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ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X
Páginas 12-24
Carlos Saura: teatro, dança e cinema (duas leituras)
ESTEVES, Antonio R. (UNESP – Univ Estadual Paulista - Assis)
RESUMO: Bodas de sangre (1981), de Carlos Saura, relê a peça homônima de García Lorca (1933), através da dança. O que o expectador vê é um ensaio, sem interrupções, precedido por uma parte em que os bailarinos se preparam e falam sobre a arte de dançar. A história do casamento trágico, contado na peça de García Lorca, é apresentada pela dança, sem uma única palavra. Canções de boda, da tradição flamenca, ajudam a ilustrar o espetáculo, filmado totalmente num palco austero, com poucos efeitos especiais. Vinte anos depois, Saura retoma a mesma estrutura em sua leitura de um mito literário originado na tradição cristã. Salomé (2002) reconta a história da relação entre a filha de Herodias e o profeta João Batista, também através da dança. Outra vez, juntam-se o teatro, com ressonâncias da peça de Oscar Wilde (1894); a música, pela ópera de Richard Strauss (1905); a dança e a pintura. Metalingüístico como o anterior, esse filme-balé não conta apenas a vida da princesa da Judéia, mas a história de um filme que tem como base a versão dançada de sua história. O protagonismo, uma vez mais, é feminino. A mulher, vítima da estupidez masculina, também tem direito de exercer suas paixões, negando o controle social a que tradicionalmente é submetida. O jogo cromático alterna tons frios, lunares e azulados, e tons quentes, solares e avermelhados, explicitando a oposição entre razão e sentimento, masculino e feminino, público e privado. PALAVRAS-CHAVE: Carlos Saura; Cinema e outras artes. Relações interculturais; Adaptação e recriação; Intertextualidade. RESUMEN: Bodas de Sangre (1981), de Carlos Saura, hace una relectura de la pieza homónima de Federico García Lorca (1933), a través de la danza. Lo que espectador tiene ante sus ojos es un ensayo, sin cortes, del espectáculo, precedido por una parte en que los bailarines se preparan y hablan sobre el arte de bailar. La historia de la trágica boda, contada en la pieza de García Lorca, se presenta por la danza, sin una sola palabra. Canciones de boda, de la tradición flamenca, ayudan a ilustrar el espectáculo, filmado en un austero escenario, con escasos efectos especiales. Veinte años después, el cineasta retoma la misma estructura en su lectura de un mito literario originado de la tradición bíblica. Salomé (2002) recuenta la historia de las relaciones entre la hija de Herodías y el profeta Juan Bautista, también a través de la danza. Otra vez, se juntan el teatro, con resonancias de la pieza de Oscar Wilde (1894); la música, por la ópera de Richard Strauss (1905); la danza y la pintura. Metalingüística como la anterior, esa película-ballet no cuenta sólo la vida de la princesa de Judea, sino la historia de una película que tiene como base la versión bailada de su historia. El protagonismo, una vez más, es femenino. La mujer, víctima de la estupidez masculina, también tiene derecho de ejercer sus pasiones y niega el control social al que tradicionalmente está sometida. El juego cromático alterna tonos fríos, lunares y azulados, y tonos cálidos, solares y rojizos, explicitando la oposición entre razón y sentimiento, masculino y femenino, público y privado. PALABRAS-CLAVE: Carlos Saura; Cine y otras artes; Relaciones interculturales; Adaptación y recreación; Intertextualidad.
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X
Páginas 12-24
INTRÓITO
No dia vinte de novembro de 1975, depois de uma longa agonia, morria aos oitenta e
três anos de idade o general Francisco Franco, Caudillo de España por las gracias de Diós,
como ele mesmo tinha feito cunhar em quase todas as moedas espanholas. Terminava assim,
depois de quase quatro décadas, uma das mais funestas ditaduras do século XX. A morte do
ditador, instalado no poder com o final da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), por ele
vencida após destruir o país, desencadeou um processo de profundas transformações políticas
e sociais. A partir do ano seguinte a Espanha seria palco de rápidas mudanças, não apenas nas
estruturas política e administrativa, mas que atingiriam todos os setores da sociedade. Em
poucas décadas, o país passou a ser uma das mais sólidas democracias e uma próspera
economia da União Européia, à qual se integrou em 1986.
A Constituição aprovada em 1978 tentou sintetizar os anseios da população ávida de
liberdade, podendo ser considerada uma das mais avançadas do mundo no que se refere às
liberdades e direitos individuais. Coube ao Partido Socialista, em quase uma década de poder,
implementar reformas que permitiram ao país integrar-se à economia neoliberal globalizada.
Tal processo de transformação atingiu todos os setores da sociedade, incluídos os
artísticos e culturais. A capital espanhola viu-se tomada por uma grande efervescência
cultural, conhecida como Movida madrileña, cuja agitação durou cerca de uma década, mais
ou menos entre 1977 e 1987. Intelectuais que ainda estavam no exílio retornaram ao país,
onde se juntaram aos intelectuais locais extasiados pelo fim da censura do antigo regime e a
uma multidão de jovens que decidiram exercer plenamente sua capacidade criadora.
Nesse ambiente de exaltação das liberdades artísticas também a produção
cinematográfica universal dos últimos cinqüenta anos marcou seu encontro. Desde
corriqueiras produções hollywoodianas dos anos quarenta, censuradas pela moralidade
exacerbada do franquismo, até produções vanguardistas do neo-realismo italiano ou da
nouvelle vague francesa, além de cinema experimental de várias partes do mundo, passaram a
ser projetadas tanto em salas comerciais quanto em cineclubes ou salas especiais. Tudo
devidamente debatido e comentado.
Ali se encontraram três gerações de cineastas espanhóis, cujos expoentes são o arqui-
conhecido Luis Buñuel (1900-1983), exilado, figura chave do surrealismo, cujos filmes
entravam, sem cortes em seu país natal; Carlos Saura (1932), aragonês como Buñuel, cuja
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carreira como cineasta tinha começado em fins dos anos 50 e que durante as décadas de 60 e
70 tinha conseguido fama com filmes que faziam ácida crítica à decante e opressora sociedade
do período franquista. O terceiro é Pedro Almodóvar (1951), personagem central da Movida,
período que viu nascer seu cinema que extrapolaria, como os anteriores, as fronteiras do país e
que seria conhecido como um dos mais ferozes retratistas da sociedade espanhola.
BODAS DE SANGRE (1981)
Ao iniciar a parceria com o bailarino Antonio Gades (1936-2004), Carlos Saura já
era um conhecido diretor espanhol, dedicado a fazer críticas à ditadura franquista desde seus
primeiros documentários no final dos anos 50. A característica mais conhecida de seu cinema,
no entanto, era a forma mordaz como desnudava a família espanhola do período franquista,
uma espécie de metonímia da ditadura.
Por seu lado, Antonio Gades, nascido como Antonio Esteve Ródena, também já era
um conhecido bailarino no momento em que se juntou ao cineasta para filmar o balé que
havia montado a partir da peça de teatro de Federico García Lorca (1898-1936). Filho de
republicanos, Gades foi autodidata e chegou à fama graças a sua tremenda força de vontade e
capacidade de trabalho. Na primeira parte de Bodas de sangre, ele mesmo faz, diante da
câmera, um relato de sua trajetória artística. Depois de ter de abandonar a escola e começar a
trabalhar para manter-se, descobre a dança, mais ou menos por acaso, e nunca mais deixa de
dançar. Acaba construindo um gênero híbrido, mistura de balé clássico com flamenco, que o
faria famoso e que se transformaria num gênero de sucesso nas artes espanholas. Em 1974,
nos estertores do franquismo, já famoso, estréia em Roma uma adaptação para o balé de
Bodas de sangre, peça de teatro que havia trazido a fama ao poeta e teatrólogo Federico
García Lorca, morto de modo trágico, fuzilado por ordem dos nacionalistas de Franco, logo
no início da Guerra Civil.
Um dos escritores espanhóis mais conhecidos do século XX, Federico García Lorca
foi, em seu tempo, grande valorizador e divulgador da arte flamenca. O mesmo fará com a
dança flamenca o bailarino Antonio Gades. O encontro entre Gades e García Lorca ocorreu
nos início dos anos sessenta, quando o bailarino lia as edições clandestinas da obra do
andaluz, então proibidas pela ditadura de Franco.
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Muito já se escreveu sobre a obra de Federico García Lorca em geral e também sobre
Bodas de sangre, em especial. Essa “tragédia em três atos e sete quadros”, estreada em 1933,
representou o início da popularização do trabalho do teatrólogo, cuja fama seria
universalizada depois de sua trágica morte em 1936. A peça, cuja ação ocorre num ambiente
rural da Andaluzia, no início do século passado, trata de um casamento armado por interesse
entre duas famílias, sem considerar os sentimentos dos noivos. No momento da festa, a noiva
acaba fugindo com seu antigo amor e a história termina em sangue, já que o noivo,
pressionado pelas regras sociais vigentes, persegue os fugitivos e acaba morrendo juntamente
com ele, na tentativa inglória de defender uma honra falsa. No final, a noiva, a mãe do noivo e
a esposa do amante, terminam sozinhas, nessa sociedade em que as mulheres são as principais
vítimas da estupidez dos homens.
Bodas de sangre, apesar do aparente tema regional, está crivada de elementos
surreais: não se pode esquecer que García Lorca é um dos representantes dos ideais
vanguardistas em seu país. Além disso, a linguagem do poeta e teatrólogo andaluz é prenhe de
uma simbologia especial, que explora pulsões primitivas, na qual a morte e a perplexidade
pela não realização do amor são quase lugares comuns. Ao fazer a releitura da peça lorquiana,
quase meio século depois de sua estréia, Antonio Gades aproveita de modo exemplar tais
elementos. Ao transferir para o cinema sua leitura para balé da peça lorqueana, tais elementos,
uma vez mais, se mantêm.
O filme de Carlos Saura, relativamente curto, está dividido em duas partes. A
primeira delas mostra os camarins e o palco onde um grupo de bailarinos, sob a direção de
Antonio Gades, ensaia uma versão dançada da peça de Federico García. Ocupando mais ou
menos um terço do filme, essa primeira parte, além de mostrar ensaios de alguns passos,
detém-se no preparo dos bailarinos para o ensaio final do espetáculo. Nela se destaca uma
entrevista de Antonio Gades onde ele fala sobre sua vida profissional, ressaltando seu amor
pela dança e como se transformou no bailarino mais conhecido da Espanha de seu tempo.
Chama atenção, nessa parte, o jogo de espelhos. Neles estão refletidas as imagens dos
bailarinos que se maquiam para o ensaio.
O ensaio ocorre em uma sala austera, um tablado de madeira, com um imenso
espelho lateral no qual se refletem os passos da dança. Na parte frontal há três janelas, diante
das quais a história do casamento que termina em tragédia é contada apenas através da dança,
se usar uma palavra sequer. Esse é o cenário do filme. As únicas palavras que aparecem estão
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nas canções que fazem parte da trilha sonora que dirige o balé. São, em sua maioria, canções
de boda recopiladas da tradição flamenca do sul da Espanha, além de uma canção de ninar
que já estava na peça de García Lorca.
Algumas diferenças básicas entre a peça lorquiana e o filme de Saura merecem ser
destacadas. Na peça de García Lorca, com o objetivo de reiterar a pressão social que sufoca o
indivíduo, os personagens não têm nome, sendo identificados por seus papéis sociais: noivo,
noiva, pai da noiva, criada, etc. O único personagem a ser nomeado é Leonardo, o amado da
noiva, que reúne na etimologia de seu nome a “força do leão”, ou seja, a pulsão natural que
faz com que ele lute contra a sociedade, na defesa do direito de exercer a liberdade de amar.
Evidentemente essa rebeldia é vã, já que terminará morto, pois a peça de García Lorca
denuncia exatamente a opressão que aniquila o indivíduo. A saída desse labirinto ocorre
apenas num nível simbólico, decodificando-se os vários símbolos presentes na peça, entre os
quais de destacam o cavalo, a lua e os punhais.
Sem dúvidas, o filme de Carlos Saura é uma evidente homenagem ao poeta fuzilado
pela ditadura de Franco, cuja obra esteve proibida durante décadas na Espanha. Nele, o
personagem marcado é a noiva, já que todos os demais aparecem vestidos em tons escuros,
cinza, preto e pardo, como se denotassem o obscurantismo daquela sociedade, ao passo que a
noiva aparece vestida de branco, a cor não apenas da pureza, mas principalmente da
concórdia, tão necessária nesse momento de transição democrática. Ressalta-se, ainda, o papel
da mulher, nessa nova sociedade que se vislumbra e que pretende negar, claramente, as forças
obscuras da ditadura patriarcal de Franco.
A peça de García Lorca está dividida em sete quadros (três atos). Os três primeiros
quadros introduzem os três elementos do triângulo amoroso: o noivo, Leonardo e a noiva. Os
demais equivalem ao desenrolar da ação, sendo que nem o casamento, nem a morte dos dois
homens, aparecem em cena. O filme de Saura, por sua vez, está calcado na dança. O próprio
Gades, adaptador, coreógrafo e diretor, é quem faz o papel de Leonardo, como se atribuísse a
si, bem de acordo com sua histórica militância comunista e anti-franquista, o papel da luta
contra as forças obscuras daquela sociedade conservadora.
O filme está dividido em seis seqüências que contam com pequenas variações a
história de amor frustrada entre Leonardo e a noiva. O ponto alto é a luta-dança entre
Leonardo e o noivo. Suspensa a música, com microfones que reproduzem sua respiração
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ofegante como se fossem duas feras, eles se digladiam a golpes de punhal, arma preferida dos
ciganos, diante dos olhos perplexos da noiva que assiste desesperada ao desastre de sua vida.
O filme termina com a noiva passando as mãos ensangüentas em seu vestido branco,
refletida em corpo inteiro no espelho que ocupa toda a parede lateral. Perplexidade diante da
brutalidade da violência inexplicável e sem sentido que destrói vidas. A mão no ventre,
entretanto, ao contrário da visão exageradamente negativa da peça, pode indicar a presença de
um fruto sobrevivente daquele amor proibido pela sociedade. Se em García Lorca isso poderia
ser a repetição de um ciclo trágico, em Saura parece sinalizar para uma vida futura, que
supere o obscurantismo vigente.
SALOMÉ (2002)
Federico García Lorca reuniu suas três peças mais conhecidas sob a designação de
trilogia, embora elas tenham em comum apenas a temática, ou seja, a luta do indivíduo contra
a opressão de uma sociedade retrógrada, no início do século XX: Bodas de sangre (1933);
Yerma (1934) e La casa de Bernarda Alba (1936). Da mesma forma, a dupla formada pelo
cineasta Carlos Saura e pelo bailarino Antonio Gades, depois do sucesso de Bodas de Sangre
(1981), realizou mais duas obras em que, a partir do projeto dramático de Gades, fazem a
fusão entre balé clássico e dança flamenca, cujo conteúdo também se centraliza na angústia da
não realização amorosa. O segundo filme dessa trilogia informal que começou com Bodas de
sangre, é Carmen (1983), que retoma o célebre mito da cigana espanhola, fundado por duas
obras homônimas do século XIX: o romance de Prosper Mérimée (1803-1860) e a ópera de
Georges Bizet (1838-1875). A terceira obra da trilogia é El amor brujo (1986), desta vez a
partir da peça musical de Manuel de Falla (1876-1946). O sucesso de Carmen foi bastante
superior ao de Bodas de sangre, tendo sido premiada no Festival de Cannes e nominada para
o Oscar de melhor filme estrangeiro.
A carreira cinematográfica de Carlos Saura seguiu em frente com passos firmes:
trata-se de um dos mais prolixos diretores espanhóis, produzindo praticamente um filme por
ano. A música e o balé, com a feliz parceria com Antonio Gades, seriam incorporados, a partir
de então, a suas produções. Em 2002 estréia um filme em que o cineasta espanhol
praticamente retoma a mesma estrutura de Bodas de sangre: Salomé. Desta vez a parceria se
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faz com bailarina Aída Gómez (1967), jovem formada na tradição de Gades, que já havia
participado em Bodas de Sangre.
Retomando o clássico mito cristão, cuja origem remonta a umas poucas informações
históricas e a alguns versículos bíblicos (Mateus 14:6-12 e Marcos 6:21-29), Carlos Saura
constrói seu novo filme. Uma vez mais, trata-se de uma obra extremamente metalingüística,
ou meta-cinematográfica: um diretor de cinema decide fazer um filme a partir de um
espetáculo de dança que conta a história do desencontro amoroso entre a princesa da Judéia e
o profeta João Batista. Na verdade, a história se apresenta de forma bem mais complexa, uma
vez que Salomé, no filme de Saura, mais que ser forçada pela mãe, como na tradição, deseja o
Batista.
Outra vez o filme se divide em duas partes claramente delimitadas. Na primeira
delas, um diretor do filme, uma espécie de alter-ego do próprio Saura, entrevista os principais
bailarinos que atuam no espetáculo. Na verdade, esta parte é bastante mais complexa que em
Bodas de sangre, uma vez que além dos quatro protagonistas (os bailarinos que interpretam
Herodes, Herodias, João Batista e Salomé), também são entrevistados o diretor do filme, a
diretora do balé, o coreógrafo, o figurinista e o autor da trilha sonora. Explicita-se, nessa
parte, o arcabouço da construção do filme em si. Cada um dos elementos tem uma função
bastante clara e essa função é apresentada claramente para o espectador. A segunda parte do
filme, também é um ensaio geral que conta, através do balé, a história de Salomé e sua relação
com o Batista.
Embora a música de Roque Baños, premiado autor de trilhas sonoras, se construa sob
a base de ritmos flamencos, trata-se uma peça musical bem mais universal, à qual incorpora
música de corte francês, tonalidades claramente orientais (com a introdução de instrumentos
de sopro, por exemplo), trazendo, ainda ecos da ópera de Strauss. O objetivo é construir uma
tonalidade mediterrânea, assentada nas três grandes tradições que formaram essa cultura, com
elementos árabes, judaicos e cristãos, além da forte marca cigana. Tal linha básica também é
seguida por Aída Gómez na construção do balé.
Nesse contexto cultural nasce e se desenvolve o mito de Salomé, cuja história acaba
sendo repetida incessantemente ao longo dos séculos. Assim, o relato da fatídica noite em que
Salomé dança na festa de aniversário de seu padrasto Herodes, que maravilhado pela dança
promete satisfazer qualquer pedido dela, que todos sabem ser o de trazer numa bandeja a
cabeça do profeta que batizou o Cristo, se repete à exaustão. No filme de Saura, o diretor que
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está filmando a versão para balé, discute isso de modo claro. E deixa claro ter optado por
construir uma Salomé independente, que não esconde seu desejo pelo profeta, diferentemente
de muitas das versões tradicionais em que ela apenas cumpre a vontade cega de vingança de
sua mãe, que queria livrar-se do profeta que fazia questão de clamar aos céus castigo para seu
adultério. O pedido de Salomé, assim, é dirigido pelo despeito da mulher desprezada pelo
homem que deseja.
O filme mostra que os versículos do Evangelho despejam toda a responsabilidade do
crime em Herodes e Herodias e apresenta uma série de quadros pintados ao longo da história
da arte, trazendo a repetida cena da cabeça do profeta na bandeja, sendo oferecida à jovem
princesa. A Salomé que o filme deseja mostrar, no entanto, não é assim tão passiva. É outra, é
uma mulher que tem clara consciência de seu desejo proibido que acaba por transformar-se
numa mórbida obsessão. Não conseguindo o amor do Profeta, ela deseja beijar seus lábios
mortos. Para conseguir seus propósitos, não hesitará em usar seu próprio corpo como moeda
de troca, uma vez que manipula o desejo do tio-padrasto
Apesar do filme não explicitar, o texto básico para a construção do roteiro foi, e não
poderia deixar de ser, a peça Salomé, de Oscar Wilde (1854-1900). A história da peça em si é
quase tão conturbada quanto a história ela que conta. Baseada numa série de poemas e outros
textos literários publicados na Europa, na segunda metade do século XIX, a obra de Wilde,
composta de um único ato, teria sido escrita em primeira versão em francês, provavelmente
em 1892. Foi traduzida ao inglês por Sir Alfred Douglas (1854-1945) em 1894, quando foi
publicada ma Inglaterra, com ilustrações de Aubrey Beardsley (1872-1898). Proibida de ser
representada no país pela censura vitoriana, estreou na França em 1896, com programa
ilustrado pelo pintor impressionista Toulouse-Lautrec (1864-1901), na versão original
francesa. Em 1902 estreou na Alemanha, montagem que teria sido assistida por Richard
Strauss (1864-1949) que a transformou em ópera, por sua vez estreada em Dresden em 1905.
A polêmica ópera, cujo libreto é praticamente uma tradução literal da peça de Wilde, causou
escândalo, sendo proibida em vários lugares, ao mesmo tempo em que trouxe fama e riqueza
para seu autor.
Essa digressão, apesar de longa, é interessante para mostrar a vasta teia intertextual
presente no filme do cineasta espanhol. Mas principalmente para assinalar uma das
contribuições mais importantes da ópera de Strauss, referida de passagem no texto bíblico e
apenas assinalada na peça de Wilde, mas que depois da ópera de Strauss é um dos
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componentes centrais do mito de Salomé e que adquire destaque também no filme de Saura,
uma vez que este está assentado no balé. Trata-se da famosa dança dos sete véus, um dos
atrativos do filme.
Num artigo que trata da manipulação do corpo feminino pela arte e culturas
ocidentais, a crítica canadense Linda Hutcheon (2003), analisando a dança dos sete véus da
ópera de Strauss, assinala que Salomé se vale do conhecimento que tinha de seu poder,
associado a seu corpo, usando-o como moeda de troca para conseguir realizar seus desejos. O
filme de Saura trabalha com especial cuidado e muito sucesso esse poder, utilizado pela
princesa para satisfazer tanto sua teimosia, quanto sua destrutiva obsessão sexual.
Evidentemente, dança e cinema trazem para o centro da cena o poder do corpo feminino.
Movimentos e cores são o núcleo do espetáculo, que é duplo, uma vez que o filme constrói-se
a partir da dança, um vez mais prescindindo das palavras. Da mesma forma, a decapitação é
muito significativa: separar a cabeça do corpo, no caso do corpo masculino, acaba sendo um
duro golpe para a masculinidade, ou pelo menos para o discurso falogocêntrico, para usar o
termo cunhado pela crítica feminista das últimas décadas.
Aos movimentos corporais, acompanhados pelo movimento da câmera, se junta a
simbologia das cores que trabalha com uma série de arquétipos ocidentais, que de algum
modo, já estavam insinuados na peça de Wilde e na ópera de Strauss. Não se pode esquecer
que ambos eram simbolistas e conhecedores da nascente psicologia freudiana e junguiana,
além da filosofia de seu contemporâneo Nietzsche, por exemplo, no que toca à oposição entre
os aspectos apolíneo e dionisíaco da arte.
Assim associado, valendo de seis painéis móveis e alguns espelhos, o filme de Saura
introduz com uma bela iluminação, tonalidades que alternam cores frias e quentes, que fazem
lembrar quadros impressionistas. Os tons azulados, e a presença da própria lua, predominam
nas cenas em que o protagonismo é de Salomé, personagem lunar, também na peça de Wilde.
Quando o centro vem para Herodes, os tons variam do amarelo ao vermelho vivo, numa
seqüencia de luz e fogo que tanto simbolizam o desejo que o tetrarca nutre pela enteada,
quanto o apolíneo de seu poder masculino solar, reiterado pelo trono e pelos dois cajados com
que ele dança, o poder político, do governante e do patriarca, e o poder fálico do macho que
deseja a filha de sua esposa.
Já o profeta, significativamente representado por um bailarino afrocubano, belo e
sensual, veste-se de branco e aparece em um estrado, numa posição ligeiramente superior à
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dos demais bailarinos, banhado por luz branca, dançando em círculos como os derviches da
tradição muçulmana oriental. A ausência total de luz, em breves momentos, coincide com as
cenas de morte. Não se pode esquecer que na versão de Wilde, não apenas o batista é morto,
tendo a cabeça separada do corpo, mas também Salomé perece, talvez como castigo pela
ousadia de seu desejo. Na cena de seu enterro, que encerra o espetáculo (e o filme), ela é
envolta em panos brancos, como antigas múmias egípcias, talvez para insinuar, com a
simbologia do branco, afinal a mesma cor do batista, uma possível união com seu amado.
EPÍLOGO (A MODO DE CONCLUSÃO)
As semelhanças entre Bodas de sangre (1981) e Salomé (2002), apesar das duas
décadas que separam sua produção, são evidentes e não apenas estruturais. Ambos contam
uma história, originalmente contada por uma peça de teatro, sem usar, no entanto uma única
palavra. Deve-se ressaltar, no entanto, que embora tratem de uma leitura para balé das peças
teatrais, não se trata em nenhum dos casos de um balé filmado. Tampouco se trata de um
documentário que mostra os bastidores de um espetáculo de dança. Ambos são filmes em sua
acepção mais pura e isso fica claro, não apenas pelas entrevistas, na primeira parte, em que
atores, falam olhando diretamente para uma câmera, mas tratam da obra de arte em si,
especificando, de modo mais visível no caso de Salomé, os elementos de um filme. Por outro
lado, o movimento da câmera é bastante significativo. As tomadas, a angulação e a montagem
de seqüências só seriam possíveis num filme. O espectador de um balé, mesmo que contasse,
por exemplo, com os efeitos da iluminação, nunca teria aquelas imagens. O imediatismo do
balé desaparece, assim, para converter-se em ilusão.
Nesse sentido há uma ligeira diferença entre os dois filmes: no caso de Bodas de
sangre, já havia uma adaptação para o balé da peça de García Lorca, feita pelo próprio Gades,
embora essa adaptação tenha sido por sua vez adaptada pelo cinema. Assinam o roteiro de
Bodas de sangre, Antonio Gades e Carlos Saura. O caso de Salomé é mais inovador: o filme e
o balé nascem ao mesmo tempo. O roteiro, no entanto, também foi feito a várias mãos, neste
caso pelo diretor do filme (Carlos Saura), pela diretora do balé (Aída Gómez) e pelo
coreógrafo (José Antonio).
Em ambos os casos, a história que o filme conta, não é a história adaptada das peças
de teatro, mas a história de um filme que conta como um grupo de bailarinos está montando
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um espetáculo de dança que constitui o filme. Nesse processo metalingüístico (metaficcional
ou metafílmico, como queiram), uma vez mais, Salomé dá um passo adiante, já que acrescenta
a figura do diretor de cinema que está construindo seu filme e que não é Carlos Saura. O
diretor invisível, vamos assim dizer, é Carlos Saura. Mas o diretor visível, no filme, é
representado pelo ator catalão Pere Arquillié, o alter-ego fictício de Saura, que escuta
atentamente, na primeira parte do filme, a explicação de cada um dos participantes da
montagem, esses, representando a si próprios: Roque Baños, responsável pela música; Aída
Gómez e José Antonio, responsáveis pela coreografia; Pedro Moreno, figurinista. Num
momento fugaz, no entanto, a câmera retrocede e aparece o próprio Saura, dirigindo a
filmagem da cena em que aparece em cena seu alter-ego. Trata-se, na verdade de uma espécie
de espelho do espelho, num jogo labiríntico em que realidade e representação se alteram e se
sucedem, com o objetivo de deixar bastante claro que, em suma, tudo ali é ficção, apesar da
cara de documentário.
Talvez as duas décadas que separam os dois filmes sejam o motivo que faça de
Salomé um filme bastante mais sofisticado tecnicamente que Bodas de sangre. Vale a pena
citar alguns elementos: em Bodas de sangre a iluminação é bastante discreta, a ponto de quase
passar despercebida. Em Salomé, há um festival de cores, como já foi comentado. Em Bodas
de sangre praticamente não há efeitos especiais. Salomé traz uma série de efeitos, valendo a
pena citar dois casos: a presença dos seis painéis e dos espelhos ajuda a produzir um efeito de
labirinto, bastante de acordo com a estrutura narrativa. Há uma cena, em especial, em que
painéis e espelhos superpostos dão a idéia de um quadro cubista. O diálogo com as artes
plásticas também já estava presente, de modo mais tímido em Bodas de sangre,
principalmente na cena em que Leonardo e o noivo duelam, talvez reminiscência de um
quadro de Goya, no qual dois homens de digladiam numa luta de bastões. Goya também é
aludido em Salomé, na cena em que o profeta conta a Salomé que Herodes matou seu irmão e
pai dela, para poder ficar com Herodias. A luz que imita a tempestade traz à lembrança do
espectador as pinturas e gravuras escuras do pintor espanhol sobre os disparates da guerra.
Em geral, pode-se dizer que aquele ambiente austero, uma sala vazia com três janelas
e um espelho, na qual se moviam os atores-bailarinos e que foi causa de sarcásticas críticas
por parte da mídia conservadora espanhola do início dos anos oitenta a Bodas de sangre,
desaparece. Em seu lugar surge um acurado trabalho que concilia painéis e espelhos que se
movimentam, entre luzes e sons, embora a sala seja muito semelhante à de vinte anos antes.
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X
Páginas 12-24
Também com relação ao conteúdo, há algumas diferenças. Embora o protagonismo
ainda seja claramente feminino, na virada do milênio, a mulher espanhola já ocupa um espaço
preponderante em sua sociedade. A luta não se trava mais contra uma ditadura arcaica que
havia perpetuado o poder masculino numa sociedade degradada. Num momento em que a
liberação do aborto, a união entre pessoas do mesmo sexo, a adoção crianças por casais
homossexuais, a mudança do sexo biológico, entre tantos temas polêmicos, são discussões
presentes na sociedade espanhola, muitas das quais conquistas legais, muda o enfoque do
papel da mulher nessa sociedade. Mais que de conquista de liberdades políticas em si, embora
a discussão da onipotência do Estado seja um tema secundário em Salomé, através da figura
de Herodes, o novo filme de Saura se propõe a discutir desejo e corpo. Já não escandalizam os
sentimentos de Salomé que tanto furor causaram nas sociedades européias de fins do século
XIX e inícios do século XX. Seu desejo pelo Batista é visto como normal. Também o desejo
de beijar seus lábios sem vida.
A única coisa que não mudou, mas isso é inerente ao ser humano, e a função da arte
é exatamente mostrar isso, são as crises advindas do medo de enfrentar tais sentimentos e,
principalmente, a perplexidade e a angústia diante da inexorabilidade da morte que é, enfim, o
único limite.
REFERÊNCIAS
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ESTEVES, A. R. Cinema e literatura no ensino de língua estrangeira. Perspectiva. Erechim. V. 28, n. 104, p. 03-41, dezembro, 2004.
GARCÍA LORCA, F. Bodas de sangre. México: Ed. Mexicanos Unidos, 1979.
HUTCHEON, L. & HUTCHEON, M. O corpo perigoso. Rev. Estud. Fem. 2003, v. 11, n. 1, p. 21-60. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2003000100003&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 21/03/2009.
JAIME, A. Literatura e cine en España. (1975-1995). Trad. N. Pérez Harguindey e M. Taléns. Madrid: Cátedra, 2000.
SAURA, C. Bodas de sangre. Madrid: Suevia (1999) (DVD)
SAURA, C. Salomé. Barcelona: Filmax (2003) (DVD)
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WILDE, O. Salomé. Trad. João do Rio. São Paulo: Scipione, 1993.