Upload
maris-bueno
View
218
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Artigo sobre surdez
Citation preview
ESTUDOS SOBRE A SURDEZ Sunday, November 20, 2005
Da discriminação à afirmação: breve história da surdez da
antiguidade ao séc. XX.
Por Rui A. M. Gonçalves* - [email protected]
Resumo
Este texto pretende dar a conhecer à comunidade ouvinte o percurso histórico da comunidade
surda desde a antiguidade até ao sec. XX, caminho repleto de dificuldades e de provações
como a discriminação, sujeição à comunidade ouvinte, proibição de se comunicarem através
de gestos, de ignorância e preconceito mas com períodos de claro avanço nas condições de
vida e de educação de surdos, seja através de escolas de e para surdos, seja através dos
avanços tecnológicos do sec. XX que permitem a comunidade surda tenha uma forma de vida
mais aproximada à forma de vida da comunidade ouvinte. Outro propósito deste artigo é
desmistificar algumas ideias preconcebidas que a maioria da comunidade ouvinte possui sobre
a surdez, sobre a Língua Gestual e sobre a comunidade ouvinte em geral. Este artigo aborda
também algumas questões sobre a terminologia com que se deve tratar os membros da
comunidade surda.
"Que importa a surdez do ouvido se o espírito continuar a ouvir?
A verdadeira e incurável surdez é a surdez do espírito."
Vítor Hugo
Introdução. É quase um lugar-comum dizer que para se perceber o presente primeiro há que
perceber o passado. Este artigo tem por objectivo traçar um percurso histórico da educação
dos surdos desde a Antiguidade clássica até ao Sec. XX, percurso esse recheado de
discriminação, ostracismo, exclusão e isolamento, assim como alguns avanços e retrocessos
na qualidade de vida dos surdos. Durante centenas de anos a comunidade surda foi privada de
todo e qualquer direito, como ter propriedade privada, ou impedida de exercer o seu livre
arbítrio, para casar, por exemplo. Só com o advento do humanismo no Séc. XVIII é que a
comunidade surda começou a ser tratada com alguma dignidade, e a emancipação da
comunidade surda só se começou realmente a dar a partir do Sec. XX, com os estudos de
alguns linguistas e a criação de uma universidade só para surdos, assim como algumas
invenções tecnológicas. O autor pretende com este artigo dar a conhecer à comunidade
ouvinte um pouco da história (de resto pouco explorada) da comunidade surda, da sua forma
de comunicar e da sua educação.
Clarificação de terminologia. O ponto de partida para qualquer artigo, tese ou investigação
académica relacionada com o tema da surdez deve passar por uma clarificação de
terminologia. O problema que se coloca é o seguinte: devemos chamar o indivíduo que não
ouve de “surdo-mudo”, ou de apenas “surdo”? Qual é a forma correcta? A forma mais ouvida é
a primeira. Ouve-se nas ruas, nos cafés e na comunicação social. A terminologia “surdo-mudo”
é usualmente defendida pelo seguinte argumento: “o surdo não ouve. Como não ouve, não
conhece os sons e desconhecendo os sons não os poderá articular; sem articular sons o surdo
também é mudo.” Os estudos de William Stokoe com surdos americanos e a ASL (American
Sign Language) provam o contrário. Stokoe definiu que as línguas gestuais são línguas em que
o plano fonológico é substituído pelo plano querológico[1] (Fernandes 2003, 41). Se existem
línguas orais-auditivas como por exemplo o português, também existem línguas visuais-
icónicas, (no caso o exemplo concreto das línguas gestuais). Ao se considerar que a língua
gestual é uma língua per se, o surdo ao comunicar através de gestos está a falar, não de uma
forma que estamos habituados, pois não é através de sons.
Há também plano de auto-afirmação: durante muitos anos (na realidade até aos anos 60 do
século XX) era normal os surdos serem chamados na língua inglesa de “Deaf and Dumb”. O
problema é a terminologia “dumb”, que entre as várias traduções possíveis algumas são
claramente pejorativas: desinteligente, estúpido, com pouca educação, entre outros mimos
muito pouco lisonjeiros para com os surdos. O dicionário Word Net[2] (da responsabilidade da
Universidade de Princeton) tem a seguinte entrada para “dumb”: “slow to learn or understand;
lacking intellectual acuity; speechless” (lento a aprender ou a entender; desprovido de acuidade
intelectual; incapaz de falar). O dicionário da Oxford é mais directo: “stupid” (estúpido). Por aqui
se depreende que chamar a um surdo americano de “deaf and dumb” é uma afronta, uma
ofensa.
Alguns movimentos de surdos, como por exemplo o “Proud Deaf” (“Orgulho Surdo”) fizeram
força para que o termo “Dumb” fosse abolido, e uma maior consciencialização dos problemas
dos surdos permitiram que o termo pejorativo “dumb” fosse caindo em desuso.
Pode-se então concluir que a forma mais correcta é chamar ao indivíduo que não ouve de
surdo, apenas.
Magia negra e ostracização. Muito pouco se sabe acerca da vida de um surdo durante a
antiguidade. Em Esparta as crianças surdas eram atiradas do cimo do monte Tayjetos. Na
Roma antiga, assim que se soubesse que a criança era surda a lei permitia que fosse afogada
no rio Tibre desde que tivesse menos de 3 anos de idade (Haguinara-Cervellini 2003: 30). Os
sacerdotes egípcios e assírios faziam as suas presciências através da observação e análise do
ouvido interno dos indivíduos. No entanto, recusavam a análise aos surdos que tivessem o
aparelho auditivo danificado, pois eram considerados seres sem alma.
São escassos os autores da antiguidade clássica, que se debruçaram sobre a surdez. O
médico Galeno (131dc-200dc) observa que os nados surdos eram invariavelmente incapazes
de falar que o leva a concluir aparelho auditivo e o aparelho fonológico estavam ligados entre
si. No diálogo socrático Crátilo, uma reflexão platónica sobre a linguagem, encontra-se a
seguinte passagem:
Se não tivéssemos voz nem língua e ainda assim quiséssemos expressar coisas uns aos
outros, não deveríamos, como aqueles são mudos, esforçar-nos para transmitir o que
desejássemos dizer com as mãos, a cabeça e outras partes do corpo? (citado por Sacks 2002:
29)
Aristóteles foi o autor da antiguidade clássica que mais reflexão nos deixou sobre a surdez: a
sua comparação com a cegueira, a sua implicação com a vida do indivíduo. Na História dos
Animais, uma passagem desencadeou alguma polémica: “todos os que nascem surdos se
tornam incapazes de falar. Têm voz, mas não tem fala.” (in Plann 1999: 208).
Como Plann (1999: 17) observa, Aristóteles dá uma enorme importância à audição. O filósofo
diz ser o sentido mais importante na aquisição de conhecimentos e na aprendizagem, uma vez
que a audição era movida pelo som, e o som era o veículo do pensamento, apesar de
reconhecer que existem outras formas de aceder à mente. Aristóteles comparou a educação de
um surdo com a educação de um cego, e chegou à conclusão que a visão era mais útil na vida
quotidiana, por sua vez a audição era mais útil à retórica e à argumentação. Daí que o liceu
reconhecesse mais inteligência ao cego que ao surdo (Plann 1999: 209). Mas Aristóteles caiu
numa contradição: Comparou um surdo a um animal. A voz era o produto da alma a interagir
com os aparelhos fisiológicos (boca, língua, cordas vocais, etc.). Se os surdos não falam, é
porque não têm alma para fazer a interacção com os órgãos destinados à fala tal como os
animais, que também têm os órgãos, mas não falam. Logo, animais e surdos não têm alma.
Uma lógica estranha e que entra em contradição com o que filósofo diz sobre o acesso à
mente. Devido à riqueza do corpus aristotélico, este permitiu que houvessem diversas
acepções, leituras, interpretações, escolhas, e até preferências por parte das mais diversas
instâncias científicas da Idade Média (Plann 1999: 17).
“No princípio era o Verbo”: A importância das referências bíblicas e a influência
religiosa. A Bíblia tem poucas referências à surdez. Rée (1999: 95) encontra duas referências
explícitas e duas implícitas, Sacks (2002: 28) encontra uma referência que curiosamente
escapa a Rée. A primeira referência encontra-se no Levítico, na qual se incita os judeus a não
falarem mal dos surdos (Lev, 19:14). O livro do Levítico é acima de tudo uma colectânea de
preceitos morais e regras a serem seguidas pelos judeus. É do Levitico que vão derivar os
textos talmúdicos. As leis do Talmude protegem os surdos de pragas rogadas por terceiros (por
não poderem ouvir, também não poderão defender-se), mas nega-lhes o direito de deterem
bens e propriedades. Esta proibição prende-se ao facto de que os hebreus não confiavam nos
surdos, pois o Talmude especificava que aquele que deixasse o seu gado na guarda de surdos
era o mesmo que deixar o seu gado na guarda de “idiotas” (Moeller s/d).
A segunda referência encontra-se no Novo Testamento, e relata um processo taumatúrgico
de Jesus Cristo. São Mateus relata que as multidões ficaram deslumbradas com a cura de um
mudo, coisa nunca vista em Israel (Mat, 9:32). A referência que Sacks encontra encontra-se
logo a abrir o Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo” (João; 1:1).
Mas o que realmente foi importante para a vida dos surdos não foram estes relatos explícitos.
Bastaram duas passagens de um capítulo da Epístola de S. Paulo aos Romanos que proibiam
os surdos a terem uma vida minimamente calma. No 10º Capítulo da epístola encontramos o
seguinte:
Porque com o coração se crê para alcançar a justiça; mas com a boca se faz a confissão para
alcançar a salvação. (Rom; 10:10)
Logo a seguir outro versículo devastador:“Logo a fé é pelo ouvido, e o ouvido pela palavra de
Cristo" (Rom; 10:17)
S. Paulo incita à confissão como forma de absolvição dos pecados e como tal a salvação. Os
surdos estavam excluídos deste processo, uma vez que não tinham meios de se fazer
entender, visto não poderem falar. Mesmo que o confessor entendesse os gestos que um
surdo fizesse, ou que, por absurdo, um surdo escrevesse a sua confissão, o confessor
facilmente recusaria a confissão: com a boca se faz a confissão.
Perante tais referências à surdez os religiosos medievais fizeram o mais fácil: ignorar os
surdos. O indivíduo surdo só era lembrado quando era alvo de uma perseguição fácil, assunto
que será abordado mais à frente. Entender um indivíduo surdo é uma tarefa difícil, e se não
houver preparo ou vontade para tal, a compreensão é impossível.
Santo Agostinho também tem um papel assaz importante neste movimento. O bispo de Hipona
faz-se a si próprio uma pergunta simples: Porque é que nascem crianças cegas ou surdas? Na
sua Traditio Catholica, Santo Agostinho disserta sobre o facto de que na época era comum os
recém nascidos serem considerados a imagem de Deus, ainda incorruptos pelo homem. Se
Deus permitia que uma criança nascesse surda ou cega, era porque essa deficiência era
reflexo dos pecados dos seus pais (Plann 1997: 204). Ao fim e ao cabo, a surdez congénita de
uma criança era o pagamento (injusto, é certo) das vidas resolutas de seus pais.
Durante o período áureo do Tribunal de Santo Oficio, as minorias surdas foram uma presa fácil
na perseguição: surdos e deficientes mentais eram os primeiros a serem delatados. A tradição
católica ainda seguia os preceitos deixados por Santo Agostinho. É fácil perceber que estas
minorias não tinham protecção nos países cristãos. Na cristandade de pouco vale o Talmude
proteger os surdos de maus agoiros. Para cúmulo, os surdos eram muito mal vistos pela
sociedade medieval, porque eram sinónimos de fruto do pecado.
Aristóteles, S. Paulo e Santo Agostinho tiveram uma enorme importância na sociedade
medieval, muito devido à sua influência na igreja católica, e a importância que esta tinha nos
domínios sociais, filosóficos e políticos. Ao nível da educação e da qualidade de vida do
indivíduo surdo, a tríade de pensadores actuou como as três moiras da mitologia grega[3],
sensivelmente até ao século XVI. É necessário dizer que estes não foram culpados
conscientes da discriminação dos surdos. Se quisermos apontar os culpados, tais foram a
leitura que foi feita pelos escolásticos medievais sobre os escritos sacro-filosóficos, ou então, a
ignorância e o preconceito que reinava na Idade Média.
Os pioneiros espanhóis. Como já foi referido, ser progenitor de uma criança surda era uma
provação para muitos. A tradição medieval falava de castigo de Deus, de pecado, etc. Uma
família com uma criança surda era sinónimo de família pecadora, logo manchada pela
desgraça social.
Oliver Sacks (2002: 27) refere que até 1750 a vida de um surdo pré-linguistico[4] era
calamitosa. No cômputo geral, é aceitável concordar com Sacks, no entanto no século XVI
encontramos gente a remar contra maré.
Uma das famílias mais poderosas de Espanha no século XVII (que era basicamente o mesmo
que dizer uma das famílias mais poderosa do mundo), a família Velasco, foi duplamente
manchada pela desgraça: dois dos filhos de Pedro Velasco, um dos patriarcas da família, eram
surdos. Como era usual na altura, as famílias com algum poder em Espanha encerravam os
seus entes não queridos em conventos: uma filha grávida antes do tempo, que se recusasse a
casar com quem a família designasse, que não tivesse um comportamento considerado
adequado segundo os padrões da época ou uma criança ilegítima era um passaporte para o
encerramento num dos inúmeros mosteiros espanhóis. O acaso permitiu que Fernando e
Pedro, os dois gémeos Velasco, fossem encerrados num convento benedetino de Oña.
Convém, neste momento, reflectir sobre a Ordem de S. Bento. A regra mais importante desta
ordem era o voto de silêncio a que os seus membros eram obrigados. Acreditavam que o
silêncio era sinal de humildade, e através dele se evitavam conversas fúteis e sem sentido. As
primeiras ordens que obedeciam à regra do silêncio remontam ao século III, mas a ordem
beneditina foi a mais importante da Europa ocidental. Os monges depressa descobriram que
podiam comunicar sem no entanto quebrarem os seus votos, utilizando as mãos. De acordo
com António Yepes (in Plann 1999: 211), o Liber ceremoniarum monasterii sancti Benedictini
Vallisolentani descrevia 360 gestos diferentes “ para todas as coisas mais importantes, e com a
qual [os monges] se faziam entender”[5]. Inconscientemente os Benedetinos estavam a criar
uma proto-língua gestual.
Neste contexto, a melhor ajuda que um surdo podia ter seria precisamente a de um beneditino,
e os dois gémeos surdos foram internados num convento beneditino. Mas o que a história não
nos deixou foi se se tratou de uma coincidência, ou se Pedro Velasco teria a consciência de
que o mosteiro de Oña era o local indicado para internar os seus filhos.
Um dos monges desse mosteiro era também oriundo de uma importante família de Castela,
Pedro Ponce de León de seu nome. Acredita-se que Ponce de León fora encerrado no
convento de Oña por motivos similares aos dos gémeos: serem entes não queridos pelas suas
famílias.[6] Uma das tradições benedetinas era a designação de um “anjo da guarda” aos
recém chegados (Plann 1999: 22), ao qual cabia a tutela dos jovens, a sua instrução
(principalmente leitura e aritmética), e o ensino dos aspectos directamente relacionados com a
ordem, como os rituais de comunicação gestual que precediam as cerimónias religiosas. Ponce
de León aceitou ser o “anjo da guarda” dos irmãos Velasco. Mas Ponce de León não ensinou
apenas, também aprendeu com os irmãos gémeos. Antes de existirem sistemas codificados de
língua gestual, ou sistemas de pedagogia de surdos, estes criavam gestos próprios, para se
puderem fazer entender. Fernando e Pedro tinham inventado códigos gestuais próprios
impelidos pela necessidade de se compreender mutuamente, e Ponce de León depressa ficou
a conhecer esses códigos. Se o reportório gestual dos beneditinos reflectia a vida monástica, o
repertório gestual dos Velasco reflectia a vida familiar e quotidiana. Mas depressa os três
descobriram um fenómeno que viria a ser re-descoberto no sec. XX: o reportório gestual dos
monges de Oña era influenciado pela língua espanhola, porque tal era a língua falada pelos
monges[7]. Os gestos beneditinos eram uma tradução gestual de uma língua materna. Mas o
caso dos gémeos Velasco era particularmente diferente pois desconheciam o espanhol, tanto
na sua forma oral (eram surdos), como na sua forma escrita (nenhum pedagogo se aventuraria
a ensinar a ler e a escrever duas crianças surdas). Portanto, a comunicação gestual dos irmãos
Velasco era regida por regras próprias conhecidas apenas por eles. Ponce de Leon de certeza
se sentiu estimulado a tomar a braços a educação dos jovens aristocratas. Interessante é o
facto de o repertório benedetino ser limitado, todos os gestos para além do estritamente
necessário à vida monástica eram considerados, e chamados, inúteis (Barakat, in Plann 1999:
212).
Como aos Velasco não foi imposto regra alguma, eles criaram gestos à medida que
precisavam. O trabalho com as crianças colhe os seus frutos, e a fama do Monge benedetino
espalha-se pela Espanha Católica. Depressa o mosteiro de Oña se torna um centro de
educação de crianças surdas da nobreza espanhola. A prevalência de crianças surdas na
nobreza espanhola era considerável, não só pelas condições sanitárias da época, mas pelas
mesmas razões que a hemofilia se espalhou pelas casas reais europeias do sec. XIX: causas
genéticas. A família Velasco carregava nos seus genes a deficiência auditiva e por vias dos
muitos casamentos que o patriarca Velasco estabeleceu com várias famílias nobres da
Espanha, estas passaram a carregar também este problema genético (Plann 1999: 37-38).
A metodologia de León consta ser: primeiro perceber a criança surda, como é que ela
comunica com o mundo, depois ensinar a criança ler, e se ela for capaz, ensinar vocalizações
e leitura labial. Aponta-se a objectos e explica-se como dizer (Plann 1999: 31).
O mosteiro espanhol foi visitado por médicos, filósofos e nobres que acorreram ao mosteiro de
Oña para ver como o monge salva os surdos. Girolamo Cardano, um médico-filósofo muito
conceituado na sua Itália natal, é um dos inúmeros visitantes que tem um particular interesse
no método do beneditino por ser pai de uma criança surda. Depois de conhecer o trabalho
espanhol e do seu contacto diário com o seu filho, Cardano conclui:
É possível dar a um surdo condições de ouvir pela leitura e de falar pela escrita (...) pois assim
como diferentes sons são usados convencionalmente para significar coisas diferentes, também
podem ter essas funções as diversas figuras de objectos e palavras(...) caracteres escritos e
ideias podem ser conectados sem a intervenção de sons verdadeiros. (Sacks 2002: 29)
Afirmar que ter ideias independe de ouvir palavras era revolucionário para a época. Cardano
concluiu isso pelo contacto com o seu filho, que lhe expressa ideias e emoções, e confirma a
sua teoria em Espanha. À data da morte de Ponce de León, 1584, não havia sucessor à altura
deste, talvez porque apesar da sua fama de pedagogo ninguém se interessou pela arte de
ensinar surdos (Plann 1999: 37). Pelo menos durante alguns anos.
Já no século XVII um jovem ambicioso apercebeu-se não só da importância que as famílias
nobres espanholas davam à educação de seus entes surdos, mas também do prestígio e da
influência que daí advinha. O aragonês Juan Pablo Bonet era um homem das sete-partidas: foi
militar e político, e nas suas andanças combateu piratas Italianos e de Sabóia, conheceu Lope
de Veja na Argélia até voltar a Espanha para ser secretário Juan de Velasco. Durante as duas
décadas que se passaram sem Ponce de León, apenas um professor em Espanha tentava
ensinar crianças surdas. Chamava-se Ramirez de Carrion e estava ao serviço exclusivo da
Duquesa de Frias, que havia enviuvado de um membro da família Velasco, e claro está, com
um filho surdo. Bonet trava conhecimento com Carrion, chegando a partilhar os mesmos
aposentos até à morte deste. A duquesa tenta arranjar um preceptor para o filho e Bonet, que
se considerava um homem de letras candidata-se ao cargo, dizendo à duquesa que Carrión lhe
havia revelado a forma de educar crianças surdas, o que parece improvável, uma vez que este
escondia a todos o seu método de trabalho (Plann 1999: 43). À falta de melhor a duquesa
aceita, mas o novo professor não parece fadado para a tarefa. Susan Plann afirma que o
fracasso como professor não impede Bonet de escrever o primeiro livro sobre o ensino de
surdos, Reduccion de las letras y arte para enseñar a ablar los mudos, de espalhar a sua fama
de preceptor de um membro da família Velasco por Madrid, e de ter feito uma descoberta
maravilhosa: o caminho secreto para ensinar crianças surdas (Plann 1999: 42). O seu método
era bastante inovador. Bonet achava que se devia tentar ensinar o surdo a falar, mas também
dava muita importância aos gestos. Criou um modelo de uma língua em couro maleável e
demonstrava a posição da língua em cada letra do alfabeto em cada som. Pediu a um gravador
para lhe fazer os desenhos das posições das mãos para facilitar a memorização da posição
das mãos (Rée 1999: 100-103) Bonet não ensina a leitura labial porque não acredita nela
(Plann 1999: 47).
Mais uma vez a Espanha está na vanguarda, e atrai intelectuais de toda a Europa para
travarem conhecimento com a arte de ensinar os que não ouvem e não falam. Estes
intelectuais vêm para conhecer Bonet e para adquirir o seu livro. Depressa aparecem
traduções por toda a Europa. Mas Bonet já não está interessado na pedagogia. Acha que o seu
trabalho nessa área cessou, e tendo deixado trabalho escrito, outros podem continuar. Bonet
dedica-se apenas à política.
Outros tentam outros métodos: Sachs de Lewenheim relata alguns métodos em voga na altura,
como enviar os surdos para um vale com bastante eco e obrigá-los a gritar, ou gritar para um
balde ou um tonel de vinho tão alto quanto possível. O processo de “cura” mais insólito tinha a
seguinte receita: rapar uma coroa na cabeça do surdo, aplicar-lhe uma mistura de Brandy,
salitre, óleo de amêndoas e petróleo que depois de fervido era misturado com nafta. O
unguento era espalhado duas vezes por dia na cabeça rapada do surdo até o cabelo
reaparecer. Entretanto, falava-se para a coroa e o surdo era capaz de ouvir.
O Método Francês. Como Sacks apontou, até 1750 a vida dos surdos era miserável. Os
espanhóis conseguiram alguns avanços na educação dos surdos, mas apenas a nobreza foi
privilegiada. Um surdo que não pertencesse à nobreza não tinha direito a nada. Porque é que
Sacks refere um ano específico? Graças a algumas mentes brilhantes, o ano de 1750 é
considerado o annus mirabillis da pedagogia de surdos.
Como vimos até agora, o centro nevrálgico da pedagogia de surdos era a Espanha, pelas
vicissitudes decorrentes da quantidade de surdos que existiam na nobreza espanhola. A
necessidade aristocrática foi a mãe da invenção da pedagogia de surdos. Mas a morte de
Ponce de León, o oportunismo e posterior desinteresse de Bonet e o secretismo de Carrión
põe tudo a perder em termos de educação de surdos em Espanha. Entretanto, a capital
intelectual da Europa passa a ser Paris, fruto do Iluminismo e do movimento Enciclopédico. O
centro da pedagogia de surdos também passa para França. Os principais nomes da revolução
educativa sugerida por Sacks são Jacob Pereira, Diderot e De L´Épée, principalmente.
Jacob Rodrigues Pereira era um judeu português que fugindo à Inquisição se instala em
França. Em 1745 diz ter inventado um método para ensinar os surdos a falar, e para o
demonstrar convoca uma série de intelectuais da época para verem que um jovem surdo fala
com ele praticamente todas as letras do alfabeto, algumas palavras e até frases. A audiência
chegou céptica mas saiu impressionada (Rée 1999: 142). De tal forma que os pais de um
jovem surdo chamado Azy d´Étavigny convidam o português a cuidar dele, depois de terem
recorrido ao que de melhor havia em França em termos de medicina e pedagogia e de terem
provado por todas as vezes o insucesso. O trabalho com o jovem depressa deu frutos, e
Pereira estabelece uma escola de surdos, que recebia em simultâneo 3 ou 4 crianças. Diderot,
Rousseu e Buffon fizeram do judeu uma celebridade filosófica, e Pereira aproveitou a sua
reputação pedagógica e filosófica para integrar as mais diversas sociedades científicas do seu
tempo. Apesar da fama, Pereira estava numa posição delicada: Mesmo sendo um país mais
aberto do que os países ibéricos, a França era um país católico, e Pereira era judeu, e estes
poucas vezes eram benquistos na comunidade católica. O facto de apenas receber 4 crianças
de cada vez pode-se explicar pelo facto de que as famílias não queriam conceder a um judeu a
educação de seus entes. Pereira era relutante em ensinar a outros o seu método, considerado
um sucesso (Rée 1999: 144). Designou o seu filho como sucessor, mas Pereira morreu antes
que ele pudesse ter aprendido alguma coisa. Nada se sabe sobre o método de ensino de
surdos empregado por Pereira.
À procura da língua perfeita. Uma das demandas filosóficas da época iluminista era a língua
perfeita. Muitos filósofos acreditavam que as línguas eram um depósito de corruptelas tais
eram as influências sofridas de outras línguas. As línguas estavam cravadas com duplos-
sentidos, metáforas, sinónimos, etc. Para Diderot, um dos grandes nomes do Enciclopedismo e
do Iluminismo francês, as figuras de estilo não passavam de corrupções à língua. Uma das
teorias em voga era a de que quanto mais antiga fosse uma língua, mais pura seria. Por língua
pura, os iluministas acreditavam ser as línguas despidas de sinónimos e metáforas, por
exemplo. Muitas experiências foram feitas para aferir a origem das palavras, ou qual a mais
antigas das línguas. Segundo a narração de Heródoto (Torres Gallardo 1999: 30-31), o faraó
Psamético I, interessado em descobrir a mais antiga das línguas, confiou dois recém-nascidos
a um pastor a quem deu a ordem de educar as crianças sem lhes dirigir a palavra. O rei proibiu
toda e qualquer comunicação oral com elas. Dessa forma, pensava o rei, as primeiras palavras
que as crianças pronunciariam seriam da língua mais antiga do mundo. Volvidos alguns anos,
o pastor informou o rei que as crianças apenas pronunciaram a palavras “bekos”. Após
algumas investigações descobriu-se que “bekos” significava “pão” em frígio, logo o frígio seria a
mais antiga das línguas.
Uma discussão tradicional nos meios académicos e escolásticos medievais era a questão da
língua falada por Adão e Eva. Muitos acreditavam ser o hebraico e outros, o latim. Para
dissipar as dúvidas, o imperador do Sacro Império Romano do Ocidente, Frederico II (1212-
1250), voltou a experimentar a fórmula de Psamético, mas com a diferença das crianças serem
retiradas de todo o contacto humano. As crianças morreram antes de se chegar a alguma
conclusão. Oliver Sacks aponta outros casos, com outros protagonistas como Jaime IV da
Escócia ou Carlos IV da França. Mas o caso mais interessante aconteceu no século XIX com
Akbar Khan, um rei afegão. Este repetiu a experiência com amas surdas, que comunicavam
com as crianças através de gestos, sem que o Khan soubesse de tal. Aos doze anos de idade
as crianças foram apresentadas ao Khan, e expressaram-se por gestos. Como Sacks fez notar,
Não existia, ficou claro, uma língua inata ou adâmica e, se nenhuma língua fosse usada,
nenhuma seria adquirida; mas se fosse usada alguma língua, mesmo de sinais, essa se
tornaria a língua das crianças (Sacks 2002: 130) .
Só no século XVII é que Johann Herder provou que a linguagem humana não era um dom
divino, mas sim uma construção mental. Herder afirmou que a língua surgiu de um impulso que
o ser humano tem em falar de se expressar. Os primeiros humanos começaram a comunicar-
se através de gritos que imitavam os animais, gritos esses que passaram a ser o nome pelo
qual esses animais tornaram conhecidos. É óbvio que a teoria de Herder tem tanta lógica do
que a hipótese de Adão e Eva terem falado hebraico.
Como humanista que era, Diderot achava que a descoberta da “língua perfeita” não devia de
ser feita com experiências que só traziam sofrimento a crianças, mas através da investigação.
Com efeito, Diderot descobriu que os surdos franceses expressavam-se através de uma língua
particularmente diferente das outras: expressavam-se por gestos. Ao investigar estes gestos,
Diderot descobriu que esta forma de comunicação não tinha as corrupções típicas da língua
francesa. Diderot descobre muitas semelhanças na forma de comunicar entre os surdos de
Paris. Em breve o Enciclopedista escreve uma carta, no seguimento da “Carta sobre os cegos
para uso dos que vêm”, denominada de “Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que
ouvem e falam”. Esta obra, cujos protagonistas são o próprio Diderot e um amigo surdo, apesar
de não ser uma das obras principais sobre a surdez (na verdade, muito pouco se fala sobre
surdez), teve o condão de proporcionar aos iluministas uma nova visão sobre a surdez.
O nome mais importante da educação dos surdos, é Charles Michel de L´Épée (1712-1789).
L´Épée é um homem do iluminismo, assim como Diderot, e ficou impressionado com a
comunicação dos surdos. Algumas fontes dizem que a sua curiosidade foi fruto da leitura do
diálogo platónico Crátilo (Sacks 1998: 29); outros (Lane 1997: 108; Rée 1999: 147) afirmam
que foi por ver duas irmãs surdas que se impressionou com a língua gestual. Logo que L`Epée
encetou conversa com as duas crianças descobriu que elas deviam poder ter acesso à
confissão, para irem para o inferno. Como disse, L´Épée era um iluminista, e quando descobriu
que existiam muitos surdos em Paris que se comunicavam de uma forma semelhante à das
duas crianças, incorreu num erro que ainda hoje é frequente encontrar: acreditar que a língua
gestual é universal. Acreditando nisso, L´Épée criou a Dactilologia (Rée 1999: 158): uma forma
metódica de comunicação entre os surdos. L´Épée acreditava que a Dactilologia era mais
perfeita que as línguas orais, uma vez que acreditava que os gestos tinham a capacidade de
atravessar fronteiras que as línguas orais não conseguiam (INJS s/d). A Dactilologia seria,
então, um veículo da paz e da concórdia entre os povos. Mas o que realmente marcou a vida
deste homem não foi a Dactilogia, até porque hoje se sabe que a sua teoria estava errada. O
grande feito de L´Épée foi, sem dúvida, a criação da Instituition Nationale de Jeunes Sourds de
Paris (Instituição Nacional de Jovens Surdos de Paris), uma escola pública, frequentada por
jovens surdos que antes frequentavam outras escolas, ou que residiam em bairros pobres. Não
só se preocupou com a educação de surdos, mas também lutou pelos seus interesses: de se
casar livremente (precisavam de consentimento papal), de conversar na sua própria língua, de
se inscrever nas mutualidades, de serem interpretados em tribunal, etc. Além disso, L´Épée
provou perante o grande público aquilo que poucos sabiam, e a maioria ignorava: os surdos
podiam ser educados. Ao contrário dos outros educadores de surdos até então, L´Épée
encarregou-se de promover os conhecimentos: todos os educadores eram livres de aperfeiçoar
o seu método de ensino. A grande vantagem do seu método era a quantidade de alunos que
podiam ser ensinados em simultâneo. Enquanto no método de Pereira apenas alguns podiam
ser ensinados (de acordo com Rée apenas 4 de cada vez) no caso de L´Épée podiam ser
ensinados dezenas de cada vez, quando não mais (Rée 1999: 161-162). L´Épée morre em
1789, e o Estado Francês garante o funcionamento da Instituição criada por si, condedendo-lhe
todas as honras da época (Verne 2001) A Revolução Francesa viu em L´Épée a síntese
daquilo que deveria de ser a França: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Os americanos. A história dos surdos é feita de pequenos nadas, pormenores que facilmente
se remeteriam para os rodapés da história. Um dos maiores contributos para a pedagogia de
surdos foi dado porque uma criança não brincava com as outras. Essa criança chamava-se
Alice Cogswell e era filha de um cirurgião. Diz-se (Sacks 2002: 35) que um dia o reverendo
Thomas Gallaudet reparou que uma criança não brincava com as demais. Essa criança era
surda. Gallaudet entrou logo em contacto com o seu pai, e descobriu que não existia forma de
ensinar a criança a ler ou a escrever, porque não existia quem a ensinasse. Gallaudet tentou-a
ensinar, mas cedo descobriu que não estava à altura. Na inexistência de escolas ou
professores para surdos nos Estados Unidos, Gallaudet rumou à Europa. Primeiro foi à
Inglaterra, onde existia uma escola oralista com bastante reputação: a Braidwood. O problema
é que a direcção da escola não estava disposta a ensinar um estrangeiro o método de educar
um surdo. O método era secreto, e não podia ser ensinado a ninguém. Por obra do acaso,
Gallaudet encontra um professor surdo francês, Laurent Clerc, que está na disposição de ir aos
Estados Unidos para criar uma escola de surdos. Os dois atravessam o Atlântico, e Clerc vai
ensinando Gallaudet nos dois meses que dura a viagem. Harlan Lane (1997: 151) fala sobre o
assunto:
Quando Thomas Gallaudet partiu para a França para aprender como educar crianças surdas,
virou-se para Laurent Clerc, o mais importante professor surdo da escola de Paris e disse-lhe:
«Ensine-me». Regressaram à América juntos. Clerc escreveu mais tarde: «Demos por bem
empregue o tempo da viagem. Ensinei ao Sr. Gallaudet o método de sinais e ele ensinou-me o
inglês. (Lane 1997: 151)
Clerc e Gallaudet criam a escola de Surdos de Hartford e para além do ensino de surdos, Clerc
trabalha na criação da Língua Gestual Americana tendo por base a Língua Gestual Francesa.
O trabalho desenvolvido por Clerc tornou-se referência na educação de surdos nos Estados
Unidos.
A utopia Surda. É frequente encontrar nos jornais notícias como esta:
Uma aldeia para surdos
Marvin T.Miller é surdo. (...) [Miller] imagina a aldeia que espera construir: um local onde a
Língua Gestual Americana seja língua oficial – na escola, no Conselho Municipal, nos
restaurantes, onde os empregados terão de dominar língua gestual para tomar nota dos
pedidos.
Cerca de uma centena de famílias (algumas do Reino Unido e da Austrália) já reservaram um
terreno. Algumas fizeram-no porque um dos seus é surdo ou ouve mal, outra porque desejam
comunicar em Língua Gestual. A aldeia adoptará o nome de Laurent, em homenagem a
Laurent Clerc [...]. (Davey 2005:46)
O sonho de se criar um lugar onde ninguém seria discriminado por ser portador de uma
deficiência é acalentado por milhares de deficientes, e a comunidade surda sempre esteve na
frente dessa esperança. Já Ambrose Sicard, o sucessor de L´Épée nos destinos do Instituto de
Surdos de Paris havia imaginado uma comunidade assim:
Não poderia haver em alguma parte do mundo uma sociedade de pessoas surdas? Pois bem:
julgaríamos então que esses indivíduos são inferiores, que não são inteligentes e lhes falta
comunicação? Eles certamente teriam uma língua de sinais, talvez uma língua até mais rica
que a nossa. Essa língua seria no mínimo isenta de ambiguidades, sempre fornecendo uma
descrição precisa dos estados da mente. Assim porquê essas pessoas não seriam civilizadas?
(...) (Lane 1997: 84)
A procura não é apenas de uma utopia, mas uma Anti-Babel: todos se compreenderiam, todos
se comunicariam numa mesma língua, que por ser livre de ambiguidades, isentaria os seus
usuários dos males que essas ambiguidades acarretam. Todos se compreenderiam
mutuamente, todos compreenderiam as leis e as ordens. Não existiria espaço para a confusão,
para os duplos sentidos, para as meias verdades.
A ideia de uma utopia surda não só não é nova como chegou a existir, apesar de não ter sido
criada artificialmente. O acontecimento deu-se, porque as circunstâncias assim o
proporcionaram. Uma série de coincidências que acontecem poucas vezes na história permitiu
a sociedade de pessoas surdas que Sicard propunha. Em Martha´s Vineyard, no
Massachusetts, houve uma conjugação de factores como o isolamento, a endogamia e uma
mutação genética fizeram com que a incidência de surdos fosse enorme. Sacks (2002: 45)
afirma que na zona norte da ilha a prevalência de surdos era de uma em quatro pessoas. A
endogamia fez com que praticamente todas as famílias tivessem pelo menos um membro da
família surdo (Berke s/d). Aliás, a surdez era tão normal na ilha que Nora Groce, autora da obra
“Everyone here spoke sign language: hereditary deafness on Martha´s Vineyard”, quando se
deslocou a Martha´s Vineyard para entrevistar alguns residentes acerca dos habitantes surdos
já falecidos, os residentes nem se lembravam se esses habitantes eram de facto surdos (Sacks
2002: 35). Tais habitantes não eram vistos como surdos, nem tampouco como deficientes. O
mais surpreendente, no ver de Oliver Sacks, que visitou a ilha nos anos 90, era que, apesar de
o último ilhéu surdo ter morrido em 1952, os habitantes ouvintes preservavam a herança surda
e ainda comunicavam através da língua gestual. De tal forma, que quando não se lembravam
de uma certa palavra em inglês gestualizavam a palavra em língua gestual.
O congresso de Milão de 1880. Como foi visto, existiam duas visões diferentes sobre a
educação de surdos. Uma corrente defendia a oralidade, que advogava que o indivíduo surdo
devia de ser forçado a aprender a falar sons, mesmo sem poder ouvir os sons que produzia. O
surdo era obrigado a aprender a leitura labial, e os gestos eram proibidos. Este método era
maioritariamente defendido pelas escolas alemãs, inglesas e pela sociedade Pereira em
França. Do outro lado, encontramos o método gestual defendido pela escola de Surdos de
Paris e pelo Colégio Gallaudet nos Estados Unidos.
O professor E. A. Fay, no “American Annals of the Deaf” (Moeller s/d) distingue cinco
metodologias diferentes de educação de surdos, e não apenas duas. São elas:
1- O método Manual: Neste método privilegia-se os gestos, o alfabeto manual e a escrita e tem
por objectivo que o surdo desenvolva as suas capacidades mentais, a sua compreensão e o
uso da escrita.
2- O método do Alfabeto Manual: Utiliza-se basicamente o alfabeto manual e a escrita para a
compreensão. Algumas escolas americanas permitem neste método o ensino da fala e da
leitura labial.
3- O método Oral: como o nome indica, este método tem como forma de educação a leitura
labial e a fala. Esta metodologia permite a utilização de gestos apenas enquanto o aluno não
adquirir competências ao nível da fala e da leitura labial.
4- O Método Auricular: Este método é utilizado em surdos parciais e não em surdos profundos,
que com a utilização de aparelhos podem desenvolver a fala e a escrita, assim como a
audição.
5- O Sistema Combinado. Este sistema tem como objectivo principal o desenvolvimento das
capacidades cognitivas do surdo. Apesar de dar mais ênfase ao sistema Fala-Leitura Labial,
este método acredita que os outros sistemas também podem ajudar o surdo a ser educado.
Como tal, ajusta a cada caso a melhor metodologia.
Os cinco métodos de educação de surdos que Fay reconhece mais não são do que variações
sobre a oralidade/gestualidade. Os dois primeiros métodos são na sua essência gestuais, o
terceiro e quarto métodos são essencialmente orais, sendo que o quinto é uma mistura de
diferentes de métodos.
A grande questão é a inexistência unificação de métodos pedagógicos, e os métodos variavam
até de país para país.
A Sociedade Pereira, um grupo de pedagogos franceses com uma enorme influência nas
escolas de surdos europeias, realizou um congresso que iria ditar mudanças radicais na
pedagogia dos surdos. A Sociedade Pereira queria que o método Oral fosse o método de
eleição para a educação de surdos. Ironicamente, apesar da Sociedade Pereira ser francesa,
advogava o chamado “método alemão”, um método oralista criado por dois médicos alemães,
Johann Amman e Samuel Heinicke.
Antes de mais, é conveniente determo-nos uns instantes sobre os dois métodos. O método
Gestual privilegia o gesto em todas as suas formas. Acredita que a forma natural dos surdos se
comunicarem é o gesto e a expressão, e como tal, as escolas de surdos tentam agrupar o
maior número de crianças possível, para que haja a maior interacção possível entre os surdos.
Para além do mais, é muito mais fácil ensinar grupos grandes o método gestual.
Os principais defensores da causa gestual foram Michel de L´Épée, o Abade de Sicard
(sucessor de L´Épée à frente da Escola de Surdos de Paris), a família Gallaudet, Laurent Clerc
e a comunidade surda.
Do outro lado da barricada está o método Alemão, que privilegia a oralidade. O principal
argumento dos defensores deste método, era de o método Gestual era discriminativo pois
criava uma separação entre os ouvintes e os surdos. Além do mais, a língua gestual era
considerada “rudimentar, primitiva, pantomímica, confrangedora” (Sacks 2002: 33). Era uma
língua de selvagens que devia de ser erradicada. Os principais defensores do Oralismo, para
além da Sociedade Pereira, eram a comunidade ouvinte e Alexandre Graham Bell (Rée 1999:
228), um dos grandes inventores da História da Humanidade, que inventa o telefone não com
os fins que hoje lhe conhecemos, mas sim no intuito de ajudar os surdos a ouvir (no caso a sua
mulher e a sua sogra, surdas de nascença).
Bell tinha uma enorme reputação nos Estados Unidos e na Europa, e enquanto fervoroso
apoiante do oralismo jogou a sua influência para tentar acabar definitivamente com a
gestualidade.
Em Setembro de 1880 juntou-se em Milão um grupo de pedagogos no intuito discutir a
educação de surdos. A maioria dos congressistas era italiana (mais de metade segundo Lane
(1997: 110), seguida de franceses, que no seu conjunto representavam sete oitavos dos
congressistas. Depois de muitas prelecções preconceituosas (Lane 1997: 110; Sacks 2002:
40), passaram-se às votações.
A maioria dos participantes no evento aprovou uma resolução que bania as línguas gestuais na
educação dos surdos. As resoluções principais do Congresso eram[8]:
Resolução 1 – O congresso, considerando a incontestável superioridade da fala sobre os
gestos na recuperação do surdo-mudo para a vida social, e por lhe dar uma maior facilidade na
linguagem, declara que o método Oral deve ter preferência sobre o método Gestual na
instrução do surdo-mudo.
Resolução 2 – Considerando que o uso simultâneo de gestos e da fala tem como
desvantagem a ineficácia da fala, da leitura labial e da precisão das ideias, este Congresso
declara que o método oral deve ter a preferência.
Todas as resoluções foram votadas com 160 votos a favor contra 4 (da delegação dos Estados
Unidos). O filho de Thomas Gallaudet - Eduard Gallaudet - notou que nenhum delegado ao
congresso era surdo (Rée 1999: 229).
A partir de 1880 nenhuma escola podia ensinar a língua gestual desse país. As línguas
gestuais foram consideradas criações inócuas de seres desprovidos de fala. Daí em diante o
termo “surdo-mudo” era utilizado para designar os surdos. A decisão de banir as línguas
gestuais foi tomada por se acreditar que nenhuma língua gestual possuía uma estrutura
Léxico-Gramatical, e, segundo o Presidente do Congresso, nem era possível que tal
acontecesse, uma vez que as línguas gestuais “não se coadunam com a dignidade da natureza
humana” (Lane 1997: 111-112). Mais ainda: as línguas gestuais foram tidas como sistemas
híbridos de mímica e de gesto mais ou menos ritualizado, que apesar de serem capazes de
expressar sentimentos básicos e necessidades primárias, nunca seriam capazes de expressar
capacidades cognitivas, conceitos abstractos e discursivos dos seus utilizadores. Assim, a
Língua Gestual foi considerada uma forma de comunicação infra-linguistica, sem valor
educativo, intelectual e social. Como acontece em tantas outras vezes, a comunidade surda
não foi tida nem achada para os efeitos da sua própria educação. Todo o trabalho desenvolvido
na pedagogia dos surdos desde o Abade de L´Épée caiu por terra, em prol de uma suposta
educação bilingue e intercultural que nunca aconteceu. Bastaram dois dias para deitar por terra
o trabalho de vários séculos.
No final da reunião ficou decidido que as escolas deveriam adoptar o método Oral, que as
crianças deviam de ser admitidas com idades compreendidas entre os 8 e os 10 anos de idade,
que cada turma devia de ter no máximo 10 alunos e a educação de um surdo devia durar 7
anos. Os Estados Unidos não ratificaram a decisão tomada pela Conferência, por não
concordarem com o método oral.
As repercussões do Congresso foram imediatas. Os professores surdos foram despedidos, as
crianças surdas que utilizassem gestos eram castigadas, centenas de escolas para surdos
foram gradualmente fechando uma vez que os professores ouvintes não conseguiam ensinar
as crianças surdas, e como tal recusavam-se a ensinar. As escolas gestuais, para não fechar,
eram forçadas a converterem-se em escolas orais.
Apesar de tudo, e como os Estados Unidos votaram contra as resoluções, a principal escola de
surdos da América, a Gallaudet, decidiu continuar a ensinar Língua Gestual Americana. Esta
decisão impediu que a Língua Gestual Americana se extinguisse e deu alento aos surdos para
continuarem a praticar a língua gestual.
Até aos anos 60 do século XX a situação era calamitosa para os surdos. Era-lhes proibido
expressarem-se na sua língua natural, a língua gestual, e eram obrigados a vocalizar uma
língua que não era a sua, tudo porque os surdos nunca foram tidos em consideração na sua
própria educação. Durante 80 anos a educação de surdos - com algumas honrosas excepções
como o Colégio Gallaudet, entretanto tornada Universidade - estava ao nível medieval. Mesmo
assim, o Universidade estava em risco, mas conseguiu sobreviver graças ao trabalho realizado
pela família Gallaudet.
A afirmação. Em 1955 William Stokoe entra para o corpo docente da universidade Gallaudet.
Era um linguista com interesse na cultura medieval, recrutado para ensinar Chaucer aos alunos
da Gallaudet (Sacks 2002: 88). Sendo ouvinte, nunca tinha prestado muita atenção na língua
gestual e na surdez, mas, chegado ao território inexplorado da língua gestual, logo começou a
trabalhar como linguista. Ninguém se aventurava no estudo da língua gestual porque o
preconceito era enorme. Para a maioria das pessoas, classe académica inclusa, a língua
gestual era uma deturpação da língua oral, uma pantomina desesperada feita por gente
desesperada em se fazer entender. Stokoe, influenciado pelos trabalhos de Saussure e de
Chomski, nada mais fez senão perceber que essa ideia era errada, e que a língua gestual não
era uma tradução da língua oral, mas sim uma língua completa, com todas as proposições,
estrutura lexical, sintáctica e gramatical que uma língua falada tem. Digo perceber e não
descobrir visto que os irmãos Velasco e Ponce de León no longínquo século XVII tinham
notado o fenómeno. O que Stokoe fez foi dar base científica ao fenómeno. Em 1960 publica
Sign Language Structure, um trabalho pioneiro, pois pela primeira vez um académico ouvinte
dedica um trabalho linguístico à língua gestual. O trabalho de Stokoe foi colectar o maior
número de gestos possível, notando posteriormente os pontos de semelhança entre eles:
chegou a 19 configurações da mão, que lhe chamou de queremas, 12 localizações e 24
movimentos diferentes (Sacks 2002: 89), para além de outras componentes, como por exemplo
a expressão facial. A tudo isto deu o nome de parâmetros (Torres Gallardo 1999: 87). A
combinação do querema, da localização e do movimento forma um gesto, mas um gesto pode
ter mais de uma localização, querema ou movimento. Assim, as combinações são infinitas, o
que prova que a língua gestual é uma língua tão rica como qualquer língua oral. O grande
mérito de Stokoe foi, sem dúvida a simplificação do que outros acreditavam ser difícil, senão
impossível: o estudo da língua gestual (no caso, a ASL –American Sign Language). Mas nem
tudo eram rosas e até mesmo a comunidade surda se mostrou céptica em relação ao jovem
ouvinte que estudava língua gestual. Depois de uma história de discriminação, de tormentos,
de estigmas, de maus-tratos e de serem vítimas dos maiores charlatanismos. Um dramaturgo
surdo com grande reputação nos EUA pelas suas peças em língua gestual, Gilbert Eastman de
seu nome, afirmou “Eu e os meus colegas rimos do dr. Stokoe e do seu projecto maluco: é
impossível analisar a língua gestual!” (Sacks 2002: 157). Rendido às evidências, Eastman
passou a ser um dos maiores defensores e divulgadores do trabalho de Stokoe.
O trabalho de Stokoe tem sido comparado com o trabalho feito por L´Épée por Gallaudet ou por
Laurent Clerc. Stokoe está para a Língua Gestual como por exemplo Freud está para a
Psicologia. De facto, a partir do momento em que Stokoe publicou os seus trabalhos, um
movimento cada vez maior de emancipação da comunidade surda (principalmente a
americana) luta para que sejam vistos como pessoas como quaisquer outras. Os surdos cada
vez mais se sentem não menores nem deficientes, mas apenas diferentes.
Reflexão final. Depois desta pequena revisão histórica, podemos afirmar que para a
comunidade surda o pior já passou. Neste momento uma criança surda pode ter acesso a uma
educação de qualidade, pelo menos na Europa e na América. Para isso, tiveram enorme
influência a determinação da comunidade surda que se organizou de forma exemplar para
promover a melhoria da sua condição de vida e os trabalhos de alguns ouvintes que
funcionaram como interlocutores entre a comunidade surda e a ouvinte.
Mas isso não é tudo. Os desenvolvimentos técnicos, como a invenção do implante coclear, a
invenção de novas formas de comunicação, como o fax, a internet, as comunicações móveis
(principalmente as mensagens de texto entre telemóveis, os populares SMS), possibilitam aos
surdos acesso à informação que à pouco mais de 20 anos era impossível. A comunidade surda
tem mostrado que não precisa de se subjugar à comunidade ouvinte, que pode caminhar no
sentido de uma emancipação total. Os surdos têm cada vez mais a consciência de que não
devem ficar estáticos, mas sim trabalhar no sentido de melhor as suas condições de vida.
Bibliografia consultada
Begonya Torres Gallardo
2000 La comunidad Sorda . Barcelona: Edicions Universitat de
Barcelona
Denis Diderot
1993 Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam.
São Paulo: Nova Alexandria.
Eulália Fernandes
2003 Línguagem e Surdez. Porto Alegre: Artmed editora,
Nadir Haguinara-Cervellini
2003 A musicalidade do surdo, representação e estigma. São Paulo:
Plexus editora.
Harlan Lane
1997 A máscara da benevolência, a comunidade surda amordaçada.
Lisboa: Instituto Piaget.
Jonathan Rée
1999 I see a Voice, deafness, language and the senses – a
philosophical history. Nova Iorque: Metropolitan Books.
Oliver Sacks
2001 Vendo Vozes, uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo:
Companhia das letras.
Susan Plann
1997 A Silent Minority. Los Angeles: University of California press.
Joel Schmidt
1995 Dicionário de Mitologia. Lisboa: Edições 70.
Recursos on-line
Moeller, F.A.
(s/d) “Education of the deaf and Dumb” in
http://www.newadvent.org/cathen/05315a.htm consultado em 6 de
Junho de 2005.
Sturley, Nick
(s/d) “Milan 1880, the historical facts” in
http://www.milan1880.com/Historical/Historicalfacts.html
consultado em 6 de Junho de 2005.
INJS - Institut Nationale de
Jeunes Surds de Paris
(s/d) “L'Abbé de l'Epée” in http://www.injs-paris.fr/abbe.htm
consultado em 6 de Junho de 2005
Berke, Jamie
(s/d) “Martha's Vineyard - Where It was Normal to be Deaf” in
http://deafness.about.com/cs/featurearticles/a/marthasvineyard.ht
m, consultado em 6 de Junho de 2005.
Verne, Jaques
2001 “Charles Michel, Abbé de l'Épée.” In
http://www.yanous.com/tribus/sourds/sourds011221.html
consultado em 6 de Junho de 2005
Periódicos
Davey, Mónica
2004 “Uma aldeia para surdos”. Courrier Internacional edição
portuguesa nº0 p.56.
Notas:
[1] Querológico deriva do grego χαιρ (charó – movimento das mãos) e λογος (logos – estudo).
À letra será qualquer coisa como “estudo do movimento da mãos”.
[2] http://wordnet.princeton.edu/
[3] As Moiras gregas (para os romanos são as Parcas) são três divindades que habitam o
Olimpo e vigiam o desenrolar da vida de cada homem: Cloto fia (a sua roca simboliza a o curso
da existência), Laquésis dispensa a sorte reservada a cada um e Átropo corta inflexivelmente o
fio da vida. (Schmidt 1995: 189)
[4] Sacks distingue o surdo pré-linguistico do surdo pós-linguistico (2002, 44). O surdo pré-
linguistico será, a grosso modo, o indivíduo que nasceu surdo, ou que ficou surdo antes de
aprender a falar; o surdo pós-linguistico é o indivíduo que ficou surdo depois de aprender a
falar.
[5] As palavras incluíam basicamente objectos do dia-a-dia (como os utensílios para comer,
para trabalhar e para ser utilizado na missa) acções habituais, e alguns estados emocionais;
assim como palavras ligadas à religião, como Deus, Cristo, Espírito Santo, Virgem Maria, Papa,
Bíblia, etc.
[6] de acordo com Plann (1999: 16, 211), crê-se Ponce de León era um filho ilegítimo. Esta tese
é sustentada devido ao facto de que Ponce de León nunca ter ascendido a posições superiores
no convento, apesar da sua enorme reputação. Essas posições eram vedadas a monges que
fossem internados devido a ilegitimidade.
[7] Curiosamente, Diderot esteve muito perto de se aperceber deste fenómeno, pelo menos a
crer no que escreveu na “carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem”: no caso
Diderot apercebeu-se que um surdo pré-linguistico não recebe as más influencias do francês
falado (Diderot 1993: 23)
[8] Ao todo eram 8 as resoluções a serem aprovadas pelo congresso. As restantes seis eram
sobre a educação de crianças surdas pobres; Como instruir surdos oralmente; a necessidade
de livros pedagógicos; as idades ideais para a aprendizagem oral e a duração da
aprendizagem; os benefícios a longo prazo da aprendizagem oral; a erradicação de língua
gestual nos estudantes (Sturley s/d).
Rui Gonçalves é assistente social formado pelo Instituto Superior Miguel Torga em
Coimbra. É um dos fundadores e principal dinamizador dos cursos de Língua Gestual
Portuguesa da Mãos Que Falam.
¶ 7:24 AM