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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
ETIMOLOGIA DOS HIDROTOPNIMOS DE PORTUGAL CONTINENTAL
HISTRIA LINGUSTICA DE UM TERRITRIO
Carlos Alberto Matias de Abreu Rocha
Orientadora: Prof. Doutora Esperana Maria da Cruz Marreiros Cardeira
Coorientadora: Prof. Doutora Ana Maria Martins
Tese especialmente elaborada para obteno do grau de Doutor
no ramo de Lingustica,
na especialidade de Lingustica Histrica
2017
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
ETIMOLOGIA DOS HIDROTOPNIMOS DE PORTUGAL CONTINENTAL
HISTRIA LINGUSTICA DE UM TERRITRIO
Carlos Alberto Matias de Abreu Rocha
Orientadora: Prof. Doutora Esperana Maria da Cruz Marreiros Cardeira
Coorientadora: Prof. Doutora Ana Maria Martins
Tese especialmente elaborada para obteno do grau de Doutor no ramo de Lingustica, na
especialidade de Lingustica Histrica
Jri:
Presidente: Prof. Doutora Maria Ins Pedrosa da Silva Duarte, Professora Catedrtica e
Membro do Conselho Cientfico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
- Doutora Ana Isabel Boulln Agrelo, Professora Titular da Facultade de Filoloxa da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha;
- Doutor Paulo Martnez Lema, Investigador ps-doutoral da Facultade de Filoloxa da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha
- Doutora Maria Filomena Candeias Gonalves, Professora Associada com Agregao da Escola de Cincias Sociais da Universidade de vora
- Doutora Maria Ins Pedrosa da Silva Duarte, Professora Catedrtica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
- Doutora Alina Maria Santos Mrtires Villalva, Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
- Doutora Esperana Maria da Cruz Marreiros Cardeira, Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
2017
1
Elsa
e Mariana
2
3
AGRADECIMENTOS
Esta tese o culminar de um percurso acadmico e de investigao que se arrastou
por circunstncias vrias, mas constitui tambm uma meta que foi alcanada, porque o
seu autor mantm com teimosia, desde a adolescncia, um grande interesse pelas lnguas
e pelas suas histrias. Foi este o cho donde teve o impulso para estudar melhor o
funcionamento lingustico, sempre com o propsito de saber mais sobre a relao das
lnguas com as culturas de povos e comunidades que as falam das mais variadas formas
no espao e no tempo. No fundo, estudar toponmia foi, em idade j bem madura, a
maneira de dar rumo a essa antiga curiosidade.
Agradeo, pois, a quem me ajudou a no exagerar deambulaes, comeando por
evocar a memria do primeiro orientador desta tese, o Professor Doutor Ernesto
dAndrade, falecido em abril de 2013. Quis o Professor Ernesto orientar a minha
investigao sobre os hidrotopnimos portugueses, numa fase em que ele, como
especialista em fonologia, tinha virado a sua ateno para os estudos diacrnicos, em
especial, para reconstruo do proto-indo-europeu. Guardo boas recordaes das reunies
de trabalho que tive com ele, em que no faltava o tom polmico e provocatrio que lhe
era caracterstico, espicaando a minha acomodao a certas rotinas mentais.
Mas determinante para conseguir materializar o trabalho que ora se apresenta foi a
orientao das Professoras Doutoras Esperana Cardeira e Ana Maria Martins, que
mostraram uma pacincia fora do comum para acompanhar um processo de investigao
e escrita constantemente interrompido pelos meus compromissos profissionais. Fico-lhes
sobretudo grato pelas preciosas indicaes metodolgicas que me foram transmitindo, as
quais me permitiram enfrentar com mais confiana as contrariedades e seguir em frente
at concluso e apresentao deste texto.
Agradecimentos ainda s Professoras Doutoras Teresa Brocardo e Maria do Cu
Caetano, que, em julho de 2014, me convidaram para participar nos Cursos de Vero da
Faculdade das Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a
organizao de uma sesso sobre a toponmia de Portugal. Fico igualmente grato ao
Doutor Paulo Martnez Lema, da Universidade de Santiago de Compostela, que se
disponibilizou para me dar indicaes e ceder bibliografia sobre os to dinmicos e
profcuos estudos de toponmia da Galiza, hoje uma referncia fundamental para a prpria
toponmia portuguesa.
4
O meu obrigado vai tambm para as pessoas que, ao longo deste percurso pessoal
e acadmico, tiveram sempre a generosidade de dirigir uma palavra de estmulo ou
manifestar interesse pelo tema desta e de outras teses. Por isso, muito obrigado Dra.
Teresa Silva Pinto, da Sociedade Portuguesa de Grupanlise e de Psicoterapia de Grupo,
bem como aos companheiros do grupo por ela conduzido Carlos Tom de Sousa,
Cludia Conceio, Francisco Henriques e Idlia Gonalves. Outro obrigado enorme
Dra. Edite Prada da Universidade Snior de Almada (USALMA) e aos seniores desta
mesma instituio, em particular aos que acompanharam com entusiasmo a disciplina
sobre dialetologia que orientei de 2013 a 2016.
Impe-se um agradecimento especialssimo a Jos Mrio Costa, fundador do
Ciberdvidas da Lngua Portuguesa, e a Jos Manuel Matias, investigador, ambos
coordenadores editoriais do referido site. Sem as facilidades que me concederam de
novembro de 2016 a maro de 2017, aliviando-me das tarefas associadas gesto desse
servio, onde trabalho h alguns anos e onde tanto tenho aprendido, eu no conseguiria
nunca acabar a investigao e elabor-la por escrito.
No poderia esquecer a Escola Secundria Cacilhas-Tejo (ESCT), a cujo quadro
perteno e donde igualmente tenho recebido grande incentivo. Deixo, portanto, um
agradecimento Dra. Margarida Fonseca, diretora da ESCT, e a todos os colegas que
foram recetivos ou deram apoio s minhas propostas de divulgao de temas da histria
da lngua e de toponmia em iniciativas resultantes da colaborao com o Ciberdvidas e
a USALMA
Entre familiares, destaco e agradeo o apoio dos meus irmos Antnio e Rui, da
minha cunhada Arminda e da minha sobrinha Mariana, que, nestes ltimos anos, visitei
menos do que gostaria, com muita pena minha, sobretudo porque, morando todos beira
do grande rio Tejo, de nome to antigo, poderamos ter feito belos passeios pelo cais do
Ginjal. Gratido pelo auxlio da minha prima Ana, cuja formao em Geografia foi
preciosa para dar coordenadas mais precisas aos meus comentrios toponmicos.
Finalmente, o registo de um obrigado Elsa pelo carinho, pela fora que incute em
quem est ao seu redor e pela enorme capacidade de aturar ou contrariar a injustia dos
meus numerosos acessos de mau-humor, os quais, felizmente, com tal ajuda se
transmutaram rapidamente em mais vontade de terminar esta tese, que lhe vai tambm
dedicada.
5
RESUMO
A presente tese constitui um estudo cujo tema, inserindo-se na histria da
onomstica portuguesa, o da etimologia dos hidrotopnimos de Portugal continental.
Com a finalidade de contribuir criticamente para a recuperao da etimologia como
disciplina mais atuante no contexto dos domnios da Histria da Lngua e da Lingustica
Histrica, retomam-se os trabalhos desenvolvidos em Portugal por Jos Leite de
Vasconcelos, Joaquim da Silveira, Pedro Cunha Serra, Domingos Moreira, Joseph-Maria
Piel, Jos Pedro Machado, Armando de Almeida Fernandes, Maria Lusa Azevedo, entre
outros. Igualmente consideradas so as propostas de H. Krahe, Edelmiro Bascuas,
Federico Corriente ou Eduardo Viaro. Tratando-se de um campo que convoca uma
perspectiva transdisciplinar, tambm dado relevo informao extralingustica
facultada por outros domnios de investigao, nomeadamente, pela Histria, pela
Arqueologia e pela Geografia.
So objectivos da tese: apontar os limites do inqurito lingustico na anlise
etimolgica dos hidrotopnimos de Portugal continental; enquadrar na discusso dos
estratos lingusticos a caracterizao nacional e regional do hidrotopnimos; rever ou
corrigir as propostas etimolgicas existentes. Para tanto, constam da tese uma introduo
seguida de cinco captulos: o primeiro consiste numa reflexo sobre a toponmia e a
etimologia como campos de estudo, incluindo uma discusso do papel do mtodo
comparativo e do mtodo de reconstruo interna na investigao de sincronias passadas
escassamente documentadas; no segundo captulo, procede-se reviso da literatura
produzida sobre a etimologia da toponmia portuguesa, dando especial ateno sua
estratificao; o terceiro captulo expe as opes tericas e os critrios metodolgicos
adotados para uma seleo dos hidrotopnimos e para a elaborao dos respetivos
comentrios etimolgicos; o quarto captulo constitudo por 481 comentrios
etimolgicos, distribudos por 18 seces, que correspondem aos 18 distritos do territrio
de Portugal continental. O quinto captulo identifica e discute as tendncias de
distribuio estratigrfica e geogrfica dos hidrotopnimos analisados.
Palavras-chave: toponmia, etimologia, hidrotopnimo, estrato, histria do portugus
6
7
ABSTRACT
The topic of this thesis concerns the diachronic aspects of Portuguese onomastics,
namely those concerning the etymology of a subset of Portuguese hydrotoponyms.
Arguing that Etymology is still relevant as a field of research to Historical Linguistics
and the History of the Portuguese Language, the discussion draws on studies carried out
in Portugal by scholars such as Leite de Vasconcelos, Joaquim da Silveira, Pedro Cunha
Serra, Domingos Moreira, Joseph-Maria Piel, Jos Pedro Machado, Armando de Almeida
Fernandes, among others. The work of H. Krahe, Edelmiro Bascuas, Federico Corriente
ou Eduardo Viaro is also considered. Given the interdisciplary character of the approach,
it will also use data provided by other types of research, namely History, Archeology and
Geography.
This thesis pursues the following goals: to draw the linguistic boundaries of the
etymological inquiry concerning Portuguese hydrotoponymy; to describe the role of each
linguistic stratum in its make-up; either to confirm or to correct the current available
etymologies regarding a selection of Portugues hydrotoponyms; and to identify their
distributional patterns. This thesis comprises an introduction followed by six chapters.
The first chapter discusses the status of Toponymy and Etymology as subfields of
research in Linguistics, including a critical overview concerning the role of the
comparative method and internal reconstruction. The second chapter reviews the
literature concerning Etymology and linguistic Statigraphy. The third chapter sets out the
theoretical options and the methodological criteria underlying a selection of Portuguese
hydrotoponyms and their etymological commentaries. The fourth chapter consists of a
series of etymological commentaries, distributed in 18 sections, as many as the 18 districts
of mailand Portugal. The fifth chapter analyses the distribution trends of the
hydrotoponyms discussed in the previous chapter.
Keywords: toponymy, etimology, hydrotoponym, stratum, history of Portuguese
8
9
NDICE
SIGLAS, SMBOLOS E CONVENES. 15
INTRODUO 19
1. CONSIDERAES SOBRE A TOPONMIA E A ETIMOLOGIA COMO SUBREAS
DOS ESTUDOS LINGUSTICOS
29
1.1. A toponmia como disciplina lingustica.....
1.2. Os topnimos como subclasse dos nomes prprios....
1.3. Propostas de classificao toponmica
1.4. A Etimologia enquanto subrea dos estudos lingusticos..
1.5. Toponmia, etimologia e interdisciplinaridade..
1.6. Sobre reconstruo lingustica: mtodo comparativo
e reconstruo interna (o caso do proto-indo-europeu).
1.6.1. A reconstruo do sistema fonolgico do
proto-indo-europeu......
1.6.1.1. Consoantes.
1.6.1.2. As fricativas
e a hiptese das consoantes laringais...
1.6.1.3. As sonoras e as sonoras aspiradas:
a hiptese glotlica.....
1.6.1.4. Vogais e soantes..
1.6.1.5. Sobre a reconstruo de *a...
1.6.2. Morfologia: razes e sufixos..
29
31
35
41
45
48
49
60
62
67
71
73
79
2. A ESTRATIGRAFIA DA HIDROTOPONMIA PORTUGUESA. 87
2.1. Histria da lngua, histria lingustica de um territrio
e histria do povoamento...
2.2. Bases lingusticas e histrico-referenciais da denominao
toponmica...
2.3. Estratigrafia lingustica: substratos, estrato, superstratos,
adstratos........
87
92
93
10
2.4. A distribuio estratigrfica da toponmia portuguesa...
2.4.1. Estratos pr-latinos (substratos).
2.4.1.1. Critrios para a definio da etimologia
dos hidrotopnimos pr-latinos.
2.4.2. Estrato latino-romance....
2.4.3. Superstratos germnico e rabe.....
2.4.3.1. O lxico comum e toponmico
de origem germnica....
2.4.3.2. O rabe na Pennsula Ibrica: bilinguismo
e diglossia..
2.5. Observaes finais...
97
101
132
136
144
145
150
158
3. CRITRIOS TERICOS E METODOLGICOS 161
3.1. A estrutura interna dos hidrotopnimos...
3. 2. Significado, referente e histria dos hidrotopnimos..
3.2.1. Histria de transmisso.
3.3. Critrios de atribuio estratigrfica....
3.3.1. A categorizao dos hidrotopnimos:os estratos::::.
3.3.1.1. Substratos pr-latinos (pr-indo-europeus
e indo-europeus)...
3.3.1.2. Estrato latino-romance
3.3.1.3. Superstrato germnico.
3.3.1.4. Superstrato rabe
3.4. O estudo dos hidrnimos portugueses: fontes para
o seu inventrio e comentrio etimolgico...
3.5. O tratamento de uma amostra do reportrio hidronmico
portugus: classificao e estrutura dos comentrios.
163
164
167
168
176
176
177
178
179
179
182
4. PARA UM DICIONRIO ETIMOLGICO DOS HIDROTOPNIMOS
DE PORTUGAL CONTINENTAL..
187
4.1. Distrito de Aveiro.....
4.2. Distrito de Beja....
4.3. Distrito de Braga..
187
233
247
11
4.4. Distrito de Bragana....
4.5. Distrito de Castelo Branco......
4.6. Distrito de Coimbra.....
4.7. Distrito de vora..
4.8. Distrito de Faro....
4.9. Distrito da Guarda.......
4.10. Distrito de Leiria....
4.11. Distrito de Lisboa..
4.12. Distrito de Portalegre....
4.13. Distrito de Porto....
4.14. Distrito de Santarm.
4.15. Distrito de Setbal.
4.16. Distrito de Viana do Castelo.
4.17. Distrito de Vila Real..
4.18. Distrito de Viseu....
283
303
317
335
351
359
377
407
437
445
469
479
485
531
567
5. ANLISE DA RECOLHA E CONSIDERAES FINAIS 607
5.1. Distribuio estratigrfica e regional dos hidrotopnimos
por estratos e regies...
5.1.1. Homogeneidade da macro-hidrotoponmia vs.
heterogeneidade da microtoponmia...
5.1.2. Estratos pr-latinos:
indo-europeu vs. no indo-europeu.
5.1.3. O estrato latino-romance.....
5.1.4. Elementos germnicos..
5.1.5. O superstrato rabe......
5.2. Tipologias de gnese e transmisso dos hidrotopnimos.....
5.2.1. Lxico vs. onomstico na gnese da hidrotoponmia
de Portugal continental
5.3. Consideraes finais....
608
619
621
626
629
630
638
640
643
6. NDICE DOS HIDROTOPNIMOS COMENTADOS 649
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.. 661
12
13
SIGLAS, SMBOLOS E CONVENES
1. Siglas
CAG = Ana Isabel Boulln Agrelo / Xulio Sousa Fernndez (dir.). Cartografa dos
apelidos de Galicia. Santiago de Compostela: Instituto da Lngua Galega
(disponvel em http://ilg.usc.es/cag/, consultado em 1/08/2014)
CCP = Carta Corogrfica de Portugal, Lisboa: portal iGeo Informao Geogrfica
(disponvel em http://www.igeo.pt/mapviewer/?wmsurl=http://www.igeo.pt/WM
S/Cartografia/SC50K, consultado em 26/07/2014)
CIGeoE-SIG = Visualizador de Informao Geogrfica do Instituto Geogrfico do
Exrcito (http://www.igeoe.pt/igeoesig/)
CIL = Corpus Inscriptionum Latinarum, Berlim
CIPM = Xavier, M. F. et al.(eds.). Corpus Informatizado do Portugus Medieval, Lisboa:
Centro de Lingustica da Universidade Nova
CODOLGA = Corpus Documentale Latinum Gallaeciae, Santiago de Compostela:
Centro Ramn Pieiro (disponvel em http://corpus.cirp.es/codolga/index.html,
consultado em 25/12/2016)
CMP = Carta Militar de Portugal srie 888 1:25 000,
DAF = Reig, D. 2006. Dictionnaire Arabe-Franais/Franais-Arabe, Paris: Larousse
DCECH = Coromines, J. e Pascual, A. J. 2012 [1980-1991]. Diccionario crtico
etimolgico castellano e hispnico, Madrid: Editorial Gredos, edio electrnica
DDLG = Dicionario de dicionarios da lngua galega, Santiago de Compostela: Instituto
da Lingua Galega (http://sli.uvigo.es/ddd/index.html, consultado em 19/08/2013)
DEE = Dicionrio Electrnico Estraviz (http://www.estraviz.org/xanza, consultado em
19/08/2013)
DGRAH = Direo-Geral de Recursos e Aproveitamentos Hidrulicos 1981. ndice
Hidrogrfico e Classificao Decimal dos Cursos de gua de Portugal, Lisboa.
DHLP = Houaiss, A. e Villar, M. S. 2001. Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa,
Rio de Janeiro: Editora Objetiva
DHP = Serro, J (dir.) 1985. Dicionrio de Histria de Portugal, Porto. Livraria
Figueirinhas
http://ilg.usc.es/cag/http://www.igeo.pt/mapviewer/?wmsurl=http://www.igeo.pt/WMS/Cartografia/SC50Khttp://www.igeo.pt/mapviewer/?wmsurl=http://www.igeo.pt/WMS/Cartografia/SC50Khttp://www.igeoe.pt/igeoesig/http://corpus.cirp.es/codolga/index.htmlhttp://sli.uvigo.es/ddd/index.htmlhttp://www.estraviz.org/xanza
14
DIEC2 = Diccionari de Llengua Catalana, segunda edio, Barcelona: Institut dEstudis
Catalans (edio em linha disponvel em http://dlc.iec.cat/index.html, consultado
em 15/10/2016)
DLA 2015 = Diccionariu de la Lingua Asturiana, Oviedo: Academia de la Llingua
Asturiana (disponvel em
http://www.academiadelallingua.com/diccionariu/index.php?cod=26114,
consultado em 29/10/2016)
DLM 2008 = Dicionairo Dicionrio da Lngua Mirandesa, Miranda do Douro:
Portal de Miranda do Douro (disponvel em
http://www.mirandadodouro.com/dicionario/, consultado em 29/10/2016)
DLPC = Casteleiro, J. Malaca 2001. Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea,
Lisboa: Academia das Cincias de Lisboa
DLPPE = Dicionrio da Lngua Portuguesa, Porto: Porto Editora (disponvel na
Infopdia: http://www.infopedia.pt)
DMP = DocumentosMedievais Portugueses, Academia Portuguesa de Histria
DPLP = Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa
DRAE = Diccionario de la Lengua Espaola, Madrid: Real Academia Espaola, 2001
DRAG = Dicionario da Real Academia Galega, Corunha: Real Academia Galega
(http://www.realacademiagalega.org/dicionario#inicio.do, consultado em
15/08/2013)
ELBCV (1963-1995) = Enciclopdia Luso-Brasileira de Cultura Verbo, Lisboa: Editorial
Verbo
ELH I = Alvar, M. et al. 1960. Enciclopedia Lingstica Hispnica, vol. I, Madrid:
Consejo Superior de Investigaciones Cientficas
FHA = Fontes Hispaniae Antiquae, ed. A. Schulten, P. Bosch Gimpera and L. Pericot, 9
vols, Barcelona, 1922-1959
GEPB (1936-1960) = Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, Lisboa e Rio de
Janeiro: Editorial Enciclopdia
IPA = Handbook of the International Phonetic Association, Cambridge: Cambridge
University Press
ITDL = ndice Toponmico do Distrito de Lisboa, Assembleia Distrital de Lisboa
(disponvel em http://www.ad-lisboa.pt/investigacao/nucleo-de-geografia/indice-
toponimico-do-distrito-de-lisboa/indice-geral-distrito/view, consultado em
23/05/2014)
http://dlc.iec.cat/index.htmlhttp://www.academiadelallingua.com/diccionariu/index.php?cod=26114http://www.mirandadodouro.com/dicionario/http://www.realacademiagalega.org/dicionario#inicio.dohttp://www.ad-lisboa.pt/investigacao/nucleo-de-geografia/indice-toponimico-do-distrito-de-lisboa/indice-geral-distrito/viewhttp://www.ad-lisboa.pt/investigacao/nucleo-de-geografia/indice-toponimico-do-distrito-de-lisboa/indice-geral-distrito/view
15
ITGM = Inventario Toponmico da Galicia Medieval (ITGM), Santiago de Compostela:
Instituto da Lngua Galega (http://ilg.usc.es/itgm/, consultado em 18/08/2013)
LHP = Seco, M (ed.) 2008. Lxico Hispnico Primitivo(siglos VIII a XII), Madrid:
Editorial Espasa-Calpe
LPSC = Costa, A. J. (ed.) 1977-1979. Livro Preto da S de Coimbra, 3 vol., Coimbra:
Arquivo da Universidade
NEHiLP 2015 = Ncleo de Apoio Pesquisa em Etimologia e Histria da Lngua (PRP-
USP/FFLCH-USP) 2015. Manual do NEHiLP. Verso 2.1, So Paulo: NEHiLP
(disponvel em http://www.usp.br/nehilp/infos/manual.pdf, consultado em
11/12/2016)
NGLEM 2010 = Nueva Gramtica de la Lengua Espaola Manual, coordenao de
Guillermo Rojo, Madrid: real Academia Espanhola
PMH = Portugaliae Monumenta Histrica a saeculo VIII post Christum usque ad
quintum decimum, Academia das Cincias de Lisboa
SIGNA = Sistema de Informacin Geogrfica Nacional de Espaa (disponvel em
http://signa.ign.es/signa/, consultado em 25/03/2014)
VOLP 2009 = Casteleiro, J. M. (coord.). Vocabulrio Ortogrfico da Lngua Portuguesa,
Porto: Porto Editora
2. Smbolos fonticos
2.1. Na transcrio dos segmentos, adota-se geralmente o conjunto de smbolos do
Alfabeto Fontico Internacional (AFI), conforme se aplica, para a descrio do portugus
europeu padro e de outras modalidades do portugus, em Mateus e Andrade (2000: 10-
23), Mateus et al. (2003: 19-20), e Raposo et al. (2013: XXXIX-XLIII).
Vogais: [i] ti; [e] s; [] s; [a] l; [] mas; [] se; [] podar (nos dialetos
micaelenses),1 [] s; [o] sou (portugus centro-meridional); [u] tu; [y]
tudo (como u francs);
Semivogais orais e nasais: [w] mau; [j] cai; [w] co; [j] pes
1 Cf. Raposo et al. (2013: 111).
http://ilg.usc.es/itgm/http://www.usp.br/nehilp/infos/manual.pdfhttp://signa.ign.es/signa/
16
Consoantes: [p] p; [b] boi; [t] to; [d] d; [k] c; [g] galo; [f] foi; [v] voa; [s] sei;
[s] saco, osso (dialetos setentrionais); [z] asa; [z] casa (dialetos setentrionais); []
ch; [] j; [t s] cho (dialetos setentrionais); [m] m; [n] n; [] ninho; [l] lua; []
palha; [] para; [], [r] carro
Sinais diacrticos: [] marca slaba tnica; [~] marca nasalidade
2.2. Em citaes, mantm-se as transcries que apresentam smbolos no includos no
inventrio em 2.1, por vezes para representar os mesmos segmentos.
3. Convenes
3.1. Na descrio dos processos fonolgicos ocorridos entre, por um lado, o latim (vulgar)
e, por outro, o romance, galego-portugus e portugus (de qualquer perodo) tambm se
usam os grafaemas correspondentes na representao de segmentos fnicos p.ex.:-l- e
-n- latinos intervoclicos. Neste caso, os grafemas vo destacados em itlico.
3.2. Os timos latinos ocorrem em minsculas, em itlico, tal como os timos, atestados
ou hipotticos, de outras lnguas (cltico, germnico, rabe): aquam ou aqua- (latim),
*rig-yo-(cltico), fadar (gtico), wdi (rabe andalusi).
3.3. No captulo seguem-se geralmente as convenes utilizadas na indo-europestica,
com algumas variaes, conforme as obras consultadas.
17
INTRODUO
Il y a des gens qui ne comprennent pas pourquoi je fais tant
dtymologies. Ce nest pas parce que je veux imiter tel ou
tel philosophe, mais tout simplement parce que le travail
philologique est un travail qui vous fait remonter vers des
vestiges. Lorsquon trouve un bout dos dans un dsert, on
ne stonne pas quon nous explique tout ce quil permet de
montrer: la philologie, cest a.
Antoine Culioli Toute thorie doit tre modeste et
inquite Entretien avec Almuth Grsillon et Jean-
Louis Lebrave2
It is, of course, impossible to say how great a proportion of
the etimologies given in dictionaries should strictly be
classed under each of the following heads: (1) certain, (2)
probable, (3) possible, (4) improbable, (5) impossible but
I am afraid the first two classes would be the least
numerous.
Otto Jespersen, 1922. Language: its Nature,
Development and Origin
Sobre a razo de o rio Crtima (ou Crtoma) se chamar assim, relatava o P.e Lus
Cardoso em 1751 uma histria includa no verbete a seguir parcialmente transcrito:3
Rio na Provincia da Beira, Bispado de Coimbra. Dizem, que passando por aqui a
Rainha S. Isabel, e querendo beber da sua agua, lhe aconselhara tal na fizesse,
por ser de ta m qualidade, que na s gente, mas at aos animaes era danosa;
provou-a a Santa, e disse: Certo m, donde tomou o nome de Crtoma, e dahi em
diante ficou de ta singular bondade, que se manifesta at nos gados que a bebem;
2 Disponvel em https://genesis.revues.org/1071 (consultado em 11/11/2016). 3 Ver Cardoso (1747-1751 s. v. Certoma).
https://genesis.revues.org/1071
18
porque a carne destes he sem comparaa mais saborosa, que das outras. Nasce no
Couto da Vacarissa, junto ao Convento de Bussaco [].4
Histrias como esta andam desde sempre associadas toponmia, fazendo parte da
chamada cultura popular e pr-cientfica. Com elas, parece reduzir-se ou cancelar-se a
arbitrariedade sgnica geral que os estudos lingusticos habituam cedo os estudantes a
aceitar como postulado. No entanto, desde h muito que se observa a tendncia humana
para explorar o significado das palavras e dos seus constituintes, na crena de a sua
aparente falta de conexo com o referente ocultar afinal a chave de acesso transparncia
original da linguagem, em ligao direta ao mundo. A etimologia ter aparecido como
resposta a essa preocupao; , portanto, uma atividade antiga, que comeou como busca
do sentido supostamente verdadeiro das palavras,5 mesmo das mais comuns, afeioando-
as de algum modo s coisas nomeadas.
Com a toponmia, a etimologia foi sempre bastante longe na fantasia para preencher
as lacunas da memria coletiva. Da serem to comuns as lendas volta do nome de uma
aldeia, de uma serra ou de um rio, como acontece com Crtima, que a etimologia em
moldes crticos e cientficos enquadra, afinal, entre os elementos deixados pelas lnguas
que se falavam ao tempo da conquista romana.
O ponto de partida da tese aqui exposta tem muito que ver com a questionao deste
e doutros nomes de rios pelo contacto com a obra do investigador galego Edelmiro
Bascuas (2002, 2006, 2007). A leitura deste autor, que elege a Galiza como territrio
peninsular privilegiado que guarda o tesouro de uma hidrotoponmia de origens remotas
na hidronmia do europeu antigo ou paleoeuropeu, segundo as propostas de Krahe (1962
e 1964) , acaba por oferecer enorme interesse para a investigao da toponmia de
Portugal, sobretudo da sua metade norte. So vrios os hidrotopnimos do territrio
continental portugus que Bascuas menciona e comenta luz da hiptese paleoeuropeia,
dando vontade de saber o que se passa na metade portuguesa a sul, aparentemente menos
ligada antiga Galcia, sua histria e aos seus mitos. O caso de Crtima ainda se
encontra nessa metade setentrional portuguesa, mas tambm j bastante a sul para sugerir
que as questes levantadas volta das lnguas pr-latinas pelos hidrotopnimos galegos
e norte-portugueses podem igualmente ser pertinentes no exame dos nomes meridionais.
4 A histria transcrita por Costa (1929-149). J Pinho Leal (1816-1884) a reproduzira em Portugal Antigo
e Moderno, publicado entre 1873 e 1890. 5 Cf. Campbell e Mixco (2007, s.v. etimology) e Crystal (1995, s.v. etymology).
19
Impe-se, portanto, alargar o inqurito etimolgico a toda a hidrotoponmia do
territrio continental portugus, em busca dos vestgios dessa situao lingustica remota,
anterior ao desfile de etnias e lnguas Lusitanos, Celtas, Romanos, Suevos, Visigodos,
rabes que faz parte da viso mais vulgar da histria da Antiguidade e da Alta Idade
Mdia em Portugal continental. Cedo uma observao mais ou menos atenta e algumas
leituras mais ou menos conjeturais sugerem que a hidrotoponmia portuguesa parece
guardar efetivamente nomes com origem muito recuada, mas no constituir nem por
sombras um reduto peninsular ou europeu de conservao da toponmia mais antiga. Pelo
contrrio, basta atentar nas placas toponmicas para intuir que o espao geogrfico
nomeado exibe muitos nomes que podem ser lidos como sintagmas do portugus (o que
no significa que, como se ver, no ocorram produtos de reanlise que lhes disfaram de
contemporaneidade uma gnese bastante mais antiga). Numerosa tambm no sul a
toponmia de feio rabe a abranger os hidrotopnimos, que, entre nomes de lugar
prefixados por al-, comeam a ostentar o elemento Ode-/Odi- sobretudo a sul do Tejo.
Todas estas impresses pedem depois, num exame mais srio, a interveno dos
instrumentos de anlise e avaliao que a lingustica tem desenvolvido ao longo de
dcadas, tanto numa perspetiva sincrnica como numa viso diacrnica. Com a
hidrotoponmia, a abordagem requerida pelas interrogaes que a obra de Bascuas suscita
s poderia ser etimolgica portanto, histrica. Mas um estudo como esse no poder ser
exclusivamente intralingustico, focado em mecanismos internos de variao no tempo-
espao e de mudana, porque, dadas as questes referenciais que todo o nome prprio e,
sobretudo, todo o topnimo levantam, a anlise ter inevitavelmente de contar com
informao enciclopdica, isto , com uma dimenso extralingustica onde se jogam os
muitos fatores que, no espao e no tempo, condicionam as escolhas lingusticas das
comunidades de falantes quando criam e fixam os nomes para identificar lugares e outras
realidades naturais ou edificadas que definem uma geografia.
Os estudos diacrnicos de onomstica e os de toponmia constituem reas da
lingustica que requerem, portanto, uma perspectiva transdisciplinar, convocando a
colaborao de outros domnios de investigao que permitam esclarecer o passado
lingustico de um territrio. Na verdade, a indagao da etimologia dos topnimos de uma
regio ter de incluir informao relativa aos grupos humanos (tnicos, sociais,
profissionais, religiosos, etc.) que a percorreram, povoaram e organizaram.
20
No basta explicar que o nome prprio Lisboa apresenta a queda do -n-
intervoclico, processo fonolgico caracterizador do romance galego-portugus;6 nem
chega ter em ateno a interferncia rabe nas mudanas operadas entre a forma Olisipo
e a forma Lisboa. tambm necessrio encarar criticamente a lendria origem fencia do
topnimo, considerando a existncia de outros nomes de lugar terminados em ipo, cuja
rea de disperso, no confirmando uma origem fencia directa, antes aponta para a
influncia lingustica e cultural tartssica. Por falta de documentos que facultem uma
viso de conjunto da lngua em que se inclui o elemento -ipo, ainda necessrio atentar
nos dados da arqueologia, que evidenciam a orientalizao da zona do esturio do Tejo.7
Por fim, no se pode esquecer o significado simblico ou o interesse estratgico de tal
zona geogrfica na representao cultural da mesma e na formao do nome apelativo
original.8
Ao encontro da discusso do papel de cada uma destas dimenses nos estudos
toponmicos se encaminha a presente tese, abordando numa perspetiva diacrnica o
subconjunto dos topnimos que, em Portugal, correspondem aos nomes de rios,
conhecidos no discurso especializado por potamnimos, mas aqui preferencialmente
referidos como hidrotopnimos. Os hidrnimos, em geral, e os nomes de rios
(hidrotopnimos ou potamnimos), em particular, suscitam problemas semelhantes,
porque a origem de muitos elementos constituintes anterior difuso do latim na
Pennsula, testemunhando a existncia de lnguas (substratos) cuja atestao escassa ou
nula. Tambm a interferncia de superstratos e adstratos que se materializam pela
onomstica germnica e pelos arabismos do lxico comum ou da onomstica geram
interrogaes de mbito lingustico que no dispensam o contributo de informao
extralingustica. Por isso, traar a etimologia destes nomes significa normalmente
trabalhar com hipteses assentes no cruzamento da reconstruo lingustica, da
arqueologia, da antropologia e da geografia.
O tema aqui tratado insere-se, portanto, na onomstica portuguesa, com a finalidade
de avaliar as marcas lingusticas de grupos humanos que, desde a proto-histria, se
6 Sobre a diacronia destes processos fonolgicos, ver Huber (1989) e Williams (2001). 7 Sobre a relao com a cultura tartssica e a presena de trdulos e turdetanos no litoral portugus a sul do
rio Douro, ver Fabio (1992). 8 Supe-se que ipo significa cidade (Villar 2000: 114-116), mas fica por explicar o elemento olis-. Ter
ele que ver com alguma caracterstica fsica da zona de Lisboa, como pretendiam os defensores da hiptese
fencia? Para no falar da lenda de Ulisses ligada fundao da cidade, encontramos frequentemente em
obras de divulgao a hiptese da etimologia fencia (?) (alis ubbo, enseada amena > Olisipo; veja-se o
artigo sobre Lisboa em Fonseca 2005).
21
fixaram no atual territrio continental portugus, as deixaram em epgrafes ou
dissimuladas vestigialmente sobretudo no lxico comum e na toponmia. Pretende-se, em
suma, caracterizar os diferentes estratos lingusticos que intervm na configurao dos
hidrotopnimos, distribudos em diferentes regies de norte a sul, de modo a definir um
perfil nacional para este conjunto onomstico. Para tanto, foram selecionados 481
hidrotopnimos de Portugal continental entre os que esto listados no Reportrio
Toponmico de Portugal, publicado em 1967, mas atualmente tambm disponvel no
visualizador do Centro de Informao Aeroespacial do Exrcito (CIGeoE-SIG).9 Neste
estudo, tambm foi utilizada a Carta Militar de Portugal a 1:25 000 (CMP), que pode ser
ser visualizada pelo CIGeoE-SIG. A nomenclatura que foi assim possvel constituir foi
depois integralmente comentada do ponto de vista etimolgico, procurando integrar os
elementos constitutivos de cada nome (razes, afixos, segmentos fnicos) num estrato
lingustico e/ou numa cadeia de transmisso relacionvel com a histria da lngua local e
nacional.
Como foi dito, a investigao de Edelmiro Bascuas foi o ponto de arranque para um
percurso pontuado de interrogaes enquanto se tratou de uma primeira aproximao aos
estudos toponmicos e de uma apreciao preliminar da hidrotoponmia portuguesa. Foi
igualmente a oportunidade para aprofundar esse contacto pelo retomar dos estudos de
etimologia e toponmia que em Portugal, desde o sculo XIX, foram desenvolvidos pelas
figuras marcantes de Jos Leite de Vasconcelos, Jos da Silveira, Joseph-Maria Piel,
Pedro Cunha Serra, Domingos Moreira, Jos Pedro Machado, Armando de Almeida
Fernandes, entre outros.10 Esta tradio parecia ter chegado ao esgotamento nos anos 70
do sculo passado, quando se tornou talvez mais notria a escassez de trabalhos na rea.11
A esta tendncia no ser estranha, primeiro, certa secundarizao da diacronia face
sincronia e ao conhecimento gramatical pelos estudos lingusticos, situao que hoje
parece ultrapassada, graas ao desenvolvimento da lingustica histrica, pelo menos,
desde os anos 90 do sculo passado. Mas, valorizando-se o estudo que da mudana
9 Disponvel em http://www.igeoe.pt/igeoesig/ (consultado entre 2015 e o primeiro semestre de 2017). 10 No campo da antroponmia, imprescindvel mencionar o nome do fillogo Jos Joaquim Nunes
(1959-1932). 11 Refira-se, por exemplo, que as atas da Associao Portuguesa de Lingustica, publicadas desde 1986,
apenas apresentam quatro ttulos de comunicaes em que ocorram as palavras etimologia e toponmia (ou
os adjetivos relacionais etimolgico e toponmico). Tais ocorrncias correspondem s atas dos encontros de
1995, 2003 Um dos ttulos o mais recente, de 2010 contrape etimologia a morfologia, atribuindo-se
estatuto lingustico rea designada pelo segundo termo, mas no ao primeiro.
http://www.igeoe.pt/igeoesig/
22
lingustica faz a lingustica histrica, tende-se a relegar para um plano secundrio a
histria da lngua, como observa Cardeira (2013: 91):
Se no contarmos com a Origem da Lngua Portuguesa de Duarte Nunes de Leo
ou com monografias sobre pontos especficos da evoluo da lngua, a histria das
histrias do portugus tem pouco mais de cinquenta anos. Para ela contriburam
alguns dos mais conhecidos linguistas, com diferentes abordagens e perspetivas
tericas. tradio filolgica, fundada na edio e estudo das fontes escritas, que
caracterizou os primeiros trabalhos, vieram juntar-se, nos ltimos anos, anlises
ancoradas nas novas correntes da lingustica e assessoradas pelos avanos
tecnolgicos. Paralelamente, os estudos tm vindo a centrar-se na anlise dos
processos de mudana lingustica. Ora [] a produo cientfica dos ltimos anos
tem caminhado mais na linha da lingustica histrica do que na da histria da
lngua.12
Note-se que a observao de Esperana Cardeira feita a propsito da oposio que
Castro (1991:15) estabelece entre lingustica histrica e histria da lngua:
[] se o objecto da lingustica histrica a mudana lingustica (de uma, ou de
vrias lnguas, ou em geral), o objecto da histria da lngua uma lngua em
particular, na sua existncia definida temporal e espacialmente, o que significa que
os factos lingusticos devem ser permanentemente correlacionados com factos
histricos, que os condicionaram.
A avaliao que Cardeira faz da situao dos estudos em diacronia permite com
certeza compreender melhor certa menorizao da pesquisa mais direcionada para a
correlao entre factos lingusticos e factos histricos, como objetivo da histria da
lngua, na viso de Ivo Castro. deste tipo de investigao que fazem sem dvida parte
12 Sobre esta oposio, acrescenta Cardeira (2013: 91): certo que a uma oposio to clara no papel
correspondem subtilezas que, na prtica, se traduzem na dificuldade em traar com preciso a fronteira
entre os dois tipos de estudo. E se nem sempre fcil sabermos quando deixamos a histria da lngua para
passarmos lingustica histrica tambm no fcil definir o objeto de estudo: origem e evoluo da
lngua portuguesa ou variao diacrnica da lngua so definies ilusoriamente simples que se tornam
complexas quando queremos, simplesmente, definir lngua. Mesmo que esqueamos o facto de que a lngua
portuguesa no apenas de Portugal e nos limitemos ao espao das nossas fronteiras, ainda assim,
estudamos a histria de que lngua portuguesa?
23
a etimologia com a toponmia e com os estudos de onomstica em geral, o que esclarece
um pouco a sua retrao na histria mais recente da lingustica portuguesa.
Tm-se registado, contudo, sinais de alguma recuperao, como o caso dos
estudos de Maria Lusa Azevedo (Azevedo 1994 e 2005), sobre a toponmia portuguesa
de origem morabe. No mbito da investigao sobre histria da Antiguidade, contam-
se numerosos contributos da epigrafia e da arqueologia: so exemplares os trabalhos de
Amlcar Guerra e Jorge de Alarco, cujas propostas etimolgicas pr-latinas tm
devolvido sentido e motivao semntico-referencial a topnimos opacos. Do Brasil,
saliente-se a investigao de Patrcia Carvalhinhos, centrada na descrio da toponmia
portuguesa e na reflexo terica sobre a sua interpretao (ver Carvalhinhos 2007, 2009
e 2014).
Voltando a Edelmiro Bascuas, insista-se que s suas propostas se associa um amplo
e valioso levantamento de elementos radicais bem como de afixos, num inventrio que
parece ecoar outros (cf. Guerra 1998. 713-762) e tem o interesse especial de auxiliar a
identificao da hidrotoponmia mais antiga. Mas a considerao dos trabalhos do
investigador galego acarreta tambm lanar um olhar crtico sobre as hipteses
controversas de H. Krahe, T. Vennemann e F. Villar a respeito da histria lingustica da
Europa na Antiguidade.13 Aspetos de tais trabalhos so aqui referidos em confronto com
os estudos lingusticos e filolgicos contemporneos, tendo sempre por horizonte a
recuperao da etimologia como disciplina mais atuante no contexto dos domnios da
histria da lngua e da lingustica histrica, conforme tm proposto mais recentemente
Philip Durkin, Anatoly Liberman ou, no contexto da lngua portuguesa, Eduardo Viaro.14
Outra vertente que os trabalhos de Bascuas convidam a explorar, se no mesmo a
integrar, a dos estudos de onomstica galega que, ao contrrio do acontecido em
Portugal, tm tido profcua continuidade. A toponmia da Galiza merecedora de toda a
ateno e o seu exame tem gerado um sem-nmero de produes acadmicas (por
exemplo, Navaza 2006, Martnez Lema 2010, Ares Vzquez 2011-2013), que contm
informao valiosssima para a compreenso da prpria toponmia portuguesa. No
admira, pois, que nas pginas que adiante se apresentam se faa referncia assdua aos
estudos toponmicos da Galiza.
Neste enquadramento, a tese que aqui se defende parte de alguns pressupostos que
trazem associadas algumas questes e tarefas:
13 Ver Krahe (1962 e 1964), Venneman (2003) e Villar (1996 e 2000). 14 Ver Durkin (2009), Liberman (2009) e Viaro (2010).
24
1. Os nomes das povoaes e dos acidentes geogrficos refletem momentos de
evoluo social, poltica e cultural, definindo a histria de um territrio. Em
Portugal, a romanizao, por um lado, e a permanente tenso entre Cristandade e
Islo na Idade Mdia (nomes germnicos no Norte em contraste com nomes rabes
e arabizados no Sul), por outro, moldaram a identidade toponmica das zonas hoje
contidas nas fronteiras do Estado portugus. No h estudos quantitativos
exaustivos, mas parece significativo o peso da hidrotoponmia com origem em itens
do lxico comum de origem latina, cuja disponibilidade se prolongou
eventualmente pelos perodos romance, galego-portugus ou plenamente
portugus. Falta avaliar o impacto do lxico e da onomstica de provenincia
germnica sobretudo a norte do Mondego, enquanto, no centro e no Sul do Pas,
avulta um nmero significativo de elementos arbicos, muitos deles retirados do
lxico corrente e da onomstica dos dialetos rabes de Al-Andalus.
3. Considera-se frequentemente que os hidrotopnimos constituem um reportrio
muito conservador, aparentemente divergente das caractersticas histricas de
outras reas da toponmia, mais vulnerveis mudana. Em Portugal, conservam-
se abundantes elementos morfolgicos que remontam poca pr-latina, mas a sua
identificao tarefa rdua, porque vrias tm sido as abordagens que os
relacionam com lnguas e famlias lingusticas dspares, indo do celta ao basco, do
semtico ao ibero. Nas propostas da descrio diacrnica dos rios portugueses, tem
sido destacado o contributo indo-europeu pr-latino, embora no se encontre ainda
uma viso sistemtica do impacto deste influxo lingustico nem da sua distribuio
geogrfica, sabendo que, alm do cltico, h indcios de outras lnguas indo-
europeias e no-indo-europeias. O cruzamento das fontes clssicas com os dados
provenientes de outras disciplinas como a epigrafia e a arqueologia sugerem um
mapa tnico e lingustico da Pennsula Ibrica que contextualiza melhor a
hidrotoponmia peninsular e, consequentemente, a portuguesa, limitando assim o
leque de hipteses etimolgicas. Importa, portanto, determinar de que maneira
possvel identificar os elementos pr-latinos da hidrotoponmia portuguesa e at que
ponto se pode definir a sua distribuio por ramos ou famlias lingusticas.15
15 Sobre reas lingusticas na Hispnia pr-romana, ver Untermann 1965.
25
3. O estudo etimolgico da toponmia um precioso auxiliar para a histria da
lngua, suscetvel de fornecer dados relativos a estratos lingusticos que, de alguma
forma, podem ter intervindo na gnese e desenvolvimento de lnguas e dialetos
atuais. , pois, pertinente observar de que modo a distribuio estratigrfica e
regional dos hidrotopnimos encontra correspondncia nas reas dialetolgicas
portuguesas.
Tendo em conta estes pressupostos e estas questes, a tese articula-se em cinco
captulos. Uma definio do campo de estudo da toponmia e da hidrotoponmia preenche
parte do primeiro captulo, no qual tambm se rev a literatura sobre o estatuto atribudo
etimologia entre os estudos lingusticos; do captulo, constam ainda seces dedicadas
ao mtodo compartivo e reconstruo lingustica tomando como exemplo o modelo de
reconstruo do proto-indo-europeu. No segundo captulo, abordam-se alguns aspetos
tericos dos chamados estratos lingusticos, apresentam-se propostas de classificao da
toponmia portuguesa (estratigrfica e outras) e caracterizam-se os estratos relevantes. O
terceiro captulo expe as opes tericas e os critrios metodolgicos que permitiram
definir uma lista de 481 hidrotopnimos e elaborar os respetivos comentrios
etimolgicos. O quarto captulo constitudo por tais de comentrios etimolgicos
distribudos por 18 seces, tantas quantas os 18 distritos de Portugal continental por que
se distribuem os hidrotopnimos selecionados. O quinto captulo consiste numa discusso
da distribuio regional dos hidrotopnimos, na perspetiva da estratigrafia lingustica e
das tipologias propostas pelos estudos mais recentes no domnio da toponomstica.
A investigao aqui exposta e discutida foi primeiramente orientada pelo Professor
Doutor Ernesto dAndrade, professor associado do Departamento de Lingustica Geral e
Romnica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O seu falecimento em abril
de 2013 determinou que a tese passasse a ter a orientao das Professoras Doutoras
Esperana Cardeira e Ana Maria Martins, do referido departamento, as quais aceitaram
acompanhar a proposta de estudo inicial, assegurando o seu desenvolvimento e
concluso.
As abreviaturas, smbolos e convenes que se adotam na tese encontram-se nas
pginas que precedem esta introduo. A se d conta de certos critrios aplicados na
utilizao dos smbolos fonticos e de outras formas de notao que a bibliografia
26
consultada por vezes apresenta e que nem sempre so convergentes com os
procedimentos mais generalizados na atualidade.
27
1. CONSIDERAES SOBRE A TOPONMIA E A ETIMOLOGIA COMO SUBREAS DOS
ESTUDOS LINGUSTICOS
Apresenta-se este captulo como uma abordagem definio da toponmia e da
etimologia enquanto reas de estudo, de modo a enquadrar as principais opes tericas
e metodolgicas adotadas neste trabalho. Incluem-se tambm seces que visam salientar
os contributos do mtodo comparativo e do mtodo de reconstruo interna para a
investigao de sincronias passadas escassamente documentadas.
1.1. A toponmia como disciplina lingustica
Quando se trata de analisar e classificar topnimos, poder pr-se em dvida que o
seu estudo mais relevante seja verdadeiramente lingustico. Com efeito, to diversificados
so os critrios adotados para encontrar inteligibilidade no conjunto dos nomes de lugar,
muitas vezes tendo em mira uma funo referencial, que, do mesmo modo, s se recupera
por meio do inqurito etimolgico. Mas inegvel que a preocupao de muita
investigao sobre toponmia corresponde a procurar devolver a cada nome analisado as
condies histricas da sua atribuio referencial no contexto do lxico de uma lngua e
da respetiva semntica. Por outras palavras, o estudo da toponmia leva a reconstruir um
discurso lingustico e as suas condies referenciais, numa interao que determinou, no
uso de uma dada lngua, a criao e fixao de uma denominao com base nas estruturas
dessa lngua.16 Nesta perspetiva, a toponmia uma disciplina de raiz lingustica, como
assinala Tichelaar (2002: 2):
16 A denominao envolve por si s dimenses extralingusticas, como observa Margarita Correia (2004:
23/24), que, seguindo o linguista francs Georges Kleiber, define este conceito como uma relao
referencial constante e codificada entre uma coisa (objecto extralingustico) e um signo X, o seu nome
(name) (sublinhado no original); observa a mesma autora que a denominao uma relao em grande
parte no explicvel linguisticamente", acrescentando: O facto de numa lngua (ou num determinado
registo) se escolher uma denominao possvel e no outra um fenmeno no lingustico, porque a
razo que preside escolha de uma ou de outra das possibilidades da lngua no , fundamentalmente de
ordem lingustica. Correia (idem, ibidem) exemplifica com o contraste entre telemvel, tpico do portugus
europeu, e celular, palavra usada no portugus do Brasil; mostra-se, assim, que as duas variedades
lingusticas tiveram opes diferentes cujas motivaes radicam em fatores extralingusticos. Extrapolando
um pouco para o estudo da dialetologia e toponmia, encontra-se uma situao paralela no modo como, em
Portugal, termos como rio, ribeira ou barranco tm diferente distribuio regional ainda que
eventualmente alterada pela toponmia oficial. Ver Carvalhinhos (2014).
28
Toponymy is the science that has as its subject the study of geographical names or
toponyms. As all other names, toponyms belong to languages. Names in general are
only rarely randomly chosen, and this is especially true in the case of geographical
names. Whether they carry a physical meaning like Mont Blanc (White
Mountain), or they were coined to honour someone (Washington, District of
Columbia), to commemorate some historic event or to make clear to whom the
named object belonged (Paris, from Latin Lutetia Parisiorum = Lutetia of the
[Gallic tribe named the] Parisians), in all cases they once used the vocabulary and
followed the grammatical and orthographic rules of a certain language.
Importa sublinhar as questes levantadas pelos topnimos enquanto subclasse dos
nomes prprios, conforme uma enumerao possvel por exemplo, a de Maximiano
Trapero (1997: 242/243), a propsito da toponmia das Canrias:
Los problemas verdaderamente lingsticos de la toponimia hay que buscarlos en
el comportamiento de sus componentes. En el plano de la expresin, sobre todo, en
la procedencia lxica, s (siempre testimonio inequvoco de los estratos histricos y
culturales de un territorio), en los variadssimos fenmenos de tipo fontico que all
se producen, en los tambin variadsimos procedimientos de derivacin y
composicin para la formacin del lxico toponmico y en el complejo lxico en
que se constituyen los topnimos desde un punto de vista formal y funcional. Por
lo que respecta al significado, la toponimia plantea problemas tericos importantes
relacionados con su condicin de nombres propios, con el tema de la designacin /
significacin, con la arbitrariedad / motivacin del signo lingstico, con la
particularidad de un lxico que tiene la referencia a la geografa como funcin
primaria (montaa, valle, ro) frente a otro lxico que es toponmico slo en una
funcin secundaria (lomo, morro, mesa), y con la determinacin del significado a
partir de estructuras semnticas dialectales, entre los problemas ms importantes.
Adotando uma perspetiva inspirada pela obra de Eugenio Coseriu, observa ainda
Trapero que os topnimos conservam os estratos lingusticos passados melhor do que o
lxico comum:
29
La toponimia es [] lengua funcional que en cada momento se muestra como un
todo sincrnico propio de un territorio, pero, a la vez, es el resultado de una
diacrona en donde las huellas de los distintos estratos lxicos son muy perceptibles,
mucho ms que en el lxico comn.
Ou seja, os estudos toponmicos no dispensam uma viso diacrnica que convoca
a interpretao das formas lingusticas abordadas. Essa indagao constitui a tarefa da
etimologia.
1.2. Os topnimos como subclasse dos nomes prprios
A palavra topnimo17 sinnima das expresses nome prprio de lugar (Tort
Donada 2001) ou nome prprio geogrfico (Mallorqu 2006: 11), podendo estes termos
definir-se do seguinte modo (Moreu-Rey 1965: 7-8, apud Tort Donada 2001 e Mallorqu
2006: 72/73)
"Hom entn per noms de lloc o noms geogrfics en el sentit ms ampli de la
paraula, tots els noms simples o expressions compostes que designen els indrets
habitats, tant actualment com antigament (noms de pasos, de comarques, de
territoris de tota mena, d'aglomeracions urbanes o rurals ciutats, viles, pobles i
llogarets , o subdivisions d'aquestes aglomeracions barris, ravals, carrers, places
, o d'edificis allats de totes les categories, etc.); com tamb els llocs deshabitats
(partides, peces de terra, llocdits, objectes caracterstics); els noms del relleu
interior o coster (anomenats tamb "ornims"): de muntanyes, plans, altiplans, illes,
caps, cales, badies; els noms de lloc de l'aigua (dits tamb "hidrnims"), corrent o
estancada, terrestre o martima: mars, llacs, rius i rieres, torrents, fonts, estanys,
aiguamolls; els noms de les vies de comunicaci. I, naturalment, tant si es tracta de
noms utilitzats encara com si es tracta de noms en dess o pretrits.
17 Composto morfolgico formado pelos elementos top(o)- e -nimo, respectivamente, do grego tpos, ou
lugar e noma, atos 'nome, nome designativo de uma pessoa ou de uma coisa', cujo [] rad[ical] []
alterado, quando com el[emento] antepositivo, segundo o padro dado, p.ex., no gr. sunnumos, os, on 'do
mesmo nome, da mesma significao que, sinnimo' (a alterao evitava os riscos da ambigidade, em face
de formas como o gr[ego] autnomos, os, on 'que se rege por suas prprias leis, independente, autnomo')
(DHLP s. v. topnimo).
30
Quanto a toponmia, o seu uso tem duas acepes: estudo dos nomes geogrficos
(cf. Vasconcelos 1926: 319, apud A. A. Fernandes 1952); e conjunto ou sistema de
topnimos (A. A. Fernandes 1952). Tambm se assinale que o termo topnimo tem
muitas vezes por equivalente a forma cornimo, muito embora alguns autores atribuam a
cornimo e coronmia sentido e escopo mais amplos que os de topnimo e toponmia (cf.
Tort Donada 2001). Para o propsito da presente investigao, prefere-se o termo
topnimo por ter emprego mais corrente, e cornimo ser eventualmente usado como o
mesmo que nome de uma regio.
Cabe igualmente assinalar que topnimo hipernimo de hidrnimo, sendo este,
por sua vez, o termo que se aplica s palavras que denotam de diferentes modos de
apresentao da gua. Entre os hidrnimos, incluem-se, portanto, os nomes de rios,
hidrotopnimos ou potamnimos.18 Assinale-se, porm, a ambiguidade do termo
hidrnimo: por um lado, designa um tipo de nome prprio; mas, por outro, pode tambm
aplicar-se aos itens do lxico comum que denotam diferentes formas de acumulao de
gua (fonte, rio, ribeiro, regato, arroio, lagoa, lago, golfo, mar, oceano etc.). Em vrias
seces deste trabalho, quando se impe distinguir os nomes prprios dos nomes comuns,
ocorrer o termo hidrotopnimo como nome prprio referente a rio, seguindo o uso que
dele se faz em Raposo et al (2013: 1019), e hidrnimo, como nome comum referente a
uma entidade geogrfica formada por gua.19
Voltando aos topnimos em geral, diga-se que estes constituem uma subclasse dos
nomes prprios, categoria a que a investigao lingustica e lgica tem pretendido atribuir
um estatuto semntico especfico por oposio aos nomes comuns. Assim, considera-se
que os nomes prprios, em contraste com os nomes comuns, possuem unicidade
referencial, isto , trata-se de nomes com um referente fixo (Mateus et al. 2003: 212-215
e 668). As gramticas normativas portuguesas parecem adotar esta perspetiva; por
exemplo, Cunha e Cintra (1984: 178) definem nome prprio, ou melhor, substantivo
prprio, como aquele que [] se aplica a determinado indivduo da espcie, pelo que
18 Potamnimo termo registado no Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, ocorrendo em trabalhos
acadmicos, por exemplo, em Piel (1947: 330). A longo desta exposio, alterna por vezes com nome de
rio, sem diferena de significado. Observe-se que em espanhol, ocorre potamnimo em sinonmia com
hidrnimo (cf. Vilar Pacheco 2010: 13). Quanto a hidrnimo, A. A. Fernandes (1952) usa-o como
designao de qualquer forma de extenso aqutica, enquanto aplica hidrotopnimo a um topnimo que
inclua um hidrnimo. 19 No consensual a delimitao do conjunto de fenmenos fsicos constitudos pelo elemento gua ou
pelas formas em que este se apresenta. Na presente tese, a entidade do mundo fsico focada a que
corresponda genericamente a qualquer curso de gua. No mbito da sua proposta de tipologia referencial,
Martnez Lema (2010: 37) considera como categorias dos modos de apresentao da gua as correntes
fluviais (rios, regatos), as fontes com as nascentes e as massas de gua (lagos, lagoas, terrenos pantanosos).
31
Pedro, Brasil e Lisboa [] so substantivos prprios, porque se aplicam a um
determinado homem, a um dado pas e a uma certa cidade. A esta funo referencial,
John Lyons (1977: 216/217) junta uma outra caracterstica, a funo vocativa, a qual se
evidencia pelo uso do nome prprio como forma de captar a ateno da pessoa que se
quer chamar.20 Este linguista adota tambm a viso filosfica de aos nomes prprios
poder ser atribuda uma referncia mas no um sentido, caracterstica, por sua vez,
associada impossibilidade de os nomes prprios, usados como tais, poderem ocorrer
predicativamente (idem, p. 219). Com efeito, Lyons admite que na aquisio da
linguagem no seja ntida a diferena entre nome prprio e nome comum, mas postula
que no ingls falado por adultos a distino feita sem hesitao:
Utterances like There are twelve Horaces in this room (understood as meaning
There are twelve people called Horaces in this room) are to be accounted for, it
is assumed, by means of a rule for using proper names; and rules like this may or
may not be specific to particular languages. Such much discussed examples as He
is no Cicero or Edinburgh is the Athens of the north are in this connexion
irrelevant: Cicero and Athens are here being used predicatively, or, more,
precisely, within predicative expressions (in what was rather loosely classified in
traditional grammar and rhetoric as one kind of synechdoche).
Cabe observar que Lyons no aponta propriedades semnticas distintivas dos
nomes prprios por oposio aos nomes comuns, j que um nome prprio pode ser usado
como um nome comum, num processo idntico ou afim ao da converso,
tradicionalmente denominada derivao imprpria (Correia e San Payo 2005: 35). A
questo de distinguir os nomes prprios como uma subclasse nominal encontra, na
perspetiva de outros autores, um tratamento mais adequado, se for formulada em termos
de usos nominais decorrentes de certo tipo de operaes sobre o seu valor semntico
intrnseco e referencial, e no em relao a classes semnticas nominais bem
diferenciadas. Deste modo, perspectiva de Lyons, opem-se aparentemente outras
vises, defensoras de uma aproximao dos nomes prprios aos nomes comuns. Correia
20 Contudo, no existe uma fronteira rgida entre nomes prprios e nomes comuns, j que estes tambm tm
funo vocativa, como frisa Lyons (1977: 217): The use of a common noun with vocative function (e.g.,
the use of child in Come here, child!), whether it is distinguished as such by its form or not, approximates,
it may be observed in passing, to the use of a proper name or title.
32
(2002: 124) prope uma anlise lingustica em que que, tal como os nomes comuns, os
nomes prprios [] permitem que incidam sobre eles as operaes de determinao
nominal. Em defesa deste ponto de vista, Correia cita, entre outros, scar Lopes (1972:
10), o qual, identificando os nomes prprios antecedidos de determinante com os nomes
comuns, afirma que [] os nomes prprios so nomes comuns singulares indiciados, e
s diferem das descries definidas com artigo definido singular porque estas tm um
carcter contextual mais ad hoc: so nomes prprios em contexto limitado [] (Lopes,
idem, apud Correia 2002: 124). 21 O comentrio de scar Lopes tem, para a discusso
aqui exposta, o interesse de marcar afinal uma diferena entre os nomes prprios e os
nomes comuns: como as expresses definidas, os nomes prprios tambm tm carcter
contextual, com a particularidade de terem uma permanncia que aquelas no tm, porque
se tornam estveis e se institucionalizam num dado contexto cultural. Tal determina a
historicidade dos nomes prprios, a qual acaba por conduzir cristalizao de traos
fonticos e morfolgicos do passado e perda da transparncia referencial e semntica
que se encontrava na sua gnese.
Esta situao particularmente evidente no estudo dos topnimos, como assinalam
Dubois et al. (1991, s.v. toponymie) quando anotam que [l]a constatation de la toponymie
sur un plan gnral est le peu de rapports qui existe entre les noms de lieux dun pays et
la langue du peuple qui lhabite, devido resistncia de substratos.22 Com efeito, como
se infere dos nomes de lugar (no caso portugus, com origem no rabe, no germnico, em
certas expresses latinas e nas lnguas pr-latinas), a frequente opacidade de parte
considervel da toponmia define-a, entre os nomes prprios, como uma srie lexical
parte, de comportamento idiossincrtico, que se furta frequentemente aos processos gerais
de variao e mudana caractersticos da diacronia das lnguas em que tais topnimos so
usados. Nestes se fixam irregularidades indicativas da interferncia de outros sistemas
21 De acordo com Mateus e tal (2003: 222/223), entende-se por expresso definida a expresso a que
operaes de individuao fazem corresponder [] um nico objecto identificvel pelo(s) interlocutor(es)
[], como sejam os nomes prprios, os pronomes pessoais, os demonstrativos e os nomes comuns
antecedidos artigo definido, determinante possessivo ou demonstrativo, no singular. 22 Em Portugal, tal constatao no se resume aos substratos, dada a importncia dos superstratos germnico
e rabe: o primeiro evidencia-se pela converso toponmica da antroponmia germnica, provavelmente
durante a Reconquista (cf. A. A. Fernandes 1952). O segundo exibe-se em topnimos de natureza descritiva
nas regies meridionais, embora nem sempre se possa assegurar que a sua gnese foi feita em contexto
lingustico rabe, pois h muitos casos de converso de itens do lxico comum de etimologia ou
interferncia rabes que se tornaram itens lexicais do estrato latino-romance e se conservam no portugus
contemporneo. Sendo assim, Odeleite (Faro) um hidrotopnimo de configurao rabe (ainda que de
etimologia no completamente clara), adaptado como tal morfologia latino-romance, enquanto rio do
Aude (Lisboa) se insere no estrato latino-romance.
33
lingusticos, definindo-os como uma subclasse nominal com um comportamento histrico
distinto.
1.3. Propostas de classificao toponmica
No estudo dos topnimos, possvel propor vrias tipologias, definidas a partir de
diferentes pontos de vista (cf. A. A. Fernandes 1952). A classificao de George R.
Stewart (1945), concebida para a descrio dos topnimos norte-americanos, pode
constituir um ponto de partida para a discusso crtica da possibilidade de tais inventrios,
apesar das crticas de que so alvo os trabalhos desse estudioso entre os etimologistas.23
Trata-se de uma classificao que compreende 10 tipos de topnimos, conforme se
encontra explanada em Room (2006) e reproduzida no quadro 1.3.1:
23 Malkiel (1993: 105) enquadra o trabalho de Stewart (1945) entre os de diletantes como Ernest Klein,
Joseph T. Shipley e Charles Earle Funk, que se dedicaram etimologia, enquanto esta, acompanhando a
desvalorizao da lingustica diacrnica, se viu progressivamente arredada das atenes do trabalho
acadmico rigoroso: [] What Klein, Shipley, and Funk shared was their desinclination to engage in
technical etymological spadework, and Stewart leaned towards the same attitude. No minutely flawless
inquiries, in research papers checked, tested, approved by professionals, accompany these attempts to win
approval from a lay readership []. Mesmo assim, parece que conviria apresentar aqui a tipologia de R.
Stewart mais como um ponto de partida metodolgico do que como uma taxonomia que releve de uma
teoria ontolgica associada toponmia.
34
Quadro 1.3.1 Tipologia toponmica de George R. Stewart (1945),
segundo Room (2006: 3)
Tipo Definio
I.Nomes descritivos directos: Whitewater (descrio das caractersticas do lugar)
relativos: Upper Arlington vs. Lower Arlington (descrio pressupe outro
lugar)
indirectos ou metafricos: Dragon Mountain (morfologia do lugar sugere
outra realidade)
subjectivos: Disapoinment Bay (referncia a uma apreciao)
habitual: Saturday (referncia a determinada prtica frequente)
II. Nomes associativos Aludem a uma realidade presente no contexto geogrfico (rvore, moinho,
animais); podem ser encarados como um subtipo dos nomes descritivos.
III. Nomes evocativos (incidental
names)
Evocam um acontecimento ou uma data histrica
IV. Nomes possessivos Relativos ao nome ou ttulo de um proprietrio ou a um grupo tnico
V. Nomes comemorativos Dados em honra de uma determinada figura (cf. Colmbia < Colombo)
ou de um determinado lugar ou para exaltar uma ideia; tambm tem por
fim homenagear uma figura pelo ttulo nobilirquico, podendo este j
integrar um topnimo (Nova Iorque, em homenagem ao Duque de Iorque)
VI. Nomes comendativos Atribudos com a inteno de propiciar um bom futuro
VII. Nomes de etimologia popular Deturpao de um nome por forma a dar-lhe uma interpretao lgica
VIII. Nomes artificiais Inclui truncaes, jogos de letras, de slabas, de palavras (so recentes)
IX. Nomes atribudos por erro Derivados da reanlise de outros nomes
X. Nomes por transferncia Transferidos de outro lugar.
Como aponta Room (2006: 3), a tipologia de Stewart visa refletir uma ordem
cronolgica, na qual as trs primeras categorias (nomes descritivos, associativos e
evocativos) abrangem os nomes mais antigos. Observa-se tambm que a tipologia de
Stewart no se define por categorias estanques, podendo os 10 tipos definidos no quadro
1.3.1. reduzir-se a 6 categorias, associando os tipos II (nomes associativos) e X (nomes
35
por transferncia) a I (nomes descritivos), o tipo III (nome evocativos) ao V (nomes
comemorativos) e o tipo VII (etimologia popular) ao IX (atribudos por erro) e mais
simplificaes so possveis, tendo em conta as especificidades histricas de cada nome.
Todavia, podem faltar na tipologia em referncia algumas categorias, como a dos nomes
hbridos, baseados num nome apelativo (cidade, montanha, rio) e num nome,
proveniente de uma lngua no claramente identificada, como seja, no mbito ibrico, o
caso de Guadiana < rabe clssico wdi ou rabe andaluz wdi rio + Ana, pr-romano
(cf. Corriente 2003, s.v. guadians). Saliente-se, portanto, o carter hetergeneo da
classificao de Stewart, permitindo-lhe incluir categorias suscetveis de no identificar
a gnese de um nome, mas antes dizer respeito a interferncias que mudaram a
configurao fnica, morfolgica ou semntica desse mesmo nome.
A respeito da toponmia em portugus, se nela for abrangida a de territrios
colonizados em frica, na Amrica ou na sia, certamente possvel encontrar inmeros
exemplos para todas categorias expostas no quadro 1.3.1. Mas no que tange
hidrotoponmia no espao continental portugus, um primeiro exame sugere que os tipos
I e II propostos por Stewart (1945) recobrem grande parte desse reportrio onomstico,
pelo menos, relativamente aos itens de datao mais recuada, uma vez que, como se ver,
de esperar que, etimologicamente, muitos hidrnimos tenham valor descritivo. No
obstante, os tipos VII, IX e X so igualmente relevantes para a investigao etimolgica,
dado existirem casos de etimologia popular ou de homonmia, como o do rio Homem
(segundo Machado 2003, no do latim homo, mas de uma raiz pr-latina), ou situaes
de transferncia de nome, como provavelmente a de muitos pequenos cursos de gua
(cf. Adres, em Viana do Castelo). E, convm repetir, frequente o investigador deparar-
se com formas hbridas, sobretudo criadas no perodo da arabizao do sul e do centro do
atual Portugal Continental.
Conclui-se assim que para o estudo lingustico de um topnimo, no basta
compreender a sua gnese, impe-se tambm reconstruir o seu processo de transmisso,
o qual conduz frequentemente opacidade semntica desse nome. Os investigadores
encaram, por isso, de forma mais ou menos explcita, trs tipos de topnimos, quanto
sua interpretao semntica:
1. Os topnimos transparentes, formados por nomes ou expresses do lxico
comum e, ao contrrio do pretendido por Lyons, possuidores de sentido, uma vez
que so composicionalmente interpretveis (cf. Tort Donada 2001).
36
2. Os topnimos no transparentes ou opacos, ou seja, os que passaram por
um processo histrico de transmisso que lhes alterou total ou parcialmente a
estrutura fnica e morfolgica original, com uma concomitante perda de sentido
(cf. idem e Kadmon 2000: 37/38).
3. A par dos topnimos transparentes e opacos, possvel considerar um
terceiro tipo, os nomes aparentemente transparentes, que so casos de etimologia
popular (ou folk etymology; cf. Kadmon 2000: 37/38) ou de hipercorreo.
A presente tese aborda hidrotopnimos que se repartem pelos trs tipos: inscrevem-
se no primeiro tipo casos como os de rio da Vrzea (Braga e Coimbra) e de rio Pequeno
(Viana do Castelo, Braga, Vila real, Viseu, Lisboa); no segundo, os nomes de grandes
rios como Tejo, Mondego, Douro ou Minho; finalmente, no terceiro, conta-se, por
exemplo, ncora (Viana do Castelo) ou Homem (Braga), homnimos respetivamente dos
itens do lxico comum ncora e homem, mas que revelam ter etimologia bastante distinta
ocultando, semelhana de grande parte da antoponmia, uma motivao semntica que
exibiu inicialmente a forma de uma expresso definida.24 Esta seria usada com o intuito
de descrever e identificar um lugar (assim coincidindo com o tipo I de Stewart; cf. quadro
1.3.1.), um curso de gua ou um territrio mediante a sua simples referncia pelos
correspondentes nomes apelativos numa dada lngua (no caso de espaos aquticos, por
exemplo, rio, gua, lago) ou por designaes relativas a caractersticas fsicas ou
funcionais desses espaos (que corre, que flui, que escuro, que lamacento, que
mau), ou ainda por outras circunstncias relacionveis com o contexto da sua nomeao
(caso frequente nos antropnimos: Joo < hebraico Iohanan que Deus favorece
generoso; cf. Machado 2003 e Lyons 1977: 221/222).
A toponmia presta-se, portanto, a estudos decorrentes de diferentes perspetivas.
Disso mesmo d nota Martnez Lema, que, em estudo dedicado ao tombo de Toxos Outos,
no noroeste da Galiza (Martnez Lema 2010: 39-41), explora o ponto de vista da anlise
derivacional dos topnimos, para definir dois tipos fundamentais de topnimos quanto
categoria dos elementos sobre os quais se baseiam: os topnimos delexicais e os
topnimos deonomsticos.25 Contudo, mesmo nesta perspetiva, pode observar-se que a
24 Recorde-se a famosa Lenda de Gaia, onde se faz crer que a praia de ncora deve o seu nome ncora a
que o rei Ramiro mandou amarrar a mulher que o repudiou (a narrativa encontra-se no Segundo Livro de
Linhagens, tambm chamado Livro do Deo cf. PMH Scrip.: 180-181). 25 Este criterio o que nos permite diferenciar entre toponmia delexical e toponmia deonomstica. No primeiro grupo inclumos todos aqueles topnimos que teen a sa orixe en elementos do repertorio lxico
37
prpria toponmia deonomstica (com origem em antropnimos ou outros topnimos) se
relaciona em ltima anlise com a derivao, porque remonta a itens do lxico comum,
embora no necessariamente no contexto da lngua em que eles so usados, o que se
traduz geralmente na opacidade desses nomes. Pense-se na toponmia com origem na
antroponmia germnica por exemplo, Eiriz (Porto), Fafio (Braga), ou Froufe (Viana
do Castelo); cf. Piel (1934-1935: 39, 219 e 242) , cujos elementos de composio so
transparentes em gtico e eventualmente noutro sistema lingustico germnico (cf. idem,
ibidem), mas no luz do galego e do portugus, tanto no passado como no presente.
Trata-se, portanto, de dois tipos de toponmia que podem refletir diferentes tipos de
contacto lingustico, porque, enquanto a onomstica e, mais particularmente, a
antroponmia podem repercutir uma enorme diversidade cultural extralingustica, muitas
vezes, sem que haja contacto lingustico direto, j na toponmia delexical se observa
geralmente o entrosamento de fatores extralingusticos com as estruturas da lngua ou
dialeto locais.26
O quadro 1.3.2 apresenta as propostas tipolgicas adotadas por Martnez Lema
(2010), cruzando a sua tipologia de carter morfolgico com base na distino entre
lxico (ou lxico comum) e onomstica , com a que se baseia na classificao ontolgica
da realidade denominada.
da lingua (quer no seu estado actual quer nalgunha das sas fases pretritas), mentres que o segundo aglutina
pola contra aqueles topnimos creados a partir de elementos onomsticos preexistentes, sexan nomes de
lugar ou de persoa. Ver tambm sntese em Hermo Gonzlez (2013: 45). 26 A delimitao destes tipos ou categorias nunca corresponde a uma fronteira conceptual fechada, como o prprio Martnez Lema (2010: 43) adverte: En definitiva, son moitas as varibeis que condicionan a
validez e fiabilidade dunha clasificacin lingstica do material toponmico, razn pola cal toda
categorizacin realizada nesta lia [] debe ser interpretada sempre de xeito flexbel e cunha certa
laxitude.
38
Quadro 1.3.2 Categorias topossemnticas de Martnez Lema (2010: 39-41)
(adaptado toponmia portuguesa cf. RTP)
Toponmia delexical Toponmia deonomstica
a) agrotoponimia: topnimos relacionados com actividades
agrrias Barbeitos, Alqueive;
b) ecotoponimia: topnimos relativos a construes humanas ou
agrupaes de edifcios Castelo, Castro, Alcaria);
c) fitotoponimia: topnimos baseados em fitnimos, i.e., em
nomes de plantas Figueira, Oliveira, Carvalho);
d) hodotoponimia: topnimos alusivos a s vias de comunicao
Vieiros, Azinhagas;
e) hidrotoponimia: topnimos baseados en hidrnimos, i.e., em
substantivos relacionados semanticamente com a gua
Fervena, Lagoa, Rio Torto;
f) litotoponimia: topnimos que incluem o trao semntico
'pedra' Carneiro, Laje, Pera;
g) orotoponimia: topnimos criados a partir de nomes comuns
alusivos s caractersticas do solo e a diferentes acidentes do
terreno Outeiro, Cabeo, Cova;
h) zootoponimia: topnimos baseados en zonimos, i.e., em
nomes de animais Raposeira, Pombal.
a) antrotoponimia (ou toponimia
deantroponmica): topnimos
formados a partir dum antigo nome
de pessoa Guimares, de Vmara;
b) etnotoponimia: topnimos
procedentes de antigo etnnimo
Centegos (de Celticanos?);27
c) hagiotoponimia: topnimos com
origem em nomes de santos Santa
Comba, So Pedro;
d) gentilicios: topnimos formados a
partir doutros topnimos ou
antropnimos preexistentes
Coimbres (de Coimbra, como
procedncia geogrfica).
Trata-se de uma tipologia que tem o interesse de ser considerada num estudo de um
conjunto toponmico da Galiza, cujo contexto histrica e culturalmente prximo do
portugus e dos seus usos a norte do Mondego.
27 Ver Machado (2003) s.v. Santages.
39
1.4. A etimologia enquanto subrea dos estudos lingusticos
Dado que o objeto deste trabalho abordado numa perspetiva diacrnica, justifica-
se tecer nesta seco algumas consideraes breves sobre os estudos etimolgicos. Assim,
ao termo etimologia, tm-se associado conceitos diferentes desde a Antiguidade, mas
actualmente revela-se consensual defini-lo como designao de uma disciplina da
lingustica histrica [] qui a pour fonction dexpliquer lvolution des mots en
remontant aussi haut que possible dans le pass, souvent au-del mme des limites de
lidiome tudi, jusqu une unit dite tymon, do on fait driver la forme moderne
(Dubois et al. 1991, s.v. etymologie). No mundo acadmico anglo-saxo, Campbell e
Mixco (2007, s.v.) reiteram esta definio, ao distinguirem duas formas de entender a
etimologia:
Broadly, [etymology is] the study of the origin or history of words (from Greek
etumon true [neuter form], that is, true or original meaning of a word). In
another sense, [it is] the origin and history of a specific word. The earlier sense of
etymology, in classical antiquity, was the unfolding of the true meanings of words,
but this shifted to the modern sense of the search for word histories and the origin
of words.
Pouco diferente o uso que Viaro (2011: 24) atribui aos termos Etimologia e
etimologia, j no contexto dos estudos lingusticos em lngua portuguesa:
Diremos Etimologia, com letra maiscula, quando nos referirmos cincia
etimolgica e etimologia, com minsculas, para o estudo etimolgico de uma
palavra ou elemento de formao. 28
28 No presente trabalho, opta-se pelo uso de etimologia com minscula inicial em ambos os sentidos, uma
vez que o Acordo Ortogrfico de 1945 (disponvel em
http://www.portaldalinguaportuguesa.org/index.php?action=acordo&version=1945, consultado em 25 de
Julho de 2011 ), que aqui continua a ser aplicado, no obriga ao uso de maiscula inicial, atendendo
seguinte passagem: Escrevem-se com maiscula inicial os nomes de cincias, ramos de cincias e artes,
quando em especial designam disciplinas escolares ou quadros de estudos pedagogicamente organizados
[].
http://www.portaldalinguaportuguesa.org/index.php?action=acordo&version=1945
40
A etimologia , portanto, tanto uma disciplina como qualquer estudo particular que
tenha por objeto uma palavra. Esta definio no se afasta da de um dicionrio geral da
lngua portuguesa, podendo ser verificada, por exemplo, no DHLP.
Quanto a timo, Viaro (idem, p. 99) considera que, em relao a uma dada palavra
em anlise, se trata [d]a forma equivalente da mesma palavra, imediatamente anterior
numa sincronia pretrita qualquer, frisando que, a bem da cientificidade da etimologia,
no se deve confundir o timo com a origem mais remota de eventuais elementos
constitutivos da palavra examinada. o caso de fotogrfico, palavra qual se insiste dar
origem grega, quando na realidade a sua criao francesa, com base em elementos
gregos (idem, p. 100).
Sobre a etimologia, impende a crtica de se tratar de um campo de conhecimento
epistemologicamente ultrapassado pelo enfoque sincrnico da investigao lingustica do
sculo XX, situao que lhe acarretou uma perda de credibilidade cientfica. Num livro
de 1993, Yakov Malkiel pintava um quadro desolador do estatuto da etimologia na
segunda metade do sculo XX (Malkiel 1993: 135):
Etymology, still much admired by experts two generations ago, appears of late to
have been banished altogether from certain influential headquarters, for example,
editorial offices of key journals, the planning centres forchoosing the topics of
meetings, and similar nerve centres of active scholarship. [] Etymology no longer
enters into mainline linguistics, except obliquely via diachrony, and the mere
mention of it is redolent of irretrievable past enthusiasms, of something quaint,
rather than of truly relevant present-day concercerns and the common interest of
keen minds.
Quadro semelhante pintado por Viaro (2004: 12/13) que relaciona a decadncia
da etimologia com o acentuar da postura anti-histrica da lingustica do ps-guerra, no
sentido de, como diz este especialista, [] defender o territrio da prpria Lingstica,
pois havia um temor de que ela fosse acusada de no ter um objeto prprio e, dessa forma,
acabasse fundindo-se ou subordinando-se Filosofia, Histria, Psicologia.
Tort Donada (2001), centrando-se nos estudos toponmicos e na sua relao com a
geografia, reconhece as fragilidades da disciplina, que, aplicada toponmia, se traduzem
pelo pendor especulativo, em especial na abordagem dos topnimos opacos. A estas
crticas, Villar (2000: 30/31) responde, reivindicando para etimologia toponmica a
41
dimenso de estudo cientfico, mesmo quando o objeto se apresenta com escassez de
dados:
No existe coto vedado para la curiosidad de la ciencia. Lo que existe es distinto
grado de facilidade en el acceso y diferente cuanta de los datos disponibles. Y ello
hace que deba abordarse cada problema com um mtodo diferente y adecuado a sua
naturaleza. Y, obviamente, los resultados de la indagacin profesional sern
tambin diferentes segn el objeto, tanto por su abundancia como por su grado de
certeza.
Contudo, no se pode totalmente pensar que a etimologia se tivesse tornado no final
do sculo XX um domnio de estudos anacrnico, alheio investigao mais recente. Os
trabalhos de Eve Sweetser (ver Sweetser 1990) e Elizabeth Traugott (Traugott 2003),
apontando tendncias na direcionalidade da mudana semntica, contriburam certamente
para recuperar a etimologia, integrando-a na lingustica contempornea. Como j se viu,
esta vinculao da etimologia semntica bastante antiga, quando se sabe que, na
Antiguidade Clssica, o termo designava a pesquisa do verdadeiro sentido das palavras.
Note-se ainda que Crystal (1995, s.v. etymology) define etimologia como termo
tradicional que se aplica origens e histria da forma e significado das palavras,
sublinhando que os mtodos utilizados a qualificam como um ramo da lingustica
histrica. Numa perspetiva lexicolgica, mencione-se igualmente Dworkin (2012: 13),
que salienta o facto de a etimologia se ter desenvolvido no sentido da elaborao de
pormenorizadas biografias lexicais que abrangem toda a evoluo formal e semntica de
determinada palavra. Como lexicologia diacrnica, a etimologia fundamental para o
estudo das vrias camadas ou estratos que se acumularam para formar o lxico de uma
lngua.
Assinale-se que a etimologia no se limita semntica, mas abrange, desde h, pelo
menos, duzentos anos, o estudo diacrnico da fontica com a fonologia e da morfologia,
pelo que no pode ficar indiferente lingustica histrico-comparativa. No , portanto,
descabido afirmar que a recuperao que a etimologia tem conhecido recentemente j se
preparava h algum tempo. Esta disciplina, se no se quiser popular ou acientfica,
devedora de mtodos que, apesar de eventualmente relegados para segundo plano com o
ascendente das teorias e abordagens sincrnicas, no perderam a sua validade quando se
trata de reconstruir a histria das formas lingusticas. Neste mbito, assume especial
42
relevo o mtodo comparativo e o mtodo de reconstruo interna, como bases
metodolgicas que foram durante muito tempo os garantes da credibilidade de muitas
propostas etimolgicas. Neste captulo, far-se- referncia mais detida tradio
histrico-comparativa sobre a qual repousam estudos indo-europesticos (ver seco 1.6),
mas impe-se para j uma breve meno das caractersticas dos mtodos em apreo.
Rankin (2003: 184) considera que o sucesso do mtodo comparativo se deve s
seguintes caractersticas das lnguas e da respetiva mudana:
1. A no iconicidade do signo lingustico, ou seja, a arbitrariedade da relao entre
forma fonolgica e significado, visto a mudana fnica se realizar geralmente
de forma independentemente da semntica.
2. A r