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228 4 2003 verve, 4: 228-263, 2003 * Mestre em Ciências Socias pela PUC-SP e integrante do Centro de Cultura Social de São Paulo. errico malatesta — revolta e ética anarquista nildo avelino* O anarquismo em sua gênese, em suas aspirações, em seus métodos de luta não está necessariamente vinculado a nenhum sistema filosófico. O anarquismo nasceu da re- belião moral contra as injustiças sociais. A partir do mo- mento em que aqueles homens que se sentiram como sufo- cados pelo ambiente social em que estavam obrigados a viver e cuja sensibilidade caiu ferida diante da dor alheia, e ante a sua própria, e em que estes homens se convence- ram de que grande parte da dor humana não se deve fatal- mente a inexoráveis leis naturais ou sobrenaturais, senão que provém de fatos sociais que dependem da vontade hu- mana — então se abriu o caminho que devia levar ao anarquismo. Errico Malatesta, Pensiero e Volontà, 01/09/1925

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verve, 4: 228-263, 2003

* Mestre em Ciências Socias pela PUC-SP e integrante do Centro de CulturaSocial de São Paulo.

errico malatesta — revolta e éticaanarquista

nildo avelino*

O anarquismo em sua gênese, em suas aspirações, emseus métodos de luta não está necessariamente vinculadoa nenhum sistema filosófico. O anarquismo nasceu da re-belião moral contra as injustiças sociais. A partir do mo-mento em que aqueles homens que se sentiram como sufo-cados pelo ambiente social em que estavam obrigados aviver e cuja sensibilidade caiu ferida diante da dor alheia,e ante a sua própria, e em que estes homens se convence-ram de que grande parte da dor humana não se deve fatal-mente a inexoráveis leis naturais ou sobrenaturais, senãoque provém de fatos sociais que dependem da vontade hu-mana — então se abriu o caminho que devia levar aoanarquismo.

Errico Malatesta, Pensiero e Volontà, 01/09/1925

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Errico Malatesta é, sem dúvida, uma das referênciasinternacionais do movimento anarquista, figurando en-tre aquelas vozes que deram ao anarquismo seu corpode concepções e práticas históricas. Juntamente comProudhon, Bakunin e Kropotkin, Malatesta forma o quar-teto que “pensou” o anarquismo, pesem as valiosas equase desconhecidas contribuições de William Godwine Max Stirner, e reservou para as gerações futuras umcerto número de práticas com as quais os grupos e indi-víduos pautaram sua atuação.

Conhece-se algumas razões da pertinência históri-ca desse quarteto.

Proudhon, o tipógrafo de Besançon, produziu a obraque o tornou o revolucionário mais conhecido de toda aFrança: O que é a Propriedade? Ou estudos acerca do prin-cípio do direito e do governo, em 1840. A resposta entusi-ástica se tornou a máxima revolucionária mais famosado século XIX: “É o roubo! E, implicando a negação dapropriedade na negação da autoridade, deduz-se imedi-atamente de minha definição este corolário não menosparadoxal: a verdadeira forma de governo é a anarquia”1.Ao contrário da tradição socialista de sua época,Proudhon concebeu algo completamente original em re-lação àquilo que ofereceram as concepções do saint-simonismo e pela tradição autoritária remanescente dojacobinismo; com efeito, ele proporá algo novo: inventouuma concepção antiestatal de gestão econômica, esca-pando da moda de sua época e dos prejuízos dela advindos.O que tornou possível para Proudhon esse gestoinventivo? Não se trata de responder nesse artigo a essapergunta; mas, ela situa-se naquilo que podemos cha-mar de problematização do pensamento ou, em todo caso,na maneira pela qual verdades “menores” colocam emquestão aquilo que até então era tido por verdadeiro; namaneira como saberes descentralizados e não-hierar-

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quizados, questionam, interrogam e, como que lançandoum desmentido, retiram sempre os efeitos de poder pe-los quais o verdadeiro era legitimado. Trata-se de umpensamento que não nasce dos conceitos, mas da sua ne-gação e da declaração da sua insuficiência diante da vida;simultaneamente, é um pensamento que parte intuiti-vamente de um imediato sentimento da vida para depoisdevolvê-lo “teoreticamente”. O que está em jogo, portan-to, é resolver o problema da vida, ao qual tudo o mais deveorientar-se para sua solução. “Um dia perguntei-me: Porque tanta dor e miséria na sociedade? Terá o homem deser eternamente infeliz? E, sem me deter nas explica-ções dos empreendedores de reformas, que atribuem àmiséria geral, uns à imperícia do poder, outros aos cons-piradores e aos motins; outros ainda à ignorância e àcorrupção gerais; cansado dos combates intermináveisentre a tribuna e a imprensa, quis eu próprio aprofundaro problema. Consultei os mestres da ciência, li cem vo-lumes de filosofia, direito, economia política e história; equis Deus que vivesse um século em que tanta leiturame fosse inútil!”2.

Bakunin foi um jovem entusiasta da esquerdahegeliana que penetrou nos segredos da filosofia alemãentre os anos de 1835-1836; com efeito, “esta foi paraBakunin então uma realidade, uma verdade que podiasituar-se no lugar ocupado pelas supostas verdades re-ligiosas”3. Acreditou, com isso, na possibilidade da com-pleta expansão da Liberdade e Solidariedade no mundointeiro e em pouco tempo passou a ser o revolucionáriomais temido da burguesia européia, o conspirador in-cansável da ordem pública e o combatente de todas asbarricadas; o revolucionário sobre quem pairava a im-pressão de que no “primeiro dia da revolução é uma ver-dadeira jóia, mas no dia seguinte deve ser fuzilado”4; dequem o general da Revolução de 1848, Flocon, teria de-

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clarado que “se houvesse na França trezentos homenscomo Miguel Bakunin, todo governo seria impossível”5.Um homem que tendo ainda conhecido de perto o terrí-vel poder do czar russo Nicolau I, o encarceramento eevasão da sua tenebrosa fortaleza de Pedro e Paulo, tor-nou-se uma lenda para os círculos operários europeusdo final do século XIX. E foi exatamente com uma des-crição lendária que Zola a ele se referiu num dos seusromances: “Besteiras! Mas que seja... Aliás, essa tal deInternacional vai funcionar mesmo, dentro em breve.Ele está tratando disso”. “Ele quem?”. “Ele!” Esta últimapalavra fôra pronunciada a meia voz, com fervor religio-so, em direção ao Oriente. Falava do mestre, de Bakunin,o exterminador. “Só ele pode, tem força para isso — con-tinuou. Esses teus sábios são uns idiotas com suas teo-rias da evolução. Dentro de três anos a Internacional,sob as ordens de Bakunin, vai esmagar o velho mun-do”6.

Kropotkin foi a grande personalidade internacional-mente reconhecida pela comunidade científica por suaspesquisas na Sibéria em geografia e geologia, realiza-das para a Sociedade de Geografia Russa, mantendoestreita relação com a Geographical Society, colaborandona imprensa especializada de sua época como oGeographical Journal, The Nineteenth Century e a BritishEncyclopedia; “poeta da ciência”, como dirá deleMalatesta, a quem se deve o desmentido das teorias dodarwinismo social de Huxley. Também o “príncipe” doanarquismo, para mencionar o termo bastante inapro-priado lançado pelo historiador Woodcock; em todo caso,foi certamente o “intérprete da utopia anarquista” maislido pelos círculos operários, artísticos e intelectuais,nas regiões onde a cultura anarquista preponderou. Aesse respeito, pode-se citar como exemplo o folheto porele escrito em 1881, “Aos Jovens”, de grande circulação

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e influência, traduzido para doze idiomas e levado paraos países da América do Sul e para os Estados Unidos7.Também autor da obra, provavelmente a mais celebra-da no meio anarquista, A conquista do pão, de 1892, emque buscou as bases científicas ao slogan do “bem estarpara todos”, erguendo em teoria a solidariedade entre oshomens e desenvolvendo os princípios morais da socie-dade futura. Kropotkin encontrou para o anarquismouma justificação científica, operando em seus postula-dos uma sistematização sem precedentes e cuja impli-cação foi um afastamento do problema da vida. Disseque “a ciência contemporânea conseguiu deste modoum duplo objetivo. Por um lado deu ao homem uma pre-ciosa lição de modéstia, ensinado-lhe que é tão-somen-te uma partícula infinitamente pequena do universo.Com isso, o retirou de seu estreito e egoísta isolamen-to. Dissipou sua ilusão de crer-se centro do universo eobjeto da preocupação especial do criador. Ensinou-lheque sem o grande Todo, nosso “Eu” não é nada e quepara determinar o “eu” um certo “tu” é imprescindível”8.

Malatesta foi um jovem estudante de medicina queinterrompeu os estudos para dedicar a vida ao movimen-to anarquista; homem de poucos escritos, de ação co-medida, mas de grande influência entre aqueles comquem conviveu e de incansável militância. Manteve açãoativa na Internacional e se tornou mundialmente co-nhecido, não por algum sistema de idéias, mas, parado-xalmente, pelas polêmicas sustentadas com democra-tas, socialistas, comunistas e anarquistas, pelo substratopedagógico e ético que essas polêmicas contém e pelasensibilidade política que elas transmitem. Ao contrá-rio de seus predecessores, não valorizou nem a ciência,nem a filosofia, mas inventou uma concepção que ficouconhecida como voluntarismo anarquista que postulou o

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anarquismo como um estilo de vida em que se reclamauma atitude diante da autoridade.

É preciso reconhecer que há entre esses homensdiferenças, muitas vezes, insuperáveis. É preciso verque o anarquismo, embora possa ser concebido como“um conjunto de postulados básicos convergentes”9, noseu desenvolvimento histórico há pouca ou quase ne-nhuma linearidade, mas há alguma descontinuidade. Epenso que essa descontinuidade é fundamental paraentendê-lo de uma forma mais libertária e mais anár-quica, evitando a celebração unitária e reducionista dasteorias totalizantes.

Malatesta se diferenciou dos outros militantes anar-quistas que procuraram fundamentar suas premissassocialistas libertárias ora na razão (como Godwin), oranas leis sociais (como Proudhon), ora num certoevolucionismo (como Kropotkin); a singularidade deMalatesta reside no fato dele ter buscado a validade daproposta socialista libertária em fundamentos éticos-políticos, ou seja, no movimento real dos indivíduos edas associações de indivíduos. Há em Malatesta umamenoridade10 em relação aos seus predecessores e con-temporâneos; uma menoridade, entretanto, que não éda ordem da teoria: seu pensamento é inseparável desua ação e sua conduta é resultante de seu amplo envol-vimento com a realidade de sua época. Malatesta convi-veu com os últimos anos da vida de Bakunin, conheceuos terrores da repressão à Comuna de Paris, assistiu àcriação e à extinção da seção italiana da Primeira In-ternacional, a formação da Segunda, o triunfo da Revo-lução Russa e a sua posterior decadência. Viveu e mor-reu sob o fascismo. Essa trajetória, da qual os limitesdesse artigo não nos permitirão dar conta, é todavia oque possibilita ver em Malatesta “um exemplo de

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integração de teoria e prática, raro nos dias que cor-rem”11.

Tudo ocorre como se o anarquismo, partindo comProudhon de um intuitivo sentimento de vida, formu-lando-se como solução para o problema da vida, ganhas-se em extensão com a ação e o sentido dado por Bakunine, posteriormente, em sistematização pela interpretaçãode Kropotkin, o que vai provocar um certo esvaziamentoético de seus postulados, um certo afastamento daquelaimediata intuição da vida que lhe é originário. Final-mente, a anarquia é retomada dentro de uma dimen-são ética-política com Malatesta. É o que este artigo pre-tende esclarecer.

Descontinuidades

Até a influência de Bakunin a partir de 1868, a AIT(Associação Internacional de Trabalhadores), fundadaem 1864, tem como seus principiais elementos consti-tutivos os sindicalistas britânicos e os mutualistas fran-ceses unidos pelo desejo de “melhorar” as condições daclasse operária no seio da sociedade existente e no des-prezo, principalmente entre os franceses, pela luta polí-tica. As razões dessa “melhoria das condições” podemser buscadas naquela “prudência” própria a Proudhon eque deve ser atribuída à sua concepção de progresso. Acorrespondência que jogou Proudhon e Marx em cam-pos inimigos ressalta não apenas a diferença de cará-ter entre os dois socialistas, como também a posição deambos em relação ao socialismo. Marx, em sua carta,manifestou a necessidade do que chamou de um coupde main, o “momento de ação” ou choque revolucioná-rio; Proudhon lhe respondeu que “nossos proletários têmtal sede de compreensão que seríamos por eles muito

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mal recebidos se nada lhes déssemos a beber senão san-gue”12.

Para Proudhon “quem diz revolução diz necessaria-mente progresso” e isso não apenas retira o valor dequalquer Revolução como ruptura brusca, mas ainda acoloca num campo negativo como apelação à força e comoarbitrariedade e, neste sentido, como contradição e con-tra-revolução. Para ele, o progresso nunca se apresentacomo uma repentina metamorfose, e sim como prolon-gamento e conseqüência das etapas do desenvolvimen-to que a precede; o “golpe” não é mais que um movi-mento sucessor da velha ordem pela nova ordem que sedescobre pelo corte e pela descontinuidade. É por issoque a “pregação” revolucionária é para ele uma arrogân-cia desmedida, onde: “acumular os ressentimentos e,se é possível fazer essa comparação, armazenar, porcompreensão, a potência revolucionária, é condenar-sea franquear de um salto todo o espaço que a prudênciaordena recorrer no detalhe e pôr, no lugar do progressocontínuo, o progresso em saltos e tremores”13.

Essas foram as noções que animaram a ala mutua-lista francesa e suíça da Internacional, as mais expres-sivas até a chegada de Bakunin.

O enfraquecimento dessa tendência pôde ser perce-bido já em 1867. No congresso de Lausanne, as tendên-cias de melhoria das condições abrandaram sensivel-mente e a Internacional se viu empurrada pela forçados acontecimentos em direção ao coletivismo inspira-do por Bakunin. Já não se trata de melhorar as condi-ções e reformar a sociedade existente, mas de destruí-la para construir outra nova, e assim o coletivismo sedesgarra e se impõe progressivamente, enquanto os“progres-sistas”, em cada greve declarada, perdem ter-

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reno em proveito dos partidários da ruptura revolucio-nária.

Bakunin terá um papel eminente nesse processo deradicalização da Internacional e com ele o anarquismoviverá sua “época das revoluções” nesse contexto de vi-cissitudes do movimento operário europeu que compre-ende o período de 1830-1870, cujo ápice pode ser vistona aparição da 1ª Internacional e seu declínio na re-pressão à Comuna de Paris. É sem dúvida um dos perío-dos mais turbulentos da história do movimento operá-rio. Nesta época a Europa é constantemente convulsio-nada por revoltas e insurreições populares que são emsi a demonstração da força de sua organização. O gran-de tremor que iria sacudir o mundo em 1848 havia des-tronado a monarquia francesa e implantado o governoprovisório. Disse Bakunin: “me levantava as quatro, àscinco horas da madrugada e me deitava as duas, per-manecendo todo o dia em pé, assistindo as assembléi-as, reuniões, clubs, manifestações, passeios ou demons-trações; em uma palavra, absorvia por todos os meussentidos e por todos os meus poros a embriaguez da at-mosfera revolucionária”14.

É desta forma que até 1870 o efervescente clima re-volucionário europeu, com o crescimento espantoso daAIT e sua radicalização sem precedentes sob a influên-cia de Bakunin, acalentou nos militantes a certeza dagreve geral, como o estopim para a Revolução Social. Ascrescentes greves a partir de 1866 foram seguidas deuma adesão em massa à Internacional; em Lyon se dis-se, após um episódio grevista, que “não foi a Internaci-onal quem empurrou os operários para a greve, e sim agreve que os lançou na Internacional”15. Durante o Con-gresso de Genebra, em 1866, o número de adesistas naFrança não ultrapassou 500; em 1868 eram apenas2.000; mas, em 1869, e nos primeiros meses de 1870,

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os inscritos somavam 245.000 membros16. Nesta alturao proudhonismo “esfriou” e prevaleceu o coletivismoinspirado por Bakunin. Toulain, um dos mais expres-sivos proudhonianos, cedeu lugar a Eugène Varlin, umdos maiores expoentes do anarco-sindicalismo francês,considerado o “antecedente vivo de Pelloutier, Griffulhes,Merrheim, Monatte, etc.”17.

No entanto, em 15 de Julho de 1870 foi anunciada aguerra franco-prussiana. Paris foi encerrada num cír-culo de fogo e Napoleão III rendeu-se em 2 de Setembro.Ao receber a notícia, o Império se desintegra e procla-ma-se a República. Em 28 de março de 1871 é procla-mada a Comuna com 229.000 votos.

Em maio, Thiers reúne 130.000 soldados que afogamem sangue as barricadas dos comunardistas. A seçãofranco-suíça da Internacional fornece muitos dos seuscombatentes. Um dos mais célebres entre os jovens com-batentes internacionalistas foi Eugène Varlin. Comba-teu em todas as barricadas da Comuna e, quando nãorestou nenhuma, abandonou-se ao azar. Reconhecido edenunciado por um padre na Place Cadet foi detido pelotenente Sicre que o conduziu de mãos atadas às costas.O jovem membro da Internacional foi, segundoLissagaray, um dos maiores historiadores da Comuna,o nervo das associações operárias do final do Império.Incansável, modesto, um dos primeiros que em 18 demarço trabalhou durante toda a Comuna e esteve emsuas barricadas até o fim. A sua morte é terrível e mar-cará profundamente a geração anarquista seguinte:“Aquele Varlin que arriscara a vida para salvar os re-féns da rue Haxo foi arrastado mais de uma hora pelasruas escarpas de Montmartre. Sob uma chuva de gol-pes, sua jovem cabeça meditativa, que só tivera pensa-mentos fraternos, converteu-se em montão de carneinforme, com um olho pendendo da órbita. Quando che-

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gou à rue des Rosiers, ao estado maior, já não caminha-va, era carregado. Sentaram-no para o fuzilamento. Ossoldados destroçaram o cadáver a coronhadas. Sicre rou-bou seu relógio e se enfeitou com ele”18.

Cem mil pessoas caíram vítimas da repressão àComuna. Thiers, defendendo o “máximo rigor”, proferiua frase que se tornou célebre: “O socialismo estaria aca-bado por muito tempo”19. De fato, o afogamento em san-gue da Comuna foi igualmente o extermínio do movi-mento revolucionário francês; com ela, a seção da In-ternacional francesa, a mais expressiva, desaparecudeixando-a à disposição das manobras de Marx eEngels20, que culminou na expulsão, em setembro de1872, durante o congresso de Haia, da ala anti-autoritá-ria e federalista representada por Bakunin.

Será preciso uma análise mais detalhada para se ti-rar maiores proveitos do impacto que a feroz repressãoque se abateu sobre o movimento operário nesta déca-da de 1870 imprimirá nos corações dos militantes. En-tretanto, podemos supor que tenha sido o bastante parauma reavaliação de suas táticas, o que pôde ser ouvidoanos mais tarde nas palavras de Reclus, ex-presocomunardista, ao declarar que “aqueles dentre nós quecombateram pela Comuna conhecem essas terríveisressacas da maré humana. Na partida para os postosavançados, acompanhavam-nos saudações comoventes,lágrimas de admiração brilhavam nos olhos daquelesque nos aclamavam, as mulheres agitavam seus len-ços carinhosamente. Mas qual foi a acolhida dos heróisda véspera que, depois de ter escapado do massacre,retornaram como prisioneiros entre duas fileiras de sol-dados? Em muitos bairros, o povo compunha-se dos mes-mos indivíduos; mas que contraste absoluto em seussentimentos e em sua atitude! Que conjunto de gritos ede maldições! Que ferocidade nas palavras de ódio. [...]

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[Concluindo que] Já não basta lançar-se furiosamenteà batalha [...]. A primeira condição para o triunfo é noslivrarmos da ignorância”21.

Daqui por diante, os métodos de ação anarquistassofreriam uma sensível mudança, sobretudo com a atu-ação da conhecida corrente anarco-comunista represen-tada por Kropotkin, Reclus e Malatesta. Os chamados “àRevolução”, a ação de sublevar as massas descontentese incitá-las ao motim foram, certamente não abando-nados, mas relativizados pela geração seguinte de anar-quistas. Um certo ingrediente ético-pedagógico seria in-tensificado nos métodos anarquistas com objetivo de fo-mentar não apenas a revolta, mas “forças conscientes”.

Um outro impulso seria dado ao anarquismo numadireção distinta daquela que inspirava Bakunin. Comefeito, essa jovem geração de anarquistas que se decla-rará comunista, acolherá não apenas o encanto incen-diário de Bakunin, como também a amarga lição dostempos.

A emergência de Errico Malatesta

A pessoa

Neste contexto é que emerge a figura de ErricoMalatesta. Nascido em 14 de dezembro de 1853, em San-ta Maria Capua Vetere, uma cidade pouco habitada per-to de Nápoles, de uma família pertencente à pequenaburguesia. Conhece Saverio Merlino, com quem pole-mizou mais tarde, quando se dedicou aos estudos clás-sicos em uma escola religiosa. Aos quatorze anos, es-creveu uma carta insolente ao rei Victor Manuel II queo levou à prisão onde ficou detido um dia. De volta àfamília, o pai, de formação liberal, tentou dar-lhe liçõesde moderação. Não pretendia segui-lo e deste ouviu as

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seguintes palavras: “Pobre filho meu, sinto em dizer-lhe, porém acabarás na forca!”22. É provável que o im-pulso antimonarquista e até mesmo seu republicanismo“precoce” fosse devido ao fato de ter contemplado, aindana sua infância, os efeitos do absolutismo dos Bourbonse a epopéia garibaldina na sua cidade natal, palco deviolentos enfrentamentos. Já em Nápoles, fora da Fa-culdade de Medicina, Malatesta participou das manifes-tações populares motivadas pela unificação italiana, de-clarando a Max Nettlau, “Como republicano contempleipela primeira vez o interior de um cárcere da monar-quia”23; foi republicano desde os quatorze anos e mante-ve vivas simpatias por Giuseppe Mazzini, escrevendoem 1926, aos 73 anos que, “no fundo de nosso coração enos sentimentos que ele nos inspirou, fomos mazzi-nianos como Mazzini foi internacionalista”24.

Os veteranos da sociedade secreta mazziniana ob-servavam o comportamento de seus candidatos ao in-gresso durante um certo tempo, sendo depois proposta aadmissão; foi informado a Mazzini que Malatesta tinhaum espírito “independente, propício à desobediência,pouco disposto em submeter-se à rigorosa disciplinaintelectual e moral”, teve seu pedido de adesão aAlleanza Republicana Universale negado, o que o lan-çou às fileiras da Internacional, em 1871, conhecendo,entre outros, Giuseppe Fanelli.

Dedicou-se de corpo e alma à seção italiana, inter-rompendo seus estudos de medicina na Universidadede Nápoles. Atirou seu patrimônio na propaganda e naorganização anarquistas. Dirigiu-se ao congresso deSaint-Imier, em 1872, porém antes encontrou-se, pelaprimeira vez, com Bakunin, em Zurique, onde perma-neceu dezesseis dias. A relação entre os dois passou aser estreita e freqüente fazendo do jovem italiano umsecretário ocasional de Bakunin. Com efeito, observou

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Nettlau que: “Bakunin viveu conosco por que sobrevi-veu durante mais de meio século na modesta figura deMalatesta”25.

Não obstante, algumas distinções marcarão os mé-todos de ação entre Bakunin e Malatesta. Ao contráriode Bakunin, Malatesta não foi o “incendiário”, o propa-gandista poderoso, ardente e irresistível ao qual se atri-bui a personalidade de Bakunin. Malatesta, veremos,também tinha o “diabo no corpo”, mas a fascinação e oentusiasmo que exerceu era de outra natureza. Não lan-çou mão de grandes palavras, tampouco utilizou umaliteratura rebuscada e eloqüente. Segundo Luigi Fabbri,“seu melhor livro, Malatesta o escreveu com sua pró-pria vida”26.

Em Malatesta isso é enfático. Fabbri recorda o diaem que o conheceu como sendo “o da impressão maisforte de sua longínqua juventude”. Neste primeiro en-contro, iniciou com ele uma discussão num sábadoque durou até às três da manhã do dia seguinte, in-terrompida para descansar e despertar às sete damanhã para continuar a conversa que terminou aoanoitecer. Depois disso, a anarquia que lhe era a fémais radiante de sua primeira juventude, tornou-sesaber vital.

Malatesta convenceu mais pela sua pessoa do quepor uma lógica aparente. Ao falar, o interlocutor era atra-ído não por um palavreado rebuscado, mas por um des-pertar das “melhores qualidades”. Esse “fundo” de sen-sibilidade política a tudo que é intolerável e inaceitável,que podemos chamar “racionalidade estética”, contidonas palavras de Malatesta, é de onde resultou sua efi-cácia persuasiva que provocou enorme influência noslugares mais díspares e antagônicos. A ex-rainha deNápoles, Maria Sofia, nutriu profunda impressão por

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Malatesta; noutra ocasião Malatesta, durante um pro-cesso, fez correr as lágrimas de alguns juízes e policiaisao falar das famílias operárias. Fabbri menciona como ojuiz Alípio Alippi, católico e reacionário, lhe falou sobreMalatesta, a quem tinha conhecido por razões de ofício,declarando que “se todos os anarquistas tivessem sidocomo Malatesta, a anarquia teria podido ser uma reali-zação da palavra de Cristo”27. E quando, em 1913-14, aosguardas encarregados em vigiar dia e noite a porta desua casa, foi perguntado se ele não escaparia duranteseu revezamento, eles responderam que: “Um homemtão bom como ele não pode fazer nenhum mau”.

Do mesmo modo aconteceu durante um encontro emPersieto no ano de 1920. O pequeno coreto da praça re-servado para seu discurso, foi cercado por uma numero-sa patrulha de carabineros muito bem armados. “Pare-cia uma provocação!”. Perguntou-se a Malatesta se nãoera necessário exigir a saída da força pública: “Não —respondeu —, deixem-nos tranqüilos; também falarei pa-ra eles”. Começou falando da miséria das famílias cam-ponesas de Itália dentro das quais o Estado recruta, apro-veitando-se do impulso da fome de que padece, a maio-ria dos carabineros e agentes de polícia; falou das mãescujos filhos muitas vezes não voltam a ver novamente.Assustado pela impressão das palavras de Malatesta emsua tropa, o tenente acreditou mais prudente fazê-la saire deixar o meeting se desenvolver sem vigilância algu-ma28.

Pesando sobre Malatesta o ammonizione, espécie deliberdade vigiada, encontrou em 1876, num bairro daperiferia de Nápoles, um antigo diretor de um cárcerede Trani, que o recebeu com grande alegria. Malatestacontou-lhe que era perseguido pela polícia e não sabiamais onde esconder-se para passar a noite: “Vem à mi-nha casa — lhe disse Battistelli —; te esconderei”. “On-

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de? No Cárcere!” [exclamou Malatesta] “Malatesta acei-tou. Assim foi que, por alguns dias, para não ser encar-cerado, o temido internacionalista se refugiou... no cár-cere!”29.

Fabbri recorda como Malatesta se levantou contra umcompanheiro, fazendo-o corar e calar-se, por ter faladocom pouca consideração a respeito de uma prostituta. Eao passar seus últimos anos na Itália fascista, viveuem estreita humildade devido à ajuda de companheirosdo exterior. Porém, foi ainda essa ajuda que tambémlhe permitiu auxiliar, uma vez e outra, em socorro dealgum desventurado além da fronteira, anarquista ounão.

Certa vez, num momento de crise quando morou emLondres, os amigos o aconselharam a vender coisas nacidade. Adquiriu um carrinho de mão e alguns doces esaiu. No primeiro dia aproximou-se um menino mal ves-tido que lhe pediu um doce. Malatesta deu-lhe, seguidode carícia afetuosa. Aos poucos chegaram mais e maiscrianças até que Malatesta se viu cercado delas, queganharam todos os doces. Ao ser perguntado porKropotkin como andava o novo ofício, respondeu sor-ridente: “Clientela não me faltaria, porém me faltam osmeios de adquirir as mercadorias”30.

É preciso insistir que essa disposição para a genero-sidade, que não deve ser confundida com fraqueza, setrata de uma bondade viril. Se trata de uma capacidadede julgamento e de diferenciação que repousa sobre asensibilidade. Isso era para ele nada mais que anarquia,era arma de luta e fermento de rebeldia. Para Malatesta aexistência anarquista não se limita à persuasão lógica eteórica acerca das injustiças da organização social; nãobasta a simples manifestação do convencimento de umamelhor organização. O valor anarquista reside num sen-

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timento que se pode ter pela vontade. Esse sentimentoé a generosidade voluntária e deliberada pelo próximo,pelo desejo do bem-estar alheio e pela sua liberdade:“Que não nos venham com ‘filosofias’ [dizia] a nos falarde egoísmo, altruísmo e outros quebra-cabeças. Estamosde acordo: somos todos egoístas, todos buscamos nossasatisfação. Porém é anarquista aquele cuja máximasatisfação é a de lutar para o bem de todos”31.

Para Malatesta o ódio à opressão e o desejo de poderexpressar a própria personalidade não bastam para fa-zer de alguém anarquista; essas aspirações devem seracompanhadas pelo desejo de que todos desfrutem deigual liberdade, e da junção destas surge um estilo como qual não se obtém mais que rebeldes anarquistas.

Malatesta fez do sentimento de simpatia uma posi-ção política que para ele era o mesmo valor que a solida-riedade para Kropotkin, mas em oposição aberta a estese recusou transformá-lo em arte de teoria. Esse senti-mento o fez pronunciar que se dispunha a “sacrificartodos os princípios para salvar um homem” e que “separa vencer se devesse elevar a forca nas praças, prefe-ria perder”.

Mesmo pesando sobre as costas uma condenação, em1884, dirige-se a Nápoles para ajudar no combate a umaepidemia de cólera; segundo consta, seus conhecimen-tos de medicina fizeram com que o setor que orientoutenha registrado mais curas, pelo que lhe foi endereça-do um despacho oficial de agradecimentos pelo empe-nho. Malatesta respondeu: “a verdadeira causa da cóle-ra é a miséria e o único remédio eficaz para evitar oregresso da epidemia era a revolução social”.

É preciso mencionar ainda o fato de Malatesta terabandonado a faculdade de medicina muito cedo, e deter, aos vinte anos, aprendido a profissão de mecânico

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eletricista na oficina de seu amigo internacionalista,Agenore Natta, profissão que manteve até a morte. Alamentar fica apenas o fato de Malatesta nunca ter seocupado em sistematizar seu pensamento. Fabbri su-blinhará que seu maior impedimento material foi que de-veu trabalhar sempre para viver. Desde então, Malatestase entregou a um trabalho extenuante.

Durante seu exílio em Londres, Pietro Gori encon-trou Kropotkin para visitarem Malatesta; ao chegarem,viram-no suspendendo um letreiro de uma firma comer-cial. Kropotkin, então, exprimiu: que homem admirável!,ao que acrescentou Gori: “Sim, Malatesta é admirável;porém que triste mundo é esse que obriga a uma inteli-gência tão alta a gastar tempo, energia e saúde em umtrabalho como esse, que tantos outros saberiam reali-zar, impedindo-lhe de efetuar aquilo que só ele sabe fa-zer! E que grande erro de nosso movimento não acharum modo de permitir a este homem cumprir aquele tra-balho, mais útil à humanidade, de que tão capaz ele é!”32.E foi ainda Fabbri quem o encontrou em Roma, em 1923,já com setenta anos, na mesma circunstância que fezGori pronunciar essas palavras.

De fato, para Malatesta viver com menos sacrifíciosdependia da recusa voluntária aos privilégios que lhetrouxesse sua grande inteligência; poderia ter colecio-nado títulos e adquirido status sem, no entanto, aban-donar suas posições anarquistas tal como fizeram seusvelhos amigos Kropotkin e Reclus; era, porém, contrá-rio ao conforto da profissão literária e desprendido dosluxos da vida.

Dentre os grandes “teóricos” do anarquismo interna-cional, e aqui poderíamos dizer Godwin, Proudhon,Bakunin e Kropotkin, Malatesta foi o anarquista de car-ne e osso; jamais foi um “revolucionário especialista”,

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nem santo, nem herói, nem sequer um homem “pre-destinado”; foi um companheiro entre os outros. Jamaisimpôs seus argumentos sob o peso da sua personalida-de ou em nome de qualquer outra verdade científica oufilosófica. Evitou a idéia vulgarizada do “super-homem”,do culto à personalidade e durante o congresso de Ber-na, em 1876, Malatesta protestou contra o costume dechamarem a si mesmo de “bakuninistas”: “por que nãosomos, já que não compartilhamos de todas as idéias prá-ticas e teóricas de Bakunin, e sobretudo por que segui-mos as idéias e não os homens, e nos rebelamos contra ocostume de encarnar um princípio em um homem”33. Porisso Malatesta jamais se utilizou de truques oratórios,sabendo fazer transbordar em seus escritos uma lógicasensível e de sentido comum.

Sobre o homem que foi Malatesta, é preciso dizer ain-da que se trata da atitude anarquista na sua mais claraexpressão: recusou-se a vincular o anarquismo a qual-quer sistema filosófico ou científico. Anarquia era paraele uma conduta, um modo de vida individual e social,ou, como gostava de dizer, “uma hipótese experimentalaplicada à arte de viver em sociedade”.

A ação

Malatesta conheceu e conviveu com uma galeria degrandes homens. Garibaldi, Mazzini, Marx e Bakuninforam os primeiros mestres de sua juventude; ingres-sou na seção napolitana da Internacional aos dezesseteanos, da qual se tornou secretário no inverno de 1872.Mas foi de Bakunin que recebeu uma forte influência.

No mesmo ano, foi a Zurique encontrar a delegaçãoespanhola que regressava do congresso de Haia, e tam-bém com o próprio Bakunin. Durante inúmeras discus-sões, funda com ele e outros companheiros a Aliança

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dos Revolucionários Socialistas; assistiu o congressoanti-autoritário de Saint-Imier do qual resultou a re-provação das propostas marxistas e autoritárias.Retornou à Itália para assistir a um congresso em Bolo-nha, sendo preso e encarcerado por 54 dias. Ao ser postoem liberdade, pretendeu fazer uma viagem secreta comBakunin para Barcelona, e ao fazer os preparativos, jun-tamente com Cafiero, foi novamente detido por mais seismeses.

A década de 1860-70 foi particularmente repressivana Itália, sobretudo devido às ações dos garibaldinos eda Alleanza de Mazzini; foi então que, em 1874, prepa-rando uma insurreição generalizada, Malatesta percor-reu de Nápoles à Sicília, organizando ações e fornecen-do armamentos. Ao fim dessa revolta, seguiu-se umimenso processo contra ele e outros revolucionários emTrani. Vai para Lugano (Suíça), em 1875, e verá Bakuninpela última vez.

De volta à Itália, Malatesta se envolve em novo le-vante, e é novamente detido juntamente com outros 23revolucionários. Não podendo mais permanecer na Itá-lia, percorre respectivamente Egito, Síria, França, Suí-ça, Bélgica, exilando-se finalmente em Londres, em1881.

Conhece em Genebra, no ano de 1879, Kropotkin, aquem vê com freqüência em Londres; em 1882, irá aoEgito na tentativa de sublevar os árabes contra os ingle-ses. Depois segue, com outros companheiros, paraBuenos Aires, onde manterá uma intensa propagandacoordenada durante os anos de 1885 a 1889, dirigindo ojornal bilíngüe La Questione Sociale e fundando, comoutros companheiros, o sindicato dos padeiros, um dosmais combativos. No ano seguinte vai à Patagônia dedi-

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car-se ao garimpo, tentando obter ouro para a propagan-da anarquista34.

Ao regressar à Europa, no verão de 1889, Malatestaencontrou o anarquismo debilitado e o socialismo par-lamentarista fortalecido. Max Nettlau observará que nadécada de 1880 o anarquismo se resumia a três con-cepções: o individualismo americano de Tucker, o cole-tivismo espanhol e o comunismo franco-italiano35; ascisões resultantes dessas diferenças teóricas reduzirama propaganda anarquista à quase esterilidade. Foi quan-do Malatesta escreveu seu “Appello”, insistindo na ne-cessidade de abandonar todos os “exclusivismos de es-cola” para a formação de associações livres, por livrespactos. Segundo Malatesta, “fora destes extremos nãoteremos razão de dividirmos em pequenas escolas pelofuror de determinar com excesso as particularidades,variáveis segundo o lugar e o tempo, da sociedade futu-ra [...] não é lícito dividirmos por puras hipóteses”36.

As palavras de Malatesta, na época, soaram comoheresias. O ambiente era constituído pelos anarquistasque consideravam como fórmulas definitivas as idéiasde Kropotkin por um lado, e por outro, pelos anarquistasultra-individualistas que se especializaram em atacaros “organizadores” e “moralistas” da anarquia. Os escri-tos de Kropotkin eram considerados como as últimaspalavras da anarquia, e vivia-se um ambiente tranqüi-lamente sem organização e sem relações organizativas.Malatesta, sem polemizar abertamente com Kropotkin,passa a escrever sobre as necessidades da organização.

Suas idéias foram mais bem acolhidas na Itália e naEspanha, onde pronunciou diversas conferências emBarcelona e Sevilha e manteve estreito contato comRicardo Mella.

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Retornou clandestinamente à Itália e fundou no anode 1897, em Ancona, o periódico L’Agitazione, iniciandoa conhecida polêmica com Merlino, contra suas tendên-cias parlamentaristas, que durou um ano.

Foi preso durante uma manifestação em 1898 e con-denado a “domicilio coatto” (desterro) por cinco anosnuma ilha inóspita em Ustica. Isso não estava em seusplanos. Na noite de 09 de maio de 1899, atirou-se naágua com outros companheiros e nadaram até um bar-co próximo da ilha. Parte para os Estados Unidos nomesmo ano, quando polemiza com o anarquista indivi-dualista Giuseppe Ciancabilla e sua publicação L’Aurora.Será vítima de um atentado durante uma conferênciaem Nova Jersey, após uma calorosa discussão com umouvinte que após interrompê-lo várias vezes saca umapistola e o fere na perna. O autor do disparo, imobilizadopor Gaetano Bresci (futuro assassino do rei de Itália,Humberto I), não era anarquista, desmentindo o que seatribuiu muitas vezes a Ciancabilla37.

De volta a Londres em 1900, dirigiu-se a Paris no 1ºde Maio de 1906 aguardando uma grandiosa manifesta-ção, no apogeu do anarco-sindicalismo. Retorna à Lon-dres decepcionado. Estando em sua residência, Fabbri osurpreendeu com a “fé diminuída, que era muita em1897 e até há pouco, no movimento sindicalista”38. EmParis, teve a impressão que o sindicalismo estava emsua fase descendente e que diminuiu, ao invés de au-mentar, a combatividade dos anarquistas; impressionou-lhe o fato de que o vigoroso caráter de lutadores se imo-bilizou e se acomodou nos postos de responsabilidade edireção das organizações sindicais. A hostilidade de re-volucionário só se fazia sentir contra as últimas rodasda engrenagem estatal, enquanto que com os princi-pais responsáveis se discutia afavelmente.

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Malatesta sentiu atenuar-se o espírito de rebeliãono sindicalismo francês, fazendo com que seus militan-tes escolhessem caminhos mais cômodos. Ele estavaconvencido da necessidade dos sindicatos, bem como dasassociações culturais, agrupamentos recreativos, etc.,porém afirmou que tudo isso resulta inútil “sem a lutae a revolta diretas e ativas, sem fatos revolucionáriosconcretos”39. No ano seguinte, durante o Congresso In-ternacional Anarquista de Amsterdã, todos foram toma-dos por uma surpresa geral ao verem Malatesta se oporao sindicalismo tal como era apresentado.

Em 1913, Malatesta resolve voltar à Itália diante dosacontecimentos que levaram à “semana vermelha”.Toma essa decisão pesando-lhe sessenta anos, idadecom a qual muitos revolucionários se retiram da vidapública para dedicarem-se às suas memórias. Funda,juntamente com Luigi Fabbri e César Agostinelle, umdos mais expressivos periódicos de Itália: Volontà. Co-nhece o então diretor da folha socialista Avanti!, BenitoMussolini, de quem dirá “esse homem é revolucionárioapenas no jornal. Não há nada que fazer com ele!”40.

É obrigado a evadir-se novamente para Londres, noano seguinte, onde debaterá abertamente com Kropotkine o grupo dos “quinze” na polêmica contra a guerra queassume a extensão da ruptura pessoal entre os dois ve-lhos amigos. Malatesta retorna à Itália em 1919, emplena ascensão fascista.

Lá é recebido como uma grande figura pública, poruma multidão que o aplaudiu sob bandeiras vermelhasnos bairros populares por onde passava. O Corriere dellaSera dizia que “o anarquista Malatesta é hoje uma dasmaiores personagens da vida italiana. As multidões dascidades correm ao seu encontro e lhe entregam as cha-ves de suas portas, como costumava fazer em outro tem-

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po, só que já não há portas”41. Em Milão, funda o periódi-co Umanità Nova, em 1920.

Foi preso mais uma vez em 1919, juntamente comoutros companheiros fazendo greve de fome em protes-to. Na primeira página o Umanità Nova estampou queMalatesta corria um grande risco de morrer devido suaidade e grande debilidade física. A Itália comoveu-se eocorreram, de imediato, inúmeras greves e atentados.

O fascismo fecha a edição de Umanità Nova. Malatestafazia sua última viagem ao estrangeiro clandestinamen-te, em setembro de 1922, por ocasião das comemora-ções do cinqüentenário do congresso anti-autoritário deSaint-Imier e do qual era o último participante vivo.Nessa ocasião, publica longo artigo lembrando “A Pri-meira Internacional”. Por ocasião de seu 70º aniversá-rio, um grupo de amigos ofereceu a Malatesta os meiosde continuar trabalhando pela causa. Por iniciativa doperiódico Fede!, dirigido por Luigi Damiani, foram reco-lhidos alguns milhares de liras para que o já velho mili-tante pudesse iniciar uma nova publicação regular. Em1º de janeiro de 1924, surge em Roma Pensiero e Volontà(Rivista quindicinale di studi sociali e di coltura generale. Roma,1924-1926), publicação que Malatesta não redigiu comoatividade periodística. Nela se encontram os seus escri-tos mais extensos e, na falta de palavra melhor, maismaduros, relatando suas recordações de Bakunin eKropotkin e delimitando os erros e êxitos destes mili-tantes.

Malatesta passou os últimos anos de sua vida emprisão domiciliar; isso também foi um ato voluntário,pois seu amigo Fabbri lhe havia sinalizado várias vezespara deixar a Itália. Malatesta não quis! Sua oficina ti-nha sido saqueada pelos fascistas, as casas onde fazia

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algum trabalho mecânico eram por eles revistadas, fi-cando limitado a viver da ajuda de seus companheiros.

Mussolini impôs-lhe um duro silêncio. Colocou dian-te de sua porta uma vigilância de 24 horas, e o simplesato de cumprimentar-lhe na rua levava quem o prati-casse a um interrogatório. Era uma figura demais notó-ria para ser fuzilada e muito corajosa para se deixar empaz: foi preciso matá-lo aos poucos!

Quando morreu em 22 de julho de 1932, em Romaaos 79 anos, apenas sua companheira, filha e sobrinhos,puderam acompanhar o féretro. O espectro de sua pes-soa era tal que o comissário de polícia dizia em notaconfidencial que “hoje, o célebre anarquista Errico Mala-testa faleceu, em Roma. Peço que a vigilância sobre oselementos anarquistas e subversivos seja intensifica-da, a fim de se impedir todo e qualquer tipo de manifes-tação. Recomendo a maior atenção, visto que Malatestatinha muitos partidários, há vários anos que aqui seencontrava e fazia uma propaganda eficaz”42.

Os fascistas o enterraram em vala comum e joga-ram sobre sua tumba uma cruz, contrariando os pedi-dos da família para se fazer um enterro ateu.

O pensamento

Malatesta é considerado, com unanimidade, o maisrealista entre aqueles pensadores anarquistas interna-cionais; a atualidade e a contemporaneidade de suasidéias está nesta perspectiva, como se constata nas inú-meras polêmicas que travou dentro e fora do movimen-to anarquista sobre individualismo, comunismo,antimilitarismo, sindicalismo, parlamentarismo, disci-plina, violência, greve, etc. Em todos esses assuntos,seus interlocutores eram surpreendidos pela ducha fria

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do pragmatismo e realismo malatestiano. Nettlau diziaque todos os outros pensamentos “parecem diferenciar-se de Malatesta”, e que embora internacionalmente setenha seguido a figura mais brilhante de Kropotkin,“oxalá depois de sua morte se chegue a compreenderenfim Malatesta!”43.

“Compreender, enfim, Malatesta” significa abdicar deum pensamento único do anarquismo, muito em vogaontem e hoje. Significa entender o anarquismo comoprocesso e devir, e os anarquistas como sujeitos moral-mente autárquicos, que se bastam a si mesmos, compotencialidades associativas. Não nos espanta queMalatesta, ao contrário de seus predecessores, tenhasido odiado pelos anarquistas ansiosos em fazer valerseu ponto de vista; suas opiniões eram tidas como fan-tasias e quimeras e “teve Malatesta que resistir à cres-cente inimizade de quase todas as tendências anarquis-tas”44. Ele foi o principal responsável por manter oanarquismo fora de dogmatismos e comodismos, quehoje, mais do que nunca, deve obter a máxima impor-tância.

Malatesta pronunciou, por ocasião do 50º aniversá-rio da morte de Bakunin, calorosas e não menos durasobservações: “eu fui bakuniniano, como todos os cama-radas de minha geração, infelizmente já distante no tem-po. Hoje, depois de longos anos, não me considero maiscomo tal. Minhas idéias se desenvolveram e evoluíram.Hoje, penso que Bakunin foi muito marxista na econo-mia política e na interpretação histórica. Creio que suafilosofia se debatia, sem conseguir sair, numa contra-dição entre a concepção mecanicista do universo e a féna eficácia da vontade sobre os destinos do homem e dahumanidade”45. Para ele, no momento em que os anar-quistas se rogaram “filósofos” e “científicos”, originou-

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se uma confusão de palavras e idéias nocivas aoanarquismo.

Na polêmica com Kropotkin, o grande anarquistaentusiasta do desenvolvimento científico desse período,por exemplo, Malatesta criticou a confusão que se esta-belece entre ciência e anarquismo. Em sua obra A ciên-cia moderna e a anarquia, Kropotkin tentou fundamen-tar os ideais do socialismo com base em resultados dainvestigação científica. Malatesta, não apenas foi o crí-tico destas concepções mas seguiu outros caminhos.Sem a ambição de ser “teórico” não formulou nenhumsistema. Ao contrário, dizia que se pode ser anárquicosob qualquer sistema filosófico: “há anarquistas mate-rialistas como há outros, como eu, que [...] preferem de-clarar-se simplesmente ignorantes”46. Era anarquistanão por que a ciência indicou, mas por que quis.

Para Malatesta, as ciências e as teorias, sempre hi-potéticas e provisórias, são um meio cômodo de reunire relacionar fatos conhecidos e um instrumento útil paraa investigação, o descobrimento e a interpretação denovos fatos, mas jamais serão a verdade; isso porque aciência, sobretudo a “ciência social”, é quase sempreum verniz com o qual alguns cobrem seus desejos e von-tades.

Ele não acreditou na infalibilidade do Papa, da Morale da Sagrada Escritura, mais do que na ciência e nestesentido a dúvida lhe pareceu a posição mental de quemaspira aproximar-se da verdade, pois ela se coloca nocampo infinito da investigação e do descobrimento, eapenas admite verdades provisoriamente e relativamentena espera de novas verdades: “Nenhuma fé, pois, no sen-tido religioso da palavra”: à vontade de crer Malatestaopôs a vontade de saber.

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Malatesta discutiu abertamente suas divergênciascom Kropotkin um ano antes de vir a falecer, em seuúltimo escrito de 15/04/1931, artigo onde recorda seuvelho amigo: “Pietro Kropotkin — Ricorde e critiche diun vechio amico”.

Kropotkin, na sua tentativa em fixar o lugar da anar-quia na ciência moderna, disse que a anarquia é umateoria do universo baseada na interpretação mecânicados fenômenos, e que alcançava toda natureza incluin-do a vida social.

Malatesta respondeu que “isso é filosofia, aceitávelou não, porém certamente não é nem ciência nem anar-quia”47. Para ele, anarquia é uma aspiração humanaque não parte de nenhuma verdade, ou suposta verda-de, ou necessidade natural, e cuja realização dependeunicamente da vontade dos homens. Ela aproveita osmeios que a ciência põe ao seu alcance, tanto quantoaproveita igualmente os progressos filosóficos: “porémnão pode ser confundida, sem cair no absurdo, nem coma ciência, nem com qualquer sistema filosófico”.

Se por um lado, dirá Malatesta, Kropotkin se mos-trou severo em relação ao fatalismo marxista, por outrocaiu num fatalismo mecanicista ainda mais paralisante.Assim é que sua filosofia não poderia deixar de influirna sua visão de futuro: tendo o comunismo anárquicoque ocorrer necessariamente, as dificuldades eram su-primidas ou ocultadas na forma de um otimismo exage-rado e dentro de uma uniformidade mórbida.

Aqueles que pensaram o “anarquismo cientifico” nãoconseguiram escapar à moda de sua época. Nestas con-cepções, observou Malatesta, há “um pouco de sobrevi-vência das idéias religiosas” incorporadas pela ciência,na qual a divisa “tudo ocorre pela vontade de Deus”, foisubstituída por “tudo ocorre segundo a natureza” ou “tudo

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ocorre segundo a ciência”. Para Malatesta, tudo ocorre-rá ou não segundo a vontade dos indivíduos livrementeassociados.

Entregar os destinos humanos ao providencialismocientífico, não é menos diferente que entregá-lo nasmãos de Deus! A solidariedade para Malatesta não estádada na natureza, quando muito trata-se apenas de umslogan em que alguns homens se aferram. Ao contrário,a luta, a competição, os interesses discordantes consti-tuem a realidade vivida: “Quando se diz que a liberdadede um indivíduo acha, não o limite, mas o complementona liberdade dos demais”, se expressa em forma afir-mativa um ideal sublime, talvez o mais perfeito que sepossa destacar na evolução social; porém, se com issose pretende afirmar um fato positivo, atual, ou que po-deria atuar-se depois de destruir as instituições pre-sentes, muda-se simplesmente a realidade objetiva porconcepções ideais de nosso cérebro. [Já que a realida-de] prova que muitas vezes nossa liberdade acha umlimite na liberdade dos demais”48.

Polêmicas não menos penosas Malatesta sustentoudurante toda sua vida; a mais longa delas, objeto de li-vro, foi sobre o parlamentarismo, mantida igualmentecom um velho amigo de militância anarquista, SaverioMerlino.

Merlino foi propagandista do anarquismo por mais devinte anos, e igualmente crítico das posições comunis-tas kropotkinianas. A partir de 1897 passou a defenderas eleições como forma de luta, reclamando a impor-tância das chamadas liberdades políticas e da sua defe-sa devendo ser travada em todos os terrenos, incluindoo eleitoral: “nos dias que correm, cabe ao partido socia-lista (no qual incluo também os anarquistas não indivi-dualistas) a defesa da liberdade. Esta luta, na minha

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opinião, deve ser travada em todos os terrenos, incluin-do o das eleições, mas não exclusivamente nele”49.

Malatesta respondeu imediatamente dizendo que“habituar o povo a delegar para outros a conquista e de-fesa dos seus direitos é a maneira mais segura de dei-xar livre curso à arbitrariedade dos governantes. O par-lamentarismo vale mais do que o despotismo, é verda-de; contudo, só quando aquele representa uma concessãofeita pelo déspota, com medo do pior. Entre o parlamen-tarismo que se aceita e gaba, como se fosse uma metaintransponível, e o despotismo que se suporta, porque atal se é forçado, com o espírito absorto pela desforra, émil vezes melhor o despotismo”50.

Malatesta desenvolveu essa polêmica com Merlino,a mais longa que sustentou, até janeiro de 1898. Cabemencionar que a polêmica não é apenas de altíssimaqualidade, mas também é tomada de respeito, honesti-dade e clareza que Malatesta preservou em relação aMerlino até sua morte. Por ocasião desta, disse queMerlino “foi um dos escritores mais capazes, mais cla-ros e mais convincentes, entre os que escreveram so-bre o tema que tanto defendemos. [...] Colocamos sobrea sua campa a flor do reconhecimento, fazendo votospara que um dia a nova geração tenha a possibilidadede conhecer a sua obra anarquista, que ignora total-mente”51.

Vontade anarquista

Exceto os seus numerosos artigos, aos quais sempreforam escritos tendo por objetivo debater e orientar opúblico anarquista, serão seus cinco ensaios conside-rados os mais representativos de seu pensamento: “En-tre Camponeses”, “No Café”, “Em Tempo de Eleições”, “Aanarquia” e “Nosso Programa”; destes cinco ensaios, os

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três primeiros são escritos na forma de diálogos dirigi-dos ao público geral, onde questões cotidianas levam aexposições muito completas das concepções anarquis-tas. O mais célebre deles, “Entre Camponeses” (FraContadini, 1884) chama seu interlocutor a absorver asidéias sem disso aperceber-se; trata-se, em suma, deuma técnica que, levando o interlocutor a contradizer-se, o faz problematizar a si mesmo e onde, ao invés de“informar”, “forma” nele valores que, ao contrário do dis-curso impessoal, recobre uma dimensão ética da ade-são voluntária de seu interlocutor. Mesmo em um textosupostamente “informativo” como “A anarquia”, depa-ra-se com alocuções como: “imaginem, pois, que ao ho-mem de pernas atadas, do qual falamos, o médico expõetoda uma teoria e dá mil exemplos habilmente inventa-dos para persuadi-lo de que, com suas pernas livres elenão poderia caminhar nem viver, este homem defende-ria enraivecidamente suas correntes e considerariacomo inimigos aqueles que quisessem arrebentá-las”52.

Os diálogos de Malatesta não visam construir umateoria, nem uma norma ou demonstrar o bem; sua con-cepção anarquista é avessa a isso, ele não subordinou oanarquismo a nenhuma teoria filosófica ou científica.Para ele, o anarquismo é uma atitude anti-autoritária ede solidariedade social, um alvo a realizar por uma von-tade criadora e para a qual a finalidade da propaganda éa persuasão; aqui o sujeito ético é peça fundamental,pois de sua vontade depende a atitude anarquista. Vê-se relativizada uma certa idealização das massas, pró-pria a Bakunin. No voluntarismo malatestiano, o apeloé do “indivíduo” ao “indivíduo”; vê-se igualmente umcaminho oposto trilhado por seu velho amigo Kropotkin,para quem “toda sociedade que romper com a proprieda-de particular, ver-se-á forçada, no nosso entender, a or-ganizar-se em comunismo anarquista”53.

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Para produzir efeitos anarquistas é necessário umavontade anarquista, e para formar essa vontade há apropaganda que, por meio da educação, difunde os valo-res e os sentimentos anárquicos o mais amplamentepossível. Para Malatesta, ainda que destruído o Estado ea propriedade, a anarquia não nascerá por obra da natu-reza nem por força dos fatos, é preciso querê-la; e nestesentido, discorda tanto de Bakunin como de Kropotkin.Nele, o único fato inegável é que queremos viver a anar-quia porque queremos tirar da vida a máxima satisfaçãopossível, e quando se nega a vontade e a faz parecerrisível frente a todo esforço para um objetivo qualquer, éporque esse objetivo repugna nossos sentimentos fazen-do a ação impossível.

O que é vontade? perguntava-se. “Não sabemos, as-sim como não sabemos o que são, em sua essência, amatéria e a energia”54. O fato é que queremos viver umavida consciente e ativa e essa vida exige certas disposi-ções necessárias que podem ser inconscientes, mas queestão sempre nos ânimos de todos: “ide persuadir de queos anarquistas têm razão a alguém que seja insensívelaos males alheios, que se apraz em viver do trabalhodos demais, que se satisfaz circundado de escravos obe-dientes! Um sentimento não se comunica senão des-pertando um sentimento análogo no ânimo alheio. E aanarquia reside completamente em um sentimento: orespeito à personalidade humana e o amor a todos”55.

É por isso que a palavra vontade sintetiza bem a con-cepção de sociedade anarquista para Malatesta, uma vezque não pode ser mais que uma sociedade de homensque cooperam voluntariamente para o bem de todos. Ade-mais, a vontade lhe aparece como única força criadoratangível, única força que, operando por minorias e nú-cleos diversos de anarquistas, é capaz de ir subtraindoàs “multidões volúveis” sua adaptação ao ambiente e

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seu estado de apatia. É preciso liberar das “massas” suavontade para que ela perca o hábito de se deixar gover-nar e para isso é preciso um longo e paciente trabalhode preparação e organização popular, sem cair na ilu-são da revolução “a curto prazo”, que apenas é factívelpela iniciativa de poucos e por curto período.

Ambrósio — “Porém, se os homens não quiserem pen-sar nisso?”

Jorge — “Tanto pior para eles. Você não quer com-preender: não há nenhuma providência, seja divina ounatural, que se ocupe do bem dos homens. De seu bem,é necessário que os homens se preocupem por si mes-mos, fazendo o que julguem útil e necessário para con-seguir o fim. E você dirá ainda: porém, e se não que-rem? Nesse caso não conseguirão nada e permanece-rão presas das forças cegas que lhes circundam. É o queacontece hoje: os homens não sabem como fazer paraserem livres, e os que sabem, não querem fazer o que épreciso para libertar-se. E por isso continuam sendoescravos. Porém esperamos, mais cedo do que você pen-sa, que eles saibam e queiram. Então, serão livres!”56.

Notas

1 Pierre-Joseph Proudhon. Las Confesiones de un revolucionario para servir a laHistoria de la Revolucion de febrero de 1848. Buenos Aires, Editorial Americalee,s/d, p. 137.2 Pierre-Joseph Proudhon. O que é a propriedade?. Lisboa, Editorial Estampa,s/d, p. 13.

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3 Max Nettlau. Socialismo Autoritario y Socialismo Libertário: estúdios y sugerenciassobre la accion internacional del anarquismo en la lucha contra la reaccion mundial.Barcelona, Guilda de Amigos del Libro, s/d, p. 47.4 Rudolf Rocker. As idéias absolutistas no socialismo. São Paulo, Ed. Sargitário,1946, p. 65.5 Idem.6 Émile Zola. Germinal. São Paulo, Circulo do Livro, s/d, p. 251.7 Cf. Marinice da Silva Fortunato. A categoria solidariedade humana no pensamentode Kropotkin. São Paulo, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católicade São Paulo, 1998, p. 107.8 Piotr Kropotkin. Etica (parte primera). Origen y evolucion de la moral. BuenosAires, Editorial Argonauta, 1925, p. 19.9 Jaime Cubero. As idéias-força do anarquismo. Centro de Cultura Social, datilo,1991.10 Menoridade enquanto ausência de pretensões à maioridade, permanecer me-nor. A esse respeito ver Edson Passetti. Éticas dos amigos — invenções libertáriasda vida. São Paulo, Imaginário/CAPES, 2003.11 Mauricio Tragtenberg. “A atualidade de Errico Malatesta” in Folha de São Paulo,16/01/1973, p. 06-07.12 Cf. Armand Cuvillier. Proudhon. México, Fondo de Cultura Econômica, 1986,p. 138.13 Peter Heintz. Problemática de la autoridad en Proudhon – ensayo de una críticainmanente. Buenos Aires, Editorial Proyección, 1963, p. 54.14 Mikhail Bukunin. Confesión ao Zar Nicolás I. Barcelona, Ed. Labor, 1976, p.69.15 Jacques Freymond (dir.). La Primeira Internacional, Tomo I. Madri, Edita Zero,1973, p. 16.16 Cf. Juan Gomes Casa. Nacionalimperialismo y Movimento obrero en Europa – hastadespués de la segunda Guerra Mundial. Madrid, CNT-AIT, 1985, p. 66.17 Idem, p. 71.18 Prosper-Olivier Lissagaray. História da Comuna de 1871. São Paulo, Ensaio,1995, p. 285.19 Idem, p. 284.20 É conhecida a posição de Marx-Engels diante da guerra franco-prussiana;Marx, que chamava a seção internacionalista franco-suíça de “asnos proudho-nianos”, escrevia a Engels em 20/07/1870: “Os franceses precisam de umaschicotadas. Se os prussianos saem vitoriosos, a centralização do poder do

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Estado será útil à concentração da classe operária alemã. A preponderânciaalemã, ademais, transportará o centro de gravidade do movimento operárioeuropeu da França para Alemanha; e basta comparar somente o movimento emambos os países desde 1866 até agora para ver que a classe operária alemã ésuperior à francesa, tanto do ponto de vista teórico como na organização. Apreponderância, no teatro do mundo, do proletariado alemão sobre o proleta-riado francês, seria ao mesmo tempo a preponderância de nossa teoria sobre ade Proudhon”. Apud Juan Gomes Casa, op. cit., p. 74.21 Élisée Reclus. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo, Imaginário/Expressão & Arte, 2002, p. 51.22 Luigi Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Editorial Americalee, s/d, p. 62.23 Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malesta. Escritos.Fundación de Estúdios Libertarios Anselmo Lorenzo, 2001, p. 363.24 Vernon Richards. “Apuntes para una biografía” in Malatesta, vida e ideas.Barcelona, Tusquets Editor, 1977, p. 296.25 Max Nettlau. Socialismo Autoritário y Socialismo Libertario: estúdios y sugerenciassobre la acción internacional del anarquismo en la lucha contra la reacción mundial.Barcelona, Guilda de Amigos del Libro, s/d, p. 52.26 Luigi Fabbri, op. cit., p. 60.27 Idem, p. 23.28 Cf. Luigi Fabbri, op. cit., p. 24.29 Idem, 73.30 Luigi Fabbri, op. cit., p. 25.31 Errico Malesta. Volontà. 15/06/1913.32 Luigi Fabbri, op. cit., p. 54.33 Vernon Richards. op. cit., p. 295.34 Ver a respeito Christian Ferrer. “Gastronomia e anarquismo — vestígios deviagens à Patagônia trapeiro”. Verve, São Paulo, Nu-sol, no 3, 2003, pp. 137-160.35 Max Nettlau. La anarquía a través de los tiempos. Barcelona, Edições Júcar,1978, p. 121.36 Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malatesta. op. cit.,p. 374.37 Cf. Vernon Richards. op. cit., p. 338.38 Luigi Fabbri. op. cit., p. 119.39 Idem. p. 120.

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40 Ibidem, p. 130.41 Idem. p. 140.42 Júlio Carrapato. “Breve posfácio” in Errico Malatesta e Francesco SaverioMerlino. Democracia ou Anarquismo? A célebre polêmica sobre as eleições, o parlamen-tarismo, a liberdade, o anarquismo e a ação revolucionária que apaixonou a Itália rebelde.Faro, Edições Sotavento, 2001, p. 257.43 Max Nettlau. La anarquía a través de los tiempos. op. cit., p. 144.44 Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malatesta, op.cit., p. 379.45 Errico Malatesta. Escritos revolucionários. Brasília, Novos Tempos, 1989, p.130.46 Errico Malatesta. Pensiero e volontà. 01/07/1925.47 Idem, p. 56.48 Errico Malatesta. Escritos. op. cit., p. 21.49 Francesco Saverio Merlino. Il messaggero. 29/01/1897. Errico Malatesta eFrancesco Saverio Merlino. op. cit., pp. 10-11.50 Errico Malatesta. Il messaggero. 07/02/1897. Idem, p. 13.51 Errico Malatesta. Il risveglio. 26/07/1930. Ibidem, pp. 214-215.52 Errico Malatesta. A anarquia e outros escritos. São Paulo/Brasília, Centro deCultura Social/Ed. Novos Tempos, 1987, p. 10.53 Piotr Kropotkin. A conquista do pão. Lisboa, Guimarães & Cia. Editores, 1975,p. 45.54 Errico Malatesta. Pensiero e volontà. 01/02/1926 in Vernon Richards, op. cit.,p. 63.55 Luigi Fabbri, op. cit., p. 196.56 Errico Malatesta. Hacia una nueva humanidad. Porto Alegre, Edições Proa,1969, p. 136.

Recebido para publicação em 10 de março de 2003