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SRGIO LUCIANO DA SILVA
FACES E FONTES MULTIESCRITA: FUNDAMENTOS E CRITRIOS DE DESIGN TIPOGRFICO
Belo Horizonte 2011
CAPA OK
SRGIO LUCIANO DA SILVA
FACES E FONTES MULTIESCRITA: FUNDAMENTOS E CRITRIOS DE DESIGN TIPOGRFICO
Dissertao apresentada Escola de Design da
Universidade do Estado de Minas Gerais para
obteno do ttulo de Mestre em Design.
rea de Concentrao: Design, Inovao e
Sustentabilidade
Linha de Pesquisa: Design, Cultura e Sociedade
Orientador: Prof. Dr. Srgio Antnio Silva
Co-orientadora: Prof. Dr. Sebastiana Luiza
Bragana Lana
Belo Horizonte 2011
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
S586f Silva, Srgio Luciano da Faces e fontes multiescrita : fundamentos e critrios de design tipogrfico / Srgio Luciano da Silva. - - Belo Horizonte, 2011. 154 f. (enc.) : il. color. tabs. ; 31 cm.
Orientador: Srgio Antnio Silva Co-orientadora: Sebastiana Luiza Bragana Lana
Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado de Minas Gerais / Escola de Design / Mestrado em Design, 2011.
1. Desenho grfico Tipo (impresso) Teses. 2. Famlia Tipogrfica Teses. 3. Projeto Grfico (tipografia) Teses. I. Silva, Srgio Antnio. II. Lana, Sebastiana Luiza Bragana. III. Universidade do Estado de Minas Gerais. IV. Ttulo.
CDU: 766
Srgio Luciano da Silva Faces e fontes multiescrita: fundamentos e critrios de design tipogrfico
Dissertao apresentada Escola de Design da
Universidade do Estado de Minas Gerais para
obteno do ttulo de Mestre em Design.
rea de Concentrao: Design, Inovao e
Sustentabilidade
Linha de Pesquisa: Design, Cultura e Sociedade
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.:____________________________________________________________________
Instituio: ______________________________ Assinatura: __________________________
Prof. Dr.:____________________________________________________________________
Instituio: ______________________________ Assinatura: __________________________
Prof. Dr.:____________________________________________________________________
Instituio: ______________________________ Assinatura: __________________________
Prof. Dr.:____________________________________________________________________
Instituio: ______________________________ Assinatura: __________________________
Para Alice e Janana, que me aguardam no Mungongo
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, que transformaram seus sonhos e projetos nos meus. Maria Alice Couto dos Reis, pelas leituras atentas, crticas isentas e apoio incondicional. Janana Reis de Faria, por continuar acreditando. Mirian S. A. Ferreira, ao Thiago Couto dos Reis e Luciana Guizan, por torcerem em silncio.Ao Professor e amigo Srgio Antnio Silva, por toda generosidade, estmulo e orientao.Ao querido amigo Alaor Jos da Cunha, pelo suporte. minha turma, Cssio, Cludio, Joca, Marcelo, Paulo, Ricardo e Sandro Bill, por existirem. tia Martinha, pelo carinho e pelos livros.Ao Nlio Ribeiro, por seu incentivo irrestrito. Camila Zyngier (Camilinha), pelas conversas e discusses sobre hebraico.Ao Felipe Domingues, pelos dois anos de intensa reflexo e proteo.Ao Pedro Campos, pelas crticas rigorosas. Fernanda Mouro, pelas tradues.Ao Professor Roberto Brant, que despertou meu interesse pelas cincias.Ao Professor Ricardo Valrio Fenati, que me despertou do sono dogmtico para a epistemologia. Professora Virginia de Araujo Figueiredo, que abriu meus olhos para o mundo de Aristteles.Aos Professores Gustavo Araujo, Ana Araujo e Raquel Teles Yehezkel, pelos ensinamentos de grego, latim e hebraico. Professora Ktia Xancho, que me iniciou, com todo carinho, na caligrafia. Professora Rita Aparecida da Conceio Ribeiro, por ajudar-me a enfrentar as audincias. Professora Sebastiana Luiza Bragana Lana, primeira a acolher meu projeto.Ao Professor Paulo Bernardo Ferreira Vaz, pelas valiosas sugestes, incluindo a expresso design tipogrfico. Professora Lia Krucken Pereira, pela mediao.Ao Professor Bruno Guimares Martins, por ler e avaliar meu projeto, mesmo durante uma viagem.Ao Rodrigo Stenner, pela dedicao, competncia e carinho. Miriam Nadim Abou-Yd, pelas fotos da Lbia. Valquria Aparecida de Moraes Paula, pela sabedoria, por acreditar e me incentivar.Ao Samy Lansky, por alertar-me sobre a importncia das lacunas.Ao Glauco Teixeira, Nadja Mouro e Srgio Lemos, pelas vises diferenciadas do design. Snia Queiroz, Maria Dulce Barbosa e Ana Utsch, por abraarem o Projeto Titivillus.Aos queridos participantes da Oficina de Caligrafia do Centro Cultural da UFMG, Alice, Csar, Ivete, Lcia Latorre, Lcia Toledo, Maria da Gloria, Madu, Mrio Vincius, Mirian, Pedro e Rina, pela rica troca de saberes e emoes.Aos meus primeiros alunos, Jonathan Soares, Laurent Porto e Lus Fernando Tavares, por tudo que me ensinam.Ao Internet Arquive (www.archive.org) e aos seus parceiros pela distribuio gratuita dos livros que forneceram as imagens contidas nas figuras 18, 22, 23, 24 e 25. Oak Knoll Press, em especial ao Sr. Robert Fleck Jr., Bob, e a Sra. Laura R. Williams, que gentilmente cederam os direitos de reproduo das imagens contidas nas figuras 19, 20, 21, 26, 27, 28, 30 e 31.
Esta dissertao foi realizada com o auxlio financeiro da CAPES.
Estudar e reproduzir o design de uma letra grega ou copta, derivada de um hierglifo egpcio,
ou qualquer uma das milhares de outras formas escritas, entender o que um (a) colega viu com
os olhos da mente quando modelou aquela mesma forma h milhares de anos. como trabalhar
atravs da lgica do teorema de Pitgoras, ciente de que se est seguindo os pensamentos de
um gemetra de um passado distante. A forma torna-se no mais uma sombra inerte em uma
pgina, mas uma ideia viva.
Charles Bigelow & Kris Holmes The design of a Unicode Font
RESUMO
SILVA, S. L. Faces e fontes multiescrita: fundamentos e critrios de design tipogrfico. 2011.
154 f. Dissertao (Mestrado) Escola de Design, Programa de Ps-Graduao em Design da
Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.
Esta dissertao trata dos critrios e fundamentos que subsidiam o design tipogrfico multiescrita
(especificamente nas escritas latina e grega), oferecendo suporte terico e prtico atividade
de designers nessa categoria de trabalho. Ela se divide em quatro eixos principais inter-rela-
cionados. O primeiro identifica as influncias que os designers de escrita latina e as suas faces
de tipo exercem sobre a tipografia grega, apontando as consequncias dessas influncias para
que novos designers possam consider-las na tomada de decises de seus projetos. O segundo
avalia os diversos nveis de conexes entre a caligrafia e a tecnologia atual de produo de fon-
tes tipogrficas e extrai os elementos conceituais derivados dessas conexes que so relevantes
para o design tipogrfico. O terceiro estabelece critrios, parmetros e limites para que fontes
multiescrita (produzidas a partir de faces multiescrita) preservem a harmonia em seu conjunto
sem a perda da identidade histrica, cultural e visual de cada escrita particular. O ltimo busca
compreender e explorar os novos recursos contidos nas tecnologias do codificador Unicode e
do formato OpenType, subsidirios produo de fontes multiescrita. Alguns destes recursos
so cruciais para o design tipogrfico que busca a excelncia, uma vez que retomam e permitem
reincorporar elementos primordiais da tipografia, que haviam sido abandonados com o advento
das tecnologias mais recentes da linotipia e da fotocomposio.
Palavras-chave: Design tipogrfico. Fontes multiescrita. Tipografia latina. Tipografia grega.
ABSTRACT
SILVA, S. L. Multi-script typefaces and fonts: typeface design fundamentals and criteria.
2011. 154 f. Dissertation (Masters Degree) Escola de Design, Programa de Ps-Graduao
em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.
The present dissertation is about the criteria and fundamentals that support multi-script typeface
design (specifically in Latin and Greek scripts), providing theoretical and practical aid to the
the work of designers in this field of activity. It is divided into four interrelated main lines.
The first identifies the influences that the designers of Latin script and its typefaces have had
on Greek typography, pointing out the consequences of such influences so that new designers
may consider them in the decision taking process of their projects. The second evaluates the
several levels of connection between calligraphy and the present production technology of
typographic fonts, bringing out the conceptual elements derived from such connections that are
relevant to typeface design. The third sets criteria, parameters and limits for multi-script fonts
(produced from multi-script typefaces) to preserve their harmony as a whole without losing
the historical, cultural and visual identity of each particular scprit. The last tries to understand
and to explore the new resources found in the Unicode Encoding and the OpenType format
technologies, subsidiary to the production of multi-script fonts. Some of those resources are
crucial for typeface design in search of excellence, as they bring back and allow to reincorporate
paramount typeface elements that had been put aside with the coming of the most recent linotype
system and photocomposition technologies.
Key words: Typeface design. Multi-script fonts. Latin typography. Greek typography.
LISTA DE ILUSTRAES
Ilustraes dos captulos
Figura 1. Exemplos de faces de tipo que formam uma famlia. 30
Figura 2. Formas fsicas de uma face de tipo. 31
Figura 3. Parte do cdigo de programao de uma fonte. 31
Figura 4. Pares de variaes de glifos para um mesmo caractere. 32
Figura 5. Amostra de ligaduras baseadas em dois e trs glifos. 32
Figura 6. Equivalncia entre paicas, polegadas e milmetros. 34
Figura 7. Diferena entre paicas PostScript e paicas americanas. 34
Figura 8. Representao de tipos de liga de metal. 35
Figura 9. Representao de tipos digitalizados. 35
Figura 10. Instrues digitais contendo medidas dos glifos de uma fonte. 36
Figura 11. Principais medidas e distncias das partes das letras. 37
Figura 12. Linhas que definem a entrelinha. 37
Figura 13. A palavra Sntesis, em grego, apresenta trs diferentes glifos (indicados pelas setas) para o mesmo caractere sigma. 41
Figura 14. Duas letras de uma mesma face com detalhes diferenciados no acabamento, para usos em tamanhos distintos. 43
Figura 15. Organograma dos sistemas de escrita. 46
Figura 16. Runas romanas do norte da Lbia (stio arqueolgico de Leptis Magna). 51
Figura 17. Runas romanas do norte da Lbia (stio arqueolgico de Leptis Magna). Detalhe. 51
Figura 18. Trecho do manuscrito de Nithardus, De dissensionibus filiorum Hludovici Pii libri escrito entre 900 e 1.000 dC no estilo Carolngio. 52
Figura 19. Face grega ortptica de Nicolas Jenson, 1472. 53
Figura 20. Face grega chanceleresca baseada na forma das letras manuscritas de Manuzio, 1502. 54
Figura 21. Face Grecs du Roi de Claude Garamond, 1550. Os crculos destacam trs elaboradas abreviaturas, complexas para serem produzidas em tipos de metal. 55
Figura 22. Face de Alexander Wilson. Trecho da edio de Robert e Andrew Foulis, da obra Iliad, de 1756. 56
Figura 23. Face de John Baskerville. Trecho da obra Novum Testamentum juxta exemplar Millianum, de 1763. 56
Figura 24. Simulao das principais linhas de auxlio na construo de glifos usando parte das imagens das figuras 22 e 23. 57
Figura 25. Face Porson Greek. Trecho da edio de Cambridge da obra The Oresteia of Aes-chylus, de 1920. 58
Figura 26. Face Otter Greek, de Robert Proctor. Trecho da Oresteia, de 1904. 58
Figura 27. Face New Hellenic, baseada no desenho de Victor Scholderer. Trecho de Thucidydes The funeral oration of Pricles, de 1929. 59
Figura 28. Face grega de Giambattista Bodoni. Trecho de Longus, 1786. As setas indicam curvas pouco apropriadas para uma face de tipo feita para textos corridos. 60
Figura 29. Face GFS Didot. Verso digital de 1994 produzida para a Greek Font Society. Esta verso preserva as espessuras dos traos originais de Firmin Didot, no coerentes com traos de origem caligrfica. 61
Figura 30. Faces Romulus Greek (1937) e Romulus Latin (1931) de Jan van Krimpen, com punes de Paul Rdisch. 63
Figura 31. Faces Perpetua Greek e Perpetua Latin de Eric Gill. A verso latina foi originalmente desenhada para a Monotype em 1925. 64
Figura 32. Maisculas e minsculas gregas e latinas da face Euler. As maisculas latinas tm um nmero reduzido de serifas. 66
Figura 33. Exemplo de texto multiescrita em harmonia na face Euler. 66
Figura 34. Uniformidade e regularidade das letras gregas na face Euler. 66
Figura 35. Comparao entre a deficincia no traado de algumas letras na face GFS Didot (esquerda) e o equilbrio nas linhas das mesmas letras na face Euler (direita). 66
Figura 36. Simulao por meio de setas do movimento de uma caneta de ponta larga e da va-riao de espessura do ducto na face Euler. 66
Figura 37. Distino de letras, formalmente semelhantes, no alfabeto latino e grego, dentro da face Euler. 67
Figura 38. Iluso de ptica de crculos ao lado de quadrados. 70
Figura 39. Iluso de ptica de crculos sobre crculos. 70
Figura 40. Iluso de ptica de diagonais que se cruzam. 71
Figura 41. Iluso de ptica do Efeito Osso. 72
Figura 42. Iluso de ptica de verticais conectadas a horizontais. 73
Figura 43. Curvas, retas e diagonais j ajustadas para parecerem de mesma espessura. Medidas expressas em pontos tipogrficos. 74
Figura 44. Simulao de letras posicionadas verticalmente em um plano horizontal, para avaliar sua estabilidade. 75
Figura 45. Exemplos relacionados ao princpio de estabilidade. 76
Figura 46. Exemplos relacionados ao princpio de obstruo. 77
Figura 47. Exemplos relacionados ao princpio de densidade. 77
Figura 48. Exemplos relacionados ao princpio de demarcao. 78
Figura 49. Detalhes de elementos que distinguem letras com estruturas similares. 80
Figura 50. A importncia das partes superiores das letras no alfabeto latino. 80
Figura 51. Os 80 glifos da face EM -2000 ( FHWA), adotada na sinalizao de trnsito nos Estados Unidos e no Brasil. 93
Figura 52. Exemplos de letras com sinais diacrticos sugeridos pelo Guia Brasileiro de Sinali-zao Turtisca (1 linha) e a soluo adotada no projeto da BR Sans (2 linha). 94
Figura 53. Exemplo de uso da fonte EM-2000, adaptada com os sinais diacrticos para a sina-lizao de trnsito na cidade de Belo Horioznte. 95
Figura 54. Ajustes nas formas para assegurar a compensao ptica dos glifos. 95
Figura 55. Demonstrao do ajuste de algumas letras. A rea em preto foi eliminada no desenho final da BR Sans. 96
Figura 56. Exemplo de letras que aumentam sua legibilidade com a reduo do negrito em suas formas. 98
Figura 57. O conjunto completo dos 694 glifos, de um dos 8 estilos da BR Sans. 99
Figura 58. Nove classes de elementos da BR Sans. 100
Figura 59. Letras maisculas gregas na BR Sans. As letras em cinza tem a mesma forma das latinas. 102
Figura 60. Letras gregas gamma, delta e xi minsculas em trs faces gregas, comparadas com a BR Sans. As formas das letras das duas primeiras linhas so fac-smiles e serri-lharam ao serem ampliadas na composio da figura. Optamos por mant-las assim para preservar seu traado original. 102
Figura 61. Exemplos de consistncia de diversos elementos que compem as letras gregas da BR Sans. 104
Figura 62. Exemplo de texto multiescrita na Face BR Sans. 106
Figura 63. Composio de texto em grego e latim usando a BR Sans em seus estilos. 106
Figura 64. Composio de texto em grego e latim usando a BR Sans em seus estilos. 107
Ilustraes dos apndices
Figura B.1. Terminologia bsica associada s partes das letras. 135
Figura B.2. Detalhes relativos ao eixo, estresse e forma das serifas. 136
Figura B.3. Termos relacionados s diversas classes de elementos contidas em uma fonte. 137
Figura B.4. Os diversos estilos da famlia de faces Deja Vu. 138
Figura D.1. Quatro primeiros passos da etapa de criao de uma face de tipo. 142
Figura D.2. Detalhe do redesenho da letra X, usando a referncia da letra desenhada em papel e digitalizada. Este desenho vetorizado, quinto e ltimo passo da etapa de criao, a base para a etapa seguinte de produo da fonte. 143
Figura D.3. Trecho da janela da matriz de composio de um programa de edio de fontes. 144
Figura D.4. Janela do mesmo programa da figura anterior mostrando a letra S montada em sua matriz de composio. Cada um dos elementos como letras, nmeros e sinais de pontuao, tem sua prpria janela de edio. 144
Figura D.5. Diagrama representativo de um projeto tipogrfico. 145
Figura D.6. Do item A at o item E temos as cinco circularidades do diagrama indicadas de R1 a R5 e no item F a representao destes processos simplificados. 148
Figura D.7 Realimentao R1. 149
Figura D.8 Realimentao R2. 149
Figura D.9 Realimentao R3. 149
Figura D.10 Realimentao R4. 150
Figura D.11 Realimentao R5. 150
LISTA DE TABELAS
Tabelas dos apndices
Tabela E. 1. Trs variaes de nomes das letras na escrita grega. 152
Tabela E. 2. Frequncia da letras na constituio das palavras de escrita latina. 153
Tabela E. 3. Frequncia da letras na constituio das palavras de escrita grega. 153
SUMRIO
1 INTRODUO 16
1.1 Cuidados com a nomenclatura 16
1.2 Trajetria da tipografia multiescrita 18
1.3 Escolha do tema 22
1.4 Objeto e objetivos 23
1.5 Reviso bibliogrfica e metodologia 24
1.6 Design tipogrfico, inovao e sustentabilidade 27
2 CONCEITOS E PRINCPIOS 29
2.1 Faces de tipo, tipos e fontes tipogrficas 29
2.2 Caracteres e glifos 31
2.3 Unidades de medidas absolutas e relativas 32
2.4 Codificadores de caracteres 38
2.5 A linguagem PostScript de descrio de pgina 39
2.6 Fontes OpenType 41
2.7 Sistema de escrita, escrita e multiescrita 43
3 CAMINHOS DA MULTIESCRITA NA TIPOGRAFIA LATINA E GREGA 48
3.1 Surgimento e expanso do alfabeto 50
3.2 Diferenciaes a partir do nascimento: a primazia das chancelerescas 53
3.3 Giro e a trajetria britnica: a retomada das ortpticas 55
3.4 Desdobramentos de uma nova concepo italiana e francesa 59
3.5 Latinizao versus uma abordagem no predatria de projetos multiescrita 61
4 APARNCIA E ESSNCIA: DOIS ASPECTOS COMPLEMENTARES EM
MULTIESCRITA 68
4.1 Tipografia e aparncia: iluso de ptica e compensao formal dos glifos 69
4.1.1 Quatro princpios pticos: Estabilidade, Obstruo, Densidade e Demarcao 744.1.2 Legibilidade, leiturabilidade, percepo e compreenso 794.1.3 Organizando os conceitos pticos para estabelecer critrios 81
4.2 Tipografia e essncia: possibilidades e limitaes metodolgicas de projetos multiescrita 824.2.1 Limites de classificao de faces em escrita latina 834.2.2 O desafio das fronteiras em multiescrita 85
4.2.3 A escolha das escritas 864.2.4 Design simultneo ou incremental: qual metodologia utilizar? 88
4.3 Complementaridade entre aparncia e essncia 90
5 FONTE BR SANS: UM EXEMPLO CONCRETO 92
5.1 Origem do projeto 92
5.2 Caractersticas, modificaes e adaptaes 93
5.3 Conjunto dos glifos 99
5.4 Design incremental das letras gregas 1015.4.1 Estrutura das letras 1015.4.2 Composio de texto 105
CONSIDERAES FINAIS 108
REFERNCIAS 110
APNDICE A GLOSSRIO 115
APNDICE B ANATOMIA DO TIPO 136
APNDICE C FONTES TYPE 1 E FONTES TRUETYPE 140
C.1 Guerra das Fontes 140
C.2 Type 1 versus TrueType 141
APNDICE D PANORAMA DAS ETAPAS DE UM PROJETO TIPOGRFICO 143
D.1 A criao da face de tipo 147
D.2 A produo da fonte tipogrfica 147
D.3 A produo dos documentos e a criao do canal de distribuio 148
D.4 Realimentao positiva e Loop 148
APNDICE E PARTICULARIDADES DAS LETRAS NAS ESCRITAS GREGA E
LATINA 152
16
1 INTRODUO
Este captulo, por seu carter preliminar, tem por funo delimitar o tema, objetos e objetivos,
assim como estabelecer a metodologia e reviso bibliogrfica que d suporte a esta dissertao.
Como parte deste prembulo fornecemos tambm um mnimo embasamento histrico e termi-
nolgico com o propsito de explicitar conceitos, que sero aprofundados em outros captulos,
mas que j se encontram, pela exigncia do prprio tema, includos aqui.
1.1 Cuidados com a nomenclatura
A tipografia, como qualquer rea do conhecimento humano, tem um vocabulrio prprio
que vem se ampliando e se especializando desde a sua constituio, em 1454, com a criao
dos tipos mveis ocidentais por Gutenberg. No entanto, termos que foram cunhados em alemo,
ingls ou francs, ou que retroagem Idade Mdia e at mesmo ao tempo do Imprio Romano,
muitas vezes no tm correlato em nossa lngua. Desta maneira, para um claro entendimento
do tema, algumas definies so exigidas. Consideramos como parte dos objetivos do primeiro
captulo da dissertao definir termos e conceitos bsicos (sem esquecer o contexto histrico)
apoiando-nos em (ECKERSLEY et al., 1994), (FELICI, 2003), (HARALAMBOUS, 2002,
2003, 2007), (ROSSI FILHO, 2001), (UNICODE, 2009) e (THING, 2003). Quanto ao restante
das expresses, optamos por no defini-las dentro do texto principal, para facilitar a fluncia
do contedo da dissertao, apresentando seu significado em um glossrio separado ao final.
Alm disso, nos sentimos obrigados a criar neologismos, em circunstncias em que no existe
correlato de um termo em nossa lngua.
Com a consolidao e a expanso da produo tipogrfica em meio digital, nas ltimas
trs dcadas, uma srie de conceitos j estabelecidos neste campo vem sofrendo alteraes.
Como consequncia, a terminologia especfica vem sendo adaptada e ampliada, para subsidiar
o discurso dos profissionais da rea. Obviamente, a quantidade de expresses, que j grande,
tende a crescer juntamente com a complexidade da tecnologia. Alm disso, a expanso do uso
da tipografia digital na comunicao escrita mundial obrigou este campo a incorporar conceitos
relacionados lingustica e gramatologia. Assim, atentos a essas circunstncias, necessrio,
17
antes de enfrentarmos o tema da dissertao, definir quatro termos includos no ttulo da mesma:
face, fonte, multiescrita e design tipogrfico.
O termo face de tipo, ou simplesmente face, tem um significado preciso: uma coleo de
sinais grficos (letras, sinais diacrticos, nmeros, pontuao e smbolos) desenhados para terem
uma forma e estilo comuns (FELICI, 2003, p. 29; THING, 2003, p. 893).
Fonte tipogrfica, ou fonte, a estrutura que descreve uma face de tipo. Esta estrutura pode
ser fsica, em blocos de liga de metal ou em filme fotogrfico, ou ainda digital, em cdigo de
computador, como ocorre com a tecnologia atual. O termo fonte, em sua acepo mais recente,
est associado a um arquivo digital que representa, com instrues de programao, as formas das
letras e dos demais elementos de uma face de tipo (FELICI, 2003, p. 29; THING, 2003, p. 340).
Uma maneira de distinguir fonte de face pensar seus conceitos metaforicamente. A fonte
tipogrfica equivalente a um carimbo e a face de tipo sempre se mostra nas marcas feitas pelo
carimbo, por exemplo, sobre folhas de papel.
O termo multiescrita um neologismo de origem inglesa (multi-script), uma juno do
antepositivo multi-, cujo significado o de algo numeroso, e escrita, cuja acepo aqui de um
conjunto de signos que representa textualmente uma linguagem. So exemplos de escritas os
alfabetos latino, grego e cirlico e os silabrios hiragana e katakana. Assim, multiescrita, em sua
funo de adjetivo, significa: (diz-se daquilo) que possui vrias escritas. Portanto, se uma fonte
tipogrfica multiescrita, ela contm mais de uma escrita em sua composio. Um exemplo
de fonte multiescrita a Times New Roman, que inclui em seu arquivo digital as escritas latina,
grega, cirlica, hebraica e arbica.
No nosso entendimento, o design tipogrfico, devido s particularidades de seus processos
internos, necessita de uma caracterizao singular, que fazemos nos apoiando em dois outros
conceitos: criao e produo. Os conceitos de criao e de produo tm acepes comuns e
costumam ser considerados equivalentes em diversas reas de atividades que incluem projetos.
No entanto, dada a especificidade do nosso campo de pesquisa, consideramos os mesmos com
sentidos distintos, com o propsito de tornar mais preciso o conceito de design tipogrfico.
Assim, criao aqui entendida como o trabalho primordial do designer tipogrfico. Est rela-
cionada diretamente cristalizao de conceitos e estilos que este profissional concebe e que
iro caracterizar formalmente uma face de tipo. Na atualidade, esta cristalizao pode acontecer
atravs do desenho das letras concludas em papel ou executadas diretamente no computador.
Por outro lado, produo no tem aqui o carter inventivo da criao. Assim, diz respeito ao
processo de composio (montagem) da fonte tipogrfica a partir dos desenhos das letras criados
18
pelo designer. Neste processo, compem-se todos os elementos desenhados em um documento
de estrutura matricial, dentro de um programa especfico de edio de fontes. O documento
matriz o cerne gerador dos arquivos finais do produto fonte e o trabalho de produo pode ser
executado pelo designer tipogrfico ou por um profissional especializado em composio, desde
que supervisionado pelo designer. O que importa saber que as etapas de criao e de produo
esto includas num conceito mais amplo, o de design tipogrfico. O fundamento deste conceito
est em projetar tanto a forma, enquanto face de tipo desenhada, quanto a estrutura digital que
suporta o desenho, isto , a fonte tipogrfica. O Apndice D (Panorama das etapas de um proje-
to tipogrfico) aprofunda a anlise sobre os sentidos de criao, produo e design tipogrfico
estabelecidos aqui. Definidos esses termos, passemos ao tema da dissertao.
1.2 Trajetria da tipografia multiescrita
Desde as ltimas dcadas do sculo XX vem ocorrendo um crescimento no interesse da
produo de fontes tipogrficas com capacidade multiescrita, voltadas para o mercado multilin-
gual. Designers tipogrficos de todo o mundo tm cada vez mais participado de projetos desta
natureza. O avano exponencial da globalizao justifica em parte o envolvimento da comuni-
dade tipogrfica neste campo especfico. No entanto, se voltarmos nosso olhar para o passado,
encontraremos razes de uma produo multiescrita, muito antes do advento da tipografia, j na
Idade Mdia Europeia, com o trabalho manuscrito dos monges copistas. A atividade de repro-
duo dos textos antigos exigia, alm do domnio da caligrafia e do conhecimento das lnguas
clssicas, o mximo de cuidado e ateno na redao dos textos. Principalmente quando tais
obras incluam mais de uma escrita, como no caso de alguns textos bblicos produzidos em grego
e latim1. O esforo desses monges de copiar tais manuscritos estava sempre acompanhado do
risco de erro. A igreja, detentora do poder de guarda, produo e reproduo de obras escritas,
tinha entre seus mecanismos de controle de qualidade uma histria curiosa para os dias de hoje,
mas ameaadora para a poca medieval: Titivillus, segundo a tradio crist, seria o demnio
que estaria sempre atento aos enganos dos escribas. Ele os anotava, juntamente com o nome do
1 importante distinguir o que bilngue ou trilngue do que multiescrita. Uma obra redigida, por exemplo, em portugus e ingls bilngue, mas no multiescrita, uma vez que faz uso apenas de uma escrita (a latina), para produzir seu contedo. Um exemplo de manuscrito multiescrita o Codex Bezae em grego e latim. Um fac-smile do mesmo, contendo o evangelho de Lucas encontra-se disponvel em http://ia600407.us.archive.org/11/items/morecodexbezae/CodexBezaeLuke.pdf
19
monge que os cometera, para apresent-los em cobrana como pecado, no dia do julgamento
final (DROGIN, 1980, p. 17-20). Com o surgimento das universidades, a partir do sculo XII, e o
aumento da procura por textos, principalmente das tradues das obras de Aristteles e Plato, os
escribas sobrecarregados apontavam Titivillus como aquele que os induzia ao erro. Este demnio,
no entanto, tendo tornado-se justificativa para as erratas, passou com o tempo a ter o seu poder
mitigado e terminou, na Renascena, por ser considerado patrono dos escribas e da caligrafia.
Neste contexto, poderamos entender que a inveno da imprensa de tipos mveis de Gu-
tenberg permitia um avano em relao a dois pontos problemticos da produo inteiramente
manual de livros. Resolvia a questo da oferta de obras, em face da crescente demanda, mantendo
a excelncia na produo. E, em princpio2, reduzia o nmero de erros com economia de tempo:
uma pgina montada para impresso tipogrfica, mesmo depois de exaustivamente revisada,
ainda assim poderia ser reproduzida centenas ou milhares de vezes, em cpias idnticas e num
prazo muito mais curto do que sua equivalente no processo manual. Mas, o mais importante, em
termos de contedo, que o avano tecnolgico da imprensa preservava as condies necessrias
para a continuidade de uma produo multiescrita, agora em larga escala.
No entanto, para que a imprensa fosse bem-sucedida era preciso adaptar-se a um mer-
cado exigente. A escrita manual, em sua matriz estabelecida ao final da Idade Mdia, apesar
de suas limitaes, desfrutava de prestgio entre os leitores do sculo XV. E esta preferncia
apoiava-se numa tradio cultural que preservara, para a escrita latina, estilos compostos de
letras maisculas advindas ainda do Imprio Romano (Sculo I dC) e minsculas do Imprio
Carolngio (Sculo IX dC). Esta predileo, da qual Gutenberg tinha conscincia, foi um dos
motivos que fizeram com que ele e sua equipe utilizassem um grande nmero de variaes de
letras na impresso de seu primeiro livro, em 1454. Alm disso, conforme afirma James Felici
(2003, p. 5), sua empresa manteve a mesma estrutura de pginas, o mesmo projeto dos livros e
preservou as convenes caligrficas j secularmente estabelecidas. A inteno era convencer,
aos provveis e potenciais compradores, que seus tipos mveis poderiam imitar razoavelmente
as elegantes formas da arte caligrfica e que as obras produzidas em sua oficina tipogrfica no
eram inferiores s confeccionadas nos mosteiros e abadias, que contavam com a tecnologia e
padres medievais.
O fato de que com a Renascena agua-se o interesse dos leitores (principalmente nobres,
cortess, estudiosos e estudantes) por temas e autores da antiguidade clssica (no s latina
mas tambm grega), transfere as exigncias da escrita manual grega, de carter mais cursivo e
2 Em princpio porque, como ocorre ainda atualmente, se a reviso no for rigorosa, um nico erro se replica por todas as cpias.
20
intrincado, para o mundo da impresso. Construir fontes gregas com esses critrios, para aten-
der ao mercado humanista em crescimento e com obras multiescrita, torna-se uma tarefa mais
complexa, mas rentvel. No sem razo que um professor de grego, como Aldo Manuzio,
to bem-sucedido comercialmente, como editor, ao produzir em torno 150 obras, entre 1495 e
1515, entre clssicos em grego e latim, e com edies incorporando ao mesmo tempo essas duas
escritas. Marca emblemtica da multiescrita nesse perodo (15141517) a impresso da Bblia
Poliglota Complutensiana, editada pelo cardeal Francisco Ximenes, incluindo trs escritas em
suas pginas: grego, latim e hebraico.
Assim, foi necessrio, juntamente com a nova tecnologia de tipos mveis, que os tipgrafos
ampliassem seu espectro de atuao para alm de suas escritas nativas. Isto, na verdade, no era
um esforo descomunal, uma vez que, com a conquista da Grcia pelo Imprio Otomano, os
experientes escribas gregos que se exilaram compartilharam suas habilidades e conhecimentos
com os tipgrafos do restante da Europa e deram sua contribuio para uma produo tipogrfica
multiescrita. E ao longo dos sculos que se seguem assistimos a uma profuso de tipgrafos no
gregos que se especializam e se dedicam criao de faces em escrita latina e grega: Nicolas
Jenson (c. 142080), Claude Garamond (c. 14901561), William Caslon (16921766), John
Baskerville (170675), Giambattista Bodoni (17401813), Ambroise Firmin Didot (17901876),
Jan van Krimpen (18921958), Eric Gill (18821940), Hermann Zapf (1918) e Matthew Carter
(1937) so apenas alguns dos nomes de diversas nacionalidades que ganharam renome inter-
nacional realizando este trabalho.
No entanto, a crescente mecanizao que ocorreu ao longo dos ltimos cinco sculos
procurou atender muito mais s exigncias de um mercado em expanso do que preservar a
qualidade e os critrios dos primeiros tempos da tipografia. O sculo XX, por todas as trans-
formaes tecnolgicas prensadas num curto perodo histrico, foi aquele que mais sofreu o
impacto das mudanas. A passagem da produo dos tipos de metal de forma manual para o
modo mecanizado do pantgrafo (final do sculo XIX), seguida pela gerao de fontes em filme
fotogrfico e destas para a tecnologia digital, possibilitou a proliferao da tipografia de maneira
extraordinria. Porm, o preo que se pagou foi o abandono de uma srie de recursos, ajustes e
refinamentos que deixaram de ser incorporados pelos equipamentos mais recentes.
No mbito da produo de fontes tipogrficas, um exemplo de recuo e perda de qualidade
foi a eliminao das sutis variaes nas formas das letras, para cada tamanho de fonte, na me-
dida em que o uso do pantgrafo permitiu a produo de diversos tamanhos de letras a partir de
um nico modelo desenhado. O pantgrafo, como mostra Malou Verlomme (2005, p. 19) foi
21
somente o gatilho tecnolgico, uma vez que poderiam, ainda com este instrumento, ser utilizados
mais de um modelo de letras para os diferentes tamanhos. Mas essa no foi a opo da indstria,
privilegiando os prazos e custos em detrimento da qualidade.
Na rea de edio e impresso a tecnologia tambm avanou e os mercados se ampliaram
enquanto operava-se um retrocesso na qualidade dos elementos tipogrficos bsicos, isto ,
os glifos. Com o crescimento da alfabetizao e da indstria de jornais, na Europa e Estados
Unidos, mquinas de composio de textos como a Linotype e a Monotype encurtaram os
prazos para a produo de uma pgina impressa, graas padronizao em um nmero redu-
zido e fixo de larguras das letras e sua montagem a partir de um teclado. A impresso ofsete,
cujas bases foram estabelecidas no final do sculo XVIII, com a inveno da litografia aliada
tecnologia da fotocomposio, se firma na metade do sculo passado, tornando obsoletas
as Linotype e as Monotype.
Ora, a produo de fontes a partir do processo fotogrfico reforou o caminho j percorrido
pela indstria, no perodo anterior em que se utilizava o pantgrafo. Com um nico filme servin-
do de modelo era possvel gerarem-se os diversos tamanhos de letras necessrias composio
dos textos. Foi assim que uma estrutura reduzida e empobrecida de fontes foi transferida para o
mundo dos computadores. No fim da dcada de 1980 as fontes tipogrficas em formato digital
j haviam se estabelecido firmemente dentro do territrio do design grfico e nas mais diversas
formas de comunicao em meio eletrnico. Os custos para produzir fontes e gerar material
impresso reduziram-se tanto que se tornou possvel ter uma editora dentro de casa. Alm disso,
diversas limitaes dos formatos das fontes Type 1 e TrueType foram superadas com o advento de
padres como o formato OpenType e o codificador Unicode, desenvolvidos ao longo da dcada
seguinte. Um dos progressos foi a capacidade de incorporar milhares de elementos, inclusive
multiescrita, em um s arquivo digital. Paralelamente a esses avanos, as novas tecnologias
tornaram-se cada vez mais acessveis aos designers tipogrficos, dando mais liberdade de ao
e ampliando as possibilidades de inovao em seus projetos. Como consequncia disso, tanto
empresas produtoras de fontes quanto designers interessados em diferenciarem-se do lugar-
comum e estabelecerem seu nicho (como j havia feito Manuzio cinco sculos antes) retoma-
ram a pesquisa histrica em busca dos antigos recursos e elementos tipogrficos e caligrficos
abandonados ao longo do tempo e investiram na sua reincorporao ao mundo da tipografia,
incluindo em tudo isso a multiescrita.
22
1.3 Escolha do tema
As novas condies e possibilidades da tecnologia digital tornaram o processo de produo
de fontes mais intrincado e com um maior nmero de etapas, principalmente quando o propsito
inclui a multiescrita. Isto exige o domnio de reas do conhecimento e de tcnicas que no eram
necessrias a quem trabalhava apenas no mbito da sua escrita nativa. Em decorrncia disso,
nos ltimos 15 anos cresceu o debate internacional em torno do tema das fontes tipogrficas
multiescrita. O assunto tratado em cursos universitrios, congressos e fruns na Internet. Se a
literatura em portugus sobre tipografia amplia-se cada vez mais, no entanto, a discusso sobre
questes relacionadas multiescrita ainda escassa em nossa lngua. E o volume de informao
disponvel em ingls e francs sobre o tema da multiescrita, apesar de mais expressivo, est
pulverizado em artigos de revistas especializadas, dissertaes, captulos de livros de designers
tipogrficos e de tericos da tipografia.
Assim, apesar da crescente discusso, dos estudos de caso e dos trabalhos j publicados,
ainda existem lacunas na produo terica sobre design multiescrita. Uma delas a falta de
material no somente descritivo e analtico, mas propositivo, que norteie os designers tipo-
grficos na produo dessa categoria de fontes tipogrficas. Esta lacuna justifica e indica o
tema desta dissertao.
O tema diz respeito aos critrios e fundamentos tericos e prticos que possam orientar
a produo de fontes multiescrita. Sua relao com a linha de pesquisa Design, Cultura e So-
ciedade se d em pelo menos dois nveis. Num nvel mais geral a tipografia sabidamente um
dos pilares do design grfico. Num nvel mais especfico o design tipogrfico sempre esteve
fundamentado no binmio tcnica e arte e consequentemente indissocivel da cultura e da
sociedade. Assim, por um lado a criao sempre se deu fazendo uso da tecnologia disponvel
no momento histrico da produo (desde as punes e pantgrafos at os atuais computadores).
Por outro, as diversas faces de tipo criadas ao longo dos mais de 500 anos de imprensa vm de
uma tradio caligrfica e sempre estiveram inseridas nos movimentos culturais e artsticos de
seu tempo, como o renascentista, o rococ, o barroco, o neoclssico e todos os demais.
23
1.4 Objeto e objetivos
O objeto de pesquisa circunscreve a escrita latina e a grega, no mbito do design tipo-
grfico, procurando identificar, analisar e estabelecer algumas condies necessrias para que
as letras desses alfabetos possam ser adequadamente incorporadas a uma fonte tipogrfica. A
questo que est na base da dissertao : quais os fundamentos, critrios e requisitos, tericos
e prticos, necessrios criao de faces e produo de fontes em multiescrita? A escolha das
escritas grega e latina se deve a trs fatores:
1 proximidade cultural e estrutural destes dois alfabetos, mas que foram submetidos a
diferentes condies histricas que enriquecem o estudo.
2 importncia sabidamente universal que a escrita grega sempre teve e ainda tem na pro-
duo de fontes tipogrficas ocidentais.
3 possibilidade de serem feitas extrapolaes a partir do referencial do grego para a criao
de faces que incluam outras escritas como o cirlico ou o hebraico.
O objetivo geral elaborar critrios que auxiliem o design tipogrfico multiescrita, subsi-
diando designers nessa categoria de trabalho. Os objetivos especficos so:
1 Identificar as influncias que os designers de escrita latina e as suas fontes exercem na pro-
duo de fontes gregas, apontando as consequncias destas influncias, para que designers
iniciantes em tipografia possam consider-las na tomada de decises em seus projetos.
2 Avaliar as conexes entre a tcnica histrica da caligrafia e a tecnologia atual de produo
de fontes tipogrficas e extrair os elementos conceituais derivados dessas conexes que
so relevantes para o design tipogrfico.
3 Estabelecer critrios, parmetros e limites para que fontes multiescrita (produzidas a partir
de faces multiescrita) preservem a harmonia em seu conjunto sem a perda da identidade
histrica, cultural e visual de cada escrita particular.
4 Compreender e explorar os novos recursos3 contidos nas tecnologias do codificador Uni-
code e do formato OpenType, subsidirios produo de fontes multiescrita.
3 Alguns destes recursos so cruciais para o design tipogrfico que busca a excelncia, uma vez que retomam e permitem reincorporar antigos elementos da tipografia que haviam sido abandonados em favor de tecnologias mais recentes como a da fotocomposio.
24
1.5 Reviso bibliogrfica e metodologia
A maior parte da bibliografia est baseada em obras impressas. No entanto, alguns documen-
tos mais recentes, relacionados a pontos especficos dos temas tratados, apenas esto disponveis
em sua forma digital. Tratam-se de dissertaes de mestrado, artigos apresentados em congressos
e disponibilizados em jornais eletrnicos ou stios e fruns especializados na rea tipogrfica.
Assim, a relevncia e at o ineditismo das questes abordadas justificam a incluso destes arqui-
vos PDF. Porm, se uma das caractersticas inovadoras da Internet permitir o debate, a livre
circulao e troca de ideias de maneira rpida, devemos tomar cuidado com a procedncia das
informaes veiculadas atravs da rede. Deste modo, todos os documentos includos tm como
origem de distribuio stios de instituies e/ou empresas confiveis, como The Type Directors
Club (TDC), The TEX Users Group (TUG), The Comprehensive TEX Archive Network (CTAN),
The Summer Institute of Linguistics (SIL) e Greek Font Society (GFS).
Quando pesquisadores debatem questes sobre multiescrita, temas acerca do cirlico, do
hebraico e do arbico costumam aparecer junto com os de grego, por se tratarem de escritas
difundidas na produo tipogrfica ocidental. Alm disso, entendemos que alguns conceitos e
critrios elaborados para aplicao dentro do universo de uma escrita podem ser estendidos a
outras, por analogia, abrindo caminho para solues inusitadas de problemas. Assim, apesar de
no pertencerem ao tema especfico desta dissertao, pesquisamos, lemos e inclumos na bi-
bliografia os seguintes autores: (HARALAMBOUS, 1994), (LALOU, 2004), (YARDENI, 2002).
As obras The worlds writing systems (DANIELS et al., 1996), Medieval calligraphy
(DROGIN, 1980), Fonts and encodings (HARALAMBOUS, 2007), Writing and illuminating and
lettering (JOHNSTON, 1977), Digital formats for typefaces (KAROW, 1987), Letters of credit
(TRACY, 2003) e The book of hebrew script (YARDENI, 2002) no foram lidas em toda a sua
extenso, uma vez que foram utilizadas principalmente como fonte de consulta e pesquisa pontual.
Duas obras particularmente relevantes para a dissertao so: Language culture type
(BERRY, 2002), que, de mbito mais geral, discorre sobre a tipografia atual no contexto das
escritas grega, cirlica, hebraica, arbica, japonesa e bengali e Greek letters (MACRAKIS, 1996),
que rene mais de 20 ensaios especficos sobre a tipografia grega, tratando desde a histria e
antiguidade deste alfabeto at os seus problemas e desafios na atualidade. importante observar
que o referencial terico da bibliografia se mescla com nossos estudos de lnguas (grego, latim
e hebraico), estudo e prtica da caligrafia medieval e renascentista e da anlise da aplicao de
conceitos no design de uma famlia de fontes com recursos multiescrita.
25
Os principais tericos em que a dissertao se baseia so: Charles Bigelow e Kris Holmes
(BIGELOW; HOLMES, 1993), Gerry Leonidas (LEONIDAS, 2002), Hermann Zapf (ZAPF,
1996), John H. Bowman (BOWMAN, 1996), Matthew Carter (CARTER, 1996), Maxim Zhukov
(ZHUKOV, 2006), Takis Katsoulidis (KATSOULIDIS, 1996) e Yannis Haralambous (HARA-
LAMBOUS, 1994, 2002, 2007). Em torno desses autores se juntam os demais da bibliografia.
Todos esto contemplados a seguir, a partir dos temas em que os mesmos mais esto associados.
Como afirmamos anteriormente, os temas relacionados ao design tipogrfico multiescrita
encontram-se pulverizados sobre a forma de artigos de revistas especializadas, algumas poucas
dissertaes, teses e captulos de livros. Assim, temos como principal referncia autores que, na
maior parte dos casos, no consagram uma obra inteira aos assuntos tratados. Em alguns casos a
contribuio do autor sobre uma determinada questo encontra-se concentrada em apenas poucos
pargrafos. Acreditamos que esta condio tenda, com o tempo, a se reverter, tanto pelo aumento
do interesse dos pesquisadores em questes de multiescrita quanto pelo amadurecimento desta rea,
ainda incipiente enquanto campo de estudo. No entanto, para o momento presente, foi necessrio
pensar uma estratgia metodolgica hbrida para a abordagem dos diversos temas e seus objetivos.
O objetivo especfico 1 tem como fundamento a anlise da histria e das estruturas das
escritas e lnguas envolvidas na criao tipogrfica, em particular as escritas latina e grega.
Assim, a abordagem, nesse caso, tem um carter diacrnico e comparativo, estando atenta s
influncias de autores e conceitos sobre a produo de fontes gregas. A parte da bibliografia de
apoio que est mais ligada histria das escritas e da tipografia : (BOWMAN, 1996), (CHENG,
2006), (DANIELS, 1996), (HALEY, 1995), (MAN, 2002, 2004) e (TRACY, 2003). A parte que
est envolvida diretamente no debate sobre produo tipogrfica latina e grega : (BIGELOW;
HOLMES, 1993), (CARTER, 1996), (GAULTNEY, 2001, 2002), (HARALAMBOUS, T; HA-
RALAMBOUS, Y, 2003), (KATSOULIDIS, 1996), (LEONIDAS, 2002), (SATU, 2004), (ZAPF,
1996) e (ZHUKOV, 2006). Todos os autores envolvidos no debate sobre produo multiescrita
(tanto os de origem grega quanto os de origem latina e at eslava, como Zhukov) so unnimes
com relao influncia da escrita e tipografia latinas na produo tipogrfica grega. No entan-
to, dentro deste quadro de concordncia geral, cada autor tem um posicionamento especfico
sobre o nvel de influncia, bem como sobre os benefcios e danos produzidos na tipografia
grega. Nossa inteno extrair a posio de cada autor e confront-las apontando as vantagens
e desvantagens de cada orientao, problematizando a questo. Em seguida, tomando posio
prpria, mostrar que a influncia latina, apesar de impor regras externas tipografia grega, tem
sido bem-sucedida na criao de faces de qualidade, quando os designers apoiam-se firmemente
nos conhecimentos histricos e culturais.
26
O objetivo especfico 2 est baseado na discusso em torno da importncia do conheci-
mento e domnio da tcnica da caligrafia. Como a abordagem circunscreve o tempo presente,
nesse caso tem um carter sincrnico e comparativo. A bibliografia de apoio para este tpico
: (BERLINER, 2003), (DROGIN, 1980), (HARRIS, 1995), (JOHNSTON, 1977), (LALOU,
2004), (YARDENI, 2002) e (ZAPF, 1996). O cerne da questo saber como preservar atributos
como a correta forma dos traos manuscritos, sua vivacidade e o seu vigor na converso para
um produto digital como uma fonte tipogrfica. Nossa inteno demonstrar que, mesmo atu-
almente, num contexto informatizado e digital de produo, no se pode abrir mo da caligrafia
e de sua constituio histrica e cultural como elementos estruturadores das formas bsicas da
tipografia, que so as letras.
O objetivo especfico 3 apropria-se das concluses dos dois objetivos anteriores, sendo de
carter menos descritivo e mais prescritivo. A bibliografia de apoio a este tema : (BIGELOW;
HOLMES, 1993), (BRINGHURST, 2005), (CELSO, 2000), (FARIAS, 1998), (HARALAM-
BOUS, 2002, 2007), (SILVA; FARIAS, 2005), (VERLOMME, 2005) e (ZHUKOV, 2006). Sua
abordagem, uma vez que procura estabelecer parmetros para produo de fontes multiescrita,
mais reflexiva e de sntese e se desdobra em dois caminhos.
O primeiro caminho investigado (voltado para a aparncia) apresenta algumas parti-
cularidades da percepo visual humana, assim como possveis estratgias de construo de
glifos que burlem os efeitos pticos indesejveis, no design tipogrfico. A anlise se apia,
especificamente, nos estudos realizados por Peter Karow (1987) e Karen Cheng (2006) sobre
iluso de ptica aplicada tipografia e nas interpretaes que Walter Tracy (2003) e Victor
Gaultney (2001) oferecem sobre os conceitos de legibilidade e leiturabilidade. A partir disso,
uma exposio textual e ilustrada de alguns fenmenos pticos conhecidos serve de base
para o que consideramos uma das contribuies especficas dessa dissertao para o design
tipogrfico: a elaborao de quatro princpios (estabilidade, obstruo, densidade e demar-
cao) e a organizao de conceitos, cuja finalidade propor critrios de correo e ajuste
na forma dos glifos.
O segundo caminho investigado (voltado para a essncia) refere-se a dois tipos de processos
de design tipogrfico multiescrita: o simultneo (em que o desenho das diversas escritas feito
sincronicamente) e o incremental (em que o desenho das letras de uma escrita e inteiramente
produzido antes de desenhar a outra). Nossa inteno defender a ideia de que os processos
simultneos e incrementais de criao de faces multiescrita devem ser escolhidos tendo por base
principalmente a distncia cultural que separa as escritas includas em um projeto. Assim, em
escritas culturalmente prximas como a latina e a grega criar os elementos de maneira incremental
27
no acarreta danos para o conceito geral da face. Por outro lado, em escritas mais distantes cul-
turalmente, a simultaneidade de criao dos elementos deve ser a regra, para garantir unidade
interna a um projeto, sem perda da identidade de cada escrita em particular.
O objetivo especfico 4 apia-se nas concluses dos trs primeiros objetivos e procura
compreender a estrutura e os recursos de uma fonte tipogrfica latina e grega, com nfase em
aspectos formais e tcnicos. A bibliografia de apoio, utilizada em parte na criao da fonte
analisada, composta principalmente de manuais e guias tecnolgicos: (ADOBE, 1990, 1999),
(CABARGA, 2004), (MOYE, 1995), (PFIFFNER, 2003), (PHINNEY, 2004) e (TOLEDO; RO-
SENBERG, 2003). Esta bibliografia tambm foi utilizada na produo dos apndices C (Fontes
Type 1 e Fontes Truetype) e D (Panorama das etapas de um projeto tipogrfico), apndices esses
que suplementam o entendimento do objetivo 4.
A proposta utilizar como suporte emprico os dados referentes produo da famlia de
fontes BR Sans (projeto tipogrfico no comercial desenvolvido por ns entre os anos 2003 e
2007) em conjunto com a fundamentao j estabelecida a partir dos objetivos anteriores, a fim
de avaliar at onde esta famlia incorpora tais fundamentos e o quanto ela capaz de desempenhar
suas funes tipogrficas. As propriedades desta famlia incluem oito estilos sem serifa (prprios
para textos e ttulos), alfabeto latino, alfabeto grego politnico e refinamentos tipogrficos como,
opes para nmeros de texto e de ttulo, versaletes verdadeiras para os dois alfabetos e ligaduras
automticas. Cada estilo contm um total 694 glifos e 965 pares de crenagem finalizados em
formato OpenType. Todas essas caractersticas esto em consonncia com o que existe de mais
atual em tecnologia digital, ao mesmo tempo em que resgatam qualidades clssicas da tipografia,
visando atender s necessidades estruturais de um possvel modelo de produo de fontes, que
alie inovao, tradio e cultura.
1.6 Design tipogrfico, inovao e sustentabilidade
necessrio justificar a relao da tipografia (especificamente no mbito da criao de
faces de tipo e da produo de fontes tipogrficas) com a rea de concentrao (Design, Inova-
o e Sustentabilidade) na qual esta dissertao foi elaborada. Como vimos, o sculo passado
foi um perodo de grandes mudanas tecnolgicas para a tipografia, tanto na maneira de gerar
novas fontes quanto na de produzir material impresso com o uso delas. As diversas mudanas
que ocorreram, passando dos tipos fsicos em liga de metal at chegar aos tipos digitalizados
28
atuais, colocam o design4 tipogrfico entre os campos que mais se desmaterializaram, inovaram
e consequentemente garantiram seu lugar entre os que geram produtos sustentveis.
Se, no entanto, concordarmos que sustentabilidade deve ser um atributo fundamental e no
simplesmente um elemento a ser adicionado ao design, muito ainda resta ser feito neste campo.
O lado positivo que a produo de fontes tipogrficas em multiescrita no se restringe hoje a
empresas e profissionais visando exclusivamente fins comerciais. Algumas organizaes sem fins
lucrativos tm se envolvido em projetos de criao de faces com distribuio gratuita de fontes,
sistemas alternativos de processamento de textos e documentos sobre tipografia. Seus objetivos
vo desde a pesquisa e divulgao da tipografia, como ocorre com o CTAN (Comprehensive
TEX Archive Network) e com a GFS (Greek Font Society), at um trabalho de maior amplitude
social, apoiando a preservao de linguagens e o desenvolvimento de escritas para povos menos
favorecidos no mundo globalizado, como ocorre com o SIL (Summer Institute of Linguistics).
Particularmente o SIL, fundado em 1934 nos Estados Unidos, inclui entre os seus objetivos
promover treinamento e pesquisa em lingustica e alfabetizao, realizar estudos descritivos e
comparativos de lnguas indgenas e produzir uma forma escrita para estas lnguas. Esta orga-
nizao oferece cursos em todos os continentes em parceria com diversas universidades, alm
de cursos individuais e oficinas. Em mais de 70 anos de existncia o instituto j trabalhou com
mais de 2.000 linguagens, acumulando uma vasta bibliografia de seus pesquisadores. Assim, a
despeito da polmica questo antropolgica da disseminao de textos bblicos em culturas que
esto adquirindo, atravs desse instituto, uma forma escrita para sua linguagem, esta organizao
desenvolve um trabalho de lingustica relevante. O SIL tambm disponibiliza fontes tipogrfi-
cas que so produzidas por profissionais com conhecimentos multidisciplinares em tipografia,
alfabetizao e escritas de minorias, como o caso de Victor Gaultney (citado nas Referncias).
Em torno dessas organizaes esto se agrupando cada vez mais designers tipogrficos
interessados em contribuir para a democratizao do acesso s tecnologias da informao. Assim,
independentemente do uso que se faz de rtulos como software livre ou aberto, incluso digital,
sustentabilidade ou desenvolvimento auto-sustentvel, uma parte da comunidade tipogrfica
mundial vem se dedicando a tornar os recursos mais atuais de comunicao escrita acessveis
a um maior nmero de pessoas no mundo. A inteno garantir a sobrevivncia de escritas e
culturas minoritrias e reduzir a desigualdade entre as naes.
4 Infelizmente, o mesmo no pode ser dito para a rea da tipografia relacionada impresso ofsete que, apesar de todos os avanos tecnolgicos, ainda consome muitos recursos naturais, energia e gera poluio ao produzir contedo impresso.
29
2 CONCEITOS E PRINCPIOS
Este captulo ocupa-se da anlise e delineamento de termos bsicos da tipografia: caracte-
res, glifos, tipos, faces de tipo e fontes tipogrficas, definidos em suas acepes mais recentes.
Examina tambm as mudanas ocorridas nas unidades de medidas tipogrficas, com o advento
das tecnologias digitais. A partir disso, investiga algumas tecnologias subsidirias da atual tipo-
grafia digital: os codificadores de caracteres, a linguagem PostScript de descrio de pgina e o
formato de fontes OpenType. Por ltimo, descreve uma nomenclatura apropriada compreenso
dos sistemas de escrita.
O objetivo deste captulo duplo. Primeiro, propiciar o domnio de conceitos e o entendimento
bsico de algumas estruturas, mecanismos e recursos utilizados na atualidade, por pesquisadores
e profissionais de criao de faces e de produo de fontes, procurando eliminar equvocos e
ambiguidades do vocabulrio tipogrfico. Segundo, introduzir a defesa de que a tipografia deve
incorporar as novas tecnologias sem prescindir do seu passado, isto , da cultura e da histria.
2.1 Faces de tipo, tipos e fontes tipogrficas
A expresso face de tipo, que vem da expresso inglesa typeface, uma coleo de
sinais grficos (letras, sinais diacrticos, nmeros, pontuao e smbolos) desenhados para
terem uma forma e estilo comuns (FELICI, 2003, p. 29; THING, 2003, p. 893). Um termo
derivado de face de tipo famlia de faces de tipo que congrega a forma e estilo de uma face
em variaes que podem se caracterizar por letras mais grossas (negrito), cursivas e inclinadas
(itlico), mais estreitas (condensado), ou mais largas (expandido). A figura 1 apresenta alguns
dos membros da famlia de faces de tipo Deja Vu Serif desenvolvida pela empresa produtora
de fontes Bitstream. Cada um desses membros (Deja Vu Serif Book, Serif Italic, Serif Bold,
Bold Italic e ExtraLight) uma face. Todas as faces juntas formam a famlia de faces de tipo
Deja Vu Serif.
Os tipos so os elementos individuais de uma face de tipo, ou seja, um tipo tem o significado
da unidade mais elementar que compe uma face de tipo. Em uma face, cada letra do alfabeto, cada
nmero, cada ponto, um tipo. No entanto, o termo tipo, quando compe as expresses design
de tipos (type design) e designer de tipos (type designer), utilizado, no nosso entendimento,
30
de modo equivocado. Se um profissional se ocupa de criar toda uma coleo de sinais grficos
garantindo aos mesmos uma forma e estilos comuns, consideramos mais apropriado design-lo
como designer de faces e ao seu trabalho design de faces.
Fonte tipogrfica, ou simplesmente fonte, a estrutura que descreve uma face de tipo. Esta
estrutura pode ser fsica, em blocos de liga de metal ou em filme fotogrfico, ou ainda digital,
em cdigo de computador, como ocorre com a tecnologia atual. O termo fonte, em sua acepo
mais recente, est associado a um arquivo digital que descreve, com instrues de computador,
as formas das letras e dos demais elementos de uma face de tipo (FELICI, 2003, p. 29; THING,
2003, p. 340).
A definio de face muitas vezes confundida com a de fonte, mesmo em textos na ln-
gua inglesa e at em autores especializados. As figuras 2 e 3 baseadas em ilustraes de James
Felici (2003, p. 30) ajudam a entender melhor a distino que existe entre face de tipo e fonte
tipogrfica. Na figura 2 temos as formas fsicas (desenhos) dos diversos elementos com o esti-
lo que caracteriza a face de tipo BR Sans. Na figura 3 temos uma pequena parte do cdigo de
computador que constitui a fonte tipogrfica BR Sans. Um ponto que contribui tambm para
esta mistura e confuso de conceitos o fato de que, na atualidade, o produto fonte tipogrfica
perdeu sua caracterstica concreta (fsica) das tecnologias anteriores, sendo agora intangvel:
uma sequncia de cdigos numricos armazenados dentro de um computador.
BITSTREAM DEJA VU SERIF BOOK
A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y zBITSTREAM DEJA VU SERIF ITALIC
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A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z z
Figura 1. Exemplos de faces de tipo que formam uma famlia. Fonte da ilustrao: autor.
31
2.2 Caracteres e glifos
O caractere a menor unidade de uma linguagem escrita. Etimologicamente, caractere
est associado ao conceito de carter e vem do substantivo grego , que significa sinal
gravado, impresso. No entanto, ele diz respeito ao significado abstrato e no forma. Quando
pensamos no caractere A, como se ele fosse a referncia para todas as formas de a que j foram
escritas e para todas aquelas que ainda iro se escrever. claro que necessitamos ter sempre uma
forma de representao para apresentarmos um caractere fisicamente, quando nos referimos a
ele. Mas na verdade o caractere abstrato.
A definio de glifo complementar de caractere e, portanto, ajuda na compreenso
daquele. A palavra glifo tambm vem do grego , verbo que significa cinzelar, esculpir,
gravar. Os glifos so a forma e representam as diversas possibilidades fsicas dos caracteres. Cada
glifo nico, mesmo quando mais de um pode representar um mesmo caractere. Por exemplo,
algumas faces de tipo tm glifos alternativos para um mesmo caractere. A figura 4, produzida
com a fonte Alexander, apresenta dois diferentes glifos para as letras b, d, g, h, m, e z. Existem
casos em que a relao de um caractere para um ou mais glifos se inverte: o A maisculo latino,
%!PS-AdobeFont-1.0: BRSans 002.000%%CreationDate: Tue Feb 09 14:55:59 2010%%VMusage: 120000 15000011 dict begin/FontInfo 15 dict dup begin/version (002.000) readonly def/Copyright (Fonte baseada no Alfabeto Serie E modified 2000 do Standard Highway Signs Book 2002) readonly def/Notice (Copyright (c) 2007 by Sergio Luciano. All rights reserved.) readonly def/FullName (BR Sans) readonly def/FamilyName (BR Sans) readonly def/ItalicAngle 0 def/isFixedPitch false def/UnderlinePosition -100 def/UnderlineThickness 50 def/Weight (Regular) readonly defend readonly def/FontName /BRSans def/Encoding 256 array0 1 255 {1 index exch /.notdef put } fordup 32 /space putdup 33 /exclam putdup 34 /quotedbl putdup 35 /numbersign putdup 36 /dollar putdup 37 /percent putdup 38 /ampersand putdup 39 /quotesingle put
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Figura 2. Formas fsicas de uma face de tipo. Fonte da ilustrao: autor.
Figura 3. Parte do cdigo de programao de uma fonte. Fonte da ilustrao: autor.
32
o A (alfa) maisculo grego e o A maisculo cirlico tem o mesmo glifo, isto a mesma forma,
para os trs diferentes caracteres destes alfabetos. Ocorrem tambm casos em que vrios carac-
teres se juntam para formar um nico glifo, como no caso das ligaduras, produzidas com a fonte
Doulos Sil e apresentadas na figura 5.
A essncia abstrata do caractere e a materialidade do glifo tm, portanto, mltiplos des-
dobramentos que dificultam suas definies e tornam complexas suas mtuas relaes, como
alerta-nos Yannis Haralambous (2007, p. 54-55). Tais desdobramentos mostram a importncia
da conexo desses dois conceitos com outros campos de estudo e possibilitam inclusive uma
aproximao do conceito de caractere com o de ideia, e o de glifo com o das coisas sensveis
na metafsica platnica1.
2.3 Unidades de medidas absolutas e relativas
Controlar o tamanho, as distncias e os espaos uma das necessidades fundamentais
tanto no trabalho de design tipogrfico quanto na composio de textos. Da a importncia do
conhecimento de algumas unidades de medidas especficas da rea tipogrfica. Uma primeira
delimitao deve ser feita. As unidades de medidas tipogrficas se dividem em absolutas e re-
lativas. Tomemos o centmetro como exemplo de unidade de medida absoluta. Isto porque um
1 O provocativo artigo de Yannis Haralambous, Unicode et typographie: un amour impossible bem como a seo Philosophical issues: characters and glyphs do livro Fonts and Encodings, do mesmo autor, ampliam os hori-zontes dessa questo.
b | d | g | h | m | zFigura 4. Pares de variaes de glifos para um mesmo caractere. Fonte da ilustrao: autor.
fi ff fl ffi fflFigura 5. Amostra de ligaduras baseadas em dois e trs glifos. Fonte da ilustrao: autor.
33
centmetro um valor invarivel. Desta maneira, se temos, por exemplo, uma fruta medindo
um centmetro de comprimento e seu tamanho dobra, esta fruta passa a ter, obviamente, dois
centmetros. Este um caso tpico para uso de uma unidade de medida absoluta e mesmo sendo
banal a base para um grande nmero de clculos que estruturam o mundo tecnolgico atual.
J com as unidades relativas no existe um valor fixo e a chave para a sua compreenso
a proporcionalidade. Tomemos como exemplo dois objetos, um medindo uma unidade de
altura qualquer e outro medindo duas unidades desta altura. Ao escalarmos estes objetos para
qualquer valor, pressupondo que a proporcionalidade entre eles ser mantida, o primeiro sempre
ser 50% menor que o segundo. Neste caso ocorre que a unidade relativa cresce (ou decresce)
proporcionalmente junto com os objetos. No trabalho com fontes, quando a inteno manter a
proporo entre as diversas dimenses dos objetos, as unidades de medida relativas ganham em
economia e simplicidade, em comparao com as unidades absolutas, como veremos adiante.
A unidade de medida absoluta mais importante o ponto tipogrfico (point) ou ponto ame-
ricano2 (american point). O ponto j existia h centenas de anos, quando, em 1883, nos Estados
Unidos, a entidade U.S. Type Founders Association estabeleceu e regulamentou sua medida igual
a 0,0138 polegadas, o que equivale a aproximadamente 1/72 polegadas (FELICI, 2003, p. 22).
Como uma forma de facilitar os clculos e permitir uma melhor correspondncia entre unidades
tipogrficas e medidas inglesas, a Adobe (empresa desenvolvedora da linguagem de programao
PostScript e do formato de fontes Type 1, derivado dessa linguagem), nos anos de 1980, definiu
o que passou a ser conhecido como ponto PostScript. Nessa definio, o tamanho do ponto foi
arredondado para exatamente 1/72 polegadas. A unidade acima do ponto a paica (pica). Cada
12 pontos perfazem 1 paica e 6 paicas equivalem a 1 polegada. A paica uma unidade usada para
medio de dimenses maiores que incluem pginas e elementos de pginas, como comprimento
de uma linha de texto, margens e mancha de texto, principalmente em pases de lngua inglesa
que ainda no aderiram ao sistema mtrico. Na figura 6 (em tamanho ampliado) na parte supe-
rior temos uma rgua graduada em paicas com a subdiviso em pontos PostScript. Ao centro,
sua equivalncia em polegadas. Note como 6 paicas PostScript equivalem precisamente a uma
polegada. Na parte de baixo da figura temos o valor quebrado correspondente a 25,4 milmetros.
A rgua em paicas leva vantagem sobre a rgua em milmetros por ter um maior nmero
de subdivises. Entretanto, para todos os pases que fazem uso de unidades mtricas, incluin-
do o Brasil, necessrio um esforo para acostumar-se a trabalhar numa unidade de medida
incomum ou suportar as converses para valores quase sempre quebrados na unidade mtrica.
Conforme pode ser visto na figura 7, a diferena entre paicas (derivadas do ponto americano) e
2 Existe tambm o ponto Didot, correspondente a 0,3759 mm, criado por Franois-Ambroise Didot, usado na Europa continental e tambm na Amrica do Sul.
34
paicas PostScript (derivadas do ponto PostScript), apesar de pequena, cumulativa e, portanto,
no deve ser desconsiderada. fundamental estabelecer antes com qual escala deve-se traba-
lhar e mant-la do incio ao fim de um projeto. Para o propsito de produo de fontes digitais,
entretanto, o ponto tipogrfico (especialmente o PostScript) deve ser a referncia fundamental,
uma vez que se tornou padro. O seu valor igual a 0,3528 mm aparentemente pequeno. Mas s
aparentemente, porque, quando consideramos que um texto para leitura, normalmente, confi-
gurado com um tamanho entre 9 e 12 pontos, dcimos de milmetros passam a fazer diferena.
To importante quanto o conceito de ponto o de tamanho de ponto, tambm conhecido
como tamanho de corpo. Este termo tem a ver com o antigo sistema de tipos mveis de metal
criado por Gutenberg. Cada letra estava moldada em um bloco separado, sendo cada bloco
10 2 3 4 5 6PAICAS POSTSCRIPT
POLEGADAS
MILMETROS100 20
10
12 PONTOS
25,4 mm
Figura 6. Equivalncia entre paicas, polegadas e milmetros. Fonte da ilustrao: autor.
PAICAS POSTSCRIPT
10 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 1 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36PAICAS AMERICANAS
10 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 1 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36
Figura 7. Diferena entre paicas PostScript e paicas americanas. Fonte da ilustrao: autor.
35
maior que a letra moldada nele. Isto evitava que, quando fossem montadas em linha, as letras
tocassem umas nas outras. Desta maneira, o tamanho de ponto foi definido como a medida da
altura que vai da borda superior borda inferior do bloco de metal que suporta a letra. Na figura
8 temos uma representao de dois blocos de liga de metal para impresso tipogrfica. Como
era caracterstico desta estrutura, as letras eram moldadas espelhadas, para ao serem impressas
(como no processo de um carimbo) no aparecerem invertidas no papel. No sistema de Guten-
berg, em uma mesma fonte, somente a largura de cada bloco variava. Note, ainda na figura 8,
como o bloco da letra B mais largo que o da letra p. O chanfro na parte inferior, na frente do
bloco, era uma indicao para ajudar o compositor a distinguir, por exemplo, letras semelhantes,
como o p e o d minsculos.
Com o advento da tipografia digital e das fontes derivadas dessa tecnologia, o critrio
formal foi mantido, s que virtualmente. O tamanho do ponto passou a ser a altura da caixa
invisvel que contorna cada letra, conforme a figura 9. De maneira anloga figura anterior,
numa fonte digital os retngulos pontilhados so os limites das letras. Num tamanho de ponto
especfico, somente a largura varia, para acomodar uma letra mais larga ou estreita. Devido s
caractersticas do sistema de impresso atual (normalmente ofsete), as letras so montadas
sem espelhamento.
A contrapartida do ponto, como unidade de medida absoluta, a do eme (em), como uni-
dade de medida relativa. O eme (tambm conhecido como quadratim) pode ser definido com
a unidade de medida que sempre equivalente ao valor definido para o ponto do tipo, numa
determinada configurao (ECKERSLEY, 1994, p. 36). Apesar de comumente associado
largura da letra M, por causa do som do seu nome, essa correspondncia no correta, como
TAM
ANH
O DO
PON
TO
Figura 8. Representao de tipos de liga de metal. Fonte da ilustrao: autor.
Figura 9. Representao de tipos digitalizados. Fonte da ilustrao: autor.
36
afirma James Felici (2003, p. 24). Se temos o ponto do tipo estabelecido em 10, o eme tambm
ser de 10. Se ajustarmos o ponto para 14, o eme passa para 14, ou seja, a unidade relativa est
ancorada unidade absoluta.
Uma das medidas que expressa em emes a largura dos glifos. Dentro de uma fonte, esta
medida estabelecida em fraes de emes, que podem alcanar a casa dos milhares. Se a unidade
empregada fosse absoluta e desejssemos, por exemplo, digitar um texto, necessitaramos de uma
lista com as larguras absolutas de cada caractere para cada tamanho de tipo que utilizssemos.
No entanto, com as medidas relativas, necessrio apenas uma lista de larguras incluindo todos
os caracteres em uma fonte. Na figura 10 aparece parte da lista de um arquivo de medidas de
uma fonte digital, contendo instrues para as letras minsculas de a at f. As medidas relativas
simplificam o processo de armazenamento de dados em uma fonte. Uma nica linha contm o
cdigo correspondente a um caractere especfico seguido de sua largura relativa e da rea que o
seu glifo correspondente ocupa em coordenadas cartesianas. Assim, quando um usurio digita
um texto e define o tamanho da fonte para 12 pontos o sistema operacional do computador ir
acessar esta lista e calcular a proporo entre o tamanho do ponto utilizado e a frao de emes
definida para cada letra.
Os diversos ajustes do espao entre as letras tambm seguem esta regra, isto , so medidos
em fraes de eme. E desta forma tambm o espao ene (en) definido como a metade do espao
eme, e o espao fino (thin), que em geral de 1/4 do eme. O espao de palavra (word) mais um
a ser estabelecido em fraes de eme, mas pode ser alterado, isto , comprimido ou expandido
no momento da composio de um texto, no processo conhecido como justificao. Por ltimo,
faz parte desta lista o quadrado eme (em square), que a rea na qual todos os glifos de uma
fonte so criados e subsistem. Conforme a figura 11, dentro deste espao situam-se cinco linhas
de referncia fundamentais.
Estas linhas formam o que denominamos de pauta tipogrfica, sendo a linha de base
aquela em que as letras iro se assentar. A linha mdia passa pelo topo da letra x minscula e a
C 9 7 ; W X 4 8 7 ; N a ; B 5 5 - 8 3 8 7 3 7 3 ;
C 9 8 ; W X 4 8 5 ; N b ; B 1 0 0 - 8 4 3 0 5 0 8 ;
C 9 9 ; W X 4 4 2 ; N c ; B 5 5 - 8 3 8 7 3 7 2 ;
C 1 0 0 ; W X 4 8 5 ; N d ; B 5 5 - 8 3 8 5 5 0 8 ;
C 1 0 1 ; W X 4 4 1 ; N e ; B 5 5 - 8 3 8 6 3 7 3 ;
C 1 0 2 ; W X 3 2 1 ; N f ; B 5 0 0 2 6 6 5 0 8 ;
Figura 10. Instrues digitais contendo medidas dos glifos de uma fonte. Fonte da ilustrao: autor.
37
distncia entre a linha de base e o topo desta letra recebe o nome de altura x, sendo referncia
de altura para construo das demais letras minsculas. A altura da ascendente e a profundidade
da descendente marcam respectivamente at onde alcanam as ascendentes e descendentes das
letras minsculas. Para um mesmo tamanho de ponto, as distncias das linhas podem variar de
face para face. Ainda na figura 11, no exemplo de cima, a face SIL Gentium tem uma grande
distncia entre a linha das ascendentes (item 5) e a linha das maisculas (item 4). O mesmo
no ocorre no exemplo de baixo, na face Bitstream Vera Sans Roman. A altura x maior em
relao altura das ascendentes, na face Vera. J a altura das ascendentes expressivamente
maior na Gentium.
Ao digitarmos um texto, a entrelinha calculada na unidade absoluta de pontos. Conforme
a figura 12, a entrelinha se mede a partir da linha de base de uma linha de texto em relao
linha de base da linha que a precede.
linha das descendentes
linha de base
linha mdia
linha das maisculas
linha das ascendentes
altura x altura dasmaisculas
altura da ascendente
altura da descendente
Figura 11. Principais medidas e distncias das partes das letras. Fonte da ilustrao: autor.
Duo ergo illa tempora, prteritum et futurum, quomodo sunt,
quando et prteritum iam non est et futurum nondum est?entrelinha
Figura 12. Linhas que definem a entrelinha. Fonte da ilustrao: autor.
38
Todo esse conjunto de medidas pode parecer numeroso e complexo, mas, na verdade, sua
compreenso deriva diretamente do entendimento de como operam apenas duas medidas: o ponto
(medida absoluta) e o eme (medida relativa). Uma vez apreendidos seus conceitos, os demais
termos que advm deles podem ser vistos como desdobramentos em mltiplos e submltiplos,
que permitem simplificar as medies e os clculos em escalas maiores e menores.
2.4 Codificadores de caracteres
Para facilitar a interao entre homem e mquina necessrio que os computadores sejam
capazes de associar internamente os nmeros com os quais trabalham s mais diversas formas
de comunicao a que ns, seres humanos, estamos acostumados. Isto o que garante que no
apenas matemticos e especialistas sejam capazes de oper-los, como ocorria no passado. Entre
as diversas formas de comunicao, a escrita a que nos interessa aqui. Assim, grosso modo, os
computadores so concebidos de forma a associar os caracteres a nmeros, para process-los e
armazen-los. Depois, a partir dessa associao, essas mquinas so capazes de fazer o cami-
nho inverso e apresentar em monitores, impressoras, ou qualquer outro dispositivo de sada e
comunicao, a representao dos caracteres correspondentes aos nmeros armazenados. Para
que isso ocorra de maneira adequada ao entendimento humano, estruturas de mapeamento ou
codificadores so incorporados aos sistemas operacionais com a funo de designar um nmero
especfico para cada caractere.
Em 1963, nos Estados Unidos, o orgo American National Standards Institute (ANSI)
props um codificador de caracteres que foi finalizado em 1967, recebendo o nome de American
Standard Code for Information Interchange e que passou a ser conhecido pelo seu acrnimo
ASCII (HARALAMBOUS, 2007, p. 29-31; THING, 2003, p. 57). Este sistema permitia ende-
rear at 128 elementos. Com to pouca capacidade, o ASCII era insuficiente para acomodar os
elementos necessrios comunicao internacional. Tendo 128 opes, incorporava somente os
caracteres latinos para a lngua inglesa.
Na dcada de 1980 surgiram os sistemas operacionais Windows e Mac OS. Ambos tinham,
na poca, dois esquemas de codificao de caracteres diferentes entre si, mas com disponibilida-
de de endereamento para at 256 caracteres. Tanto a Microsoft quanto a Apple aproveitaram a
estrutura comum do ASCII para os primeiros 128 caracteres j definidos e acrescentaram mais
128, de suas prprias escolhas, chegando ao total disponvel de 256. Estes ltimos 128 caracteres
39
designados (e que ficaram conhecidos como High-Bit ASCII) no tinham a mesma correspon-
dncia numrica nos dois sistemas operacionais. Por exemplo, o minsculo, que no Windows
estava designado pelo nmero 231, era no Mac OS correspondente ao nmero 141. Alm disso,
cada um destes codificadores (Mac Roman no Mac e Win Ansi no Windows) continha caracteres
que no existiam no outro. Como consequncia, os documentos gerados em uma plataforma
podiam aparecer com caracteres substitudos incorretamente quando abertos em computadores
da outra. Para tornar possvel o uso de escritas alm do alfabeto latino (como o grego, cirlico,
hebraico e arbico) foi necessrio introduzir variantes dos codificadores, chamadas pginas de
cdigo (code page) (HARALAMBOUS, 2007, p. 45). Entretanto, com as fontes tipogrficas
sendo baseadas nestes codificadores e geradas a partir de um mesmo arquivo matriz, somente
podiam ser disponibilizados grupos de 256 elementos para os usurios.
Em 1988, iniciou-se o projeto Unicode, para o desenvolvimento de um novo sistema de
codificao de caracteres. Em 1991, foi lanada a primeira verso deste novo codificador. O
Unicode definiu trs formas de codificao, de acordo com as possibilidades de menor ou maior
capacidade de armazenamento de um dado sistema. Estas trs formas de codificao permitem
enderear mais de um milho de elementos, o que suficiente para mapear todos os caracteres
das lnguas conhecidas. Digno de ateno o fato de que a cada nova edio o Unicode vem
incluindo formas histricas de escritas, sem deixar de incorporar as muitas colees de caracteres
internacionais e padres corporativos, alm dos 128 caracteres que fazem parte do ASCII e os
128 das demais pginas de cdigo j existentes. Com todas estas capacidades latentes, o Unicode
tomou grande impulso nos ltimos anos (apoiado inclusive por grandes empresas, instituies
na rea de informtica e at governos de pases), passando a fazer parte dos principais sistemas
operacionais de computadores pessoais. Obviamente que ele tambm passou a ser um recurso
incorporado na produo de fontes digitais que suportam mais de uma escrita (UNICODE, 2009).
2.5 A linguagem PostScript de descrio de pgina
Em meados dos anos 1980 uma aliana entre empresas criou a editorao eletrnica tor-
nando possvel aos designers, editores e tipgrafos escaparem dos caros sistemas dedicados da
gerao anterior. Tal aliana uniu:
o computador Macintosh da Apple e seu sistema operacional inspirado em conceitos do
centro de pesquisa da Xerox que tambm permitia uma visualizao na tela aproximada
40
das pginas impressas. Esta caracterstica ficou conhecida como wysiwyg (what you
see is what you get) que em traduo livre seria aquilo que voc v aquilo que voc
obtm. Este novo modo de operar liberou os designers da tarefa de aprender uma enorme
quantidade de comandos via teclado, como ocorria nos sistemas anteriores;
o programa de editorao eletrnica Aldus PageMaker, primeiro aplicativo de leiaute de
pgina para computadores pessoais;
a impressora Apple Laser Writer de baixo custo e com tecnologia similar s Imagesetters
de produo de filmes de alta resoluo, que substituiram as mquinas baseadas em tubos
de raios catdicos;
o PostScript da Adobe: uma linguagem de programao para descrio de pgina, inde-
pendente de dispositivo e de resoluo.
O PostScript, no nosso entendimento, talvez seja o item mais importante dessa lista e o
que produziu mais frutos. Pouco tempo depois de seu lanamento, esta linguagem sobrepujou
suas concorrentes e se disseminou, ao longo das ltimas trs dcadas, como base para progra-
mas de ilustrao vetorial e de editorao, sistemas de visualizao, de impresso digital e de
pr-impresso ofsete. Mas o mais relevante para o nosso tema que o PostScript tambm o
fundamento das fontes tipogrficas Type 1 (ver Apndice C) que a Adobe lanou para alimentar o
mercado digitalizado. Ou seja, o PostScript est no cerne das ferramentas com as quais designers
de face e outros profissionais da rea tipogrfica trabalham.
Indo alm do fato de ter sido a mais promissora (em termos de tecnologia) dentre as lin-
guagens de descrio de pgina, o aspecto que provavelmente mais influenciou a sua expanso
foi o fato dela ser totalmente independente de dispositivo (ADOBE, 1999). Isto significa que,
teoricamente, uma pgina em PostScript pode ser criada em qualquer computador e pode se
comunicar com uma ampla gama de dispositivos de entrada e sada: escneres, monitores e
impressoras. Para conseguir este nvel de compatibilidade os engenheiros da Adobe tomaram
certos cuidados no seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, uma pgina PostScript pode ser
escrita, transmitida e interpretada em formato de texto, ou seja, toda a linguagem pode ser des-
crita em caracteres imprimveis e espaos em branco. Isto simplifica para quem cria o cdigo,
tanto quanto para quem precisa interpret-lo ou alter-lo. Isto tambm facilita o armazenamento
e a transmisso dos arquivos entre diferentes plataformas e sistemas operacionais. Em segundo
lugar, os grficos (inclusive texto) so tratados como objetos baseados em vetores e controlados
pelos operadores grficos da linguagem, o que os torna tambm independentes de resoluo. Um
41
arquivo contendo ilustraes e texto pode ser enviado para diferentes impressoras que imprimem
em diversas resolues. Por ltimo, cada nova implementao da linguagem acrescenta novos
recursos na forma de extenses, sem no entanto alterar o seu modelo bsico, isto , sem modi-
ficar a essncia do PostScript. Isso tambm garante a compatibilidade com os diversos sistemas
baseados nas implementaes anteriores.
2.6 Fontes OpenType
O formato de fontes OpenType o mais recente desenvolvimento elaborado conjuntamente
pela Microsoft e Adobe, a partir de 1996 (PHINNEY, 2004, p.7). Mas, na verdade, no pode
ser considerado novo no sentido estrito do termo, na medida em que um hbrido dos anterio-
res formatos TrueType e Type 1(ver Apndice C), reconciliando diferenas e permitindo a sua
coexistncia dentro