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55 ANAIS • Ano I • Volume 1 Odílio Luiz da Silva I nicio esse depoimento armando que a implantação do curso de Medicina na Universidade de Brasília foi um acontecimento histórico, único e grandioso; para mim, uma verdadeira epopeia. A vivência na faculdade, especialmente na Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho, foi, para mim, e certamente para muitos que lá trabalharam, a mais bela e notá- vel experiência prossional na área médica. Gostaria de começar com a origem da UnB. Criada em de- zembro de 1961, iniciou as atividades acadêmicas em 1962, com a implantação de três troncos básicos: Direito, Administração, Economia, Letras Brasileiras, Arquitetura e Urbanismo. Darcy Ribeiro era reitor na época, um dos incentivadores da criação. O regime acadêmico da universidade era livre, não obedecia mais àquelas normas severas do MEC. Em novembro de 1963, autorizado para janeiro de 1964, houve o primeiro vestibular da Universidade de Brasília para aquelas áreas-troncos e, para o segundo semestre de 1964, o vestibular de Medicina. O vestibular foi criado sem a existência do curso de Medi- cina. O reitor na época (Anísio Teixeira, que cou até 13 abril de 1964, naturalmente deposto pela revolução) saiu e assumiu Zeferino Vaz, conceituado e notável professor, que implantou a

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curso de Medicina na Universidade de Brasília foi um acontecimento histórico, único e grandioso; para mim, uma verdadeira epopeia. A vivência na faculdade, especialmente na Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho, foi, para mim, e certamente para muitos que lá trabalharam, a mais bela e notá- vel experiência profissional na área médica. 55 ANAIS • Ano I • Volume 1

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ANAIS • Ano I • Volume 1

Odílio Luiz da Silva

Inicio esse depoimento afi rmando que a implantação do

curso de Medicina na Universidade de Brasília foi um

acontecimento histórico, único e grandioso; para mim, uma

verdadeira epopeia. A vivência na faculdade, especialmente na

Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho, foi, para mim, e

certamente para muitos que lá trabalharam, a mais bela e notá-

vel experiência profi ssional na área médica.

Gostaria de começar com a origem da UnB. Criada em de-

zembro de 1961, iniciou as atividades acadêmicas em 1962, com

a implantação de três troncos básicos: Direito, Administração,

Economia, Letras Brasileiras, Arquitetura e Urbanismo. Darcy

Ribeiro era reitor na época, um dos incentivadores da criação.

O regime acadêmico da universidade era livre, não obedecia

mais àquelas normas severas do MEC. Em novembro de 1963,

autorizado para janeiro de 1964, houve o primeiro vestibular da

Universidade de Brasília para aquelas áreas-troncos e, para o

segundo semestre de 1964, o vestibular de Medicina.

O vestibular foi criado sem a existência do curso de Medi-

cina. O reitor na época (Anísio Teixeira, que fi cou até 13 abril

de 1964, naturalmente deposto pela revolução) saiu e assumiu

Zeferino Vaz, conceituado e notável professor, que implantou a

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Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Durante essa época,

já havia um coordenador – Antônio Cordeiro – que também saiu

com Anísio Teixeira. Em 1964, portanto, houve demissões, cas-

sações, perseguição política de cerca de 200 professores que,

subitamente, sumiram da universidade. Apesar de ter fi cado um

vazio, fez-se o vestibular, mas podia-se fazer o vestibular porque

a universidade inovou: o aluno não entrava direto para o curso

de Medicina, teria que, no seu vestibular, escolher uma opção:

entraria para Ciências Exatas, Ciências Biológicas, e uma série

de cursos dessa ordem, preparatórios, que duravam cerca de

três semestres e em que o aluno era preparado antes de fazer

o curso profi ssional no qual ia se graduar. Assim, nesse interva-

lo entre 1964 e essa desestruturação toda, os alunos puderam

continuar lá, mas sem a perspectiva de ter o curso de Medicina.

Em substituição a Zeferino Vaz entrou outro professor de São

Paulo, Laerte Ramos, que trouxe para o curso Edgar Barroso do

Amaral, também conceituado professor, para coordenar o Curso

de Medicina, mas aí houve o convite. Ernani Braga, diretor de Re-

cursos Humanos da Organização Mundial da Saúde, que durante

algum tempo foi diretor da Pan-americana de Educação Médica,

sugeriu ao então ministro Muniz de Aragão e a Laerte e aBarroso

do Amaral que convidassem José Roberto Ferreira. Ele aceitou e

trouxe Luiz Carlos Lobo, que também estava voltado à educação

médica, que veio como organizador do curso, enquanto Barroso

continuava a exercer as atividades de coordenador do curso.

Então se criou um grupo de trabalho de professores diri-

gido pelo Edgar, além de José Roberto e Luiz Carlos Francisco

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Pinheiro Rocha, secretário de Saúde e presidente da Fundação

Hospitalar, Walter Sidney Leser, professor de Medicina Preventi-

va da Escola Paulista, Otávio de La Serra e Isaias Raw, professo-

res da Universidade de São Paulo. Esse grupo recebeu a missão

de estruturar o curso de Medicina, porque os alunos estavam na

expectativa, praticamente com o curso pré-clínico e pré-profi s-

sional já concluído.

Dois meses depois, esse grupo chegou à conclusão de como

seria o currículo da faculdade. Em março de 1966, concluíram o

documento básico da Faculdade de Ciências Médicas da Uni-

versidade de Brasília. É uma epopeia: com a pressão dos alunos

para criar um Curso de Medicina, em cinco meses as instalações,

totalmente inovadoras na época, estavam prontas. O que estáva-

mos acostumados na nossa formação? Cerca de seis laboratórios

multidisciplinares de onde o aluno não saía. Ele fi cava estudando,

recebia aulas práticas, tinha sua guarda e ali se dedicava inteira-

mente ao curso. Em 8 de agosto de 1966 iniciaram-se as aulas.

Barroso do Amaral, por questões de saúde, pediu desliga-

mento em outubro, e Luiz Carlos Lobo foi indicado como diretor

da faculdade e coordenador do curso. Começava outra etapa. O

curso precisava de um hospital e, pela lei da época, não se pode-

ria criar mais hospitais ligados ao ensino. Tarso Dutra era ministro

da Educação, era do Rio Grande do Sul e criou a Faculdade de

Medicina com o hospital. Como era ministro da revolução, ele

podia criar, mas nós não. Por iniciativa do presidente da Funda-

ção Hospitalar, estabeleceu-se um convênio para a Universidade.

Parece fácil assinar isso, mas não foi. A briga foi tremenda, por-

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que os que estavam aqui não queriam as condições que foram

implantadas: a dedicação exclusiva. Foram convidados, não acei-

tavam e também não permitiam que houvesse um hospital.

Esse hospital foi dado graças a Francisco Pinheiro Rocha,

que assinou o convênio por dez anos. Nesse convênio consta-

va que a assistência médica era da universidade, mas as des-

pesas médicas seriam rachadas. Havia produção e essa produ-

ção cumpria perfeitamente as despesas da universidade, 50%

para cada um. Assim foi entregue esse hospital, para que a fa-

culdade pudesse gerir e desenvolver o seu inovador programa.

Hoje, quando revejo aquilo tudo, percebo que é tudo o que

o governo sempre quis fazer: ir ao encontro do doente e não o

doente à procura da saúde. Esse hospital era simples, para uma

população de 30 mil habitantes.

A população de Sobradinho foi insufl ada por aqueles que

eram contrários ao hospital, porque não queriam que a faculda-

de tomasse conta. Diziam que as pessoas serviriam de cobaias,

pensamento totalmente sem sentido. Foram feitas várias reuni-

ões e Luiz Carlos Lobo participava de todas, tentando mostrar

o benefício que eles trariam àquela população. Em menos de

um ano de atividade, os índices de mortalidade infantil daquela

cidade simplesmente caíram com um trabalho de assistência.

Em todo o Brasil, apesar de as faculdades serem bem tradi-

cionais, o curso era essencialmente teórico, os professores pra-

ticamente nem queriam saber dos alunos. Era um curso que de-pendia mais do aluno do que da escola. Era só teoria. Se o aluno não procurasse o serviço, não entrasse no hospital, não aprendia

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Medicina. Quando terminava o curso, queria ir para o interior fa-zer um curso de cirurgia em cima de cadáveres. Não se participa-va dos cursos de Medicina, mas aqui foi o contrário: o aluno parti-cipava, era preparado no ensino básico, em um sistema integrado da Medicina que Luiz Carlos Lobo implantou. Tudo era aprendido de uma forma intensiva por meio de nove sistemas que prepara-vam o aluno de forma integrada. Ele aprendia anatomia, embrio-logia, histologia, fi siopatologia, mas o modo de examinar não era aprendido no hospital. E o hospital também esnobou. Não era mais aquela divisão departamental, mas uma casa única. Distin-guiam-se três ou quatro áreas básicas de internação: obstetrícia, pediatria, unidade de cirurgia e de clínica médica, apoiadas por serviços complementares. Isso tudo foi implantado lentamente.

O ciclo profi ssional básico tinha essas disciplinas, uma era pré-requisito para a outra: mecanismos de agressão e defesa, sis-tema nervoso (Bráulio com o Saraiva), sistema locomotor, sistema hematopoiético (Fernandinho), cardiovascular – inicialmente com Jacques Bulcão, que morreu subitamente dentro do hospital.

Iniciei dizendo que esta era, para mim, a maior experiência. Concluo dizendo que a implantação do curso de Medicina na UnB foi, sem dúvida, a maior inovação didática até hoje realiza-da em nosso meio. Não porque eu tenha participado, mas foi. O país tem novos cursos surgindo, mas igual àquele eu nunca vi. Ele tornou-se, na época, um paradigma para as outras escolas no Brasil e para os países em desenvolvimento, sendo apoiado pela Organização Mundial da Saúde e pela Organização Pan-america-

na de Saúde. Era comum recebermos delegações de africanos,

trajados a caráter, querendo saber das coisas, e recebermos pro-

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fessores de outras escolas, das mais distintas. Uma vez pergunta-

ram se trabalhávamos de manhã e à tarde. Íamos para lá todos os

dias de manhã, cada um revezando o seu carro. Lisboa, às vezes

ia com aquele Volvo muito ruim, azul, mas que subia a serra de

Sobradinho. Saíamos por volta de seis e meia, sete horas, deixá-

vamos os fi lhos nos colégios; descíamos, inclusive aos sábados,

e produzíamos. Muitos colegas achavam estranho a gente tra-

balhar integralmente naquele hospital, mas foi realmente uma

vivência extraordinária. Tenho, até hoje, tanto tempo depois de

formado, muita admiração pelo que fi z e pelo que aprendi.

O curso permaneceu de 1966 até 1985 com a mesma

orientação, mas perdeu essas características por uma razão

fundamental: tivemos que devolver o Hospital de Sobradinho

em 1980, por razões políticas e administrativas – e sem a visão

daqueles que o administravam. O secretário de Saúde exigiu,

então, que a Universidade assumisse toda a assistência médica

sem a Fundação entrar e mudar. Os alunos, por sua vez, que-

riam participar de outros hospitais no internato e a exigência foi

criar os preceptores da Fundação, que ganhariam 20 salários

mínimos, mais que o professor titular em dedicação exclusiva.

Não houve meios de continuar nessa situação. Em 1980, o hos-

pital teve que ser entregue à Fundação e nos entregaram o

hospital do IPASE. Logo depois, o curso perdeu todas aquelas

características, tornando-se como os demais. Hoje, Luiz Carlos

Lobo está aqui, dando assessoria à Faculdade para tentar im-

plantar mais uma vez novos sistemas de ensino.

Acadêmico Odílio Luiz da Silva: Médico ortopedista e professor emérito da Faculdade de Medicina da UnB.