Filosofia

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Ministrio da Educao MEC Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES Diretoria de Educao a Distncia DED Universidade Aberta do Brasil UAB Programa Nacional de Formao em Administrao Pblica PNAP Bacharelado em Administrao Pblica

FILOSOFIA E TICA

Selvino Jos Assmann

2009

2009. Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Todos os direitos reservados. A responsabilidade pelo contedo e imagens desta obra do(s) respectivos autor(es). O contedo desta obra foi licenciado temporria e gratuitamente para utilizao no mbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, atravs da UFSC. O leitor se compromete a utilizar o contedo desta obra para aprendizado pessoal, sendo que a reproduo e distribuio ficaro limitadas ao mbito interno dos cursos. A citao desta obra em trabalhos acadmicos e/ou profissionais poder ser feita com indicao da fonte. A cpia desta obra sem autorizao expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanes previstas no Cdigo Penal, artigo 184, Pargrafos 1 ao 3, sem prejuzo das sanes cveis cabveis espcie.

A848f

Assmann, Selvino Jos Filosofia e tica / Selvino Jos Assmann. Florianpolis : Departamento de Cincias da Administrao / UFSC; [Braslia] : CAPES : UAB, 2009. 166p. : il. Bacharelado em Administrao Pblica Inclui bibliografia ISBN: 978-85-61608-74-3 1. Filosofia Histria. 2. tica. 3. tica profissional. 4. Administrao pblica. 5. Educao a distncia. I. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Brasil). II. Universidade Aberta do Brasil. III. Ttulo. CDU: 174

Catalogao na publicao por: Onlia Silva Guimares CRB-14/071

PRESIDENTE DA REPBLICA Luiz Incio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAO Fernando Haddad PRESIDENTE DA CAPES Jorge Almeida Guimares UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA REITOR lvaro Toubes Prata VICE-REITOR Carlos Alberto Justo da Silva CENTRO SCIO-ECONMICO DIRETOR Ricardo Jos de Arajo Oliveira VICE-DIRETOR Alexandre Marino Costa DEPARTAMENTO DE CINCIAS DA ADMINISTRAO CHEFE DO DEPARTAMENTO Joo Nilo Linhares SUBCHEFE DO DEPARTAMENTO Gilberto de Oliveira Moritz SECRETARIA DE EDUCAO A DISTNCIA SECRETRIO DE EDUCAO A DISTNCIA Carlos Eduardo Bielschowsky DIRETORIA DE EDUCAO A DISTNCIA DIRETOR DE EDUCAO A DISTNCIA Celso Jos da Costa COORDENAO GERAL DE ARTICULAO ACADMICA Nara Maria Pimentel COORDENAO GERAL DE SUPERVISO E FOMENTO Grace Tavares Vieira COORDENAO GERAL DE INFRAESTRUTURA DE POLOS Francisco das Chagas Miranda Silva COORDENAO GERAL DE POLTICAS DE INFORMAO Adi Balbinot Junior

COMISSO DE AVALIAO E ACOMPANHAMENTO PNAP Alexandre Marino Costa Claudin Jordo de Carvalho Eliane Moreira S de Souza Marcos Tanure Sanabio Maria Aparecida da Silva Marina Isabel de Almeida Oreste Preti Teresa Cristina Janes Carneiro METODOLOGIA PARA EDUCAO A DISTNCIA Universidade Federal de Mato Grosso COORDENAO TCNICA DED Andr Valente de Barros Barreto Soraya Matos de Vasconcelos Tatiane Michelon Tatiane Pacanaro Trinca AUTOR DO CONTEDO Selvino Jos Assmann EQUIPE DE DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDTICOS CAD/UFSC Coordenador do Projeto Alexandre Marino Costa Coordenao de Produo de Recursos Didticos Denise Aparecida Bunn Superviso de Produo de Recursos Didticos Flavia Maria de Oliveira Designer Instrucional Denise Aparecida Bunn Andreza Regina Lopes da Silva Supervisora Administrativa Erika Alessandra Salmeron Silva Capa Alexandre Noronha Ilustrao Igor Baranenko Projeto Grfico e Finalizao Annye Cristiny Tessaro Editorao Rita Castelan Reviso Textual Sergio Meira

Crditos da imagem da capa: extrada do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.

PREFCIOOs dois principais desafios da atualidade na rea educacional do pas so a qualificao dos professores que atuam nas escolas de educao bsica e a qualificao do quadro funcional atuante na gesto do Estado Brasileiro, nas vrias instncias administrativas. O Ministrio da Educao est enfrentando o primeiro desafio atravs do Plano Nacional de Formao de Professores, que tem como objetivo qualificar mais de 300.000 professores em exerccio nas escolas de ensino fundamental e mdio, sendo metade desse esforo realizado pelo Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Em relao ao segundo desafio, o MEC, por meio da UAB/CAPES, lana o Programa Nacional de Formao em Administrao Pblica (PNAP). Esse Programa engloba um curso de bacharelado e trs especializaes (Gesto Pblica, Gesto Pblica Municipal e Gesto em Sade) e visa colaborar com o esforo de qualificao dos gestores pblicos brasileiros, com especial ateno no atendimento ao interior do pas, atravs dos Polos da UAB. O PNAP um Programa com caractersticas especiais. Em primeiro lugar, tal Programa surgiu do esforo e da reflexo de uma rede composta pela Escola Nacional de Administrao Pblica (ENAP), do Ministrio do Planejamento, pelo Ministrio da Sade, pelo Conselho Federal de Administrao, pela Secretaria de Educao a Distncia (SEED) e por mais de 20 instituies pblicas de ensino superior, vinculadas UAB, que colaboraram na elaborao do Projeto Poltico Pedaggico dos cursos. Em segundo lugar, esse Projeto ser aplicado por todas as instituies e pretende manter um padro de qualidade em todo o pas, mas abrindo

margem para que cada Instituio, que ofertar os cursos, possa incluir assuntos em atendimento s diversidades econmicas e culturais de sua regio. Outro elemento importante a construo coletiva do material didtico. A UAB colocar disposio das instituies um material didtico mnimo de referncia para todas as disciplinas obrigatrias e para algumas optativas. Esse material est sendo elaborado por profissionais experientes da rea da administrao pblica de mais de 30 diferentes instituies, com apoio de equipe multidisciplinar. Por ltimo, a produo coletiva antecipada dos materiais didticos libera o corpo docente das instituies para uma dedicao maior ao processo de gesto acadmica dos cursos; uniformiza um elevado patamar de qualidade para o material didtico e garante o desenvolvimento ininterrupto dos cursos, sem paralisaes que sempre comprometem o entusiasmo dos alunos. Por tudo isso, estamos seguros de que mais um importante passo em direo democratizao do ensino superior pblico e de qualidade est sendo dado, desta vez contribuindo tambm para a melhoria da gesto pblica brasileira, compromisso deste governo.

Celso Jos da Costa Diretor de Educao a Distncia Coordenador Nacional da UAB CAPES-MEC

SUMRIOConvite para pensar............................................................................................ 9 Unidade 1 O que FilosofiaO que filosofia?................................................................................................ 19 A atitude filosfica........................................................................................ 20 Especificidade do conhecimento filosfico...................................................... 23 Os gregos inventam a filosofia....................................................................... 25 O sentido da filosofia............................................................................... 28 Caractersticas gerais da Histria da Filosofia..................................................... 36 A filosofia antiga........................................................................................ 37 A filosofia medieval................................................................................. 39 A filosofia moderna....................................................................... 46 Scrates e Plato: um confronto entre dois modos de entender a filosofia.............. 61 A concepo socrtica de filosofia: busca de sabedoria............................... 62 A concepo platnica de filosofia: encontro da sabedoria.......................... 67

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Unidade 2 ticaSobre a tica, a partir da crise tica............................................................... 85 tica e moral....................................................................................... 86 tica antiga, medieval e moderna................................................................. 91 tica da convico e tica da responsabilidade........................................... 99 Afinal, o que tica?.................................................................................... 107 Crise tica e crise da tica..................................................................... 110 Dificuldade atual de formular uma tica....................................................... 112 A tica e a poltica...................................................................................... 117 Poder, poltica e tica.................................................................................... 118 Duas concepes de poder................................................................. 123 O poder como relao entre seres humanos........................................... 126 Poder e liberdade.................................................................................... 129 O problema tico, a tica profissional e a responsabilidade social na Administrao Pblica Brasileira.......................................................................... 136 Administrao pblica brasileira e tica....................................................... 143

Consideraes finais........................................................................................ 156 Referncias.................................................................................................... 162 Minicurrculo.................................................................................................... 166

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CONVITE PARA PENSARTudo corre. Escorre. Tudo muda. At na universidade professores e alunos correm cada vez mais. Nada permanece. Tudo lquido. E todos corremos. Se no o fizermos, outros passaro por cima de ns, e seremos considerados preguiosos ou incompetentes. Mas em geral no sabemos para onde corremos, mesmo que daqui a pouco, no se sabe quando, venhamos a dar de cara com a morte. Inevitavelmente. E ficamos produzindo, fazendo coisas... Precisamos ser competentes tecnicamente para que algum nos d um lugar, um emprego, mas tambm flexveis, maleveis, para podermos nos adaptar sempre ao que se nos pede. Ns, todos ns sem exceo, que devemos adaptar-nos, e no o mundo a ns, pois o mundo assim como . Paradoxalmente, o mundo que parece mudar tanto, parece tambm ser inflexvel e imutvel. preciso mover-se, a rede vasta, os compromissos so tantos, as expectativas muitas, as oportunidades abundantes, e o tempo uma mercadoria rara... A vida se torna uma loja de doces para apetites transformados, at pelo marketing, em voracidade cada vez maior. Estamos sempre na beirada entre estar dentro e estar fora, entre ser includo e poder ser excludo a qualquer hora. Temos que estar atentos, correndo o risco da depresso, sempre. A insegurana nossa companheira permanente, na companhia de gente insegura. Sei que do meu lado tambm h gente to insegura quanto eu. Belo consolo! Mas isso, em vez de criar solidariedade entre os inseguros, aumenta a indiferena, a irritao, a vontade de competentemente empurrar para longe todos os concorrentes ao

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meu lado. Em vez de cerrar fileiras na guerra contra a incerteza, todos querem que os outros fiquem mais inseguros, abandonem o barco e o deixem mais tranquilo para mim. E se diz que isso a insofismvel lei do mercado, que isso assim, thats it, como um tempo dizia a propaganda de um refrigerante conhecido: esta a razo das coisas, uma necessidade, e basta. Isso liberdade. Mas no h escolha! Temos a sensao de nunca termos sido to livres e, ao mesmo tempo, a percepo de que somos totalmente incapazes de mudar algo. Sob outro aspecto, sentimo-nos vivendo em um mundo no qual, claramente, vale o privado, o interesse privado, e no o pblico, nem o interesse pblico. Ou ento, temos uma viso muito paradoxal da relao entre pblico e privado: por um lado, tudo o que est diretamente situado como pblico aparece demonizado, como se fosse o lugar do mal, da indecncia, lugar em que seria impossvel fazer o bem, lugar em que s h interesses privados. E isso ocorre ao mesmo tempo em que consideramos o mbito privado como um mbito no qual se faz o bem sempre, no qual tudo legitimvel ou justificvel. Como conciliar isso? Certamente tudo isso mexe na viso que se tem da poltica e do poltico, do Estado, do servio pblico, do funcionrio pblico de governos municipais, estaduais e federais, na viso que se tem da administrao pblica em geral. Exemplo desta viso sobre o que pblico e sobre a funo do Estado e do servio pblico o que disse Margareth Tatcher, ao exercer recentemente o cargo de primeiro-ministro da Inglaterra, defendendo o reinado absoluto da flexibilidade. Ela disse sem eufemismos: No existe esta coisa chamada sociedade. S h indivduos, homens e mulheres como indivduos, e pronto! E o Estado? Deve ser uma instituio que deve funcionar como empresa eficiente a servio do interesse dos indivduos. O governante deve ser meramente um gestor, nada mais. O Estado deve, pois, ser exclusivamente um meio para fins privados. A poltica tambm deve ser apenas meio. E os outros seres humanos? Estes s importam se me servem, individualmente, para alguma coisa. Mas quando todos os outros so apenas meios, tambm eu sou transformado em puro meio pelos outros, inevitavelmente...

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Nesta situao de insegurana, de pretensa primazia do privado e do indivduo como tal, em que, paradoxalmente, sobra pouca alternativa, individual ou social, para mudarmos algo ao nosso redor e dentro de ns, como ficam os administradores tanto pblicos quanto privados? Ousara dizer que eles administram, gerem, executam, organizam a execuo de tarefas que em geral no so determinadas por eles mesmos, mas por outros, e tm que ser competentes. Do contrrio sero jogados para fora do jogo, da corrida que est acontecendo globalmente, cada vez mais globalmente. Tambm os administradores devem correr. E saber apresentar-se, oferecer-se, vender-se no mercado. E deixar-se comprar tambm. Devem ser lquidos, flexveis, amoldando-se cada dia a novas exigncias estabelecidas no se sabe por quem, mas exigncias consideradas naturais, ou melhor, estabelecidas pelo mercado, este estranho senhor sem identidade que poderoso como ningum e que tem suas leis, que est em todo lugar, que no deixa ningum fora de seu controle, no d trgua a ningum, e nem d tempo para nada mais do que ficar correndo a seu servio. At que ele nos diga: voc no me serve mais! Voc suprfluo. Voc atrapalha!. Inclusive o Estado, o aparelho estatal, os servios pblicos, quando deixam de ser teis ao mercado, fazem com que os seres humanos sejam jogados margem e obrigados a se contentarem em esperar a morte chegar; e s vezes at h gente que fica torcendo para que isso acontea o mais rpido, para no atrapalharmos o trnsito e o funcionamento do mercado. E se algum morrer, que morra, no em casa, mas no hospital especializado, dignamente (a morte pode ser digna?!), para no atrapalhar o sistema de produo, a que o Estado deve servir, e para nos ajudar a esquecermos que tambm ns iremos morrer. Tudo isso se tornou normal. Cinicamente, duramente normal. E se diz que no pode ser diferente. Que a histria no pode mais mudar, ou at j terminou. Que estamos na fase final da histria. E repito todos passamos a viver como se nada pudesse ser mudado nesse modo de ser das coisas, e que s nos resta uma coisa: nos iludirmos de que somos livres enquanto nos adaptamos ao que existe!

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Diante de tudo isso, de que adianta pensar? Pensar nos faz mal, impedindo que sejamos competitivos. Pensar causa transtorno no trfego. Pensar nos faz parar, nos leva provavelmente a sermos expulsos da corrida por incompetncia, por falta de flexibilidade e de produtividade. Ou ento como diriam os franceses que inventaram o prt--porter (pronto para usar) agora temos o prt-penser. s pagar que o mercado j oferece tudo pensado, para ser usado. Por isso, os livros mais lidos so os de autoajuda, que tm receitas precisas para tudo, para nosso corpo e nossa alma. E no gostamos dos livros que nos fazem pensar e nos convidam a nos colocar em jogo por nossa prpria conta e risco. A globalizao nos possibilita o acesso cada vez maior a informaes, e maior possibilidade de comunicao. Mas isso de modo algum parece favorecer uma viso mais crtica do que acontece, nem favorece maior comunicao de fato. E quando as ofertas so demasiadas, as escolhas parecem diminuir em vez de aumentar, sobretudo porque o assdio das informaes impede que pensemos. Neste contexto, podemos afirmar que nossa civilizao atual parou de se questionar, parou de pensar. E que esse o nosso problema fundamental, pois o preo do silncio passa a ser pago na dura moeda do sofrimento humano. Pode at ser que nos sintamos mais felizes, pois nos sentimos mais competentes e mais criativos para satisfazer nossos desejos, tanto no supermercado dos sabonetes e dos vinhos, quanto naquele dos desejos sexuais. S que esta felicidade tem tudo para ser superficial, insatisfatria, a ponto de ser instigante a afirmao de um atento leitor do que nos acontece hoje, como Umberto Eco: Algum que feliz a vida toda um cretino; por isso, antes de ser feliz, prefiro ser inquieto. E ser inquieto , neste caso, no se deixar engolir pela lgica que estamos descrevendo, tentar pensar tambm. Com Zygmunt Bauman (BAUMAN, 1999, p. 11), ousamos arrematar: Questionar as premissas supostamente inquestionveis do nosso modo de vida provavelmente o servio mais urgente que devemos prestar a nossos companheiros humanos e a ns mesmos. Talvez nem sempre saibamos quais so as perguntas mais

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importantes que devemos fazer, ou ento, ns que nos achamos to estupendamente modernos, criativos, nos damos conta que estamos repetindo as mesmas perguntas que j se fazem h sculos, h milnios. E esquecemos as respostas j dadas ou os silncios, sem resposta, j manifestados. J que o passado no interessa, nem o futuro, mas s o presente, este pode nos enganar a respeito de nossa originalidade e podemos achar que estamos mudando sempre. Claro que mudam certas coisas, por exemplo, melhora nossa capacidade tcnica. E o que mais? Nossa humanidade tambm? Nossa liberdade? Nossa felicidade? Por isso, faz bem incluirmos em nossa pergunta pelo que est acontecendo hoje, uma referncia ao que aconteceu ontem. E faz bem tambm perguntarmos: por que ser que paramos de sonhar e renunciamos s energias utpicas? Como sabem os historiadores, h um duplo movimento na compreenso histrica: o presente pode ser iluminado pelo passado, mas tambm o passado acaba sendo melhor compreendido a partir do presente. E isso nos fornece um elemento a mais para podermos pensar no que acontece e nas possibilidades que temos para mudar o presente. Parece que nos esquecemos de que ns, seres humanos, temos como marca o fato de sermos seres que falam; bem mais, ou no s, seres que fazem, como disse Aristteles; que somos frgeis, perdendo em fora fsica, sob todos os aspectos, para algum animal, mas somos canios pensantes (Pascal). Por mais que repitamos que esta a era de Aqurio, a era do conhecimento, certamente no a era do pensamento, da profundidade, da reflexo. At porque no temos tempo a perder. E alm de tudo, como j dissemos, pensar perigoso, para quem pensa e para quem est do lado de quem pensa, pois nos pode fazer perder o lugar no mercado, que precisa produzir e consumir, objetos, coisas, e onde at os seres humanos devem ser s produtores e consumidores. Nada mais. Pois bem: nesta paisagem que apresentamos um livro-texto que pretende ser um Convite para pensar, convite feito aos estudantes e s estudantes do Curso de Bacharelado em Administrao Pblica a distncia. Escolhi alguns temas para pensar. E pensar uma atividade realmente pessoal, por mais que

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no dilogo com o passado e no debate com os nossos contemporneos se possa pensar mais e melhor. Mas, dito de forma sinttica, este convite para filosofar antes de mais nada um convite para responder pergunta: o que est acontecendo comigo e com os outros no mundo hoje? Mais do que apresentar um texto cheio de informaes (conceitos, doutrinas, nomes) sobre a riqussima tradio do pensamento filosfico ocidental, que j tem 2.500 anos, consideramos prefervel escolher alguns temas, como o do prprio conceito de filosofia, e de outras formas de conhecimento humano (como o senso comum e a cincia), com algumas informaes gerais sobre a Histria da filosofia (Unidade 1); como o da tica, sua crise e suas dificuldades tericas, incluindo o debate em torno da relao entre tica e poltica, e do poder e sua relao com a liberdade, pois, afinal, a administrao sempre exerccio de poder (Unidade 2). Trata-se de uma escolha, sem a pretenso de ser a melhor, e menos ainda de dar conta da filosofia como tal. Pensamos que assim podemos dar uma ideia geral da filosofia em sua histria e do valor de uma atitude filosfica, que nos leve a pensar mais sobre o que somos ns, seres humanos, sobre o ser humano como problema e como soluo, sobre o ser humano como profissional, como gente, como indivduo e como membro de uma comunidade local, regional, nacional e cada vez mais cosmopolita ou global. Embora no tenhamos a pretenso de responder exaustivamente a todas as questes importantes da filosofia, para organizar o texto seguimos o roteiro sugerido por Kant, talvez o maior pensador moderno, ao apresentar as quatro perguntas fundamentais para definir a atividade filosfica. A primeira pergunta : o que possvel conhecer? (os conceitos de filosofia, de cincia, de teologia e de senso comum). A isso nos referimos sobretudo na Unidade 1. A segunda: o que devemos fazer? encontra resposta na tica e na poltica. A Unidade 2 procura responder a esta pergunta, incluindo tambm nesta Unidade aspectos da terceira pergunta, que, para Kant, a seguinte: o que nos lcito esperar?, e a temos a ver com a questo da religio. A quarta pergunta, a mais difcil de responder, a sntese das trs perguntas anteriores: o que o ser humano?, e

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est presente, de algum modo, em todo transcorrer do texto que aqui apresentamos. Seguiremos este caminho na companhia de alguns autores ou companheiros e poderia ser com tantos outros, esperando que todos os leitores e leitoras se sintam bem e, quem sabe, ao final, com mais vontade de continuar a viagem reflexiva do que ao ler esta Apresentao.

Saiba maisA coruja, Ave

Smbolo da Filosofia de

Minerva, o smbolo da Filosofia, consagrado, sobretudo, a partir de Hegel. Ele escreveu que, assim como a coruja levanta vo ao anoitecer, tambm a Filosofia e os gran-

Obviamente no ser uma disciplina de des filsofos surgem em momentos em filosofia que ir tornar os futuros que a sociedade humana comea a anoiadministradores pblicos novos especialistas tecer, a entrar em crise... em filosofia. Insisto: interessa no tanto que o administrador se torne um filsofo, conhecendo um contedo determinado, muito vasto. Muitos textos clssicos esto a disponveis nas livrarias, e cada vez mais na internet. Pode ser bom e talvez os que formularam o currculo mnimo do curso de Administrao pensassem nisso ao incluir a Filosofia que o administrador tambm seja estimulado a pensar por prpria conta e risco, como diziam os Iluministas modernos. Aude sapere! Ousa saber! Alis, se queremos tanto ser modernos, ou ser crticos, independente da profisso, como cidados, no h outra sada seno pensar tambm. Claro que nem todos gostaro, com a mesma intensidade, deste convite para pensar; talvez alguns at nem gostem dele e considerem chato ter que estudar filosofia, estudar estas bobagens, estas coisas inteis. Certamente a filosofia no serve para nada. Pensar no serve para nada. Concordo. Mas quem disse que so importantes s as coisas que servem, as coisas que so meios para alguma coisa? Para que serve a liberdade, que tem na poltica (ou deveria ter nela) o seu lugar por excelncia? Para que serve a felicidade? Para que serve o amor? Para que serve o prazer sexual? Para que serve a amizade? Se estas coisas forem apenas meios, certamente sero menos importantes. Mas se tais coisas forem valiosas por si mesmas, certamente teremos muitos motivos para pensar mais e melhor. S para dar um exemplo: se um amigo servir como meio para fazer mais dinheiro, quando se conseguir o dinheiro, acabar a amizade; se o amigo servir para nos trazer mais

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prazer, neste caso, conseguido o prazer, acaba a amizade; mas se este amigo for mais que um meio, e a amizade for de fato um valor para ambos os amigos, que mutuamente se tornam mais exigentes, e conquistam assim tambm o prazer de serem amigos, ento percebemos que a amizade mais que meio para outras coisas, e se torna ela mesma um fim. disso que falamos quando dizemos que a filosofia no serve para nada, ou que tem valor em si mesma. Contudo, ningum obrigado a pensar, nem a ter a coragem de pensar! E pensar no d dinheiro, certamente, ou nunca tornar o dinheiro um fim a alcanar. Pensar uma atitude improdutiva, coisa intil no mercado. Alm do mais, pensar perigoso, como j disse. Acho, porm, que vale a pena correr este risco, pois se poder perceber que o mundo que temos no o nico possvel nem o melhor dos mundos, levando-nos quem sabe a resistir ao que nos parece acontecer de maneira inevitvel, instigando-nos a ficar mais atentos para as brechas que podem surgir e nos surpreender c e l, sugerindo, quem sabe, mudanas mais substantivas, dentro de ns e entre ns, e no apenas na nossa capacidade de produo e de consumo. Neste sentido, pensar um jeito de cada um cuidar de si. E se cada um cuidar melhor de si, a nossa convivncia com os outros poder ser mais agradvel. E certamente o servio pblico ser mais responsvel tambm. Lembro de muito bom grado a sabedoria de Aristteles: com amigos se pensa e se age melhor (tica a Nicmacos, 1155 a. 3, Braslia, Edit. UnB, 1999, p. 153). E aqui se fala da amizade que fim, conforme se disse acima. Por isso, repito o convite para pensar: a aceitao do convite pode tornar a vida mais interessante, mais leve e mais profunda, embora menos produtiva e menos consumvel. Neste caso, aristotelicamente, poderei confirmar, mais uma vez: pensar vale a pena! O convite est feito, e espero que voc, estudante, possa acompanhar o texto, em cada uma de suas Unidades, deixando-se provocar por ele e por seu desejo de conhecer um pouco mais o mundo em que vivemos e a si mesmo. Professor Selvino Jos Assmann

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UNIDADE 1O QUE FILOSOFIA

OBJETIVOS ESPECFICOS DE APRENDIZAGEMAo finalizar esta Unidade voc dever ser capaz de: Distinguir e relacionar filosofia com filosofar; Apresentar as caractersticas bsicas de cada perodo histrico da filosofia, tendo em conta a ideia central de cada perodo; Entender a importncia da filosofia frente s outras formas de conhecimento humano (f religiosa, senso comum, cincia...) Identificar a distino entre a filosofia como verdade j encontrada ou como doutrina (Plato), e a filosofia como busca da verdade, ou seja, como ato de pensar (Scrates); e Compreender a importncia que a filosofia pode ter na vida prtica dos seres humanos.

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Unidade 1 O que Filosofia

O QUE FILOSOFIA?Caro estudante, estamos iniciando a disciplina de Filosofia, e esta primeira Unidade uma reflexo sobre o que ela representa constituindo-se assim um importante referencial para embasar as prximas Unidades. Leia com ateno e, se tiver dvidas, releia e busque esclarec-las nas indicaes de Saiba mais e tambm junto ao Sistema de Acompanhamento; e vamos juntos construir nosso conhecimento. Sobretudo, procure pensar voc mesmo.

No seu sentido mais comum, o substantivo filosofia ou o verbo filosofar tem a ver com pensamento ou com o ato de pensar. Filosofar pensar sobre o que nos acontece, sobre o sentido do que nos acontece ou sobre o significado da vida humana ou da vida biolgica como tal. Diz-se assim que se tem uma filosofia de vida. Mas este significado do termo certamente muito amplo e vago. At mesmo pensar no a mesma coisa para todos. H um sentido menos comum, em que filosofar significa saber viver, ou melhor, saber viver com sabedoria, de acordo com uma doutrina, com uma Filosofia. Assim h, por exemplo, sabedorias diferentes daquela ocidental. Por isso se fala dos sbios orientais Confcio e Lao Ts (China), Buda (ndia) e Zaratustra (Prsia), mas as suas doutrinas ainda esto vinculadas religio, e no caracterizadas por uma exclusiva racionalidade.

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Existe, porm, um sentido mais especfico e preciso de filosofar: procurar e/ou encontrar a verdade por meio de uma atividade racional. E a gente encontra a verdade porque precisa e deseja saber a verdade. E a verdade necessria para viver. Mas nem todas as perguntas que fazemos so perguntas filosficas, como nem todas as respostas so respostas filosficas. No filosfico saber que dia hoje?, mas filosfico perguntar o que o tempo? O que a verdade? O que a mentira? O que a liberdade? O que a razo? So todas perguntas filosficas. E sabemos que nem todos esto acostumados a faz-las e tampouco consideram que sejam perguntas importantes.

ASaiba maisFilsofo Uma das imagens

ATITUDE FILOSFICA

Embora a filosofia tambm consista em um determinado contedo de conhecimentos mais conhecidas acumulados durante dois mil e quinhentos anos, para representar o que resultaram em uma multiplicidade de filsofo a do esculfragmentos e de livros, podemos dizer que tor francs Auguste filosofar ter uma atitude filosfica. Mesmo Rodin (1840 - 1917) que digamos que de filsofo e louco todos tm O Pensador um pouco, de fato so poucos os que tm esta Fonte: . Acesso em: 12 jun. 2008. criao do hbito de pensar de maneira rigorosa e crtica. Falamos, portanto, aqui da Filosofia que quebra com o nosso saber prtico do dia a dia, e que nem sempre nos agrada, pois primeira vista parece ser perda de tempo ou incmodo exagerado com as coisas, deixando-nos, quem sabe, angustiados demais, para alm do conveniente.

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Unidade 1 O que Filosofia

Filsofo quem no se contenta com as coisas bvias. quem toma distncia em relao ao que acontece, para entender melhor o que acontece.

O antroplogo e educador brasileiro Darcy Ribeiro (19221997) repetiu que pensar questionar o bvio. Assim, o filsofo parece desligado da realidade, vivendo nas nuvens, em coisas abstratas, distrado, perdido ou aparentemente alheio aos problemas concretos da vida. Reconhecemos tambm, em geral, que a atitude filosfica se confunde com uma atitude crtica, que diga-se de passagem no devemos confundir com falar mal, mas identificar como sendo a capacidade de perceber melhor o que estamos querendo conhecer, e a podemos perceber se isso um mal ou um bem. Neste contexto, o filsofo inimigo mortal de qualquer fanatismo, de qualquer dogmatismo. Como exemplo da viso depreciativa da filosofia temos a histria do antigo sbio grego chamado Tales que, ao olhar para o cu a fim de entender os movimentos das estrelas, acabou caindo num poo. Ou com uma definio, ou ditado popular italiano, bastante conhecido: a Filosofia a cincia com a qual ou sem a qual tudo continua tal e qual! Por mais que haja uma viso pejorativa a respeito dos filsofos e da filosofia, tambm verdade que nunca se desconheceu a importncia histrica e terica da atividade filosfica. No precisamos de muito para perceber que s povos historicamente importantes apresentam grandes pensadores. Por que isso? Mais ainda: podemos facilmente constatar que s existem grandes pensadores em momentos histricos importantes da vida de um povo. Um exemplo disso o fato de haver grandes pensadores na Itlia precisamente na Renascena, e no tanto depois, ou o fato de haver grandes filsofos na Inglaterra e na Frana dos sculos XVII e XVIII, e no antes nem depois. Ou que aparecem filsofos importantes nos Estados Unidos a partir do sculo XX, e no antes. Nesta mesma perspectiva, poder-se-ia dizer que o Brasil e os demais paises da Amrica Latina at hoje nunca proporcionaram um grande filsofo nem sequer uma importante doutrina filosfica.

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Um povo que no tem um grande filsofo ou filosofia no autor de sua prpria histria, mas simplesmente imitador da histria de outros povos ou culturas.

Todo filsofo , por assim dizer, um porta-voz consciente de um povo, e nunca apenas um gnio tomado isoladamente. Hegel o dizia de maneira melhor: cada filosofia o prprio tempo em pensamento, e cada filsofo , portanto, algum que pensa o prprio tempo a partir da sociedade em que vive. Filsofo no inventa a realidade, mas interpreta a realidade em que vive. Ele eleva a um conceito o que real. Claro que podemos ter filsofos que privilegiam uma viso mais conservadora do prprio tempo ou do prprio povo e outros talvez mais raros na Histria da Filosofia que acentuam a crtica prpria situao e por isso so mais utpicos. Mas nenhum pensador se tornou importante ou se tornou um clssico deixando de se preocupar com a prpria situao, com as razes do que acontece. Por isso, se pode afirmar que toda filosofia e deve ser radical, pois no se contenta em ficar na superfcie das coisas, mas procura ir s razes (por isso, radical), busca desvendar os porqus das coisas. O filsofo faz perguntas do tipo: o que a realidade? Como a realidade ? Por que a realidade assim? Ele procura a essncia, o significado e a origem do que quer conhecer. Essncia aquilo que torna uma coisa aquilo que ela . Por isso toda definio sempre tem a ver com a essncia. Por exemplo, para definirmos o ser humano como animal racional. Neste caso, a essncia humana consiste em ser animalidade e racionalidade. No , pois, da essncia humana, ser da raa branca ou amarela ou negra, assim como no pertence essncia de uma flor o fato de ser amarela ou vermelha. O filsofo reflete. Falar de reflexo lembra o espelho no qual a gente se reflete. Pois bem: filosofar refletir. um movimento de volta sobre si mesmo. Refletir pensar o prprio pensamento. Refletir , por exemplo, tomar o prprio eu como objeto de compreenso. Sujeito quem capaz de ser objeto para si mesmo.

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Unidade 1 O que Filosofia

isso que distingue o ser humano dos animais, que so incapazes de se verem como objeto... esta capacidade humana que nos distingue dos seres animais: se dissermos que os animais conhecem, os seres humanos conhecem que conhecem, sabem que sabem. Por isso somos capazes de rir de ns mesmos. De toda forma, quem prefere uma vida tranquila, uma vida mais grudada ao cotidiano, ao terra-a-terra, fica longe da Filosofia. E quem quer alcanar maior profundidade, quem gosta de chegar s razes, ser mais radical, vai precisar dela, mesmo que isso no lhe venha a trazer certezas ou tranquilidade... e talvez nem felicidade. O pensador alemo contemporneo Theodor Adorno disse que s se pe a filosofar quem suporta a contradio, o conflito. Quem gosta de tranquilidade, no vai querer faz-lo.

Talvez devamos afirmar que o filsofo quem assume correr o risco de viver mais inseguro, ter cada vez mais perguntas, e no respostas.

Esta atitude filosfica deve ser claramente separada da mera opinio ou dos gostos pessoais. No filosfico dizer eu acho que, eu gosto de... A filosofia estabeleceu-se como saber lgico, rigoroso, concatenando as afirmaes entre si, superando, como dissemos, o senso comum.

ESPECIFICIDADE

DO CONHECIMENTO FILOSFICO

Vamos insistir ainda mais em compreender o que a filosofia, embora possamos afirmar que s sabe bem o que filosofar quem realmente o faz. Com a pensadora brasileira Marilena Chaui, que nos serve de apoio para vrias observaes feitas nestas pginas, podemos dizer que, do ponto de vista mais especfico, a filosofia se apresenta com quatro definies gerais:

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Filosofia e tica

em primeiro lugar, falamos de viso de mundo de um povo, de uma cultura. Viso de mundo um conjunto de ideias, de valores e de hbitos prticos de um povo, que fazem com que se defina uma identidade do povo. Mas definir assim a Filosofia nos faz confundila com cultura, o que no convm; em segundo lugar, identifica-se a filosofia com a sabedoria de vida, ou como filosofia de vida. Neste caso provavelmente incluiramos como filosofias o Budismo, o Cristianismo, e no conseguiramos distinguir entre filosofia e religio, o que tambm no convm; em terceiro lugar, filosofia esforo racional, sistemtico, rigoroso, para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido (CHAUI, 1995, p. 16). E esta definio corresponde mais claramente com a Histria da Filosofia. Assim conseguimos perceber a diferena entre religio e filosofia. Aquela tem por base a f, pela qual se aceitam verdades no demonstrveis e que tantos consideraro at mesmo irracionais. Claro que isso no significa que, sob todos os pontos de vista, as verdades de f no sejam aceitveis, ou at mesmo razoveis, como tentou fazer um pensador da qualidade de Toms de Aquino, que se esforou por mostrar que as verdades crists no eram contrrias razo; e em quarto lugar, a filosofia admitida como fundamentao terica e crtica dos conhecimentos e das prticas (CHAUI, 1995, p. 17): ela preocupase costumeiramente com os princpios do conhecimento (por exemplo, do conhecimento cientfico, o que chamamos epistemologia ou teoria do conhecimento cientfico), com a origem, a forma e os contedos dos valores ticos, polticos e estticos.

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Assim, a filosofia reflexo, crtica, e anlise. Mas isso no a torna sinnimo de cincia, mas uma reflexo crtica sobre a cincia; no a torna uma religio, mas uma anlise crtica sobre o sentido da experincia religiosa e sobre a origem das crenas; nem a identifica com a psicologia, com a sociologia, a histria ou a cincia poltica, por mais que estas cincias do fenmeno humano tenham parentesco histrico com ela. Neste caso, se costuma dizer que as cincias humanas (e as cincias em geral) estudam o qu e o como dos fenmenos, enquanto a filosofia estuda o porqu e o que , os conceitos.

v

Veja mais informaes

sobre esta temtica na

seo Complementando.

Complementando......Veja mais informaes sobre o que filosofia nos textos indicados a seguir. EWING, A.C. O que filosofia e por que vale a pena estud-la. Disponvel em: . Acesso em: 3 ago. 2009. No deixe de ler este artigo interessante. CHAUI, Marilena. Convite Filosofia. So Paulo: tica, 1995. Sugerese a leitura da Unidade 1 A Filosofia, para aprofundar a temtica e confrontar com o que se diz aqui. O livro est acessvel na sua ntegra em: . Vale a pena!

OS GREGOS INVENTAM A FILOSOFIAA filosofia, essa forma de conhecimento sistemtico, tem uma histria de mais de dois mil e quinhentos anos. Nascida na Grcia Antiga, ali se consolidou, tornando-se uma das principais marcas da civilizao ocidental. Os gregos, desde os primrdios (por volta de 1500 a. C., com a civilizao micnica), se concentraram nas costas do Mediterrneo em pequenas e distintas naes, constituindo posteriormente cidades independentes e rivais entre si. Cada cidade com sua cultura, seus hbitos, sua poltica. Mesmo assim, foi criada uma comunidade de lngua e de religio, o que fez com que se

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Saiba mais

Genialidade grega

Voc poder informar-se mais sobre Homero, Tales de Mileto, Herclito de feso, Parmnides de Elia, Pitgoras, Slon, Pricles, squilo, Sfocles, Eurpedes, Herdoto, Tucdides, Scrates, Plato, Aristteles, e sobre Esticos, Epicuristas e Cticos, em algum livro de Histria da Filosofia, ou ento, mais facilmente, pela Internet, cuidando para escolher sites de qualidade. Atenas Pormenor da Escola de Atenas.

constitussem em um povo, aos quais se opunham todos os que no falavam o grego. Eram os brbaros, e brbaro significa precisamente aquele que no fala o grego. A genialidade grega, reconhecida historicamente alguns falam do milagre grego , foi afirmada por Homero, pintores, escultores, ceramistas, e pelos primeiros nomes da Cincia e da Filosofia: Tales de Mileto, Herclito, Anaximandro, Xenfanes e Parmnides. Alm da regio conhecida como Grcia, havia tambm a Magna Grcia, incluindo partes do sul da Itlia peninsular (Tarento, Npoles, Crotona) e insular (Siracusa, Agrigento, cidades da Siclia). Ali viveram pensadores como Pitgoras, Empdocles, e foi para Siracusa que depois viajou Plato para tentar aplicar sua teoria.

Entre as cidades-estado foi consolidada, Fonte: II Rinascimento Italiano e por volta dos sculos VI e V a. C., a importncia LEuropa. Volume Primo Storia e de Esparta e Atenas, esta ltima realizando e Storiografia (2005, p. 691). sofrendo grandes alteraes sociais e polticas, com Slon, Clstenes e Pricles, e com o desenvolvimento do comrcio e a expanso da colonizao grega.

Voc lembra da Guerra do Peloponeso (431-401 a. C.), entre Atenas e Esparta, atravs da qual se afirmou a superioridade da primeira?

Atenas criou a democracia direta, e neste contexto surgem as artes, as tragdias e as comdias. Depois disso se consolida em Atenas a Filosofia, mostrando que a vida da cidade, a poltica, um cho propcio no qual pode germinar melhor a atividade filosfica. em Atenas que vivem os grandes trgicos squilo, Sfocles e Eurpedes, o autor de comdias, Aristfanes, e os

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primeiros historiadores, Herdoto e Tucdides. Na mesma cidade, os filsofos Anaxgoras e Demcrito lecionaram, assim como fizeram os sofistas, os primeiros professores que se fizeram pagar pelo ensino. E depois, os trs maiores expoentes da filosofia grega: Scrates, Plato e Aristteles. Scrates (470/469-399 a. C.), condenado morte por um governo tirnico, o seu discpulo Plato (428/427-348/347 a. C.), fundador da Academia, e Aristteles (384 a. C. 322 a. C.), criador do Liceu, professor de Alexandre Magno, jovem imperador que viria a confirmar, depois de seu pai Felipe j ter conquistado a Grcia, o fim da autonomia das cidadesestado, estabelecendo o imprio macednico, sucedido pelo domnio romano da Grcia. Deixam de existir as cidades-estado autnomas e passa a existir a ideia de imprio, onde praticamente j no mais possvel ao cidado participar da vida poltica, obrigando-o a encontrar o sentido da sua vida fora desta. Podemos, de passagem, afirmar que este o momento em que se comea a dar valor ao indivduo e vida privada. o momento em que a poltica comea a perder a primazia. Por outro lado, passa ento a existir uma ideia de universalidade tambm na poltica, e isso facilita o estabelecimento da mesma religio para todos, de um s deus para todos, o que vai se consolidar depois, com a implantao da doutrina judaicoSaiba mais crist no mundo greco-romano. Em todo caso, o imperador Alexandre contribuiu para que a cultura grega, que ele aprendeu com seu mestre Aristteles, se expandisse pelo Oriente Mdio. Como no lembrar dos perodos helnico ou alexandrino, que no s conservaram as obras clssicas do pensamento grego com a posterior criao da famosa Biblioteca de Alexandria, no norte e frica, mas tambm continuaram atraindo para as novas cidades artistas, sbios e homens letrados. Em todo caso, a Filosofia grega no morre, continua em Roma e depois floresce em toda a Europa,

Biblioteca de Alexandria

Durante mais ou menos sete sculos, entre os anos de 280 a.C. a 416, a biblioteca de Alexandria reuniu o maior acervo de cultura e cincia que existiu na Antigidade. Ela no foi apenas um enorme depsito de rolos de papiro e de livros, mas tornou-se uma fonte de instigao para que os homens de cincia e de letras desbravassem o mundo do conhecimento e das emoes, deixando assim um notvel legado para o desenvolvimento geral da humanidade. Fonte: . Acesso em: 12 jun. 2008.

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a partir do casamento feito entre a racionalidade grega e a nova religio, o Cristianismo, que aos poucos deixa de ser uma religio marcada pela mentalidade oriental e passa, sobretudo a partir da obra de Paulo de Tarso (o apstolo So Paulo), que de formao grega, a mesclar a nova religio com o pensamento racional grego. Este casamento entre razo grega e religio judaico-crist foi a base da Idade Mdia e como se reconhece cada vez mais a base da prpria tradio moderna. Por tudo isso se pode dizer que a filosofia filha da Grcia e que o Ocidente tem l o seu bero.

O SENTIDO DA FILOSOFIAA palavra filosofia originariamente grega: philos (amigo) + sophia (sabedoria). Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor pelo saber. De sada j se poderia dizer: para ser filsofo se deve amar, e no se pode odiar. O filsofo o amigo, o amante da sabedoria. Lembremos, porm, que amante no algum que dono daquilo ou de quem ele ama, mas algum que pretende s-lo, e no consegue ser dono, nem deve ser dono. Quando se possui o objeto amado (coisa ou pessoa), o amor acaba. Assim, filsofo quem, como j dissemos, procura chegar ao fundamento ltimo, essncia ou raiz das coisas e dos problemas. A concepo da filosofia como procura amorosa da verdade, procura da compreenso da realidade, pode ser atribuda a Scrates, como veremos no final da Unidade 1, quando apresentaremos e discutiremos as duas concepes de filosofia, a de Scrates, presente no livro de Plato chamado O Banquete, e a de Plato, presente no mais famoso livro dele, A Repblica. A busca da verdade est vinculada aposta e ao desejo de organizar a vida individual e social ou poltica de maneira mais objetiva, slida e permanente. E isso se faz fundamentando a verdade na razo, e no em alguma crena ou alguma opinio

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interessada ou interesseira. importante insistir nisso para no pensarmos que a filosofia existiu sempre, ou que ela seja uma inveno casual de algum gnio, e no uma criao que se inscreve num contexto histrico favorvel a tal saber.

Filosofia , pois, um esforo para resolvermos de maneira nova os problemas enfrentados na vida em sociedade.

Hegel, um dos grandes pensadores modernos, ir escrever no Sculo XIX que os gregos inventaram a filosofia por terem sido o primeiro povo que, ao tentar resolver seus problemas, o fez como se estivesse resolvendo os problemas de todos os seres humanos, de todos os povos, para todos os tempos. isso que caracteriza a razo como fundamento da objetividade do conhecimento, de um saber objetivo e neutro, de um saber com validade universal. Portanto, no a cincia, como tantas vezes se pensa, o primeiro conhecimento objetivo, neutro e universal da realidade, mas a filosofia que teve por primeiro esta pretenso, sendo ela, por isso, a raiz da ideia moderna de cincia. Especialista no estudo do pensamento antigo, Jean-Pierre Vernant (2002) afirma que os gregos inventaram a filosofia no simplesmente para satisfazerem uma curiosidade de entender as coisas, como dizia Aristteles, mas para resolverem um problema prtico, tico e poltico.

E qual este problema? Responder s seguintes perguntas: como encontrar uma soluo segura e definitiva para os problemas polticos? Como encontrar um jeito para que se estabelea uma ordem, uma harmonia, a justia, na convivncia humana, e para que a soluo valha no apenas para aquela ocasio, mas para todas as ocasies e para todos os povos?

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Diante desse problema, aparece a extraordinria soluo grega, que constitui, como dissemos, o nascimento da filosofia e da cincia como tal: para resolvermos com segurana e vigor os problemas devemos encontrar um fundamento slido. Este fundamento slido a razo, que est presente na realidade, na natureza, mas tambm no ser humano. Ao invs de fundamentar as solues dos problemas ticos e polticos nos sentidos (audio, olfato, tato, viso), nos sentimentos mutveis, nos interesses de grupo ou pessoas, nas opinies das pessoas, opinies que mudam, se busca encontrar uma soluo firme, eterna, imutvel, slida, objetiva, neutra, universal, que valha no s pra mim, mas para todos os seres humanos. E esta soluo est na razo, que nica, que funciona em tudo e em todos os seres humanos do mesmo jeito, e por isso, se formos fiis razo, chegaremos a uma verdade segura, assim como a desejamos. Dissemos que a filosofia grega, portanto ocidental. Por isso, por mais que haja uma sabedoria oriental, por mais que algum possa valorizar mais a cultura oriental, esta no deveria ser chamada de filosofia oriental, pois a cultura do Oriente se fundamenta em dois princpios que nunca coincidem, que nunca deixam de ser contrrios: o Yin e o Yang. O Yin o princpio feminino passivo da natureza, enquanto o Yang o princpio masculino ativo na natureza. Por isso, convm dizer que a filosofia s existe a partir da Grcia antiga, pois s a partir da se consegue ver as coisas como uma unidade, como algo compreensvel pela razo, enquanto que para o oriental isso nunca possvel. De fato, a filosofia tem como princpio e caracterstica a unidade da realidade, a unicidade do fundamento, a unicidade da razo. Na filosofia sempre buscamos e acabamos afirmando um princpio nico, e s por isso tambm ser possvel afirmarmos que h um cosmos, ou seja, uma ordem. No se trata de dizer que a sabedoria oriental melhor ou pior do que a filosofia, que a sabedoria ocidental, mas se trata de assinalar que so saberes diferenciados e incompatveis. Isso importante para termos clareza e entendermos melhor a distino entre Oriente e Ocidente, e

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tambm para tentarmos compreender o que levou o Ocidente a ser vitorioso sobre o Oriente, pelo menos sob certos pontos de vista. E insistimos: o nascimento da filosofia entre os gregos tambm , de certa forma, o nascimento da cincia como tal. Na Antiguidade e na Idade Mdia praticamente os dois conceitos se equivalem, enquanto cincia e filosofia se baseiam na razo, em contraposio a outros saberes que no partem de uma fundamentao racional, como o caso da mitologia ou da teologia, que incluem em si, necessariamente, uma crena ou a f. S na modernidade que foi estabelecida mais claramente uma distino entre filosofia e cincia.

A filosofia continua mantendo como caracterstica a pretenso de conhecer o todo como tal, o estudo dos porqus, enquanto a cincia (moderna) nasce e se consolida como o conhecimento da realidade a partir do estudo das partes e enquanto estudo do como da realidade.

cincia, por exemplo, no interessa saber por que existe uma lei natural, mas qual tal lei, e como a realidade funciona de acordo com esta lei. Mas interessa filosofia perguntar por que h leis, quais os princpios destas leis. A ela interessam as causas ltimas, e no a causa mais imediata, como faz a cincia. Esta forma de conhecer bastante recente, tendo cerca de quatrocentos anos, com a contribuio importante de Coprnico, Galileu, Bacon e Newton. Esta cincia nasceu com a pretenso de permitir ao ser humano ter um controle prtico da natureza, um domnio sobre ela, para que o ser humano se torne senhor da natureza e senhor de si mesmo. Conhecendo a natureza, o ser humano liberta-se dela, e pode dispor dela para seu prprio interesse. o que expressa a conhecida frase de Francis Bacon: saber poder. Esta forma de conhecimento possibilita um conhecimento sistemtico e seguro, com a formulao de leis (naturais ou sociais), permitindo dessa maneira um agir mais seguro para os seres humanos. Pode-se assim

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romper com crenas e prticas supersticiosas, afastando temores brotados da ignorncia, vencendo normas tradicionais de conduta e resolvendo novos problemas. Por isso, a cincia , sobretudo, um mtodo de investigao, uma lgica geral empregada para garantir uma certeza maior e at infalvel, uma objetividade, uma imparcialidade ou neutralidade, para estabelecer melhor uma relao entre causas e efeitos, em suma, para responder de forma mais precisa s perguntas formuladas pelos estudiosos. Antes de procurar definir melhor o que a filosofia, vale a pena repetirmos que existem vrias formas de conhecimento humano. E no podemos esquecer, alm das formas j citadas (mitologia, teologia, cincia, Filosofia), o conhecimento mais comum, chamado em geral como senso comum. o conhecimento que recebemos de uma gerao para outra, e que nasce do esforo que os seres humanos fazem normalmente para resolver os problemas prticos e imediatos que surgem no dia a dia (por exemplo, formas de organizar a vida comunitria, formas de sobreviver frente ao clima e frente natureza, como fazer habitao, vesturio, plantio, colheita, conservao de produtos, alimentao, cuidado com sade, e, mais recentemente, uso da tcnica etc.). Por exemplo, o campons sabe plantar e colher segundo hbitos e normas que aprendeu dos pais, usando tcnicas herdadas de seu tempo e de sua comunidade, e hoje aprendemos a usar o carro ou outros meios tcnicos a partir do ensino passado por quem j o faz. Isso acontece de maneira espontnea e prtica, no de forma rigorosa e sistemtica, conforme ocorre com o conhecimento cientfico. Pelos exemplos tambm percebemos que o senso comum muda historicamente por influncia do saber cientfico e tecnolgico. Assim, o senso comum , sobretudo, um saber fazer, mais do que um saber puramente terico, sem que se conheam os motivos pelos quais algo se faz assim e no de outro modo. Por isso, o senso comum tem a ver com uma crena, embora no se trate de uma crena, mais terica, que repercute na vida das pessoas atravs de outra forma de conhecer, que a crena religiosa, pela qual os seres humanos definem o sentido da vida, e aquilo que eles devem fazer para viver melhor ou para ter uma vida feliz depois da morte.

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Mesmo que ao senso comum pertenam elementos do saber cientfico, da teologia, da mitologia e da prpria filosofia, na medida em que tais saberes se tornaram comuns no comportamento cotidiano das pessoas e nas relaes entre elas, e mesmo que o senso comum seja, por conseguinte, o saber mais presente na existncia de cada um de ns, isso no impede que devamos distinguir entre os saberes. E por isso insistimos em definir a filosofia. Todos sabem, inclusive os matemticos, o que a matemtica. Todos os qumicos concordam com a definio da qumica. O mesmo acontece, mais ou menos, com os bilogos, os fsicos, os mdicos, os engenheiros, os socilogos, os historiadores, os psiclogos. Mas, ao contrrio do que acontece normalmente com cada uma das cincias naturais ou humanas, percebemos que h praticamente uma definio para cada filsofo ou cada doutrina filosfica. Esta pluralidade de definies da filosofia, mesmo que todas mantenham a ideia de se tratar de uma tarefa executada racionalmente, no s serve para suscitar em ns uma perplexidade ou uma insegurana, mas tambm nos convida para que tambm ns sejamos mais crticos com qualquer doutrina ou verdade que nos for apresentada. E com isso tambm ns nos tornamos mais racionais, ao mesmo tempo em que perceberemos melhor o alcance e os limites da prpria razo. Neste sentido, h motivos para continuar afirmando como o sbio Scrates: que o ato de filosofar em ltima instncia nos leva a perceber que sabemos pouco, ou ento, que quanto mais pensamos, mais percebemos o limite de nosso conhecimento. Mas para se saber que sabemos pouco indispensvel estudar e pensar muito. Isso, alis, tambm acontece entre os cientistas: em geral os grandes cientistas so os que mais reconhecem a precariedade do conhecimento cientfico, enquanto os cientistas medianos ou medocres tendem a se apresentar como gnios. Em geral, quem pensa pouco e sabe pouco, imagina saber muito. Plato, um dos maiores filsofos de todos os tempos, reconhece (e o faz em duas ocasies!) que seu mestre Scrates muito mais sbio do que ele. E a prova apresentada por Plato

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para sustentar isso bem surpreendente: ele diz que Scrates mais sbio porque nunca escreveu um livro ou um artigo! Scrates nunca se considerou capaz ou no direito de fixar uma verdade por escrito. Isso nos levaria a dizer hoje e no seria apenas em tom de brincadeira! que Scrates um trabalhador intelectual improdutivo! Se a filosofia, por um lado, uma atitude diante dos acontecimentos e diante da vida em geral, por outro tambm um campo do saber humano, ao lado das cincias, sociais e naturais, da tecnologia, da teologia, da mitologia, do senso comum. Por mais que ela no possa ser vista como um determinado contedo (no tem sentido dizer a filosofia afirma que....), pode-se afirmar que h filosofias de perodos histricos diferentes (Filosofia Antiga, Medieval, Moderna e Contempornea), filosofias de perspectivas diferentes (Filosofia Grega, que se confunde com Filosofia Antiga, Filosofia Crist, que em geral se identifica como Filosofia Medieval) e filosofias de pases diferentes (Filosofia Alem, Francesa, Italiana, Inglesa, Norte-americana...). Por fim, falase da filosofia de cada filsofo (Filosofia Cartesiana, Kantiana, Platnica, Tomista, Marxiana, e assim por diante).

Complementando......Amplie seus conhecimentos atravs das obras indicadas a seguir. Sugerimos, para a relao entre Filosofia e Mitologia, entre Filosofia e Tragdia, a obra do grande especialista francs, h pouco falecido: VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e poltica. 2. ed. So Paulo: EDUSP , 2002. Sobre o debate entre filsofos e sofistas, ver, por exemplo: GADAMER, Hans Georg; HSLE, Vittorio; VEGETTI, Mario. (Entrevista). As razes do pensamento filosfico. Trad. Portuguesa de Selvino Jos Assmann. Disponvel em: . Acesso em: 3 ago. 2009.

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Atividades de aprendizagemPara verificar sua compreenso quanto aos textos, expostos at aqui, separamos algumas questes para voc responder. Escreva com suas prprias palavras! Se precisar de auxlio no deixe de fazer contato com seu tutor.

1. Com base no texto apresentado, qual o motivo prtico que levou os gregos a inventarem a filosofia, uma forma de saber que pretende ser neutra, objetiva, universal, nica, distinta da religio e do senso comum? 2. Procure descrever o que se entende por filosofia no senso comum. Pergunte a algumas pessoas conhecidas, e verifique qual a diferena com o conceito que os gregos deram filosofia. 3. Qual a comparao que podemos fazer entre a filosofia e a cincia moderna, que tambm defende, tantas vezes, a neutralidade e a objetividade?

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CARACTERSTICAS GERAIS DA HISTRIA DA FILOSOFIAVamos dar continuidade aos nossos estudos fazendo breve referncia aos principais perodos da Histria da Filosofia. Como informao geral, vale a pena lembrarmos a distino que se faz entre quatro grandes perodos desta Histria, que praticamente coincidem com a periodizao da Histria Universal, com uma nica e bvia exceo: a Histria comeou no Oriente, enquanto a F ilosofia comea no Ocidente, num determinado momento do perodo histrico denominado antigo. Sabemos que todas as periodizaes so questionveis, e tambm a da filosofia. Sem entrar em pormenores, mantemos aqui a periodizao mais aceita pelos historiadores.

De acordo com a periodizao mais aceita pelos historiadores, a Filosofia dividida em quatro grandes perodos: Filosofia Antiga: do sc.VI a. C at o sc.V d. C.; Filosofia Medieval: do Sculo V d. C. at o sc. XIV ou XV; Filosofia Moderna: do Sculo XV/XVI, perodo da Renascena, passando pelos Scs. XVII e XVIII, e alcanando o perodo do Iluminismo, sc. XVIII e metade do sc. XIX; e Filosofia Contempornea: da metade do Sculo XIX at hoje.

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Esticos, epicuristas e cticos envolve tanto o

A FILOSOFIA ANTIGAJ falamos da Filosofia Antiga, e ainda vamos falar a respeito de Scrates e Plato. Costumeiramente, admitem-se trs fases na histria da filosofia Antiga, que aconteceram sobretudo em Atenas e, depois, em Roma: o perodo pr-socrtico ou cosmolgico, em que a filosofia se ocupa principalmente com a origem do mundo e as causas das transformaes da natureza; o perodo socrtico ou antropolgico, ocorrido entre o final do sc. V at o final do sc. IV a.C., cujas figuras principais so Scrates, Plato e Aristteles, em que o objeto de estudo da filosofia passa a ser o homem, sua vida poltica e moral, e sua capacidade de conhecer as coisas; e o perodo helenstico ou greco-romano, entre o final do Sculo III a. C at o sc. II d. C, quando comea a consolidar-se a supremacia da viso crist, sobretudo com o pensamento de Santo Agostinho. Neste perodo, deixa-se de acreditar em solues mais coletivas para a vida humana e se comea a introduzir uma sada individual, consolidando-se uma nova tica e uma poltica que deixa de ser vista como boa. o perodo em que predominam as doutrinas dos esticos, dos epicuristas e dos cticos. Neste perodo, as doutrinas filosficas helensticas deixaram de ter sua sede em Atenas, e Roma passara a ser o lugar em que tais doutrinas continuaram consolidando-se e modificando-se.

pensamento grego, quanto o pensamento romano que predomina entre o fim da autonomia das cidades-estado gregas, com a morte de Alexandre Magno em 323 a.C.l, e a conquista do Antigo Egito em 30 a.C. pelos Romanos, e, mais ainda, com a gradual afirmao da perspectiva crist. Juntos, estoicismo, epicurismo e ceticismo constituem o Helenismo. Os esticos chamados assim, pois se reuniam em Atenas perto do prtico, em grego stoaapregoam o ideal da fraternidade universal, contrrio, portanto, escravido, e defendiam o ideal da vida austera. Por isso, at hoje se mantm o termo estico com este sentido de austeridade,

De toda maneira, as doutrinas helensticas (estoicismo, epicurismo e ceticismo) tm sido cada vez mais reconhecidas como importantes para se compreender a passagem gradual do predomnio da cidade e da comunidade, para o predomnio do indivduo. Para Plato e Aristteles, o ser humano realiza-se

v

de capacidade de

suportar o sofrimento. tambm de escola do Jardim, porque ali se

O epicurismo, chamado

reuniam os discpulos de Epicuro, defende o valor da vida humana

individual, o bem-estar, o prazer espiritual e fsico como fim da existncia humana. E os cticos insistem em dizer que os seres humanos, por mais que o queiram, no conseguem conhecer a realidade de forma objetiva e neutra.

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unicamente como membro da comunidade poltica, como cidado, e no pode conseguir a felicidade individualmente. Com o fim da autonomia das cidades gregas, e com o surgimento do imprio macednico, atravs de Felipe e Alexandre Magno, a cidade deixa de ser o lugar principal de realizao humana at pela distncia que ocorre entre governantes e governados e surge a ideia da igualdade de todos os seres humanos e a concomitante ideia de indivduo, ser isolado da comunidade e que passa a ser encarregado individualmente pela sua realizao e felicidade. Neste contexto, podemos afirmar que a ideia de uma fraternidade universal nasce antes do Cristianismo, mas com um objetivo poltico: se todos so iguais, todos estaro submetidos da mesma forma mesma lei do imprio. Com o Cristianismo, surgir uma fraternidade com outro sentido: todos so filhos do mesmo Deus, e por isso os seres humanos so irmos e como tais ficaro submetidos aos mandamentos de Deus, e no do nico imperador. neste perodo que surge tambm o conceito de lei natural, que servir tanto para os cristos (mostrando que possvel seguir a lei natural e obter a salvao eterna quando algum no fosse formalmente um cristo) quanto para os modernos (sobretudo a Teoria do Contrato Social, que tem por base a distino entre estado de natureza e estado civil). Se pensarmos mais no incio da tradio crist, importa lembrar o debate entre os Padres, nome dado aos telogos de tradio oriental (patrstica oriental) e queles de tradio greco-latina (patrstica ocidental). Os telogos e pastores de tradio grega e latina lutam e discutem muito entre si e no s contra os no-cristos para que o Cristianismo como instituio, que estabelece sua sede em Roma, passe a adotar a racionalidade grega a fim de conseguir convencer e converter pagos nova verdade, mesmo que a doutrina original de Jesus Cristo tivesse sido apresentada nos moldes da cultura oriental, ou melhor, na sua vertente semita. Veja um exemplo: na tradio oriental, no possvel separar o corpo e alma. Sendo assim, quando algum morria, era considerado morte do ser humano inteiro, e no apenas o corpo; e isso era admitido tambm pelos primeiros cristos de tradio oriental. J de acordo com a

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mentalidade dualista grega, s morria o corpo, como se pensa at hoje entre ns. E ambos eram cristos. Naquele tempo, portanto, um cristo que dissesse que quando se morre, morre tambm a alma, no deixaria de ser considerado cristo! Foi nos primeiros sculos do Cristianismo que se decidiu, aos poucos, como dogma, a separao entre corpo e alma, o que constitui a vitria da tradio greco-romana no Cristianismo. A figura mais importante para que isso acontecesse foi So Paulo, o apstolo de formao grega, que convenceu Pedro a estabelecer-se em Roma, sede do Imprio Romano, como chefe da nova comunidade religiosa. Houve assim poderamos dizer uma racionalizao de uma verdade religiosa, racionalizao que se tornou fundamental para a histria da Idade Mdia, mas tambm da Idade Moderna. E a teologia, cincia sobre Deus, sinal desta racionalizao. Isso fez com que os telogos mostrassem que acreditar em Deus no vai contra a razo, mas combina com ela. E tambm contribuiu para que um filsofo moderno como Hegel dissesse que a modernidade a definitiva realizao do Cristianismo, e no a ruptura com este, conforme costumamos dizer ao apresentarmos a Idade Mdia como Idade das Trevas.

A FILOSOFIA MEDIEVALA Filosofia Medieval inclui pensadores europeus, rabes e judeus. o perodo de cerca de mil anos em que predomina a Igreja Catlica Romana, e se criam, ao lado das catedrais, as primeiras Universidades, cujo curso principal era a Teologia, sendo a Filosofia uma serva da Teologia. Antes de mais lembremos que o Cristianismo nasceu no Oriente, e depois comea a difundir-se pelo Ocidente, a comear por Atenas e continuando por Roma. A figura mais importante para a difuso da doutrina de Jesus Cristo no mundo greco-romano Paulo de Tarso. Basta lermos uma passagem de um texto clssico,

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como os Atos dos Apstolos, que narra o encontro de So Paulo com os atenienses:Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu esprito se revoltava, em face da idolatria dominante na cidade.... Alguns dos filsofos epicureus e esticos contendiam com ele, havendo quem perguntasse: Que quer dizer esse tagarela? E outros: Parece pregador de estranhos deuses, pois pregava a Jesus e a ressurreio. Ento, tomando-o consigo, o levaram ao Arepago, dizendo: Poderemos saber que nova doutrina essa que ensinas? Posto que nos trazes aos ouvidos coisas estranhas, queremos saber que vem a ser isso. Pois todos os de Atenas, e os estrangeiros residentes, de outra coisa no cuidavam seno dizer ou ouvir as ltimas novidades. Ento Paulo, levantando-se no meio do Arepago, disse: Senhores atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos; porque passando e observando os objetos do vosso culto, encontrei tambm um altar no qual est escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Pois esse que adorais sem conhecer, precisamente aquele que eu vos anuncio (At. 17, 16-23).

O texto mostra claramente que o apstolo Paulo, para difundir a nova doutrina religiosa, discute com os filsofos (epicureus e esticos), e se esfora para apresentar o Cristianismo no como ruptura, mas como um complemento e um acabamento da teologia e da filosofia grega. Por mais que possamos assinalar que a atitude de Paulo seja retrica, no podemos deixar de reconhecer que foi esta aproximao com a filosofia antiga que possibilitou a implantao gradativa do Cristianismo. Sem tal aproximao no seria possvel entender a expanso da doutrina crist no mundo grego e depois no mundo romano, a partir do qual depois se espalha pela Europa, tornando-se base da cultura ocidental O Cristianismo, por mais que levasse sculos para se instaurar mais amplamente, lutando contra as outras religies tradicionais, s passou a ser predominante a partir do sculo IV, com o imperador Constantino, o primeiro governante catlico, e

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que vinculou o Cristianismo ao poder constitudo no imprio. Mais precisamente, sob o governo de Teodsio, em 380, que se define a doutrina ortodoxa crist como religio de Estado. Foi nos primeiros sculos que o Cristianismo obteve apoio, sobretudo nas classes mais baixas da sociedade, se espalhando posteriormente pelos grupos dirigentes da vida urbana imperial. No incio foram suportados ou admitidos dentro da comunidade crist modos de viver e de pensar bastante diversos, mas depois a Igreja precisou definir melhor seu ncleo doutrinrio, sua ortodoxia, seus dogmas, as verdades que todos devem aceitar, ao mesmo tempo em que estabeleceu a estrutura hierrquica a que todos devem obedecer. Assim, se inicialmente foram admitidas tanto uma viso oriental quanto uma viso ocidental, ou greco-romana, depois se tornou vitoriosa a leitura ocidental desta religio, nascida, como todas as outras religies, no Oriente. Nos primeiros sculos, ainda considerados como parte da antiguidade, foi Plato que manteve uma hegemonia terica dentro do Cristianismo; bem mais tarde, a partir do sc. XII, o filsofo grego que marcou o pensamento cristo foi Aristteles, que no incio era rejeitado por ser considerado materialista demais. Contudo, o conceito de Idade Mdia gerou controvrsias h longo perodo. Durante bom tempo, por influncia do pensamento renascentista e moderno, este perodo foi entendido como um intervalo cronolgico entre duas culturas (a antiguidade clssica e a renascena), como idade das trevas ou das sombras, em que nada de importante aconteceu no campo da arte, da cincia e da filosofia. No entanto, por causa dos estudos cada vez maiores sobre a histria da poca e tambm pela crtica que se passou a fazer ao pensamento moderno, que deixou de ser visto apenas como soluo de todos os problemas individuais e sociais, a Idade Mdia passou, sobretudo nos ltimos decnios, a significar um perodo decisivo para se entender a histria do Ocidente, e no s pela grande arquitetura (catedrais romnicas e gticas), ou pela construo das primeiras universidades, como Bolonha, Pdua, Paris e Oxford, mas tambm pela formao gradual das lnguas latinas (italiano, francs, espanhol e portugus) com seus grandes literatos. Por tudo

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isso, e tambm pelo debate terico havido, no teve mais sentido falar de idade das trevas. Podemos dizer, portanto, que as caractersticas principais da Filosofia Medieval so as que seguem: a estreita relao entre filosofia e religio, ou melhor, entre filosofia e teologia; e a forte presena de Aristteles em todos os campos do pensamento terico (lgica, tica, metafsica), o que ocorreu depois da influncia inicial da obra de Plato. A influncia de Aristteles foi consagrada pela presena do grande pensador cristo, que Santo Toms de Aquino (1225-1274), cujo tema maior foi defender uma conciliao entre razo e f, entre Cristo e Aristteles, o que marcou o perodo medieval mais do que qualquer outra coisa. Com o Cristianismo houve continuidade e ruptura com a Idade Antiga, assim como a Idade Moderna continuidade e ruptura com a Idade Mdia, e no apenas ruptura. E nestas continuidades nem sempre se conserva o pensamento anterior na sua forma correta, mas se introduzem adaptaes e at deformaes. Ao mesmo tempo, h rupturas mais evidentes. Neste sentido, na Idade Mdia, rompeu-se com a cultura e a filosofia antiga ao se introduzir a ideia de que o mundo no eterno, mas tem um incio, com a criao por parte de um Deus. Assim, os seres humanos passaram a ser vistos como criaturas, como filhos de Deus, e que s podem alcanar a felicidade se cumprirem a vontade divina. Alm disso, a verdade revelada por Deus, e no simplesmente descoberta pelo ser humano. A principal comunidade passou a ser a da Igreja, e no a comunidade poltica. O mote consagrado foi o seguinte: Extra Ecclesiam nulla salus: fora da Igreja no h salvao! Santo Agostinho (354-430) dir com todo vigor que os reinos, ou seja, as instituies polticas e seus governantes sempre faro o mal, sempre efetuaro grandes latrocnios, e que, no fundo, no h nenhuma diferena moral entre os piratas que assaltam navios e os governantes que assaltam povos inteiros.

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Como se est longe do pensamento de Plato e de Aristteles, para os quais s na poltica possvel fazer o bem! Agora, na Idade Mdia, se sustenta que s na comunidade crist poder ser feito o bem. De toda forma, no houve s ruptura, como j dissemos: de tantas maneiras o pensamento filosfico greco-romano serviu para tornar mais racional a doutrina religiosa crist, e at mesmo contribui para estabelecer, sobretudo nos primeiros sculos de nossa era, a doutrina crist, constituda principalmente de dogmas. Santo Agostinho no teme em sustentar que o essencial das doutrinas platnicas e o essencial da doutrina crist se sobrepem. E, sobretudo h um uso de atitudes profanas, defendidas pelos platnicos e pelos esticos, que sero adotadas pelos cristos, transformando tais atitudes em modo cristo de viver. Podemos repetir que a histria do Ocidente, a nossa histria, foi marcada indelevelmente por um casamento entre a racionalidade grega e o Cristianismo, mas tambm por um casamento entre o modo de viver instaurado pela filosofia antiga e a moral crist. Exemplo disso a nfase que se d nos primeiros sculos ao cuidado de si, primazia da alma, o que no modo cristo leva ao exame de conscincia e a uma separao cada vez maior entre corpo e alma. E se foram conservados e divulgados os textos dos pensadores gregos antigos isso devido aos rabes, que no s cultivavam suas bibliotecas, mas tambm comearam a incentivar, atravs de seus intelectuais, um interesse por um estudo muito rigoroso. Por isso, podemos afirmar que nasceu com eles um interesse cientfico. Isso justificado, sobretudo, pela importncia de dois mdicospensadores: Avicena (980-1037), que tentou conciliar as doutrinas de Plato e Aristteles, e Averris (1126-1198), um dos maiores conhecedores de Aristteles. Alm de se preocuparem com a conciliao entre o Alcoro e a indagao racional, atravs da Filosofia Grega, os rabes tornaram-se fundamentais para estimular uma aproximao entre o materialista Aristteles e o espiritualismo cristo. E o nascimento das universidades serviu para que acontecesse a divulgao do pensamento rabe e da obra de Aristteles, e para que aumentasse a preocupao em combinar a f crist com a racionalidade humana. J se tomava mais em conta

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que nem todos os seres humanos eram cristos, e que se precisava saber mais e melhor como agir com no-cristos, e como nocristos tambm poderiam obter a salvao se no pertencessem oficialmente Igreja Catlica. Sinal disso o debate frequente em torno de provas da existncia de Deus, o que mostra a preocupao que havia em tornar racional, ou melhor, racionvel aquilo que era sustentado pela f: a razo humana, mesmo que no consiga provar que Deus existe, consegue mostrar que acreditar em Deus no vai contra a razo, no algo irracional. assim que se mostra que razo e f no se contradizem, mas se complementam ou se compatibilizam, mesmo que devam continuar distintas como fundamento da verdade.

Temos, pois, na Idade Mdia, dois grandes filsofos cristos: Santo Agostinho, que seguiu mais diretamente o pensamento de Plato, e Santo Toms de Aquino, que, estimulado por seu mestre Alberto Magno, adotou corajosamente o pensamento aristotlico. E de forma geral, podemos afirmar que difcil distinguir claramente entre Filosofia e Teologia, quando falamos de Filosofia Crist.

Para finalizar, no podemos esquecer a impor tncia adquirida pela Escolstica, criada a partir do sc. XII, e que predominou at o sc. XIV: a filosofia ensinada nas escolas. Nela, a filosofia fica marcada ou at presa ao princpio da autoridade, que pertence Igreja, a qual determina a investigao intelectual e protege o pensamento contra eventuais erros. Isso de certa maneira empobreceu a reflexo filosfica. No entanto, nem todos os pensadores aceitavam esse controle ou censura eclesistica. Basta citarmos outros importantes nomes da Filosofia Medieval para se perceber a vitalidade do pensamento da poca: Santo Anselmo (1050-1117), um dos mais consistentes formuladores de uma prova da existncia de Deus;

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Abelardo, importante lgico e um dos primeiros professores universitrios a exigir salrio para trabalhar, no sendo ele um telogo sustentado pela Igreja; e Duns Scoto (1265-1308), que insiste em defender a liberdade humana mesmo no contexto teolgico; e Guilherme de Ockham (1280-1349), acusado de heresia*, ele inaugura um novo modo de fazer teologia, enfatizando a convenincia de provas empricas para as afirmaes e no temendo confrontar-se com os telogos anteriores. Aps esta breve apresentao da Filosofia Medieval, podemos verificar que a Idade Mdia no deve ser considerada como perodo de interrupo da histria, e nem como perodo de trevas. Cada vez mais se estuda e cada vez mais se tem argumentos para sustentar uma nova ideia de Idade Mdia, conforme ensina o historiador francs Jacques Le Goff, como um perodo cheio de vitalidade terica, de muita criatividade, de tanto debate e de muita controvrsia. E cada vez mais temos motivos que nos devem levar a ter em conta a Idade Mdia se quisermos entender a modernidade. Podemos concluir com a afirmao de um estudioso a respeito das relaes entre Filosofia e Cristianismo, relaes que continuam na modernidade e voltam a ser discutidas com muita nfase mais recentemente:As relaes entre filosofia e cristianismo so muito mais complexas do que vislumbramos [...]. Pode-se dizer que quase todas as filosofias, desde a Idade Mdia, sofreram influncias do cristianismo. Por um lado, seu discurso filosfico desenvolve-se em relao estreita com o cristianismo, seja para justificar, direta ou indiretamente, a doutrina crist, seja pra combat-la. [...] seria necessria uma longa reflexo para definir mais profundamente as relaes entre filosofia e religio (HADOT, 1999, p. 382-383).

*Heresia doutrina ou sistema teolgico rejeitado como falso pela Igreja. Fonte: Houaiss (2007).

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Complementando......Sobre a nova viso da Idade Mdia, consulte as obras do grande historiador Jacques Le Goff. Veja a seguir algumas sugestes. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Mdia. Lisboa: Estampa, 1980. ________. Os intelectuais na Idade Mdia. So Paulo: Brasiliense, 1988. ________. Mercadores e banqueiros da Idade Mdia. So Paulo: Martins Fontes, 1991. ________. O nascimento do purgatrio. Lisboa: Estampa, 1993. (Este livro narra como, na histria da Igreja Romana, se passa de uma rejeio total do emprstimo de dinheiro, da usura, para sua aceitao. A sua aceitao moral vincula-se ao fato de a Igreja precisar de dinheiro emprestado para construir catedrais. Para tornar perdovel o pecado da usura, a Igreja cria ento a ideia de purgatrio, para onde iro todos os usurrios). ________. A civilizao do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2005.

A FILOSOFIA MODERNAQuando falamos da Filosofia Moderna, comeamos pela Renascena, que foi, provavelmente, um dos perodos mais criativos da Histria Ocidental, tendo seu epicentro na Itlia. Foi neste perodo que a Europa sai para a conquista da Amrica; em que acontece a Reforma Protestante (Lutero e Calvino); em que se cria a cincia moderna (Leonardo da Vinci, Bacon, Coprnico, Galileu, Kepler); em que se formulam as utopias (Toms Morus, Campanella); em que se inaugura a cincia poltica (Maquiavel, Bodin); em que se procura romper com o domnio ideolgico da Igreja Romana (Galileu, Giordano Bruno); e em que se d uma revoluo artstica (Leonardo da Vinci, Miguel ngelo Buonarrotti, Rafael Sanzio, El Greco). Na filosofia, passa a predominar uma viso naturalista: o homem visto como parte da natureza e pode agir sobre ela atravs da alquimia, da magia natural e da astrologia; por outro

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lado, ao contrrio do que acontecia antes, quando se valorizava a vida contemplativa, comea a ser valorizada a vida ativa, a ao prtica, a fabricao, e na poltica, o ideal republicano sobrepese ao governo autocrtico dos Papas. Assim, o ser humano passa a figurar como artfice de seu destino (antropocentrismo), atravs do conhecimento (cincia), da poltica, das tcnicas (medicina, arquitetura e navegao) e das artes (pintura, escultura, literatura e teatro). Se antes o trabalho era visto como castigo devido ao pecado original, agora o trabalho comea a ser visto como algo positivo, como nico meio pelo qual algum pode se tornar humano e se tornar livre. Antes o conhecimento acontecia na contemplao, sem que se tivesse que trabalhar para isso. Agora o conhecimento (a cincia) deve ser fruto do trabalho em laboratrio. Para dar mais um exemplo de que os seres humanos se tornam o centro de tudo, e que a natureza deixa de ser irm do homem, como queria So Francisco de Assis, para se tornar serva dos homens, lembremos as afirmaes de Bacon e de Galileu, feitas no sculo XVI: o ser humano deve se tornar senhor e possuidor da natureza! E por isso saber poder. Pelo saber possvel dominar o que conhecemos, e deixamos de contemplar a natureza, deixamos de simplesmente conviver com Pintura na Renascena Saiba mais a natureza, conforme se pensava antes. A Mona Lisa de Leonardo da Vinci natureza precisa ser vencida e derrotada (1503 1507). Museu do Louvre. em sua naturalidade e precisa ser posta Fonte: II Rinascimento Italiano gradualmente a servio do ser humano. e L'Europa. Volume Primo Storia Por outro lado, a centralidade do ser e Storiografia, 2005. p. 667. humano tambm se torna visvel na pintura: se na Idade Mdia os pintores representam principalmente figuras A criao do homem, sagradas, na Renascena o objeto o ser Michelangelo, Capela humano, homem e mulher. Sistina, no Vaticano. importante salientarmos que a m o d e r n i d a d e, de forma geral, d p r i m a z i a a o i n d i v d u o, e no sociedade. Tambm por isso, h certaFonte: . Acesso em: 12 jun. 2008.

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primazia da vida privada, e no da vida pblica. Isso estabelece uma diferena com as Idades Antiga e Medieval, em que a vida coletiva, e a vida pblica, de algum modo, tm primazia sobre a vida individual e a vida privada. Por outras palavras, em Atenas, na comunidade poltica que se realiza o ser humano, enquanto na Idade Mdia isso ir acontecer na comunidade de crentes. diferena disso, na modernidade, o Estado que a nova organizao social o contrato entre indivduos, que deve estar a servio dos indivduos, e no o contrrio. O Estado torna-se meio, deixando de ser um fim. A sociedade a mera soma de indivduos, que tambm deve servir ao bem do indivduo. O mesmo acontece com a famlia: o que conta so as partes, e no o todo. Ou ento, digamos que, na modernidade, o indivduo aparece como um todo. Lembremos tambm que os direitos humanos so formulados e so vividos em geral apenas como direitos de cada indivduo, e no como direitos de grupos ou de sociedades. Por isso h autores que caracterizam a modernidade como individualismo. Aps a Renascena, h o grande racionalismo clssico moderno onde a figura mais conhecida a de Ren Descartes (1596-1650), considerado o primeiro filsofo moderno, que insiste ainda mais que se deve fazer o que racionalmente necessrio para que o ser humano se transforme no senhor do mundo. o primeiro a escrever, depois de sculos de domnio do latim, em lngua moderna, no caso o francs. Autor de O discurso do Mtodo, Descartes prope-se a duvidar de tudo o que se sabia at ento e a procurar alguma verdade que no pudesse ser posta em dvida. Tal verdade deveria ser a nova base para todo conhecimento. Assim, podemos duvidar da existncia de Deus; podemos duvidar de tudo que conhecemos pelos sentidos; podemos at duvidar da existncia do mundo fsico fora de ns. Mas no podemos duvidar de que duvidamos, ou seja, da existncia da dvida e da existncia de quem duvida. Portanto, se eu duvido, eu sou. Se eu penso, ento eu existo (Cogito, ergo sum: a frase em latim, escrita por Descartes). E a existncia de Deus, do mundo, deve ser baseada neste fundamento: Eu. Eu, o sujeito humano, a razo humana, deve ser o

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nico ponto de partida para qualquer verdade. Esse o princpio da cincia. Mas tambm da tica: s ser bom aquilo que for bom para cada homem. Vejamos um exemplo no campo do conhecimento: s se o ser humano provar que Deus existe, Deus existir. Se no o conseguir provar, Deus no existir. Como percebemos, a existncia de Deus passa a depender da prova realizada pelo ser humano. isso que podemos denominar de viso antropocntrica da modernidade: anthropos o termo grego que significa homem. Se a viso medieval teocntrica, e a antiga fisiocntrica, agora passamos ao antropocentrismo. Eis outro exemplo do pensamento moderno. Thomas Hobbes (1588-1679), filsofo ingls; alm de defender uma viso materialista (tudo apenas corpo) e mecanicista (toda a realidade funciona como se fosse uma grande mquina como dir tambm Newton), ele sustenta que a razo a capacidade humana de calcular e controlar todas as coisas. O homem por sua natureza um ser individual, totalmente livre, independente. Tudo o que social, ao contrrio do que disse Aristteles, artificial. Como indivduo natural, o homem tem direito ou desejo de possuir todas as coisas, e ningum pode impedir-lhe de querer realizar tais direitos ou desejos, mesmo que tenha que matar o concorrente. Assim, por natureza, nada podemos fazer para impedir que sejamos lobos dos outros homens. Matar-nos-emos sem que ningum o possa impedir a no ser pela fora. Se no fizermos uma calculada interveno nesta tendncia natural, viveremos em um estado selvagem. isso o contrato social: para sairmos do estado de natureza, e para garantirmos nosso direito individual vida, sobrevivncia fsica, cada um deve fazer um pacto com todos os outros indivduos; atravs deste pacto, cada qual cede seu direito de se autodeterminar a um outro. Do pacto nasce o ser soberano, o Estado, o qual, por sua vez, estabelecer a lei que deve ser obedecida por todos os participantes do contrato. O soberano ser o nico que continuar no seu estado de natureza, enquanto os outros todos deixaro este estado e recebero em troca a segurana de vida garantida pelo soberano. Esta ser a nica maneira para que

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tenhamos uma segurana mnima para conviver com outros seres humanos, sem estarmos ameaados constantemente em nossa sobrevivncia fsica. Brevemente apresentada, a tese poltica hobbesiana, a do contratualismo moderno, nos mostra que os seres humanos inventaram a poltica; ela uma criao artificial do ser humano. O Estado esta criatura humana que sempre dever estar a servio da vida humana, a servio de cada indivduo. Se no estiver a servio, tornar-se- dispensvel. Tambm a tica precisou ser criada artificialmente pelos homens, pois no h moral, no h lei alguma, no estado de natureza, que o estado original. Quando no h norma, como acontece no estado natural, ningum deixa de cumprir a norma; assim todos podem fazer o que bem quiserem, e ningum far o bem e ningum far o mal. So muitos os filsofos modernos deste perodo racionalista. No podemos esquecer, por exemplo, o rigor do pensamento de Baruch Espinosa (1632-1677), para quem impossvel continuarmos aceitando a ideia de que existe um Deus e, fora dele, um mundo, e para o qual, como j o dissera Giordano Bruno, a realidade uma s. Podemos cham-la de Deus ou de Natureza. O que no podemos admitir a existncia destas duas realidades separadas, como se houvesse, contemporaneamente e separadamente, Deus e a natureza, ou como se houvesse Deus l em cima, fora, e a natureza, aqui, dentro. No h nada fora. Ressalte-se tambm a singularidade e a coragem terica de Blaise Pascal (1623-1662), certamente no to racionalista, e conhecido de muitos por sua insistncia em sustentar que no devemos ser to racionais, pois em geral o corao tem razes que a prpria razo no conhece. Para ele, h sempre uma tenso entre a realidade humana e a existncia de um ser superior, tenso que nunca ser resolvida simplesmente pela razo. Por outro lado, para Pascal, o ser humano muito frgil, sob todos os aspectos fsicos, mas esta fragilidade compensada por sua fora que reside na sua capacidade de pensar. O homem frgil como um canio... mas um canio que pensa. Outra fase da Filosofi