa maneira de se estabelecer o cânone, pois está fundamentada numa visão universalizante, na qual os valores das obras são definidos conforme a ideologia das classes dominantes, não contemplando a diversidade humana. Há aqueles que defendem que a categoria de uma obra literária não deve ser resultado das condições históricas ou sociais. Nessa concepção, a classificação das obras deveria funcionar de acordo com a recepção, de como elas tocam o leitor e adquirem fama suficiente para ficarem na memória. Essa concepção parece interessante, mas sem regras específicas torna-se bem mais complexo estabelecer um cânone que sirva de referência para o estudo da literatura.

Nesse momento, você deve estar pensando que talvez muitas das obras estudadas na escola como clássicas diziam pouco a você, a linguagem parecia distante e, por isso, não provocavam o interesse para a leitura. Seria mais honesto canonizar as obras que alcançassem fama entre o público leitor? Considerando essa possibilidade, o cânone estaria desligado das instituições?

Não se trata de considerar que apenas os críticos estariam capacitados a qualificar as boas obras, pois mesmo entre eles não há consenso. Márcia de Abreu (2006) comenta que escritores populares costumam provocar o desprezo da crítica. Cita como exemplo Jorge Amado, visto que parte da crítica o considera um “autor com deficiências”. Porém, certamente você conhece algumas obras desse autor. Se não as leu, já ouviu falar de Tieta; Gabriela, Cravo e Canela; entre outras. Essas obras tiveram também adaptações para a TV e contaram com grande público de leitores e espectadores, tanto no Brasil quanto no exterior.

Seria implicância? Não, apenas não há unanimidade. Abreu (2006) exemplifica comentando as opiniões de dois especialistas em literatura da Unicamp, atuantes no Departamento de Teoria Literária com mestrado e doutorado na área, logo, têm boa formação a esse respeito. O primeiro, Paulo Franchetti, opina que as obras de Jorge Amado são “murais coloridos e animados, mas sem profundidade”. Marisa Lajolo, porém, apresenta uma visão bastante aprovadora sobre os textos de Amado e comenta ainda que graças a ele o nosso povo aprendeu a ler literatura brasileira. A autora aponta a produção de Jorge Amado como importante para a cultura nacional e esse seria o motivo que o levou a ser conhecido em todo o mundo. Para ela, Jorge Amado seria merecedor de um Nobel de Literatura.

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TÓPICO 4 | O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

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3 AFINAL, O QUE É UM CLÁSSICO?

A despeito disso, Calvino (2002, p. 10), em “Por que ler os clássicos?”, traz vários conceitos sobre o que seria um clássico, dentre eles destacamos o seguinte: “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. Nessa perspectiva podemos considerar impossível uma definição universalizante de cânones literários, de maneira que cada um de nós pode ter nossos clássicos individuais que podem coincidir com outras opiniões ou não. Segundo o autor, “O ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você mesmo em relação e talvez em contraste com ele” (CALVINO, 2002, p. 13).

Assim, podemos dizer que o trabalho da escola em fazer-nos conhecer uma lista de livros canonizados seria inútil? Você deve estar se perguntando: por que então fui obrigado a estudar tantas obras, cujo contexto e linguagem me são tão distantes? Bom, antes de tudo, é preciso considerar que essas obras carregam consigo as marcas de uma sociedade distinta da atual, com valores e costumes diferentes, logo, no mínimo, nos ajudará a compreender a sociedade em outros tempos, mas acima de tudo nos propiciará um entendimento dessa sociedade, a partir do momento em que estamos e em relação à sociedade atual.

No entanto, cabe a cada um de nós eleger também os nossos clássicos individuais, aqueles com que por algum motivo nos identificamos, independentemente de ser também o clássico de outras pessoas ou não. Isso não desfaz o trabalho realizado pelas instituições de ensino ao colocar algumas leituras como obrigatórias.

Os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá reconhecer os “seus” clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois da escola (CALVINO, 2002, p. 16).

Quando se fala nas leituras que fizemos, devemos considerar ainda que pode ser difícil expor as suas leituras particulares de maneira honesta, principalmente quando se está em espaços institucionalizados, que têm um conceito rígido sobre quais leituras merecem ser consagradas e um juízo das pessoas a partir do que elas leem.

As leituras que fazemos e sobre as quais falamos compõem nossa imagem social, formam nossa identidade tal como a maneira como nos vestimos. “O que quase todos aprendem é o que devem dizer sobre determinados livros e autores, independentemente de seu verdadeiro gosto pessoal” (ABREU, 2006, p. 19).

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Algo semelhante também é constatado por Hoffmann (2014), quando em sua dissertação de mestrado pede a estudantes do sétimo semestre do curso de Letras que contem sua trajetória como leitores, desde a primeira experiência de leitura que têm em mente até aquele momento. Não foram raros, por exemplo, os depoimentos de acadêmicos que indicaram a leitura de Paulo Coelho como uma referência em sua formação, mas observam que ao atingirem a maturidade, na universidade, não suportavam mais as obras de tal autor. Outros, porém, assumem uma postura de enfrentamento mencionando, por exemplo, que “Nessa época, por iniciativa própria, eu li aquele que acredito ter sido o meu primeiro livro, O Alquimista (Paulo Coelho)” (HOFFMANN, 2014, p. 85).

Observamos nesse depoimento certa provocação ao dizer “por iniciativa própria”, talvez considerando o trabalho da escola pouco frutífero quanto à formação do leitor. As obras de Paulo Coelho durante muito tempo foram alvo de críticas severas nas universidades, apesar de serem muito vendidas em todo o mundo. Como explicar isso? Cabe apenas concluir que o conceito de cânone nas instituições de ensino, definido por especialistas, difere do conceito do público em geral. Por conta do destaque desse autor nas mídias e nas volumosas vendas, por ironia, hoje ele é membro da Academia Brasileira de Letras.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), “o conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura. Paulo Coelho, não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno” (BRASIL, 2000, p. 16). Logo adiante, na mesma página, o documento define o atual ensino de literatura como “aula de expressão em que o aluno não pode se expressar”. Dessa forma, o documento abre uma brecha importante para uma nova concepção do ensino de literatura nas escolas e para a definição do que são clássicos, pois não faria mais sentido estudar a língua e a literatura “divorciadas” do contexto social vivido. Temos aí uma nova concepção para a formação de uma lista de clássicos que dê voz aos estudantes e ao público geral e não apenas aos especialistas da área.

Sobre os clássicos, aqueles tradicionalmente privilegiados nas escolas e universidades, fechamos esse item com as palavras de Calvino (2002, p. 16) sobre o porquê ler os clássicos. “A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor que não ler os clássicos”.

DICAS

Se você gosta de um bom filme, indicamos alguns bastante interessantes que tratam de poesia ou sobre poetas. Dentre eles, o mais conhecido e famoso, A Sociedade dos Poetas Mortos, cujo enredo conta a história de um professor que faz com que seus alunos vejam a vida de outra forma a partir da leitura dos grandes poetas da língua inglesa. O filme

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TÓPICO 4 | O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

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intitulado Poesia narra a vida de uma senhora que se inscreve em um curso de poesia, o que a faz notar o mundo de maneira diferente. Howl conta a biografia do poeta americano Alen Ginsberg. O Carteiro e o Poeta, um livro clássico de Pablo Neruda adaptado ao cinema por Michael Radford. E para fechar essas indicações com muita classe, temos Vinícius, um documentário sobre a vida de um dos maiores poetas brasileiros.

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RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico, você aprendeu que:

• O cânone é definido como as obras que representam determinada escola literária, servem de modelo. Adotamos neste material as palavras cânone e clássico como sinônimos. A palavra clássico se refere a classe, às obras consideradas exemplo para o ensino de literatura nas escolas e academias. Dessa forma, a história da literatura apresenta apenas o ápice do que foi canonizado, ignorando todas as demais obras que não foram consideradas modelos ideais.

• Contemporaneamente, alguns críticos defendem a ideia de que os cânones deveriam ser eleitos de acordo com a receptividade do público leitor.

• Mesmo entre os críticos não há consenso entre o que é uma literatura de qualidade. Vimos a esse respeito o exemplo da pesquisa sobre Jorge Amado, em que foram questionados um professor e uma professora com formação semelhante e que trabalham no mesmo departamento de uma universidade. O primeiro define Amado como “um autor com deficiências”. Já a professora comenta que o autor seria digno do Prêmio Nobel de Literatura.

• Os PCN abrem uma brecha para uma nova concepção de ensino de literatura no Ensino Médio, alegando que não há conexão entre as obras e a realidade do estudante. Segundo esse documento, a língua e a literatura ensinadas na escola estão divorciadas do contexto social.

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AUTOATIVIDADE

1 Mesmo entre os críticos de literatura não há consenso sobre o que se considera uma boa obra ou não. Exemplo disso é que Márcia de Abreu (2006), ao falar sobre Jorge Amado, conversa com dois doutores em literatura da Unicamp e, enquanto um deles critica a obra de Amado, definindo-o como um “autor com deficiências”, outra comenta que o autor seria merecedor do Nobel de Literatura. Sobre isso, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

( ) Os dois doutores em Teoria da Literatura consultados por Márcia de Abreu, Marisa Lajolo e Paulo Franchetti, afirmam que a obra de Jorge Amado perde em qualidade estética pelo anseio de tornar-se muito populista.

( ) Enquanto Marisa Lajolo considera Jorge Amado digno do Prêmio Nobel de Literatura, Paulo Franchetti o considera um autor com deficiências.

( ) Regina Zilberman, também entrevistada por Márcia de Abreu, como vimos no texto acima, considera Jorge Amado um autor populista, por isso sua obra perde em qualidade, com o objetivo de alcançar um público em massa.

( ) Márcia de Abreu entrevista dois doutores em Literatura da Unicamp. Paulo Franchetti define as obras de Amado como murais coloridos, mas sem profundidade. Já Marisa Lajolo defende que graças a este autor o nosso povo aprendeu a ler literatura brasileira, e aponta ainda a sua produção como importante para a cultura nacional e que graças a suas características tornou-se conhecido em todo o mundo.

Sobre as afirmações acima, podemos considerar correta a seguinte ordem:

a) ( ) V, V, V,Vb) ( ) F, F, F,Fc) ( ) F, V, V, Fd) ( ) F, V, F, V

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TÓPICO 5

OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, a literatura exerce uma dupla função, serve como expressão artística e também como meio de transmitir conhecimentos. Começou a existir através da oralidade com o objetivo de perpetuar as histórias e a cultura para as gerações seguintes. Assim, podemos dizer que a literatura é o reflexo do que somos, de nossas aspirações, e está sempre relacionada com as características sociais e históricas de cada época. Retrata o homem em seu caráter mais subjetivo.

Desde o século V a.C. há uma divisão da literatura em gêneros, feita, pela primeira vez, por Aristóteles em seu livro Obra Poética. São eles: o gênero lírico, gênero épico ou narrativo e gênero dramático. Cada um desses gêneros é dividido em subgêneros, que vamos estudar na sequência.

2 GÊNERO LÍRICO (POESIA)

O gênero lírico retrata sentimentos e emoções, através do eu-lírico ou sujeito-lírico que expressa reflexões pessoais. Nesse gênero predomina o tempo presente e o eu-lírico expressa em palavras o que sente naquele momento, ou seja, centra-se no mundo interior, subjetivo.

A organização dos textos privilegia efeitos sonoros, ritmo, semântica e musicalidade. Na sua origem, eram usados instrumentos de sopro e de corda. Aliás, a palavra lírico faz referência ao instrumento musical chamado lira, muito popular naquela época. A exposição das composições costumava ser apresentada sob o som da lira ou da flauta. A musicalidade era considerada fonte de inspiração e criatividade de todo o sentimentalismo característico do gênero.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Passando da oralidade à escrita são mantidos recursos como a repetição de versos (refrão), palavras e fonemas, aspectos que revelam a proximidade entre poesia e musicalidade. Você já deve ter ouvido músicas provenientes de poemas, o que comprova essa proximidade. Observe a seguir o poema “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luis Vaz de Camões. Dele vamos depreender algumas das características do gênero lírico.

Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

No que se refere à musicalidade podemos observar a repetição de ideias, sendo que da primeira à terceira estrofe, todos os versos trazem uma definição de amor. Nos mesmos versos ocorre a repetição de palavras, no caso o verbo É, que introduz cada verso. Há um esquema de rimas bem definido, de forma que nas duas primeiras estrofes o primeiro verso rima com o quarto e segundo com o terceiro. Já nas duas últimas estrofes a rima se dá entre o primeiro e o terceiro verso, o segundo verso da terceira estrofe rima com o segundo da quarta estrofe. Esses elementos garantem a musicalidade do poema. Prova disso é a compilação desse poema com um texto bíblico (Epístola de São Paulo aos Coríntios), feita pela banda Legião Urbana, na música Montecastelo. A música é bastante difundida, mas se você ainda não conhece, vale a pena conferir.

Outras características do gênero lírico, observáveis no poema de Camões, são a exposição dos sentimentos e emoções do eu-lírico, o uso do tempo presente e a reflexão do mundo interior/subjetivo.

O gênero lírico se subdivide em quatro subgêneros: elegia, ode, écloga e soneto.

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

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a) Elegia: Conforme Soares (2007, p. 32), elegia vem do grego elegeía, que se refere a cantos de luto e tristeza ou “talvez à transcrição helênica do vocábulo armênio (elegn, elegneay) que significava ‘bambu’ ou ‘flauta de bambu’, já que esta acompanhava os cantos lutuosos”. O tema da elegia, de maneira geral, é a tristeza e o pranto pela morte de um amigo ou pessoa ilustre ou mesmo a dor por conta de um amor não correspondido ou interrompido. Seria o poema de Camões exposto acima uma elegia?

Leia com atenção o poema a seguir, de Fagundes Varela, e observe os aspectos típicos da elegia.

Cântico do Calvário

À memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863

Eras na vida a pomba predileta Que sobre um mar de angústias conduzia

O ramo da esperança. Eras a estrela Que entre as névoas do inverno cintilava

Apontando o caminho ao pegureiro. Eras a messe de um dourado estio. Eras o idílio de um amor sublime. Eras a glória, a inspiração, a pátria,

O porvir de teu pai! - Ah! no entanto, Pomba, - varou-te a flecha do destino!

Astro, - engoliu-te o temporal do norte! Teto, - caíste!- Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas, Legado acerbo da ventura extinta,

Dúbios archotes que a tremer clareiam A lousa fria de um sonhar que é morto!

NOTA

Algumas palavras não são comuns em nosso contexto. Então vamos aos seus significados. Pegureiro = guardador de gado, relativo a pastor.Messe = ceifa, colheita, aquisição, conquista. Idílio = poesia de assunto pastoril.Acerbo = que tem sabor áspero, amargo, duro, árduo.Archotes = haste em que uma das extremidades é acesa para iluminar.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Há no poema uma aproximação do eu-lírico com o objeto, através do uso de metáforas (“Eras na vida a pomba predileta”, “O ramo da esperança”, “Eras o idílio” etc.) que compõem uma beleza dramática e comovente.

a) Ode: do grego oidê, que significa canto. São poemas compostos para serem cantados, geralmente são compostos por quartetos e têm métrica variada. Os hinos são exemplos de ode. Diferentemente da elegia, apresenta temas variados, subdividindo a ode em pindáricas, que exaltam homens e acontecimentos ilustres; as sacras, que exaltam a religiosidade; as filosóficas, que tratam de assuntos filosóficos e meditativos; as sáficas, que tratam de assuntos morais; as báquicas, que celebram os prazeres da mesa. De maneira que esses poemas apresentam métrica variada. A poetisa Safo e os poetas Alceu e Anacreonte foram os primeiros a compor odes. A seguir você pode conferir algumas dessas características no poema de Álvaro de Campos, pseudônimo de Fernando Pessoa.

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

Portugal-Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,Concubina fogosa do universo disperso,

Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisasSexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,

Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,

Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

NOTA

Pederasta = conforme o Dicionário Aurélio, significa homossexualismo masculino.Pinotes = salto, coice, pirueta, pulo.

Como você pode notar, esse poema exalta a festividade, a sensualidade e mesmo a orgia. Por isso, apesar de não falar dos prazeres da mesa como o nome sugere, fazendo uma referência a Baco, Deus do vinho, podemos classificá-lo como uma ode báquica.

A seguir, temos um excerto de Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, pseudônimo de Fernando Pessoa.

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

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Dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

O poema pode ser definido como um canto de louvor à modernidade. Você pode notar ainda a onomatopeia r-r-r-r-r-r-r que reproduz o som das máquinas, representa o ritmo acelerado de sociedade industrializada, sobre os excessos que não respeitam o ritmo das pessoas, causando mesmo, como o poeta diz, febre, ranger de dentes, fúria, enfim, uma perda da paz. O ritmo do poema transmite ao leitor um sentimento de fúria, velocidade, evoluindo para o cansaço frente aos excessos da sociedade industrializada. A crítica à sociedade industrializada é uma das características do romantismo, período do qual Fernando Pessoa faz parte. OdeTriunfal pode ser classificado como uma ode filosófica, pois medita a respeito da industrialização, uma realidade da sociedade da época.

a) Écloga: poema pastoril, bucólico, cujas emoções são representadas por elementos da natureza. Esse estilo de composição é característico do arcadismo. Exemplificamos com um trecho do poema de Tomás Antônio Gonzaga.

Marília de Dirceu

Enquanto pasta, alegre, o manso gado,Minha bela Marília, nos sentemosÀ sombra deste cedro levantado.

Um pouco meditemosNa regular beleza,

Que em tudo quanto vive, nos descobreA sábia natureza [...]

Repara como, cheia de ternura, Entre as asas ao filho essa ave aquentaComo aquela esgravata a terra dura,

E os seus assim sustenta, Como se encoleriza,

E salta sem receio a todo o vulto Que junto deles pisa.

[...]

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d) Soneto: bastante popular ainda na contemporaneidade, sua forma mais recorrente é a composição por dois quartetos (estrofes com quatro versos) e dois tercetos (estrofes com três versos). O nome soneto provém do italiano sonetto que significa melodia/canção. Quando composto por dois quartetos e dois tercetos é classificado como petrarqueano, visto ser a forma escolhida pelo poeta Petrarca, mas passou a servir de modelo para poetas de várias nacionalidades. O esquema de rimas costuma funcionar dessa forma: ABAB/ABAB/CCD/CCD, ABBA/ABAB/CDC/DCD ou com algumas variações. Procure observar essa forma e esquema de rimas no soneto de Vinícius de Moraes a seguir.

Soneto de Separação

De repente do riso fez-se o pranto A Silencioso e branco como a bruma B

E das bocas unidas fez-se a espuma B E das mãos espalmadas fez-se o espanto. A

De repente da calma fez-se o vento A

Que dos olhos desfez a última chama B E da paixão fez-se o pressentimento A

E do momento imóvel fez-se o drama. B

De repente, não mais que de repente C Fez-se de triste o que se fez amante D E de sozinho o que se fez contente. C

Fez-se do amigo próximo o distante D Fez-se da vida uma aventura errante D De repente, não mais que de repente C

Quando o soneto é estruturado em três quadras e um dístico (estrofe com dois versos) é chamado de soneto inglês ou soneto shakespeariano. Apesar do nome, essa forma foi adotada inicialmente por Fernando Pessoa. Observe o soneto escrito por Manuel Bandeira.

Soneto inglês nº 1

Quando a morte cerrar meus olhos duros - Duros de tantos vãos padecimentos,

Que pensarão teus peitos imaturos Da minha dor de todos os momentos?

Vejo-te agora alheia, e tão distante:

Mais que distante - isenta. E bem prevejo, Desde já bem prevejo o exato instante Em que de outro será não teu desejo,

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Que o não terás, porém teu abandono, Tua nudez! Um dia hei de ir embora

Adormecer no derradeiro sono. Um dia chorarás... Que importa? Chora.

Então eu sentirei muito mais perto De mim feliz, teu coração incerto.

Resultado desses dois modelos surge o soneto spencerista, com a mesma forma do soneto inglês, mas com um esquema de rimas que entrelaça as três quadras. Exemplo dessa forma é o poema de Mário de Andrade.

Aceitarás o amor como eu o encaro?...

Aceitarás o amor como eu o encaro?... A Azul bem leve, um nimbo, suavemente B

Guarda-te a imagem, como um anteparo A Contra estes móveis de banal presente. B

Tudo o que há de melhor e de mais raro A

Vive em teu corpo nu de adolescente, B A perna assim jogada e o braço, o claro A

Olhar preso no meu, perdidamente. B

Não exijas mais nada. C Não desejo também mais nada, C

só te olhar, enquanto a realidade é simples, D e isto apenas. E

Que grandeza... a evasão total do pejo F

Que nasce das imperfeições. G O encanto que nasce das adorações serenas. E

Como você pode observar, as duas primeiras estrofes estão entrelaçadas pelas rimas, e nas estrofes finais, a rima se dá entre os últimos versos de cada uma delas.

3 GÊNERO NARRATIVO

Como o nome sugere, narrativo refere-se a narrar, ou seja, contar histórias com personagens que se envolvem em uma ação que acontece em determinado tempo e lugar. Funções cumpridas pelos contos, romances, fábulas, crônicas e pelas epopeias, sobre as quais veremos a seguir.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

A epopeia, por exemplo, é uma narração longa, que pode ser escrita tanto em prosa como em versos, nesta última possibilidade carrega ainda características da poesia. Conforme Soares (2007, p. 39), a epopeia é:

uma longa narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de interesse nacional e social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e deuses, podendo-se apresentar em prosa [...] ou em verso.

A Ilíada e a Odisseia são consideradas os dois maiores poemas épicos da história, considerados como marcos da narrativa ocidental. A primeira conta a história da guerra de Troia, cujo estopim foi o rapto de Helena, esposa do rei de Esparta. Os cantos descrevem feitos heroicos, especialmente de Aquiles, filho de um Deus com uma mortal, que demonstra nas batalhas toda a sua fúria.

Já a narrativa da Odisseia dedica-se ao retorno de Ulisses, que durante muitos anos afrontou perigos na terra e no mar, antes de poder retornar ao seu reino, Ítaca. Pode-se dizer que o mar foi o seu principal adversário. Em busca do retorno ao lar e à sua amada Penélope, o mar insistiu em o levar a terras muito exóticas. Só depois de muitos anos de esforços conseguiu retornar ao seu lar.

DICAS

: Assista aos filmes:TROIA. Direção de Wolfgang Petersen. Roteiro: David Benioff. 2004. A ODISSEIA. Direção de Andrei Konchalovsky. 1997.

Outro exemplo interessante é Os Lusíadas, de Camões. A escrita acontece na terceira pessoa, de forma que o escritor deve manter distanciamento dos fatos, pois estes representam acontecimentos do passado. Você é capaz de perceber essas características no excerto a seguir?

As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana,

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E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas Daqueles Reis, que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas

NOTA

Taprobana aqui refere-se a um nome de lugar.

Observa-se, nesse excerto, a bravura e os feitos heroicos de personagens que enfrentam o desconhecido a partir de mares nunca antes navegados em nome da fé e do império. Uma história é contada em forma de verso, no caso, a história da viagem de Vasco da Gama às Índias, sendo o personagem principal/herói Vasco da Gama, que é símbolo da bravura que representa o povo lusitano. Diferente da epopeia, o romance é escrito em prosa.

O romance surge na Idade Média, com os romances de cavalaria, narrando fatos fictícios sem compromisso em representar acontecimentos passados. Assume diferentes características, conforme o período literário. No Renascimento trata de temas pastoris e sentimentais, no Barroco retrata aventuras confusas e complexas. A narrativa moderna inicia com a escrita de Dom Quixote, de Cervantes. Aqui passa a apresentar, de maneira cômica, uma crítica aos costumes e abre espaço para a análise psicológica, representando através do personagem principal uma realidade fantástica, ou melhor, uma realidade alternativa em relação àquela que as demais pessoas costumam enxergar.

O gênero romance é composto por enredo, espaço, personagens, tempo e ponto de vista da narrativa. Quanto à sua estrutura, apresenta um núcleo ou história principal que se relaciona a vários núcleos secundários, quer dizer, histórias que acontecem paralelamente à principal.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

FIGURA 2 – ESTRUTURA DO ROMANCE E DA NOVELA

FONTE: A autora

Para ficar mais claro, você pode comparar a estrutura do romance à estrutura das telenovelas. Nelas temos uma história principal e, ao redor e ligadas a ela, histórias que acontecem simultaneamente.

O enredo do romance se constitui pelo encadeamento dos fatos narrados, ou seja, trata-se do conteúdo no qual a narrativa se constrói. Já a trama é a sequência dos fatos, os acontecimentos vividos pelos personagens no desenrolar da história.

O enredo se desenvolve de forma que o leitor conheça o ambiente e as personagens, logo se desenrolam os primeiros conflitos. O caminho para a resolução dos conflitos leva-nos ao clímax, que, como já mencionamos neste material, é o ponto de maior tensão e, quando se trata de uma telenovela, é o momento em que, geralmente, acaba o capítulo, deixando-nos ansiosos pelo desfecho, que é a maneira como se resolve o conflito. Esses elementos são comuns ao romance, à novela e também ao conto.

A narrativa, tanto do romance quanto do conto ou da novela, se organiza no fluxo do tempo, que pode ser linear, ou seja, quando o tempo, o espaço e os personagens são apresentados de maneira cronológica, onde podemos perceber facilmente começo, meio e fim da narrativa.

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A narrativa não linear desenvolve-se de maneira descontinuada, com saltos, antecipações, retrospectivas, há ruptura no tempo e no espaço em que as ações são apresentadas na narrativa. Exemplificamos com dois excertos do conto A Cartomante, de Machado de Assis.

Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba

que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...

— Errou! interrompeu Camilo, rindo.

Esse primeiro excerto é composto pelos primeiros parágrafos do conto. Você pode notar que Camilo e Rita demonstram ser bons conhecidos e conversam tranquilamente numa tarde qualquer. Porém, como você verá no trecho a seguir, somente já no final da primeira página é que Vilela apresenta sua esposa Rita a Camilo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.

Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

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Que você se sinta convidado a essa leitura que lhe permitirá perceber os efeitos da não linearidade na narrativa, o que, nesse caso especificamente, faz com que o leitor conheça o amor clandestino entre Rita e Camilo, enquanto o suspense da narrativa é construído na tensão que se dá até o momento em que Vilela descobre a traição, e o desfecho do conto. Além de apreciar a técnica, você terá uma boa leitura.

Para compreendermos como funciona a narrativa linear, basta observamos que os fatos são contados exatamente na ordem em que acontecem. É o caso, por exemplo, dos contos infantis de Cinderela, Branca de Neve e outros.

Quando falamos em tempo na narrativa, não podemos nos esquecer do tempo psicológico, este é imaterial, não é marcado pelo relógio, flui na mente das personagens. “Transmite a sensação experimentada durante o tempo em que o fato ocorreu: a personagem pode ter passado por situações que pareceram extremamente longas, mas que, na realidade, duraram apenas alguns minutos. O tempo psicológico é produto de uma experiência interior, não mensurável mecanicamente, mas subjetivamente” (BIAGI, 2013, s.p.). Em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, a menina pergunta ao coelho: Quanto tempo dura o que é eterno? Ao que o coelho responde: às vezes apenas um segundo.

O espaço, também chamado de cenário, é o conjunto de elementos que compõem a paisagem onde se desenvolve a trama. É muito importante, pois está diretamente ligado à trama e ao tempo. Por exemplo, no trecho a seguir, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, observamos o quanto o cenário define o enredo: “A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos”.

NOTA

A citação acima é retirada de material em e-book. Não apresenta data de publicação, nem numeração de páginas. Disponível em: <http://www.lettere.uniroma1.it/sites/default/files/528/GRACILIANO-RAMOS-Vidas-secas-livro-completo.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2017.

Quanto ao ponto de vista, a narrativa apresenta três tipos de narradores: o narrador-personagem, cuja escrita está em primeira pessoa, visto que ele também participa da história. Veja no excerto do conto a seguir:

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Édipo, tu que reinas em minha pátria, bem vês esta multidão prosternada diante dos altares de teu palácio; aqui há gente de toda a condição: crianças que mal podem caminhar, jovens na força da vida, e velhos curvados pela idade, como eu, sacerdote de Júpiter (SÓFOCLES, s.d.).

No excerto acima o narrador participa da história e fala a respeito da situação presenciada por ele e seu interlocutor.

Já o narrador-observador conta a narrativa em terceira pessoa, observa tudo de fora, sem dela participar, por isso é imparcial e conhece das personagens apenas o que é observável.

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos (KAFKA, s.d., p. 2).

Como você pôde notar, acima são descritas todas as características da personagem que havia se transformado em inseto, o narrador-observador só poderá conhecer os sentimentos da personagem quando estes são externados por ela.

Já o narrador-onisciente conta a história em terceira pessoa, com algumas intromissões em primeira. Diferente do narrador-observador, ele conhece o íntimo das personagens, inclusive suas emoções e pensamentos. Temos aqui um trecho de Vidas Secas, de Graciliano Ramos:

A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se, estava amarrado.

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O narrador-onisciente descreve os sentimentos de Fabiano como se fossem dele mesmo, aproveitando cada detalhe.

IMPORTANTE

Você já ouviu falar no site Domínio Público? Pois então, lá você pode acessar várias obras que já não dispõem mais de direitos autorais, na íntegra, e sem custos. Foi deste site que retiramos os excertos utilizados para exemplificar os tipos de narrador estudados: Édipo Rei, de Sófocles; A Metamorfose, de Franz Kafka, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Por isso não conseguimos precisar ano de publicação ou numeração de páginas.Esta é uma ótima maneira de ter acesso a vários clássicos. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2198>. Acesso em: 30 maio 2017.

O conto, assim como o romance, é composto por tema, enredo, conflito, clímax e desfecho, mas representa apenas um flagrante, um episódio singular. É formado por apenas um núcleo narrativo, ou seja, não há histórias paralelas ligadas ao núcleo narrativo. Compare a imagem a seguir com aquela que representa a composição do romance.

FIGURA 3 – ESTRUTURA DO CONTO

FONTE: A autora

Sugerimos a leitura do conto “Amor”, de Clarice Lispector. Nele você poderá analisar como o conto representa um flagrante de um momento específico, o resultado de um trabalho minucioso de seleção por parte do escritor, de forma a retratar os momentos mais significativos, concentrados na narrativa.

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A novela, quanto à estrutura, assemelha-se ao romance, sendo estruturada por um núcleo principal e núcleos secundários ligados a ele. Conforme Soares (2007), representa um meio-termo entre o conto e o romance. É menor que este último, mas tem todos os elementos estruturais dele, porém em menor quantidade. O clímax, como exemplificamos anteriormente, acontece com mais frequência como forma de prender a atenção do público leitor ou espectador, criando uma expectativa para a continuidade da narrativa. Na novela a narrativa acontece de forma mais acelerada que no romance, com predomínio de cenas de ação que dão dinamicidade à trama. Isso favorece o predomínio da narrativa desenvolvida por diálogos, o que também acontece nos textos dramáticos. Sobre esse gênero, aliás, comentaremos na sequência.

DICAS

Sobre a produção do gênero narrativo, sugerimos os filmes a seguir: ENCONTRANDO FORRESTER. Direção de Gus van Sant. Roteiro: Mike Rich. Música: Bill Brown. Alemanha, 2000. (76 min.), color. Legendado.MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO. Direção de Marc Forster. Roteiro: Zach Helm. Música: Britt Daniel, Brian Reitzell. 2007. (113 min.), color. Legendado.

4 GÊNERO DRAMÁTICO

A origem do gênero dramático vem de dráo, que significa fazer/ação. No século IV a.C., na Grécia antiga, o teatro apareceu como resultado de uma transformação dos hinos cantados em honra ao Deus Dionísio, deus do vinho e das festas. Nesse período também era comum a representação de comédias que satirizavam o comportamento humano e os costumes. Uma das características do teatro é que ele acontece por si mesmo, o enredo se desenrola a partir de diálogos sem a interferência de narrador. O desenrolar da narrativa procura desenvolver a expectativa do público até o desfecho da peça.

Em algumas peças dramáticas a tensão é extravasada pelo riso. O drama da vida do personagem, por mais complexo que seja, encontra fuga na comicidade. Muitas vezes, representa uma sátira de problemas sociais ou situações individuais, ou seja, funciona como uma crítica de costumes. Nessa linha, sugerimos que você leia o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, escrito em 1955 e encenado pela primeira vez 1956. Esse texto foi adaptado para a TV e exibido em quatro capítulos em 1998. Foi encenado por Selton Mello, fazendo o papel de Chicó; Matheus Nachtergaele, o papel de João Grilo, e Fernanda Montenegro, numa curta passagem, representando Nossa Senhora, e Lima Duarte, no papel de Padre.

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Confira a seguir um trecho dessa peça para entender melhor as características do gênero.

CHICÓ, depois de estender-lhe o punho fechado.Padre João!JOÃO GRILOPadre João! Padre João!PADRE, aparecendo na igrejaQue há, que gritaria é essa?Fala afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo que Leon Bloy

chamava “sarcedotais”.CHICÓMandaram o senhor avisar para o senhor não sair, porque vem uma

pessoa aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer. PADREPara eu benzer?CHICÓSim.PADRE, com desprezo.Um cachorro?CHICÓSim.PADREQue maluquice! Que besteira!JOÃO GRILOCansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Benze porque benze, vim

com ele.PADRENão benzo de jeito nenhumCHICÓMas, padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho. JOÃO GRILONo dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor

não o benzeu?PADREMotor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu

nunca ouvi falar. CHICÓEu acho cachorro uma coisa muito melhor que motor. PADREÉ, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer

motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro?JOÃO GRILOÉ, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é

benzer o motor do major Antônio Morais e outra o cachorro do major Antônio Morais. PADRE, mão em concha no ouvido.Como?

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JOÃO GRILOEu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio

Morais. PADREO dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais?JOÃO GRILOÉ, eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o major

é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar.

PADRE, desfazendo-se em sorrisos.Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito de

se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro!

JOÃO GRILO, cortante. Quer dizer que benze, não é?PADRE, a Chicó.Você, o que é que acha?CHICÓEu não acho nada demais. PADRENem eu. Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus. JOÃO GRILOEntão fica tudo na paz do senhor, com cachorro benzido e todo mundo

satisfeito. PADREDigam ao major que venha. Estou esperando. Entra na igreja.CHICÓQue invenção foi essa de dizer que o cachorro era do major Antônio Morais?JOÃO GRILOEra o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do

major que se pela. Não viu a diferença? Antes era “Que maluquice, que besteira!”, agora “Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!”

CHICÓIsso não vai dar certo. Você já começa com suas coisas, João. E havia

necessidade de inventar que era empregado de Antônio Morais?JOÃO GRILOMeu filho, empregado do major e empregado do amigo do major é quase

a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que é amigo do homem, de modo que a diferença é muito pouca. Além disso, eu podia perfeitamente ter sido mandado pelo major, porque o filho dele está doente e pode até precisar do padre.

CHICÓ João, deixe de agouro com o menino, que isso pode se virar por cima de você.JOÃO GRILOE você deixe de conversa. Nunca vi homem mais mole do que você, Chicó.

O padeiro mandou você arranjar o padre para benzer o cachorro e eu arranjei sem ter sido mandado. Que é que você quer mais? (SUASSUNA, 1989, p. 31).

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Como você pode notar, não há no texto um narrador, toda a história fica clara através das falas dos personagens. Como o texto é feito para ser encenado, há ora ou outra, em itálico, alguma instrução sobre como o ator deve agir. A introdução das falas, ao contrário de outras narrativas, onde se usa o verbo dicendi e são introduzidas por travessão, aqui são sempre indicadas pelo nome do personagem.

Quanto ao conteúdo, temos uma sátira dos costumes da igreja e sua relação com as pessoas financeiramente mais abonadas da sociedade, ou seja, aquelas das quais a instituição pode usufruir de patrocínios. A elas são abertas exceções. A seguir, comentamos sobre um tipo específico de gênero dramático, a tragédia.

a) Tragédia

Trata-se de uma forma dramática que surgiu no século IV a.C. Entre as suas características representativas está a crise de valores e o choque entre o racional e o mítico. Conforme Soares (2007), o nome tragédia vem de tragos (bode) e ethos (caráter). Esse costuma ser o carma do herói da tragédia, ele é confrontado entre o seu caráter e o seu destino, vivendo num mundo trágico, em tensão com a organização social, jurídica e moral da sociedade da época.

A desgraça do herói se dá quando este vivencia o desequilíbrio, um valor negativo que o coloca em erro inconscientemente, o que estará vinculado ao seu destino e que acaba por destruir o seu mundo. A trajetória do herói apresenta os mesmos elementos comuns a outros textos narrativos, o enredo, o conflito, o clímax e o desfecho. O clímax é o ápice do conflito, que se encaminha para um desfecho catastrófico.

Uma história que representa bem essas características é Édipo Rei, de Sófocles. Ao nascer, um profeta previu que Édipo mataria o próprio pai e se casaria com a própria mãe. O menino cresceu com pais adotivos e, ao saber da profecia afastou-se deles, mas durante sua trajetória, sem conhecer os pais biológicos, a profecia se concretiza, o que o leva à loucura.

Sugerimos também obras como Romeu e Julieta, Hamlet e Otelo, de Shakespeare. Você pode fazer a leitura ou também encontrá-las em versões adaptadas ao cinema.

b) Comédia

Conforme Soares (2007), vem do grego komoidía e tem relação com os festejos populares. Os atores das peças de comédia não eram bem aceitos na cidade, então andavam de uma aldeia para outra. Essa forma dramática costumava ser atribuída a homens considerados de pouca sabedoria, cujas peças usavam do ridículo para produzir o riso fácil.

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Muito comuns na era medieval eram os autos. Estes tinham como características textos que traziam à tona personagens-tipo, ou seja, personagens que representavam não uma pessoa especificamente, mas tipos sociais, como um comerciante ou um homem burguês, por exemplo. Apesar de se tratar de textos teatrais, eram compostos em versos, com diálogos irônicos e linguagem popular. Gil Vicente é considerado o maior nome do humanismo português. Acompanhe a seguir um excerto do Auto da Lusitânia, de sua autoria .

Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando alguma coisa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém, e diz:

- Que andas tu aí buscando?Todo o Mundo- Mil cousas ando a buscar:delas não posso acharporém ando perfiando,por quão bom é perfiar.Ninguém- Como hás nome, cavaleiro?Todo o Mundo- Eu hei nome Todo o Mundo, e meu tempo inteirosempre é buscar dinheiroe sempre nisto me fundo. Ninguém - Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência(Berzebu para Dinato)- Esta é boa experiência!Dinato, escreve isto bem. Dinato- Que escreverei, companheiro?Berzebu- que Ninguém busca consciência e Todo o Mundo dinheiro.(Ninguém para Todo o Mundo)- E agora que buscas lá?Todo o Mundo- Busco honra muito grande.Ninguém- E eu virtude, que Deus mandeQue tope co ela já.(Berzebu para Dinato)- Outra adição nos acude:escreve aí, a fundo, que busca honra Todo o Mundo,

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e Ninguém busca virtude. Ninguém - Buscas outro mor bem qu’esse?Todo o Mundo- Busco mais quem me louvassetudo quanto eu fizesse.Ninguém- E eu quem me repreendesseem cada cousa que errasse. (Berzebu para Dinato)- Escreve maisDinato- Que tens sabido?Berzebu- Que quer um extremo gradoTodo o Mundo ser louvado,e Ninguém ser repreendido. [...](Todo o Mundo para Ninguém)- E mais queria o paraíso, Sem mo ninguém estorvar.Ninguém:- Eu ponho-me a pagarQuanto devo pera isso. (Berzebu para Dinato)- Escreve com muito aviso. Dinato- Que escreverei?Berzebu- Escreveque Todo o Mundo quer paraíso,e Ninguém paga o que deve. (VICENTE, 1965, p. 452)

São perceptíveis no auto algumas características como os personagens-tipo representados por Todo o Mundo e Ninguém, que escritos com maiúscula vão brincando com o duplo sentido das mensagens. O texto joga o tempo todo com os sentidos dos ditos de forma irônica, numa crítica aos costumes da sociedade da época.

Também é representativa desse gênero a farsa, podemos citar como exemplo A Megera Domada, de Shakespeare. A trama se desenrola entre Katherina, que tem fama de mulher de personalidade difícil, e seu pretendente Petrúquio, que vivem em pé de guerra. Esta obra foi adaptada para a televisão com o título O Cravo e a Rosa e talvez até você a tenha assistido.

A comédia é um gênero dramático que costuma trabalhar com o imprevisível e a surpresa, e tem como matéria-prima os jogos de palavras, o exagero, as formas estereotipadas, o humor e a ironia.

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c) Drama

A palavra drama refere-se de maneira geral a gênero dramático ou sinônimo de peça teatral, mas aqui nos referimos ao hibridismo da tragédia com a comédia.

Essa forma teatral surge no século XVIII e, aos poucos, vai abandonando os temas históricos, os famosos dramas de capa e espada, e passa a privilegiar um teatro de atualidades, cuja obra inaugural é A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Os curiosos podem ler o livro ou mesmo conhecer a versão cinematográfica que se encontra facilmente on-line.

Contemporaneamente, entende-se drama em contraste à comédia, são entendidas como peças de caráter sério ou mesmo solene.

Dentro do drama, ainda temos a tragicomédia, que mescla o cômico e o trágico, característica do século XV ao XVII, e o melodrama, em que predomina o sentimentalismo exagerado e, às vezes, patético.

Como você pôde acompanhar, os gêneros textuais se subdividem em subgêneros, que são o narrativo, o épico e o dramático, e estes ainda se subdividem novamente conforme características peculiares e o momento e espaço em que se desenvolvem e, às vezes, se interpenetram. É interessante perceber que independente das classificações dadas a cada um deles, numa tentativa incessante de conseguir entendê-los, de maneira geral, buscam contar a vida e alma humana. E se podemos dizer que a arte imita a vida, podemos dizer: a arte a faz também mais significativa, interpretando-a e brincando com ela da maneira como geralmente não costumamos ousar. Talvez por isso, buscamos entender a arte como o objeto dialógico que é e, quem sabe, através dela, entender a nós mesmos.

LEITURA COMPLEMENTAR

TEORIA E SENSO COMUM

Um balanço, um mapa da teoria literária seria, entretanto, concebível? E de que forma? Não seria esse um projeto abortado se, como afirma Paul de Man, “o principal interesse teórico da teoria literária consiste na impossibilidade de sua definição?” A teoria não poderia, então, ser apreendida senão graças a uma teoria negativa, segundo o modelo desse Deus escondido do qual somente uma teologia negativa pode falar. Isso significa situar o horizonte alto demais, ou longe demais as afinidades, aliás reais, entre teoria literária e niilismo. A teoria não pode se reduzir a uma técnica nem a uma pedagogia — ela vende sua alma nos vade-mécum de capas coloridas expostas nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin —, mas isso não é motivo para fazer dela uma metafísica nem uma mística. Não a tratemos como uma religião. A teoria literária não teria senão um “interesse teórico?” Não, se estou certo ao sugerir que ela é também, essencialmente, crítica, opositiva ou polêmica.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Porque não é do lado teórico ou teológico, nem do lado prático ou pedagógico, que a teoria me parece principalmente interessante e autêntica, mas pelo combate feroz e vivificante que empreende contra as ideias preconcebidas dos estudos literários, e pela resistência igualmente determinada que as ideias preconcebidas lhe opõem. Esperaríamos, talvez, de um balanço da teoria literária, que depois de ter prestado uma rápida homenagem às teorias literárias antigas, medievais e clássicas desde Aristóteles até Batteux, sem esquecer uma passagem pelas poéticas não ocidentais, arrolasse as diferentes escolas que compartilharam a atenção teórica no século XX. [...] Inúmeros manuais são assim: ocupam os professores e tranquilizam os estudantes. Mas esclarecem um lado muito acessório da teoria. Ou até mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a caracteriza, na verdade, é justamente o contrário do ecletismo, é seu engajamento, sua vis polemica, assim como os impasses a que esta última a leva sem que ela se dê conta. Os teóricos dão a impressão, muitas vezes, de fazer críticas sensatas contra a posição de seus adversários, mas visto que estes, confortados por sua boa consciência de sempre, não renunciam e continuam a matraquear, os teóricos se põem também eles a falar alto, defendem suas próprias teses, ou antíteses, até o absurdo, e, assim, anulam-se a si mesmos diante de seus rivais encantados de se verem justificados pela extravagância da posição adversária. Basta deixar falar um teórico e contentar-se em interrompê-lo com um “Ah!” um pouco debochado, para vê-lo desmoronar diante de nossos olhos!

Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet, nosso velho professor de latim-francês, que era também prefeito de sua cidadezinha na Bretanha, perguntava-nos a cada texto de nossa antologia: “Como vocês compreendem essa passagem? O que o autor quis dizer? Onde está a beleza do verso ou da prosa? Em que a visão do autor é original? Que lição podemos tirar daí?” Acreditamos, durante um tempo, que a teoria da literatura tivesse banido para sempre essas questões lancinantes, mas as respostas passam e as perguntas permanecem. Estas são mais ou menos as mesmas. Há algumas que não cessam de se repetir de geração em geração. Colocavam-se antes da teoria, já se colocavam antes da história literária, e se colocam ainda depois da teoria, de maneira quase idêntica. A tal ponto que nos perguntamos se existe uma história da crítica literária, como existe uma história da filosofia ou da linguística, pontuada de criações de conceitos, como o cogito ou o complemento. Na crítica, os paradigmas não morrem nunca, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou menos pacificamente e jogam indefinidamente com as mesmas noções — noções que pertencem à linguagem popular. Esse é um dos motivos, talvez o principal motivo, da sensação de repetição que se experimenta, inevitavelmente, diante de um quadro histórico da crítica literária: nada de novo sob o sol. Em teoria, passa-se o tempo tentando apagar termos de uso corrente: literatura, autor, intenção, sentido, interpretação, representação, conteúdo, fundo, valor, originalidade, história, influência, período, estilo etc. É o que se fez também, durante muito tempo, em lógica: recortava-se na linguagem cotidiana uma região linguística

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

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dotada de verdade. Mas a lógica formalizou-se depois. A teoria literária não conseguiu desembaraçar-se da linguagem corrente sobre a literatura, a dos ledores e dos amadores. Assim, quando a teoria se afasta, as velhas noções ressurgem intocadas. É por serem “naturais” ou “sensatas” que nunca não escapamos dela realmente? Ou, como pensa de Man, é porque só desejamos resistir à teoria, porque a teoria faz mal, contraria nossas ilusões sobre a língua e a subjetividade? Poderíamos dizer, hoje, que quase ninguém foi tocado pela teoria, o que talvez seja mais confortável.

Então, não restaria mais nada, ou apenas a pequena pedagogia que descrevi? Não inteiramente. Na fase áurea, por volta de 1970, a teoria era um contradiscurso que punha em questão as premissas da crítica tradicional. Objetividade, gosto e clareza, Barthes assim resumia, em Critique et Verité [Crítica da Verdade], em 1966, ano mágico, os dogmas do “suposto crítico” universitário, o qual ele queria substituir por uma “ciência da literatura”. Há teoria quando as premissas do discurso corrente sobre a literatura não são mais aceitas como evidentes, quando são questionadas, expostas como construções históricas, como convenções. Em seu começo, também a história literária se fundava numa teoria, em nome da qual eliminou do ensino literário a velha retórica, mas essa teoria perdeu-se e edulcorou-se à medida que a história literária foi se identificando com a instituição escolar e universitária. O apelo à teoria é, por definição, opositivo, até mesmo subversivo e insurrecto, mas a fatalidade da teoria é a de ser transformada em método pela instituição acadêmica, de ser recuperada, como dizíamos. Vinte anos depois, o que surpreende, talvez mais que o conflito violento entre a história e a teoria literária, é a semelhança das perguntas levantadas por uma e por outra nos seus primórdios entusiastas, sobretudo esta, sempre a mesma: “O que é literatura?”.

Permanência das perguntas, contradição e fragilidade das respostas: daí resulta que é sempre pertinente partir das noções populares que a teoria quis anular, as mesmas que voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de não só tentar rever as respostas opositivas que ela propôs, mas também tentar compreender por que essas respostas não resolveram de uma vez por todas as velhas perguntas. Talvez porque a teoria, à custa de sua luta contra a Hidra de Lerna, tenha levado seus argumentos longe demais e eles tenham se voltado contra ela? A cada ano, diante de novos estudantes, é preciso recomeçar com as mesmas figuras de bom senso e clichês irreprimíveis, com o mesmo pequeno número de enigmas ou de lugares comuns que balizam o discurso corrente sobre a literatura. Examinei alguns, os mais resistentes, porque é em torno deles que se pode construir uma apresentação simpática da teoria literária como todo o vigor de sua justa cólera, da mesma maneira como ela os combateu — em vão.

FONTE: COMPAGNON, Antoine. Teoria e Senso Comum. In: O Demônio da Teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

NOTA

Niilismo: redução ao nada; aniquilamento; não existência. Concepção que considera que os valores e crenças tradicionais são infundados e que não há sentido, nem utilidade na existência.

Edulcorou-se: de edulcorar: tornar-se doce ao paladar ou tornar-se manso, suave.

Hidra de Lerna: animal da mitologia grega, filho dos monstros Tifão e Equidna. Tinha o corpo de dragão e sete cabeças de serpente, seu hálito era venenoso e, uma vez cortadas, as cabeças podiam se regenerar rapidamente.

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RESUMO DO TÓPICO 5

Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura exerce a função de expressão artística e transmissão de conhecimentos. Tradicionalmente, é dividida em gêneros.

o Gênero Lírico: retrata sentimentos e emoções através do eu-lírico. A palavra lírico vem do instrumento musical lira, que geralmente acompanhava as composições poéticas. Esse gênero privilegia aspectos formais do texto, bem como a musicalidade, o ritmo, a rima e a semântica. Subdivide-se em:

a) Elegia: refere-se a cantos de tristeza e luto pela morte de uma pessoa querida ou a tristeza de um amor não correspondido ou interrompido.

b) Ode: poemas compostos para serem cantados, geralmente formados por quartetos, mas com métrica variada. São hinos que se subdividem em: pindáricas, que exaltam homens de conhecimentos ilustres; as sacras, que exaltam a religiosidade; as filosóficas, que tratam de assuntos meditativos; as sáficas, que se preocupam com a moralidade; e as báquicas, que exaltam os prazeres da boa comida e bebida.

c) Écogla: as emoções são representadas por temas da natureza. São poemas pastoris e bucólicos.

d) Soneto: a forma do soneto mais conhecida contemporaneamente é composta por dois quartetos (duas estrofes com quatro versos) e dois tercetos (duas estrofes com três versos). Porém, tradicionalmente são contemplados os dísticos (estrofes com dois versos) e o spencerista, com três quadras que se entrelaçam.

o Gênero Narrativo: refere-se ao ato de narrar, contar histórias. Subdivide-se em:

a) Epopeia: narração longa, escrita em prosa ou verso.

b) Romance: apresenta um núcleo narrativo principal, mas tem vários núcleos secundários que estão interligados entre si e ao núcleo principal.

c) Conto: mais breve que o romance, pois apresenta apenas um núcleo narrativo.

d) Novela: assemelha-se ao romance, sendo estruturada por um núcleo principal e núcleos secundários a ele ligados. Representa um meio-termo entre o conto e o romance, pois, em extensão, é menor que este último e maior que o primeiro e apresenta os mesmos elementos estruturais.

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o Gênero Dramático: representado pelo teatro que surgiu como resultado de uma transformação dos hinos cantados em honra ao Deus Dionísio. Também é representado por comédias que satirizam o comportamento humano e os costumes. Subdivide-se em:

a) Tragédia: representa a crise de valores e o choque entre o racional e o mítico. Costuma apresentar a desgraça do herói que vive em desequilíbrio, confrontado entre o caráter e o destino.

b) Comédia: está relacionada aos festejos populares, as peças não eram bem aceitas nas cidades, por isso costumavam ser apresentadas em aldeias. Um dos tipos de comédia muito comum são os autos.

c) Drama: formado pelo hibridismo da comédia e da tragédia. A princípio trata de temas históricos, mas depois passa a privilegiar temas que retratam aspectos da sociedade. A obra inaugural é A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho.

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1 Dentre os textos do gênero lírico que estudamos, como podemos classificar o poema a seguir?

Soneto 23 Como no palco o ator que é imperfeito Faz mal o seu papel só por temor, Ou quem, por ter repleto de ódio o peito Vê o coração quebrar-se num tremor, Em mim, por timidez, fica omitido O rito mais solene da paixão; E o meu amor eu vejo enfraquecido, Vergado pela própria dimensão. Seja meu livro então minha eloquência, Arauto mudo do que diz meu peito, Que implora amor e busca recompensa Mais que a língua que mais o tenha feito. Saiba ler o que escreve o amor calado: Ouvir com os olhos é do amor o fado.

William Shakespeare

a) ( ) Elegiab) ( ) Sonetoc) ( ) Écogla

2 Como observamos, os gêneros conto, romance e novela têm caraterísticas

semelhantes, visto que narram uma história real. Porém, há alguns elementos que assemelham entre esses gêneros e outros que os distanciam. Dessa forma, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

( ) O romance, assim como a novela, é constituído por vários núcleos narrativos, sendo um deles o núcleo principal e os outros núcleos secundários que a ele se interligam.

( ) O conto geralmente tem apenas um núcleo narrativo, por isso é mais breve e apresenta um recorte temporal menor.

AUTOATIVIDADE

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( ) O clímax é o momento de maior tensão da narrativa, mas não está presente no conto.

( ) A estrutura do conto é composta por enredo, conflito, clímax e desfecho.

Assinale a ordem correta:

a) ( ) V, V, F, Vb) ( ) F, F, F, Fc) ( ) V, F, V, Fd) ( ) V, V, V, F

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UNIDADE 2

OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade, você será capaz de:

• compreender os conceitos de gênero e de poética;

• compreender e contextualizar criticamente a teoria dos gêneros literários;

• reconhecer a historicidade da classificação das obras a partir da teoria dos gêneros literários;

• entender a importância da antiga teoria dos gêneros literários para a moderna teoria da literatura;

• identificar a especificidade dos gêneros dramático e lírico na antiguidade e na modernidade;

• conhecer a literatura de cordel.

Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles, você terá atividades que vão ajudá-lo a refletir sobre os assuntos abordados.

TÓPICO 1 – A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

TÓPICO 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS

TÓPICO 3 – LITERATURA DE CORDEL

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TÓPICO 1

A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Na primeira unidade do livro de Teoria da Literatura I você viu que, desde a Antiguidade, a literatura se divide em gêneros literários, quais sejam, o gênero lírico, o gênero dramático e o gênero épico ou narrativo. A teoria dos gêneros literários, mais do que um importante intento de classificação da literatura, designa uma forma de ver o mundo. Assim, podemos, por exemplo, atribuir o adjetivo épico ou dramático a um jogo de futebol, não é verdade? Nesta unidade, estudaremos mais detidamente os gêneros dramático e lírico, ou seja, o teatro e o poema, respectivamente, com o objetivo de compreendermos a especificidade de ambos os gêneros literários e nos capacitarmos, ao final, para diferenciar cada gênero. Para tanto, consideramos importante contextualizarmos e problematizarmos a teoria dos gêneros literários, considerando as principais transformações ocorridas nas artes e na teoria da literatura desde a Antiguidade. Iniciaremos esta unidade com a contextualização e problematização da teoria para, em seguida, estudarmos o gênero dramático e, finalmente, o gênero lírico.

Seja bem-vindo!

2 A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS: CONTEXTUALIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO

Como você viu na primeira unidade, a classificação dos gêneros literários remonta à Antiguidade. A esse respeito, ao observar que a tendência para classificar as obras “literárias surge com as manifestações poéticas mais remotas”, Angélica Soares (2007, p. 7) conclui: “Assim, pode-se contar a história da teoria dos gêneros literários no Ocidente, a partir da Antiguidade greco-romana”.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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Antes ainda da classificação dos gêneros literários proposta por Platão e Aristóteles, com a divisão tripartida da literatura nos gêneros dramático, lírico e épico, a literatura sugere uma teoria da literatura ao problematizar, em si e por si mesma, sua natureza, sua função e seus efeitos. A literatura, como lembra Roberto Acízelo de Souza (1987, p. 8), “é um produto cultural que surge com a própria civilização ocidental, pelo fato de que textos literários figuram entre os indícios mais remotos da existência histórica dessa civilização”. As questões propostas na e pela literatura seriam retomadas e aprofundadas com o surgimento recente da teoria da literatura como disciplina, que retorna aos ensinamentos de Aristóteles.

Roberto Acízelo de Souza (1987, p. 8) constata que os poemas épicos Ilíada e Odisseia, de Homero, trazem em si as primeiras considerações da literatura como objeto a ser esclarecido: “o que problematiza pela primeira vez a literatura é a própria literatura”, conclui o autor. Afinal, neles “há passagens em que a ação narrada enseja considerações sobre a função e a natureza da poesia, bem como sobre o poder do discurso”. Com o intuito de demonstrar como a literatura se problematiza, Roberto Acízelo de Souza (1987, p. 9) cita a Odisseia:

Ulisses exclamou: “Demódocos, [...] contas muito bem o destino dos aqueus [...] como se ali tivesses estado, ou ouvido de alguém que esteve. Agora, muda de tom e conta o ardil do cavalo de madeira [...] Depois, se contares bem a história, declararei sem demora a todo mundo que Zeus foi generoso contigo e inspirou teu canto”.

E conclui que o “trecho em apreço encerra uma teoria relativa à literatura, propondo uma explicação para sua origem, natureza e função”. A seguir, o autor procura descrever essa teoria:

a origem da literatura é o ensinamento dos deuses; sua natureza consiste em ser uma narrativa dotada de especial poder de encantamento; sua função é reconstituir com fidelidade as ações dos heróis, decorrendo dessa tríplice determinação a elevada consideração de que o poeta desfruta na comunidade (SOUZA, 1987, p. 10).

ESTUDOS FUTUROS

Na próxima unidade, dedicada ao gênero épico, você conhecerá um pouco mais dos poemas épicos de Homero, Ilíada e Odisseia.

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TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

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Com Platão e Aristóteles, portanto, cujas contribuições confirmam a necessidade de se problematizar a literatura, a teoria dos gêneros literários, proposta por ambos, contribui para o desenvolvimento da problematização da literatura, com contornos mais definidos. Souza (1987, p. 13) esquematiza resumidamente, e em termos de descritivismo e normativismo, os estudos da literatura desde as teorias de Platão e Aristóteles. Observe:

1) Em Platão e Aristóteles predomina, apesar de colocações normativas, o descritivismo.2) ainda na Antiguidade, depois da época clássica o tom normativo se impõe, tanto entre os gregos quanto entre os latinos.3) na Idade Média, o normativismo persiste, tanto pela retórica, quanto pelo aparecimento da chamada gaia ciência, arte ou técnica de compor versos segundo a prática dos poetas ligados ao lirismo de origem provençal, florescente no período que se estende do século XI ao XIII.4) do século XV ao XVIII ocorre a redescoberta da Poética, exacerbando a atitude normativa.5) a partir do século XIX, a consolidação do Romantismo faz ruir a preceptística consagrada pelo Classicismo moderno.

Como você pode ver, desde a origem, na época clássica da Antiguidade, da teoria dos gêneros literários, caracterizada pelo descritivismo, predominaria o normativismo, com a exceção do que posteriormente os historiadores da literatura e das artes em geral identificariam e nomeariam como Barroco. A hegemonia do normativismo, como demonstra Roberto Acízelo de Souza, termina apenas com a consolidação do Romantismo no século XIX.

NOTA

O descritivismo, aqui, consiste em descrever as obras. O normativismo, por sua vez, consiste em prescrever leis e normas a serem seguidas pelos autores na composição das obras.

Curiosamente, em Aristóteles, o conceito de “gênero” parece tratar da origem das diferentes espécies de gêneros enquanto estabilização de uma forma, entrevendo, no entanto, a possibilidade de transformações. Observe, por exemplo, a passagem da Poética em que Aristóteles (2008, p. 44) analisa a origem da tragédia:

Tendo surgido, portanto, no início, da improvisação – tanto a tragédia como a comédia, uma a partir dos autores de ditirambos, outra dos autores dos cantos fálicos, cantos estes que têm aceitação, ainda hoje, em muitas cidades –, a tragédia evoluiu pouco a pouco, ao mesmo tempo que se desenvolvia tudo o que lhe era inerente. Após sofrer muitas alterações, a tragédia se estabilizou quando atingiu a sua natureza própria.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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Apesar de a concepção de “gênero” em Aristóteles entrever transformações, o que contribui para que a sua exposição seja predominantemente descritiva, como nota Roberto Acízelo de Souza, as poéticas posteriores, embora embasadas teoricamente nos ensinamentos de Aristóteles, conceberiam, em geral, os gêneros literários como formas fixas, de forma predominantemente prescritiva, impondo leis e normas a serem seguidas pelos autores. Podemos pressupor que a razão para a fixação das formas se encontre em Platão, que, compreendendo a arte como representação da natureza, infere que transformações nas artes abalariam “as mais altas leis da cidade” (PLATÃO, 2001, p. 169). A ideia de gênero de Platão pode ser comparada, assim, com aquela de Ideia, ou seja, uma forma original e universal de que as obras seriam o particular. Quanto ao conceito de “gênero”, Angélica Soares (2007, p. 7) esclarece que:

A denominação de gêneros literários, para os diferentes grupamentos das obras literárias, fica mais clara se lembrarmos que gênero (do latim genus-eris) significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. E o que se vem fazendo, através dos tempos, é filiar cada obra literária a uma classe ou espécie; ou ainda, é mostrar como certo tempo de nascimento e certa origem geram uma nova modalidade literária.

A palavra "poética", por sua vez, é de origem grega e abrevia a expressão poietikè téchne, como explica Emil Staiger (1975, p. 95). Em “Conceitos fundamentais da poética”, o germanista Emil Staiger (1975, p. 96) resume o que se compreendia antigamente por poética: “a Poética ensina em que consiste a essência da poesia; ordena os modelos existentes e com isso cria o problema do gênero; orienta os inexperientes que pretendem ocupar-se com a atividade poética”. O autor observa, a seguir, que “somente depois de Gottsched é que começa a abalar-se na Ciência da Poesia a crença no ensinamento”, desde que a poesia não é mais, como era para o escritor, crítico e dramaturgo alemão do século XVIII, Johann Christoph Gottsched, “imitação da natureza e dos modelos existentes, e sim uma atividade criadora”.

O abalo na teoria dos gêneros literários, constatada por Staiger, decorre da concepção moderna do tempo, ou seja, da concepção de história, que corresponde ao reconhecimento do estatuto histórico das formas artísticas, que transparece, por exemplo, no surgimento do romance. Essa é a compreensão de gênero de Georg Lukács (1955 apud ROSENFELD, 2014, p. 32), por exemplo, ao analisar a historicidade das formas dos gêneros literários, constatando que “as formas dos gêneros não são arbitrárias. Emanam, ao contrário, em cada caso, da determinação concreta do respectivo estado social e histórico. Seu caráter e peculiaridade são determinados pela maior ou menor capacidade de exprimir os traços essenciais de dada fase histórica”. A esse respeito, Anatol Rosenfeld (2014, p. 32) prefere dizer que o uso dos gêneros “adapta-se em grande medida à situação histórico-social e, concomitantemente, à temática proposta pela respectiva época”. As consequências desse processo para a poética e para a teoria dos gêneros literários são analisadas por Staiger (1975, p. 4):

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TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

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De há muito Poética não mais significa ensinamentos práticos para habilitar leigos a escrever corretamente poesia, obras épicas e dramas. Mas um ranço da conceituação mais antiga impregna ainda ensaios de hoje, quando estes parecem ver realizada em modelos de poemas, obras épicas ou dramas, a essência do lírico, épico e dramático. Essa maneira de enfocar o problema se apresenta como herança da antiguidade. Naqueles tempos, cada gênero literário era representado por um pequeno número de obras. Era lírica toda poesia que se assemelhasse em composição, extensão e principalmente na métrica às criações dos autores líricos considerados clássicos, Alcman, Estesídoro, Alceu, Safo, Ibico, Anacreonte, Simônides, Baquílides e Píndaro. Os romanos podiam, assim, classificar Horácio como lírico, mas não Catulo, já que este escolhera outros pés métricos. Mas da antiguidade até hoje, os modelos multiplicaram-se indefinidamente. A Poética encontrará, portanto, dificuldades quase insuperáveis, e, caso solucionadas, de muito pouco proveito, se continuar procurando classificar todos os exemplos isolados. A Poética teria — para continuarmos dentro do gênero lírico — que comparar baladas, canções, hinos, odes, sonetos e epigramas entre si, percorrer sua evolução durante um ou dois milênios consecutivos, e descobrir o que há de comum entre essas composições, chegando então, finalmente, a um conceito global do que seria o gênero lírico. Mas um conceito que tenha validez geral será, por outro lado, vazio de significação. Além disso, no momento em que surgir um novo artista lírico com um modelo inédito, o conceito perderá sua validade. Por estas razões, a possibilidade de uma arte poética tem sido muitas vezes contestada. Fala-se das vantagens de se poder seguir "sem preconceitos" as transformações históricas, e despreza-se, assim, todo o tipo de sistematização tornada dogma. Essa renúncia à Poética é compreensível, enquanto esta mantenha a pretensão de catalogar em compartimentos estanques todas as poesias, composições épicas e dramas existentes. A individualidade de cada poesia exigiria tantas divisões quantas poesias existam — e isso tornaria supérflua qualquer tentativa de ordenação. Se desacreditamos da possibilidade de determinar a essência da poesia lírica, da composição épica ou do drama, não nos parece, porém, fora de propósito uma definição do lírico, do épico e do dramático.

Staiger constata as dificuldades geradas pela classificação das obras literárias a partir do modelo tripartido proveniente da Antiguidade, dificuldades potencializadas pela multiplicação dos modelos desde a Antiguidade, e admite a inutilidade da antiga conceituação para a classificação das obras literárias, mas não rejeita, como podemos ver ao final da citação, a definição do lírico, do épico e do dramático, que, para ele, não se aplica necessariamente a obras literárias classificadas como poemas, epopeias ou dramas, respectivamente, maneira de enfocar o problema que Staiger compreende como “herança da antiguidade”, mas, antes, designa o que ele chama a “essência do lírico, épico e dramático”. Assim, sugere uma distinção dos substantivos, a Lírica, a Épica e o Drama, e dos adjetivos, lírico, épico, dramático, e recusa a possibilidade de “pureza” de gênero:

não vamos de antemão concluir que possa existir em parte alguma obra que seja puramente lírica, épica ou dramática. Nossos estudos, ao contrário, levam-nos à conclusão de que qualquer obra autêntica participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e de que essa diferença de participação vai explicar a grande multiplicidade de tipos já realizados historicamente (STAIGER, 1975, p. 5).

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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Staiger conclui que podemos julgar (mas não valorar, uma vez que acredita que o valor não se aplica a uma consideração dos gêneros) as obras a partir da perspectiva dos gêneros literários, ou seja, da divisão tripartida em lírico, épico e dramático. Desde que a consolidação do Romantismo faz ruir os preceitos das poéticas clássicas, como vimos com Roberto Acízelo de Souza, os valores românticos, como a originalidade e liberdade de criação literária, abalam “a crença nos modelos”, confirma Staiger (1975, p. 97): “Se a Poética quer respeitar tal sentimento, vê-se mais uma vez frente ao problema de diferenciar gênero e modelos, e de não prejudicar a liberdade do poeta, ao delimitar os gêneros separadamente”.

Diante da multiplicação e da hibridização dos gêneros, valorizadas desde o Romantismo, Staiger (1975, p. 97-98) valida a interpretação de obras literárias individuais em detrimento das prescrições de gêneros literários das poéticas clássicas: “A este ponto já é compreensível se uma pesquisa histórica refuta toda e qualquer Poética e limita-se, como se diz, ‘sem pressupostos’ à interpretação de cada obra”. Confirmando, como vimos, não rejeitar a definição do lírico, do épico e do dramático, afirma: “sinto a necessidade de esclarecer uma certa confusão de conceitos, que ainda parece existir aqui. Formamos do substantivo ‘drama’, o adjetivo ‘dramático’”. E, diante dessa “confusão babilônica!”, como se refere à confusão conceitual entre os substantivos e os adjetivos relativos aos gêneros literários, conclui: “Os conceitos é que aí estão inteiramente desordenados, como restos da antiga Poética que perdeu seu alicerce”.

Neste ponto de sua argumentação, Staiger (1975, p. 98) propõe uma diferenciação entre os substantivos, usados para classificar as obras literárias conforme suas características formais, e os adjetivos:

Se observarmos minuciosamente, aquela confusão de conceitos dissipa-se com facilidade. Os substantivos Épica, Lírica e Drama são usados em geral como terminologia para o ramo a que pertence uma obra poética considerada, globalmente, segundo características formais determinadas. [...] Diferente à conotação dos adjetivos lírico, épico, dramático. Um trecho lírico não é apenas qualquer poema, qualquer exposição em monólogo de um estado. Mas fica nitidamente expresso que esta exposição em monólogo de um estado seja lírica, ao contrário de outras que não o são tão nitidamente.

Como você pode perceber, para Staiger, diferentemente dos substantivos Épica, Lírica e Drama, os adjetivos lírico, épico e dramático não são totalizantes, não se propõem a classificar definitivamente e como um todo uma obra literária ou um conjunto de obras literárias. Antes, eles designam qualidades que fazem parte de uma determinada obra, independentemente de sua classificação segundo o modelo tripartido, e com isso conservam sua força e sua importância para a teoria da literatura:

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TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

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Lírico, épico, dramático, não são, portanto, nomes de ramos em que se pode vir a colocar obras poéticas. Os ramos, as classes, multiplicaram-se desde a antiguidade incalculavelmente. Os nomes Lírica, Épica, Drama não bastam de modo algum para designá-los. Os adjetivos lírico, épico, dramático, ao contrário, conservam-se como nomes de qualidades simples, das quais uma obra determinada pode participar ou não. Por isso eles funcionam como termo designativo de uma obra, qualquer que seja seu ramo. Podemos falar de baladas líricas, romances dramáticos, elegias e hinos épicos (STAIGER, 1975, p. 98).

Finalmente, Staiger (1975, p. 99) faz considerações a respeito das consequências de sua distinção para a Poética e, por conseguinte, para o julgamento das obras literárias:

O que advém daí para a Poética? Tornou-se sem sentido descrever todos os ramos nos quais se quer colocar as obras poéticas. Isso ensinou-nos a roda de Petersen. Mas não é sem sentido lançar a questão da essência do lírico, épico e dramático, pois essas qualidades são simples e não deixam perturbar sua aparência serena pelas fulgurações e oscilações do caráter de cada composição poética.

Staiger (1975) admite, portanto, a validade dos adjetivos lírico, épico, dramático provenientes da antiga teoria dos gêneros literários, compreendidos como qualidades simples de determinadas obras literárias. No Brasil, a distinção entre substantivos e adjetivos relativos aos gêneros literários proposta por Emil Staiger contribuiria para a separação entre o “significado substantivo dos gêneros” e o “significado adjetivo dos gêneros” sugerida por Anatol Rosenfeld. Para o crítico e teórico alemão, exilado no Brasil, a acepção “substantiva” dos gêneros literários se associa à estrutura dos gêneros literários, de modo que classifica as obras que se enquadram em determinadas características reconhecidas como pertencentes a um dado gênero literário. No exemplo de Rosenfeld (2014, p. 17):

Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir seu próprio estado de alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou não – de extensão maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações ou eventos, pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem os próprios personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador.

ESTUDOS FUTUROS

Na Leitura Complementar, ao final da Unidade 3, você encontrará mais a respeito de Anatol Rosenfeld, os gêneros literários e a distinção entre os significados substantivos e adjetivos relativos aos gêneros literários.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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Assim, cada gênero literário comporta diferentes espécies. Na Dramática, por exemplo, “se integrariam, como espécies, a tragédia, a comédia, a farsa, a tragicomédia etc.” (ROSENFELD, 2014, p. 18) Ao reconhecer, no entanto, as dificuldades de classificação de certas obras literárias, Rosenfeld (2014, p. 18) conclui:

Tais exceções, contudo, apenas confirmam que todas as classificações são, em certa medida, artificiais, não diminuem, porém, a necessidade de estabelecê-las para organizar, em linhas gerais, a multiplicidade dos fenômenos literários e comparar obras dentro de um contexto de tradição e renovação.

A acepção “adjetiva”, por sua vez, “refere-se a traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero (no sentido substantivo)” (ROSENFELD, 2014, p. 18). Aqui, os “traços estilísticos”, conforme a expressão de Anatol Rosenfeld, não se diferenciam da “qualidade” das obras literárias. Assim, segundo Rosenfeld (2014, p. 18), “poderíamos falar, no caso, de um drama (substantivo) lírico (adjetivo)”, por exemplo.

Assim como Staiger, Rosenfeld reconhece os problemas da antiga teoria dos gêneros literários e, como ele, não rejeita absolutamente o uso da classificação das obras pelos gêneros literários (um exemplo da validade da teoria dos gêneros literários é sua importante análise do moderno “teatro épico” de Bertold Brecht), reconhecendo, inclusive, outras razões para a adoção da teoria dos gêneros literários:

Por mais que a teoria dos três gêneros, categorias ou arquiformas literárias, tenha sido combatida, ela se mantém, em essência, inabalada. Evidentemente ela é, até certo ponto, artificial como toda a conceituação científica. Estabelece um esquema a que a realidade literária multiforme, na sua grande variedade histórica, nem sempre corresponde. Tampouco deve ela ser entendida como um sistema de normas a que os autores teriam de ajustar a sua atividade a fim de produzirem obras líricas puras, obras épicas puras ou obras dramáticas puras. A pureza em matéria de literatura não é necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe pureza de gêneros em sentido absoluto.Ainda assim, o uso da classificação de obras literárias por gêneros parece ser indispensável, simplesmente pela necessidade de toda ciência de introduzir certa ordem na multiplicidade dos fenômenos. Há, no entanto, razões mais profundas para a adoção do sistema de gêneros. A maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em face do mundo (ROSENFELD, 2014, p. 16-17).

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2.1 A APLICABILIDADE DA TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS HOJE

Voltemos algumas linhas... Você percebeu que Anatol Rosenfeld defende a necessidade das classificações dos gêneros literários, de forma aparentemente contraditória, para “comparar obras dentro de um contexto de tradição e renovação”? Dizemos “contraditória” porque, como vimos, a teoria dos gêneros literários tendeu para a fixação prescritiva dos modelos propostos pelos gêneros literários, contrariando a renovação das obras literárias. Contra o prescritivismo dos gêneros literários, no entanto, a arte respondeu se renovando em diálogo com a tradição, a exemplo da querela entre os antigos e os modernos a partir do século XV, do teatro de Shakespeare, do questionamento romântico das formas fixas e da defesa da hibridização de gêneros nos séculos XVIII e XIX, do modernismo dos séculos XIX e XX, das vanguardas artísticas do século XX ou da arte contemporânea. Portanto, compreender a significação de determinadas obras literárias e de arte em geral requer, muitas vezes, conhecer a teoria dos gêneros literários.

Tomemos um exemplo do modernismo brasileiro. Observe o texto abaixo:

Tragédia brasileira Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu

Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura… Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos…

Por fim, na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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Como você o classificaria? É um texto em prosa ou em verso? É um poema? É lírico? É épico? O texto pode ser classificado segundo os critérios da teoria dos gêneros literários? A teoria dos gêneros literários pode contribuir para a compreensão do texto?

Você observou o título do texto? Não? Observe que uma espécie da Dramática, a tragédia, designa o texto como uma forma de classificação. É dramático? É uma tragédia? O texto tem as características atribuídas à tragédia? Tem diálogo? As personagens são nobres, por exemplo, como preceitua Aristóteles? Não? O que isso implica?

Não pretendemos responder essas perguntas agora. Podemos antecipar, desde logo, que todas essas perguntas podem contribuir para a compreensão dos sentidos produzidos pela leitura do texto que, como você deve ter percebido, é um poema de Manuel Bandeira (2009). O poeta modernista publicou “Tragédia brasileira” no livro “Estrela da manhã”, de 1936, no poema podemos identificar um projeto semelhante ao que o poeta desenvolveu antes em “Poema tirado de uma notícia de jornal”, publicado em “Libertinagem”, de 1930:

Poema tirado de uma notícia de jornal João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

E esse texto, como você o classificaria? É um poema? É uma notícia? O que, a rigor, define se o texto é um poema ou uma notícia, supondo que o poeta realmente tenha tirado o poema de uma notícia de jornal? São elementos internos constitutivos da organização textual? São elementos da conjuntura externa que delimitam o modo de ler, tais como o suporte do texto, o seu modo de circulação, o consenso a seu respeito definido por instituições literárias, como a crítica, a academia etc.? A rigor, podemos dizer, com Jonathan Culler (1999), que, para classificar um texto como literário, podemos compreender a literatura como: a) linguagem com propriedades específicas; e b) como produto de convenções e um certo tipo de atenção suscitada pela especificidade do texto literário. Jonathan Culler conclui que devemos nos movimentar entre uma compreensão e outra, como comprova o poema de Manuel Bandeira (2009).

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Por meio de formas evidentemente diferentes, os dois poemas, ao se apropriarem de elementos da linguagem jornalística, instauram uma certa instabilidade de gênero, uma tensão entre os discursos e as esferas poética e jornalística, que compromete as hierarquias, de forma, de tema, de classe etc., previstas na antiga teoria dos gêneros literários. É justamente isso que motiva que Luiz Costa Lima (1968), por exemplo, identifique na poesia de Manuel Bandeira um “realismo coloquial”, ou que Davi Arrigucci Jr. (1990 e 2000) insista no “sublime” na poesia de Manuel Bandeira, que parece sintetizar seu projeto poético de libertação estética, como diria Alfredo Bosi (2013), em um poema cujo título remete, não por acaso, à poética no sentido das regras, leis ou normas prescritas pelas poéticas e retóricas clássicas, contra as quais o poema notadamente se insurge, reivindicando sua própria poética:

Poética

Estou farto do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras, sobretudo os barbarismos universais Todas as construções, sobretudo, as sintaxes de exceção Todos os ritmos, sobretudo, os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

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Seja como for, os poemas de Manuel Bandeira (2009) requerem, para compreender sua significação, conhecimento da teoria dos gêneros literários e de suas implicações, que aprofundaremos adiante ao analisarmos mais detidamente cada gênero literário. E os gêneros literários, ao mesmo tempo, contribuem para a significação dos poemas, no ato de sua leitura, na medida em que fazem parte dos conhecimentos prévios históricos e literários dos leitores, previstos pelo autor.

Nesse sentido, Hans Robert Jauss afirma que a convenção de gênero evoca um horizonte de expectativas, por parte do leitor, inclusive para destruir suas expectativas, não apenas com propósito crítico, mas para produzir efeitos poéticos. Essa evocação e destruição do horizonte de expectativas, por meio da convenção de gênero, como objetivação de sistemas histórico-literários, podemos identificar nos poemas de Manuel Bandeira (2009). Vejamos, resumidamente, como a teoria da recepção de Jauss ajuda a compreender a produção de sentidos no ato de leitura, e qual o papel dos gêneros literários nesse processo.

Jauss (1994, p. 28) procura delimitar a possibilidade de uma disposição dos leitores diante de uma obra, disposição que tanto antecede a reação e a compreensão da obra pelo leitor quanto a possibilita:

Assim como em toda experiência real, também na experiência literária que dá a conhecer pela primeira vez uma obra até então desconhecida há um “saber prévio, ele próprio um momento dessa experiência, com base no qual o novo de que tomamos conhecimento faz-se experienciável, ou seja, legível, por assim dizer, num contexto experiencial” (BUCK, 1967, p. 56). Ademais, a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe o público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.

A seguir, Jauss, numa perspectiva que conjuga a tradição da literatura e a ruptura da tradição constitutiva dessa mesma tradição, evoca o conceito de “horizonte de expectativas” que, como você pode perceber, Jauss (1994, p. 28) relaciona com a “convenção do gênero”:

O caso ideal para a objetivação de tais sistemas histórico-literários de referência é o daquelas obras que, primeiramente, graças a uma convenção do gênero, do estilo ou da forma, evocam propositadamente um marcado horizonte de expectativas em seus leitores para, depois, destruí-lo passo a passo – procedimento que pode não servir apenas a um propósito crítico, mas produzir ele próprio efeitos poéticos.

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Jauss reitera a participação de uma convenção do gênero na possibilidade da objetivação do horizonte de expectativas dos leitores, pois o gênero constitui um dos fatores que pressupõem a “predisposição específica do público com a qual um autor conta para determinada obra”. Assim, Jauss (1994, p. 29) elenca os fatores a partir dos quais se pode pressupor a predisposição dos leitores a uma obra, priorizando, como você pode ver, justamente o gênero como um dos saberes prévios que torna a leitura de uma obra compreensível:

em primeiro lugar, a partir de normas conhecidas ou da poética imanente ao gênero; em segundo, da relação implícita com obras conhecidas do contexto histórico-literário; e, em terceiro lugar, da oposição entre ficção e realidade, entre função poética e a função prática da linguagem, oposição esta que, para o leitor que reflete, faz-se sempre presente durante a leitura, como possibilidade de comparação.

A respeito da retomada dos gêneros literários pela estética da recepção, de Jauss – que, como observa Luiz Costa Lima (1983 apud SOARES, 2007, p. 20), orienta-se pela “ideia de situação na qual um certo discurso funciona, i. é, é reconhecido como literário”, exigindo do leitor uma “entrada ativa, através da interpretação que suplementa o esquema trazido pela obra” –, Angélica Soares (2007, p. 20) constata:

Com base nessa orientação geral, Hans Robert Jauss, tomando do linguista romeno Eugênio Coseriu a noção de norma e de Wolf-Dieter Stempel a de situação discursiva, volta-se, em ensaio de 1970, para os gêneros literários, ressaltando que toda obra está vinculada a um conjunto de informações e a uma situação especial de apreensão e, por isso, pertence a um gênero, na medida em que admite um horizonte de expectativas, isto é, alguns conhecimentos prévios que conduziriam à sua leitura. Os gêneros formariam as redundâncias necessárias à recepção e à situação da obra e apresentariam marcas variáveis, não totalmente conscientes, que serviriam de orientação à leitura e à produção. A descrição de um texto literário seria, portanto, sempre histórica e guiada “pelo conhecimento das expectativas com que são recebidas e/ou produzidas”.

Para a estética da recepção, de Jauss, portanto, a obra literária se vincula, como observa Angélica Soares, a um conjunto de informações e a uma situação de apreensão, que correspondem à objetivação de um sistema histórico-literário que torna a obra legível, pelos conhecimentos prévios dos leitores ou, em outras palavras, o horizonte de expectativas para o qual contribui o “repertório” do leitor, na nomenclatura de Wolfgang Iser, fundador da teoria do efeito, que complementa a estética da recepção. Assim, os gêneros exercem um papel fundamental tanto na produção quanto na recepção de uma obra literária.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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Nesse sentido, e confirmando a relevância do estudo da teoria dos gêneros literários, Angélica Soares (2007, p. 21-22) traz algumas considerações que julgamos importante retomar antes de nos dedicarmos ao estudo individualizado dos gêneros literários:

um assunto tão presente nos estudos literários de todas as épocas não pode ser negado, ou simplesmente ignorado. Parece-nos mais adequado, mantendo-nos atentos às futuras contribuições, que nos procuremos situar hoje, através de algumas diretrizes oriundas das teorias mais avançadas na questão dos gêneros, a saber:Mesmo levando em conta características genéricas, que vêm apresentando as obras no transcurso da história literária, nunca se deve descrever um gênero aprioristicamente, sem considerar os modos concretos de recepção dos textos, evitando, assim, que a caracterização prévia dos gêneros aja de forma arbitrária sobre a atuação do receptor.a) Os traços dos gêneros estão em constante transformação; portanto,

no ato de leitura, devemos conduzir abertamente pelas mudanças e não por características fixas. Faz-se necessário atentarmos para as expectativas criadas pela própria obra. Não podemos esquecer, porém, que o posicionamento do escritor em seus textos, mesmo quando oposto ao que ele pensa esperar do leitor com relação ao gênero, decorre justamente de traços que vêm caracterizando historicamente os gêneros, em uma determinada cultura [...].

b) Assim, é tão relevante termos consciência de que diferentes leituras possam ser feitas por diferentes comunidades de receptores, quanto considerarmos que, no âmbito de nossa tradição cultural, mesmo apresentando-se a obra como uma desestruturação total dos gêneros ou como dissolução da própria ideia de gênero, essa desestruturação ou a dissolução se processam a partir da existência de um conjunto de obras, que vieram contribuindo para a formação do nosso horizonte de expectativas e do próprio poeta.

c) Mais importante que identificar um traço isolado na obra, nos parece ser observarmos como cada traço se relaciona com outros da mesma obra, para que então ele seja reconhecido como lírico, narrativo ou dramático.

d) A teoria dos gêneros é vista como meio auxiliar que, entre outros, nos leva ao conhecimento do literário, mas nunca deve ser usada para valorização e julgamento da obra. Por outro lado, o fato de um texto apresentar características dos gêneros, por si só, não nos leva a localizá-lo na literatura.

ATENCAO

Não devemos confundir, especialmente em situações de ensino, os gêneros literários com os gêneros discursivos nem com os gêneros textuais, que você estudou ou estudará em outras disciplinas.

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RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura, desde o seu surgimento, problematiza a si mesma, antecipando a função da teoria da literatura.

• O antigo conceito de gênero significa origem e se presta a classificar as obras literárias segundo espécies.

• O antigo conceito de poética se relaciona com o ensinamento das leis e normas de composição conforme a teoria dos gêneros literários.

• A classificação das obras a partir da teoria dos gêneros literários deve ser contextualizada historicamente.

• Apesar de sua historicidade, a antiga teoria dos gêneros literários tem importância fundamental para a moderna teoria da literatura.

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AUTOATIVIDADE

Você leu neste tópico o “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira. O poema, como sugere o título, foi, de fato, “tirado de uma notícia de jornal”, veiculada no jornal Beira-Mar de 25 de dezembro de 1925. Reflita sobre a especificidade da linguagem do poema e da notícia de jornal de onde o poema foi tirado:

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TÓPICO 2

OS GÊNEROS LITERÁRIOS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

No Tópico 1, você viu uma contextualização da teoria dos gêneros literários, apresentados aqui em uma perspectiva histórica e crítica. A partir deste tópico você irá aprofundar os estudos sobre os gêneros literários analisando, individualmente, cada um deles.

Neste tópico, estudaremos o gênero dramático e o gênero lírico, respectivamente, iniciando por uma comparação com o intuito de identificarmos suas particularidades e por uma breve explanação da teoria dos gêneros literários na Antiguidade.

A seguir, veremos detidamente o texto dramático e o texto poético. Estudaremos resumidamente a história e os tipos de teatro e, por fim, as características do poema, tais como estrutura, verso, rima, metro, finalizando com um estudo sobre as formas e a interpretação de poemas.

Ao final deste tópico você estará ambientado com os gêneros dramático e lírico, os quais incluem os textos dramático e poético.

Vamos lá?

2 O GÊNERO DRAMÁTICO E O GÊNERO LÍRICO

Agora iremos nos dedicar, finalmente, ao estudo individualizado dos gêneros literários. Para tanto, iniciaremos nossos estudos diferenciando o gênero dramático e o gênero lírico. Comecemos pelo gênero dramático. Observe, a seguir, fragmentos da tragédia “Édipo Rei”, datada de 430 a.C., de Sófocles (496 a.C. – 406 a.C.):

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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ARAUTOVós, que tanto respeito mereceisneste país, ainda mais chorareipelas coisas que haveis de ver e ouvir,se, como patriotas bem-nascidos,ainda prezais a nossa dinastia!As águas dos rios todos da terratalvez não bastem para lavar a imundíciedesta casa – tamanhos são os malesjá mostrados, e os mais que há de mostrar,premeditados, não ocasionais...Quem se fere a si mesmo, sofre mais!

CORIFEUO que sabemos já nos dá muito a chorar.Que nova catástrofes anuncias?

ARAUTOÉ breve o que ides ouvire breve o que eu vou dizer:Nossa rainha Jocasta está morta!

CORIFEUPobre mulher! – Como se deu a morte?

ARAUTOPor suas próprias mãos... O horror do quadro,a vós, que o não vistes, será poupado;mas eu, que o vi, dele não posso me esquecer!

Como você pode ver, nesse fragmento, o arauto, o mensageiro encarregado das proclamações oficiais, anuncia ao povo de Tebas a morte da rainha, dialogando com o corifeu, o chefe do coro. A seguir, com o intuito de poupar os espectadores do horror da visão do que sucedeu, o arauto narra como a rainha Jocasta se enforcou, enlouquecida pelos acontecimentos que afetam o reino de Tebas, e o ato punitivo do rei, seu filho e seu marido, que fura os olhos: “ele arrancou os alfinetes de ouro da roupa da rainha, levantou-os e os enterrou nos olhos, imprecando: ‘Olhos meus, não verei mais esta culpa e esta vergonha, nunca mais vereis quem não deveríeis ter visto nunca, e para todo o sempre só vereis as trevas’”. Em seguida, o rei volta para a cena lamentando seu destino:

ÉDIPOAi de mim! Ai de mim! Pobre de mim!Onde estou eu? Para que fui nascer?A minha voz espalha-se, por onde?Ah, meu destino, aonde queres chegar?

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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COROA um ponto tão terrível de verquanto de escutar!

A seguir, o rei abandona Tebas, deixando o poder a seu tio e cunhado Creonte, cena que encerra a tragédia com o comentário do coro:

COROConcidadãos de Tebas, pátria nossa,olhai bem: Édipo, decifradorde intrincados enigmas, entre os homenso de maior poder – aí está!Quem, no país, não lhe invejava a sorte?E agora, vede em que mar de tormentoele se afunda! Por essa razão,enquanto uma pessoa não deixaresta vida sem conhecer a dor,não se pode dizer que foifeliz.

FIGURA 4 - ÉDIPO REI

FONTE: Rudolph Tegner. Oedipe Roi. Disponível em: <http://www.rudolphtegner.dk>. Acesso em: 19 jul. 2017.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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Vejamos agora o gênero lírico. Observe abaixo o poema de Safo de Lesbos (620 a.C. – 570 a.C.), reconhecida como a maior poetisa lírica da Antiguidade:

A lua já se pôs,as Plêiades também:

meia-noite; foge o tempo,e estou deitada sozinha.

NOTA

Safo de Lesbos (620 a.C. – 570 a.C.) foi uma poetisa grega, membro da aristocracia. Faz parte dos nove poetas líricos do período arcaico.

FIGURA 5 - SAFO DE LESBOS

FONTE: Disponível em: <https://goo.gl/jNYKKZ>. Acesso em: 4 ago. 2017.

Comparando os exemplos de gênero dramático e de gênero lírico acima, como você diferenciaria um do outro? Como vimos, a classificação dos gêneros literários remonta à Antiguidade, mais exatamente à divisão proposta por Platão e Aristóteles a partir de exemplos como esses, que antecedem a República, de Platão, e a Poética, de Aristóteles. Vejamos, então, como eles se diferenciam um do outro.

Na República, Platão, por meio do diálogo entre Sócrates e Adimanto, diferencia três gêneros de narrativa. Depois de definir a lírica como “narração pelo próprio poeta” sem imitação, Platão (2001, p. 112) afirma que “existe também uma espécie de narrativa oposta a esta [narrativa sem imitação], quando se retiram as palavras do poeta no meio das falas, e permanece apenas o diálogo”. Com isso, Platão caracteriza a dramática, ou seja, o teatro, que compreende a tragédia e a comédia, propondo a primeira diferenciação entre o gênero dramático e o gênero

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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lírico, que estudaremos nesta unidade. E, finalmente, a épica, que estudaremos na próxima unidade, consiste, para Platão (2001, p. 110), em um gênero misto, pois na epopeia “é o próprio poeta que fala”, mas, em determinados momentos, o personagem fala “como se fosse ele mesmo”, momentos estes em que o poeta “faz um discurso como se se tratasse de outra pessoa”. Resumindo o diálogo entre Sócrates e Adimanto, Platão (2001, p. 112) conclui:

na poesia e na prosa existem três gêneros de narrativas. Uma, inteiramente imitativa, que, como tu dizes, é adequada à tragédia e à comédia; outra, de narração pelo próprio poeta, encontrada principalmente nos ditirambos; e, finalmente, uma terceira, formada da combinação das duas precedentes, utilizada na epopeia e em muitos outros gêneros.

Podemos, portanto, resumir esquematicamente a divisão de gêneros literários proposta por Platão desta forma:

QUADRO 1 - GÊNEROS LITERÁRIOS SEGUNDO PLATÃO

Gêneros literários segundo PlatãoLírica Dramática Épica

Não imitativa Imitativa MistaVoz do poeta Voz dos personagens Voz do poeta intercalada com

a voz dos personagens

FONTE: O autor

Ao resumir as ideias de Platão, reconhecendo em sua obra as primeiras considerações do pensamento ocidental sobre os gêneros literários, Angélica Soares (2007, p. 9) escreve:

Platão (cerca de 428 a.C. - cerca de 347 a.C.), no livro III da República (394 a.C.), nos deixou a primeira referência, no pensamento ocidental, aos gêneros literários: a comédia e a tragédia se constroem inteiramente por imitação, os ditirambos apenas pela exposição do poeta e a epopeia pela combinação dos dois processos.

Para Aristóteles (2008, p. 37), diferentemente de Platão, “são todas, vistas

em conjunto, imitações”, diferenciando-se, contudo, quanto aos meios, os objetos e os modos de imitar. Quanto ao modo, Aristóteles (2008, p. 40-41) constata que: “Com os mesmos meios podem imitar-se os mesmos objetos, ora narrando – seja tomando outra personalidade como faz Homero, seja mantendo a sua identidade sem alteração – ora representando todos em movimento e em atuação”.

Podemos resumir esquematicamente a divisão de gêneros literários proposta por Aristóteles quanto aos modos, meios e objetos de imitação desta forma:

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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QUADRO 2 - GÊNEROS LITERÁRIOS SEGUNDO ARISTÓTELES

Gêneros literários segundo AristótelesNarrativo Dramático

Lírica Épica Tragédia e ComédiaImitativa Imitativa Imitativa

Modo

Voz do poeta Voz do poeta intercalada com a voz dos personagens Voz dos personagens

MeioPalavra, harmonia e ritmo Palavra Palavra e encenação

Objeto

Representa o homem pior (?) Representa o homem melhor Representa o homem melhor (tragédia) ou pior (comédia)

FONTE: O autor

Seguindo Platão e Aristóteles, podemos dizer que a principal diferenciação entre o gênero dramático e o gênero lírico se encontra na forma particular de enunciação de cada gênero. Enquanto o gênero lírico se caracteriza pela voz do eu lírico, como aprofundaremos a seguir, o gênero dramático se caracteriza pelo discurso direto dos personagens, representados por atores. Etimologicamente, drama designa ação, como explica Massaud Moisés (1999, p. 161):

A princípio, como sugere a etimologia, o vocábulo designava simplesmente a ação. E como a ação se afigurava exclusiva do teatro, passou a conter um significado específico. Aristóteles, na Poética (tr. de Eudoro de Sousa, s.d., 1448 a 28), distingue a imitação, ou mimese, “na forma narrativa” daquela em que as “pessoas agem e obram diretamente”, ou seja, em que se processa a imitação da ação. Ao segundo tipo confere o apelativo de drama. Portanto, em sentido amplo, a qualquer peça destinada a representar-se caberia análoga denominação.

O drama equivale, portanto, ao teatro, fundamentado na transposição de uma ação por meio da atuação de atores, que representam personagens, sem a intermediação de um narrador. Assim, como simplifica Anatol Rosenfeld (2014, p. 28), ao drama pertencem obras que apresentam a “imitação por personagens em ação diante de nós”, os quais “fazem aparecer e agir as próprias personagens”.

Unindo palavra e imagem, texto e palco, o teatro conforma a encenação, produzida geralmente a partir do texto dramático, o qual constitui mais especificamente o nosso objeto de interesse, de modo que separaremos, para os nossos fins, o texto e a encenação.

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Essa separação é prevista desde Aristóteles (2008, p. 51): “o espetáculo, se é certo que atrai os espíritos, é, contudo, o mais desprovido de arte e o mais alheio à poética. É que o efeito da tragédia subsiste mesmo sem os concursos e os atores”. Da mesma maneira, ao definir o “dramático”, Emil Staiger (1975, p. 61) recorre a uma separação entre “dramático” e “teatral”, relacionada com a encenação:

“Teatral" e "dramático" não significam, portanto, o mesmo. Contudo, a negação de interdependência dos dois conceitos viria contrariar toda a terminologia tradicional. Seria, então, aconselhável explicar essa relação dizendo que o dramático não tem que ser compreendido a partir de sua adaptação ao palco, e sim que a instituição histórica do palco decorre da essência do estilo dramático? Um enfoque fenomenológico só permite essa interpretação. O palco foi, realmente, criado segundo o espírito da obra dramática, como único instrumento que se adaptava ao novo gênero poético. Mas uma vez existente, esse mesmo instrumento pode servir a outras formas de criação e tem sido utilizado das maneiras mais diversas através dos tempos.

A encenação, o aspecto visual do drama, inaugura, como explica Jean-Pierre Vernant, um novo gênero literário, o gênero dramático:

Antes dela, temos a poesia épica (Homero, Hesíodo) e a poesia lírica. Mas essa poesia é uma obra de pura audição: o poema não é feito para ser lido, mas escutado, nas recepções privadas ou nas grandes festas de Delfos ou de Olímpia. Ele canta os grandes feitos dos heróis lendários. Com a tragédia, estamos diante de algo completamente diferente: um espetáculo. São os mesmos personagens, os mesmos relatos, os mesmos mitos; mas enquanto o poeta épico cantava as façanhas do herói, com a tragédia o público vê o herói em cena, realizando suas façanhas.E isso muda tudo. Os heróis estão lá, diante da multidão, em carne e osso, como se estivessem vivos. Quando o ateniense do século V vê Agamenon, Clitemnestra ou Orestes caminharem sobre o palco, ele sabe que se trata do que chamaremos mais tarde de “ilusão teatral”. Ele compreende, evidentemente, que é um espetáculo montado, organizado, com problemas de perspectiva e de cenário que se colocam desde o início. A tragédia pressupõe e ao mesmo tempo fabrica a consciência do fictício (VERNANT, 2005, p. 5).

Apesar do impacto da encenação, manteremos nossa atenção no texto dramático, que compreende um texto principal, constituído pelas falas das personagens em discurso direto, e um texto secundário, constituído, por sua vez, pelas orientações para a encenação, as quais são chamadas rubricas ou didascálias.

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3 O TEXTO DRAMÁTICO: ORIGEM E EVOLUÇÃO

Agora, iremos nos dedicar ao estudo do texto dramático, analisando sua origem e sua evolução. Vimos que o texto e a encenação podem ser separados e que essa separação é prevista desde Aristóteles, que valoriza, como vimos, o texto dramático em relação ao palco, no qual a encenação se produz a partir do texto dramático.

Para tanto, estudaremos desde as formas antigas do teatro, como a tragédia e a comédia, ao teatro moderno, privilegiando o teatro de Shakespeare, considerado o maior dramaturgo de todos os tempos. E, finalmente, estudaremos resumidamente alguns tipos de teatro.

3.1 BREVE PANORAMA DO TEATRO AO LONGO DOS TEMPOS

O teatro, em sua forma mais primitiva, consiste em ritos coletivos de celebração ou luto, que se transformam tanto em mimetismo quanto em rituais formalizados, baseados em mitos. O teatro surge na Antiguidade grega, com o ditirambo, como relata Roland Barthes, demonstrando, portanto, uma origem comum entre o gênero dramático e o gênero lírico.

Cerca de final do século VII a.C., o culto de Dionísio originara, principalmente na região de Coríntia e de Sicion, na região dórica, um gênero muito florescente, semirreligioso, semiliterário, constituído por coros e danças, o ditirambo. Esse teria sido introduzido na Ática, cerca de 550 anos antes de Cristo, por um poeta lírico, Téspis, que organizava representações ditirâmbicas pelas aldeias, transportando seu material numa carroça e recrutando os coros no próprio local. Uns dizem que foi Téspis quem criou a tragédia ao inventar o primeiro ator; outros dizem que foi o seu sucessor, Frínico. O novo drama recebeu rapidamente a consagração da cidade, tendo sido dominado por uma instituição verdadeiramente cívica: a competição. O primeiro concurso ateniense de tragédia teria tido lugar em 538, sob o domínio de Pisístrato, que desejava enfeitar a sua tirania com festas e cultos. A continuação é conhecida: o teatro instala-se num local consagrado a Dionísio, que ficará para sempre como patrono do gênero. Grandes poetas (seria melhor dizer grandes criadores de teatro), quase contemporâneos uns dos outros, dão à representação dramática a sua estrutura adulta, o seu sentido histórico profundo. Este desenvolvimento coincide com o triunfo da democracia, a hegemonia de Atenas, o nascimento da História e a estatuária de Fídias: é o século V, o século de Péricles, o século clássico. Depois, do século IV até o fim da época alexandrina, salvo algumas ressurgências de gênio das quais sabemos pouca coisa (Menandro e comédia nova), é o declínio: mediocridade das obras, desaparecidas por causa disso, abandono progressivo da estrutura coral, que foi a estrutura específica do teatro grego (BARTHES, 1984, p. 61).

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Posteriormente, ao protagonista introduzido por Téspis, como nota Barthes, Ésquilo incluiria um antagonista, e Sófocles, um tritagonista. Aristóteles (2008) confirma que a tragédia e a comédia surgiram da improvisação, procedendo, respectivamente, dos autores de ditirambos e dos cantos fálicos. Sua forma se fixaria com as adaptações de Ésquilo e de Sófocles:

O primeiro a mudar o número de atores de um para dois foi Ésquilo, que também diminuiu as partes do coro e fez com que a parte falada tivesse um papel predominante. Sófocles aumentou o número de atores para três e introduziu a cenografia (ARISTÓTELES, 2008, p. 44-45).

Assim, a função das personagens se torna gradualmente mais importante na mesma medida em que diminui a do coro, formado por cerca de 10 a 15 cidadãos atenienses, desempenhando um papel de mediação, conforme a função social de debate que o teatro cumpria na Antiguidade. Aristóteles (2008, p. 47-48) define a tragédia como “imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões”.

NOTA

A purificação das paixões, mencionada por Aristóteles, é denominada catarse (katharsis).

FIGURA 6 – MÁSCARAS TEATRAIS

FONTE: Disponível em: <http://mosqueteirasliterarias.comunidades.net/o-desenvolvimento-intelectual>. Acesso em: 27 ago. 2017.

O trágico, por sua vez, se caracteriza pela unidade entre salvação e aniquilamento que, como sugere Peter Szondi, perpassa a tragédia de Édipo Rei, de que vimos alguns fragmentos. Afinal, Édipo tenta tomar o destino, tarefa dos deuses, em suas mãos, ultrapassando a medida do humano:

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O trágico perpassa a tessitura de Édipo Rei como em nenhuma outra peça. Seja qual for a passagem do destino do herói em que se fixe a atenção, nela se encontra aquela unidade de salvação e aniquilamento que constitui um traço fundamental de todo trágico. Pois não é o aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação tornar-se aniquilamento; não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína (SZONDI, 2004, p. 89).

Não se trata, no entanto, de condenar Édipo, mas, como constata Jean-Pierre Vernant, de mostrar as dificuldades para compreender o que é o homem em suas relações com o universo ambíguo: “A tragédia é uma forma dessa interrogação sobre o homem e o mundo, sobre o justo e o verdadeiro. Ela exprime uma profunda ambiguidade” (VERNANT, 2005, p. 5). Para Vernant, a validade atual da tragédia grega, em detrimento do mundo da cultura grega que se distanciou de nós, se encontra na invenção do homem angustiado, o homem trágico, que questiona seus atos, compreendendo mais tarde que fez algo diferente do que acreditava fazer, e que se torna novamente legível ao homem moderno.

Aristóteles (2008, p. 40), ao identificar os objetos de imitação da arte, estipula o que diferencia a tragédia e a comédia: “a tragédia se distingue da comédia neste aspecto: esta quer representar os homens inferiores, aquela, superiores aos da realidade”. Adiante, Aristóteles (2008, p. 45-46) explica:

A comédia é, como dissemos, uma imitação de caracteres inferiores, não contudo em toda a sua vileza, mas apenas na parte do vício que é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa nem destruidora, tal como, por exemplo, a máscara cômica é feia e deformada, mas não exprime dor.

Portanto, enquanto a tragédia é uma “imitação, com palavras e ajuda de metro, de caracteres virtuosos” (ARISTÓTELES, 2008, p. 46-47), como vimos, a comédia, segundo Aristóteles, imita os maus costumes e trata de “histórias e enredos com um sentido geral”. A comédia surge cerca de cinquenta anos depois da tragédia, em 486 a.C., pois, uma vez que satiriza instituições, políticos, filósofos e poetas, necessita de liberdade de expressão, que seria conquistada com a democracia ateniense, consolidada no século V a.C. Sua linguagem, diferentemente da tragédia, se caracteriza pela coloquialidade e pelo emprego de expressões baixas e populares.

Vejamos um exemplo. Abaixo temos um fragmento da comédia Lisístrata (411 a.C.), de Aristófanes (444 a.C. – 385 a.C.), que trata de uma greve de sexo liderada pela ateniense Lisístrata para acabar com a guerra do Peloponeso, que durava anos e anos, convencendo as mulheres de Atenas e Esparta a evitarem seus maridos enquanto não assinassem um tratado de paz. Nesta passagem, um embaixador de Esparta entra seguido por um ministro do governo ateniense:

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Embaixador – Onde é o Senado de Atenas? Ou então onde estão os ministros? Tenho novidades a dizer.

Ministro – Quem é você? Um homem ou um saca-rolhas? Embaixador – Sou embaixador, meu caro. Estou chegando de Esparta

para tratar de paz. Ministro – Mas você vem tratar de paz com essa lança apontada para nós? Embaixador – Isto não é lança... Ministro – Então por que sua roupa está repuxada na frente, a certa

altura? Será um tumor que cresceu durante a viagem? Embaixador – (à parte) Esse homem está maluco! Ministro – (levantando a túnica do embaixador) Não é tumor, não!

Não adianta disfarçar! Embaixador – Que negócio é esse? Chega de maluquices! Ministro – (virando de costas para o público e levantando a túnica) Veja! Ministro – (virando também de costas para o público e levantando

a túnica) Veja também! Já percebi tudo! Pode dizer a verdade. Como vão as coisas lá em Esparta?

Embaixador – Esparta inteira está parada. Nossos aliados também. Precisamos urgentemente de nossas mulheres.

Ministro – Qual é causa dessa... doença? Algum castigo divino? Embaixador – Não. Foi Lampito quem começou. Depois todas as

mulheres, como se fossem uma só, aderiram a essa greve de sexo. Ministro – E como vocês estão passando? Embaixador – Mal. Andamos até meio caídos para frente, pois não

aguentamos o peso da... lança. E as mulheres não se comovem: só acabarão a greve quando for votada a paz em toda a Grécia.

Ministro – Então é uma greve geral das mulheres. Agora estou entendendo! Pois vá dizer já a seu governo que nos envie representantes com plenos poderes para negociar a paz! E eu vou já à Assembleia tratar da eleição de nossos delegados à conferência da paz, depois de mostrar aos deputados o... que você já viu.

Você percebeu como a comédia satiriza a guerra, os soldados e mesmo os homens? Percebeu que as personagens representam todo tipo de homem? E sem a dignidade e valores heroicos da tragédia? Percebeu a linguagem utilizada? Os jogos de linguagem, o duplo sentido, em passagens como: “Mal! Andamos até meio caídos para a frente, pois não aguentamos mais o peso da... lança”? Observe ainda a inversão dos lugares sociais ocupados por homens e mulheres, o deslocamento do alto e do baixo que, mais do que efeito de comicidade, critica social e politicamente a situação, rebaixando ridiculamente os detentores do poder de uma democracia decadente.

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Lisístrata, de Aristófanes, é uma das últimas comédias antigas, do final da democracia ateniense, contexto exposto por Junito Brandão (1984, p. 91):

Estamos em 405 a.C. O sonho de um império ateniense começou a desmoronar-se com a aziaga expedição da Sicília em 417 a.C.; a derrota de Egos Pótamos, em outubro de 405 a.C., pôs fim à quimera e colocou as tropas espartanas na Acrópole de Atenas. Estava terminada a fratricida Guerra do Peloponeso. A democracia foi substituída pelo terror dos Trinta Tiranos. Felizmente, estes duraram pouco e a democracia meio cambaleante foi restabelecida.O demônio do Norte, todavia, Filipe da Macedônia, espalhava a cizânia entre as cidades gregas e com a derrota dos atenienses e tebanos em Queroneia, em 338 a.C., começou a hegemonia macedônica. É bem verdade que, com a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C., Atenas, apoiada em Demóstenes, ainda tentou uma reação. Era tarde demais. As tropas do general macedônio Antípater esmagaram os gregos em Crânon. Era o fim político da Grécia. O filho de Antípater, Cassandro, impôs a Atenas uma ditadura aristocrática sob a tutela de Demétrio de Falero.

A seguir, com Menandro, inicia a comédia nova, que, diferentemente da antiga, privilegia, sem a presença do coro, a comédia de costumes e da vida privada.

Com o cristianismo, o teatro foi minorado e, posteriormente, retomado pela Igreja, com o intuito doutrinário de representar a ressurreição de Cristo. Como observa Anatol Rosenfeld (2014, p. 43), “o teatro medieval se origina no rito religioso, mais de perto na missa cristã, embora precedendo-o e subsistindo ao lado dele existissem espetáculos de origens e tendências tanto pagãs como profanas”. Ainda segundo Rosenfeld (2014, p. 45), gradualmente a dramatização se emancipa do rito religioso: “o drama litúrgico já não é apresentado por clérigos e sim por cidadãos da cidade e a ‘peça’ abandona a igreja e deixa de ser um prolongamento do ofício religioso”. Consequentemente, “ao fim da Idade Média surge o Mistério, já totalmente separado da igreja e apresentado em plena cidade”.

A dramaturgia medieval se caracteriza pela fusão do elevado e do popular, que, como constata Erich Auerbach (2004), define o cristianismo, contrariando a teoria antiga que prescrevia que “os estilos sublime (elevado) e humilde (baixo) tinham de permanecer rigorosamente separados”. Rosenfeld (2014, p. 46) nota que “essa mistura de estilos, ligada à fusão das camadas sociais nas peças, é impossível na tragédia clássica”. A ampliação do estilo revela, segundo o autor, a ampliação social, com a inclusão de personagens de diversas origens e posições, introduzindo no mistério variadas visões de mundo.

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No Renascimento, com a concepção da perspectiva, surge o palco italiano, que propicia aos espectadores a noção de profundidade e perspectiva: “Tudo é projetado a partir dele; o indivíduo, seu caráter e psicologia, tornam-se o eixo do mundo. Para aumentar o efeito perspectívico, acentua-se a tendência de separar palco e plateia – separação indispensável para aumentar a ilusão” (ROSENFELD, 2014, p. 54). O Renascimento redescobre a “Poética”, de Aristóteles, como atesta Rosenfeld (2014, p. 55): “a partir do século XVI a Poética de Aristóteles torna-se uma espécie de fetiche estético e as regras levam, particularmente em França, a uma arte de rara perfeição”. No século seguinte, A arte poética (1674), de Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), exemplifica o impacto da poética clássica, tanto de Aristóteles, quanto de Pseudo Longino e sua teoria do sublime, e de Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), que, com sua regra da unidade de tom proposta em Ars Poetica ou Epistola ad Pisones (19 a.C.), prescreve a separação rígida dos gêneros. Vejamos um fragmento da “A arte poética”:

Nós, que a razão engaja às suas regras, queremos que a ação se desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um único fato acabado, mantenha até o fim o teatro repleto. [...] Nunca ofereça algo de inacreditável ao espectador [...]. O senhor inventa uma nova personagem? Que ela, em tudo, se mostre de acordo consigo mesma e que seja até o fim tal qual foi vista no início. [...] O cômico, inimigo dos suspiros e das lágrimas, não admite dores trágicas, em seus versos; mas seu emprego não consiste em ir, numa praça pública, encantar o populacho, com palavras sujas e baixas (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979, p. 41-54).

Você percebeu que, em seus conselhos, Boileau retoma princípios como a unidade de ação, a verossimilhança e a unidade de tom? O Renascimento perpetua prescritivamente, portanto, as concepções da poética clássica, especialmente a separação entre os gêneros e estilos.

No Barroco, no entanto, os recursos criados no Renascimento para conquistar e dominar a realidade terrena são mobilizados, como nota Richard Alewyn (1959 apud ROSENFELD, 2014, p. 59), para obter o efeito oposto: não para “emprestar realidade à aparência e sim para transformar a própria realidade em aparência”. Com isso, a ilusão de realidade produzida pelo teatro, pela representação teatral, simboliza a ilusão da vida profana:

Toda a vida e realidade se tornam sonho e engano. O teatro, na sua íntegra, passa a ser símbolo do mundo. [...] Todo o Barroco ecoa o sermão da fugacidade deste mundo enganador. Tudo é máscara e disfarce. A imensa sensualidade do teatro barroco ensina-nos a lição de que o mundo dos sentidos é irreal como o teatro. Face ao mundo, porém, o teatro tem a honestidade de confessar-se teatro (ROSENFELD, 2014, p. 59).

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Para tanto, o teatro barroco desobedece às regras aristotélicas. Da mesma maneira, o teatro de William Shakespeare (1564-1616), atualmente reconhecido como o maior dramaturgo do mundo, envolve comédias, tragédias e tragicomédias, fusão entre tragédia e comédia, rompendo as regras clássicas. Shakespeare funde o trágico e o cômico, a linguagem refinada e a vulgar, os assuntos elevados e os grotescos, como evidencia Erich Auerbach (2004, p. 280-281):

O trágico e o cômico, o sublime e o baixo estão entrelaçados estreitamente na maioria das peças que, pelo seu caráter de conjunto, são trágicas, sendo que para tanto trabalham em conjunto diversos métodos. Enredos trágicos, nos quais ocorrem ações capitais ou públicas ou outros acontecimentos trágicos, alternam com cenas cômicas populares ou gaiatas que estão ligadas ao enredo principal, por vezes estreitamente, por vezes um pouco mais frouxamente; ou, nas próprias cenas trágicas aparecem, ao lado dos heróis, bufões ou outros tipos cômicos, que acompanham, interrompem e comentam à sua maneira as ações, os sofrimentos e as falas das personagens principais; ou, finalmente, muitas personagens trágicas têm em si próprias a tendência para a quebra de estilos cômica, realista ou amargamente grotesca.

O teatro de Shakespeare se diferencia do teatro da Antiguidade em muitos outros aspectos, incluindo a estrutura da peça, dividida agora em cenas e atos, a complexificação da ação e das personagens, com a ampliação do ambiente e do tempo representados, da encenação e da produção, paralelamente a um gradual processo de emancipação do teatro promovido pela comercialização de ingressos e profissionalização do teatro. A esse respeito, Emil Staiger (1975, p. 70) constata que “no tempo de Shakespeare desconhecem-se ainda os bastidores. Mesmo assim ele modifica a cena à vontade e estende a ação por semanas ou até meses”, o que seria aprimorado no drama moderno, observa Staiger, com os bastidores, que permitiriam “modificar-se a cena à vontade”, concluindo que “com isso acreditou-se poder destruir a antiga lei das três unidades, segundo o exemplo de Shakespeare”.

Escrita em versos, a poesia de Shakespeare permanece intimamente relacionada com a ação, de modo que a linguagem tem um papel fundamental. A ampliação do teatro shakespeariano em relação ao grego, como vimos, deriva, segundo Erich Auerbach, de uma nova concepção de homem, destino e mundo:

A Shakespeare e a muitos dos contemporâneos repugna desligar radicalmente do contexto geral dos acontecimentos uma única viragem do destino que atinja somente poucas pessoas, tal como o fizeram os poetas trágicos da Antiguidade, e no que os seus imitadores dos séculos XVI e XVII chegaram, às vezes, a superá-los; este processo isolante, explicável a partir de pressupostos culturais, míticos e técnicos do teatro antigo, contraria um conceito do concerto universal, mágico e polifônico, que surgia no Renascimento. O teatro de Shakespeare não apresenta golpes isolados do destino, que quase sempre caem de cima, e cujas consequências se resolvem entre poucas personagens, enquanto que o mundo circundante fica limitado a outras poucas, absolutamente necessárias para a prossecução do enredo (AUERBACH, 2004, p. 287).

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Em virtude de suas rupturas com as regras clássicas, com classicismo do século XVI e, portanto, com a unidade de tom que proibia hibridismos, o teatro de Shakespeare seria valorizado pelo romantismo. Como demonstra Anatol Rosenfeld (2014, p. 63): “A luta contra os cânones clássicos da dramaturgia rigorosa iniciou-se no século XVIII, na fase do pré-romantismo alemão. Ela travou-se sobretudo contra a tragédia clássica francesa, à qual foi oposta à obra de Shakespeare como modelo supremo”.

De fato, no século XVIII, com o movimento pré-romântico alemão Sturm und Drang e com a concepção de historicidade, a hibridização de gêneros se torna relevante, a exemplo de Lessing em “Dramaturgia de Hamburgo”, de 1769. Lessing admite a “mistura dos gêneros” em nome do efeito da obra, como ocorre em Shakespeare: “quando um gênio, em virtude de intuitos mais altos, faz confluir vários gêneros em uma e mesma obra, que então se esqueça o manual e examine apenas se atingiu a esses intuitos mais altos”, escreve Lessing (1769 apud ROSENFELD, 2014, p. 65), referindo-se ao efeito de catarse.

Shakespeare é novamente invocado no famoso "Prefácio" de Cromwell, de Victor Hugo, de 1827: “Eis-nos chegando à sumidade poética dos tempos modernos. Shakespeare é o drama, e o drama, que funde sob um mesmo alento o grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia, o drama é o caráter próprio da terceira época da poesia, da literatura atual”, escreve Victor Hugo (2007, p. 40) no prefácio conhecido também como “Do grotesco e do sublime”. Para Hugo (2007, p. 46), o drama deriva da duplicidade do homem, a composição de dois seres conferida pelo cristianismo, ou seja, um perecível e o outro imortal, um carnal e o outro etéreo. O caráter do drama, conclui Hugo, é o real, que resulta da combinação do sublime e do grotesco, de modo que a poesia completa estaria na harmonia dos contrários. Assim, Hugo (2007, p. 64) critica efusivamente as regras do classicismo:

Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos este velho gesso que mascara a fachada da arte! Não há regras nem modelos; ou antes, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que planam sobre toda a arte, e as leis especiais que, para cada composição, resultadas das condições de existência próprias para cada assunto.

Com as reações provocadas por Hugo em “Do grotesco e do sublime”, referência da estética romântica, o teatro não poderia continuar sendo o mesmo. Podemos resumir seus princípios fundamentais em:

● mistura de gêneros● rejeição das regras● recusa da imitação dos modelos● liberdade na arte

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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A respeito de seu impacto para o drama, Anatol Rosenfeld (2014, p. 70-71) observa que “o prefácio de Cromwell é de relevância duradoura e continua ainda hoje atual. Ao lado do combate às regras e da exaltação de Shakespeare é de importância o realce dado à categoria do grotesco”. A seguir, Rosenfeld (2014, p. 71) avalia a sua influência para o teatro moderno:

Não é preciso salientar o impacto violentamente anticlássico que se anuncia nesta teoria do grotesco, da fusão do trágico e do cômico, verdadeira justificação estética do feio e do disforme. Tais ideias não só iriam ter amplo futuro na vanguarda teatral, de Jarry a Ionesco – toda ela antiaristotélica –, mas manifestam-se também no expressionismo, inspirado nas próprias fontes pré-românticas da literatura alemã. Semelhantes concepções iriam influir ainda no teatro épico de Claudel e de Brecht, particularmente com o fito de suspender a ilusão e apoiar o teor didático. Pois o grotesco tende a criar “efeitos de distanciamento”, tornando estranho o que nos parece familiar.

Imbuído da concepção de historicidade, relativamente recente, Hugo reivindica a modernidade da arte, diferenciando a arte moderna e a arte antiga. Ainda que estivesse se referindo ao romantismo, a concepção de moderno, baseado na união do grotesco e do sublime, na complexidade, na variedade de formas, persiste na ideia de modernidade proposta posteriormente por Charles Baudelaire. A modernidade e, por extensão, o teatro moderno se caracteriza pela valorização do presente e da realidade complexa, fragmentada do homem moderno, personagem do drama moderno, que reflete as transformações profundas na sociedade, como as revoluções liberais e a Revolução Industrial, que estimulam profundas transformações no teatro, incluindo o surgimento da figura do diretor.

É precisamente este o contexto de dramaturgos como: George Buechner (1813-1837), com sua representação de um mundo vazio e absurdo habitado pela solidão do homem moderno; Henrik Ibsen (1828-1906), com seu teatro social, que, criticando a sociedade burguesa, inaugura o teatro realista moderno; Máximo Gorki (1868-1936) e o teatro realista e naturalista engajado; Anton Tchekhov (1860-1904) que, radicalizando e superando o naturalismo, faz do drama a falta de acontecimentos, da ação a inação de seus protagonistas; Constantin Stanislavski (1863-1938) com suas contribuições para a encenação e atuação moderna; August Strindberg (1849-1912) com a subjetivação radical da dramaturgia que origina o teatro expressionista, consolidado por Reinhold Sorge (1892-1916), Georg Kaiser (1878-1945), Ernst Toller (1893-1939), com o teor confessional de protagonistas sozinhos diante de um mundo adverso; o teatro social de Erwin Piscator (1893-1966) e de Bertold Brecht (1989-1956), com seu efeito de distanciamento; Antonin Artaud (1896-1948) com seu teatro surrealista e suas contribuições fundamentais para a linguagem do teatro; Samuel Beckett (1906-1989) com seu teatro do absurdo, caracterizado por sua visão pessimista do humano, e assim por diante.

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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3.2 OS TIPOS DE TEATRO

Vimos antes dois tipos de teatro que existem desde a Antiguidade clássica, a tragédia e a comédia, e um tipo que resulta da hibridização de ambas, a tragicomédia. Vejamos agora outros tipos principais de teatro.

• Auto: tipo de teatro originado na Era Medieval, na Espanha, composto geralmente de apenas um ato. Predominantemente religiosos, os autos apresentam uma intenção moralizadora, como comprovam os autos de Gil Vicente, um dos principais expoentes de autos em nosso idioma.

• Commedia dell’arte: tipo de teatro popular de origem italiana caracterizado pela improvisação, comicidade e emprego de personagens fixos, tais como o Arlequim, a Colombina, o Polichinelo, entre outros.

• Ditirambo: tipo de teatro de origem grega, formado por um grande coro e um corifeu (solista), que dialoga com o coro, homenageando o deus Dioniso.

• Entremés: tipo de teatro de um ato realizado nos intervalos de uma obra teatral principal. Caracterizada pela comicidade e brevidade, representava classes sociais populares em situações grotescas e absurdas.

• Farsa: tipo de teatro burlesco e popular que satirizava, por meio de personagens e situações caricatas, problemas da vida comum sem preocupação com o questionamento de valores.

• Pantomima: tipo de teatro gestual de origem grega, muito cultuado pelos romanos. Apenas um ator mascarado representa todos os papéis.

• Milagres: tipo de teatro religioso medieval, atualmente extinto, que retratava a vida da Virgem Maria, de Cristo ou de santos do cristianismo.

• Mistérios: tipo de teatro religioso medieval que tematizava festividades religiosas descritas nas escrituras, tais como o Natal, a Paixão, a Ressurreição etc. As representações podiam se estender por dias.

• Monólogo: tipo de teatro em que um personagem discursa sozinho, expondo, de forma ordenada, pensamentos e emoções, em geral psicologicamente profundos e relacionados a conflitos.

• Moralidades: tipo de teatro religioso medieval que debatia o comportamento e o destino humano, utilizando, para tanto, personagens que tipificavam alegoricamente os pecados capitais, as virtudes etc., com a intenção de transmitir lições morais e religiosas.

• Ópera: tipo de teatro musicado de origem italiana, cantado e acompanhado por orquestra, empregando recursos teatrais como cenografia e atuação.

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• Sottie: tipo de teatro breve de origem francesa que satirizava a vida do tempo, por meio de personagens que simbolizavam alegoricamente tipos como o parvo, o truão e o bobo, em funções invertidas da realidade, com objetivo de entreter, empregando estruturas textuais complexas com metro e rima.

• Teatro de fantoches: teatro de bonecos ou de marionetes, manipulados pelos atores.

• Teatro de revista: tipo de teatro popular caracterizado pela heterogeneidade e apelo, recorrendo, para tanto, a acrobacias e apresentações musicais e sensuais.

• Teatro de sombras: tipo de teatro de origem oriental, proveniente da China, o teatro de sombras utiliza a projeção de sombras como personagens.

Elencamos acima alguns dos principais tipos de teatro, aos quais podemos acrescentar tipos tradicionais de teatro oriental, como o Noh e o Kabuki, de origem japonesa, bem como tipos de teatro moderno, como o teatro do absurdo, criado por Ionesco, e representado por dramaturgos como Samuel Beckett, Jean Genet, Antonin Artaud, entre outros, ou o teatro do oprimido, criado pelo brasileiro Augusto Boal. Atualmente, as performances representam um tipo de teatro, com suas peculiaridades, assim como diferentes tipos de teatro de rua, apresentados publicamente.

DICAS

Assista ao filme Poderosa Afrodite (1995), de Woody Allen, para observar a intertextualidade com a tragédia Édipo Rei, de Sófocles.

4 O TEXTO POÉTICO: CARACTERÍSTICAS

Observe o texto que segue:

Sobre todos os cumes quietude

Em todas as árvores mal percebes um alento.

Os pássaros emudecem na floresta Esperas só um pouco, breve

Tu também descansarás.

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Você certamente não hesitou em reconhecer o texto como um poema, não é? De fato, é um poema do poeta romântico alemão Johann Wolfgang von Goethe, intitulado “Canção noturna do viandante”, escrito em 1780.

O que, afinal, caracteriza o texto poético como poético? Talvez sejamos inclinados a responder logo: o verso! A diferença entre a prosa e o verso basta para caracterizar o texto poético? Se assim fosse, o que faríamos com os poemas em prosa inaugurados, na modernidade, pelo poeta Charles Baudelaire, por exemplo? E, bem antes disso, o que seriam dos textos de medicina e física que, na Antiguidade clássica, eram escritos em versos? Seriam eles poéticos? Essa questão foi colocada por Aristóteles (2008, p. 38-39):

As pessoas, juntando ao nome do metro a palavra poeta, chamam a uns poetas elegíacos e a outros poetas épicos, não os designando poetas pela imitação, mas pela semelhança do metro. E, se escrevem alguma obra em verso sobre Medicina ou sobre Física, costumam designá-los igualmente por poetas. Ora, nada há de comum entre Homero e Empédocles a não ser o metro; por isso será justo chamar a um poeta e a outro naturalista, em vez de poeta.

Podemos dizer que a reflexão de Aristóteles a respeito do poeta e do uso, por sua parte, do verso provoca o surgimento do conceito de poeticidade, ou seja, da qualidade que define o texto poético como poético. Essa questão continua, ainda hoje, sem resolução.

Por ora, podemos estender o mesmo questionamento que propusemos ao “poético” ao conceito de “lírico”. É o que faz Emil Staiger (1975, p. 100), como você pode ver:

se a essência do lírico determina-se a partir das canções do Romantismo e de Goethe, qual o lugar de Keats, Petrarca, Baudelaire, Gôngora, Hölderlin? Não serão eles poetas, tão líricos como Eichendorff? Não serão talvez maiores líricos que o autor do Romantismo burguês? Essa objeção abriga um emaranhado de mal-entendidos. Quero examiná-los por ordem. A expressão "poeta lírico" que surge aqui é capciosa. Quem é poeta lírico? Um poeta que compôs obras líricas ou um poeta que criou Lírica? Sem dúvida alguma, o que criou Lírica. [...] Lírica, pois, significa aqui novamente aquele ramo genérico dentro do qual podem-se colocar poemas, um compartimento grande e espaçoso, já que todas as poesias, mesmo as que se classificam em sub-ramos, nele são colocadas. A expressão "lírico", ao contrário, justamente não nos serve como conceito coletivo.

Como podemos perceber, Emil Staiger repete, de certa forma, a pergunta de Aristóteles. Se o filósofo grego se pergunta “quem é o poeta”, o germanista complementa: “quem é o poeta lírico?”. Como vimos antes, o que Emil Staiger chama de “essência” do lírico pode ser traduzido como a qualidade que caracteriza um determinado texto como “lírico”. O adjetivo “lírico” se aplica aos poemas, de modo que “o crítico literário sempre terá que lançar mão daquela qualidade que desde o

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tempo de Herder é imprescindível em nossa profissão: um sentimento espontâneo para a qualidade histórico-individual da obra” (STAIGER, 1975, p. 103). Pode-se estender a outros substantivos. Tanto que a Emil Staiger (1975, p. 105), ao aproximá-lo da “essência do homem” que se manifesta nos “domínios da criação poética”, afirma que a contribuição dos gêneros literários estaria na “visão de mundo” do poeta e, por extensão, em “parte daquilo que o homem pode ser em absoluto”.

Por outro lado, o substantivo “Lírica” serve como “conceito coletivo”, “aquele ramo genérico dentro do qual podem-se colocar poemas”, como afirma Emil Staiger. E o poeta lírico seria, simplesmente, o poeta “que criou Lírica”. Retomando a sua distinção entre adjetivos e substantivos, que vimos antes e que seria apropriada por Anatol Rosenfeld, Emil Staiger (1975, p. 103) simplifica: “Coloquemos para os substantivos as expressões correspondentes que evitarão também aqui uma confusão; portanto, para Epopeia "uma narrativa longa em versos", para Drama "peça teatral", para Lírica ou Poesia "poemas de pequena extensão"”.

E como, além da “pequena extensão” dos poemas, a poética antiga define a poesia lírica? Desde a Antiguidade, os cantos líricos, acompanhados então pela lira ou pela flauta, expressam, em geral e convencionalmente, os sentimentos individuais, subjetivos do poeta ou, mais propriamente, do eu lírico. Essa individualidade e subjetividade da poesia lírica, que não deve ser confundida com a individualidade e subjetividade do autor, se apoia no tipo de enunciação descrito, como você viu, desde Platão e Aristóteles, como lírico: Platão o define como “narração pelo próprio poeta”, e Aristóteles afirma que, nele, se preserva “a sua identidade sem alteração”. Na verdade, Aristóteles não trata especificamente da lírica (e sua Poética não chegou até nós completa), mas se refere ao que compreendemos por lírica, como observa Anatol Rosenfeld (2014, p. 16), ao diferenciar duas formas de narrar, uma em que se introduz uma terceira pessoa (a épica), e outra em que se insinua o autor, sem que intervenha outro personagem (a lírica). Reproduzindo essa compreensão de poesia lírica, G. W. F. Hegel, por exemplo, subordina a lírica à subjetividade, afirmando que ela “exprime apenas os sentimentos interiores da alma” (HEGEL, 2010, p. 383). Ao entender que a poesia lírica “tem por conteúdo o subjetivo, o mundo interior, a alma agitada por sentimentos, alma que, em vez de agir, persiste na sua interioridade e não pode por consequência ter por forma e por fim senão a expansão do sujeito, a sua expressão” (HEGEL, 2010, p. 436), o filósofo alemão restringe o lirismo ao homem individual:

O lirismo restringe-se ao homem individual e, consequentemente, às situações e aos objetos particulares. O conteúdo da poesia lírica é, pois, a maneira como a qual a alma com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si própria no seio deste conteúdo (HEGEL, 2010, p. 512-513).

Como caracterizar o gênero lírico, então? Em geral, reproduzindo o consenso, uma voz central exprime um estado de alma e o traduz em versos. Trata-se da expressão de emoções e disposições psíquicas. “A lírica tende a ser”, como resume Rosenfeld (2014, p. 22), “a plasmação imediata das vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se interponham eventos distendidos no tempo”.

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Anatol Rosenfeld (2014, p. 23) constata, evidentemente embasado em Emil Staiger (1975), que “prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo distância entre sujeito e objeto”. Aquilo que se inscreve no poema se encontra, como nota Rosenfeld, arrancado da sucessão temporal, permanecendo à margem e acima do fluir do tempo, como um momento inalterável, como presença intemporal.

Ao analisar o poema de Goethe que vimos acima, Emil Staiger (1975, p. 21) constata que “no estilo lírico não se dá a ‘re’-produção linguística de um fato. Não se pode aceitar que na ‘Canção noturna de um viandante’ estivesse de um lado o clima do crepúsculo e do outro a língua com todos os seus sons, pronta a ser aplicada. Antes, é a própria noite que soa como língua. O poeta não ‘realiza’ coisa alguma”. “O valor dos versos líricos é justamente essa unidade entre a significação das palavras e sua música”, conclui Staiger (1975, p. 22), que ressalta insistentemente os seguintes aspectos na lírica moderna:

● a unidade entre a música das palavras e de sua significação;● a atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão;● renúncia à coerência gramatical, lógica e formal.

Emil Staiger (1975, p. 59) observa que na lírica não há oposição entre sujeito e objeto, constatando o “um-no-outro lírico” em que a individualidade se dissolve. “O que se dá é que ‘interno’ e ‘externo’, ‘subjetivo’ e ‘objetivo’ não estão absolutamente diversificados em poesia lírica”, de modo que “não nos sentimos como individualidade, como pessoa ou ser historicamente localizado”, afirma Staiger (1975, p. 63), para quem no poeta lírico “os contornos do eu, da própria existência, não são firmemente delineados” (STAIGER, 1975, p. 66).

Ora, mas não vimos que o lírico se caracteriza justamente pela individualidade e subjetividade do eu? Na verdade, Emil Staiger não foi o primeiro a problematizar essa concepção de lirismo. Antes dele, Friedrich Nietzsche (1992, p. 43) retoma a definição de “poeta lírico” enquanto “aquele que sempre diz ‘eu’” e questiona: “não é ele o primeiro artista a ser chamado de subjetivo, o verdadeiro não artista?”. Nietzsche lembra, então, que o poeta lírico

se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco, totalmente um só com o Uno primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Uno primordial em forma de música [...] agora porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do sonho, sob a influência apolínea do sonho. [...] O artista já renunciou à sua subjetividade no processo dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade com o coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível aquela contradição e aquela dor primordiais, juntamente com o prazer primigênio da aparência. O “eu” do lírico soa, portanto, a partir do abismo do ser: sua “subjetividade”, no sentido dos estetas modernos, é uma ilusão (NIETZSCHE, 1992, p. 44).

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NOTA

Em Nietzsche, o apolíneo, referente ao deus grego Apolo, contrasta com o dionisíaco, referente ao deus grego Dionísio. Enquanto o primeiro se relaciona com as artes figuradas e com a individualidade, o segundo se relaciona com a arte não figurada da música e com a coletividade.

Você percebeu que Nietzsche, assim como Emil Staiger, depois dele, questiona a individualidade e a subjetividade do eu lírico? E que o associa à música? Com isso, Nietzsche não busca simplesmente recordar a origem do lirismo, que sabemos estar relacionada com a lira e, portanto, com a música, mas evidenciar que, por força da “música dionisíaca e, portanto, da música em geral”, o eu lírico se caracteriza por um “desprendimento de si próprio” ou, numa palavra, pela “desindividuação”.

A poesia moderna, ao acentuar a musicalidade da poesia, acentua, ao mesmo tempo, o processo de “desindividuação” que caracteriza o lirismo. Não devemos, portanto, insistir na busca da individualidade e da subjetividade do eu, quando mais do poeta, na poesia moderna, como sugere, por exemplo, Vitor Manuel de Aguiar e Silva ao concluir que a imitação ou representação entra em colapso quando o artista resolve se retirar do mundo e buscar a si mesmo, por entender que “ao lírico é impossível exilar-se de si mesmo, alhear-se da sua interioridade a fim de se outrar” (SILVA, 1976, p. 230). Devemos lembrar que o contexto do Romantismo e do Simbolismo coincide com a consolidação do capitalismo no mundo ocidental e, consequentemente, com a exacerbação do individualismo, fundamentado na concepção cartesiana de sujeito.

Em vez de simplesmente reiterar o individualismo que insistentemente se associa ao lirismo, parece mais certo, portanto, concluir que a acentuação da musicalidade da poesia ressoa a “desindividuação” de que fala Nietzsche ou a “desintegração do eu” de que fala Staiger ao se referir ao sentimento de dissolução da individualidade. E, de fato, a poesia não cessa de dar exemplos de “exilar-se de si mesmo”, contrariando a conclusão de Vitor Manuel de Aguiar e Silva, como comprova a famosa frase do poeta simbolista Arthur Rimbaud: “eu é um outro”.

Nesse sentido, Hugo Friedrich, analisando justamente as relações entre o Romantismo e a poesia moderna em “Estrutura da lírica moderna”, define a lírica moderna pela despersonalização, ou seja, a separação de poesia e pessoa. Segundo Friedrich (1978, p. 36-37), “com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido de que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em contraste com a lírica de muitos séculos anteriores”. Para Hugo Friedrich (1978, p. 35), o problema específico de Baudelaire é “a possibilidade da poesia na civilização comercializada e dominada pela técnica”, problema aprofundado por Theodor W. Adorno, como veremos.

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Um ano depois da publicação de “Estrutura da lírica moderna”, de Hugo Friedrich, Theodor W. Adorno (2003, p. 71), partidário do conceito de estranhamento, desfamilizarização ou distanciamento, retoma os mesmos versos de “Canção noturna do viandante”, de Goethe, comentados por Emil Staiger.

Este poema certamente deve sua grandeza ao fato de que não fala de nada alienado e perturbador, de que, nele próprio, o desassossego do objeto não é contraposto ao sujeito: pelo contrário, o poema reverbera o desassossego do próprio sujeito. É prometida uma segunda imediaticidade: o que é humano, a própria linguagem, aparece como se fosse ainda uma vez a criação, enquanto tudo o que vem de fora se extingue no eco da alma.

NOTA

O conceito de estranhamento (ostranenie) é fundamental para o Formalismo Russo, em que se relaciona com a proposta formalista de definir a literariedade (literaturnost). O conceito aparece em “A arte como procedimento”, do formalista russo Victor Chklovski, enquanto um efeito de desautomatização da percepção provocado pela arte.

Você percebeu que Adorno reitera a ideia de uma fusão entre sujeito e objeto? A argumentação de Adorno pretende repensar a relação entre a poesia e a sociedade a partir dos pressupostos que acabamos de ver. Para tanto, e a partir do “primado da linguagem” que caracteriza a literatura e o seu efeito de estranhamento, Adorno contraria o consenso que compreende a lírica como incapaz de “reconhecer o poder de socialização” (ADORNO, 2003, p. 65-66).

A “palavra lírica representa o ser-em-si da linguagem contra sua servidão no reino dos fins”, afirma Adorno (2003, p. 88-89). A incomunicabilidade da linguagem da poesia estabelece, portanto, a mediação com a sociedade justamente por meio do seu distanciamento, que Adorno compreende como uma reação ao processo de reificação ou coisificação provocado pelos modos de produção capitalista:

A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida (ADORNO, 2003, p. 69).

Você percebeu como Adorno relaciona poesia lírica e sociedade? Como identifica na linguagem da poesia lírica uma questão eminentemente social? Podemos dizer que a poesia lírica, por meio da linguagem, que constitui tanto a poesia quanto o homem enquanto ser de linguagem, devolve ao homem sua humanidade ao reagir contra sua reificação.

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Vejamos, agora, mais de perto a linguagem da poesia lírica.

4.1 A ESTRUTURA DO POEMA

A estrutura do poema, formada de unidades concretas e significativas que estudaremos a seguir, comporta, enquanto produto de linguagem, um aspecto de sentido, seja em sua conotação sensorial, seja em sua conotação intelectual. Veremos como se estabelece a relação entre a significação e a estrutura, que implica, por si mesma, uma relação, neste caso, entre as partes constitutivas do poema. A estrutura do poema, portanto, imprime uma forma a uma significação que depende inteiramente da estrutura do poema. Jean Cohen (1978, p. 34), ao constatar que a relação constitutiva da estrutura ou da forma do poema consiste em uma relação de significados, conclui: “poderemos falar de uma forma do sentido”. O fundamental aqui diz respeito ao fato de que, no poema, a forma e o sentido se interpenetram indistintamente, de modo que a poeticidade, segundo Jean Cohen, numa perspectiva formalista, depende da expressividade da linguagem estruturada como poema.

NOTA

A poeticidade é a qualidade daquilo que é considerado poético.

Observe o famoso soneto de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver;É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;É solitário andar por entre a gente;É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganhe em se perder;

É querer estar preso por vontade;É servir a quem vence, o vencedor;É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favorNos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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Para compreendermos a relação entre a forma e os sentidos e a função fundamental da estrutura na produção de sentidos na leitura do poema, acompanhemos as observações iniciais de Antonio Candido a respeito do poema de Camões:

Trata-se de um soneto. Significativo: adoção de um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado pelos italianos), apto pela sua estrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma ordenada e progressiva de argumentação. Há certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de raciocínio lógico em voga ainda ao tempo de Camões: o silogismo. Em geral, contém uma proposição ou uma série de proposições (ou algo que se pode assimilar a ela) e uma conclusão (ou algo que se pode a ela assimilar).Este soneto obedece ao modelo clássico. É composto em decassílabos e obedece ao esquema de rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD. Isto permite a divisão do tema e a constituição de uma rica unidade sonora, na qual a familiaridade dos sons e a passagem dum sistema de rimas a outro ajuda ao mesmo tempo o envolvimento da sensibilidade e a clareza da exposição poética (proposição, conclusões).O decassílabo, como aqui aparece, é de invenção italiana, embora exista com outros ritmos na poesia de outras línguas. Verso capaz de conter uma emissão sonora prolongada, e bastante variado para se ajustar ao conteúdo.Este soneto apresenta uma particularidade: a proposição é feita por uma justaposição de conceitos nos dois primeiros quartetos, estendendo-se ao primeiro terceto. Só no último tem lugar a conclusão (que é uma consequência do exposto), que de ordinário principia no anterior.Quanto à estrutura rítmica, notar que na parte propositiva (11 versos), todos os versos têm cesura da 6ª sílaba, permitindo um destaque de 2 membros, o primeiro dos quais exprime a primeira parte de uma antítese, exprimindo o segundo a segunda parte. Vemos aqui a função lógica ou psicológica da métrica, ao ajustar-se à marcha intelectual e afetiva do poema.Note-se ainda que o poeta recorre discretamente à aliteração, isto é, à frequência num ou mais versos das mesmas consoantes, formando uma determinada constante sonora, ou antes, um efeito sonoro particular:r no primeiro verso; t no terceiro e sétimo; d no quarto; v no décimo etc. (CANDIDO, 1994, p. 20-21).

Você percebeu como Antonio Candido articula cada parte do poema procurando analisar sua estrutura, passando da parte ao todo e do todo para a parte? E como relaciona a estrutura formada pelas partes com os sentidos do poema, tanto cognitivos quanto afetivos? O efeito do poema, produzido no ato da leitura, depende, portanto, de sua estrutura, como podemos perceber.

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Vejamos agora como Antonio Candido, complementando as observações anteriores, interpreta o poema de Camões, primeiramente em seu “aspecto expressivo formal” e, a seguir, em seu “aspecto expressivo existencial”. Na interpretação do que chama “aspecto expressivo formal”, Antonio Candido (1994, p. 21-22) analisa:

Evidentemente se trata de um poema construído em torno de antíteses, organizadas longitudinalmente em forma simétrica, por efeito da cesura significativa, dando nítida impressão de estrutura bilateral regular, ordenada em torno de uma tensão dialética. São duas séries de membros que se opõem, prolongando durante 11 versos um movimento de entrechoque.Esta estrutura geral é movimentada por uma progressão constante do argumento poético, manifestada:1º pelo efeito de acúmulo das imagens, que acabam criando uma atmosfera de antítese;2º pela abstração progressiva das categorias gramaticais básicas que são no caso vocábulos-chave do ponto de vista poético. Assim é que temos sucessivamente uma área de substantivos, uma área de verbos substantivados e uma área de verbos.Substantivos: 1ª estrofe: fogo, ferida, contentamento, dor.Verbos substantivados: 2ª estrofe: um querer, um andar (solitário pode ser substantivo ou adjetivo, aliás; dupla leitura possível). Transição no terceiro verso que prepara a passagem para a área seguinte verbal (/um/ nunca contentar-se).Verbos: 3ª estrofe, e já fim da segunda: querer estar, servir, ter.Trata-se de um nítido processo de abstração, que revela a passagem do estado passivo do sujeito poético à sua ação, intensificando a sua força emocional.Ainda sob este aspecto, note-se na área dos substantivos a evolução da causa material – fogo – para a consequência material imediata e apenas metaforicamente material – ferida – e dela para a consequência imaterial mediata – contentamento e dor, que são estados da sensibilidade.Na última estrofe, a cesura não divide o verso, há transposição (enjambement), e todo o terceto se apresenta como unidade expressiva coesa e ininterrupta, pela presença de uma consequência lógico-poética, sob a forma de interrogação. Esta interrogação exprime a perplexidade do poeta e permite transitar à nossa segunda parte (CANDIDO, 1994, p. 21-22).

NOTA

Enjambement é um termo francês, traduzido como encavalgamento, que denomina o desalinhamento da estrutura métrica e sintática entre um verso e outro.

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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Você percebeu como Antonio Candido aproveita as observações iniciais sobre o poema, articulando as partes e o todo, numa interpretação formal, ou seja, encerrada na organização interna da linguagem do poema? Vejamos agora como a interpretação do “aspecto expressivo formal” se desdobra numa interpretação do “aspecto expressivo existencial”, a segunda parte a que se refere Antonio Candido:

Este soneto exprime, sob aparente rigidez lógica, uma densa e dramática tensão existencial; é o encerramento de uma profunda experiência humana, baseada na perplexidade ante o caráter contraditório (bilateral, para usar a expressão aplicada à forma estrutural do soneto) da vida humana. A vida é contraditória, e como os poetas não cansam de lembrar, amor e ódio, prazer e dor, alegria e tristeza, andam juntos. [...] No soneto de Camões há uma rebeldia apenas retórica, sob a perplexidade do último terceto. Mas no corpo dialético do poema reponta uma aceitação das duas metades da vida, pelo conhecimento do seu caráter inevitável. A profunda experiência de um homem que viveu guerras, prisão, vícios, gozos do espírito, leva-o a esta análise que reconhece a divisão da unidade. E a própria conclusão perplexa do fim é o reconhecimento de que a unidade se sobrepõe afinal à divisão do ser no plano da experiência humana total. O amor é tudo o que vimos, e ele é aspiração de plenitude graças à qual o nosso ser se organiza e se sente existir. Grande mistério – sugere o poeta – que sendo tão aparentemente oposto à unidade do ser, ele seja um unificador dos seres (na medida em que é amizade).A simetria antitética perfeitamente regular exprime a presença de uma ordem no caos. O espírito unifica no plano da arte as contradições da vida, não as destruindo, mas integrando-as (CANDIDO, 1994, p. 22-23).

Você percebeu como a interpretação formal do poema concorre para uma interpretação dos sentidos do poema, de modo que a forma e os sentidos se integram na estrutura do poema? Antonio Candido (1994, p. 23) conclui sua interpretação sugerindo a possibilidade de “representar graficamente o soneto de Camões, levando em conta a estrutura antitética das três primeiras estrofes, cortadas verticalmente pela cesura na 6ª sílaba, e o ritmo unificador da estrofe final”:

Observe que Candido ilustra a estrutura antitética das três primeiras estrofes, cortadas verticalmente pela cesura na 6ª sílaba, com dois retângulos na vertical, e o ritmo unificador da estrofe final com o retângulo na horizontal.

Vejamos agora mais detidamente alguns dos conceitos empregados por Antonio Candido, os quais constituem a metalinguagem que contribui para a explicação de um poema.

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4.2 O VERSO

O verso ordena em uma unidade um grupo de unidades menores, exigindo uma continuação correspondente, que constitui a estrofe e, finalmente, o poema. Por isso, Antonio Candido (1994, p. 60) considera o verso a “unidade do poema”. E, mais do que uma unidade sonora e musical, uma unidade significativa, razão pela qual Antonio Candido privilegia as palavras como unidades constitutivas do verso:

São estas as unidades significativas, que cortamos em partes, desarticulamos, emendamos, apenas para analisar os fenômenos do metro e do ritmo, isto é, os fenômenos que constituem a sua realidade sonora. Se o fizemos, foi porque em poesia o significado se constrói em grande parte por meio dos elementos sonoros, e assim vimos como a lei da sonoridade, o ritmo, é a própria alma do verso (CANDIDO, 1994, p. 59).

Conforme Rogério Chociay (1974, p. 1), o termo tem origem no latim versus, que significa voltar, retornar, e, tendo assumido conotações como linha, sulco, fileira, entre outras, a palavra designou a linha do poema: “qual o sulco do arado, ela volta sempre sobre si mesma”. Jean Cohen (1978, p. 47), por sua vez, confirma que “todo verso é ‘versus’, ou seja, retorno. Por oposição à prosa (‘prorsus’) que avança linearmente, o verso volta sempre sobre si mesmo”.

Os versos recebem diferentes denominações:

a) agudos, graves ou esdrúxulos: versos terminados em palavras oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas, respectivamente;

b) brancos: versos metrificados sem rima;c) livres: versos livres de regras quanto à metrificação, ritmo e rima.

Quanto ao número de sílabas, os versos são classificados em:

a) monossílabos: versos de uma sílabab) dissílabos: versos de duas sílabasc) trissílabos: versos de três sílabasd) tetrassílabos: versos de quatro sílabase) pentassílabos ou redondilha menor: versos de cinco sílabasf) hexassílabos ou heroico menor: versos de seis sílabasg) heptassílabos ou redondilha maior: versos de sete sílabash) octassílabos: versos de oito sílabasi) eneassílabos: versos de nove sílabasj) decassílabos: versos de dez sílabas, divididos em:

o heroico: com acento basicamente em 6-10

Ex.: Es | can | da | lo | as | men | te | per | fu | ma | do (Olavo Bilac) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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o sáfico: com acento basicamente em 4-10

Ex.: So | no | ra | men | te, | lu | mi | no | sa | men | te (Cruz e Sousa) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

k) hendecassílabos ou verso de arte maior: versos de 11 sílabasl) dodecassílabos ou alexandrinos: versos de 12 sílabas

Outros conceitos importantes para o estudo do verso são:

a) cesura: pausa no interior do verso, separando, por meio dos acentos, o verso em partes:

A | mor | é | fo | go | que ar | de | sem | se | ver | 6

b) enjambement ou cavalgamento: quebra da sintaxe e, por conseguinte, do sentido de um verso, continuada no verso seguinte, produzindo um efeito de quebra e continuidade. Jean Cohen (1978, p. 31) o define como “uma discordância entre o metro e a sintaxe” ou ainda “por uma relação interna entre som e sentido”:

Quando olho para mim não me percebo.Tenho tanto a mania de sentir

Que me extravio às vezes ao sairDas próprias sensações que eu recebo.

(Álvaro de Campos)

Os versos, ordenados em uma unidade maior, formam uma estrofe. A estrofe consiste, portanto, no conjunto demarcado de versos, separado de outras estrofes. As estrofes são denominadas conforme a quantidade de versos:

a) dístico: estrofe de dois versosb) terceto: estrofe de três versosc) quarteto ou quadra: estrofe de quatro versosd) quinteto ou quintilha: estrofe de cinco versose) sexteto ou sextilha: estrofe de seis versosf) sétima ou septilha: estrofe de sete versosg) oitava: estrofe de oito versosh) nona ou novena: estrofe de nove versosi) décima: estrofe de dez versos

Um grupo de versos que se repete ao longo do poema recebe o nome de refrão.

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4.2.1 A rima

A rima se define como a homofonia, ou reiteração de fonemas, geralmente ao final dos versos (rima externa ou final), constituindo o principal efeito de sonoridade do verso. A rima pode ocorrer ainda no interior dos versos (rima interna ou interior). Segundo Antonio Candido (1994, p. 39), a decadência da métrica quantitativa contribuiu para o aparecimento da rima nas literaturas latinas: “Toda a história do verso português se fez sob a égide da rima, embora desde o Renascimento haja voltado a prática do verso branco dos clássicos latinos”.

Os tipos de rima mais importantes a distinguir são as rimas consoantes (ou soantes) e as rimas toantes. Na explicação de Antonio Candido (1994, p. 40), “na rima consoante, há concordância de todos os fonemas a partir da vogal tônica”.

Frescura das sereias e do orvalho,Dos brancos pés dos pequeninos,

Voz das manhãs cantando pelos sinos,Rosa mais alta no mais alto galho

(Manuel Bandeira)

Podemos dizer, grosso modo, que ocorre uma identidade sonora na rima consoante, ao passo que na rima toante, aproximação. Ainda segundo Antonio Candido (1994, p. 40), “na rima toante, há concordância das vogais tônicas, ou das vogais tônicas e outra, ou outras vogais átonas que a seguem”. Em suma, enquanto na rima consoante ocorre a repetição de vogais e consoantes, na rima toante apenas as vogais se repetem:

Se vem por círculos na viagemPernambuco – Todos os Foras.

Se vem numa espiralda coisa à sua memória.

(João Cabral de Melo Neto)

Existem, evidentemente, outros tipos de rima. Sânzio de Azevedo (1997) enumera outros tipos de rima segundo sua natureza: atenuada, ampliada, idêntica, composta, quebrada, rica, pobre, exótica, figurada, imperfeita e aparentemente imperfeita. Entre os tipos enumerados, destacamos as rimas ricas e pobres.

A rima rica consiste na combinação de palavras de classes gramaticais diferentes:

Esquece o tempo. O tempo não existe. (verbo)Acende a chama às límpidas lanternas. (substantivo)

Nossas almas, a ansiar no mundo triste, (adjetivo)São de uma mesma idade: são eternas. (adjetivo)

(Tasso da Silveira)

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A rima pobre, por sua vez, compreende palavras da mesma classe gramatical.

As rimas são ainda classificadas segundo sua posição ou distribuição nas estrofes do poema. Para representar os esquemas da disposição das rimas, utilizamos as letras do alfabeto. A rima emparelhada, por exemplo:

Ouço e fito com um certo assombro o azul, envolto (A)N’uma bruma sutil. Corta a atmosfera solto (A)Um pássaro noturno. O luar, o luar, não vem (B)

Às giestas em flor... e ela tarda também!... (B)De novo escuto e fito o azul... somente a treva (C)

Mais aumenta no bosque e no céu mais se eleva! (C)(Luís Murat)

Como podemos ver, aparece aos pares, representamos com o esquema AABBCC. A rima cruzada ou alternada, por sua vez, segue o esquema ABAB:

Minha desgraça, não, não é ser poeta, (A) Nem na terra de amor não ter um eco, (B)

É meu anjo de Deus, o meu planeta (A) Tratar-me como trata-se um boneco (B)

(Álvares de Azevedo)

As rimas opostas ou interpoladas seguem o esquema ABBA, e a rima encadeada, o esquema ABA/BCB/CDC:

Sei de uma criatura antiga e formidável, (A)Que a si mesma devora os membros e as entranhas, (B)

Com a sofreguidão da fome insaciável. (A)

Habita juntamente os vales e as montanhas; (B)E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, (C)Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. (B)

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo; (C)Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, (D)

Parece uma expansão de amor e de egoísmo. (C)(Machado de Assis)

Outros tipos de rima segundo sua posição, conforme Sânzio de Azevedo (1997), são a rima contínua, a leonina, a coroada, a distanciada, a misturada, a repetida e a redobrada. E, finalmente, quando os versos metrificados não rimam, são chamados versos brancos.

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4.2.2 Metrificação e escansão

A metrificação, ou seja, o conjunto de normas que regem a estrutura dos versos regulares, empregada entre os gregos e romanos, na Antiguidade, obedecia ao sistema quantitativo. O sistema quantitativo se baseia na quantidade de pés, ou seja, a combinação de sílabas breves ( U ) e longas ( - ) ordenadas, no verso, numa sucessão que produz um ritmo. Como observa Sânzio de Azevedo (1997, p. 11-12), “há pés de duas, de três, e mesmo de quatro sílabas. Em Latim, as sílabas são, como foi dito, breves e longas, o que corresponde, não muito rigorosamente, às átonas e tônicas do Português, respectivamente”.

Observe este verso de Virgílio, que introduz a Eneida, e que consiste em um hexâmetro, ou seja, um verso de seis pés ou unidades métricas:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris

- UU | - UU | - UU | - UU | - UU | - UU

No verso, traduzido por Carlos Alberto Nunes como “As armas canto e o varão que fugindo das plagas de Tróia”, podemos identificar seis dátilos ( - UU ). Geralmente, os versos se compunham de um mesmo pé. Um hexâmetro composto de seis dátilos, por exemplo, seria, assim, denominado hexâmetro datílico.

Os principais pés do sistema quantitativo são:

a) Troqueu: | - U |b) Jambo: | U - |c) Dátilo: | - UU |d) Anapesto: | UU - |e) Péonio primo: | - UUU |f) Péonio quarto: | UUU - |

Os versos neolatinos, como observa Antonio Candido (1994, p. 48), “não correspondem de modo algum ao princípio de regularidade da métrica quantitativa”. Afinal, ainda segundo Antonio Candido (1994, p. 39), “o afrouxamento da métrica quantitativa deu lugar ao aparecimento da métrica rítmica, baseada na sucessão das sílabas, com acentos tônicos distribuídos em algumas delas”:

Quando eu te fujo e me desvio cauto 4 8 10

Ne verso de Casimiro de Abreu acima, por exemplo, temos 10 sílabas poéticas, com acentos tônicos na quarta, oitava e décima sílabas. Antonio Candido (1994, p. 51) diferencia o metro, ou seja, o número de sílabas poéticas, do ritmo, o

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número de segmentos rítmicos. A distribuição das sílabas tônicas de modo diverso nos versos resulta, assim, em diversas combinações de ritmo. Antonio Candido (1994) sugere que a um esquema silábico ou métrico – ES ou EM – correspondem diferentes esquemas rítmicos – ER. No exemplo acima, por exemplo, temos: ES – 10 ER – 4, 8, 10.

Para analisarmos o metro e o ritmo dos versos de um poema, precisamos realizar a escansão dos versos. A escansão consiste na contagem das sílabas poéticas:

Quan | do eu | te | fu | jo e | me | des | vi | o | cau | to 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Como você pode perceber, ao escandirmos um verso, a contagem das sílabas para na última sílaba tônica ( | cau | ), e não corresponde à contagem das sílabas gramaticais, a exemplo da segunda sílaba poética ( | do eu | ) e da quinta ( | jo e | ), em que ocorre o que podemos chamar, segundo Rogério Chociay (1974), de processos de acomodação. No exemplo, ocorre a sinalefa, ou seja, a fusão ou contração de duas ou mais vogais intervocabulares.

Os processos de acomodação podem ser divididos em silábicos e acentuais. Os principais processos de acomodação silábicos são:

a) Eclipseb) Sinéresec) Sinalefad) Diéresee) Dialefaf) Aféreseg) Síncope

E os principais processos de acomodação acentual são:

a) Sístoleb) Diástole

Podemos acrescentar ainda alguns casos especiais de acomodação:

a) Anacruseb) Sinafiac) Compensação

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4.2.3 Poemas: formas fixas e visuaisA organização das unidades concretas e significativas que estudamos, tais

como verso, metro, ritmo, rima, estrofe, na unidade do poema configura a sua forma.

A mais importante forma fixa de poema é o soneto, que, como você viu no exemplo de Camões, é formado por dois quartetos e dois tercetos, geralmente seguindo o esquema de rimas ABBA ABBA CDC DCD, sendo composto em versos decassílabos ou alexandrinos. Quanto ao soneto, Sânzio de Azevedo (1997, p. 191) esclarece:

Apesar das divergências que sua origem tem suscitado, parece realmente “ter tido ele por berço a Itália ou, com mais precisão, a Sicília”, no dizer de Cruz Filho. Consagrado por Petrarca na Itália, foi introduzido em Portugal por Sá de Miranda. Composto de 14 versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, seu esquema rimático tem variado com o tempo. No soneto de Camões, é invariável o dos quartetos, em ABBA / ABBA; mas os tercetos podem ser em CDC / DCD, CDE / CDE e até CDC / CDC.

O soneto inglês apresenta algumas alterações em relação ao italiano, sendo formado por três quadras com rimas próprias e um dístico com rima emparelhada. Ainda segundo Sânzio de Azevedo (1997, p. 207), “o soneto inglês, praticado por Shakespeare, segue a fórmula estabelecida por Wyatt e Howard (Duque de Surrey), introdutores desse tipo de poema na Inglaterra: são três quartetos e um dístico, na disposição ABAB/CDCD/EFEF / GG”. Sânzio de Azevedo exemplifica o soneto inglês com um poema do brasileiro Manuel Bandeira:

Aceitar o castigo imerecido,Não por fraqueza, mas por altivez,

No tormento mais fundo o teu gemidoTrocar num grito de ódio a quem o fez.

As delícias da carne e pensamentoCom o instinto da espécie nos engana

Sobpor ao generoso sentimentoDe uma afeição mais simplesmente humana.

Não tremer de esperança nem de espanto.Nada pedir nem desejar, senão

A coragem de ser um novo santoSem fé num mundo além do mundo. E então,

Morrer sem uma lágrima, que a vidaNão vale a pena e a dor de ser vivida.

Os tipos de poema podem se definir pelo tema ou pela forma, como o soneto. Em geral, os tipos caracterizados pelo tema compreendem uma determinada forma. As principais formas fixas são: ode, trioleto, sextina, epigrama, balada, rondó, rondel, madrigal, écloga, idílio, pastoral, elegia, epitalâmio, glosa, haicai, entre outras. Eis um exemplo de haicai:

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HORA DE TER SAUDADE

Houve aquele tempo...(E agora, que a chuva chora,

Ouve aquele tempo!)(Guilherme de Almeida)

Observe agora como a poetisa Ana Cristina Cesar recorre a diferentes tipos de poema em seu poema em versos livres “Primeira lição”, que consiste, como explica Maria Lucia de Barros Camargo (2003, p. 248), em “uma ‘aula básica’ sobre o que é a poesia lírica”, estruturada em “‘versos’ desprovidos de lirismo”:

Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro.

O gênero lírico compreende o lirismo. Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal.

É a linguagem do coração, do amor. O lirismo é assim denominado porque em outros tempos os

versos sentimentais eram declamados ao som da lira. O lirismo pode ser:

a) Elegíaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a morte. b) Bucólico, quando versa sobre assuntos campestres.

c) Erótico, quando versa sobre o amor. O lirismo elegíaco compreende a elegia, a nênia, a endecha, o epitáfio e o

epicédio. Elegia é uma poesia que trata de assuntos tristes.

Nênia é uma poesia em homenagem a uma pessoa morta. Era declamada junto à fogueira onde o cadáver era incinerado.

Endecha é uma poesia que revela as dores do coração. Epitáfio é um pequeno verso gravado em pedras tumulares.

Epicédio é uma poesia onde o poeta relata a vida de uma pessoa morta.

O poema de Ana Cristina Cesar não obedece evidentemente a uma forma fixa, mas nos oferece não apenas o conhecimento de alguns tipos de poema, como a possibilidade de retomar o assunto sobre o lirismo, especialmente a impessoalidade que caracteriza a enumeração dos tipos de poema que constitui a lição ou “anti-lição”, como prefere Camargo (2003, p. 249), ao constatar que o poema “mostra onde não está o lirismo”.

A mesma anulação da subjetividade que se manifesta na “Primeira lição” de Ana Cristina Cesar pode ser identificada nas formas visuais dos poemas modernos. A esse respeito, Heloisa Buarque de Hollanda (2004, p. 44) constata que “para o poema racional da vanguarda a tematização de problemas pessoais está interditada”. Diante do horizonte técnico da sociedade industrial, dos novos padrões da comunicação não verbal, da linguagem publicitária, do outdoor, do cartaz, o poema deve livrar-se da “alienação metafórica”, para ser projetado como um “objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas”.

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A colocação da linguagem em primeiro plano na projeção do poema como “objeto em e por si mesmo”, como assinala o “Plano piloto para poesia concreta”, citado por Heloisa Buarque de Hollanda (2004), remonta, na modernidade, ao poema “Um lance de dados”, do poeta francês Stéphane Mallarmé.

FIGURA 7 - UM LANCE DE DADOS, DE STÉPHANE MALLARMÉ

FONTE: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 117

A disposição das palavras no papel, o interesse pelo branco do papel em contraste com a grafia das palavras, que confere um aspecto visual ao poema, é justificada por Mallarmé por uma aproximação com a música. Em “Um lance de dados”, Mallarmé (1990, p. 152) identifica no concerto, mais precisamente, na forma da sinfonia, meios que julga provirem da literatura, e os retoma.

Essa aproximação, aparentemente controversa, entre o aspecto visual e o sonoro ou musical da poesia moderna é confirmada por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 61): “Esta participação da fisicidade dos vocábulos aproxima a arte literária da música e adquiriu um relevo particular com o movimento simbolista, quando a poesia, no dizer de Valéry, quis ‘retomar à Música a sua riqueza’”. Compreendida como representação de si mesma e como uma arte de sensação imediata, como observa Clement Greenberg (2001), a música constituiria o modelo para as artes de vanguarda na problematização de seus campos de atividade e no questionamento da racionalidade positivista. Assim, as vanguardas do século XX reduziriam a poesia a propriedades materiais, sonoras ou visuais, da linguagem verbal da poesia.

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FIGURA 8 - L’AMIRAL CHERCHE UNE MAISON À LOUER

FONTE: Disponível em: <http://a403.idata.over-blog.com/800x513/2/41/57/89/Dada--04/CV007L-amiral.cherche.png>. Acesso em: 30 jun. 2017

O poema simultâneo dos dadaístas Richard Huelsenbeck, Tristan Tzara e Marcel Janko, por exemplo, dispõe os textos, como você pode ver acima, ao modo de partituras musicais em uma grade. A poesia sonora de Hugo Ball, Raoul Hausmann e Kurt Schwitters, por sua vez, reduz o poema a propriedades sonoras e visuais das palavras, a exemplo do poema sonoro “Ursonate”, de Kurt Schwitters.

FIGURA 9 - URSONATE

FONTE: Disponível em: <https://tandtprojects.cah.ucf.edu/~amandah/dig6836/soundpoem/soundindex.php>. Acesso em: 30 jun. 2017.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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O fragmento acima é a introdução do poema “Ursonate”, que pode ser traduzido como “Protosonata”, sendo a sonata uma forma musical fixa. Você consegue compreender os versos do poema? Se não consegue, não se trata de uma questão idiomática. Você pode ser alemão, como o poeta, ou dominar a língua alemã, e continuará sem compreender, pois as letras dispostas no poema não formam palavras em idioma algum. São signos sonoros sem sentido lógico-racional. Isso não significa, no entanto, que o poema não produza sentido, sobretudo se considerarmos o contexto de produção, a aproximação entre poesia e música, as experimentações das vanguardas que provocavam o público e o gosto do público por meio do choque, bem como confrontavam o racionalismo que não podia mais se sustentar com os acontecimentos, como as grandes guerras.

O impacto do contexto de produção das vanguardas poéticas do início do século XX transparece ainda nos poemas predominantemente visuais, a exemplo deste caligrama de Guillaume Apollinaire. Os caligramas consistem em imagens formadas pela disposição das palavras que, neste caso, criticam a invasão da França pelas tropas alemãs.

FIGURA 10 - CALIGRAMA DE APOLLINAIRE

FONTE: Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Guillaume_Apollinaire_Calligramme.JPG>. Acesso em: 30 jun. 2017

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No Brasil, o interesse pelo aspecto visual do poema culmina no Concretismo e sua teoria do fim do verso. Formado em 1952, em São Paulo, o Concretismo foi integrado por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari e, posteriormente, por Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald. O Concretismo declara o fim do verso como unidade rítmico-formal do poema, reconhecendo o espaço como agente estrutural.

poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaciotemporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear (TELES, 1982, p. 403).

Com isso, o poema não se desenvolve de maneira apenas temporal e linear, dialogando com a comunicação não verbal. Como explicam os poetas concretistas Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos no “Plano piloto para poesia concreta”, o manifesto do Concretismo publicado em 1958:

o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica – “verbivocovisual” – que participa das vantagens da comunicação não verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra. Com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomunicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens (TELES, 1982, p. 404).

Assim, o concretismo termina por retirar qualquer sinal de subjetividade do “eu” lírico da poesia, como confirma, como vimos antes, a interdição de “problemas pessoais” constatada por Heloisa Buarque de Hollanda (2004). O legado de Mallarmé para as formas visuais da poesia, como sugerimos antes, pode ser confirmado tanto nesta passagem do “Plano piloto para poesia concreta”: “precursores: mallarmé (un coup de dés, 1897): o primeiro salto qualitativo: “subdivisions prismatiques de l’idée”; espaço (“blancs”) e recursos tipográficos como elementos substantivos da composição” (TELES, 1982, p. 403), quanto neste poema do concretista Augusto de Campos.

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FIGURA 11 - TVGRAMA 1 (TOMBEAU DE MALLARMÉ), DE AUGUSTO DE CAMPOS

FONTE: Disponível em: <http://www.musarara.com.br/wp-content/uploads/2012/03/TVGRAMA-1-copy.jpg>. Acesso em: 30 jun. 2017.

Este outro poema concreto de Augusto de Campos recorda o caligrama, que vimos anteriormente, de Apollinaire, igualmente citado no “Plano piloto para poesia concreta” como precursor de uma compreensão sintético-ideográfica em detrimento de lógica-discursiva.

FIGURA 12 - 2ª VIA, DE AUGUSTO DE CAMPOS

FONTE: Disponível em: <http://saopaulosao.com.br/nossas-pessoas/1566-augusto-de-campos-ganha-sua-maior-mostra-individual-no-sesc-pomp%C3%A9ia.html>. Acesso em: 30 jun. 2017.

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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O poema-processo radicaliza as sugestões visuais e não discursivas do concretismo, explorando principalmente signos visuais ou signos não verbais. Ao dialogar com outras artes, especialmente visuais, o poema-processo resulta num poema para ser visto mais do que para ser lido. Seus principais autores são: Álvaro de Sá, Neide Sá, Moacy Cirne, Wlademir Dias-Pino.

FIGURA 13 - POEMA PROCESSO DE FALVES SILVA

FONTE: Disponível em: <http://www.poemaprocesso.com.br/poetas.php?poeta=25&i=4&alfaini=c&alfafim=g>. Acesso em: 30 jun. 2017.

O Poema-práxis, por sua vez, retoma, embora não reconstitua completamente, a linearidade do verso, mas como uma “intensidade significativa que no contexto do poema limita-se a si mesma”, conforme explica Mário Chamie (1962 apud HOLLANDA, 2004, p. 52). Aqui, como nos poemas concretos, não há lugar para a subjetividade de um eu lírico, como podemos ver nesta estrofe:

Cova,

e não se espanta.Plantio; fé e safra sofre o homem

de mortee morre: rês, rés de fome

Cava.

Segundo Heloisa Buarque de Hollanda (2004, p. 53), “o poema é como se fosse sua área, que transparece como tal, sem a intervenção da subjetividade do poeta”. O manifesto didático do Poema-práxis, publicado em 1962 por Mário Chamie, ilumina o papel da falta de intervenção da subjetividade constatada por Heloisa Buarque de Hollanda: “a história caminha para um coletivismo total. Nessa coletivização, o indivíduo, como tal, conta cada vez menos e, enquanto integrante de uma sociedade, conta cada vez mais”. Com isso, Mário Chamie (1962 apud HOLLANDA, 2004, p. 49) propõe a literatura práxis como “fazer histórico”. Portanto, a despeito ou justamente em função do desaparecimento da subjetividade do eu lírico no poema, é um aspecto do lirismo propriamente que se manifesta aqui, como vimos antes ao tratarmos da desindividuação e da despersonalização, e que aqui tem sua função social explorada explicitamente.

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4.2.4 Método de análise e interpretação de poemas

Vimos antes um excelente exemplo de interpretação de poemas, em que Antonio Candido articula a estrutura e a significação do poema, articulação reiterada pela interpretação do “aspecto expressivo formal” e do “aspecto expressivo existencial”.

Analisar um poema requer, como nota Antonio Candido (2002, p. 7), “ler infatigavelmente o texto analisado”, “como sempre preconizou a velha explication de texte dos franceses”. Para tanto, Candido não rejeita a intuição, suscitada pela multiplicação das leituras. Analisar um poema requer ainda um tratamento adequado àsua natureza, ou seja, respeitar a sua especificidade, considerando alguns pressupostos comuns:

um destes pressupostos é que os significados são complexos e oscilantes. Outro, que o texto é uma espécie de fórmula, onde o autor combina consciente e inconscientemente elementos de vários tipos. Por isso, na medida em que se estruturam, isto é, são reelaborados numa síntese própria, estes elementos só podem ser considerados externos ou internos por facilidade de expressão (CANDIDO, 2002, p. 6).

Como podemos ver, Antonio Candido toma os elementos externos e internos como interdependentes, do mesmo modo que a forma e os sentidos do poema, como vimos antes. Afinal, a interpretação de um poema implica o conceito de estrutura como correlação das partes, a qual atua, por fim, na estratificação dos significados. Ao analisar e interpretar um poema, devemos, portanto, considerar os elementos constitutivos do poema, como a forma, a sonoridade, o ritmo, o metro, o verso, entre outros, e compreender, como sugere Antonio Candido, a estrutura formada pelos elementos do poema de forma articulada com os significados.

Vejamos um exemplo a partir do poema “A valsa”, de Casimiro de Abreu:

Tu, ontem, Na dança

Que cansa, Voavas

Co’as faces Em rosas Formosas De vivo, Lascivo

Carmim; Na valsa Tão falsa, Corrias, Fugias,

Ardente,

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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Contente, Tranquila,

Serena, Sem pena De mim!

Quem dera Que sintas As dores

De amores Que louco

Senti! Quem dera

Que sintas!… — Não negues, Não mintas…

— Eu vi!…

Valsavas: — Teus belos

Cabelos, Já soltos, Revoltos, Saltavam, Voavam,

Brincavam No colo

Que é meu; E os olhos

Escuros Tão puros, Os olhos Perjuros Volvias, Tremias, Sorrias,

P’ra outro Não eu!

Quem dera Que sintas As dores

De amores Que louco

Senti! Quem dera

Que sintas!…

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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— Não negues, Não mintas…

— Eu vi!…

Meu Deus! Eras bela Donzela, Valsando, Sorrindo, Fugindo, Qual silfo Risonho

Que em sonho Nos vem! Mas esse Sorriso Tão liso

Que tinhas Nos lábios

De rosa, Formosa, Tu davas, Mandavas A quem?!

Quem dera Que sintas As dores

De amores Que louco

Senti! Quem dera

Que sintas!… — Não negues, Não mintas,..

— Eu vi!…

Calado,Sozinho,

Mesquinho,Em zelosArdendo,Eu vi-te

CorrendoTão falsaNa valsa

Veloz!

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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Eu tristeVi tudo!

Mas mudoNão tive

Nas galasDas salas,Nem falas,

Nem cantos,Nem prantos,

Nem voz!

Quem dera Que sintas As dores

De amores Que louco

Senti! Quem dera

Que sintas!… — Não negues, Não mintas,..

— Eu vi!…

Na valsaCansaste;

FicasteProstrada,Turbada!Pensavas,Cismavas,E estavas

Tão pálidaEntão;

Qual pálidaRosa

MimosaNo vale

Do ventoCruentoBatida,Caída

Sem vida.No chão!

Quem dera Que sintas As dores

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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De amores Que louco

Senti! Quem dera

Que sintas!… — Não negues, Não mintas,..

— Eu vi!…

Inicialmente, podemos perceber que o poema, publicado em 1859 por Casimiro de Abreu, poeta da segunda geração do romantismo brasileiro, não obedece a uma forma fixa, conforme uma premissa do Romantismo. Sua estrutura, no entanto, segue um padrão, sendo formada por cinco estrofes de vinte versos intercaladas por refrãos, formados, por sua vez, por onze versos.

A sonoridade do poema pode ser identificada em elementos como a rima, a aliteração e a assonância. Observe os primeiros versos:

Tu, ontem, (A) Na dança (B)

Que cansa, (B) Voavas (C)

Note a homogeneidade sonora produzida pela reiteração de sons das consoantes e das vogais. A rima se manifesta predominantemente em pares, com destaque para a rima entre versos 10 e 20 que produz uma simetria, dividindo, de certa forma, a estrofe em duas partes:

Tu, ontem, na dança que cansa, voavas co’as faces em rosas formosas de vivo, lascivo carmim;

Na valsa tão falsa, corrias, fugias, ardente, contente, tranquila, serena, sem pena de mim!

O efeito mais interessante, e importante, para pensarmos a relação entre forma e significação, deriva do ritmo do poema. Como vimos, para analisarmos o metro e o ritmo dos versos de um poema, precisamos realizar a escansão dos versos:

Tu, | on | tem, 1 2

Na | dan | ça 1 2

Seguindo as orientações de Antonio Candido, temos EM – 2 e ER – 2, mas o fundamental neste poema é o resultado do ritmo, ou seja, da regularidade produzida pela acentuação dos versos que, neste caso, reproduzem o ritmo de uma valsa. O efeito do ritmo de valsa resulta da leitura sucessiva dos versos, que pode ser melhor representado se recorrermos ao sistema quantitativo:

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

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Tu, ontem,U - U

Na dançaU - U

Note que a sucessão de pés anfíbracos ( U – U ), formados por uma longa entre duas breves, reproduz o ritmo ternário da valsa. O ritmo funciona como uma figura de fundo, como a valsa que soa na sala em que ocorre o acontecimento expresso pelo eu lírico.

Nesse sentido, podemos identificar processos de acomodação, a exemplo da ectlipse (Co’as | fa | ces), utilizados para manter a unidade de metro e ritmo. Analisemos, agora, o processo de acomodação que ocorre na última estrofe:

Qual | pá | li | da 1 2

Ro | sa 1

Mi | mo | sa 1 2

Nessa parte ocorre uma sinafia, ou seja, o deslocamento da última sílaba átona de um verso para o verso seguinte, formado por uma sílaba a menos. A sinafia gera, aqui, um descompasso entre o metro e o ritmo: o metro sofre uma alteração, ao passo que o ritmo (da leitura, ao menos) permanece o mesmo. A sinafia tem, portanto, uma função fundamental no poema: a quebra da regularidade dos pés (representação da ordenação regulada das unidades de tempo) remete aos pés (ou passos) da dançarina, comparada, a seguir, a uma rosa “caída / sem vida / no chão”. Assim, a estrutura e a significação do poema coincidem, na medida em que um elemento formal da poesia – os pés – contribui para a significação produzida pelo poema, de modo que, aqui, de certa forma, o poema remete a si mesmo. O efeito produzido pelo poema condiz com a disposição das palavras no papel, de modo que a forma reflete graficamente o sentido: a quebra do pé.

Considerando os elementos articulados na estrutura e na estratificação dos significados do poema, releia agora o poema de Casimiro de Abreu e proponha uma interpretação. Para tanto, considere que, como leitores, temos apenas a perspectiva do eu lírico que, insistimos, não se confunde com o poeta e que, numa primeira leitura, parece reclamar um amor não correspondido. Se lermos “infatigavelmente o texto analisado”, como sugere Antonio Candido, percebemos que a significação do poema ultrapassa a primeira leitura. Para essa tarefa, sugerimos algumas perguntas: estaria o poema circunscrito ao salão? Seria o salão uma representação, temporalmente condensada, da vida? Teria a dançarina morrido? Ou apenas caído com o ritmo vertiginoso da valsa? Para responder a essa pergunta, considere o vocabulário da última estrofe, a exemplo da palavra “cruento”. Teria o eu lírico matado a dançarina? Não é o que parece

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

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sugerir a última estrofe, sobretudo se considerarmos o refrão, que repete como uma ideia fixa: “quem dera que sintas as dores...”? Teria ela realmente caído ou morrido ou tudo é uma projeção da imaginação do eu lírico? Não é o próprio refrão, mais uma vez, que nos permite pensar que tudo se trata de imaginação?

Para finalizarmos nossa discussão sobre a interpretação de poemas, centrada tanto no “aspecto expressivo formal” quanto no “aspecto expressivo existencial”, como sugere Antonio Candido, vejamos algumas considerações de Emil Staiger que nos permitem retomar o problema dos gêneros literários. “Como concorre a Poética para a interpretação de cada obra?”, pergunta-se Emil Staiger (1975, p. 103), que responde:

Basta examinar de que modo cada poema participa de cada um dos três gêneros aqui abordados. Isso seria certo do ponto de vista da Poética que afirma que a divisão tripartida baseia-se na linguagem: assim, a essência da obra de arte literária esgotar-se-ia na divisão tripartida. Entretanto, isto é pura teoria que na vida não tem utilidade. O modo como uma obra poética oscila entre épico, lírico e dramático, o modo como a tensão desenvolve-se, e em seguida equilibra-se, é tão extraordinariamente delicado, que toda mera aplicação de conceitos rígidos tende de antemão a fracassar. O crítico literário sempre terá que lançar mão daquela qualidade que desde o tempo de Herder é imprescindível em nossa profissão: um sentimento espontâneo para a qualidade histórico-individual da obra.

Ao constatar a inutilidade da simples aplicação da divisão tripartida da teoria dos gêneros literários aos poemas, Emil Staiger (1975, p. 105) salva a teoria dos gêneros literários deslocando a teoria para uma questão propriamente humana:

A “Poética” se anuncia como uma contribuição da Ciência da Literatura para o problema da Antropologia Geral, quer dizer, ela esforça-se para provar como a essência do homem aparece nos domínios da criação poética. Por isso mesmo ela não nega, e sim acentua com grande ênfase que a validade dos conceitos de gênero não se limita à Literatura, que se trata aí de uma nomenclatura provinda da Ciência da Literatura para atualidades generalizadas do Homem. Toda a problematização aparelha-se para a questão: que é o Homem?

Ao afirmar que o homem se forma a partir da ideia que faz de si mesmo, Emil Staiger (1975, p. 105) explica: “Ao darmos respostas exatas à pergunta ‘o que é o homem?’, decidimo-nos por determinadas possibilidades. Situamo-nos, percebemo-nos em determinada perspectiva. E, portanto, se pode dizer que em cada sistema, em cada ‘visão do mundo’ de um poeta, realiza-se parte daquilo que o homem pode ser em absoluto”. Afinal, para o germanista, “o homem é algo que o mais cedo possível terá que superar a si mesmo, ou voltando à intimidade muda, ou fracassando tragicamente, num esforço supremo e último do elemento dramático” (STAIGER, 1975, p. 106).

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• O gênero dramático se diferencia do gênero lírico pelo modo de enunciação e pelo modo, meio e objeto de imitação.

• Os gêneros dramático e lírico surgem na Antiguidade grega a partir do ditirambo.

• A tragédia e a comédia se diferenciam pelos objetos de imitação, superior e inferior, respectivamente.

• A dramaturgia medieval se caracteriza pela fusão entre o superior e o inferior, contrariando a separação prescrita pela antiga teoria dos gêneros literários.

• O teatro de Shakespeare funde o trágico e o cômico, e o teatro moderno, reconhecendo Shakespeare como modelo, critica as regras do classicismo.

• O gênero lírico se associa convencionalmente com a subjetividade, e a subjetividade da lírica deve ser relativizada diante da desindividuação que a caracteriza.

• A lírica moderna se caracteriza pela unidade entre a música das palavras e de sua significação, pela atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão e pela renúncia à coerência gramatical, lógica e formal.

• A forma e os sentidos do poema se interpenetram, e sua análise e interpretação dependem de elementos como estrutura, verso, rima, metrificação e escansão.

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AUTOATIVIDADE

Você leu, no decorrer do tópico, o poema “Primeira lição”, de Ana Cristina Cesar. Considerando que o poema se intitula “Primeira lição”, reflita, com base nas discussões a respeito do lirismo, sobre os sentidos do poema, retomando os assuntos abordados anteriormente, tais como gênero, forma e subjetividade. Em seguida, leia a citação abaixo e disserte suas conclusões.

Temos uma imitação de um “mau” texto didático. Mas há um elemento irônico que se instaura a partir da contradição entre o tema tratado (o lirismo associado à morte) e o tratamento dado ao tema. Nada mais anti-lírico e impessoal do que uma série de definições que podem ser traduzidas numa abstrata sentença matemática: x é y. Nada mais anti-lírico que um conjunto de assertivas que se organiza segundo a lógica classificatória que parte do geral para o particular, em subdivisões sucessivas e marcadas rigidamente por itens, a, b, c, apresentados, contudo, como “poesia”. Mas tal efeito irônico introduz um rasgo de verdade: a tensão entre a forma e o sentido acentua a distância entre a matéria lírica que deseja uma forma e a confissão informe próxima do grito. E a forma se faz exatamente no insistente retorno da proposição assertiva, que constrói um ritmo geral monótono, quase uma ladainha. Nela, o tema da morte, insistentemente tratado nas sucessivas escolhas, para concluir com a ambiguidade entre vida e morte nos dois últimos versos, aponta para a morte do próprio lirismo sufocada na “Lição”. Ou seja, a primeira lição de lirismo é uma anti-lição: mostra onde não está o lirismo (CAMARGO, 2003, p. 249).

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TÓPICO 3

LITERATURA DE CORDEL

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

No Tópico 2 você aprofundou os estudos sobre os gêneros literários analisando, individualmente, o gênero dramático e o gênero lírico. Neste terceiro tópico você irá estudar a literatura de cordel, sua história e suas características.

Como veremos, embora a literatura de cordel surja na Europa durante o Renascimento, adquire por aqui uma feição bem brasileira, especialmente representativa do nordeste brasileiro, onde chegou primeiro por meio dos portugueses.

E apesar de ser denominada pelo modo como eram expostos os folhetos, como veremos a seguir, a literatura de cordel pode ser identificada por elementos textuais que a caracterizam, os quais estudaremos resumidamente agora.

Vamos lá?

2 LITERATURA DE CORDEL

A literatura de cordel remonta ao Renascimento, quando o surgimento da imprensa na Europa permitiu a impressão de relatos orais dos trovadores medievais em folhetos. O nome se origina do modo como tradicionalmente os folhetos impressos eram expostos, pendurados em cordas, para comercialização em Portugal. Por mediação dos colonizadores portugueses, a literatura de cordel chegou ao Brasil como manifestação oral, mais exatamente na Bahia, de onde migrou para outros estados do Nordeste.

No Brasil, os folhetos de literatura de cordel, cuja impressão seria posterior ao aparecimento da imprensa, autorizada apenas com a vinda da Corte, em 1808, adquirem uma identidade singular. A produção seriada de folhetos de literatura de cordel brasileira inicia em 1893, com a publicação dos poemas do cordelista Leandro Gomes de Barros, considerado o precursor da literatura de cordel no Brasil.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Como manifestação de poesia popular, a literatura de cordel se caracteriza por uma linguagem informal, estruturada em diferentes modalidades de estrofes e de versos, compondo um poema de extensão relativamente grande. Geralmente, transmite uma opinião sobre um tema social ou cotidiano, criticando a realidade e as condições de vida do povo nordestino, com o emprego, para tanto, de ironia e de sarcasmo. Os temas tratam, em geral, de assuntos cotidianos, lendas, eventos historicamente significativos etc., mas não são restritos, de modo que qualquer assunto pode ser tematizado pela literatura de cordel. Vendidos em feiras, os folhetos de literatura de cordel se tornaram, inclusive, uma fonte de informação para a população nordestina.

Os folhetos de literatura de cordel geralmente são ilustrados com xilogravuras, ou seja, uma ilustração produzida com madeira esculpida e, em seguida, impressa no papel. Os poemas, por sua vez, são estruturados por estrofes caracterizadas por um esquema de rimas e metro regulares. As estrofes mais comuns na literatura de cordel são de dez versos (décima), oito versos (oitava ou quadrão), seis versos (sextilha) e quatro versos (quadra).

FIGURA 14 - XILOGRAVURA

FONTE: Disponível em: <http://www.tvsinopse.kinghost.net/art/x/xilogravura.htm>. Acesso em: 20 jul. 2017.

DICAS

Caso queira pesquisar mais sobre a xilogravura, visite o site do Museu Casa da Xilogravura: <http://www.casadaxilogravura.com.br>.

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TÓPICO 3 | LITERATURA DE CORDEL

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Vejamos um exemplo de uma sextilha retirada do cordel “A vida de Pedro Cem”, de autoria de Leandro Gomes de Barros, cujos direitos foram comprados pelo editor e poeta João Martins de Athayde, que o publicou em seu nome:

Vou narrar agora um fato Que há cinco séculos se deu

De um grande capitalista Do continente europeu Fortuna como aquela Ainda não apareceu

Como podemos perceber, as rimas obedecem ao esquema ABCBDB. O poema soma 79 sextilhas formadas por redondilhas maiores, modalidade de verso muito popular na poesia brasileira.

Quanto ao tema, o poema trata de um avarento que acumula uma grande fortuna. Um dia, um sonho anuncia a Pedro Cem a perda de toda a sua fortuna. Ao acordar, acreditando que o sonho tinha se cumprido como uma profecia, sai vagando pelo mundo implorando caridade:

Eu tive tanta fortuna, Não socorri a ninguém, E todos que me pediram Eu nunca dei um vintém,

Hoje eu preciso pedir, Não há quem me dê também!

Ao final, Pedro Cem morre sem nada: “Ontem teve, hoje não tem”, resume o verso final do cordel. O tema deriva de uma antiga lenda portuguesa adaptada a diferentes registros, incluindo a literatura de cordel portuguesa e brasileira (NOGUEIRA, 2010, p. 18-19). A respeito da adaptação de Leandro Gomes de Barros, Carlos Nogueira (2010, p. 24) afirma:

A estrutura de cada estrofe permite criar um efeito de naturalidade estética que transporta o leitor para o interior do texto e da história. A articulação de unidades semânticas organizadas em seis versos origina um circuito que se renova em andamentos cuja transparência estética e comunicativa sugere que a palavra diz e organiza o mundo (no princípio era o verbo). A assimilação original da lenda enquanto texto sancionado pela escrita “Diz a história onde li/ o todo desse passado/ que Pedro Cem nunca deu/ uma esmola a um desgraçado/ não olhava para um pobre/ nem falava com criado” (BARROS, 2004, p. 2) dá-se nesse circuito instaurado pelos valores estético e ético da palavra.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

O aspecto religioso e de valoração da palavra presente na lenda e, especialmente, no poema, constatado por Carlos Nogueira, confere ao cordel um feitio moralizante, de modo que se configura como uma lição. Como observa ainda Carlos Nogueira (2010, p. 27), o personagem Pedro Cem ultrapassa os folhetos de literatura de cordel, atravessada pela “sensibilidade do catolicismo tradicional”, e se projeta entre os cantadores, transformado em “texto oral e memorial”, como exemplo negativo de um ser ganancioso.

FIGURA 15 - LITERATURA DE CORDEL

FONTE: João Martins de Athayde. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=CordelFCRB&pasta=&pesq=a%20vida%20de%20pedro%20cem>. Acesso em: 30 jun. 2017.

Vejamos, por fim, um exemplo de estrofes de dez versos redondilhos maiores do mesmo cordelista brasileiro:

Se eu soubesse que esse mundo Estava tão corrompido

Eu tinha feito uma greve Porem não tinha nascido Minha mãi não me dizia A queda da monarchia Eu nasci foi enganado

Pra viver n'este mundo Magro, trapilho, corcundo,

Alem de tudo sellado.Assim mesmo meu avô

Quando eu pegava a chorar, Elle dizia não chore

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TÓPICO 3 | LITERATURA DE CORDEL

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O tempo vai melhorar. Eu de tolo acreditava

Por innocente esperava Ainda me sentar n'um throno

Vovó para me distrahir Dizia tempo ha de vir

Que dinheiro não tem dono.

DICAS

Barbosa oferece um acervo on-line com folhetos digitalizados de literatura de cordel brasileira. Visite! <http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/>.

NOTA

Em 1988 foi fundada a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sediada na cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de promover o cordel. Acesse: <http://www.ablc.com.br/>.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura de cordel é uma manifestação de poesia popular proveniente da Europa que remonta ao Renascimento.

• Seu nome se origina do modo como os folhetos eram expostos, pendurados em cordas.

• Os folhetos de literatura de cordel geralmente são ilustrados com xilogravuras.

• A literatura de cordel se caracteriza por uma linguagem informal e transmite uma opinião sobre um tema social ou cotidiano, criticando a realidade e as condições de vida.

• A literatura de cordel consiste em poemas de extensão relativamente grande, estruturados em diferentes modalidades de estrofes e de versos.

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Você leu acima um fragmento de um poema do cordelista Leandro Gomes de Barros chamado “As misérias da época”:

Se eu soubesse que esse mundo

Estava tão corrompido...

Retome a leitura do fragmento do poema ou pesquise e leia o poema integral e reflita sobre a atualidade do tema abordado pelo cordelista brasileiro nos primeiros anos do século XX.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 3

OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade você será capaz de:

• Identificar A Especificidade Dos Gêneros Épico E Narrativo;

• Compreender A Relação Entre O Gênero Épico E O Gênero Narrativo;

• Reconhecer As Relações Entre A Literatura E Outras Áreas Do Conhecimento;

• Compreender As Relações Da Literatura Com A História E A Sociedade.

Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles, você terá atividades que vão ajudá-lo a refletir sobre os assuntos abordados.

TÓPICO 1 – O GÊNERO ÉPICO

TÓPICO 2 – O GÊNERO NARRATIVO

TÓPICO 3 – LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

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TÓPICO 1

O GÊNERO ÉPICO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Você viu na primeira unidade do livro de Teoria da Literatura I que, desde a Antiguidade, a literatura se divide em gêneros literários, quais sejam: o gênero lírico, o gênero dramático e o gênero épico ou narrativo. Nesta unidade, estudaremos mais detidamente os gêneros épico e narrativo.

Todos vivemos envoltos em narrativas, sejam elas reais ou ficcionais. Como afirma Antonio Candido (2004, p. 174), não há povo e não há homem que possa viver sem fabulação e, assim, a criação ficcional “está presente em cada um de nós”.

Nesta unidade, você conhecerá mais sobre a narrativa, a começar pelo mais antigo gênero narrativo. O gênero épico, caracterizado pela presença de narrador e de personagens, narrava, misturando eventos históricos e mitológicos, os mitos de fundação das nações na Antiguidade. A seguir, você conhecerá os modernos gêneros narrativos, que herdaram características do gênero épico, especialmente a disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, o que explica a consolidação e valorização da prosa narrativa na modernidade.

Neste tópico, você estudará as relações da literatura, em especial da narrativa, com outras áreas do conhecimento, e o gênero épico, suas características e a trajetória das epopeias. Ao final deste tópico, você estará ambientado com as relações da literatura com outras áreas do conhecimento e com o gênero épico.

Seja bem-vindo!

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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2 O GÊNERO NARRATIVO E AS RELAÇÕES DA LITERATURA COM OUTRAS ÁREAS DO CONHECIMENTO

A literatura constitui uma atividade plural que, para se manifestar em sua especificidade, assimila uma diversidade de áreas do conhecimento, especialmente, mas não exclusivamente, os gêneros narrativos. Roland Barthes (2010, p. 18) acentua esse aspecto da literatura, sustentando nele uma defesa da literatura diante das outras disciplinas:

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso do socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário.

Barthes evidencia a relação da literatura com outras áreas do conhecimento, e imediatamente escreve:

É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso (BARTHES, 2010, p. 18).

“Verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes”, afirma Barthes (2010, p. 18), confirmando o fato de que “todas as ciências estão presentes no monumento literário”, e dinamicamente. E mais: “ela é a realidade”, advoga Barthes, sem reduzir a literatura ao realismo de um Zola, por exemplo, que, como Barthes, entretanto, acreditava que “as obras-primas do romance contemporâneo dizem muito mais sobre o homem e sobre a natureza do que graves obras de Filosofia, de História e de Crítica” (COMPAGNON, 2012, p. 7-8). Afinal, a literatura abrange, de fato, muitos conhecimentos, especialmente sobre a vida, o homem e o mundo. Como confirma Antoine Compagnon (2012, p. 8), “exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo. Um ensaio de Montaigne, uma tragédia de Racine, um poema de Baudelaire, o romance de Proust nos ensinam mais sobre a vida do que longos tratados científicos”.

A abrangência da literatura em suas relações com outras áreas do conhecimento se revela mais profunda no gênero narrativo, cujas possibilidades de representação seriam aprimoradas pelo romance. Afinal, o romance representa a “vida cotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas”, conforme Erich Auerbach (2009, p. 499) se refere a Stendhal e Balzac, o que culminaria, ainda segundo Auerbach (2009, p. 500) no “realismo moderno, que se desenvolveu desde então em formas cada vez mais ricas, correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida”.

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TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO

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NOTA

Honoré de Balzac (1799-1850) foi um escritor francês, considerado o fundador do Realismo. Escreveu “A mulher de trinta anos”, “Ilusões perdidas”, entre outras obras. Émile Zola (1840- 1902) foi um escritor francês, considerado criador e representante mais expressivo do Naturalismo. Escreveu “Germinal”, entre outras. Stendhal (1783-1842) foi um escritor francês. Escreveu “O vermelho e o negro”, entre outras.

A esse respeito, Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 111-112) compreende que “a literatura se afirma como meio privilegiado de exploração e de conhecimento, não apenas da realidade exterior, mas da realidade interior, do eu profundo que as convenções sociais mascaram”.

Conforme Silva (1976, p. 260), desde que o romance se afirma, a partir do Romantismo, como uma forma valorizada, “apta a exprimir os multiformes aspectos do homem e do mundo”, transforma-se “em penetrante e, por vezes, despudorada análise das paixões e dos sentimentos humanos”. “O romance assimilara sincreticamente diversos gêneros literários, desde o ensaio e as memórias até à crônica de viagens; incorporara múltiplos registros literários, revelando-se apto para a representação da vida cotidiana”, explica Silva (1976, p. 261), que elenca diferentes classificações que comprovam a abrangência do romance e, por conseguinte, suas relações com outras áreas do conhecimento: romance psicológico, romance histórico, romance poético e simbólico, romance de análise e crítica da realidade social contemporânea etc.

Silva (1976, p. 262) constata que “o século XIX constitui inegavelmente o período mais esplendoroso da história do romance”, quando “o romance domina a cena literária” e, “com os realistas e naturalistas, em geral, a obra romanesca aspira à exatidão da monografia, de estudo científico dos temperamentos e dos meios sociais”.

Depois, no declinar do século XIX e nos primeiros anos do século XX, começa a processar-se a crise e a metamorfose do romance moderno, relativamente aos modelos, tidos como “clássicos”, do século XIX: aparecem os romances de análise psicológica de Marcel Proust e de Virginia Woolf; James Joyce cria os seus grandes romances de dimensões míticas, construídos em torno das recorrências dos arquétipos (Ulisses e Finnegans Wake), Kafka dá a conhecer os seus romances simbólicos e alegóricos. Renovam-se os temas, exploram-se novos domínios do indivíduo e da sociedade, modificam-se profundamente as técnicas de narrar, de construir a intriga, de apresentar as personagens. Sucedem-se o romance neorrealista, o romance existencialista, o nouveau roman. O romance não cessa, enfim, de revestir novas formas e de exprimir novos conteúdos numa singular manifestação da perene inquietude estética e espiritual do homem (SILVA, 1976, p. 263).

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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As “possibilidades expressivas” (SILVA, 1976, p. 263) do romance e, em geral, do gênero narrativo, contribuem para a caracterização da narrativa como totalidade, pluralidade, variedade etc., e como correspondência com a realidade, como compreende Auerbach, em suas múltiplas dimensões da vida cotidiana. Assim, ao romance se associa a disposição para a totalidade de que trata Georg Lukács (2000), as pluralidades constatadas por Mikhail Bakhtin (2002, p. 73), ao afirmar que “o romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno, pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal”, ou o “realismo formal” a que corresponde a “forma romance” como reflexo do “realismo filosófico”, segundo Ian Watt (1990). Na narrativa se condensam, portanto, como uma disposição para a totalidade e para a realidade, outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a psicanálise, a história, a filosofia, a sociologia, a economia, a antropologia, a linguística etc.

Diante da multiplicidade compreendida pela literatura, constituindo, enquanto um saber multidimensional, uma estrutura plural que requer estabelecer relações com outros saberes, uma cooperação pluridisciplinar, a teoria da literatura assume um aspecto interdisciplinar, condizente com a interdisciplinaridade constitutiva da literatura:

A Teoria Literária assume um caráter interdisciplinar porque assimila os conhecimentos de ciências afins tais como a sociologia, a antropologia, a linguística, a história, a psicanálise, todas voltadas igualmente para manifestações do ser e do fazer humanos. Este inter-relacionamento amplia e enriquece o estudo da Literatura. [...] A crítica, qualquer que seja a via de acesso escolhida (sociológica, psicológica, linguística...), não pode descartar-se de sua dupla feição: enquanto crítica obedecerá a um rigor, que lhe é garantido pelo método de abordagem e, enquanto literária, incluirá literariamente o sentido que, na literatura, ultrapassa o campo do conhecimento com o qual se articulou, na construção do modelo de leitura (SOARES, 1984, p. 90-91).

Nesse sentido, e corroborando com Soares (1984), Jonathan Culler (1997) constata que, apesar de ser um legado de teorias críticas formalistas e imanentistas, focadas na leitura cerrada do texto literário, a teoria literária seguiu outro rumo: os trabalhos de teoria literária estão intimamente relacionados a outros textos, dentro de um domínio ainda não nomeado, mas muitas vezes chamado “teoria”, para resumir, uma vez que seu objeto não é explicitamente a literatura. A heterogeneidade da “teoria” extrapola a moldura disciplinar dentro da qual seriam normalmente avaliados: “o que caracteriza os membros desse gênero é sua capacidade de funcionar não como demonstrações dentro dos parâmetros de uma disciplina, mas como redescrições que desafiam as fronteiras disciplinares”, afirma Culler (1997, p. 15), reconhecendo que não há limites aos assuntos que os trabalhos de teoria possam abordar.

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TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO

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A razão para isso, segundo Culler, não é nenhuma novidade para nós: “a literatura”, afirma Culler (1997, p. 17), “tem como matéria toda a experiência humana e, particularmente, a ordenação, interpretação e articulação da experiência”. Afinal, como vimos, a literatura analisa as relações humanas, ou manifestações da psique humana, ou os efeitos das condições materiais sobre a experiência individual, de modo que a abrangência da literatura possibilita que qualquer teoria seja levada para a teoria literária, abrangendo questões mais gerais da racionalidade, da autorreflexão e da significação. Portanto, e não apenas por suas relações com outros conhecimentos, mas por constituir um conhecimento singular, “é o conhecimento literário que se nos impõe defender”, como proclama Compagnon (2012, p. 9) repetindo Barthes (2010).

O mesmo Jonathan Culler que identifica a heterogeneidade da “teoria” em virtude das suas relações com outras áreas do conhecimento afirma o seguinte a respeito da narrativa, nosso objeto de estudo neste tópico:

Finalmente, a questão básica para a teoria no domínio da narrativa é essa: a narrativa é uma forma fundamental de conhecimento (dando conhecimento do mundo através de sua busca de sentido) ou é uma estrutura retórica que distorce tanto quanto revela? A narrativa é uma fonte de conhecimento ou de ilusão? O conhecimento que ela parece apresentar é um conhecimento que é o efeito do desejo? (CULLER, 1999, p. 94).

Culler (1999, p. 94), enfim, pergunta ainda se “os efeitos esclarecedores e consoladores das narrativas são ilusórios” e pondera:

Para responder a essas perguntas precisaríamos tanto de conhecimento do mundo que seja independente das narrativas quanto de alguma base para considerar esse conhecimento mais autorizado do que o que as narrativas proporcionam. Mas se existe ou não esse conhecimento autorizado separado da narrativa é precisamente o que está em questão na pergunta a respeito de se a narrativa é ou não uma fonte de conhecimento ou de ilusão. Portanto, parece provável que não possamos responder a essa pergunta, se é que, de fato, ela tem uma resposta. Ao invés disso, devemos ficar nos movendo para lá e para cá entre a consciência da narrativa como uma estrutura retórica que produz a ilusão de perspicácia e um estudo da narrativa como o principal tipo de busca de sentido à nossa disposição. Afinal de contas, mesmo a exposição da narrativa como retórica tem a estrutura de uma narrativa: é uma história em que nossa ilusão inicial cede à crua luz da verdade e emergimos mais tristes, mas mais sábios; desiludidos, mas depurados. Paramos de dançar em círculos e contemplamos o segredo. Assim diz a história (CULLER, 1999, p. 94).

A se guiar pelo exposto, parece que não temos muitas alternativas às narrativas, em outras palavras: não temos como sair das narrativas. E essa é uma boa razão para estudarmos a narrativa, não é verdade? Justamente a isso nos propomos nesta unidade, iniciando pelo gênero épico.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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2.1 GÊNERO ÉPICO

O mais antigo gênero narrativo, o gênero épico se caracteriza pela presença de narrador e de personagens. Misturando eventos históricos e mitológicos, narra os mitos de fundação das nações na Antiguidade, legando aos modernos gêneros narrativos a disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, como veremos.

2.1.1 A origem do gênero épico

A origem da literatura ocidental se encontra intimamente relacionada com as epopeias de Homero e, portanto, com a origem do gênero épico. Como observa Angélica Soares (2007, p. 39): “A forma épica de narrar [...] tem nas epopeias de Homero (meados do século IX a.C.) – a Ilíada e a Odisseia – as suas primeiras manifestações. Nelas situam-se também as fontes do gênero narrativo”.

NOTA

Homero: Poeta épico da Grécia antiga, a quem se atribui a autoria das epopeias Ilíada e Odisseia.

FONTE: Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/importancia-dos-poemas-homero-na-educacao-grega.htm>. Acesso em: 10 out. 2017.

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Aristóteles, que considera a epopeia como uma das artes mais elevadas, julga Homero o modelo a ser buscado. “Digno de louvor por muitos motivos” (ARISTÓTELES, 2008, p. 94). Homero “era o maior autor de obras elevadas” para Aristóteles (2008, p. 44), que, ao se referir aos elementos constitutivos da epopeia, afirma: “Tudo isso Homero usou em primeiro lugar e na perfeição. Assim, na verdade, compôs ele cada um dos seus poemas: a Ilíada, simples e de sofrimento, e a Odisseia, complexa (com reconhecimentos ao longo de todo o poema) e de caráter. E, além disso, superou todos na elocução e no pensamento” (ARISTÓTELES, 2008, p. 93). A esse respeito, Paulo Martins (2009, p. 91) corrobora o julgamento de Aristóteles:

Realmente, não há como negar que as epopeias homéricas – Ilíada e Odisseia – como frutos e flores de uma civilização são marcos incontestes do mundo grego, afinal, até mesmo Platão, séculos depois da composição desses dois poemas, afirmara, tratando de Homero em seu livro A República, que “este poeta ensinou a Grécia”.

Ao confirmar a importância das epopeias de Homero, retomando, inclusive, uma passagem em que Platão, antes de Aristóteles, afirma que Homero “ensinou a Grécia”, Paulo Martins assinala um aspecto importante do gênero épico, ou seja, a sua função de narração mítica e histórica da fundação das antigas civilizações. Martins (2009, p. 91) observa ainda: “Se o poeta grego é o cerne da civilização helênica, também o seria para os romanos e, por consequência, para nós, ocidentais”. E, ao constatar o legado da poesia grega homérica para toda a tradição ocidental do gênero épico, Martins evidencia nas epopeias de Homero uma “característica importante e diferenciada”, qual seja, a oralidade:

Isto é, aquela poesia foi composta entre os séculos IX e VIII a.C. e transmitida oralmente por cantores (os aedos) antes de ser consignada pela escrita a partir do século VII a.C. Tal propriedade é importantíssima, pois determina características formais no poema, a saber: as repetições sistemáticas, a presença de epítetos (aspectos exemplares das personagens), as formulações lapidares que percorrem os milhares de versos das obras. Assim, se por um lado Homero é semelhante a Camões, por outro ele se distancia gravemente do mesmo, uma vez que o meio pelo qual seus poemas são transmitidos era diverso: o primeiro pela voz; o segundo, pela escrita (MARTINS, 2009, p. 91).

Em suas origens, portanto, o gênero épico era transmitido oralmente, o que, como constata Martins, tem implicações formais. Vejamos, então, mais detidamente as características do gênero épico.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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NOTA

A Ilíada narra a conquista de Ílion ou Troia, na Guerra de Troia, motivada pela ira de Aquiles. Um dos personagens, o grego Odisseu ou Ulisses, é o protagonista da Odisseia. A Odisseia, por sua vez, narra a acidentada viagem de Ulisses de volta para casa ao fim da guerra.

2.1.2 Características do gênero épico

As características do gênero épico, como vimos breve e antecipadamente na unidade anterior, foram primeiramente descritas por Platão e Aristóteles. Relembremos: a épica, para Platão (2001, p. 110), é um gênero misto, pois na epopeia “é o próprio poeta que fala”, mas, em determinados momentos, o personagem fala “como se fosse ele mesmo”, momentos estes em que o poeta “faz um discurso como se se tratasse de outra pessoa”. Como podemos perceber, Platão constata, portanto, no gênero épico uma mistura dos outros dois gêneros literários, o gênero lírico, em que “é o próprio poeta que fala”, e o gênero dramático, em que o personagem fala “como se fosse ele mesmo”. E com isso Platão (2001, p. 112) conclui que a epopeia é “formada da combinação das duas precedentes”, escreve se referindo aos gêneros lírico e dramático.

Vejamos um exemplo de Homero, em que Platão se fundamenta para caracterizar o gênero épico. Observe este fragmento do Livro 1, da Odisseia, na tradução portuguesa de Manuel Odorico Mendes:

NOTA

Manuel Odorico Mendes (1799-1864) foi um tradutor e poeta brasileiro, conhecido por ser autor das primeiras traduções portuguesas em versos das obras de Homero e Virgílio, sendo precursor da moderna tradução criativa.

FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Odorico_Mendes>. Acesso em: 10 out. 2017.

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Da guerra e do mar sevo recolhidosOs que eram salvos, um por seu consorteCalipso, ninfa augusta, apetecendo,Separava-o da esposa em cava gruta.O céu, porém, traçou, volvendo-se anos,De Ítaca reduzi-lo ao seio amigo,Onde novos trabalhos o aguardavam:De Ulisses condoíam-se as deidades;Mas, sempre infenso, obstava-lhe Netuno,Este era entre os Etíopes longínquos,Do oriente e ocidente últimos homens,Num de touros e ovelhas sacrifícioA deleitar-se; e estavam já no alcáçarDo Olimpo os habitantes em concílio.O soberano, a recordar EgistoDo Agamenônio Orestes imolado,Principia: “Os mortais ah! nos imputam,Os males seus, que ao fado e à própria incúriaDevem somente. Contra o fado mesmo,Do porvir não cuidoso, há pouco Egisto,Em seu regresso o Atrida assassinando,Esposou-lhe a mulher, bem que enviadoO Argicida sutil o dissuadisse:— De o matar foge e poluir seu leito;Senão, tem de vingá-lo, adolescenteSendo investido no seu reino Orestes. —Mercúrio o amoestou, mas surdo Egisto,Os delitos por junto expia agora”. A quem Minerva: “Sumo pai Satúrnio,Jaz com razão punido esse perverso;Todo que o imitar, com ele acabe!Mas a aflição de Ulisses me compunge,Que, há tanto longe dos amenos lares,Em ilha está circúnflua e nemorosa,Lá no embigo do mar; onde é retidoPela filha de Atlante onisciente,Que o salso abismo sonda, o peso aturaDas colunas que a terra e o céu demarcam.A deusa com blandícias o acarinha;De Ítaca ele saudoso, o pátrio fumoVer deseja e morrer. Não te comoves?Irritou-te faltando, em sua amadaE em Troia, com ofertas e holocaustos?” E o Junta-nuvens: “Que proferes, filha,Do encerro dessa boca? eu deslembrar-meDo mortal mais sisudo, o mais devoto,Aos celícolas pio e dadivoso!

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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Da terra o abarcador é quem o avexa,Por ter do olho privado a Polifemo,O mor Ciclope, que, num antro unidaA Netuno, pariu Toosa, estirpeDe Fórcis deus do pego insemeável.O Enosigeu d’então lhe poupa a vida,Mas de Ítaca o arreda. ProvejamosNa vinda sua; aplaque-se Netuno:Só contra todos contender não pode”. A Olhicerúlea: “Ó padre, ó rei supremo,Se vos praz que à família torne Ulisses,Da ínsula Ogígia à ninfa emadeixadaMercúrio o intime, o herói prudente parta.A Ítaca baixo a confortar o filho:Os comantes Argeus convoque ousado;Suste aos vorazes procos a carnagemDe flexípedes bois e ovelhas pingues.Dali, na Esparta e na arenosa Pilos,Do amado genitor se informe e indague,E entre humanos obtenha ilustre fama” (HOMERO, 2009b, p. 13-14).

Você percebeu, neste fragmento da epopeia e, portanto, do gênero épico, a mistura dos outros dois gêneros literários de que fala Platão? Note que nos primeiros versos “é o próprio poeta que fala”, como diria Platão. Em passagens como:

Da guerra e do mar sevo recolhidosOs que eram salvos, um por seu consorteCalipso, ninfa augusta, apetecendo,Separava-o da esposa em cava gruta (HOMERO, 2009b, p. 13).

Temos, portanto, um narrador que narra as ações dos personagens da epopeia. Por outro lado, em passagens como:

Do Olimpo os habitantes em concílio.O soberano, a recordar EgistoDo Agamenônio Orestes imolado,Principia: “Os mortais ah! nos imputam,Os males seus, que ao fado e à própria incúriaDevem somente... (HOMERO, 2009b, p. 13).

O narrador deixa o personagem falar, de modo que o personagem fala “como se fosse ele mesmo”, como diria Platão. A partir do momento em que “o soberano [...] principia”, dizendo “Os mortais ah! nos imputam”, o narrador desaparece para deixar falar o personagem. O mesmo ocorre, a seguir, com o Argicida, com Minerva, com o Junta-nuvens, que dialoga, inclusive, com Minerva: “Que proferes, filha, do encerro dessa boca?”, e assim por diante.

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NOTA

As epopeias de Homero receberam diversas adaptações para o cinema. Troia (EUA, 2004), dirigido por Wolfgang Petersen, A ira de Aquiles (Itália, 1962), dirigido por Marino Girolami, A Guerra de Troia (Itália, 1961), dirigido por Giorgio Ferroni, e Helena de Troia (EUA, 1956), dirigido por Robert Wise, são adaptações da Ilíada.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-47357/>; <http://www.benitomovieposter.com/catalog/lira-di-achille-p-124149.html?language=en>; <https://www.allmovie.com/movie/la-guerra-di-troia-v114510>; <http://dvdtonyrocha.blogspot.com.br/2015/03/filmes-epico-hercules-e-maciste.html>. Acesso em: 10 out. 2017.

O seriado A Odisseia (1997), dirigido por Andrei Konchalovsky, e o filme Ulisses (Itália, 1954), dirigido por Mario Camerini, são inspirados, por sua vez, em Odisseia.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-206991/creditos/>; <http://www.cliografia.com/2013/09/16/ulysses-o-filme/>. Acesso em: 10 out. 2017.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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Ao descrever o gênero épico, Aristóteles (2008), por sua vez, afirma que a epopeia imita com palavras em verso. Adiante, Aristóteles (2008, p. 47) reitera esse aspecto, associando a epopeia com a narrativa, ao observar que a epopeia se caracteriza por “ter um metro uniforme e por ser uma narrativa”. E ao comparar a epopeia e a tragédia, constata:

A epopeia tem uma característica particular muito importante para aumentar a extensão, uma vez que, na tragédia, não é possível imitar muitas partes da ação que se desenrolam ao mesmo tempo, mas apenas a parte representada em cena pelos atores. Em contrapartida, na epopeia, por ser uma narração, é possível apresentar muitas ações realizadas simultaneamente, através das quais, desde que sejam apropriadas ao assunto, se aumenta a elevação do poema. Este privilégio contribui, assim, para dar grandiosidade, proporcionar uma mudança ao ouvinte e introduzir variedade com episódios diversos (ARISTÓTELES, 2008, p. 93-94).

Como podemos ver, Aristóteles identifica na epopeia a possibilidade de apresentar “muitas ações realizadas simultaneamente”, justamente por meio da narração. A vantagem da epopeia se encontra, portanto, na sua “variedade”, de modo que o épico, para Aristóteles, define-se pela pluralidade: “por épico entendo com pluralidade de histórias”, explica Aristóteles (2008, p. 76).

ATENCAO

O aspecto da variedade ou da pluralidade caracteriza aqui a epopeia como narração fundamental, como veremos adiante, à futura compreensão do romance, forma narrativa, enquanto totalidade.

Com relação ao modo de imitar, como diria Aristóteles, da epopeia, Anatol Rosenfeld (2014) observa que o que caracteriza o gênero épico é fundamentalmente a presença de um narrador, que, ao comunicar um evento passado, estabelece uma distância entre o narrador e o mundo narrado: “É sobretudo fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado)”, conclui Rosenfeld (2014, p. 25). No entanto, Aristóteles menciona ainda a extensão da epopeia, característica retomada por Emil Staiger (1975) para diferenciar o substantivo epopeia do adjetivo épica: “E o que se dá com a epopeia?”, pergunta Staiger (1975, p. 97), que responde: “Denomina-se epopeia uma longa narrativa em versos. Toda longa narrativa em versos é épica? Não!”. A questão colocada por Staiger, diferenciando a epopeia e a épica, interessa na medida em que aponta para a especificidade dos gêneros narrativos, que estudaremos a seguir, como o romance, que se considera uma transformação da epopeia, permanecendo associada com a épica:

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Por outro lado, chamamos também o romance de obra épica, embora ele não seja nenhuma narrativa em versos e também nenhuma epopeia propriamente. Aqui há uma situação de impasse. Uma epopeia é uma narrativa em versos. Nem toda narrativa em versos é épica. Um romance não é uma narrativa em versos, portanto não é uma epopeia, mas é ainda assim uma obra épica (STAIGER, 1975, p. 97-98).

Essa distinção seria analisada por Hegel, que fundamentaria, por sua vez, a teoria do romance de György Lukács e, por extensão, uma infinidade de autores que teorizam o romance, como Mikhail Bakhtin, Erich Auerbach, Ian Watt, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Franco Moretti, entre outros, considerando o aspecto da variedade ou pluralidade, constatado desde Aristóteles, que permite compreender a complexidade da realidade. Aprofundaremos essa questão adiante, quando estudarmos os gêneros narrativos. Por ora, concentremos nossa atenção nas características da epopeia clássica. O que, então, caracteriza a epopeia, ao lado dos aspectos que vimos, associados com o modo de narração? Para respondermos a essa questão, vejamos como Massaud Moisés resume as demais características do gênero épico:

A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o lendário se forme ou/e permita que o poeta lhe acrescente com liberdade o produto da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor pode inserir-se na trama heroica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas de guerra (MOISÉS, 1999, p. 184).

Essas são, portanto, as principais características da epopeia clássica que, além de conter um narrador e personagens que se enunciam em discurso direto, ser uma narrativa longa, escrita em versos, apresenta, como observa Moisés, um caráter elevado e solene, assunto bélico, heróis subordinados, em sua ação, a deuses e forças sobrenaturais, em que acontecimentos históricos se misturam com a mitologia. Angélica Soares (2007, p. 39), por sua vez, resume as características da epopeia desta forma:

Sendo a epopeia uma longa narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de interesse nacional e social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e deuses, podendo se apresentar em prosa (como as canções de gesta medievais) ou em verso (como Os lusíadas).

Você percebeu que, como observa Soares, a epopeia apresenta os elementos narrativos, como narrador, narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo? Estudaremos a seguir os elementos que os gêneros narrativos herdaram da epopeia. Vejamos agora como se estruturam as epopeias clássicas:

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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Do ponto de vista da estrutura, o poema épico se desdobraria em três partes autônomas: a proposição, ou seja, o apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua empreitada criadora; a narração, parte central e mais extensa, que contém o relato minucioso da ação executada pelo herói; a narração deve obedecer a uma sequência lógica; entretanto, à ordem cronológica seria preferível a artificial, que surpreende a ação em meio (in media res); o epílogo, fecho da ação, deve guardar um imprevisto, mas ser verossímil e coerente, além de conter um final feliz (MOISÉS, 1999, p. 184).

Massaud Moisés divide a estrutura da epopeia, como podemos ver, em três partes: a proposição, a narração e o epílogo. A essas três partes, Angélica Soares (ano, p. 39) inclui outras duas: “Toda epopeia deveria constituir-se de cinco partes”, afirma a autora. Assim, a estrutura da epopeia pode ser organizada, conforme Soares, desta forma:

1) Proposição2) Invocação3) Dedicatória4) Narração5) Remate, epílogo ou desfecho

Com relação à estrutura, destaquemos a proposição ou, como explica Moisés (1999, p. 184), “o apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua empreitada criadora”, pois ela pode contribuir para compreendermos a trajetória das epopeias que estudaremos a seguir. Observe os primeiros versos da Ilíada, de Homero, que compõem a proposição da epopeia, na tradução em versos de Manuel Odorico Mendes:

Canta-me, ó deusa, do Peleio AquilesA ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,Verdes no Orco lançou mil fortes almas,Corpos de heróis a cães e abutres pasto:Lei foi de Jove, em rixa ao discordaremO de homens chefe e o Mirmidon divino (HOMERO, 2009a, p. 65).

Note que o poeta invoca a deusa, solicitando que cante “do Peleio Aquiles a ira tenaz”, ou seja, que inspire o poeta em sua criação sobre a ira ou a luta de Aquiles. Na proposição, o poeta revela, como podemos ver, o tema da epopeia, neste caso, a Guerra de Troia ou, mais propriamente, as ações heroicas de Aquiles na Guerra de Troia.

Observe agora os primeiros versos da Odisseia, de Homero:

Canta, ó Musa, o varão que astucioso,Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,Viu de muitas nações costumes vários.Mil transes padeceu no equóreo ponto,Por segurar a vida e aos seus a volta;

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Baldo afã! pereceram, tendo insanosAo claro Hiperiônio os bois comido,Que não quis para a pátria alumiá-los.Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra (HOMERO, 2009b, p. 13). Note, agora, que na proposição da Odisseia o poeta solicita que a Musa, a

entidade da mitologia grega que inspira a criação, cante “o varão que astucioso, rasa Ílion santa, errou”, ou seja, que cante “tudo”, “aponta e lembra”, pede o poeta, sobre o homem, o “varão”, Ulisses e sua viagem de retorno à ilha de Ítaca, sua casa, e a Penélope, sua esposa, depois de finda a Guerra de Troia. Vejamos, finalmente, como as proposições das duas epopeias de Homero podem contribuir para compreendermos a trajetória das epopeias.

2.1.3 A trajetória das epopeias

Vimos que as epopeias de Homero, a Ilíada e a Odisseia, originam o gênero épico. E vimos que suas proposições revelam o tema de cada epopeia, a luta de Aquiles e a viagem de Ulisses, respectivamente. Observe agora a proposição da Eneida, de Virgílio, na tradução em verso de Manuel Odorico Mendes:

NOTA

Virgílio (70 – 19 a.C.): poeta nacional do Império Romano, considerado o maior dos poetas latinos, iniciou em 29 a.C. a escrita da epopeia Eneida por solicitação de Augusto, tendo trabalhado nela por 10 anos. Como autor de poesia lírica, escreveu Bucólicas e Geórgicas.

FONTE: Disponível em: <https://sites.google.com/site/literaturalatinansn/la-poesia/poesia-epica/virgilio>. Acesso em: 10 out. 2017.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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Eu, que entoava na delgada avenaRudes canções, e egresso das florestas,Fiz que as vizinhas lavras contentassemA avidez do colono, empresa grataAos aldeões; de Marte ora as horríveisArmas canto, à Itália e de Lavino às praiasTrouxe-o primeiro fado. Em mar e em terraMuito o agitou violenta mão suprema,E o lembrado rancor da seva Juno;Muito em guerras sofreu, na Ausônia quandoFunda a cidade e lhe introduz os deuses:Donde a nação latina e albanos padres,E os muros vêm da sublimada Roma.

Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,Ou por que mágoa a soberana deiaCompeliu na piedade o herói famosoA lances tais passar, volver tais casos.Pois tantas iras em celestes peitos! (VIRGÍLIO, 2005, p. 15).

Você percebeu que o poeta canta as “armas” e o “fado” de Eneias, o troiano que “funda a cidade” de Roma, a “nação latina”? Comparemos a tradução em versos com a tradução em prosa de Tassilo Orpheu Spalding:

Canto os combates e o herói que, por primeiro, fugindo do destino, veio das plagas de Troia para a Itália e para as praias de Lavínio. Longo tempo foi o joguete, sobre a terra e sobre o mar, do poder dos deuses superiores, por causa da ira da cruel Juno; durante muito tempo, também, sofreu os males da guerra, antes de fundar uma cidade e de transportar seus deuses para o Lácio: daí surgiu a raça latina e os pais albanos e as muralhas da soberba Roma (VIRGÍLIO, 1985, p. 11).

Você pode encontrar ainda a tradução em versos no metro original da Eneida, de Virgílio, de Carlos Alberto Nunes, de que se seguem os primeiros versos:

As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade e ao Lácio os deuses trazer — o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados (VIRGÍLIO,

1983, p. 9).

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Observe que a Eneida, de Virgílio, narra a história da viagem de Eneias, príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Troia, ou seja, Roma, e das lutas que travou no Lácio, região da Itália Central na qual Roma foi fundada. Como esclarece Zélia de Almeida Cardoso (1989, p. 20):

Compondo-se de doze cantos, ou livros, num total de 9.826 versos, a Eneida é, a um tempo, um poema mitológico e histórico. A lenda narrada no correr do texto – a história da acidentada viagem de Eneias, príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Troia, e das duras lutas que travou no Lácio – é mero pretexto para a exaltação de Roma e de Augusto, para a valorização do romano e de seus feitos remotos e recentes, para a demonstração de vasta erudição em todas as áreas do conhecimento, para a sugestão de uma linha filosófica que sintetiza, praticamente, as correntes de pensamento então difundidas em Roma.Baseando-se nas epopeias homéricas, mas utilizando-se de várias outras fontes – os trágicos gregos, a lírica alexandrina, a história e a epopeia latinas –, Virgílio compôs um texto em que se aliam a grandeza da poesia da Grécia clássica e a sofisticação das formas literárias modernas, desenvolvidas no requinte do ambiente cultural de Alexandria.

NOTA

Augusto (63 a.C. – 14 d.C.): fundador do Império Romano e seu primeiro imperador, reinou entre 27 a.C. – 14 d.C.

FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ot%C3%A1vio_Augusto>. Acesso em: 10 out. 2017.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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Assim, a Eneida, conforme os preceitos clássicos da imitação (imitatio) e emulação (aemulatio), consiste em um decalque das epopeias de Homero, Ilíada e Odisseia e, portanto, uma contaminação (contaminatio) daquelas epopeias. Desse modo, dos doze cantos, seis imitam e emulam a Odisseia, e outros seis, a Ilíada. Como podemos perceber, se a Odisseia narra a viagem de Ulisses e a Ilíada a luta de Aquiles, como vimos, o primeiro verso da Eneida anuncia a contaminação das epopeias de Homero: “Arma vir um que cano, Troia e qui primus ab oris...”.

Da mesma maneira que, conforme o princípio da imitação e da emulação, Virgílio se espelha em Homero, o poeta latino se torna modelo no Baixo Império, na Idade Média e na Renascença, como o comprovam os mais famosos épicos modernos, “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri (1265-1321), e “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões (1524-1580), ambos influenciados pela Eneida, de Virgílio. Observe as seguintes estrofes de A Divina Comédia, de Dante:

Quando ao vale eu já ia baquear-meAlguém fraco de voz diviso perto,Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,- “Tem compaixão de mim” – bradei transido –“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me – “mas hei sido,Pais lombardos eu tive; sempre amadaMântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,Vivi em Roma sob o bom Augusto,Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justoFilho de Anquíses, que de Tróia veio,Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?Por que não vais ao deleitoso monte,Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“- Oh! Virgílio, tu és aquela fonteDonde em rio caudal brota a eloquência?”Falei, curvando vergonhoso a fronte. –

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!Valham-me o longo estudo, o amor profundoCom que em teu livro procurei ciência!

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TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO

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“És meu mestre, o modelo sem segundo;Unicamente és tu que hás-me ensinado;O belo estilo que honra-me no mundo” (ALIGHIERI, 2003, p. 20-21).

NOTA

Dante Alighieri (1265-1321) foi um escritor e poeta florentino. Considerado o primeiro e maior poeta italiano.

FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.co.kr/goth/dante-alighieri/>. Acesso em: 10 out. 2017.

Você percebeu como o poeta se refere a Virgílio como um modelo, como uma influência? Em suas palavras, como uma “fonte donde em rio caudal brota a eloquência”? Como o poeta reconhece em Virgílio um “mestre, o modelo sem segundo”? Observe agora as primeiras estrofes de Os Lusíadas, de Camões:

As armas e os Barões assinaladosQue da Ocidental praia LusitanaPor mares nunca de antes navegadosPassaram ainda além da Taprobana,Em perigos e guerras esforçadosMais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando,E aqueles que por obras valorososSe vão da lei da Morte libertando,Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Netuno e Marte obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se levanta (CAMÕES, 1979, p. 29-31).

NOTA

Luís Vaz de Camões (1524-1580) foi um poeta português. Escreveu poesia épica, lírica e dramática. Considerado um dos maiores escritores da tradição ocidental.

FONTE: Disponível em: <http://simoesdealmeida.weebly.com/escultura.html>. Acesso em: 10 out. 2017.

Apesar de Camões conclamar que “Cessem do sábio Grego e do Troiano as navegações grandes que fizeram” e reiterar: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se levanta”, como uma forma de exaltação da nacionalidade portuguesa e da empresa colonialista de Portugal, você notou que os primeiros versos de Os Lusíadas praticamente repetem os primeiros versos da Eneida, de Virgílio?

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É ainda a Eneida, de Virgílio, que, no século XVIII, veremos figurar na epígrafe de O Uraguai (1769), de Basílio da Gama (1740-1795), epopeia colonial do Arcadismo brasileiro:

At specus, et Caci detecta apparuit ingensRegia et umbrosae penitus patuere cavernaeO texto latino narra o momento em que se conta para Eneias

como Hércules matou o gigante Caco, que oprimia os povos nativos da Arcádia. Traduzidos:

Mas a caverna, e o imenso reino de Caco apareceudescoberto, e o sombrio inferno se abriu por completo

Os versos de Virgílio permitem compreender, em confronto com a epopeia de Basílio da Gama, o sentido da epígrafe enquanto metáfora da opressão dos povos indígenas, uma vez que O Uraguai narra a disputa entre índios, jesuítas e europeus nos Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul. Vejamos os primeiros versos de O Uraguai:

Fumam ainda nas desertas praiasLagos de sangue tépidos e impurosEm que ondeiam cadáveres despidos,Pasto de corvos. Dura inda nos valesO rouco som da irada artilheria.MUSA, honremos o Herói que o povo rudeSubjugou do Uraguai, e no seu sangueDos decretos reais lavou a afronta.Ai tanto custas, ambição de império!

Observe o tom de denúncia contra a ambição imperial: “Ai tanto custas, ambição de império!”, lamenta o poeta diante dos horrores da guerra que descreve. A epopeia O Uraguai, de Basílio da Gama, como explica Angélica Soares (2007, p. 38-39):

É um poema épico, composto em cinco cantos (conjuntos de estrofes) de versos brancos e estrofação livre, no qual é narrada a expedição de espanhóis e portugueses contra os índios e jesuítas habitantes da Colônia de Sete Povos das Missões, do Uruguai. Segundo o Tratado de Madri, de 1750, aquele território deveria passar a pertencer a Portugal, em troca da Colônia do Santíssimo Sacramento, possessão portuguesa situada em domínios espanhóis. Como os índios e os jesuítas se recusassem a ser súditos portugueses, Portugal e Espanha, em 1752, iniciam a expedição de conquista. O poema de Basílio da Gama versa sobre a última fase desse fato histórico.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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A outra famosa epopeia do Arcadismo brasileiro é Caramuru (1781), de Frei Santa Rita Durão (1722-1784), cuja primeira estrofe do primeiro canto, que apresenta a proposição da epopeia, evidencia a imitação e emulação das epopeias latinas, deixando entrever ecos da Eneida e de Os Lusíadas:

De um varão em mil casos agitado,Que as praias discorrendo do Ocidente,Descobriu o Recôncavo afamadoDa capital brasílica potente:Do Filho do Trovão denominado,Que o peito domar soube à fera gente;O valor cantarei na adversa sorte,Pois só conheço herói quem nela é forte.

A respeito do poema épico de Frei Santa Rita Durão, Antonio Candido (2002, p. 8) observa que:

O Caramuru pode ser considerado uma epopeia do tipo que se chamaria hoje colonialista, porque glorifica métodos e ideologias que censuramos até no passado. Mas que ainda são aceitos recomendados e praticados pelos amigos da ordem a todo preço, entre os quais se alinharia o nosso velho Durão, que era filho de um repressor de quilombos e hoje talvez se situasse entre os reacionários, com todo o seu talento, cultura e paixão.

Tendo identificado a posição socioideológica do autor de Caramuru, Frei Santa Rita Durão, Candido (2002, p. 8) constata a diferença entre as duas epopeias brasileiras mencionadas: “Como sabemos, o Caramuru é uma resposta ao O Uraguai, cujo pombalismo ilustrado estava mais perto daquilo que no tempo era progresso. Mesmo sendo progresso de déspota esclarecido, useiro da brutalidade e do arbítrio” (CANDIDO, 2002, p. 8). O autor ainda descreve Frei Santa Rita Durão como um “poeta da guerra e da imposição cultural”, ao passo que Basílio da Gama, segundo Candido, “não simpatiza” com a guerra que narra, “lamentando a necessidade cruel da razão de Estado”:

Como se sabe, a finalidade expressa do Caramuru é descrever o início da colonização da Bahia, por obra sobretudo de Diogo Álvares Correia e sua mulher, Paraguaçu. Simultaneamente, há um desígnio mais importante para o poeta: a redenção do índio pela conversão. Mas na perspectiva de hoje o resultado final se traduz no choque das culturas, que caracteriza o processo colonizador, justificado pelos dois desígnios (CANDIDO, 2002, p. 11-12).

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DICAS

Caramuru, personagem histórico batizado Diogo Álvares Correia (1475-1557), um náufrago português que viveu entre os índios brasileiros, e que é o protagonista do poema épico de Frei Santa Rita Durão, é o personagem do filme de comédia “Caramuru – A invenção do Brasil” (2001), dirigido por Guel Arraes.

FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Caramuru_-_A_Inven%C3%A7%C3%A3o_do_Brasil>. Acesso em: 10 out. 2017.

Podemos, portanto, identificar nas epopeias coloniais brasileiras as características da poesia épica elencadas por Moisés (1999, p. 184), tais como o tema bélico, os acontecimentos históricos, o heroísmo, bem como o “caráter heroico, grandioso e de interesse nacional e social”, confirmado por Soares (2007), como vimos antes. Essas características da poesia épica, associadas com a sua função de exaltação nacional e imperial, nesse caso, da empresa colonial portuguesa, são relativizadas por Antonio Candido ao mesmo tempo que reconhece nelas uma contribuição para a configuração da literatura brasileira por meio da incorporação de peculiaridades locais, como o nativismo e o que, posteriormente, com o Romantismo, seria denominado indianismo. Podemos perceber a perspectiva de Antonio Candido nesta passagem a respeito do trecho que denomina “Sono de Paraguaçu”, de Caramuru:

Este trecho exemplifica uma das contribuições dos poetas daquele tempo para a configuração da nossa literatura: inserir as peculiaridades locais num sistema expressivo tradicional, que as incorporasse à civilização colonizadora. Foi o que fizeram o Uraguai e o Caramuru. O índio e a natureza, tratados literariamente, importavam numa espécie de integração do mundo americano à expressão culta das fontes civilizadoras, sublimando o esmagamento das culturas locais. Ao mesmo tempo importavam em renovar os símbolos cansados da tradição de origem clássica, levando ao patrimônio comum da literatura ocidental a perspectiva de um temário novo e uma nova forma (CANDIDO, 2002, p. 17).

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O Romantismo, a propósito, desempenha um papel importante na trajetória do gênero épico, uma vez que, como observa Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 260), “quando o romantismo se revela nas literaturas europeias, já o romance conquistara, por direito próprio, a sua alforria e já era lícito falar de uma tradição romanesca”:

Com o romantismo, por conseguinte, a narrativa romanesca afirma-se decisivamente como uma grande forma literária, apta a exprimir os multiformes aspectos do homem e do mundo: quer como romance psicológico, confissão e análise das almas [...], quer como romance histórico, ressurreição e interpretação de épocas pretéritas [...], quer como romance poético e simbólico [...], quer como romance de análise e crítica da realidade social contemporânea (SILVA, 1976, p. 261).

É justamente nesse contexto que G. W. F. Hegel (2010, p. 490), ao propor uma evolução histórica do gênero épico, compreende o romance, que denomina como a “epopeia burguesa moderna”, como uma ramificação do gênero épico. O que define o “caráter épico”, o “tom épico”, em conformidade com a variedade e pluralidade constatada por Aristóteles, como vimos antes, é a “totalidade”, ou seja, o épico apresenta “uma esfera definida da vida real, com os aspectos, as direções, os acontecimentos, os deveres etc. que comporta”, retirando seus temas “da natureza e da vida humana”, de modo a promover uma “união mais estreita da poesia com a realidade”: “É portanto o conjunto da concepção do mundo e da vida de uma nação que, apresentado sob a forma objetiva dos acontecimentos reais, constitui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito”, conclui Hegel (2010, p. 442-443).

Assim, Hegel (2010, p. 450) resume a obra épica como “uma ação cujas ramificações se confundem com a totalidade da sua época e da vida nacional; portanto, uma ação que só pode ser concebida mergulhada no seio de um mundo amplo e que comporta, por conseguinte, a descrição de toda a realidade de que faz parte”. Como podemos perceber, para Hegel (2010, p. 477), a obra épica se caracteriza, pois, por uma “multiplicidade” subordinada a uma “unidade concreta”, uma vez que “o conteúdo de uma obra épica é o todo de um mundo em que se realiza uma ação individual”, e são as transformações sociais que, diminuindo a extensão da ação individual, inviabilizariam a epopeia no mundo moderno:

As condições da vida moral, os laços familiares, a solidariedade do povo, enquanto nação, na guerra e na paz, devem já existir, e ter mesmo atingido um certo grau de desenvolvimento, sem ter ainda assumido inteiramente a forma de preceitos, deveres e leis de caráter geral desprovidos de toda a particularidade subjetiva e mantendo a sua autoridade perante a vontade individual. Pelo contrário, são o sentimento do direito e da justiça, a moralidade dos costumes, a alma e o caráter que devem estar na origem de tudo e servir de suporte à vida familiar, social e política, antes que ela tenha adquirido a forma de uma realidade prosaica, capaz de se opor à maneira de pensar e sentir dos indivíduos. Uma constituição demasiado sólida do Estado, com leis minuciosamente elaboradas, com uma justiça presente por toda parte, uma administração bem organizada, com ministérios, chancelarias, polícia etc., não pode ministrar temas compatíveis com a poesia épica.

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É certo que as condições da moralidade e do direito devem estar bem consolidadas, mas só pelos próprios indivíduos ativos e pelo seu caráter, e não de um modo geral e sob uma forma que pretende ter em si mesma a sua justaposição. Assim encontramos na poesia épica não só a identidade substancial da vida e da atividade objetivas, mas também a liberdade nas manifestações desta vida e desta atividade, liberdade que as faz parecer uma emanação da vontade subjetiva dos indivíduos (HEGEL, 2010, p. 450-451).

Com a “organização do Estado moderno” e “as maneiras de pensar individuais”, segundo Hegel, não há lugar para o herói tipicamente épico. No entanto, a “totalidade”, que unifica a variedade e multiplicidade da realidade representada, o aspecto regular e unificado da epopeia que depende, segundo Hegel (2010, p. 490), da “visão total do mundo”, permanece nos gêneros narrativos. Afinal, a “objetividade” do gênero épico se estende a outros “gêneros secundários”, enquanto “ramificações” do gênero épico, a exemplo do romance, a “epopeia burguesa moderna”, nas palavras de Hegel (2010, p. 490). Segundo Hegel (2010, p. 492), no romance “vemos reaparecer a riqueza e a variedade de interesses, de estado, de caracteres, de condições de vida, assim como todo o plano de fundo de um mundo total e a descrição épica de acontecimentos”. O romance descreve, como a epopeia, “uma visão total do mundo e da vida”, mas pressupõe “uma realidade já prosaica”.

Essa perspectiva que, como vimos antes, influencia a teoria do romance de Lukács, é assinalada por Angélica Soares (2007, p. 42):

A epopeia que, segundo Lukács, corresponde a um tempo anterior ao da consciência individual e, portanto, voltado para o destino de uma coletividade, não se manteve em nossa época, que se caracteriza sobretudo pelo individualismo e pelo investimento nos domínios do inconsciente humano. O sentido do épico, no entanto, se manifesta toda vez que se tem a intenção de abarcar a multiplicidade dinâmica da realidade em uma só obra, criando-se uma unidade.

Nesse sentido, Hegel (2010, p. 509) identifica o épico nos tempos modernos não mais na epopeia:

Se pretendemos encontrar nos tempos modernos obras verdadeiramente épicas, devemos procurá-las numa esfera diferente da epopeia propriamente dita. O estado do mundo moderno é, com efeito, de tal prosaísmo que o opõe uma recusa absoluta às condições que, segundo nós, a verdadeira poesia épica deve preencher.

Por isso, como sugere Hegel (2010, p. 509), “a poesia épica, renunciando

aos grandes acontecimentos nacionais, refugiou-se na esfera mais estreita e limitada dos acontecimentos domésticos, no campo e nas pequenas cidades, para nela encontrar temas próprios para uma exposição épica”. E, finalmente, Hegel (2010, p. 510) conclui constatando que “nas outras esferas da vida nacional e social dos nossos dias abriu-se um campo ilimitado, no domínio épico, para o romance, o conto e a novela”.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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NOTA

No romance moderno, o Ulisses, de James Joyce, indica um sintoma do processo descrito por Hegel. O romance de Joyce recria a epopeia Odisseia, de Homero, condensando as aventuras de Ulisses em algumas horas da vida do agente de publicidade Leopold Bloom, protagonista de Ulisses.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• O gênero épico surge na Antiguidade grega com as epopeias de Homero.

• O gênero épico se caracteriza pela narração, definida pela enunciação de um narrador e de personagens.

• O gênero épico se caracteriza por sua longa extensão e pelo caráter elevado e solene.

• O gênero épico narra temas heroicos, míticos e históricos, que representam os mitos de fundação das nações.

• A epopeia se estrutura em proposição, invocação, dedicatória, narração e remate, ou simplesmente em proposição, narração e epílogo.

• O épico compreende a complexidade do mundo e da vida que narra, tendo legado essa característica aos gêneros narrativos, especialmente o romance.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Assista ao filme Terra estrangeira (1996), dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, e reflita sobre a permanência intertextual de elementos narrativos, tais como motivos, imagens e temas provenientes das epopeias, como as viagens, o retorno para casa, os navios como metáforas das nações, a expansão imperial, a colonização e a exploração e assim por diante. Qual o significado de tais elementos a partir de sua perspectiva?

2 “A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o lendário se forme ou/e permita que o poeta lhe acrescente com liberdade o produto da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor pode inserir-se na trama heroica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas de guerra” (MOISÉS, 1999, p. 184).

Considerando as explicações do texto acima, avalie os fragmentos a seguir que se configuram como poesia épica:

I- Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,/ Ou por que mágoa a soberana deia/ Compeliu na piedade o herói famoso/ A lances tais passar, volver tais casos./ Pois tantas iras em celestes peitos!

II- Eu agora — que desfecho! / Já nem penso mais em ti… / Mas será que nunca deixo/ De lembrar que te esqueci?

III- Canta, ó Musa, o varão que astucioso,/ Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,/ Viu de muitas nações costumes vários.

IV- Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.

V- As armas e os Barões assinalados/ Que da Ocidental praia Lusitana/ Por mares nunca de antes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana,/ E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram.

São poemas épicos os fragmentos em:

a) ( ) I e IIb) ( ) II e IVc) ( ) I, III e Vd) ( ) II, IV e Ve) ( ) III e IV

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

O GÊNERO NARRATIVO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

No Tópico 1, você viu que a literatura se constitui como um campo privilegiado para a compreensão da realidade, especialmente porque estabelece relações com diferentes campos do conhecimento. E que o gênero narrativo se revela como um gênero apropriado para tanto, na medida em que permite representar ou apresentar a complexidade da realidade pela variedade ou pluralidade que o caracteriza.

Você viu ainda que o gênero épico, que origina, se não equivale ao gênero narrativo, se caracteriza pela narração, ou seja, pela enunciação de um narrador e de personagens, compreendendo a complexidade do mundo e da vida que narra, característica possibilitada justamente pela narração, como já notava Aristóteles, e que é transmitida ao gênero narrativo.

A partir deste segundo tópico você irá se aprofundar no gênero narrativo, estudando suas características, seus tipos, como o romance, o conto, a novela e a crônica, e os seus elementos constitutivos, como enredo, personagem, tempo, espaço e, finalmente, narrador. Ao final deste tópico, você estará ambientado com o gênero narrativo.

Vamos lá?

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2 O GÊNERO NARRATIVO

O gênero narrativo, que, etimologicamente, remete ao ato de narrar acontecimentos reais ou ficcionais, consiste em uma ramificação do gênero épico, sendo, no entanto, escrito em prosa. A prosa, genericamente entendida como oposta ao verso, como nota Marjorie Boulton (1968 apud MOISÉS, 1999, p. 418), apresenta, a partir de uma sistematização tradicional, a narrativa, distinta da demonstrativa, como um tipo que compreende a prosa de ficção. A partir de outra sistematização igualmente tradicional, a prosa se divide em cinco modalidades segundo sua função, entre as quais a narrativa, compreendida igualmente como prosa de ficção.

A distinção entre prosa e poesia, contudo, apresenta problemas, como demonstra Umberto Eco, ao procurar diferenciar modelos de prosa e de poesia, concluindo que “os modelos, inclusive os de modalidade poética e de modalidade prosaica, são exatamente modelos, e se realizam depois, de maneira combinada dentro de contextos chamados poesia ou prosa de acordo com a absoluta predominância, não a exclusividade, de um dos dois” (ECO, 1989, p. 248). Da mesma maneira que a definição de prosa, a definição da narrativa impõe dificuldades, como observa Gérard Genette (2008, p. 265):

Caso se aceite, por convenção, permanecer no domínio da expressão literária, definir-se-á sem dificuldade a narrativa como a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem e, mais particularmente, da linguagem escrita. Esta definição positiva (e corrente) tem o mérito da evidência e da simplicidade; seu inconveniente principal é talvez, justamente, encerrar-se e encerrar-nos na evidência, mascarar aos nossos olhos aquilo que precisamente, no ser mesmo da narrativa, constitui um problema e dificuldade, apagando de certo modo as fronteiras do seu exercício, as condições de sua existência. Definir positivamente a narrativa é acreditar, talvez perigosamente, na ideia e no sentimento de que a narrativa é evidente, de que nada é mais natural do que contar uma história ou arrumar um conjunto de ações em um mito, um conto, uma epopeia, um romance. A evolução da literatura e a consciência literária terão tido, entre outras felizes consequências, a de chamar a atenção, bem ao contrário, sobre o aspecto singular, artificial e problemático do ato narrativo.

Ao contestar a naturalidade da narrativa, Genette (2008, p. 266) incita “a reconhecer os limites de certo modo negativos da narrativa, a considerar os principais jogos de oposição por meio dos quais a narrativa se define” em oposição aos demais discursos que circulam socialmente, especialmente aqueles que reivindicam uma condição de verdade natural.

Genette (2008, p. 284) conclui conjeturando que “talvez a narrativa”, na “singularidade negativa” em que a reconhece, represente “uma coisa do passado”, que julga preciso considerar “antes que tenha desertado completamente nosso horizonte”. A questão de Genette recorda a questão colocada antes por Walter Benjamin (1994, p. 197) ao constatar que “a arte de narrar está em vias de extinção”. Para Benjamin (1994, p. 198), a “fonte a que recorrem todos os narradores”, ou seja, “a experiência que passa de pessoa a pessoa” está “em

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TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

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baixa”, mas Benjamin se refere a uma modalidade de narração que preserva uma relação com as “histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”, cujos tipos arcaicos são representados, conforme Benjamin (1994, p. 198-199), pelo “camponês sedentário” e pelo “marinheiro comerciante”: “A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”, postula Benjamin (1994, p. 200-201).

Sem lamentos e sem nostalgias, Benjamin (1994, p. 201) afirma que “esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”. Esse processo resulta no surgimento do romance que, na perspectiva de Benjamin, se diferencia das demais formas narrativas por não manter relações com a tradição oral:

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem precede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los (BENJAMIN, 1994, p. 201).

Ao preservar, portanto, a relação entre o gênero épico e o gênero narrativo, Benjamin diferencia o romance da narrativa justamente por estar vinculado ao seu suporte escrito, o livro, possibilitado pela invenção da imprensa, enquanto o gênero narrativo permaneceria associado com a tradição oral. “Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios”, compara Benjamin (1994, p. 202), reiterando que “poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente”. Assim, o romance, embora compreendido como uma forma narrativa, se distinguiria dela, segundo Benjamin, pelas particularidades das condições de produção que refletem na escrita do romance tal como se consolida com a ascensão da burguesia: “O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento” (BENJAMIN, 1994, p. 202).

Apesar de suas particularidades, convencionalmente, o romance constitui uma forma do gênero narrativo, e talvez a forma mais representativa da modernidade. Vejamos agora as características do gênero narrativo, os principais tipos de narrativa e os elementos constitutivos da narrativa.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2.1 CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO NARRATIVO

Vimos antes que as epopeias de Homero representam as “primeiras manifestações” da “forma épica de narrar”, e que “nelas situam-se também as fontes do gênero narrativo” (SOARES, 2007, p. 39). Vimos ainda que, ao analisar as epopeias de Homero, Aristóteles destaca a narração e a imitação do discurso dos personagens pelo narrador, bem como a possibilidade de apresentar “muitas ações realizadas simultaneamente” (ARISTÓTELES, 2008, p. 94), justamente por meio da narração.

Vejamos agora como essas características permanecem no gênero narrativo, analisando, para tanto, um fragmento de um conhecido romance:

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

– Continue, disse eu acordando. – Já acabei, murmurou ele. – São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”. – "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”. – "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça”.

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

FONTE: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000194.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

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Como podemos perceber, temos o relato de um evento situado temporalmente e espacialmente, relatado da perspectiva de um narrador, que, neste caso, consiste em um personagem que narra em primeira pessoa, mas que apresenta, ao mesmo tempo, os discursos das personagens. Na narração, os tipos de discurso consistem na forma como o narrador apresenta os enunciados dos personagens, de forma direta, indireta ou ambas. Assim, temos:

Discurso direto: apresentação direta e integral do enunciado das personagens por meio da transcrição da fala demarcada por sinais de pontuação e verbos de elocução. Exemplo:

– Continue, disse eu acordando. – Já acabei, murmurou ele. – São muito bonitos.

Discurso indireto: apresentação indireta do enunciado das personagens, de modo que o narrador intermedeia a fala, reproduzida em seu discurso. Exemplo:

Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga.

Discurso indireto livre: apresentação do enunciado ou do pensamento das personagens por meio de sua inserção no discurso do narrador, de modo que, como que fundindo discurso direto e indireto, parece se confundir com o discurso das personagens. Exemplo:

Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menor, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha...

O gênero narrativo se caracteriza, portanto, pelo relato, por parte de um narrador (ou mais de um), de fatos reais ou ficcionais, organizados discursivamente a partir de elementos que desempenham funções primordiais na narração, tais como enredo, personagem, tempo, espaço e narrador, os quais estudaremos adiante. Antes de estudarmos os elementos constitutivos da narrativa, vejamos os seus principais tipos.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2.2 OS TIPOS DE NARRATIVAS

O gênero narrativo se subdivide em diferentes tipos de narrativa, entre os quais se destacam o romance, a novela, o conto e a crônica.

O romance

Jacques Gaillard (1997) situa o surgimento do romance na Antiguidade, em um texto que, como afirma, foi esquecido pela teoria do romance, apesar de apresentar aspectos recorrentemente associados com o romance, como o realismo cotidiano:

O Satiricon de Petrônio é, pelo que se pode observar, o primeiro texto ao qual se pode dar o nome de “romance” na história da literatura. Os teóricos do gênero – Lukács, por exemplo – não levaram em conta, como tampouco os romances gregos (sem dúvida, posteriores), o que é um grave erro, posto que toda uma tendência do romance/novela do século XVII, por exemplo, se inspira abertamente nestes textos antigos. Diremos para recordar que novela picaresca implica, por definição, histórias de bandidos, e os romances antigos, latinos ou gregos, fazem desta violência um dos motores da intriga; do mesmo modo, conferem às mulheres (e à relação amorosa ou hostil, entre homens e mulheres) um papel que não existia na historiografia, mas que alcançará grande fortuna no romance do futuro. Poderíamos citar muitos outros indícios aqui (GAILLARD, 1997, p. 88).

Confirmando a acusação de Gaillard, Angélica Soares reitera a compreensão dos historiadores da literatura que situam o surgimento do romance depois da Antiguidade:

Não tendo existido na Antiguidade, essa forma narrativa aparece na Idade Média, com o romance de cavalaria, já como ficção sem nenhum compromisso com o relato de fatos históricos passados. No Renascimento, aparece como romance pastoril e sentimental, logo seguido pelo romance barroco, de aventuras complicadas e inverossímeis, bem diferente do romance picaresco, da mesma época. Li, no entanto, em D. Quixote, de Cervantes, que podemos localizar o nascimento da narrativa moderna que, apresentando constantes transformações, vem se impondo fortemente, desde o século XIX, quando — quase sempre publicada em folhetins — se caracterizou sobretudo pela crítica de costumes ou pela temática histórica. Estas chegam até nossos dias, juntamente com as narrativas que, nos moldes impressionistas, são calcadas no fluxo de consciência e nas análises psicológicas, ou as que optam por uma forma de realismo maravilhoso ou de ficção-ensaio (SOARES, 2007, p. 42-43).

Independentemente do fato de historiadores da literatura divergirem em relação ao surgimento do romance, o romance, como nota Soares (2007, p. 42), representa:

a forma narrativa que, embora sem nenhuma relação genética com a epopeia (como nos demonstram as teses mais avançadas), a ela equivale nos tempos modernos. E, ao contrário da epopeia, como forma representativa do mundo burguês, volta-se para o homem como indivíduo.

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Cândida Vilares Gancho (2002, p. 7) resume o romance como: “Uma narrativa longa, que envolve um número considerável de personagens (em relação à novela e ao conto), maior número de conflitos, tempo e espaço mais dilatados”. Ao confirmar que “este tipo de narrativa consagrou-se sobretudo no século XIX, assumindo o papel de refletir a sociedade burguesa”, Gancho (2002, p. 7) observa: “Podemos classificar o romance quanto à sua temática. Os tipos mais conhecidos são de amor, de aventura, policial, ficção científica, psicológico, pornográfico etc.”.

Exemplo: Alguns exemplos de romances da literatura brasileira são: Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, entre muitos outros.

A novela

Proveniente da literatura narrativa medieval, a novela designa uma “narrativa curta, sem estrutura complicada, avessa a longas descrições” (SILVA, 1976, p. 252-253). Resumidamente, a novela consiste em uma narrativa de extensão mediana, situada entre o romance e o conto e que, como o conto, “tende para a conclusão”, como afirma Boris Eikhenbaum (1978 apud GOTLIB, 2006, p. 41). Nesse sentido, Nádia Battella Gotlib (2006, p. 16) observa: “Para alguns, a novela vem do italiano novella, ou seja, pequenas estórias. Em Bocaccio, a novella era breve, não mais de dez páginas, se opondo ao romance medieval, forma mais longa e difusa, que desenvolvia uma intriga amorosa completa”.

A novela, como explica Jolles (1972 apud SILVA, 1976, p. 253), caracteriza-se por “contar um fato ou um incidente impressionantes, de tal modo que se tivesse a sensação de um acontecimento real e que esse incidente nos parecesse mais importante do que as personagens que o vivem”. Conforme resume Gancho (2002, p. 7-8), a novela:

é um romance mais curto, isto é, tem um número menor de personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com a diferença de que a ação no tempo é mais veloz na novela. Difere em muito da novela de TV, a qual tem uma série de casos (intrigas) paralelos e uma infinidade de momentos de clímax.

Exemplo: Um bom exemplo de novela na literatura brasileira é O alienista, de Machado de Assis.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

O conto

O conto consiste em uma narrativa curta que, em geral, gira em torno de apenas um conflito, com poucos personagens. Conforme explica Cândida Vilares Gancho (2002, p. 8):

É uma narrativa mais curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotado por muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire, mas que hoje é muito apreciado por autores e leitores, ainda que tenha adquirido características diferentes, por exemplo, deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para elaborar o enredo.

Ao teorizar o conto em sua situação narrativa, ao lado do romance e da novela, Nádia Battella Gotlib (2006) lembra que a necessidade de contar, que fundamenta os diferentes tipos narrativos, antecede a necessidade de sua explicação, de modo que “enumerar as fases da evolução do conto seria percorrer a nossa própria história” (GOTLIB, 2006, p. 7).

Embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e permaneça como hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos, ainda não marcados pela tradição escrita, há fases de evolução dos modos de se contarem estórias. Para alguns, os contos egípcios – Os contos dos mágicos – são os mais antigos: devem ter aparecido por volta de 4000 anos antes de Cristo (GOTLIB, 2006, p. 7).

Ao constatar uma transição no século XIV, Gotlib (2006, p. 8-9) apresenta um resumo da história do conto enquanto registro escrito:

Se o conto transmitido oralmente ganhara o registro escrito, agora vai afirmando a sua categoria estética. Os contos eróticos de Bocaccio, no seu Decameron (1350), são traduzidos para tantas outras línguas e rompem com o moralismo didático: o contador procura elaboração artística sem perder, contudo, o tom da narrativa oral. E conserva o recurso das estórias de moldura: são todas unidas pelo fato de serem contadas por alguém a alguém. E os Canterbury tales (1386), de Chaucer, são contados numa estalagem por viajantes em peregrinação. Posteriormente, o século XVI mostra o Héptameron (1558), de Marguerite de Navarre. E no século XVII surgem as Novelas ejemplares (1613), de Cervantes. No fim do século surgem os registros de contos por Charles Perrault: Histoires ou contes du temps passé, com o subtítulo de “Contes de ma mère Loye”, conhecidos como Contos da mãe Gansa. Se o século XVIII exibe um La Fontaine, exímio no contar fábulas, no século XIX o conto se desenvolve estimulado pelo apego à cultura medieval, pela pesquisa do popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa, que permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais. Este é o momento de criação do conto moderno quando, ao lado de um Grimm que registra contos e inicia o seu estudo comparado, um Edgar Allan Poe se afirma enquanto contista e teórico do conto.

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Portanto, enquanto a força do contar estórias se faz, permanecendo, necessária e vigorosa, através dos séculos, paralelamente uma outra história se monta: a que tenta explicitar a história destas estórias, problematizando a questão deste modo de narrar — um modo de narrar caracterizado, em princípio, pela própria natureza desta narrativa: a de simplesmente contar estórias.

O conto se caracteriza, portanto, pela economia de estilo e de extensão, com destaque, em geral, para a conclusão. Em poucas palavras, “é uma forma breve”, resume Gotlib (2006, p. 83), que se constrói “economizando meios narrativos, mediante contração de impulsos, condensação de recursos, tensão das fibras do narrar”.

Exemplo: Alguns contistas da literatura brasileira são: Rubem Fonseca, Machado de Assis, Clarice Lispector, Mário de Andrade, Dalton Trevisan, entre muitos outros. Para conhecer mais sobre contos brasileiros, sugerimos a antologia “Os cem melhores contos brasileiros do século”, organizada por Italo Moriconi.

A crônica

A crônica consiste em uma narrativa breve que tem por objetivo comentar algo do cotidiano, a partir da perspectiva pessoal do cronista. Segundo Gancho (2002, p. 8): “Por se tratar de um texto híbrido, nem sempre apresenta uma narrativa completa; uma crônica pode contar, comentar, descrever, analisar. De qualquer forma, as características distintivas da crônica são: texto curto, leve, que geralmente aborda temas do cotidiano”.

Soares (2007, p. 64) situa a ruptura entre o sentido de crônica “no início da era cristã”, quando o termo designava “uma relação de acontecimentos organizada cronologicamente, sem nenhuma participação do cronista”, e no século XIX, quando “a crônica já apresenta um trabalho literário que a aproxima do conto e do poema, impondo-se, porém, como uma forma especial, porque não se permite classificar como aqueles”. Soares (2007, p. 64-65) explica:

Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas. Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades reais, de personagens ficcionais..., afastando-se sempre da mera reprodução de fatos. E enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o.Conscientemente fragmentária (e essa é a sua força), pois não pretende captar a totalidade dos fatos, a crônica vem se impondo nos quadros da literatura brasileira, cultivada que foi por um Machado de Assis (ainda quando era conhecida como "folhetim"), Olavo Bilac e João do Rio. Sobressaem-se, entre os cronistas mais recentes, Carlos Drummond de Andrade, Eneida, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Sérgio Porto.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Exemplo: Alguns cronistas da literatura brasileira são: Rubem Braga, Luis Fernando Verissimo, Nelson Rodrigues, Mário de Andrade, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, entre muitos outros. Para conhecer mais sobre crônicas brasileiras, sugerimos a antologia “As cem melhores crônicas brasileiras”, organizada por Joaquim Ferreira dos Santos.

Vejamos agora os elementos constitutivos da narrativa.

2.3 OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NARRATIVA: ENREDO, PERSONAGEM, TEMPO, ESPAÇO E NARRADOR

As narrativas, como vimos, se estruturam sobre elementos que a constituem, e que se relacionam entre si, de modo que, como observa Tzvetan Todorov (2008, p. 230), “o sentido de cada elemento da obra equivale ao conjunto de suas relações com os outros”.

Estudaremos agora os elementos constitutivos da narrativa, ou seja, enredo, personagem, tempo, espaço e, finalmente, narrador. Para tanto, leiamos o conto “Desenredo”, de João Guimarães Rosa:

Desenredo

Do narrador a seus ouvintes:

– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tingida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.

Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.

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Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.

Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.

Ela – longe – sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.

Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.

Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou – ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.

Mas.

Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.

Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.

Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, à prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.

Mais.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desfaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.

Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cana do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.

O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisa, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?

Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta.

Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima, todos já acreditavam, Jó Joaquim primeiro que todos.

Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.

Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.

E pôs-se a fábula em ata.

FONTE: ROSA, João Guimarães. Tutameia (Terceiras Estórias). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 72-75.

Vejamos agora em que consiste cada um dos elementos constitutivos da narrativa.

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Enredo

Você percebeu que o conto é constituído de uma sequência de ações? Tais como: a) o encontro entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; b) o caso amoroso entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; c) o flagra do marido de Livíria, Rivília ou Irlívia com um outro amante; d) a morte do marido; e) o casamento entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; f) o novo flagra de uma traição de Livíria, Rivília ou Irlívia; g) a separação de Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; h) o perdão de Jó Joaquim; i) a recriação do passado pelo protagonista; j) e, finalmente, a reconciliação? Você percebeu que todas essas ações são realizadas por personagens? E que as ações dos personagens são contadas por um narrador?

Pois bem, o enredo consiste no resultado da ação das personagens, apresentada por meio do discurso narrativo, ou seja, do modo como o narrador organiza os acontecimentos. A essa combinação das ações Aristóteles chamou “fábula”, isto é, enredo, dividindo a ação simplesmente em princípio, meio e fim. O “enredo é a imitação da ação, entendendo aqui por enredo a estruturação dos acontecimentos”, explica Aristóteles (2008, p. 48), que divide o enredo em partes: as peripécias e os reconhecimentos, estruturados em nó e desenlace: “Entendo por nó o que vai desde o princípio até o momento imediatamente antes da mudança para a felicidade ou para a infelicidade, e por desenlace, o que vai desde o início desta mudança até o fim” (ARISTÓTELES, 2008, p. 74).

Nas narrativas tradicionais, representativas do momento em que a prosa se consagra como uma forma privilegiada, frequentemente o enredo se divide em:

1) Apresentação, exposição ou situação inicial2) Complicação3) Clímax4) Epílogo, desfecho ou desenlace

Na apresentação ou situação inicial, o narrador apresenta os elementos da narrativa, como as personagens, o espaço e o tempo do enredo, uma determinada situação historicamente situada e caracterizada geralmente pela estabilidade, com os elementos e personagens em harmonia; na complicação, por motivação de um fato que provoca uma transformação na situação apresentada, a estabilidade ou harmonia inicial se quebra com o desencadeamento de conflitos que geram a tensão; no clímax, a complicação do enredo atinge o seu ponto culminante, que exige uma resolução; e o epílogo ou desfecho, finalmente, constitui a situação final, decorrente das transformações provenientes das ações, informando o destino das personagens.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

ATENCAO

O conflito, como você pode presumir, exerce um papel fundamental na narrativa, constituindo o elemento estruturador que a move. Vejamos, portanto, como Gancho (2002, p. 11) define o conflito: “Conflito é qualquer componente da história (personagens, fatos, ambientes, ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor”.

Vejamos agora em “Desenredo” como o narrador de Guimarães Rosa organiza o enredo: 1) A apresentação, em que o narrador apresenta a situação inicial e os elementos da narrativa, como as personagens, pode ser identificada nos parágrafos iniciais:

Do narrador a seus ouvintes:- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tingida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.

Observe que o narrador apresenta as personagens, Jó Joaquim, Livíria, Rivília ou Irlívia e seu marido, e a situação inicial da narrativa, ou seja, o caso entre Jó Joaquim, Livíria, Rivília ou Irlívia. Essa situação, apesar do marido valente e ciumento, caracteriza-se por certa estabilidade, garantida pela clandestinidade de seu amor: “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”, comenta o narrador, que antecipa, sugestivamente, uma possibilidade de transformação na situação: “Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano”.

Essa possibilidade, no entanto, não se confirma, e temos, então, 2) a complicação: Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.

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TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

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Note que o narrador, didaticamente, revela a complicação ao afirmar: “Até que – deu-se o desmastreio”, ou seja, o contratempo. A complicação se desenvolve com o flagra da traição de Livíria, Rivília ou Irlívia com um outro amante, não Jó Joaquim, que, sabendo do ocorrido, afasta-se da amante. A complicação se estende até o clímax da narrativa, compreendendo o flagra e o consequente afastamento dos amantes, a morte do marido, que parece condizer com o “enorme milagre” de que dependiam os amantes e, finalmente, o casamento entre os amantes. 3) O clímax ocorre com o flagra de Jó Joaquim da traição de Livíria, Rivília ou Irlívia: Mas. Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios. Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.

O clímax compreende o flagra e a expulsão da esposa, que foge para um “desconhecido destino”, e “Mais”, complementa o narrador, em evidente contraste com a conjunção adversativa “Mas” que introduz o clímax: Jó Joaquim, como Ulisses, herói da epopeia homérica, que “começou por se fazer de louco”, redime a mulher e, desejando a felicidade, reinventa sua história: “Nunca tivera ela amantes!”. Operando o passado, como afirma o narrador, Jó Joaquim “criava nova, transformada realidade”, o que explica o título do conto: “desenredo”. A referência à astúcia de Ulisses igualmente se explica: Penélope, esposa de Ulisses, que esperava o marido retornar da Guerra de Troia e, contra a pressão dos pretendentes para um novo casamento, prometeu que costuraria um tapete e que, se seu marido não retornasse antes de finalizar o tapete, casaria com um pretendente. Crente no retorno do marido, Penélope, para retardar o cumprimento da promessa, costurava durante o dia e descosturava durante a noite: “desenredo”.

O clímax encerra com a resolução, ou seja, a reconciliação do casal, consolidado com o retorno de Livíria, Rivília ou Irlívia: “Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento”.

E, por fim, 4) o epílogo: Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. E pôs-se a fábula em ata.

Como podemos perceber, no epílogo, o narrador informa o destino das personagens ao leitor, propondo um jogo de palavras: “E pôs-se a fábula em ata”, ou seja, a “fábula”, a combinação das ações que, em Aristóteles, compõem o enredo, adquire estatuto oficial de “ata”, palavra que, designando um registro escrito, deriva etimologicamente de ação.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Com o surgimento dos estudos da narratologia, ou seja, da teoria da narratividade, iniciada ou aprimorada pelos formalistas russos, os formalistas russos propõem a decomposição do enredo em motivos e funções narrativas, e a distinção entre dois planos, um dos acontecimentos considerados em si mesmos, outro dos acontecimentos tal como apresentados literariamente na narrativa. Nesse sentido, o formalista russo Boris Tomachevski, por exemplo, diferencia “fábula” e “trama”. A esse respeito, Tzvetan Todorov (2008, p. 221) confirma que “são os formalistas russos que primeiro isolaram estas duas noções que chamaram fábula (‘o que efetivamente ocorreu’) e assunto (‘a maneira pela qual o leitor toma conhecimento disto’)”.

A “fábula” denomina o conjunto de acontecimentos ligados entre si que são comunicados no decorrer da obra, isto é, os fatos organizados e disponibilizados cronologicamente em sua ordem natural, segundo sua causalidade. A “trama” denomina, por sua vez, os acontecimentos conforme sua organização e disponibilização na narração, segundo a intenção do autor ou do narrador. Em outras palavras, a trama designa a representação particular dos acontecimentos ordenados de acordo com a construção discursiva da narração, por meio de recursos narrativos, tais como suspense, digressões, lacunas, intervalos, retrocessos, entre outros. Como explica Todorov (2008, p. 220-221):

Em nível mais geral, a obra literária tem dois aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real. Esta mesma história poderia ter-nos sido relatada por outros meios; por um filme, por exemplo; ou poder-se-ia tê-la ouvido pela narrativa oral de uma testemunha, sem que fosse expressa em um livro. Mas a obra é, ao mesmo tempo, discurso: existe um narrador que relata a história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez conhecê-los.

A distinção entre “fábula” e “trama” proposta por Tomachevski seria reformulada por diversos autores a partir de diversos conceitos para denominar, grosso modo, o “o que” e o “como” da narrativa: “história” e “discurso”, para Émile Benveniste e Tzvetan Todorov; “ficção” e “narração”, para Jean Ricardou; “diegese” e “narração”, para Maurice-Jean Lefebve; “história” e “narração”, para Gérard Genette. Genette (2008), no entanto, observa que, na literatura, o ato de narração produz simultaneamente uma história e uma narração, de modo que sua separação pode ser concebida apenas teoricamente. Corroborando a observação de Genette, Angélica Soares (2007, p. 44) afirma:

Se, por um lado, devemos reconhecer a eficácia teórica dessas propostas, por outro, não podemos esquecer que, sendo o romance obra de ficção e, portanto, de desrealização da realidade, a diegese ou a fábula já devem ser entendidas como categorias literárias, não existindo antes da obra na forma como a deduzimos do discurso narrativo.

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Todorov (2008, p. 221) reitera que “os dois aspectos, a história e o discurso, são todos os dois igualmente literários”.

Ao lado da narração, os gêneros narrativos apresentam descrições. Como confirma Genette (2008, p. 272):

Toda narrativa comporta com efeito, embora intimamente misturadas e em proporções muito variáveis, de um lado representações de ações e acontecimentos, que constituem a narração propriamente dita, e de outro lado, representações de objetos e personagens, que são o fato daquilo que se denomina hoje a descrição.

As descrições desempenham um papel fundamental na narrativa, especialmente nos romances realistas e naturalistas, em que a descrição exerce uma função importante. Genette (2008, p. 273) observa, a respeito da relação entre narração e descrição, que “existem gêneros narrativos, como a epopeia, o conto, a novela, o romance, em que a descrição pode ocupar um lugar muito grande, e mesmo materialmente maior, sem cessar de ser, como por vocação, um simples auxiliar da narrativa”. Nesse sentido, Genette (2008, p. 274) constata que não existem “gêneros descritivos”, e reconhece a dificuldade de imaginar “uma obra em que a narrativa se comportaria como auxiliar da descrição”.

Ao analisar o estudo das relações entre o narrativo e o descritivo, ou seja, as funções da descrição na “economia geral da narrativa”, Genette (2008, p. 274) percebe duas funções distintas: uma “de ordem decorativa”, compreendida como um ornamento do discurso; outra “de ordem simultaneamente explicativa e simbólica”.

A segunda função da descrição pode ser observada, afirma Genette (2008, p. 274), na tradição do gênero romanesco, especialmente realista: “os retratos físicos, as descrições de roupas e móveis tendem, em Balzac, e seus sucessores realistas, a revelar e ao mesmo tempo justificar a psicologia dos personagens, dos quais são ao mesmo tempo signo, causa e efeito”. Genette (2008, p. 275) conclui, por fim, que:

É necessário observar enfim que todas as diferenças que separam descrição e narração são diferenças de conteúdo, que não têm propriamente existência semiológica: a narração liga-se a ações ou acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo acentua o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição, ao contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço. Estes dois tipos de discurso podem, portanto, aparecer como exprimindo duas atitudes antiéticas diante do mundo e da existência, uma mais ativa, a outra mais contemplativa.

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Observe que Genette identifica na narração e na descrição “duas atitudes antiéticas diante do mundo e da existência”, a primeira “mais ativa”, e a segunda “mais contemplativa”. A partir de uma perspectiva semelhante, Georg Lukács (1965) estabelece, em seu ensaio “Narrar ou descrever?”, um contraste entre os dois métodos empregados na representação artística no romance moderno, procurando “saber como e por que a descrição [...] chegou a se tornar um princípio fundamental da composição”. Contrapondo a narração e a descrição, Lukács compreende os dois métodos como alternativas em que “vivemos” os acontecimentos representados, por um lado, ou “observamos” os acontecimentos representados, por outro: participar ou observar, respectivamente.

NOTA

Georg Lukács (1885-1971) foi um intelectual húngaro e um dos mais influentes críticos literários do século XX. Para Lukács, em “Narrar ou descrever?”, narrar e descrever correspondem a “duas posições socialmente necessárias, assumidas pelos escritores em dois sucessivos períodos do capitalismo”. Ao contrário de Scott, Balzac e Tolstoi, Flaubert e Zola escreveriam numa sociedade burguesa concretizada, em cujo seio se tornam seus observadores e críticos, simultaneamente a “escritores no sentido da divisão capitalista do trabalho”, pois “é o momento em que o livro se transforma completamente em mercadoria e o escritor em vendedor da referida mercadoria”.

FONTE: Disponível em: <http://www.joseferreira.com.br/blogs/filosofia/e-books/e-book-prolegomenos-para-uma-ontologia-do-ser-social-georg-lukacs/>. Acesso em: 10 out. 2017.

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DICAS

Caso queira aprofundar seus estudos em relação ao papel da descrição no romance moderno, indicamos a obra de Franco Moretti (1950).

FONTE: Disponível em: <https://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/complit/newsrecords/2016-17/franco-moretti-seminar-series-2017.aspx>. Acesso em: 10 out. 2017.

Na obra de Moretti (2009), a questão lukácsiana de saber como e por que a descrição chegou a se tornar um princípio fundamental da composição se relaciona com o estudo dos “enchimentos” na narrativa. Segundo Moretti (2009), o enchimento se firmou porque oferecia um tipo de prazer narrativo compatível com a nova regularidade da vida burguesa. O enchimento seria uma tentativa de racionalizar o romance e desencantar o universo narrativo, absorvendo um processo que se inicia nas esferas da economia e da administração. Quanto ao estilo descritivo do século XIX, Moretti afirma que se os conteúdos das diversas descrições podem ser neutros, a forma da descrição, contrariamente, persegue um projeto que nada tem de neutro e que é particularmente típico do ethos da Restauração: deter a história. Cada técnica, portanto, mantém certa independência, captura uma parcela distinta da realidade circunstante e transmite sua mensagem ideológica específica. Surge daí uma estrutura compósita, que distribui as índoles da classe dominante europeia em níveis distintos do texto, conseguindo fazer que se correspondam: ao capitalismo o plano da narrativa, com o ritmo regular do seu novo presente; ao conservadorismo político as pausas descritivas.

Personagem

Vimos que as ações da narrativa são realizadas por personagens. As personagens, portanto, são os agentes da ação da narrativa ficcional e, enquanto tal, constituem seres de linguagem. Conforme explica Gancho (2002, p. 14): “A personagem ou o personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação. Por mais real que pareça, o personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que determinados personagens são baseados em pessoas reais”.

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Em virtude da relação entre personagem e ação, A. J. Greimas prefere denominar as personagens de atores. E, preocupado em definir a função das personagens na narrativa, enquanto agentes da ação que promovem as situações e transformações da narrativa, propõe um modelo de seis funções que denomina actantes: sujeito-objeto, destinador-destinatário, adjuvante-oponente. Podemos assim resumir as funções das personagens a seis tipos que se combinam na narrativa:

1) Protagonista: condutor da ação, o personagem principal. 2) Antagonista: oponente, o opositor do protagonista de cuja oposição ao

protagonista resulta o conflito central.3) Objeto: fim visado pelo protagonista, representa o interesse do protagonista e

do antagonista.4) Destinador: personagem que influencia decisivamente a destinação do objeto,

dirigindo a ação e a resolvendo.5) Destinatário: beneficiado, personagem que recebe o objeto, o resultado final da

ação, e que geralmente condiz com o protagonista.6) Adjuvante: personagem auxiliar, que oferece uma contribuição a algum dos

agentes na busca de seus fins.

Conforme a tipologia proposta por Souriau, no conto de Guimarães Rosa, Jó Joaquim, que, como observa o narrador, “proibia-se de ser pseudopersonagem”, exerce a função de protagonista, de personagem principal, e Livíria, Rivília ou Irlívia, de objeto, por exemplo. O seu marido, por sua vez, representa o antagonista, e assim por diante.

O protagonista ou o personagem principal pode ser classificado como herói ou anti-herói. Na explicação de Gancho (2002, p. 14), herói “é o protagonista com características superiores às de seu grupo”, ao passo que o anti-herói “é o protagonista que tem características iguais ou inferiores às de seu grupo, mas que por algum motivo está na posição de herói, só que sem competência para tanto”. Podemos denominar como secundárias as personagens “menos importantes na história, isto é, que têm uma participação menor ou menos frequente no enredo; podem desempenhar papel de ajudantes do protagonista ou do antagonista, de confidentes, enfim, de figurantes” (GANCHO, 2002, p. 16).

A partir de outra abordagem, Foster (1969) sugere diferenciar as personagens em dois tipos designados: personagens planas ou personagens redondas. Na terminologia de Foster, temos, portanto:

1) personagens planas: personagens simples, que conservam seu comportamento uniformemente, sem surpreender o leitor com imprevisibilidades. Correspondem aos chamados “tipos” ou “caricaturas”;

2) personagens redondas: personagens profundas, complexas, que evoluem no decorrer da narrativa, com transformações e revelações graduais de sua identidade, apresentando uma caracterização elaborada e nunca definitiva.

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Nessa perspectiva, o protagonista do conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, se classifica como uma personagem redonda, considerando as transformações e revelações de sua identidade desde que conheceu Livíria, Rivília ou Irlívia: “Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém?”. O comportamento de Jó Joaquim se caracteriza pela imprevisibilidade de suas ações, como confirma o narrador em passagens como: “Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem”. Da mesma maneira que se apostrofa a si mesmo e se revela em seu ineditismo, a personagem reinventa o seu passado, conforme a profundidade e complexidade que se atribui a personagens redondas.

A respeito do papel exercido pelas personagens na literatura ocidental, Todorov (2008, p. 230) afirma: “Nesta literatura, o personagem parece-nos representar um papel de primeira ordem e é a partir dele que se organizam os outros elementos da narrativa”. Nesse sentido, reconhecendo a função das personagens na organização dos elementos da narrativa que estamos estudando, Soares (2007, p. 49) observa: “Tão importante quanto caracterizar as personagens é buscar a funcionalidade dos seus caracteres”, conforme vimos acima ao definirmos os tipos de personagens segundo suas funções no enredo.

Vimos que personagens planas podem corresponder a “tipos” ou “caricaturas”. Vejamos, portanto, como se definem:

Tipo: “é um personagem reconhecido por características típicas, invariáveis, quer sejam elas morais, sociais, econômicas ou de qualquer outra ordem. Tipo seria o jornalista, o estudante, a dona de casa, a solteirona etc.” (GANCHO, 2002, p. 16). Exemplos de tipos são os personagens de “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, alguns identificados por sua função: Repórter, Minha Tia, Padre Olavo, Bonitão etc.

Caricatura: “é um personagem reconhecido por características fixas e ridículas. Geralmente é um personagem presente em histórias de humor” (GANCHO, 2002, p. 17). Exemplos de caricaturas são os personagens de “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida.

Tempo

Enquanto um fator humano importante na percepção de si mesmo e da realidade, o tempo, evidentemente, tem implicações na narrativa ficcional. Afinal, a narrativa se desenvolve no fluxo do tempo, seja o tempo da diegese ou da ficção (o contexto temporal ou epocal), seja o tempo do discurso e da leitura, que, assim como as ações representadas na narrativa, exigem tempo para se desenvolver.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

O tempo da diegese se relaciona com a duração das ações narradas, correspondendo a uma sucessão temporal apontada, na narração, por meio de indicadores temporais das ações, tais como datas, estações do ano, eventos etc. O tempo do discurso, por sua vez, corresponde ao tempo da narração propriamente dita das ações, estando condicionado a um processo de seleção por parte do narrador. Como nota Todorov (2008, p. 242):

O problema da apresentação do tempo na narrativa impõe-se por causa de uma dessemelhança entre a temporalidade da história e a do discurso. O tempo do discurso é, em um certo sentido, um tempo linear, enquanto o tempo da história é pluridimensional. Na história, muitos acontecimentos podem se desenrolar ao mesmo tempo; mas o discurso deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida ao outro; uma figura complexa encontra-se projetada sobre uma linha reta. É daí que vem a necessidade de romper a sucessão “natural” dos acontecimentos mesmo se o autor desejava segui-la mais de perto. Mas a maior parte do tempo o autor não tenta encontrar esta sucessão “natural” porque utiliza a deformação temporal para certos fins estéticos.

O tempo da diegese do conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, por exemplo, equivale ao tempo natural das ações que, como vimos, compõem cronologicamente o enredo, desde o encontro entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia até sua reconciliação final, o que evidentemente dura mais do que o tempo do discurso, condensado pela seleção do narrador, constituindo uma anisocronia, na terminologia de Gerard Gennete. As indicações da sucessão do tempo da diegese do conto se manifestam tanto por meio dos tempos verbais quanto de expressões como “até que”, “enquanto, ora, as coisas amaduravam”, “daí, de repente”, “no decorrer e comenos”, e assim por diante. O tempo exerce um papel fundamental no conto, como demonstra o narrador ao afirmar, por exemplo, que “o tempo é engenhoso”, que “os tempos se seguem e parafraseiam-se” ou que “o tempo secou o assunto”. Como podemos perceber, a diegese comporta, geralmente, um tempo de ordem pessoal, um tempo subjetivo ou vivencial, relacionado com a percepção das personagens ou do narrador, um tempo interno que constitui um tipo de tempo diferente do tempo externo, o qual pode ser objetivamente mensurado. Assim, podemos diferenciar, nas narrativas, dois tipos de tempo:

1) Tempo cronológico: é o nome que se dá ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear (que não altera a ordem em que os fatos ocorreram); chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos.

2) Tempo psicológico: é o nome que se dá ao tempo que transcorre numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou dos personagens, isto é, altera a ordem natural dos acontecimentos. Está, portanto, ligado ao enredo não linear (no qual os acontecimentos estão fora da ordem natural) (GANCHO, 2002, p. 21).

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NOTA

Genette (2008) diferencia isocronia e anisocronia, conceitos com os quais designa a relação entre o tempo da diegese e o tempo do discurso em termos de duração. Assim, a isocronia denomina a conformidade entre a duração da diegese e a do discurso, ao passo que a anisocronia, a inconformidade entre a duração da diegese e a do discurso.

Quanto ao tempo do discurso, os seus desacordos com o tempo da diegese em termos de ordem das ações se denomina anacronias. A anacronia constitui um recurso tradicional da narração, a exemplo do “in medias res” e do “in ultimas res”, que designam narrativas que iniciam no meio e no final da diegese, respectivamente. Compondo narrativas temporalmente deslocadas da narrativa em que se inserem, as anacronias podem apontar para o passado, as denominadas analepses, ou para o futuro, as denominadas prolepses.

Espaço

O espaço consiste na ambientação da narração ou da ação das personagens, a paisagem que pode ser exterior (espaço físico) ou interior (espaço psicológico). A ambientação desempenha um papel fundamental na narração, e sua função se evidencia especialmente nos romances realistas e naturalistas, que, influenciados pelas ideias deterministas do positivismo, partem do pressuposto de que o ambiente influencia o homem. Como explica Gancho (2002, p. 23): “o espaço tem como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens”.

Gancho (2002, p. 24) elenca algumas funções do ambiente na narrativa, tais como: situar os personagens nas condições em que vivem, projetar os conflitos vividos pelos personagens, estar em conflito com os personagens e indicar o andamento do enredo.

No conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, por exemplo, embora o narrador se prive de delimitar espacialmente os fatos narrados, seja por meio da localização espacial, seja por meio de descrições, podemos identificar o ambiente de narração, presumivelmente um bar, como sugerimos a seguir, e o ambiente narrado como um ambiente povoado, uma vez que a opinião do povo constitui um dos conflitos principais do conto, contra o qual atua o protagonista. Outras referenciações espaciais aparecem em passagens como: “E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino”, que, mesmo sem identificar o lugar, situa o leitor em relação ao distanciamento espacial da personagem: “Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava”.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Narrador

O narrador consiste na voz que narra e que pode, eventualmente, ser um personagem, mas jamais deve ser confundido com o autor, pois, enquanto um elemento do enredo, representa uma criação do autor.

No conto de Guimarães Rosa, o autor o anuncia na primeira frase: “Do narrador a seus ouvintes”. Sua narração, ao apresentar o protagonista, revela, ao mesmo tempo, informações sobre o narrador:

- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

Se o protagonista é, como informa o narrador, um “cliente”, cujo caráter compara com o “cheiro da cerveja”, podemos presumir que o narrador é um dono ou um atendente de um bar, que conta a história de Jó Joaquim a seus clientes, e que o bar é o espaço da narração, uma narração de caráter oral, como confirma o autor ao se referir os narratários do narrador como “ouvintes”. Podemos ainda perceber que o narrador não é onisciente: “Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo”, afirma o narrador, como quem conhece a história que narra de outras fontes, desconhecidas: “Diz-se”. Da mesma maneira, o narrador demonstra não saber ao certo o nome da personagem: “Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia”, afirma, concluindo sua narração com um quarto nome, diferente dos três primeiros: “Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida”.

O narrador pode ser identificado e classificado pelo pronome pessoal que utiliza na narração, ou seja, primeira pessoa ou terceira pessoa. Vejamos como, a partir da tipologia proposta por Norman Friedman, Gancho (2002, p. 27) explica os tipos de narrador se apoiando em pronomes pessoais:

Terceira pessoa: é o narrador que está fora dos fatos narrados, portanto seu ponto de vista tende a ser mais imparcial. O narrador em terceira pessoa é conhecido também pelo nome de narrador observador, e suas características principais são: a) onisciência: o narrador sabe tudo sobre a história; b) onipresença: o narrador está presente em todos os lugares da história.

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TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

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NOTA

Embora preponderem indiscutivelmente narrativas em primeira ou em terceira pessoa, existe a chamada narrativa em segunda pessoa, introduzida por Michel Butor, com o romance La modification, de 1957, e empregada por muitos novelistas e contistas.

Gancho (2002) elenca duas variantes de narrador em terceira pessoa: o narrador “intruso”, ou seja, o narrador que dialoga com o leitor ou julga diretamente o comportamento das personagens. E o narrador “parcial”, ou seja, o narrador que se identifica com determinado personagem. Vejamos agora como Gancho (2002, p. 28) explica o outro tipo de narrador de acordo com o pronome:

Primeira pessoa ou narrador personagem: é aquele que participa diretamente do enredo como qualquer personagem, portanto tem seu campo de visão limitado, isto é, não é onipresente, nem onisciente. No entanto, dependendo do personagem que narra a história, de quando o faz e de que relação estabelece com o leitor, podemos ter algumas variantes de narrador personagem.

Assim, Gancho (2002) define duas variantes do narrador em primeira pessoa: narrador “testemunha”, ou seja, narrador que narra acontecimentos dos quais participou, sem ser protagonista. E, finalmente, o narrador “protagonista”, ou seja, o narrador que atua como personagem principal do enredo que narra.

Jean Pouillon sugere uma classificação dos aspectos da narrativa enquanto percepção interna que o narrador oferece ao leitor em relação ao personagem. Pouillon (1974) denomina os diferentes tipos de relação entre o narrador e o personagem como visões, que podem ser simplificadas como:

1) Visão “por trás”: o narrador sabe mais que as personagens, equivalendo a um narrador onisciente em terceira pessoa.

2) Visão “com”: o narrador sabe tanto quanto os personagens, podendo narrar em primeira pessoa, o que justifica o processo, ou em terceira pessoa, a partir da visão que um mesmo personagem tem dos acontecimentos.

Visão “de fora”: o narrador sabe menos que qualquer um dos personagens, podendo narrar apenas o que percebe externamente, sem ter acesso ao interior das personagens.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

NOTA

O conceito de visão proposto por Pouillon se aproxima das concepções de ponto de vista, foco narrativo ou focalização. Ao propor o conceito de focalização, Genette distingue quem narra (voz) e quem percebe (modo), separando, definitivamente, a narração e a focalização. A focalização se refere a uma restrição de perspectiva, ou seja, uma seleção de informação narrativa que orienta o narrador.

O narrador pode ser ainda caracterizado, conforme a tipologia proposta por Genette (2008), como heterodiegético, homodiegético ou autodiegético:

1) Narrador heterodiegético: narrador que não integra, como personagem, o universo diegético da narrativa.

2) Narrador homodiegético: narrador que participa, como personagem, do universo diegético da narrativa, sem, no entanto, ser o protagonista.

3) Narrador autodiegético: narrador que participa, como personagem principal, do universo diegético, sendo ao mesmo tempo, portanto, o protagonista.

NOTA

Genette (2008) considera inadequadas as tipologias de narrativa pelo emprego de pronomes pessoais, como narrativa em primeira ou terceira pessoa, pois colocariam o acento da variação sobre o elemento invariante da situação narrativa. Para Genette, em vez de formas gramaticais, o romancista escolhe atitudes narrativas: narrar por um personagem (narrador homodiegético ou autodiegético ou por um narrador heterodiegético).

Por fim, a determinação da pessoa do narrador implica, em uma situação de enunciação, a pessoa a quem o narrador se dirige, o destinatário da narrativa, denominado narratário. O narratário participa como elemento constitutivo da narração, compreendido, muitas vezes, como a contraparte do narrador, como comprova Todorov (2008, p. 257):

A imagem do narrador não é uma imagem solitária: desde que aparece, desde a primeira página, ela é acompanhada do que se pode chamar “a imagem do leitor”. Evidentemente, esta imagem tem tão poucas relações com um leitor concreto quanto a imagem do narrador, com o autor verdadeiro. Os dois encontram-se em dependência um do outro, e desde que a imagem do narrador começa a sobressair mais nitidamente, o leitor imaginário encontra-se também desenhado com mais precisão. Estas duas imagens são próprias a toda obra de

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TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

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ficção: a consciência de ler um romance e não um documento leva-nos a fazer o papel deste leitor imaginário e ao mesmo tempo apareceria o narrador, o que nos relata a narrativa, já que a própria narrativa é imaginária. Esta dependência confirma a lei semiológica geral segundo a qual “eu” e “tu”, o emissor e o receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos.

O interesse pelo narratário ou pelo leitor, relativamente recente nos estudos literários, produziu diferentes conceitos: narratário (Gerard Prince), arquileitor (Michael Riffaterre), leitor ideal (Cleanth Brooks), leitor implícito (Wolfgang Iser), leitor modelo (Umberto Eco) etc. Ao constatar que “a história literária não ignorara tudo da recepção”, Antoine Compagnon (2001, p. 146) observa que, com a obsessão pelas fontes e influências, considerava-se a recepção, não sob a forma da leitura, mas sob a forma como uma obra originava outras obras: “Os leitores, na maioria das vezes, só eram levados em consideração quando se tornavam outros autores, através da noção de ‘destino de um escritor’” (COMPAGNON, 2001, p. 147). Recentemente, no entanto, os estudos da recepção se comprometeram com a leitura como reação individual ou coletiva ao texto, com o leitor ao mesmo tempo ativo e passivo, com o ato de leitura e o sentido como um efeito experimentado pelo leitor, como demonstram a semiótica da interpretação, de Umberto Eco, a estética da recepção, de Hans Robert Jauss, a teoria do efeito, de Wolfgang Iser, a teoria do efeito de leitura, de Stanley Fish etc.

Ao evidenciar a relação do leitor como modelo de recepção com a teoria dos gêneros literários, ou o gênero como modelo de leitura, Compagnon (2001, p. 157) afirma que a pertinência teórica do gênero é não classificar as obras, mas “funcionar como um esquema de recepção, uma competência do leitor”. O gênero, do ponto de vista da leitura, desempenha, segundo Compagnon (2001, p. 158), “um papel de mediação entre a obra e o público – incluindo aí o autor –, como o horizonte de expectativa. Inversamente, o gênero é o horizonte do desequilíbrio, da distância produzida por toda grande obra”, complementa Compagnon, que conclui: “Assim revisto, o gênero torna-se realmente uma categoria legítima da recepção”:

A concretização de que toda leitura realizada é, pois, inseparável das imposições de gênero, isto é, as convenções históricas próprias ao gênero, ao qual o leitor imagina que o texto pertence, lhe permitem selecionar e limitar, dentre os recursos oferecidos pelo texto, aqueles que sua leitura atualizará. O gênero, como código literário, conjunto de normas, de regras do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá abordar o texto, assegurando desta forma a sua compreensão. [...] Assim, a estética da recepção – mas é ainda o que a torna demasiado convencional aos olhos de seus detratores mais radicais – não seria outra coisa senão o último avatar de uma reflexão bem antiga sobre os gêneros literários (COMPAGNON, 2001, p. 158).

Por fim, o leitor, enquanto um elemento de intermediação entre a literatura e o mundo, e o gênero como modo de leitura, como sugere Compagnon, conduzem a uma reflexão sobre as relações da literatura com a história e a sociedade, que desenvolveremos na unidade seguinte.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

DICAS

Assista ao filme “Mais estranho que a ficção” (2006), dirigido por Marc Forster, para se envolver mais profundamente e de forma divertida no mundo da narração.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• O gênero narrativo se define como o relato, geralmente em prosa, de acontecimentos reais ou ficcionais, derivado do gênero épico.

• O relato dos acontecimentos no gênero narrativo se realiza pela intermediação de um narrador, que representa o discurso dos personagens por meio de discurso direto, indireto e indireto livre.

• O gênero narrativo se subdivide em tipos de narrativas entre os quais se destacam o romance, a novela, o conto e a crônica.

• A narrativa se constitui de elementos relacionados entre si, tais como o enredo, as personagens, o tempo, o espaço, o narrador e o foco narrativo.

RESUMO DO TÓPICO 2

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AUTOATIVIDADE

1 Qual foi a última narrativa que você leu? Foi um romance, uma novela ou um conto? Retome-a e analise-a a partir dos conhecimentos sobre o gênero narrativo que você aprendeu neste tópico. Para tanto, divida o enredo, classifique os personagens, observe o tempo e o espaço, classifique o narrador e observe o foco narrativo.

2 Leia os dois textos a seguir e depois proceda conforme a instrução.

Texto 1

Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal. Aí campeia o destemido vaqueiro cearense, que à unha de cavalo acossa o touro indômito no cerrado mais espesso, e o derriba pela cauda com admirável destreza. Aí, ao morrer do dia, reboa entre os mugidos das reses, a voz saudosa e plangente do rapaz que aboia o gado para o recolher aos currais no tempo da ferra. Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos na aurora serena e feliz da minha infância? Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?

FONTE: ALENCAR, José de. O sertanejo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000140.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

Texto 2

– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens

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de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.

FONTE: ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994, p. 3-4.

Considerando os textos 1 e 2, redija um texto dissertativo acerca do seguinte tema:

O lugar de enunciação na narração

Em seu texto, você deverá traçar um paralelo entre o narrador nos romances de José de Alencar e de Guimarães Rosa.

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TÓPICO 3

LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A

SOCIEDADE

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

No Tópico 1 desta unidade, você estudou a relação da literatura com outras áreas do conhecimento, e viu que os gêneros narrativos, por apresentarem uma disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, especialmente na representação da realidade, favorecem a relação com outras áreas do conhecimento.

Agora você terá a oportunidade de retomar e aprofundar o estudo das relações interdisciplinares e pluridisciplinares da literatura e da teoria da literatura, bem como o estudo da narração, tanto real quanto ficcional.

Neste tópico, você aprofundará o estudo das relações da literatura com outras áreas do conhecimento, mais especificamente com a história e a sociologia, e verá que a relação da literatura com a realidade remonta aos debates sobre a mimese e a verossimilhança na Antiguidade. Ao final deste tópico, você estará ambientado com as relações da literatura com a história e a sociedade.

Vamos lá?

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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2 LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

As relações da literatura com a história e a sociedade têm longa data, e constituem uma das discussões mais complexas e duradouras que atormentam a teoria da literatura. Ainda na antiguidade, Aristóteles, ao propor o conceito de verossimilhança, estabelece uma oposição entre a poesia e a história:

a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da verossimilhança e da necessidade. O historiador e o poeta não diferem pelo fato de um escrever em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não perderia absolutamente nada do seu carácter de História). Diferem é pelo fato de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer (ARISTÓTELES, 2008, p. 54).

Ao introduzir o conceito de verossimilhança, ou seja, “o que poderia acontecer”, Aristóteles discorda da concepção negativa de poesia de Platão, que compreendia que, pela representação, a poesia se afasta da realidade e da filosofia. Platão (2001) reduz a poesia a uma “imitação da imitação”, contraposta ao discurso ideal da filosofia. Afinal, para ele, a arte de imitar, ao mesmo tempo que “executa as suas obras longe da verdade”, convive com a parte irracional da alma humana, concluindo que a cidade deve excluir o poeta imitador para garantir um bom governo (PLATÃO, 2001, p. 464-469). Aristóteles, por outro lado, conclui pela superioridade da poesia em relação à história pelo fato de a verossimilhança a tornar universal, como explica:

Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. O universal é aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verossimilhança ou a necessidade, e é isso que a poesia procura representar (ARISTÓTELES, 2008, p. 54).

Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 108) resume o embate entre Platão e Aristóteles a respeito da mimese, evidenciando a relação entre a literatura e o mundo real estabelecida tanto pela verossimilhança quanto pela obra literária:

na Poética claramente se afirma que “a Poesia é mais filosófica e mais elevada do que a História, pois a Poesia conta de preferência o geral e, a História, o particular”. Por conseguinte, enquanto Platão condena a mimese poética como meio inadequado de alcançar a verdade, Aristóteles considera-a como instrumento válido sob o ponto de vista gnosiológico: o poeta, diferentemente do historiador, não representa fatos ou situações particulares; o poeta cria um mundo coerente em que os acontecimentos são representados na sua universalidade, segundo a lei da probabilidade ou da necessidade, assim esclarecendo a natureza profunda da ação humana e dos seus móbeis. O conhecimento, assim proposto pela obra literária, atua depois no real, pois se a obra poética é “uma construção formal baseada em elementos do mundo real”, o conhecimento proporcionado por essa obra tem de iluminar aspectos da realidade que a permitem.

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Com Aristóteles, então, a imitação se afirmaria “como a representação do que ‘poderia ser’”, como verossimilhança, o que garantiria a “autonomia da arte”, como alega Lígia Militz da Costa (1992, p. 6). E com a congenialidade da imitação dos homens, a imitação se torna um meio natural de conhecimento que permite ao homem se elevar do particular para o universal (COSTA, 1992, p. 5-6).

Gancho (2002, p. 10), a partir da perspectiva da narrativa e, mais propriamente, de sua natureza ficcional, explica o conceito de verossimilhança:

É a lógica interna do enredo, que o torna verdadeiro para o leitor; é, pois, a essência do texto de ficção. Os fatos de uma história não precisam ser verdadeiros, no sentido de corresponderem exatamente a fatos ocorridos no universo exterior ao texto, mas devem ser verossímeis; isto quer dizer que, mesmo sendo inventados, o leitor deve acreditar no que lê. Esta credibilidade advém da organização lógica dos fatos dentro do enredo. Cada fato da história tem uma motivação (causa), nunca é gratuito e sua ocorrência desencadeia inevitavelmente novos fatos (consequência). A nível de análise de narrativas, a verossimilhança é verificável na relação causal do enredo, isto é, cada fato tem uma causa e desencadeia uma consequência.

Por outro lado, Jonathan Culler (1999, p. 27), ao notar que os historiadores explicam a história mostrando como uma coisa levou a outra, conclui que “o modelo para a explicação histórica é, desse modo, a lógica das histórias: a maneira como uma história mostra como algo veio a acontecer, ligando a situação inicial, o desenvolvimento e o resultado de um modo que faz sentido”. Assim, Culler (1999, p. 27) acrescenta: “O modelo para a inteligibilidade histórica, em resumo, é a narrativa literária”.

A distinção entre a literatura e a história sustentada por Aristóteles se arrefece, portanto, de modo que dificilmente podemos dissociar seus respectivos discursos, como demonstram historiadores contemporâneos como Hayden White ao adaptarem categorias da teoria literária para a análise da historiografia. White (1994) compreende que a conectividade entre os eventos que constituem o discurso histórico deriva de procedimentos discursivos provenientes da narrativa, mas não afirma, com isso, que a literatura e a história sejam a mesma coisa, preservando, inclusive, um argumento similar ao de Aristóteles:

O discurso literário pode diferir do discurso histórico devido a seus referentes básicos, concebidos mais como eventos ‘imaginários’ do que ‘reais’, mas os dois tipos de discurso são mais parecidos do que diferentes em virtude do fato de que ambos operam a linguagem de tal maneira que qualquer distinção clara entre sua forma discursiva e seu conteúdo interpretativo permanece impossível (WHITE, 1994, p. 28).

Ao constatar a centralidade da narrativa nos estudos literários, Culler (1999, p. 84) explica: “As histórias, diz o argumento, são a principal maneira pela qual entendemos as coisas, quer ao pensar em nossas vidas como uma progressão que conduz a algum lugar, quer ao dizer a nós mesmos o que está acontecendo

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no mundo”. A vida, assegura Culler (1999, p. 84), segue “a lógica da história, em que entender significa conceber como uma coisa leva a outra, como algo poderia ter acontecido”.

Assim, como sugere Culler (1999, p. 84-85), “entendemos os acontecimentos através de histórias possíveis”, razão pela qual, como demonstra, “a explicação histórica segue não a lógica da causalidade científica, mas a lógica da história”, de modo que “as estruturas narrativas estão em toda parte”. Culler afirma ainda que ouvir e narrar histórias segue um impulso humano e, ao assinalar uma função fundamental das histórias, ilumina a razão da centralidade da narrativa que constata nos estudos literários:

as histórias também têm a função, como enfatizam os teóricos, de nos ensinar sobre o mundo, nos mostrando como ele funciona, nos possibilitando – através dos estratagemas da focalização – ver as coisas de outros pontos de vista e entender as motivações dos outros que, em geral, são opacas para nós (CULLER, 1999, p. 93).

Analisando a necessidade social de literatura, Antonio Candido (2004, p. 174), em conformidade com o “impulso humano” pela literatura mencionado por Culler, constata: “Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”. Assim, a criação ficcional “está presente em cada um de nós”, afirma Candido (2004, p. 174): “Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”, conclui Candido (2004, p. 175), reivindicando a literatura como “imagem e transfiguração” da vida: “Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade” (CANDIDO, 2004, p. 175-176).

Ao rearmar a relação da literatura com a realidade em seu “papel formador da personalidade”, Candido (2004, p. 180) afirma que a literatura contribui para a “humanização” por meio de uma abertura para a alteridade correspondente com a possibilidade de “ver as coisas de outros pontos de vista e entender as motivações dos outros” assinalada por Culler. Afinal, para Candido (2004, p. 180): “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.

As relações da literatura com a história e a sociedade correspondem, em geral, como podemos perceber, às relações da literatura com a realidade. Evidentemente, na literatura existe sempre uma correlação semântica com o mundo real, embora ela funcione de forma singular, uma vez que a linguagem literária não referencia diretamente o mundo, como explica Silva (1976, p. 139-140):

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a mensagem literária é semanticamente autônoma, pois sua verdade e a sua coerência são de ordem contextual-interna. É conveniente repetir, todavia, que a linguagem literária não se constitui fora da história e fora da experiência do real, nem anula os valores semânticos, as dimensões sociais e simbólicas que fazem parte integrante dos sinais da langue de que o texto literário é também uma realização particular e específica. A obra literária constitui, por conseguinte, uma estrutura verbal que deve ser considerada e estudada na sua organização, na dinâmica e na funcionalidade dos seus elementos etc., mas essa estrutura, pelo simples fato de ser verbal, é portadora de significados que, embora autônomos do ponto de vista técnico-semântico, se reportam mediatamente à problemática existencial do homem.

Confirmando o fato de que a literatura não referencia diretamente o mundo, sem deixar, por isso, de se relacionar com ele, Luiz Costa Lima (2011, p. 306), ao analisar a representação literária, conclui que: “Pela prática da mímesis, a linguagem perde sua identidade habitual – não se diz algo de imediatas consequências sobre o mundo – assim como o produtor dela se despoja – isto é, fala ou escreve para animar fantasmas, que não são redutíveis a meras projeções de seu eu empírico”.

Ao concluir que a mimese supõe um distanciamento de si e, decorrentemente, uma identificação com a alteridade, Luiz Costa Lima (2011, p. 306-307) analisa a relação da mimese com as representações sociais, ou seja, a relação entre a literatura e a sociedade:

Pensando-se, pois, em relação às representações sociais, diremos que ela é um caso particular seu, distinto do das outras modalidades porque a mímesis opera a representação de representações. Na fórmula, reencontramos sua propriedade paradoxal. Representação de representações, a mímesis supõe entre estas e sua cena própria uma distância que torna aquelas passíveis de serem apreciadas, conhecidas e/ou questionadas. Essa distância, pois, ao mesmo tempo que impossibilita a atuação prática sobre o mundo, admite pensar-se sobre ele e experimentar-se a si próprio.

Com isso, Luiz Costa Lima confirma, portanto, o tipo particular de correlação que a literatura estabelece com a realidade, ou antes com o real, pois, “o real não se confunde com a realidade”, como nota Luiz Costa Lima (2011, p. 295). Se a realidade, “entendida como natureza, é prévia e independente do homem, sua conversão em real”, conforme Luiz Costa Lima (2011, p. 295), “se faz através de um processo duplo, paralelo mas distinto: por sua nomeação – que não se restringe a dar nome a partes da realidade – e pela formulação de molduras determinadoras da situação decodificante da palavra”. Quer dizer: a literatura permite pensar sobre o mundo na medida em que o distanciamento previsto entre a representação literária e as nossas representações do mundo, o real, possibilita apreciar, conhecer e questionar nossas representações.

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Contrariando interpretações do conceito de mimese que “eliminam a mediação do social”, Luiz Costa Lima reverbera as “reflexões que, autônomas, intentam repensar a mimesis” e, nesse sentido, observa que:

tampouco é ocasional que a estética da recepção e do efeito tomem como princípio o abandono da caracterização imanentista do poético. Ou seja, enquanto tanto Jauss, quanto Iser consideram previamente fadadas ao fracasso as poéticas que buscam definir a literatidade pela especificação de sua configuração discursiva e veem a literatura como produto de dupla ação – a do poeta e a do receptor ou do efeito nele provocado –, automaticamente jogam uma peça de cal nas interpretações especialistas e enfatizam a necessidade primária de o estudo do poético trabalhar com o confronto de duas variáveis: as expectativas sociais – ou elas que julgam ou não julgam mimético, poético, ficcional – e o esquema contido da própria obra (LIMA, 2011, p. 301-302).

Assim, se no início do século XX as teorias críticas, as quais fundamentaram, se não fundaram a disciplina de teoria da literatura, propuseram uma “caracterização imanentista do poético”, como o formalismo russo, o new criticism e a estilística, em contraposição aos exageros do historicismo e do sociologismo que caracterizam a crítica anterior, as relações da literatura com a história e a sociedade seriam definitivamente restabelecidas a partir de meados do mesmo século, consolidando interesses identificados antes na abordagem da literatura e da arte pela teoria crítica da Escola de Frankfurt ou pelos estudos de Mikhail Bakhtin, por exemplo. De fato, as perspectivas teóricas que consideram a literatura como parte do conjunto da sociedade se revelam mais apropriadas para compreender a literatura e a cultura, a exemplo da fenomenologia, do marxismo, do estruturalismo, do feminismo, do pós-estruturalismo, dos estudos culturais, do pós-colonialismo, do novo historicismo e assim por diante. As contribuições da “caracterização imanentista”, no entanto, não seriam abandonadas, como comprova, por exemplo, o modo como Antonio Candido relaciona literatura e sociedade, expondo os elementos sociais como constituintes da estrutura do texto, de modo que o estudo das relações entre a literatura e sociedade deve se ocupar com a forma, compreendendo como o conteúdo social penetra a estrutura da narrativa, sem opor forma e conteúdo, portanto.

Por fim, a insistência com que se preservam e, sobretudo, se renovam as relações da literatura com a história e a sociedade comprovam que a literatura consiste em um fenômeno plural, multidimensional, como vimos no início desta unidade. Nesse sentido, ao constatar o perigo em impor soluções parcelares e exclusivistas no campo da literatura, Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976) pergunta: “Por que não se admitir uma função plural da literatura?”.

Evasão e crítica social, catarse, libertação e apaziguamento e comunicação, capaz de permitir que comuniquemos através daquilo que nos separa. É esta pluralidade de funções que rejeitam quer as teorias dirigistas, quer as teorias do engajamento, cujos prosélitos postulam uma falsa unidade total da ação humana colocada sob o signo de uma ideologia. Todos aqueles que pretendem impor um determinado objetivo à criação literária (a história determina a literatura;

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a literatura deve espelhar o real histórico) esbarram num obstáculo fundamental: a heterogeneidade do modelo estrutural da literatura em relação à história, consequência da relação de arbitrariedade que se estabelece entre o signans [significante] e o signatum [significado] no sistema linguístico (SILVA, 1976, p. 141).

Segundo Silva (1976, p. 142), a literatura deve ser considerada como uma tensão entre complexos elementos – elementos afetivos, cognitivos, apelativos etc., constituindo a escrita literária o modo específico de revelação desses valores. “A escrita confere significado ao real, problematizando-o e revelando-o”, afirma. Para Silva (1976), o poder da literatura dimana justamente de a capacidade da escrita literária questionar o real. Deste modo, a autonomia da literatura, ou seja, sua especificidade, sua especificação como arte e afirmação como atividade diversa das outras, que confere a si mesma suas regras, não se fundamenta na separação com a vida, a história e a sociedade.

DICAS

Anatol H. Rosenfeld (1912-1973). Crítico e teórico de origem germânica, Anatol Rosenfeld (autor do texto da Leitura Complementar a seguir) foi um dos grandes intelectuais do panorama paulista dos anos 1960 e 1970, legando obras de indiscutível acuidade analítica, ainda hoje referências para os estudos literários.

FONTE: Disponível em: <https://img.travessa.com.br/livro/Instancias/7a/7a624ce2-329a-4d46-abb8-e443737660eb.jpg>. Acesso em: 24 out. 2017.

Para saber mais sobre Anatol Rosenfeld, remetemos ao estudo de Roberto Schwarz (1992) intitulado “Anatol Rosenfeld, um intelectual estrangeiro”, publicado em “O pai de família e outros estudos”.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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LEITURA COMPLEMENTAR

A TEORIA DOS GÊNEROS

Anatol H. Rosenfeld

1) GÊNEROS E TRAÇOS ESTILÍSTICOS

Observações gerais

A classificação de obras literárias segundo gêneros tem sua raiz na República de Platão. No 3º livro, Sócrates explica que há três tipos de obras poéticas: “O primeiro é inteiramente imitação”. O poeta como que desaparece, deixando falar, em vez dele, personagens. “Isso ocorre na tragédia e na comédia”. O segundo tipo “é um simples relato do poeta; isso encontramos principalmente nos ditirambos”. Platão parece referir-se, neste trecho, aproximadamente ao que hoje se chamaria de gênero lírico, embora a coincidência não seja exata. “O terceiro tipo, enfim, une ambas as coisas; tu o encontras nas epopeias...”. Neste tipo de poemas manifesta-se, seja o próprio poeta (nas descrições e na apresentação dos personagens), seja um ou outro personagem, quando o poeta procura suscitar a impressão de que não é ele quem fala e sim o próprio personagem; isto é, nos diálogos que interrompem a narrativa.

A definição aristotélica, no 3º capítulo da Arte Poética, coincide até certo ponto com o do seu mestre. Há, segundo Aristóteles, várias maneiras literárias de imitar a natureza: “Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando a própria pessoa sem que intervenha outro personagem, ou ainda, apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem eles próprios”. Essencialmente, Aristóteles parece referir-se, neste trecho, apenas aos gêneros épico (isto é, narrativo) e dramático. No entanto, diferencia duas maneiras de narrar, uma em que há introdução de um terceiro (em que os próprios personagens se manifestam) e outro em que se insinua a própria pessoa (do autor), sem que intervenha outro personagem. Esta última maneira parece aproximar-se do que hoje chamaríamos de poesia lírica, suposto que Aristóteles se refira no caso, como Platão, aos ditirambos, cantos dionisíacos festivos em que se exprimiam ora alegria transbordante, ora tristeza profunda. Quanto à forma dramática, é definida como aquela em que a imitação ocorre com a ajuda de personagens que, eles mesmos, agem ou executam ações. Isto é, a imitação é executada “por personagens em ação diante de nós” (3º capítulo).

Por mais que a teoria dos três gêneros, categorias ou arquiformas literárias, tenha sido combatida, ela se mantém, em essência, inabalada. Evidentemente ela é, até certo ponto, artificial como toda a conceituação científica. Estabelece um esquema a que a realidade literária multiforme, na sua grande variedade histórica, nem sempre corresponde. Tampouco deve ela ser entendida como um sistema de

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TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

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normas a que os autores teriam de ajustar a sua atividade a fim de produzirem obras líricas puras, obras épicas puras ou obras dramáticas puras. A pureza em matéria de literatura não é necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe pureza de gêneros em sentido absoluto.

Ainda assim o uso da classificação de obras literárias por gêneros parece ser indispensável, simplesmente pela necessidade de toda ciência de introduzir certa ordem na multiplicidade dos fenômenos. Há, no entanto, razões mais profundas para a adoção do sistema de gêneros. A maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em face do mundo.

Significado substantivo dos gêneros

A teoria dos gêneros é complicada pelo fato de os termos “lírico”, “épico” e “dramático” serem empregados em duas acepções diversas. A primeira acepção – mais de perto associada à estrutura dos gêneros – poderia ser chamada de “substantiva”. Para distinguir esta acepção da outra, é útil forçar um pouco a língua e estabelecer que o gênero lírico coincide com o substantivo “A Lírica”, o épico com o substantivo “A Épica” e o dramático com o substantivo “A Dramática”.

Não há grandes problemas, na maioria dos casos, em atribuir as obras literárias individuais a um destes gêneros. Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir seu próprio estado de alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou não – de extensão maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações ou eventos, pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem os próprios personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador.

Não surgem dificuldades acentuadas em tal classificação. Notamos que se trata de um poema lírico (Lírica) quando uma voz central sente um estado de alma e o traduz por meio de um discurso mais ou menos rítmico. Espécies deste gênero seriam, por exemplo, o canto, a ode, o hino, a elegia. Se nos é contada uma estória (em versos ou prosa), sabemos que se trata de Épica, do gênero narrativo. Espécies deste gênero seriam, por exemplo, a epopeia, o romance, a novela, o conto. E se o texto se constituir principalmente de diálogos e se destinar a ser levado à cena por pessoas disfarçadas que atuam por meio de gestos e discursos no palco, saberemos que estamos diante de uma obra dramática (pertencente à Dramática). Neste gênero se integrariam, como espécies, por exemplo, a tragédia, a comédia, a farsa, a tragicomédia etc.

Evidentemente, surgem dúvidas diante de certos poemas, tais como as baladas – muitas vezes dialogadas e de cunho narrativo; ou de certos contos inteiramente dialogados ou de determinadas obras dramáticas em que um único personagem se manifesta através de um monólogo extenso. Tais exceções,

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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contudo, apenas confirmam que todas as classificações são, em certa medida, artificiais, não diminuem, porém, a necessidade de estabelecê-las para organizar, em linhas gerais, a multiplicidade dos fenômenos literários e comparar obras dentro de um contexto de tradição e renovação. É difícil comparar Macbeth com um soneto de Petrarca ou um romance de Machado de Assis. É mais razoável comparar aquele drama com uma peça de Ibsen ou Racine.

Significado adjetivo dos gêneros

A segunda acepção dos termos lírico, épico, dramático, de cunho adjetivo, refere-se a traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero (no sentido substantivo). Assim, certas peças de Garcia Lorca, pertencentes, como peças, à Dramática, têm cunho acentuadamente lírico (traço estilístico). Poderíamos falar, no caso, de um drama (substantivo) lírico (adjetivo). Um epigrama, embora pertença à Lírica, raramente é “lírico” (traço estilístico), tendo geralmente certo cunho “dramático” ou “épico” (traço estilístico). Há numerosas narrativas, como tais classificadas na Épica, que apresentam forte caráter lírico (particularmente da fase romântica) e outras de forte caráter dramático (por exemplo, as novelas de Kleist).

Costuma haver, sem dúvida, aproximação entre gênero e traço estilístico: o drama tenderá, em geral, ao dramático, o poema lírico ao lírico e a Épica (epopeia, novela, romance) ao épico. No fundo, porém, toda obra literária de certo gênero conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em questão, também traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros. Não há, porém, lírico que não apresente ao menos traços narrativos ligeiros e dificilmente se encontrará uma peça em que não haja alguns momentos épicos e líricos.

Nesta segunda acepção, os termos adquirem grande amplitude, podendo ser aplicados mesmo a situações extraliterárias. Pode-se falar de uma noite lírica, de um banquete épico ou de um jogo de futebol dramático. Neste sentido amplo, esses termos da teoria literária podem tornar-se nomes para possibilidades fundamentais da existência humana; nomes que caracterizam atitudes marcantes em face do mundo e da vida. Há uma maneira dramática de ver o mundo, de concebê-lo como dividido por antagonismos irreconciliáveis; há um modo épico de contemplá-lo serenamente na sua vastidão imensa e múltipla; pode-se vivê-lo liricamente, integrado no ritmo universal e na atmosfera impalpável das estações.

Visto que no gênero geralmente se revela pelo menos certa tendência e preponderância estilística essencial (na Dramática pelo dramático, na Épica pelo épico e na Lírica pelo lírico), verifica-se que a classificação dos três gêneros implica um significado maior do que geralmente se tende a admitir.

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TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

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2) OS GÊNEROS ÉPICO E LÍRICO E SEUS TRAÇOS ESTILÍSTICOS FUNDAMENTAIS

Observações geraisDescrevendo-se os três gêneros e atribuindo-se-lhes os traços estilísticos

essenciais, isto é, à Dramática os traços dramáticos, à Épica os traços épicos e à Lírica os traços líricos, chegar-se-á à constituição de tipos ideiais, puros, como tais inexistentes, visto neste caso não se tomarem em conta as variações empíricas e a influência de tendências históricas nas obras individuais que nunca são inteiramente “puras”. Esses tipos ideais de modo nenhum representam critérios de valor. A pureza dramática de uma peça teatral não determina seu valor, quer como obra literária, quer como obra destinada à cena. Na dramaturgia de Shakespeare, um dos maiores autores dramáticos de todos os tempos, são acentuados os traços épicos e líricos. Ainda assim se tratam de grandes obras teatrais. Uma peça, como tal pertencente à Dramática, pode ter traços épicos tão salientes que a sua própria estrutura de drama é atingida, a ponto de a Dramática quase se confundir com a Épica. Mas, ainda assim tal peça pode ter grande eficácia teatral. Exemplos disso são o teatro medieval, oriental, o teatro de Claudel, Wilder ou Brecht. Trata-se de exemplos extremos que em seguida serão abordados, da mesma forma como exemplos de menor realce nos quais o cunho épico apenas se associa à Dramática, sem atingi-la a fundo. É evidente que na constituição mais ou menos épica ou mais ou menos pura da Dramática influem peculiaridades do autor e da sua visão do mundo, a sua filiação a correntes históricas, tais como o classicismo ou romantismo, bem como a temática e o estilo geral da época ou do país.

O gênero lírico e seus traços estilísticos fundamentais

O gênero lírico foi mais acima definido como sendo o mais subjetivo: no poema lírico uma voz central exprime um estado de alma e o traduz por meio de orações. Trata-se essencialmente da expressão de emoções e disposições psíquicas, muitas vezes também de concepções, reflexões e visões enquanto intensamente vividas e experimentadas. A Lírica tende a ser a plasmação imediata das vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se interponham eventos distendidos no tempo (como na Épica e na Dramática). A manifestação verbal “imediata” de uma emoção ou de um sentimento é o ponto de partida da Lírica. Daí segue, quase necessariamente, a relativa brevidade do poema lírico. A isso se liga, como traço estilístico importante, a extrema intensidade expressiva que não poderia ser mantida através de uma organização literária muito ampla.

Sendo apenas expressão de um estado emocional e não a narração de um acontecimento, o poema lírico puro não chega a configurar nitidamente o personagem central (o Eu lírico que se exprime), nem outros personagens, embora naturalmente possam ser evocados ou recordados deuses ou seres humanos, de acordo com o tipo do poema. Qualquer configuração mais nítida de personagens já implicaria certo traço descritivo e narrativo e não corresponderia à pureza ideal do gênero e dos seus traços; pureza absoluta que nenhum poema real talvez jamais atinja. Quanto mais os traços líricos se salientarem, tanto menos se constituirá

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

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um mundo objetivo, independente das intensas emoções da subjetividade que se exprime. Prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo distância entre sujeito e objeto. Ao contrário, o mundo, a natureza, os deuses, são apenas evocados e nomeados para, com maior força, exprimir a tristeza, a solidão ou a alegria da alma que canta. A chuva não será um acontecimento objetivo que umedeça personagens envolvidos em situações e ações, mas uma metáfora para exprimir o estado melancólico da alma que se manifesta; a bem-amada, recordada pelo Eu lírico, não se constituirá em personagem nítida de quem se narrem ações e enredos; será apenas nomeada para que se manifeste a saudade, a alegria ou a dor da voz central.

Apavorado acordo, em treva. O luarÉ como o espectro do meu sonho em mimE sem destino, e louco, sou o marPatético, sonâmbulo e sem fim.(VINICIUS DE MORAIS, Livro de Sonetos)

A treva, o luar, o mar se fundem por inteiro com o Eu lírico, não se constituem em um mundo à parte, não se emanciparam da consciência que se manifesta. O universo se torna expressão de um estado interior.

À intensidade expressiva, à concentração e ao caráter “imediato” do poema lírico, associa-se, como traço estilístico importante, o uso do ritmo e da musicalidade das palavras e dos versos. De tal modo se realça o valor da aura conotativa do verbo que este muitas vezes chega a ter uma função mais sonora que lógico-denotativa. A isso se liga a preponderância da voz do presente que indica a ausência de distância, geralmente associada ao pretérito. Este caráter do imediato, que se manifesta na voz do presente, não é, porém, o de uma atualidade que se processa e distende através do tempo (como na Dramática) mas de um momento “eterno”. “Apavorado acordo, em treva” – isso pode ser uma recordação de algo; mas este algo permanece, não é passado. O Eu não diz “apavorado acordei”; isso daria à recordação um cunho narrativo; há certo tempo acordei e aconteceu-me isto e aquilo. Mas o “eu acordo” e o pavor associado são arrancados da sucessão temporal, permanecendo à margem e acima do fluir do tempo, como um momento inalterável, como presença intemporal. “O elefante é um animal enorme” – esta oração refere-se à espécie, é um enunciado que não toma em conta as variações dos elefantes individuais, existentes, temporais. “O elefante era enorme” – esta organização individualiza o animal, situando-o no tempo e, por isso, também no espaço. Trata-se de uma oração narrativa.

O gênero épico e seus traços estilísticos

O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em certas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador. Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de outros seres. Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos e está sempre

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presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios personagens começam a dialogar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá a palavra, lhes descreve as reações e indica quem fala, através de observações como “disse João”, “exclamou Maria quase aos gritos” etc.

No poema ou canto líricos um ser humano solitário – ou um grupo – parece exprimir-se. De modo algum é necessário imaginar a presença de ouvintes ou interlocutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ou assobiamos assim melodias. O que é primordial é a expressão monológica, não a comunicação a outrem. Já no caso da narração é difícil imaginar que o narrador não esteja narrando a história a alguém. O narrador, muito mais que se exprimir a si mesmo (o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa a outros que, provavelmente, estão sentados em torno dele e lhe pedem que lhes conte um “caso”. Como não exprime o próprio estado de alma, mas narra estórias que aconteceram a outrem, falará com certa serenidade e descreverá objetivamente as circunstâncias objetivas. A estória foi assim. Ela já aconteceu – a voz é do pretérito – e aconteceu a outrem; o pronome é “ele” (João, Maria) e em geral não “eu”. Isso cria certa distância entre o narrador e o mundo narrado. Mesmo quando o narrador usa o pronome “eu” para narrar uma estória que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apresenta-se já afastado dos eventos contados, mercê do pretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude distanciada e objetiva, contrária à do poeta lírico.

A função mais comunicativa que expressiva da linguagem épica dá ao narrador maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo. Aristóteles salientou este traço estilístico, ao dizer: “Entendo por épico um conteúdo de vasto assunto”. Disso decorrem, em geral, sintaxe e linguagem mais lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos.

É, sobretudo, fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro dos personagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menor, e o do narrador, maior. Isso não ocorre no poema lírico, em que existe só o horizonte do Eu lírico que se exprime. Mesmo na narração em que o narrador conta uma estória acontecida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior do que o eu narrado e ainda envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.

Do exposto também segue que o narrador, distanciado do mundo narrado, não finge estar fundido com os personagens de que narra os destinos. Geralmente, finge apenas que presenciou os acontecimentos ou que, de qualquer modo, está perfeitamente a par deles. De um modo assaz misterioso, parece conhecer até o íntimo dos personagens, todos os seus pensamentos e emoções, como se fosse um pequeno deus onisciente. Mas não finge estar identificado ou fundido com eles. Nunca se transforma neles, não se metamorfoseia. Ao narrar a estória deles imitará, talvez, quando falam, as suas vozes e esboçará alguns dos seus gestos e expressões fisionômicas. Mas permanecerá, ao mesmo tempo, o narrador que apenas mostra ou ilustra como esses personagens se comportaram, sem que passe

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a transformar-se neles. Isso, aliás, seria difícil, pois não poderia transformar-se sucessivamente em todos eles e ao mesmo tempo manter a atitude distanciada do narrador.

3) O GÊNERO DRAMÁTICO E SEUS TRAÇOS ESTILÍSTICOS FUNDAMENTAIS

Observações gerais Na Lírica, pois, concebida como idealmente pura, não há oposição sujeito-

objeto. O sujeito como que abarca o mundo, a alma cantante ocupa, por assim dizer, todo o campo. O mundo, surgindo como conteúdo desta consciência lírica, é completamente subjetivado. Na Épica pura verifica-se a oposição sujeito-objeto. Ambos não se confundem. Na Dramática, finalmente, desaparece de novo a oposição sujeito-objeto. Mas agora a situação é inversa à da Lírica. É agora o mundo que se apresenta como se estivesse autônomo, absoluto (não relativizado a um sujeito), emancipado do narrador e da interferência de qualquer sujeito, quer épico, quer lírico. De certo modo é, portanto, o gênero oposto ao lírico. Neste último o sujeito é tudo, no dramático o objeto é tudo, a ponto de desaparecer no teatro, por completo, qualquer mediador, mesmo o narrativo que, na Épica, apresenta e conta o mundo acontecido.

Traços estilísticos fundamentais da obra dramática pura

O simples fato de que o “autor” (narrador ou Eu lírico) parece estar ausente da obra – ou confundir-se com todos os personagens de modo a não se distinguir como entidade específica dentro da obra – implica uma série de consequências que definem o gênero dramático e os seus traços estilísticos em termos bastante aproximados das regras aristotélicas. Estando o “autor” ausente, exige-se no drama o desenvolvimento autônomo dos acontecimentos, sem intervenção de qualquer mediador, já que o “autor” confiou o desenrolar da ação a personagens colocados em determinada situação. O começo da peça não pode ser arbitrário, como que recortado de uma parte qualquer do tecido denso dos eventos universais, todos eles entrelaçados, mas é determinado pelas exigências internas da ação apresentada. E a peça termina quando esta ação nitidamente definida chega ao fim. Concomitantemente impõe-se rigoroso encadeamento causal, cada cena sendo a causa da próxima e esta sendo o efeito da anterior: o mecanismo dramático move-se sozinho, sem a presença de um mediador que o possa manter funcionando. Já na obra épica, o narrador, dono do assunto, tem o direito de intervir, expandindo a narrativa em espaço e tempo, voltando a épocas anteriores ou antecipando-se aos acontecimentos, visto conhecer o futuro (dos eventos passados) e o fim da estória. Bem ao contrário, no drama o futuro é desconhecido; brota do envolver atual da ação que, em cada apresentação, se origina por assim dizer pela primeira vez. Quanto ao passado, o drama puro não pode retornar a ele, a não ser através da evocação dialogada dos personagens; o flashback (recurso antiquíssimo no gênero épico e muito típico do cinema, que é uma arte narrativa), que implica não só a evocação dialogada e sim o pleno retrocesso cênico ao

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passado, é impossível no avanço ininterrupto da ação dramática, cujo tempo é linear e sucessivo como o tempo empírico da realidade; qualquer interrupção ou retorno cênico a tempos passados revelariam a intervenção de um narrador manipulando a estória.

A ação dramática acontece agora e não aconteceu no passado, mesmo quando se trata de um drama histórico. Lessing, na sua Dramaturgia de Hamburgo, diz com acerto que o dramaturgo não é um historiador; ele não relata o que se acredita haver acontecido, “mas faz com que aconteça novamente perante aos nossos olhos”. Mesmo o “novamente” é demais. Pois a ação dramática, na sua expressão mais pura, se apresenta sempre “pela primeira vez”. Não é a representação secundária de algo primário. Origina-se, cada vez, em cada representação, “pela primeira vez”; não acontece “novamente” o que já aconteceu, mas, o que acontece, acontece agora, tem a sua origem agora; a ação é “original”, cada réplica nasce agora, não é citação ou variação de algo dito há muito tempo.

O diálogo

Faltando o narrador, cuja função foi absorvida pelos atores transformados em personagens, a forma natural de estes últimos se envolverem em tramas variadas, de se relacionarem e de exporem de maneira compreensível uma ação complexa e profunda, é o diálogo. É com efeito o diálogo que constitui a Dramática como literatura e como teatro declamado (apartes e monólogos não afetam a situação essencialmente dialógica). Para que através do diálogo se produza uma ação é impositivo que ele contraponha vontades, ou seja, manifestações de atitudes contrárias. O que se chama, em sentido estilístico, de “dramático”, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo o conflito. A esse traço estilístico da Dramática associa-se uma série de momentos secundários, como a “curva dramática” com seu nó, peripécia, clímax, desenlace etc. O diálogo dramático move a ação através da dialética de afirmação e réplica, através do entrechoque das intenções.

Se o pronome da Lírica é o Eu e da Épica o Ele, o da Dramática será o Tu (Vós etc.). O tempo dramático não é o presente eterno da Lírica e, muito menos, o pretérito da Épica; é o presente que passa, que exprime a atualidade do acontecer e que envolve tensamente para o futuro. Sendo o pronome Tu o do diálogo, resulta que a função linguística é menos expressiva (Lírica) ou comunicativa (Épica) que apelativa. Isto é, as vontades que se externam através do diálogo visam a influenciar-se mutuamente. Sem dúvida, também as funções expressiva e comunicativa estão presentes – particularmente com relação ao público – mas com relação aos outros personagens prepondera o apelo, o desejo de influir, convencer, dissuadir.

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Texto dramático e teatro

Como o texto dramático puro se compõe, em essência, de diálogos, faltando-lhe a moldura narrativa que situe os personagens no contexto ambiental ou lhes descreva o comportamento físico, aspecto etc., ele deve ser caracterizado como extremamente omisso, de certo modo deficiente. Por isso necessita do palco para completar-se cenicamente. É o palco que o atualiza e o concretiza, assumindo de certa forma, através dos atores e cenários, as funções que na Épica são do narrador. Essa função se manifesta no texto dramático através das rubricas, rudimento narrativo que é inteiramente absorvido pelo palco. Fortes elementos coreográficos, pantomímicos e musicais, enquanto surgem no teatro declamado constituído pelo diálogo, afiguram-se por isso em certa medida como traços épico-líricos, já que a cena se encarrega no caso de funções narrativas ou líricas, de comentário, acentuação e descrição que não cabem no diálogo e que no romance ou epopeia iriam ser exercidas pelo narrador. O paradoxo da literatura dramática é que ela não se contenta em ser literatura, já que, sendo “incompleta”, exige a complementação cênica.

FONTE: ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 15-35.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• Teoricamente, as relações da literatura com a história e a sociedade remontam ao embate sobre a mimese entre Platão e Aristóteles.

• O conceito de verossimilhança, ou seja, o que poderia acontecer em vez de o que aconteceu, fundamenta, para Aristóteles, a diferença entre literatura e história.

• Teóricos contemporâneos da literatura e da história compreendem ambas como narração, adaptando categorias da teoria literária para a análise do discurso histórico.

• A criação ficcional, especialmente a narração, constitui um impulso humano, e se estende a uma infinidade de dimensões sociais.

• A relação entre a literatura e a realidade, incluindo a história e a sociedade, funciona de forma singular, uma vez que a literatura não referencia direta e imediatamente o mundo.

• A literatura permite pensar sobre o mundo na medida em que o distanciamento previsto entre a representação literária e as nossas representações do mundo possibilita apreciar, conhecer e questionar nossas representações.

RESUMO DO TÓPICO 3

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AUTOATIVIDADE

1 Leia o conto “O arquivo”, do escritor brasileiro Victor Giudice (1934-1997), para quem “a ficção parece absurda porque é a realidade despojada de todas as mentiras”, e reflita sobre as relações entre a literatura e a realidade, a literatura e a sociedade. O conto é verossímil? É realista? O que e como ele representa e significa a nossa realidade?

2 “O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde”.

FONTE: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 89. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Considerando o texto acima, assinale a opção correta:

a) ( ) O narrador é homodiegético, narrando as agruras da seca no sertão brasileiro em primeira pessoa.

b) ( ) Na passagem “A seca aparecia-lhe como um fato necessário”, o autor emprega o discurso indireto livre.

c) ( ) No trecho “tinha o coração grosso”, o “coração grosso” se refere ao coração do pirralho que Fabiano desejou matar.

d) ( ) O excerto, narrado em terceira pessoa, trata dos sentimentos de Fabiano em relação a seu filho.

e) ( ) O autor acredita que a seca é um fato necessário.

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