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FILOSOFIA COMO FENOMENOLOGIA (Apostila datilografada, texto original em alemão: Über Philosophie als Phänomenologie) Sumário Filosofia como fenomenologia O transcendente na fenomenologia Colóquio sobre V. van Gogh Exposição de Klee Solipsismo como fenomenologia da solidão Protocolo: Análise da questão da morte em Ser e tempo Protocolo: Discussão sobre formalização Protocolo de uma seção de seminário de Van Gogh: A Igreja de Auvres Solidez (Härte) como a essência da obra de arte Protocolo: Sobre a análise da morte em Ser e tempo Sobre a essência da obra: Imagem Protocolo: Análise da morte em Heidegger Uma questão depois de preleção Um Café limpo e bem iluminado: Exposição sobre texto de Hemingway Pergunta feita a Rombach depois de uma preleção Um trecho das aulas de Rombach: Análise de poesias de Hölderlin Outra aula de Rombach: espaço e tempo SOBRE FILOSOFIA COMO FENOMENOLOGIA

Filosofia como Fenomenologia (tradução)

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Apostila datilografada, texto original em alemão: Über Philosophie als Phänomenologie.

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FILOSOFIA COMO FENOMENOLOGIA (Apostila datilografada, texto original em alemão: Über Philosophie als Phänomenologie)

Sumário

Filosofia como fenomenologia

O transcendente na fenomenologia

Colóquio sobre V. van Gogh

Exposição de Klee

Solipsismo como fenomenologia da solidão

Protocolo: Análise da questão da morte em Ser e tempo

Protocolo: Discussão sobre formalização

Protocolo de uma seção de seminário de Van Gogh: A Igreja de Auvres

Solidez (Härte) como a essência da obra de arte

Protocolo: Sobre a análise da morte em Ser e tempo

Sobre a essência da obra: Imagem

Protocolo: Análise da morte em Heidegger

Uma questão depois de preleção

Um Café limpo e bem iluminado: Exposição sobre texto de Hemingway

Pergunta feita a Rombach depois de uma preleção

Um trecho das aulas de Rombach: Análise de poesias de Hölderlin

Outra aula de Rombach: espaço e tempo

SOBRE FILOSOFIA COMO FENOMENOLOGIA

O que é filosofia como fenomenologia pode ser discutido e esclarecido no que chamamos de “leitura filosófica”.

Quando é que lemos um texto filosoficamente? Ora, podemos ler um texto filosófico não-filosoficamente e um texto não filosófico, filosoficamente. Todavia, essa formulação deve ser compreendida corretamente: De imediato, parece como se houvesse “filosófico” e “não-filosófico”. Mas isso é problemático, uma vez tendo discutido e esclarecido a filosofia como fenomenologia, pode dar-se que não haja “não-filosófico”, ou melhor, que “não-filosófico” seja ele próprio um modo de “filosofar”.

Ora, tenho diante de mim um texto de Aristóteles. Há diversos modos de ler esse texto. Posso ler o texto diretamente e procurar haurir os pensamentos como os pensou Aristóteles. Também posso tentar ler Aristóteles na perspectiva ou a partir de um conceito fundamental. Poderia ler Aristóteles a partir e uma problemática que me interessa etc. etc.

Em todas essas possibilidades, mostram-se sempre de novo alguns momentos, que procuro esboçar aqui de forma rudimentar:

Obra; Pensamento dessa obra; Autor; meu pensamento.

Do “autor” posso perguntar: O que pensou o autor ao escrever essa obra. Ali não posso esquecer que aquilo que chamo de “o que pensou o autor”, em geral é o que eu propriamente imagino sobre [de?] “o que o autor pensou”. Atenção aqui!: Em que medida posso imaginar “sobre” ou “de” [?] que pensou o autor? Em todo caso, um fenômeno interessante aqui é que eu fale “sobre” [ou de?] algo (was). Pensamos, o autor e eu sobre esse “algo”. Ali eu deveria dizer com mais precisão: Como o autor pensa esse algo? O pensar do autor, portanto, é propriamente um “como” do “algo”.

As diversas questões e respostas do autor [ali, abstraímos as minhas questões e respostas co-implicadas] voltam-se a um pensamento, são por assim dizer um certo “como” desse “algo”. Mas esse “algo” não se dá como algo independe das questões [portanto respostas], mas se “constitui” por assim dizer nas questões e respostas.

O que se constitui então? De imediato, indicamos esse “algo” que se constitui como um objeto, como “alguma coisa” (Etwas). Mas logo percebemos que propriamente não há esse “algo”, que também não haveria questões como “alguma coisa”, de modo que houvesse simplesmente duas “alguma coisa” uma em confronto com a outra; ao contrário, o “que se constitui” é a força de tensão das questões e respostas. Isto é, o verdadeiro, a densidade, a evidência dos pensamentos. Precisamente essa força de tensão é que chamadas de modo impreciso de “o todo do pensamento”. O pensamento como o todo, portanto, não é esse “algo” para onde se dirigem os pensamentos, mas fundamento do mover-se da questão, que se estrutura no movimento correlativo do “algo” e do “como”.

Aqui não se pensa portanto “teleologicamente”. Pensa-se “constitutivamente”. Constitutivo significa aqui que, no questionar, a “questão” questiona a si mesma, de modo que questionar e questionado mostram-se ser o mesmo. O sentido da divisão, isto é, o significado do questionar enquanto questionar e do questionado enquanto questionado só surge tematicamente a partir desse “o mesmo”. A autoreflexão do questionar aniquila, por assim dizer, o próprio questionar, na medida em que questionar o questionar não é um questionar em sentido pleno. Essa constituição “criativa” é precisamente o “algo” e isso que temos em mente sob o “algo” como alguma coisa substancial é talvez essa “constituição criativa”. Algo como coisal nada mais é que uma interpretação dessa “coisa ela mesma”. Ora, se chamarmos a essa “constituição” de verdade, e a essa verdade, “obra” [medida], então obra será autodeterminação criativa enquanto “coisa ela mesma”: portanto, questionar perseverante na máxima radicalidade, a fim de que a força de tensão constitutiva se condense em obra. A obra é portanto ex-periência.

Espírito como si-mesmo (Selbst) é caracterizado em Kierkegaard como “único” (Einzige). Unicidade tem aquela “característica” que podemos designar como cume (Spitze) ou cume de irrupção da “decisão”. É incomparável, sem horizonte.

Essa determinação negativa, “incomparável, sem horizonte”, porém é provisória. Isso porque “unicidade” é no fundo algo assim como origem do horizonte e da comparação, de modo que essa negatividade tem de ser compreendida como “além”.

Ora, se como modelo para “unicidade” tomo o núcleo de força da “decisão”, a “unicidade” será interpretada na direção de “solidez1 nuclear”. Mas essa solidez me parece ser um modelo que serve melhor para a identidade em sua compressão, mas não mostra a vitalidade do espírito.

Espírito como único pode ser explicitado no modelo mundo. Curiosamente, mundo significa caráter de horizonte (Horizonthaftigkeit). Disso resulta que a negativa “sem horizonte” não é horizonte, mas horizonte ele mesmo; isto é, o caráter de horizonte em seu caráter de totalidade é precisamente esse horizonte sem-horizonte. “Unicidade” do caráter de horizonte significa: Fechabilidade (Abgeschlossenheit – conclusividade). Nada há fora dela mesma!

Como se estrutura essa “fechabilidade”? Através da estrutura-autorelacionante: é autosuficiente, autoclarificante, autodependente-reciprocamente, normatividade (Gesetzmässigkeit) correlativa.

Assim, um mundo é uma preleção (Vortrag). No começo de uma preleção coloca-se um pensamento. Um pensamento e não uma palavra. Só é possível colocar um pensamento. Uma palavra não pode ser colocada, pois não tem o modo de ser do colocar (gesetzmässig). Uma palavra salta. É pois a origem do espírito! Colocar significa o mesmo que: tomar o todo simplesmente como o aí (Dá). Ou melhor, pôr-aí a partir de si. Um pensamento enquanto pensamento já está estruturado em si, como mundo. Portanto, quando penso que no começo de uma preleção o orador pro-“põe” um pensamento, isso é um mal-entendido. Ele não o coloca como se coloca um vaso sobre a mesa! [Será interessante seguir um pouco a diferença entre pôr (legen) e colocar (setzen)...] [pôr, talvez, não seja possível com coisas intrahumanas. Apenas com coisas puramente naturais: a pedra está posta (liegt), não colocada (sitzt – não está acentada)!...]

A estrutura do mundo do pensamento condiciona o poder desdobrar-se do pensamento. Esse des-dobrar-se, esse poder colocar-se não significa porém uma creatio ex nihilo; justo porque o todo já está 1 NdT: Härte: solidez, têmpera, rigor, dureza, severidade. Descrever esse fenômeno que parece perpassar a apostila é um tanto difícil. Talvez se possa dizer: a concentração do deixar e fazer ser na unicidade a riqueza inesgotável do horizonte de ser, da doação de ser e vida.

colocado. Esse poder-se-des-dobrar tem algo assim como um “desenvolver-se a partir de um núcleo primordial”. Por assim dizer, nesse núcleo tudo “jaz” ali presente. Mas esse “jazer” (Liegen) é um corpo estranho no todo do modo de interpretação do “poder-se-des-dobrar”, na medida em que esse modelo é um modelo para “jazência” (Lage – situação) e não para “colocação” (Gesetzt). [Se faz necessária uma análise fenomenológica do jazer: o animal bestial jaz; o que nós chamamos de pôr (legen) é propriamente colocar-se. Quando “jazemos”, então é um caráter “bestial”! Colocar como manter-se-em-pé próprio do ser humano...2].

Um modelo melhor talvez fosse a preleção. Como começa pois uma preleção? O primeiro passo? Como se disse, no começo do início jaz um corpo estranho. Para que o caráter do colocar em pé se torne viável, é necessário “retomar” esse corpo estranho no movimento circular do debate discerniente, de modo que o todo se torne homogêneo. O problema então é o seguinte: como é possível algo assim como corpo estranho? Provisoriamente deixamos esse problema em suspenso.

Agora, à preleção: No impulso inicial da preleção lança-se um pensamento. O pensamento jaz ali diante de nós. Não transparente. Mas já uma espacialidade em si, com diversas valências dos direcionamentos remissivos. Isso demonstra que o pensamento não jaz ali como uma pedra, mas foi “lançado”, que em si já é um debater-se discerniente. Então vem o segundo pensamento. Aparentemente é “lançado” como o primeiro e jaz ali. Entabulamos comparações. Agora os tentáculos remissivos começam por assim dizer a se mover, mostra-se um movimento da remissão estrutural. O segundo pensamento ilumina o primeiro, e o primeiro, iluminado pelo segundo, ilumina o segundo num mútuo elevar-se, e essas elevações mútuas se iluminam mutuamente e assim por diante. Aí vem o terceiro pensamento, o mesmo processo; quarto pensamento, o mesmo processo etc. até a conclusão da preleção. Ali operam inicialmente “o modelo da jazência” e o mútuo “pôr” linear dos pensamentos; mas esse modelo é corrigido pelo “mútuo alavancar-se” dos pensamentos, de tal modo que o modelo: pensamento nuclear e seu desenvolvimento deve por assim dizer ser repensado. Esse repensar nada mais é que: o modelo “jazência” é empurrado para o plano de fundo e só estorva ainda como um início temporal pensado de maneira totalmente abstrata. Em vez disso, a estrutura de sentido do pensamento vem a ocupar o plano de frente. Ali, por assim dizer, o todo decorre em dois momentos: torna-se cada vez mais visível o movimento estrutural e a ossatura do poder-debater-se

2 NdT: Aqui, HH, faz jogo com as palavra alemães liegen/legen e sitzen/setzen. A distinção de fundo que parece querer se impor é que o primeiro par de étimos são mais próprios ao animal bruto e às coisas, como um pôr mero e natural, enquanto que o sitzen/setzen, colocar-se tem uma responsabilização própria humana de colocar-se e manter-se em pé por si e em si. A melhor tradução para Setzen seria estar em pé, plenamente disposto e aberto ao vir e devir.

discerniente, surge algo assim como uma ossatura do mundo, e visto a partir da “coisa “, eleva-se a plenitude do conteúdo de sentido.

Quando volto minha atenção a essa ossatura do mundo que se torna cada vez mais clara, espírito torna-se algo assim como “um mundo que se debate e se torna cada vez mais discerniente no movimento de remissão”, abertura infinita como totalidade. O “ser-fechado” do mundo adota o caráter de “ser a-berto”.

Mas se volto minha atenção ao conteúdo de sentido que se eleva cada vez mais, então o mundo torna-se algo assim como um globo cheio, cada vez mais intenso, sempre mais idêntico consigo mesmo, de tal modo que o debater-se consigo mesmo discerniente ameaça desembocar numa estância quieta (Stillstand). A direção se encaminha rumo à solidez! E se não mantenho plenamente presente o caráter aberto do mundo, esse direcionamento se contrai em “solidez” da jazência!

Isso me faz suspeitar que aqui estão em operação dois modelos distintos: modelo estrutural e modelo vivencial completo. Mas isso não é muito preciso: é certo que aqui operam dois modelos distintos, todavia não assim: um estrutural e outro modelo completo; mas assim: o modelo estrutural e o modelo completo eram por assim dizer dois momentos do mesmo. O novo modelo que surge agora, portanto, é precisamente isso que têm em mente os dois, ou seja, aquilo que perfaz de uma vez e concomitantemente a ambos. Esse novo modelo é precisamente o que chamamos de palavra, imagem, poesia. Os dois momentos mencionados são por assim dizer dois modos de interpretação desse novo modelo.

Esse novo modelo, que ora chamo de palavra, ora já não é mais nenhum modelo, mas a “coisa ela mesma”.

Então essa “coisa ela mesma” não pode ser interpretada como “jazência”. Tampouco pode ser interpretada como “si-mesmo” (Selbst). Contém curiosamente todo núcleo das diversas interpretações de si mesmo. Falando a partir da perspectiva das interpretações, é aquela meta que mantém em ação diversas interpretações. Positivamente: só se pode manter pelo fato de realizar-se perpassando através de diversas interpretações e “enquanto” se realiza. A coisa ela mesma é por assim dizer realização (Vollzug), ou seja, o próprio trabalhar. Desse trabalhar ele mesmo descende por assim dizer um universo de interpretação diverso, dentro do qual, de certo modo, surgem o mundo da jazência e o mundo da colocação. Ele é aquilo que perfaz a essência do “estar-ali-à-mão” da jazência, a o caráter de si mesmo da colocação (Satz). Ora, se eu permaneço apenas numa “parcela” da interpretação distinta, ou seja, no problema como S. e objeto, acidente e substância etc., a coisa ela mesma é aquilo que ali se tem em mente como objeto, como eu, como substância, como vida, como coisa. Mas é uma coisa

ela mesma que apenas se abre em pequenas instâncias. Cf. o modelo da fenomenologia: o sinal! (das Zeichen).

Fenomenologia é esse trabalho, e enquanto trabalho, fenômeno significa coisa ela mesma. Mas a interpretação da fenomenologia é o trabalho realizado a cada vez num pequeno local da decadência e quer dizer constantemente a coisa ela mesma. A interpretação acontece necessariamente numa das interpretações determinadas de mundo; e isso não sempre de maneira consequente e homogênea, mas num movimento de imbricamento vivo como ondas do mar.

A partir da coisa ela mesma, devem ser compreendidos também os três níveis da fenomenologia: mundo circunstante, ciência, fenomenologia transcendental. Foi só a fenomenologia histórica que levou a cabo a fenomenologia transcendental como uma relação levada à radicalidade, de modo a permanecer sempre no curso da autocompreensão. O que ela tem em mente, porém, é a coisa ela mesma. Mundo circunstante corresponde a jazência; ciência, à colocação (Satz); fenomenologia transcendental: à irrupção (Ausbruch), mas só irrupção. A fenomenologia constitutiva ainda está por ser produzida e foi levada à crise a partir da autocompreensão ou da estrutura dilacerante.

Nossa discussão jaz já numa estrutura totalmente determinada:

Estou sentado nesse sofá, com um livro em mãos, Ser e tempo. Encontro-me num quarto; estou rodeado por diversos objetos: Cadeiras, mesa; cigarros sobre a mesa, cinzeiro, fósforos, na parede estão dependurados quadros, pintura moderna, a figura da Madona, um busto do Cristo crucificado, tenho a meu lado um grande rádio com toca-discos, atrás do rádio, uma enorme prateleira com muitos livros, vejo livros sobre arte, pedagogia, filosofia. Na janela vejo um vaso com rosas; através da janela reconheço um longo caminho com névoa, casas vizinhas. Encontro-me num quarto de uma casa localizada no final de uma certa ruela de Freiburg; minha fantasia prossegue, para a Kaiserstuhl (Sede do imperador), nos arredores de Freiburg, delineia-se vagamente a imagem de toda a Alemanha, Europa, a Terra, o universo etc.

Uma mira bem de leve nisso tudo me mostra:

- Distingo diversos entes em seu gênero.

- Testemunhas com seu caráter testemunhal.

- Obras de arte: com sua dimensão determinada.

- Universo de livros: com sua complexa rede de remissões.

- Universo das plantas.

- Mundo pessoal etc.

– Também percebo que estou, por assim dizer, em meio a um emaranhado complexo, multiestratificado, diversificado de movimentos remissivos e iluminações intencionais.

- Percebo que esse complexo que chamo de mundo, de imediato, parece como se fosse um espaço, e então diversos objetos ali dentro. Mas então percebe-se logo que se trata de um entrecruzamento infinito de movimentos remissivos com suas implicações e explicações. Ali, os objetos não formam uma coisa à mão, mas por assim dizer um ponto de reunião, um ponto de convergência desses movimentos. O próprio espaço, enquanto espaço do mundo, é uma “intenção” de gênero bem determinado.

- Então percebo novamente que o modelo acima não é bem acertado. Os objetos são na verdade pontos de união. Mas não como se tivéssemos diante de nós a rede no seu todo e dentro dela pontos. Não, temos a cada vez apenas alguns pontos de união e isso circundado por um espaço de possibilidades. Cada iluminação e movimento está a cada vez em função do objeto sobre o qual nos concentramos agora. Nesse sentido, esse livro que está em minhas mãos, Ser e tempo, é concomitantemente ponto de união e presença da totalidade das remissões e intenções agora. É um bloco de implicações, a partir do qual promana uma explicação infinita de iluminações (Strahlungen) (interpretação). Na riqueza da implicação explicitada, esse livro pode novamente estar numa outra função para com outro livro, por exemplo, minha tese. Há portanto o movimento de um alcançar-se mútuo.

- Todavia, percebo também algo de curioso. Percebo que eu, enquanto este que está aqui sentado, também sou um tal ponto de união. Seguramente um ponto de união de uma complexidade alta e gigantesca. Mas também um ponto de reunião e objeto precisamente como os outros.

O transcendente na fenomenologia

Estrutura remissiva: Mundo.

Mundo como projeto da relação para consigo.

Relação para consigo como autoestrutura de quem questiona.

Os buracos no mundo como núcleo irredutível.

- Conteúdo

- Ser e estar à mão

- Sentimentos

- o escuro.

Colocação como possível clarificação dos buracos.

Modo deficiente como outra possibilidade de clarificação.

Buracos como pequeno lugar da morte.

Morte como non.

Non como transcendente.

Ou seja, Non como outro. Mas isso na visão da relação para consigo. O vazio, o universal, o antecipador como anúncio prévio do transcendente na relação para com o mundo.

O único caminho para o transcendente na fenomenologia: cf. chema.

Colóquio do Prof. Gosenbruch sobre V. van Gogh

22 de maio de 1965. Vincent van Gogh, Interpretação de quadro: Colóquio com Prof. Gosenbruch.

O colóquio não entrou logo na discussão dos quadros de V. van Gogh, mas na questão a respeito do núcleo da arte. Mas através disso, a respeito do quadro em geral, portanto, também bem concretamente a respeito do quadro de Vincent van Gogh.

A exposição do Prof. Gosenbruch me deu a impressão de que ele queria nos transmitir alguma coisa que ele via de maneira bem determinada e nítida, mas muito difícil e até impossível de comunicar àquele que não vê essa “coisa ela mesma” como “coisa ela mesma”. O que é propriamente isso que o Prof. Gosenbruch via e buscava nos ajudar para que também nós a víssemos?

Gostaria de determinar esse “o que” (was) “como” pude ouvir, compreender e ver.

Designamos esse “o que” como unidade. Não qualquer unidade, mas uma unidade bem determinada, pregnante da identidade de todo e partes, ou melhor: unidade como rigor-tensão vivo do todo nas partes e das partes no todo. Todavia, as “partes” e o “todo” só recebem seu real conteúdo de sentido da unidade de rigor-tensão, de tal modo que o “todo” e as “partes” são ao mesmo tempo também a própria unidade de rigor-tensão. Nesse sentido, paradoxalmente poderíamos dizer: o todo é partes e as partes são o todo.

A exposição tentou de algum modo comunicar essa “unidade” através de:

1. Crítica,

2. Menção a Goethe,

3. Mirando diretamente para os quadros

Ora “acompanhei” a exposição mais ou menos do seguinte modo:

De princípio me chamou a atenção: a atitude bem determinada da recusa constante que apresentava o Prof. Gosenbruch contra o “intentar-a-meta-de-ir-além-do-quadro” e contra a descrição:

1. O “intentar-a-meta-de-ir-além-do-quadro”:

a] como uma interpretação simbólica ou alegórica;

b] como um “transcender romântico, entusiástico, no qual se busca “por trás” do quadro algo de “fundamental profundo”.

2. A descrição:

a] Como uma inconsistência pueril sem compromisso;

b] Como uma classificação “impositiva”, “tipificadora”, que poderia muito bem recair numa mera estatística.

O que estava em questão nessa recusa?

Sua crítica a Heidegger, a resposta que ele deu a uma pergunta de Prof. Rombach na qual o Prof. Gosenbruch esclareceu a diferença entre uma interpretação alegórica e sua própria “interpretação”, a sequência de sua explanação, mostrou-me que as possibilidades de interpretação rejeitadas pelo Prof. Gosenbruch, a cada vez de maneira diversa, compreendiam equivocadamente as relações características entre “todo e partes” da unidade viva do rigor-tensão, e assim liquidando-as ou fazendo-as enrijecer num esquema ou numa tipologia. Nesse sentido, ficavam excluídas expressões como “entusiasmante”, “romântico”, “classissismo anêmico”, “estatística” etc. Ora: tudo isso era-nos muito claro, justo porque também nós rejeitamos essas interpretações. De jeito nenhum também nós queremos “intentar-a-meta-de-ir-além-do-quadro”, mas deixar aparecer o quadro, a imagem. Aquilo que chamávamos de descrição nada mais era que nosso esforço para demonstrar a unidade-rigor-tensão “todo e partes”, “deixá-las-ser” vivas.

Portanto: No essencial estávamos de acordo! A discussão seguiu então sobre o alcance dessa “interpretação”. O que o Prof. Gosenbruch expôs dentro de um quadro bem determinado, nós procurávamos estender e aplicar por assim dizer àqueles elementos do quadro.

A única diferença encontrava-se, pelo que me parece, nessa limitação: provisoriamente...

Mas quando chegamos na descrição concreta da imagem, onde o Prof. Rombach tentou “descrever” o quadro de Monet, o Prof. Gosenbruch desprezou esse procedimento, qualificando-o como “intentar-a-meta-de-ir-além-do-quadro”, como interpretação alegórica. Por que é que ele fez isso? Será ele não compreendeu o procedimento do Prof. Rombach?

Então, seguindo a sequência de quadros de Van Gogh, De Lacroix, Monet, depois comparando um quadro de paisagem de van Gogh e um outro de Cézanne, e depois ainda comparando dois quadros de van Gogh, o Prof. Gosenbruch procurou expor-nos como ele via o todo. Ali, em seu procedimento rigoroso, onde o Prof. Gosenbruch, por assim dizer, mantinha rigorosamente separados os diversos níveis do quadro, tive a impressão que uma vez ele analisava o quadro do ponto de vista da história da arte, ou causal, a partir de sua gênese, outra vez, a partir da matemática ou a partir do ponto de vista

psicológico etc., e então analisava ao mesmo tempo e de vez o todo a partir do conteúdo da totalidade de sentido. Senti faltar, portanto, por assim dizer, um método unitário. Tampouco pude ver logo “a partir de onde” ele “tinha” a visão da totalidade.

A discussão do Prof. Rombach com o Prof. Gosenbruch sobre o quadro de Monet, algumas observações do Prof. Gosenbruch, palavras como “realismo”, “frio”, deixaram-me desconfiado. Naquilo que dizia o Prof. Gosenbruch havia algo de atinente. O que era pois esse “que”?

Ele olhava bem para o quadro. Nos perguntava sempre de novo o que nós víamos ali. Ele até concordava com todas as observações que se referiam a particularidades, mas ao mesmo tempo simplesmente passava adiante. Por fim surgiu a palavra “indiferença”. Isso era, ademais, a designação dada pelo próprio Prof. Gosenbruch. As objeções, e especialmente todas as nossas tentativas de “determinar” mais de perto, de algum modo, essa “indiferença”, eram simplesmente qualificadas como “intentar-a-meta-de-ir-além-do-quadro”. Sua própria tentativa de nos mostrar o que ele “tinha em mente” era muito tímida, movia-se ciente e rigorosamente no esforço de tentar manter afastado o “intentar-a-meta-de-ir-além-do-quadro” de seu próprio modo de ver. No final o Prof. Gosenbruch disse mais ou menos isso: “A indiferença está aí, é o próprio quadro. Isso é invenção de Monet. Isso foi sua resposta a nossas perguntas: Onde? Como? De onde?, por quê?...

Sua objeção frente ao esforço de demonstração, bastante determinante, feito pelo Prof. Rombach caminhou na mesma linha. Esse via que da impressão global do escuro e do claro, do nebuloso e do preciso do quadro, a partir do comportamento das pessoas etc. provinha um movimento a partir do plano de fundo do quadro na direção do rosto e dos olhos do jovem.

Todavia, o Prof. Gosenbruch, simplesmente rechaçou essa observação como interpretação simbólica. Por quê? Pois não era nada mais que uma interpretação simbólica!

Aqui havia bem mais que um simples mal-entendido entre um historiador da arte e um filósofo. Pois na sequência desse rechaço o Prof. Gosenbruch falou do traço do pincel de Van Gogh, qualificando de certo modo como “romântico”. O que ele tinha em mente com isso?

Num do quadros de paisagem, Prof. Gosenbruch interpretou o traço do pincel de Van Gogh como um movimento inquieto da alma, que Van Gogh, por assim dizer, “colocou sobre” os objetos. Paralelamente ouvi algo como uma avaliação: é muito subjetivo! Mas num outro quadro de paisagem de Van Gogh onde aparecia um traço de pincel parecido (para não dizer igual), o Prof. Gosenbruch dizia que ali

estava melhor, que ali Van Gogh teria encontrado melhor a “unidade”. Onde estava, pois, a diferença?

Em minha concepção, a diferença estava no seguinte: o primeiro quadro de Van Gogh qualificado com o tom de “subjetivo”: expressava a “vivência”. As “coisas” eram por assim dizer ponto de apoio para essa expressão e impressão. Faltava aqui, portanto, a “unidade completa” “entre” a coisa (mundo) e o sujeito (eu).

Em vez disso, era precisamente essa unidade completa, que, apoiando-se em Goethe, o Prof. Gosenbruch chamava de “estilo”, “pregnância”: a saber, ‘recriar o todo da natureza através do todo do sujeito”. Isto é, as coisas, árvores, casas, céu, pelo fato de serem árvores, casa, céu, eram também o todo de “Van Gogh” ele mesmo! Essa unidade deu ao “quadro” uma consistência e precisão tensa, sem no entanto tornar-se rígido: solidez. O Prof. Gosenbruch chamava a essa “unidade” de “real”, portanto, “coisa ela mesma”. O que ele disse ficou muito “claro” – pelo menos para mim – no quadro de Monet.

A partir dessa “unidade” o Prof. Gosenbruch interpretava a “tentativa de interpretação” do Prof. Rombach. Essa interpretação era, portanto, muito subjetiva. Não era uma “descrição” do quadro, mas descrição da impressão e expressão. O próprio quadro não é impressão nem expressão, não é essa parte nem o todo, mas por toda parte e só “unidade”, “coisa ela mesma”: o quadro. As cores, os tons, os objetos não “movem”. Não “expressam”. Eram simples e meramente cores, tons, objetos. Mas enquanto quadro eram simples e rigorosamente a presença da “unidade”. O quadro como “parte” e “todo” e a própria unidade.

Por isso, seria absurdo querer empreender “nalgum lugar” dentro do quadro qualquer análise ou descrição. Já pressupor essa tentativa é uma compreensão equivocada da “unidade”. Haveria, porém, uma chance de empreender uma descrição: alcançar essa unidade-solidez (Härte compacto) como descrição. Mas então ela será simples e somente descrição ela mesma e não mais o quadro que ela “descreve”. Nesse sentido, um “movimento” só pode ser um movimento quando o movimento, por exemplo, um cavalo correndo, se tornar quadro. Então provavelmente seja possível compreender a afirmação que um Cristo sofredor só pode ser realizado num quadro de Cristo e jamais num quadro de uma oliveira: assim cf. a crítica do Prof. Gosenbruch a Van Gogh.

Portanto: A filosofia nada pode procurar no quadro. A única “possibilidade” de a filosofia ter algo a ver com o “quadro” – quadro no sentido de unidade-solidez – é, enquanto filosofia, alcançar o si mesmo próprio (Selbstheit) de tal modo que ela se torne unidade-solidez-filosofia. Portanto, que ela se diferencie radicalmente do quadro enquanto arte.

Mas se é esse o pensar do Prof. Gusenbruch [coisa que eu nego], então resulta o seguinte: Aquele que vê assim a obra de arte só pode ver, e isso “criativamente”, no sentido da “unidade”. A história da arte enquanto ciência, a interpretação da arte enquanto ciência, se quiser manter-se fiel a esse “parâmetro”, se quiser alcançar essa “unidade”, como próprio, deve seguir os passos de um Bense.

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Exposição de Klee

Em 27 de maio de 1965, Schweinfurt, Exposição Klee, Galeria da comuna de Schweinfurt: com Gandolf.

Penso que me ocorreu alguma coisa nesse dia: a imagem (das Bild): 9. Reconhecimento sexual de um rapaz (1918); 22. Ritmos do campo (1931); 63. Um músico preludiado (1940); Vollblut (Sangue íntegro3); Casas na encruzilhada (am Kreuzweg4). 1929.

Klee pinta a estrutura. Aqui, estrutura significa essência, e aqui, essência, horizonte. Mas, aqui, horizonte não significa uma ossatura vazia, mas mundo: vivo. Trata-se pois do movimento do “horizonte-mundo”: Jogo do mundo! Aparece como: plano de fundo da vivência! Se penso o “mundo” como os intencionais “ser-cada-vez-meu-total”, então deve ser tal que aparecem a cada vez em momentos de entonação diversos: uma vez a solidez, outra o instante, outra ainda a universalidade como conjuntura, portanto, na hipostatização.

Cada quadro, portanto, tem uma temática determinada! Klee é a própria estrutura da arte encaminhado-se ao tema. Interprete a universalidade de Husserl nesse sentido, por favor!

Portanto, Klee é o pintor da contemplação da essência! Essência!

Vou aplicar minha teoria da arte a Klee!

[Escrito a caneta

A função: Preleção inaugural de Prof. Dr. Rombach

Como venho eu “de volta”? O que é isso: A meditação (Besinnung) sobre a origem da função. Meditação significa: Questão.]

3 NdT: Rasurado Vollbrut o r está sobre escrito por l, Vollblut.4 NdT: Kreuzweg significa também via crucis.

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[Página inteira escrita à caneta]

a) O debate discerniente (Auseinandersetzung) do ente

b) A estrutura do horizonte do ente no todo

e

A-presentar (Vor-stellen)

Deve ser o mesmo

De que se trata aqui?

A questão pelo sentido do ser.

A questão pelo questionar sobre o questionar.

Donde – Para onde

O que

Junto a que – Como

Questão como ente

Questão como ente-no-mundo

Questão pelo mundo

Questão pelo ente Questão pela totalidade = reunião

Àquele que questiona = Se ergue e estabelece (Zustande kommt)

Se ergue e estabelece só naquele que questiona

O que é a questão Ser da questão

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O movimento do sempre-e-cada-vez-meu: infinitamente rumo ao objeto e infinitamente rumo ao aberto é como o instante de Nietzsche: é eterno retorno como círculo, ou melhor: linguagem. Dá o que pensar o que o anãozinho respondeu a Zaratustra: Zaratustra: “Crês, anãozinho, que esses caminhos se contradirão eternamente?”

O anão: “Tudo que é reto mente”.

Objeto (Gegenstand) como tempo = estância (Stand) = passado como recordação: momento de identidade; futuro como aberto: momento de diferença.

Instante como solidez: “Vontade de poder” n. 577.

“Contra o valor do permanecer-eternamente-igual (cf. a ingenuidade de Espinoza e igualmente de Descartes), o valor do mais breve e mais passageiro, o tentador brilho dourado no ventre da serpente vita –“

Objeto (Gegen-stand) como a guinada do pensamento de Husserl: portanto

De imediato: guinada como coisa-estância (Sache-Stand)

—> Transcendental – guinada de

Transcendental –> Transcendente =

Ob-jeto (Gegen-stand) como sempre-e-cada-vez-meu.

17

16.11.64

Solipsismo como fenomenologia da solidão

Existem momentos na vida onde a gente é como que assaltada pela náusea. Náusea, porém, não é o sentimento fisiológico de ter Ekel (nojo) de algo. A essência da náusea é a Langeweile (o enfado, o tédio). O tempo se torna tão longo, tão longo na espera de algo que me surpreenda, que parece parar. A estrutura desse Langeweile (enfado) desmascara primeiramente a minha Haltung (postura) de Zweckmässigkeit (teleológica). O Augen-blick (instante) está nessa estrutura sempre em função do Zweck (fim). O tempo é linear, composto de três momentos que se entre-engatam e se constituem): passado, presente e futuro. Por isso, o enfado aumenta quando procuro sair dele, digamos procurando diversão. Pois a diversão ou o trabalho etc. somente faz ressaltar essa estrutura linear do tempo, e a respectiva tentativa de reprimi-lo desperta novas finalidades nas quais, propriamente, não estou interessado, justamente porque espero algo de “maior”, “mais útil” etc. A pergunta Quo Deo é uma pergunta de enfado. Haveria pois dois modos de paliar de algum modo o enfado: Primeiro: Estabelecer por assim dizer, pela disciplina, uma meta e obrigar-me a organizar nessa direção minha temporalidade. Segundo: Sou de certo modo possesso por uma meta, acredito nela. Nesse caso não se pode dizer com precisão “eu me entedio”. Esse estado só pode tornar-se em enfado se esse ideal por assim dizer se achata. Mas em ambos os casos, quando o ser-da-meta já não tem mais em si nenhuma força motivacional, se abre sob meus pés a estrutura da horizontalidade, que eu chamo de estrutura bidimencional.

Quando, no tédio, procuro “sustentar” diretamente essa horizontalidade de sua estrutura, acontece algo de curioso: a temporalidade linear torna-se em abismo (sem-fundo – abgrund) ou no melhor dos casos em instante. Mas esse in-stante se manifesta como um sentir a pressão ou do sem-sentido. O tempo para. Já não corre. Nessa contenção do instante vazio enquanto rigidez, como vazio, como humor do nada, abre-se o soli-ipsismo como solidão.

Mas solidão não é quando me sinto só. Há, pois, um ser-estar-só que nada mais é que ser-estar-excluído dos outros. Enquanto sofro por estar só, ainda não estou-sou só estruturalmente. O desejo de estar com o outro, autocomiseração por estar só etc. sempre pressupõe o outro, como um valor, um des-valor etc.

Aqui surge algo sobre o que preciso me concentrar. Ser-estar-só no sentido de ser-estar-isolado não é a mesma coisa que ser-estar-só do desejo de estar com o outro, digamos, por exemplo, com a pessoa amada. Mas os dois “estar-sozinho” tem algo em comum: na medida

em que considero os outros no meu horizonte como diversos de meu ego-centro. Vendo com mais propriedade, o outro enquanto o transcendente da solidez, destroi por assim dizer esse ser-estar-só, justo porque a solidez destroi a estrutura horizontal desse ego-centro. Nesse sentido, para os amantes, no sentido da solidez tridimensional (isto é, pessoa), não há solidão, justo porque esse ego-centro não existe. Só existe pessoa como outro, a saber, como meio. Talvez seja por isso que: duas pessoas que se amam pessoalmente, isto é, no duro (hart) permanecem sempre no meio e no sustento do instante como plenitude. Jamais se entediam. A distância e o tempo não tem qualquer importância aqui, justo porque a solidez desfaz a horizontalidade da espacialidade e da temporalidade.

Isso significa: o enfado como ser-estar-só e o enfado como soli-psismo, no fundo, são uma e a mesma coisa: a horizontalidade. Mas no vazio do enfado fortalece-se a angústia. A angústia, portanto, é a falta de distância como não-outra-coisa-que. Mas justamente nessa angústia da não-distância se mostra o si-mesmo, não como plenitude mas antes como vazio. A superação do vazio é a radicalização do vazio. Quando alguém fala de angústia, ou fala que está angustiado, enquanto não for radicalmente a angústia, ele fala de angústia. A angústia é a plenitude do vazio, tão plenitude que o vazio se torna plenitude. Ou poderíamos falar precisamente assim: a angústia é o vazio do vazio, tão vazia que o vazio em sua vaziez torna-se plenitude. Nesse sentido, a radicalização da angústia, da solidão, portanto, é morte. Por isso dizemos muitas vezes: é uma angústia mortal; mas quando está uma angústia mortal então estamos no in-stante do ser-plenitude, de modo que temos a vida. A vida portanto só pode ser “possível” no sentido de necessidade se na morte me entedio mortalmente. Esse perseverar no vazio da horizontalidade, portanto, da temporalidade, é precisamente a condição da vida enquanto vitalidade, portanto, necessidade-plena-de-sentido.

As dificuldades da vida, sobretudo se essas significam agitação, burocracia, disciplina, ordem etc., trazem consigo a estrutura da temporalidade como estrutura de remissão no horizonte. O respectivo fracasso nesse sistema é julgado pelo outro como incapacidade de desempenho. Essa incapacidade de desempenho, porém, é por assim dizer o lugar onde a estrutura horizontal é fraca. É ali então que irrompe a angústia. Visto a partir da morte, portanto, essas dificuldade são muito bem-vindas. São estâncias da sophia. A premência da técnica (duas dimensões) portanto torna-se em guinada-necessária, quando se torna de tal modo necessária que não posso outra coisa, no sentido de que não tenho qualquer outra possibilidade em mim: isso sim é soli-psismo!

Em minha opinião, portanto, é absurdo dizer: deveríamos casar por causa da estrutura pessoal de nossa natureza. isso porque o ser-pessoa tridimensional só aflora onde eu radicalizei na angústia da morte o vazio do solipsismo. É só então que alcanço o plenitude do

ser-outro. Mas então: não há qualquer contraposição entre estar só e estar com o outro, pois o fundamento do solipsismo é o outro, e o outro está no fundamento do solipsismo. O ser-pessoa não é um teatro. O vazio do solipsismo pode ficar encoberto para alguém, quando vivo na sociedade por assim dizer com outros. Aquele que vive sozinho na sociedade talvez sinta mais a solidão. Aquele que vive na sociedade não a sente. Mas ambos estão igualmente sozinhos em seu enfado, porque ambos vivem exatamente a mesma dimensão horizontal do horizonte. Os dois são soli-ipsi.

No problema da solidão não está em questão o estar-ser-só ou estar com outros. Está em questão apenas a dimensão, a estrutura íntima do si-mesmo: trata-se portanto de autoconstituição.

Só que aquele que sente cientemente a solidão encontra-se talvez mais próximo da fonte da morte, na medida em que o humor do luto, da melancolia, do afã (todos humores que chamamos de românticos) são um corpo-estranho na dimensão horizontal. Nesse sentido, só é possível superar o romantismo através da solidez da morte. Assim, o caminho se desdobra em quatro estágios: romantismo, empirismo, romantismo empírico, solidez.

P. 19 Protocolo de um seminário de Frl Röhrig

[Análise da questão da morte em Ser e tempo]

I. Colocação da análise da morte no contexto conjuntural de Ser e tempo

No contexto conjuntural de Ser e tempo a análise do fenômeno da morte assume uma posição central.

Formal: a questão da morte resulta da idéia central do livro como um todo: a idéia da existência como horizonte para a questão pelo sentido do ser;

Do ponto de vista do conteúdo: porém, as coisas são invertidas. A morte é experimentada originariamente como fenômeno de uma possibilidade privilegiada do Dasein, e essa experiência precede a idéia de existência. Dasein é compreendido a partir de morte. (O que significa “morte” aqui ainda deverá ser demonstrado). É só a partir da essência da morte que se poderá compreender, a partir da perspectiva do conteúdo, a estrutura da existência.

De acordo com o duplo modo no qual pode se concretizar o Dasein – próprio e impróprio – também a morte adota duas perspectivas de mirada.

Por um lado no medo da morte, por outro na angústia da morte.

Até que ponto no medo da morte, impróprio, se atinge a morte como fenômeno em geral, e não antes como mera privação de vida numa vazia formalidade, encobre o próprio fenômeno, é coisa que virá mais adiante.

A análise da morte no Ser e tempo interpreta o fenômeno na perspectiva de como está implicada nesse enquanto possibilidade de ser do respectivo Dasein. Com isso, ontologicamente, se está às voltas com a existencialidade da morte.

II. Introdução formal na questão da morte segundo Ser e tempo

O esclarecimento da possibilidade da compreensão do ser, que é ela própria uma determinação existencial do Dasein, exige uma interpretação originária desse ente no que tange a seu ser. Ali é preciso trazer à mira o todo desse ente temático. O todo estrutural da constituição do Dasein é apreendido como cura, constituída por existência, facticidade e decadência.

E uma vez que o acento especial da análise na perspectiva de sua questão fundamental pelo sentido do ser em geral repousa na compreensão do ser, mas compreensão está baseada

preferentemente no momento estrutural da existência, a pesquisa toma como fio condutor a “idéia de existência”. Existência define-se primariamente como um adiantar-se (Sich-vorweg), o que demonstra um poder-ser, o qual por sua vez pode encontrar sua modificação impropriamente-aberto ou propriamente-decidido.

Se a análise da compreensão do ser deve ser “originária”, então não deve permanecer estacionada no modo da cotidianidade; exige a demonstração de um poder-ser totalidade de modo próprio.

Existência significa: enquanto poder-ser compreensivo, o Dasein é o que está a si mesmo em questão em seu ser. Mas se a existência determina o ser do Dasein, e sua essência é co-constituída pelo poder-ser, então o Dasein, enquanto existe, deve, podendo-ser, a cada vez ainda não ser algo. Enquanto é, ao Dasein fica-lhe ausente sempre algo que pode ser e tornar-se. Mas a esse ficar ausente pertence o próprio fim. O fim do ser-no-mundo é a morte. Esse fim – pertinente ao poder-ser, isto é à existência – determina a cada vez a possível totalidade do Dasein. Mas como poderá o Dasein ser seu fim? De outro modo não poderá ser total; e se não pode ser total, então frustra-se uma originária interpretação ontológica do Dasein, pois precisa de uma experiência existencial fundamental, que parece não ser dada no caso da morte. É bem verdade que, com o fim do Dasein suspende-se também a ausência que falta ao Dasein, e com isso se daria uma possibilidade de totalidade, mas isso significa igualmente a perda do ser do Da e assim a aniquilação de qualquer possibilidade de experiência do ser-no-mundo em geral. Assim, parece que a base da impossibilidade da experiência da morte reside no próprio ser do Dasein e assim também a impossibilidade de uma experiência ôntica da totalidade, sem a qual, porém, tampouco se poderá determinar ontologicamente o Dasein em seu ser-totalidade. Todo princípio de Ser e tempo fica assim ameaçado.

III. A “realidade” da morte

A morte como fim do poder-ser, do ser-no-mundo, significa o fim da possibilidade de experiência. Mas como pode ser “cada vez meu” esse fim, onde tem sua realidade, se não se manifesta essencialmente no Dasein, de cujo fim próprio é. Não pode atingir o Dasein, pois ser atingido por ele significa: ser privado de toda possibilidade de ser atingido. E no entanto a morte se apresenta como o fim do ser-no-mundo. No medo da morte, o Dasein teme pelo seu fim. Mas esse medo compreende o próprio fim? O medo acende-se no fim de outros, em casos de morte. Experimenta-se uma perda, mas não a perda do próprio ser. Assim o Dasein vê a morte como um evento a partir de fora. Esse evento tem sua realidade, mas não como realidade de “morte cada vez minha”.

Se o Dasein permanecer parado no evento da morte, interpretando assim também seu próprio fim, teme por seu fim sem se dar conta

que esse fim, enquanto cada vez seu, não pode mais ser, uma vez que “ser” significa estar implicado no Dasein.

Todavia, o finar de todo Dasein é um fato inevitável. Na angústia da morte essa facticidade se dá a compreender com toda nitidez. Enquanto assim compreendida, ela possui seu lugar na estrutura da própria existência. Enquanto o Dasein se projeta para suas próprias possibilidades, e sempre já se projetou, essas vêm à luz em sua respectiva vigência (Jeweiligkeit). É só na relação para com elas, que as mesmas são “cada vez minhas”. São enquanto significativas.

O fim do Dasein é uma possibilidade cada vez própria, e só é assim na medida em que o Dasein volta-se para seu ser; ou seja, a morte como minha morte só tem realidade, é “fenômeno”, no ser para a morte.

Ser para a morte, porém, significa existencialmente: morrer. Se a morte só está e é no morrer, então o medo da morte, que interpreta a morte como mero fim categorial, de modo algum é um fenômeno do Dasein. O medo da morte assim compreendida não tem razão de ser. Mas, enquanto fenômeno do “medo”, se ele próprio for um fato no Dasein, então isso mostra a possibilidade de um equívoco na interpretação do próprio Dasein. Isso se dá na mera impropriedade. No medo, o Dasein se interpreta como algo-à-mão, desperdiçando assim a estrutura essencial de si mesmo. Uma análise da morte apropriada ao Dasein tem de atingir a morte como um fenômeno positivo, ou seja, em sua realidade. Com isso se impõe a questão da morte como questão pelo sentido de “morrer”, como uma possibilidade de ser cada vez própria. Enquanto pertinente ao Dasein, essa possibilidade tem de ser explicitada existencialmente.

IV. Morte como possibilidade da impossibilidade

Heidegger determina a morte experimentada na angústia de maneira ontológico-existencial, da seguinte maneira:

“A morte como possibilidade é a possibilidade da impossibilidade de toda e qualquer relação, de todo existir”.

O que significa essa caracterização?

Enquanto é, Dasein é existência.

Esse título ontológico significa primariamente um ser-para-si-mesmo, que designa um confronto discerniente interno, como o que é o Dasein. Dasein é irrupção de uma diferença, e quiçá de tal modo que, enquanto essa diferença, é confrontado consigo mesmo, que tem de se assumir constantemente em seu ser. Nessa assunção é.

Dasein tem de ser o que ainda não é, e só é nesse para-e-em-direção-de-si, o que porém não pode ser compreendido temporalmente.

O por-causa de si mesmo designa uma abertura que só abre espaço para possibilidades respectivas, isto é, existência possibilita a si mesma.

O esse da possibilitação é um fato dentro do qual o Dasein se deu infinitamente, no entanto, de tal sorte que de nada mais dispõe além dessa dadidade ela mesma. Na facticidade de seu que (dass) é igualmente infinitamente retraído e ali se encontra sua finitude.

Infinitamente como possibilitação é igualmente o fundamento negativo de si mesmo: o Non próprio da infinitude, isto é, finito. Enquanto finito é determinado pela morte. Morte é mediação de seu ser-possível, a impossibilidade de todo e qualquer relacionar-se-com. Essa impossibilidade, por seu turno, é a única que possibilita o poder-ser, visto que poder-ser só pode ser finito. Não há possibilidade infinita. Existência é finita.

Sendo-possibilidade, o Dasein é sua própria impossibilidade, vista pictoricamente a existência é o lugar de cruzamento de non e esse, e isso significa: é moribundo (sterbend).

O morrer determina existenciariamente o Dasein e não o contrário.

Dasein é como confluência de entrecruze de dois princípios inconciliáveis, que a partir de sua inconciliabilidade fundamentam o nexo estrutural específico da existência como nexo de juntura do que não pode ser juntado. Onticamente, essa cruz se concretiza como realização da morte.

23

Protocolo da reunião de 08.02.1967. Palestrante: Herr Brendel [esse nome está riscado a caneta; ainda a caneta: Antes: Discussão sobre formalização]

Formalização é a realização do ver como tematização das forças formadoras cósmicas. É ingresso no movimento da gênese e inter-esse nela.

No jogo das formas em suas possibilidades o olho se torna livre como transparência: é o ver como luz límpida, que na realização do jogo mútuo das formas vem à autopresença como configuração (Gestalt).

Isso acontece mais ou menos assim:

No começo está um certo dado-prévio através de um intercâmbio livre das possíveis formas que me são permitidas de imediato. Lanço-as umas contra as e nas outras numa interpretação.

Esse jogo mútuo opera duas coisas: dissolve o caráter de estar à mão da forma-final fixa, abrindo novas possibilidades-formais. O espaço de jogo torna-se cada vez maior, e sempre maior se torna também a possibilidade de jogo e a trama formal.

De princípio esse jogo mútuo se dá um tanto arbitrário, tateante, escabroso. Quando o espaço de jogo se amplia, e o jogo se torna mais fluente e intenso, do próprio jogo começam a brotar: aviamentos, orientações: a normatividade (Gesetzmässigkeit). O jogo mútuo experimenta uma densificação rumo à necessidade. O jogo se configura a partir de si.

A máxima elevação dessa densificação é a configuração originária: a saber, a imagem.

A imagem é portanto a cristalização absoluta do movimento das forças formativas ou do jogo mútuo das formas, que por assim dizer vêm à autopresença na total-unidade pontual e consistência-densidade dessa configuração.

Enquanto a total-unidade pontual das formas, a configuração é a forma das formas, a concentração originária de todo formar e de todas as possibilidades de formas. Mas enquanto concentração não é um estreitamento, mas concreção originária viva e presença de todas as formas e possibilidades de formas. Pois é o jogo mútuo das próprias formas. É algo assim como o postigo (buraco da fechadura) que libera o olho, renova-o “para” a presença genética de todas as formas e possibilidades de forma. Essa presença não é um amontoado de formas, tampouco algo assim como possibilidade horizôntica onde se encontram as formas, mas o jogo mútuo das

funções vitais, as únicas que deixam ir as formas em sua respectiva concreção, ilumina-as, as deixa respirar enquanto configurações e totalidade da gênesis. Mais precisamente: A configuração é essa mesma totalidade enquanto ver. Assim, só pode ser “vista” como realização. Enquanto realização, se estou vendo assim, sou a própria configuração-totalidade. Nesse sentido, já não tenho a imagem diante de mim; não há o pintor e sua obra, mas uma identidade-realização radical como ver em geral, como compreender em geral: o contemplar.

Algumas consequências dessa “concepção de ser”:

- A identidade-total-unidade toda própria: cada configuração em sua “vigência própria” (Jeweiligkeit) é a configuração como tal, a pura e simples totalidade. Cada configuração é radicalmente idêntica com a “outra” pelo fato de ser de ponta a ponta a totalidade em sua propriedade (Selbstheit) e exclusividade cada vez próprias. Em cada configuração, em sua unicidade, tenho a mesma totalidade em identidade rigorosa. Isso significa, por exemplo, que num sorriso enquanto sorriso, vejo necessariamente o pranto como pranto, e vice-versa.

- para a concepção da arte:

- Arte é exercício de ver em geral.

- Arte é a universalidade do ver ou do compreender em geral e já não mais individualidade-obra.

- Originalidade e ausência de plagio, não são marcas caracterizadoras da arte. Está em questão apenas a realização-identidade transparente do ver

- Nesse sentido: nada há que não possa ser arte. Ou seja, arte torna-se sem-arte e vice-versa.

Do seguimento da discussão só anotei a proposta interessante: melhorar Mestre Eckhart através do modelo de Klee: Mestre Eckhart pensou a total-unidade na identidade Deus-homem (ou mundo). No entanto, ele não pôde ver que a única possibilidade de permanecer no meio-da-total-unidade é o exercício, portanto, a realização da mobilidade enquanto ver.

Gesicht einer Blüte (O rosto de uma floração) (1922). Grohmann, p. 185.

Os elementos figurativos de fundo da imagem são: Ponto e seta. Ponto como repouso. Seta como movimento. O ponto chega a movimento e cria a síntese: seta-ponto, portanto: repouso movimentado ou movimento em repouso. Ponto, seta e seta-ponto chegam ao mesmo tempo ao movimento do impulsionar (Schieben =

impelir) No impelir, se movem e no entanto continuam pendentes em si mesmos: repouso movido como crescimento. Desse movimento de crescimento se desenrola por assim dizer o rosto da floração para a terceira dimensão da folha, enquanto caminhar para o aberto do universo-planta.

Também as cores e os tons dizem precisamente a mesma coisa: na contraposição de verde azulado e amarelo alaranjado surge um empuxo amarelo que recobre a imagem com um véu suave de um estímulo (Reiz) contido. A imagem é crepuscular e no entanto clara, indefinidamente fina, uma espécie de transparência opaca, um turvamento filtrado. Tudo isso confere à imagem algo assim como uma pulsividade desapaixonada, repouso anelando cores, terrabilidade lúcida. Esse estímulo (Reiz) contido anela por frescor, que caminha para o aberto no amarelo da floração, sossegada, calma e claramente.

O rosto de uma floração é portanto a configuração do caminhar para o aberto enquanto crescimento.

Palestra: Expressão de cor: proferido por Herr Brendel

Östlich-süss (doce-oriental) (1938), Grohmann, p. 331

A imagem está construída de tal forma que as linhas, figuras e cores configuram a forma fundamental “equilíbrio”. Isto é, o princípio fundamental da imagem é cinza, onde os extremos e as polaridades se suspendem no ponto-zero absoluto do equilíbrio, ao mesmo tempo como começo e meta, como coesão em repouso, como compensação equilibradora entre vida e morte, estática e situação ou presença reunida: a saber, “oriental”.

Ernste Miene (Gesto grave) (1939), Skira, p. 106.

A imagem consiste de segmentos arredondados em forma de barco ou de meia-lua, apoiando-se mutuamente em sustentação muito frágil e lábil. Também as corres expressam essa fragilidade: as cores azul e amarelo-limão, finas, leves, dos segmentos inferiores mantêm precisamente ainda o equilíbrio frente à cor cobre, massiva e pesada dos segmentos superiores. Através dessa fragilidade e esse vacilar (Wackligkeit) age em geral através do escuro das cores pretas. Toda a imagem diz: é precisamente ainda possível! É o equilíbrio inseguro, recostado o mais pontiagudo, o instante do silêncio mortal frente a um Fiasco, o momento-raio instantâneo do deter-se frente ao despenhadeiro, o questionável jogo ousado até ao extremo. Dessa culminância extremada do jogo quase insuplantável, que não pode durar por muito tempo, surge a possibilidade: Gravidade. Gesto grave é a frágil linha limítrofe, infinitesimalmente delgada, entre alegria (Heiterkeit) do jogo arrojado e do pathos da tragédia.

A palestra buscou expor o valor expressivo das cores de maneira indireta: a saber, por meio do conteúdo enunciativo dos outros elementos da imagem. Esse método, porém, só poderá funcionar nos casos em que se dá uma total correspondência entre a enunciação da cor e a enunciação dos outros elementos.

P. 255

[Escrito a lápis: Protocolo de uma seção de seminário de Van Gogh]

A Igreja de Auvres – 1890 (p. 113)

A panorâmica geral

A imagem consiste de duas cores fundamentais: azul e amarelo.

Essas cores não estão divididas justapostamente no plano da imagem, tampouco servem como meio de configuração dos objetos ou das formas, mas:

As cores azul e amarelo estão “aí” numa diversa densidade de presença e massa, seja na límpida profundidade do azul do céu, na abertura despreocupada e infantil do vibrante amarelo ou na alegria cordialmente rude, ingênua do vermelho-laranja; seja na mediação do verde-claro ou do azul-esverdeado; seja na densidade da fusão do marrão-azul, do marrão-verde, do marrão-amarelo, do marrão-azul-amarelo etc.

Os objetos, as formas e configurações são, por assim dizer, os momentos de densificação das cores básicas.

Mas as cores básicas azul e amarelo estão “aí” numa vigência toda própria de presença. Propriamente: a cor originária é o azul. Perpassa tudo, está “aí” por toda parte.

Em sua pureza e profundidade imediata, o azul forma a metade superior da imagem: esse azul é o céu:

Profundo, calmo, entregue-solto, até carregado de forma estranha, perpassado por contrastes densos. Os locais densos lembram algo assim como o início imóvel, ainda indeterminado, do ponto de concentração de redemoinhos. Entre esses densos locais vão se delineando de forma bastante vaga as manchas azul-claras, que em vez de formarem aquele plano de fundo do céu brilhante claro-vibrante, conotam ser algo como dimensão branca, a-dimensional do vazio.

O céu azul profundo é carregado e estranho, mas num sentido bem preciso: não assim como se fosse estranho de forma opressiva ou angustiante (angústia = estreiteza). Pelo menos, não apenas isso. Isso porque o céu é igualmente calmo, silencioso e entregue-solto. E no entanto, a gente não ficaria tão surpresa se de repente irrompesse uma tormenta.

5 NdT: Aqui, no miolo, se vê o tronco de algumas páginas que foram rasgadas, talvez 5.

A não-familiaridade (estranheza) do céu repousa antes na profundidade paradoxal da a-dimensionalidade, na autoproximidade sem proximidade e distância, na gravidade sem peso, no fechamento sem dureza da consistência, na abertura sem liberdade. A profundidade do azul é a profundidade do branco.

Esse azul celeste é a base profunda da imagem.

O azul celeste, em sua profundidade e pureza imediata está ora novamente “aí” nas janelas da igreja. Todavia, sem aquele movimento iniciante dos remoinhos, mas um azul bem denso, simples e mero azul profundo, quase violeta profundo (violeta = azul + vermelho). Dito com propriedade, esse azul-profundo não está “aí” nas janelas, mas: está por assim dizer preso e contido nas delimitações (Schranken) da espacialidade da igreja.

O azul-profundo do céu contido na igreja espalha-se no verde-azulado das sombras da igreja, e até preferiria dizer, “salta para lá”, abre-se e desaparece na alegre vibração (Heiterkeit) despreocupada do verde-claro (Hell-gründes6) e amarelo da grama, do campo de cultivo, do caminho do campo.

O amarelo é pois a abertura ingênua da criança própria do azul celeste a-familiarmente profundo, como o plano de frente do céu: é a terra como campo de cultivo do caminho do campo.

O amarelo vibrante forma então a metade inferior da imagem, imperando nos caminhos do campo, nas gramas, no campo de cultivo. Trepa por assim dizer pelas paredes da Igreja acima, nos telhados, fundindo-se no azul presente em toda parte, “coisifica”-se em marrão das casas, irrompe aqui e ali no laranja-vermelho-amarelo claro, quase sorridente, sobe pelas paredes da torre, cada vez mais fino, espirituado, densificando-se por fim no delgado cume amarelo claro da torre.

No centro da imagem está a Igreja. É a confluência emarranhada, e no emarranhado ao mesmo tempo harmônica, e a fusão feliz entre a profundidade do azul celeste e a ingenuidade e alegre vibração (Heiterkeit) do amarelo das plantações e do campo.

No que diz respeito ao movimento das cores:

O azul profundo na pureza imediata propriamente não se move. Adensa-se, por um lado ameaçadoramente, quando começam a formarem-se os remoinhos, por outro lado, simples e pictórico nas janelas da igreja, e por outro salta ludicamente para as gramas na sombra da igreja.

6 NdT: Hell-grundes, pelo contexto é evidente aqui um erro de digitação. Apesar de a palavra fazer sentido como é grafada Hell-grundes (do fundamento-claro), deve ser Hell-grünes, verde-claro.

Onde o amarelo vibrante tem seu predomínio de vigência, delineia-se um movimento, que é propriamente mais um fluir lúdico, um abrir-se vibrante. E onde o amarelo se funde com o azul no marrão do edifício da igreja, o amarelo flui despreocupado para cima e para baixo e salta em irrupções cordiais, amisto-humanas.

Solidez (Härte) como a essência da obra de arte

A obra de arte é a palavra da solidez-singular-isso-aí, na medida em que [é] a saga-con-teúdo (coisa) do todo-e-cada-vez-meu oriunda do lançar-se do movimento centrifugal e ao mesmo tempo centripetal do “trabalho”.

Trata-se portanto da plenitude de sua possibilidade e a possibilidade de si mesmo. É possibilidade-de-plenitude e plenitude-de-possibilidade.

É o chegar a bom termo sem lacunas do si-mesmo (Selbst): é a boa-aventurança.

Enquanto a coisa em causa da solidez-singular-isso-aí, a obra de arte é a própria consistência, é o caráter do fechado em si mesmo. É a própria solidez.

No entanto, há o grande perigo de interpretar essa solidez da obra de arte de maneira “rija”. Essa solidez (Härte) não sofre qualquer contraposição contra a abertura, crescimento, densificação. Pois é sempre de novo o próprio movimento novo. É o instar (Inständigkeit) do movimento de transcendência. Isto é, para-além-de-si.

Dito a partir do modo de consideração unilinear: o movimento centrifugal redutivo transcende a respectiva obra; na medida em que a destrói, abre novas dimensões. Mas esse abrir não é um abrir-se arbitrário para a possibilidade que já estivesse aí, mas é simplesmente o cume do movimento centripetal. O austero cume, onde o movimento centripetal se pontualiza faz saltar a obra de arte e nessa obra abre-se o horizonte epocal para o criar enquanto possibilidade de nova-criação.

Com outras palavras: a obra de arte coloca em jogo sempre e respectivamente cada vez de novo toda sua obra em função do novo: em função do cume. É por isso que chamamos à obra de arte de: desempenho de cume.

Nesse salto originário do cume acontece o recolher como a identidade do criativo.

A saga do cume diz sempre o mesmo. É independente da interpretação. Ao contrário, é a interpretação que recebe sua sustentação da solidez. Essa palavra é ora a medida. Medida vigente a cada vez. Enquanto medida é epocal. E enquanto epocal, pode julgar por assim dizer a outra história.

P. 28

[Sobre a análise da morte em Ser e tempo]

Protocolo do 4a. reunião do colóquio: imagem e conceito em 05.12.1963.

A conferencista: Fräulein Röhring

O tema: A análise da morte em Ser e tempo.

Peço desculpas por esse protocolo.

Esse protocolo é um tal protocolo que não é nenhum.

Preciso justificar-me.

Por três vezes tentei reproduzir no protocolo o conteúdo da última reunião. Ali não pude me livrar de um certo “humor” de má consciência: se estaria de fato reportando o que fora discutido na última reunião.

A fim de não apresentar a vocês o produto de minha própria tecitura como se fosse o real conteúdo da conferência da Srta. Röhring, pedi à Srta. Röhring para permitir-me ler a conferência. Depois de conversar com ela sobre o conteúdo da conferência, convenci-me de que seria melhor eu não escrever realmente um protocolo. E isso por causa do que vou expor a seguir:

Toda a palestra está cientemente focada na última parte, que traz o título “morte como possibilidade da impossibilidade”.

Essa última parte que perfaz o núcleo da palestra foi formulada de forma densa, lapidar e muito abstrata, de tal modo que a compreensão da palestra se tornou mais ou menos difícil.

Essa formulação lapidar e abstrata tem todavia sua própria justificativa.

A formulação abstrata tenta evitar um determinado perigo de interpretação, a saber, o perigo de perder de vista o verdadeiro tema da conferência através do muito falar e muito visualizar, confundindo-o com os fenômenos a serem visualizados.

E visto que na conferência estava em questão uma “realidade” que se “encontra” na origem da própria linguagem, surgiu aquela dificuldade comum a toda e qualquer busca de esclarecimento fundamental: a saber, dever falar originariamente “sobre” a origem, com uma “linguagem” que recebe seu sentido verdadeiramente esclarecedor apenas a partir de sua origem.

E visto que o processo de apreender essa “realidade” originária numa linguagem esgotante requer muito tempo e quiçá uma nova linguagem, a conferência busca abrir um outro caminho, a saber, levar-nos a ele apenas através de um fio condutor abstrato e formal. Ali, a formulação abstrata tem sua vantagem na medida em que descortina a estrutura fundamental e a temática de modo mais claro do que uma formulação esgotante, visualizante.

Agora, se busco reportar o conteúdo da conferência com minhas próprias palavras, corro o perigo de apagar esse fio condutor; a não ser que reproduza palavra por palavra a conferência da Srta. Röhring (especialmente a última parte).

Mas quem melhor pode fazer isso é a própria conferencista. Por isso, gostaria de sugerir que no começo desta reunião retomemos a última parte da conferência, pedindo à Srta. Röhring que exponha novamente o mesmo como melhor lhe agradar.

Todavia, gostaria de dizer algo breve sobre o tema principal da conferência, não como reportagem daquilo que foi dito, mas apenas como medida de certificação para minha própria interpretação da conferência: Gostaria de dizer onde me parece estar o essencial da conferência e perguntar à Srta. se é mais ou menos assim.

A7 conferência trata da análise da morte em Ser e tempo. Ali está em questão uma meta bem determinada. Ali é importante não deixar-se afastar dessa meta através da complexidade e multiestratificação do fenômeno da “morte”.

Na análise da morte não está em questão primariamente a morte em função do próprio fenômeno da morte, mas a resposta à pergunta pelo sentido do Ser. Trata-se portanto de determinar mais de perto e completamente a estrutura fundamental da questão pelo sentido do Ser, isto é, expresso numa linguagem não tão clara, trata-se de autoesclarecimento de quem questiona, que sou cada vez eu.

Autoesclarecimento de quem pergunta, que sou cada vez eu, pode porém ser compreendido de forma imprecisa. Na análise da morte da conferência não está em questão uma antropologia já constituída ou em vias de constituição.

Trata-se antes de desnudar, do ponto de vista da ontologia fundamental, a estrutura fundamental do Dasein. Só então torna-se possível algo assim como antropologia.

Trata-se pois de fundamentação e fundação ontológico-fundamental do Dasein. E isso num sentido bem determinado: As análises de Heidegger, por assim dizer, preparatórias, abrangem pouco a pouco a estrutura fundamental do Dasein, em seus momentos distintos, que são caracterizados sob o nome de “existência”, facticidade, abertura etc.

Esses momentos referem-se sempre a uma e a mesma coisa, a saber, a totalidade do Dasein, mas por assim dizer de diversos modos. Essa totalidade referida do Dasein vem designada com um nome, a saber, um Ser-para-si-mesmo. A essência do Dasein é ser-para-si-mesmo.

Poderíamos também dizer: a essência do Dasein é autorelação.

Mas a autorelação possui uma estrutura digna de nota: tão logo se procure, de algum modo, apreende-la, ela decai e se esfacela numa polaridade contraposta e de imediato se estabelece a relação “entre” os pólos contrapostos. Mas aí surge, ao mesmo tempo, uma “síntese” como o vivo “concomitante” (Zugleich) de diferença e identidade dos pólos contrapostos. Considerada como movimento, essa “síntese” é um movimento-circular-dialético. A força que impulsiona os dois pólos a se separarem é igualmente a força que os mantém em identidade.

Na análise da conferência, a morte mostra-se de imediato como a contraposição da vida. Então a contrapositividade é elevada ao grau máximo. E de repente a morte rompe por assim dizer os limites da estrutura de autorelação, surgindo desta vez não como

7 NdT: Esse texto já consta supra. Todavia aqui é ampliado com explanações e acréscimos.

“contraposição” à vida mas como contraposição ao todo das relações, a saber, como impossibilidade de toda e qualquer relação-com.

Com a rotura dos limites da estrutura de relação, transforma-se também o sentido de “contraposição”, isto é, o “non” como contraposição ao todo das relações não significa mais um “contra” mas algo assim como “fundamento”. Aqui brota uma nova dimensão.

Segundo minha interpretação, toda a conferência se dirige única e só para essa dimensão.

Então, parece-me que é importante manter em mira essa dimensão para se poder compreender a conferência.

Em minha opinião, é a intenção principal da conferência.

De início mostrou-se o posto da análise da morte no todo do “edifício” de Ser e tempo: na parte introdutória da análise da morte, a intenção primordial de Ser e tempo é designada como “a resposta à pergunta pelo sentido do ser”.

“Questão pelo sentido do ser”, considerada geometricamente, é movimento circular. E explicitado a partir desse movimento circular, a “questão pelo sentido do ser” poderia ser assim formulada: A questão como meu levar a efeito a questão (quem questiona), no próprio efetuar a questão, pergunta pelo sentido (portanto pelo movimento do questionar enquanto verbo) do efetuar a questão, que nada mais é que eu mesmo como quem a cada vez pergunta.

Dessa autoreflexão e nela, a questão, enquanto quem a cada vez questiona (isto é, a execução cada vez da pergunta), recebe a clarificação de sentido de seu si mesmo.

“Questão pelo sentido do ser”, enquanto essa minha execução concreta da questão, é por assim dizer o movimento do “espírito” realizado nesse pequeno local, como autofundamentação, autorelação: é autocompreensão.

Todavia, o movimento circular que se pode delinear dessa formulação se constitui num modelo, como uma concepção prévia vazia e esquemática da “essência” desse ente, que sou cada vez eu, quem questiona.

As diversas análises de Ser e tempo são por assim dizer reiteradas tentativas de aproximação, sempre a partir de um “outro” princípio: de levar a efeito essa concepção prévia. Fundamentar-se e clarificar-se sempre de novo na execução do movimento circular.

O movimento de autocompreensão corre “simultaneamente” em duas direções, a saber: em direção redutiva e em direção constitutiva.

A direção redutiva caminha para o desnudamento e uma mais próxima determinação da estrutura fundamental da “autocompreensão”. Está interessada em trazer para a claridade a estrutura do “si-mesmo” concebida previamente no modelo do movimento circular. Vai para o “fundo”: nesse sentido é fundamental.

A direção constitutiva se encaminha para o edifício concreto dos fenômenos singulares na visão integral da autocompreensão.

Em Ser e tempo, o acento está na direção redutiva.

No procedimento desse movimento redutivo pode-se constatar um constante esquema: De início, um fenômeno singular de nossa vida cotidiana. A análise desse fenômeno descobre aos poucos a “verdadeira natureza” desse fenômeno como um determinado local de articulação de um outro “sistema”. Esse “sistema” em sua estrutura fundamental é interpretado como um determinado modo de ser do si-mnesmo e com isso se adquire uma determinação mais próxima do si-mesmo.

Ali, não está em questão tanto (embora também esteja) a fundamentação e esclarecimento do fenômeno singular. Trata-se, ao contrário, de, através da análise (que é como que um movimento de autoreflexão, principiado nalgum local determinado), alcançar uma determinação da “autocompreensão” não apenas formal, mas também “de conteúdo”.

O movimento redutivo (aparentemente!) “fluidifica” por assim dizer o conteúdo restrito do fenômeno singular na visão integral do “autocompreender”. E isso tão intensamente que temos em cada vez o mesmo resultado: a clarificação de um e o mesmo si-mesmo, que sou cada vez eu.

Mas isso não significa que o fenômeno singular que nos serve de ponto de partida da análise continue “indiferente” frente ao resultado final, no sentido de que poderíamos dizer: “me é indiferente que fenômeno tomo como ponto de partida, uma vez que seja como for terei como resultado a totalidade-si-mesmo.

Isso porque o que determina o “como” dessa totalidade-si-mesmo é precisamente o ponto de partida. E a totalidade-“si-mesmo” nada mais é que esse “como” conquistado através da análise redutiva.

Esse “como” da totalidade, que em Ser e tempo é designado com a palavra “existencial” significa sempre “totalidade”. Mas é sempre uma totalidade “determinada”.

Ora, então surge a questão: não seria possível intentarmos alcançar uma totalidade “total” e assim uma compreensão mais aproximada da “autocompreensão”?

Mas para isso é preciso de um ponto de partida “todo próprio”, de um fenômeno que justo em sua “determinação-como” traz o caráter de “totalidade”.

Esse fenômeno todo próprio é a morte (de imediato como final).

A análise da morte em Ser e tempo está sempre ainda como uma questão preparatória para uma ampliação posterior rumo à autocompreensão totalitária da questão pelo sentido do Ser.

Em nossa reunião ela se tornou tema, justo porque nosso interesse estava focado na morte.

A conferência trata da análise da morte em Ser e tempo. Ali volta-se para além de uma meta totalmente determinada. Ora, é importante então não afastar-se dessa meta, através da complexidade e multiestratificação do “fenômeno” morte.

Na análise da morte não está em questão primariamente a morte, por causa do fenômeno da morte, ela mesma, mas a resposta à questão pelo sentido do ser. Trata-se portanto de determinar mais de perto e de forma completa a estrutura fundamental da questão pelo sentido do ser, isto é, expresso numa linguagem bem pouco clara, está em questão o autoesclarecimento de quem questiona, que sou cada vez eu mesmo.

Autoesclarecimento do perguntante, que sou cada vez eu mesmo, pode ser compreendido de modo impreciso. Na análise da morte da conferência não se trata de uma antropologia fenomenológica já constituída ou em vias de constituição. [Embora o momento da constituição já esteja aí presente com o movimento redutivo...]

Está em questão, antes, o desnudamento ontológico-fundamental da estrutura fundamental do Dasein. É só então que se torna possível algo assim como antropologia.

Trata-se portanto de fundamentação e fundação ontológico-fundamental do Dasein. E isso num sentido bem determinado:

As análises de Heidegger, por assim dizer, preparatórias, abrangem aos poucos a estrutura fundamental do Dasein em seus momentos distintos, que são designadas pelo nome de “existência”, facticidade, abertura etc.

Esses momentos referem-se sempre a uma e a mesma coisa, a saber, a totalidade do Dasein, mas por assim dizer em diversos modos. [Esse “como” é um modo concreto de expor a estrutura fundamental como estrutura. O esclarecimento para isso deve fornecer a discussão e esclarecimento sobre “universalidade” enquanto o “uni-versal”.

Essa totalidade referida do Dasein é designada com um nome, a saber: Ser-para-si-mesmo. A essência do Dasein é ser-para-si-mesmo. [Esse “título” ou “nome” traz porém a conotação do “momento de abertura” da essência do “ser-para-si-mesmo”, de tal modo que o “nome” não é muito adequado. Apoiando-me em Kierkegaard, lanço mão da palavra: auto-relação (Selbstverhältnis). A essência de Dasein é autorelação.

A autorelação tem pois uma estrutura digna de nota. Como se disse, essa estrutura foi determinada “concretamente” através de diversas análises, como cura, existência etc. Agora procuro brevemente determiná-la de um modo um pouco diverso:

Tão logo se busca apreender, de algum modo, essa autorelação polariza-se numa “dualidade” contraposta, confrontando-se através da diferença. Mas se estabelece ao mesmo tempo a identidade da “dualidade” como a relação “entre” os pólos contrários. Mas aí, surge então, ao mesmo tempo uma “síntese”, como o “concomitante” vivo de diferença e identidade dos pólos contrapostos. Essa “síntese” forma algo assim como um espaço aberto, ou dizendo melhor, “é” algo assim como espaço aberto, tensionado e impulsionado de fora a fora por força centrifugal, que é também uma força centripetal. A força centrifugal impulsiona os pólos contrapostos a se separarem; a mesma força, enquanto centripetal, mantém os dois em identidade.

[Pergunta-se: o que são porém esses pólos? Visto estar em questão autorelação, esses dois pólos são eu mesmo! Ou dizendo com mais precisão, são a própria autorelação. Ora, visto mais de perto, mostra-se que a força centrifugal e centripetal é a própria autorelação, e que a força centrifugal e centripetal não separa os dois pólos. Tampouco mantém os dois contrapostos. E isso precisamente porque os dois pólos nada mais são que essa força ela mesma. São por assim dizer os picos dessa força. E uma vez que os pólos são a própria autorelação, posso dizer que o pólo contraposto e a força centrifugal-centripetal são um modo de falar, encoberto pela ilusão transcendental, a fim de determinar a autocomprensão (isto é, autorelação). A força centrifugal (movimento) é autorelação como ser-para-si-mesmo-para-fora; nesse ser-para-si-mesmo-para-fora, porém, a autorelação “recebe” sua “substancialidade”, de modo a “manter”8: autorelação como auto-manu-tenção é a força centripetal. O momento de ser-para-si-mesmo-para-fora cria o espaço então, onde se torna possível algo assim como mundo. (possibilidade as coisas; da estrutura; da remissão; da cura etc.). O momento-manter-se-a-si-mesmo cria a possibilidade para algo assim como terra, noite, coisa etc. Esse momento, porém, é interpretado sempre como o momento-“fora”.

O que é porém a autorelação como um todo? Como o concomitante dos dois momentos?

8 NdT: Passagem complicada do alemão. Formulação sem nexo gramatical.

Na análise da morte está em questão seguramente então a resposta a essa questão!

O caminho atravessa o momento: Ser/estar-a-campo rumo-a-si-mesmo!

Ali leva-se a abertura da força centrifugal a tal radicalidade que se dilacera em si e a partir de si. O que significa isso?

Isso significa: essa radicalização é a morte. Mas morte é a impossibilidade da possibilidade, ou seja, a impossibilidade de qualquer relação para com. [Todavia, se digo que a morte é também possibilidade da impossibilidade, será que faço jus à coisa? Isso não é um sintoma de que falo sempre a partir do momento-“fora”? [ nesse caso, talvez, tanto possibilidade quanto impossibilidade modificaram seu sentido na primeira formulação!]

Como, através da radicalização do movimento centrifugal chego necessariamente à “impossibilidade” da estrutura da relação?

Só pode chegar a tal pelo fato de eu afirmar: a autorelação como relacionar-se-para-com (momento-fora) é impossibilidade de relacionar-se-para-com! isso significa: a “essência” do relacionar-se-para-com não é o próprio-relacionar-se, mas a impossibilidade do relacionar-se-para-com! Isso é dito: a auto-relação em sua totalidade enquanto totalidade é justamente um “non”. Esse “non” é precisametne a terra! O momento-terra da autorelação, agora não mais correlativo, considerado a partir do momento-fora, mas como coisa ela mesma! Na “fenomenologia” não se trata de outra coisa do que da empiria em terceira dimensão!]...

Essa “terra” é a terceira dimensão, um âmbito portanto onde a monadologia está em casa, onde uma bola tem sua realidade. É precisamente isso o uni-versal! Isso é “res” do caráter de nada do ser si próprio (Nichts-selbstheit) enquanto solidez!

NB9: Se hauro essa “autorelação” a partir da estrutura e da problemática sujeito e objeto, então tenho “autorelação = intencionalidade.

Assim, poderia embarcar na fenomenologia husserliana e chegar à “metafísica”, como reino da terra enquanto 3. dimensão. Em Husserl é um pouco mais fácil porque ele doa (gebt! ?) objeto!...

O embate discerniente da dualidade pressupõe sempre uma autorelação, visto que a estrutura de mundo nada mais é que projeção da estrutura da autorelação!

9 NdT: Escrito a caneta.

Sobre a essência da obra: Imagem

Sobre a essência da obra temos duas teses, que parecem pertencer essencialmente à obra e no entanto se contradizem mutuamente.

a) Todas as obras perfazem uma imagem.

b) Cada obra é a imagem da essência integral.

Se todas as obras perfazem uma imagem da essência, então as obras remetem-se umas às outras, pertencem umas às outras, “precisam” umas das outras; cada obra tem, portanto, uma abertura para a outra.

Todavia, se toda obra constitui a imagem de toda essência, então toda obra se fecha “para dentro” de si mesma, formando uma singularidade autosuficiente, fechada; não precisa da outra obra, não tem qualquer abertura para a outra.

O que é que perfaz a obra enquanto obra? O fato de que a obra atinge total e em cheio a essência. Atinge de tal sorte que obra e essência são uma e a mesma coisa. Poderíamos dizer que a densidade da obra é a intensidade do atingimento da (gen. objetivo) essência.

Ora, se a intensidade do atingimento se torna tão intensiva que nada fica de fora que não seja “atingimento”, então a essência e a obra coincidem numa identidade-singularidade sem lacunas. Essa “identidade” porém não é algo assim como um bloco. Isso me é mostrado pelo que se segue: dissemos acima que obra e essência são uma e a mesma coisa. Apesar dessa afirmação, resta sempre um espaço, onde se torna possível algo assim como um “movimento” “mais”, “menos” de “intensidade”. Sem entrar em detalhes aqui, uma vez que toda a investigação é precisamente um intento de esclarecer essa “nova” realidade “singularidade-identidade-diferença”, vamos avançar tateando.

A afirmação da identidade-singularidade sem lacunas significa: aquilo que faz com que a obra se torne obra da essência é singularidade; aquilo que faz com que a singularidade se torne singularidade é a essência. Isso significaria ademais: justamente aquilo que diferencia uma obra de outra obra “identifica” uma obra com a outra obra de mesma essência. E justamente isso que identifica uma obra com outra obra é o que diferencia uma obra da outra.

A “intensidade” da densidade, como “singularidade-isso-aí” destroça por assim dizer a estrutura polar: identidade e diferença; todavia não tal a criar um meio sintético, mas pelo fato de a diferença como diferença e enquanto diferença é identidade, e a identidade como identidade e enquanto identidade é a diferença.

Isso traz consigo uma postura curiosa: aquele que “alcançou” essa densidade irá afirmar fácil e radicalmente a identidade e ao mesmo tempo, com a mesma paixão, afirmar a diferença, sem muito esforço, trazendo à unidade, de algum modo as duas contraposições. Ao contrário, irá colocar precisamente a diferença numa tensão impossível.

Quando designo a essência como princípio da universalidade e o “esse-aí” como princípio da singularidade, poderia formular a “coisa” do seguinte modo: o princípio da universalidade dessa obra é sua singularidade; e o princípio da singularidade dessa obra é precisamente sua universalidade. Mas isso significa novamente: o máximo fechamento é a máxima abertura, e a máxima abertura é o máximo fechamento. Assim “compreende-se” por que uma obra de arte é sempre universal, sendo ao mesmo tempo única. Assinalamos essa coisa com a palavra: uni-versalidade (All-gemeinheit). Tudo (All), como totalidade; gemeinheit como cada vez meu (Jemeinigkeit).

Acima caracterizamos essa singularidade como aquela identidade sem lacunas: esse aí. Designo essa máxima intensidade da densidade como solidez (Härte).

Densidade é algo diferente que solidez. Em que sentido? Densidade como solidez é por assim dizer o horizonte tornado singular! Mas densidade como densidade é singularidade num horizonte. Solidez, portanto, é extensão total da densidade no horizonte. Como tal, é sem horizonte, ou melhor, singularidade é horizonte próprio. Isso significa: Solidez é haurir esgotando (Erschöpfung) um horizonte. Nesse sentido, solidez é epocal, isto é, esgotamento (Er-Schöpfung) de um horizonte e assim irrupção para o novo horizonte: lugar onde acontece a “mudança”, a criação (Schöpfung). E como tal, solidez torna-se em medida: medida para horizonte esgotado e medida para horizonte porvindouro. Apenas que num modo diferente: para o horizonte esgotado como plenitude, para o porvindouro, como vazio.

Esse esgotamento epocal “finda” com um salto. Todo o esforço da “densificação” (Dichtung = poesia) num horizonte tenciona de tal modo o horizonte que chega ao salto (Sprung). E o lugar onde este acontece é origem (Ursprung). Assim “compreende-se” por que solidez pode tornar-se medida para densidade.

O que acontece quando alguém chega à solidez? A partir da essência da solidez é impossível que nela algo não seja solidez. Ele não é apenas solidez, digamos, nessa obra, mas tudo que ele vê é solidez.

Mas para este não há mais nenhuma outra solidez, nenhum outro horizonte, nenhuma não-solidez mais? Sim! Como? Do seguinte modo:

Solidez significa máxima si-mesmidade (Selbigkeit – a-seidade). Quando o horizonte chega a tal plenitude, que nada mais há que não

fosse plenitude, então temos a si-mesmidade. Para aquele que é solidez, tudo torna-se em si-mesmidade. Ou seja: não-si-mesmo vem também à si-mesmidade enquanto “não-ser-si-mesmo”. Significa: cada coisa chega a sua si-mesmidade própria e autêntica. Mesmo o “inautêntico” torna-se em si-mesmidade. Só que a si-mesmidade do inautêntico não é autenticidade, mas inautenticidade...

Mas então o que é si-mesmidade como tal? Nada. Mas nada, no sentido radical da palavra. Nada não é uma contraposição ao ser, não é um modo deficiente, não é uma negação do ser. Nada tampouco é algo para si. Nada é simplesmente nada.

Portanto “é” nada. E portanto “é”! É portanto um absurdo falar alguma coisa aqui é simples e somente si-mesmidade das coisas! ... Só há portanto “coisa ela mesma”.

Intentemos um outro caminho:

Até agora sempre falamos de obra. Em nosso caso, a obra é “esse quadro” de Barlach. O que é propriamente “esse quadro” de Barlach, por exemplo, com o subescrito “Pietá”. De princípio pressupomos o “quadro” como algo fora de mim, à mão diante de mim. A afirmação “esse quadro Pietá” está à mão diante de mim, todavia não é tão transparente e evidente. Seria perfeitamente correto dizer: fora estão justapostas duas madeiras em forma de cruz... Poderia também dizer: Pietá tenho propriamente em mim. O que vejo não passa de um espelhamento desse quadro num pedaço de madeira. Mas tudo isso pressupõe sempre algo de inanalisado.

O fenômeno transparece algo diverso: No começo está ali presente o ser-tocado. Quem é tocado? O que toca quem? De imediato, somos tentados a dizer: eu sou atingido; a imagem me toca! Olhando mais de perto, porém, as coisas não são bem assim. Pois antes de eu ser tocado, o “quadro como me tocando” não estava aí presente. E antes de eu ser tocado, o eu-tocado-pelo-quadro não estava aí presente. O ser tocado, portanto, é algo assim como “em si”, que sempre já estava aí presente antes do expectador. Onde está pois esse “ser tocado”? falando imageticamente, entre quadro e eu! Quadro e eu são por assim dizer espacialidades desse ser tocado. O enriquecimento se dá nessas espacialidades. Ali precisamos sempre de novo pensar que eu e quadro não somos duas coisas distintas, mas enquanto quadro e eu, que contempla o quadro, são um e o mesmo.

Donde provém então o enriquecimento? Do meio: ser tocado. O que se torna mais rico? Eu; e com isso o quadro. E através disso também o meio. Há um modelo-esquema: parece como um salto: Da fonte brotam dois filetes de água, um braço sou eu, outro é o quadro. A fonte, porém, não é uma coisa, mas o próprio saltar. Do salto, porém, se enriquece eu-quadro, e assim também o salto torna-se rico. É o

salto originário, a origem autoenriquecedora. Isso é autocompreensão.

Como se relacionam quadro e eu para com autocompreensão? Não se relacionam. Não são três coisas. Serão, portanto, eu e quadro uma determinada proximidade para com autocomprensão? Também não, uma vez que “autocompreensão” não é um ponto-meta. Isso porque em cada vigência do “como” ou “estrato” da autocompreensão a “autocomprensão” está aí presente. O que é pois a diferença?

Outra questão: Quando é que a densidade da autocompreensão está mais condensada. Quando a distância está o mais distante? Não. Quando a proximidade está o mais próximo? Também não. Por quê? Porque achamos que distância e proximidade são duas coisas isoladas!

A densidade da autocompreensão é maximamente densa quando a distância é ao mesmo tempo e de uma vez a mais distante e a proximidade a mais próxima. Isso significa, quando a distância é considerada como distância e a proximidade como proximidade. Onde já não há mais espaço para se distanciar, nenhum brecha para se aproximar!

Mostra-se como solidez e vazio ao mesmo tempo. A densidade, portanto, não é a origem, mas esse autocompreender como tal. Chamo-o de nada. Mas o nada não é o vazio. Tampouco cheio, mas: si-mesmo.

Em nosso caso: como imagem e conceito: a imagem é maximamente imagem quando maximamente conceitual. E o conceito é maximamente conceito quando é maximamente imagem. Imagem e conceito (arte e filosofia) portanto são maximamente idênticos quando são maximamente distintos. Portanto, quando mais interpreto a imagem, tanto mais me aproximo não da imagem, mas da imagilidade do conceito.

Mas será que se pode dizer o contrário? A saber, quanto mais densa uma imagem, tanto mais conceitual? Poderia ser assim: A distância é a conceitualidade da imagem, e a proximidade a imagilidade da imagem. Mas isso impõe um significado duplo de proximidade. Proximidade, densidade, plenitude não é o si-mesmo. Vazio, distância, densidade, proximidade etc. são modos de expressão com que, a partir da diferença, se expressa o si-mesmo. E é precisamente esse intento que é a conceitualidade. A proximidade, densidade, como tal não é dita através de palavras, mas está simplesmente ali, obtusa, como um bloco. A conceitualidade sem o núcleo obtuso continua vazia, e obtusidade sem a luz da conceitualidade continua cega. A fonte-isso-aí como solidez é por assim dizer fonte sintética originária de ambas: origem e meta ao mesmo tempo; começo e meta ao mesmo tempo. O pior nisso tudo é que a resposta à questão

“o que é pois distância e densidade?” pressupõe igualmente a mesma estrutura de densidade e vazio!... Como vou adiante agora?

[P. 40 e 41 repete as páginas 30-31, ipsis litteris. Uma cópia é carbonada da outra. Reproduzo abaixo]

Em minha opinião, é a intenção principal da conferência.

De início mostrou-se o posto da análise da morte no todo do “edifício” de Ser e tempo: na parte introdutória da análise da morte, a intenção primordial de Ser e tempo é designada como “a resposta à pergunta pelo sentido do ser”.

“Questão pelo sentido do ser”, considerada geometricamente, é movimento circular. E explicitado a partir desse movimento circular, a “questão pelo sentido do ser” poderia ser assim formulada: A questão como meu levar a efeito a questão (quem questiona), no próprio efetuar a questão, pergunta pelo sentido (portanto pelo movimento do questionar enquanto verbo) do efetuar a questão, que nada mais é que eu mesmo como quem a cada vez pergunta.

Dessa autoreflexão e nela, a questão, enquanto quem a cada vez questiona (isto é, a execução cada vez da pergunta), recebe a clarificação de sentido de seu si mesmo.

“Questão pelo sentido do ser”, enquanto essa minha execução concreta da questão, é por assim dizer o movimento do “espírito” realizado nesse pequeno local, como autofundamentação, autorelação: é autocompreensão.

Todavia, o movimento circular que se pode delinear dessa formulação se constitui num modelo, como uma concepção prévia vazia e esquemática da “essência” desse ente, que sou cada vez eu, quem questiona.

As diversas análises de Ser e tempo são por assim dizer reiteradas tentativas de aproximação, sempre a partir de um “outro” princípio: de levar a efeito essa concepção prévia. Fundamentar-se e clarificar-se sempre de novo na execução do movimento circular.

O movimento de autocompreensão corre “simultaneamente” em duas direções, a saber: em direção redutiva e em direção constitutiva.

A direção redutiva caminha para o desnudamento e uma mais próxima determinação da estrutura fundamental da “autocompreensão”. Está interessada em trazer para a claridade a estrutura do “si-mesmo” concebida previamente no modelo do movimento circular. Vai para o “fundo”: nesse sentido é fundamental.

A direção constitutiva se encaminha para o edifício concreto dos fenômenos singulares na visão integral da autocompreensão.

Em Ser e tempo, o acento está na direção redutiva.

No procedimento desse movimento redutivo pode-se constatar um constante esquema: De início, um fenômeno singular de nossa vida cotidiana. A análise desse fenômeno descobre aos poucos a “verdadeira natureza” desse fenômeno como um determinado local de articulação de um outro “sistema”. Esse “sistema” em sua estrutura fundamental é interpretado como um determinado modo de ser do si-mnesmo e com isso se adquire uma determinação mais próxima do si-mesmo.

Ali, não está em questão tanto (embora também esteja) a fundamentação e esclarecimento do fenômeno singular. Trata-se, ao contrário, de, através da análise (que é como que um movimento de autoreflexão, principiado nalgum local determinado), alcançar uma determinação da “autocompreensão” não apenas formal, mas também “de conteúdo”.

O movimento redutivo (aparentemente!) “fluidifica” por assim dizer o conteúdo restrito do fenômeno singular na visão integral do “autocompreender”. E isso tão intensamente que temos em cada vez o mesmo resultado: a clarificação de um e o mesmo si-mesmo, que sou cada vez eu.

Mas isso não significa que o fenômeno singular que nos serve de ponto de partida da análise continue “indiferente” frente ao resultado final, no sentido de que poderíamos dizer: “me é indiferente que fenômeno tomo como ponto de partida, uma vez que seja como for terei como resultado a totalidade-si-mesmo.

Isso porque o que determina o “como” dessa totalidade-si-mesmo é precisamente o ponto de partida. E a totalidade-“si-mesmo” nada mais é que esse “como” conquistado através da análise redutiva.

Esse “como” da totalidade, que em Ser e tempo é designado com a palavra “existencial” significa sempre “totalidade”. Mas é sempre uma totalidade “determinada”.

Ora, então surge a questão: não seria possível intentarmos alcançar uma totalidade “total” e assim uma compreensão mais aproximada da “autocompreensão”?

Mas para isso é preciso de um ponto de partida “todo próprio”, de um fenômeno que justo em sua “determinação-como” traz o caráter de “totalidade”.

Esse fenômeno todo próprio é a morte (de imediato como final).

A análise da morte em Ser e tempo está sempre ainda como uma questão preparatória para uma ampliação posterior rumo à autocompreensão totalitária da questão pelo sentido do Ser.

Em nossa reunião ela se tornou tema, justo porque nosso interesse estava focado na morte.

P. 42

Protocolo da 4a. reunião: Tema: Análise da morte em Heidegger

De início mostrou-se o lugar da análise da morte no todo do “edifício” de Ser e tempo. O interesse primordial de Ser e tempo é designado na parte introdutória da análise da morte como “a resposta à questão pelo sentido do ser”.

Está em questão ali a autocompreensão do ente que sou cada vez eu mesmo enquanto quem questiona.

Formulado de forma um tanto intransparente: Trata-se do ser do homem.

A autocompreensão é uma autorelação. Move-se em círculo, a saber, quem pergunta, que sou cada vez eu como execução da questão, questiona na própria execução da questão pelo sentido (isto é, pelo movimento do perguntar enquanto verbo) da execução da questão, que nada mais é que eu mesmo.

Ser e tempo é esse movimento circular da autorelação de quem pergunta: Pergunta pelo sentido do ser. E cada pergunta, cada debate e análise dentro de Ser e tempo é movimento de autorelação repetido num pequeno e diverso local, como autoclarificação do “espírito”.

Autocompreensão, autoclarificação, movimento circular, espírito, ser etc. são inicialmente designações formais e modelos para o “Ser” de quem pergunta, que sou cada vez eu mesmo como autorelação. É verdade que nos oferecem uma concepção prévia daquilo que nós somos a cada vez; mas essa concepção prévia é vazia, “estática” e esquemática.

A plenitude de conteúdo, as reais determinações do “autocompreender” só podem ser conquistadas na “execução”, a saber, no seguir efetuado concretamente da autoreflexão. As análises de Ser e tempo são esse seguir “realizador”.

Na medida em que nos foi exposta, a conferência forma apenas uma parte de todo o trabalho. Deve ser considerada como tal. A conferência tem 4 partes, cada uma com um título:

1. Colocação da análise da morte no contexto conjuntural de Ser e tempo;

2. Introdução formal na questão da morte segundo Ser e tempo;

3. A “realidade” da morte.

4. Morte como possibilidade de impossibilidade.

As três primeiras partes são um preparativo para a última, “Morte como possibilidade de impossibilidade”.

É só nessa última parte que começa o debate temático da “morte” ou do “Dasein” em toda sua importância “como questão pelo sentido do morrer”, como juntura de cruzamento de dois princípios inconciliáveis: esse e non; através do que pode-se vislumbrar uma “possibilidade de ligação” da análise da morte de Heidegger e da imagem de morte de Barlach.

Reproduzo abreviadamente o conteúdo das três primeiras partes preparatórias; depois, um pouco mais detalhadamente o conteúdo da última parte e a discussão que se seguiu.

Logo no começo estabeleceu-se de forma clara e formal a meta, o procedimento e a colocação da análise da morte: Na análise da morte não está em questão primariamente a morte por causa da própria morte, mas em função da resposta à questão pelo sentido do ser. Trata-se portanto da determinação mais próxima e completa da estrutura fundamental da questão pelo sentido do ser, isto é, pela autoclarificação de quem questiona, que sou cada vez eu.

Como tal: “a questão pela morte resulta da idéia norteadora do todo do livro: a idéia de existência como horizonte para a questão pelo sentido do ser”.

Mas a análise da morte não é um meio para alcançar um fim, no sentido de que nada teria a dizer de essencial para a determinação da questão pelo sentido do ser.

Isso porque a análise da morte, em sua radical realização, é uma autoclarificação privilegiada, realizada de forma concreta, da questão pelo próprio sentido do ser. Isso significa: A idéia de existência como horizonte para a questão pelo sentido do ser deve servir de fio condutor para a análise da morte. Do ponto de vista do conteúdo, é uma concepção prévia vazia do ser de quem pergunta. A análise da morte deve portanto preencher de contudo essa concepção prévia: “é só a partir da essência da morte que a estrutura da existência pode ser compreendida em seu conteúdo”.

A análise da morte em seu proceder tem um interesse bem determinado, a saber, apreender a estrutura fundamental do Dasein em sua totalidade, enquanto totalidade. Para isso tem de preparar um lugar privilegiado, onde se torna possível algo assim como um traço existencial do si-mesmo do Dasein.

Começa num “fenômeno” de nossa vida cotidiana, em nosso caso na morte como fim, como caso mortal, como despedida. Então a análise procura aos poucos dissolver e libertar o conteúdo enrijecido e restrito do “fenômeno” cotidiano num horizonte transparente, existenciário. A partir do “fenômeno” cotidiano do fim, da despedida,

caso mortal etc. torna-se em “fenômeno” existenciário: morrer como possibilidade de ser cada vez própria.

Com isso, concede-se à análise um lugar privilegiado onde se possibilita uma originária interpretação existencial da morte.

P. 45

Questão relacionada com a preleção – Harada

Na preleção (Segunda, dia 16.05), o Sr. caracterizou o método e a estrutura interna da fenomenologia de nossa preleção investigativa como uma autoconstituição que vem de dentro para fora, que se demonstra em e a partir de si.

Ali, para mostrar com nitidez o modo de ser próprio dessa fenomenologia, o Sr. contrastou a mesma, por assim dizer, com a fenomenologia de horizonte. Desse contraste, o Sr. também tirou a consequência que a partir da fenomenologia de horizonte não é “possível” conseguir acesso à fenomenologia do Dasein.

Nesse contexto o Sr. caracterizou o pensar horizontal como um fenômeno de decadência da fenomenologia do Dasein.

Então eu teria as seguintes questões:

Questão A:

1) Esse contraste que o Sr. estabeleceu e a diferença radical é mais uma caracterização de cunho didático para destacar claramente o modo de ser próprio da fenomenologia do Dasein ou trata-se aqui da “coisa ela mesma”?

2) Se for “coisa ela mesma”: não haveria realmente nenhuma “possibilidade” de se chegar à fenomenologia do Dasein através do pensar de horizonte? Essa minha formulação está capenga. Talvez pudesse dizer assim: Sob certa situação, a fenomenologia de horizonte não poderia tornar-se em “condição” (uma condição negativa), de “ser” uma determinada “forma” de fenomenologia do Dasein?

- a: Vejo perfeitamente que isso não é o caso quando a fenomenologia de horizonte “funciona” mecanicamente por assim dizer “sem questão”, quando se move infinita e coerentemente adiante, por assim dizer, sem necessidade.

- b: Mas não poderia haver uma “possibilidade” de embarcar, nela incidir, nessa fenomenologia de horizonte de forma tão radical que a partir dela cresça a necessidade de romper com essa “situação” própria? Que a fenomenologia de horizonte se torne em necessidade, e a necessidade experimente uma guinada? Por exemplo, um cientista da natureza que vê em sua ciência o único e total sentido de sua vida, engajando-se nela de forma radical?

Questão B:

A ontologia de horizonte é realmente um fenômeno de decadência da ontologia do Dasein? Se a ontologia do Dasein se caracteriza como ontologia de elevação, então decadência significa: autoperda, deficiência. Mas então um fenômeno de decadência da ontologia do Dasein não “pareceria” ser diferente? Com outras palavras: Não poderíamos dizer que a ontologia do Dasein demonstra sua própria “forma” de elevação e decadência, e que a ontologia de horizonte apresenta sua própria “forma” de elevação e de decadência?

Essa questão tem um plano de fundo, que diz mais ou menos isso: Não existe fenomenologia como uma teoria geral, como pensa a fenomenologia de horizonte. Isso porque fenomenologia é autoconstituição como “coisa ela mesma”, cada “Coisa” por assim dizer cria seu próprio método, sua própria evidência, própria “estrutura”, tem essência e vida próprias.

A partir dessa afirmação que me é evidente, não se deduz que a fenomenologia do Dasein é uma “coisa ela mesma”, fechada, com forma própria de elevação e de decadência, vida interna própria e normatividade própria? E que a fenomenologia de horizonte é uma outra “coisa ela mesma”, fechada, com “forma de elevação” e “forma de decadência” próprias, “vida interna” própria e normatividade própria?

Não haveria o perigo de, de algum modo, “desativar” essa respectiva autoconstituição da “coisa ela mesma”, se falarmos aqui de “fenômeno de decadência”? E independentemente do que se compreende ali por “decadência”. Seguramente, poderíamos falar de fenômeno de decadência, mas então não teríamos uma terceira “coisa ela mesma” (ou fenomenologia ou ontologia), que não é nem a primeira (ontologia de horizonte) e nem a segunda (ontologia do Dasein), mas precisamente uma terceira?

Essa fenomenologia do Dasein é pois essa terceira?

Ora, a “partir” dessa autoconstituição vigente a cada vez, as “coisas elas mesmas” respectivas (ou fenomenologias ou ontologias) são radicalmente “diferentes” e justamente nessa “diferença”, como autoconstituição fechada, vigente a cada vez, encontra-se a “universal”, o “vinculativo”, “entre” a fenomenologia de horizonte a fenomenologia do Dasein, a saber: nisso que são autoconstituições cada vez diferentes.

Se esse fosse o caso, então, o que pode significar aqui decadência? A saber, fenômeno de horizonte como fenômeno de decadência do Dasein?

Se, nalguma oportunidade e de algum modo, o Sr. puder se reportar a essas questões, mostrando os equívocos de minhas questões, eu ficaria muito grato.

Harada.

P. 47

Exposição feita sobre um texto de Hemingway num seminário10

O verdadeiro meio é a tensão da relação11

A solidez-compactação:

Um Café limpo e bem iluminado

Era tarde e todos haviam deixado o Café até um velho homem, sentado às sombras, lançadas sobre ele pelas folhas da árvore que estava em frente à luz elétrica. De dia a rua era poeirenta, mas à noite o orvalho mantinha a poeira abaixada, e o velho gostava de ficar sentado aqui até tarde, pois ele já estava surdo e agora à noite fazia silêncio e ele conseguia sentir a diferença. Os dois serventes lá dentro do Café sabiam que o velho estava um pouco bêbado...

- Na semana passada ele tentou o suicídio...

- Por quê?

- Desespero.

- Por quê?

- Por nada.

O velho que estava sentado na sombra bateu com a base de seu copo.

- O que quer?

O velho olho para ele. “Mais um Cognac”.

O servente foi buscar a garrafa de cognac no café e outra base de copo da reserva e apressou-se afora para a mesa do velho. Colocou a base e encheu o copo de cognac... O velho mostrou com o dedo. “Um pouco mais”. O servente despejou mais, de tal modo que o cognac transbordou escorrendo da aste do copo até a base superior. “Obrigado”, disse o velho.

O velho olhou de seu copo para a praça e depois para o servente.

- Mais um cognac, disse e mostrou para seu copo.

- O servente, que estava com pressa, foi para junto dele.

- Chega, disse ele... hoje não tem mais, agora chega!

10 NdT: Escrito a lápis.11 NdT: Escrito a caneta. E mais uma palavra indecifrável: Sagheit?

- Mais um, disse o velho.

- Não, chega.

O velho levantou-se, contou calmamente as bases, tirou um porta-moedas de couro do bolso, contou o dinheiro dos drinques e deixou uma meia pesseta de gorjeta sobre a mesa.

O servente ficou olhando atrás dele enquanto ele ia ao longo da estrada, um homem bem velho, passos cambaleantes mas cheio de dignidade.

***

Na figura do velho de Hemingway vejo diversas “camadas” que se fundem uma na outra numa paisagem. Não uma ao lado da outra, mas uma “sobre a outra”, e de tal modo que cada “camada” vem a lume em diversas partes da paisagem jazendo paralelamente:

- Bem no plano de fundo, tanto-faz-como-tanto-fez, como indiferença, quase imperceptível.

- Depois, transparência e oscilação da atmosfera “idílica” da noite.

- Silêncio da surdez.

- Frescor úmido do orvalho.

- Um clima de humor pairando no ar do “um pouco bêbado”.

- Jogo de luz e de sombra.

- A consistência sóbria, imóvel, adimensional dos gestos e da fala do velho.

Sua “morte” precede a imagem do velho.

O desespero enquanto ato de duvidar, que tudo perpassa, sobre nada abre a dimensão “jogo”.

O jogo interpretado “linearmente” é um movimento de “vai-e-vem” entre luz e sombras (tudo e nada, mundo e eu etc.). É igualmente algo como oscilação da atmosfera da tardinha, ou do sentimento que paira no ar de “estar um pouco bêbado”; tem uma profundidade solta da surdez e é repouso do orvalho, cheio de frescor e vitalidade.

Aqui: Uma mudança de linear para dimensional no movimento: mais ou menos assim:

O jogo é vai-e-vem entre. O “entre” é como espaço: Espaço de jogo, mas não espaço no sentido de: primeiro espaço, depois dois pólos contrapostos e então o movimento de vai-e-vem. Mas: o próprio jogar

é espaço e o jogar “constitui” os contrapostos. O “contra” dos contrapostos experimenta ali, porém, uma mudança: do “contra” (gegen) transforma-se em “ao encontro de” (entgegen). Ao encontro de: como duas pessoas que no encontro correm ao encontro. Elas já não correm uma contra a outra, mas ao encontro de. O Encontro é o meio-espaço que concede o caráter de “ao encontro de” ao movimento contrário, e se “constitui” pelo movimento-ao-encontro-de. Cada passo do correr ao encontro de é encontro, cujo centro-densidade não está mais o meio do entre, mas em toda parte no todo, como intensidade da tensão. Com isso, o movimento “linear” vai-e-vem se transforma em algo como uma plenitude vibrando em si. O jogo é vida.

O jogo de sombras e de luz na imagem do velho é, de início, algo como fio condutor, pelo qual se nos torna visível o modo de ser “ontológico” (transcendental) do Dasein. Chamamos a esse “modo de ser” de linear: jogo. Em sua mudança de linear para dimensional: Vida.

O dito porém é um equívoco. É por isso que dissemos acima “de início”. Isso porque aqui não está em questão um ascenso do “ôntico” (empírico) para o “ontológico” (transcendental) linearmente. O modo de ser do jogo (ou de vida), que atingimos através do fio condutor “ôntico” do “jogo de sombras e luz”, é por seu turno condição para que possamos ver algo assim como “jogo de sobras e luz, em sua plenitude. Portanto, aqui estabelece-se novamente o jogo “entre” ôntico-e-ontológico. A plenitude “dimensional” desse jogo é pois a plenitude da vida: a vida como tal. Essa vida “última” é propriamente a origem do homem, que experimenta seu começo na “morte”.

Retornemos à figura do velho. Oscilação da atmosfera da tardinha, silêncio da surdez, frescor úmido do orvalho, um certo clima no ar do “estar bêbado”, o jogo de sombras e luz pertencem por assim dizer ao “espaço-jogo” da vida: são de algum modo vivas.

Ora, na figura do velho de Hemingway, vejo algo que não ressoa com vida. Na figura mostra-se de modo bem pouco claro no “vazio” não tomar parte, na transparecia da paisagem, na imobilidade adimensional sóbria, na estreiteza lapidar dos gestos e fala do velho.

Chamamos a esse “algo” de soltura e serenidade (Gelassenheit) (correlativo, nada). Ora, então penso se essa soltura e serenidade (ou nada) não será outra dimensão, mais originária, que se encontra por assim dizer “além” do jogo. “Além” pois como origem. Esse “nada” eu qualifiquei com uma palavra muito inadequada: solidez-compactação (Härte).

Solidez, porque, de início poderia ser por assim dizer “condicionamento”, se nessa figura lúdica do velho devesse figurar algo assim como rochas, golpe, aço.

A soltura e serenidade (ou nada) do velho foi interpretada acima na direção de jogo ou a partir de jogo, de modo que algo assim como solidez-compactação (Härte) já não encontrava mais lugar no espaço de jogo do jogo. Não haveria, portanto, algo como solidez do jogo. Jogo e solidez seriam por assim dizer dois fenômenos totalmente heterogêneos, que não podem ser reduzidos um no outro, nem sequer como modo deficiente. Quando interpretamos a figura do velho a partir dessa visão, então a soltura e serenidade é um “movimento de vai-e-vem” do jogo (ou da vida).

Mas aqui surge o perigo de a compreensão da soltura e serenidade (ou do nada) tornar-se um jogo entre “jogo” e “soltura e serenidade”, e isso de tal modo que a soltura e serenidade (nada) é interpretada de forma ludicamente limitada. Talvez houvesse a possibilidade de ver o jogo a partir da soltura e serenidade, não todavia como um movimento constitutivo entre soltura e serenidade e jogo, mas a partir da soltura e serenidade, portanto, a partir da dimensão mais profunda da soltura e serenidade (ou nada). Quando consideramos ludicamente a soltura e serenidade (nada) do velho, a partir do jogo ou na perspectiva do jogo, algo assim como solidez não aparece.

Pode ser imaginação, todavia, vejo na soltura e serenidade do velho um “momento” que não se deixa reduzir a jogo, e no entanto pertence “essencialmente” ao jogo, num “modo” da origem ou da si-mesmidade. Mostra-se na figura do velho, na transparência, caráter lapidar, no cotidiano sóbrio, e por assim dizer está silenciosamente presente em toda parte.

Procurei estabelecer uma ligação desse momento com solidez-compactação, porque vejo nele, por assim dizer o momento “vazio” da solidez-compactação. Solidez-compactação é por assim dizer densidade do nada, e nada por assim dizer vazio da solidez-compactação.

Solidez-compactação (Härte) é algo bem diverso do que força, violento, massivo, brutal. Solidez-compactação tem sempre algo como nuclear, de rigor, denso, compacto, e ao mesmo tempo algo de transparente, enxuto, lapidar, consistente.

Enquanto nuclear, solidez não se deixa compilar e encaixar, não se funde em seu meio, não se deixa assimilar, atrapalhando a homogeneidade do espaço, do horizonte em que se encontra. Consiste essencialmente de: a-dimensionalidade e consistência.

A-dimensionalidade significa inicialmente algo como estranheza da estrutura de horizonte frente a algo redutível e depois destruição da dimensão e do horizonte. Nesse sentido, solidez tem algo comum com o horrível etc. Talvez seja a a-dimensionalidade do horror, a solidez-rudeza (Härte) do horror.

A solidez-rudeza é sólida-rude num horizonte, justo porque é a negação radical do horizonte. Mas solidez-rudeza em diversos objetos sólidos-rudes dentro de um horizonte é por assim dizer a multiplicidade da negação pontual do horizonte.

A extensão mais radical dessa negação é “morte”.

Essa negação do horizonte como negação do horizonte como tal (morte) não é uma negação em sentido usual, justo porque horizonte em geral não é objeto de uma negação. Enquanto negamos o horizonte como “objeto” temos de negar o horizonte num horizonte mais elevado. Com isso não atingimos o horizonte qua horizonte. De início, porém, se dá a negação do horizonte em geral, de algum modo ainda num horizonte. Mas justo a partir dessa tentativa por assim dizer suicida de negar o horizonte em geral, resulta – se levada a efeito radicalmente – a negação do horizonte em geral no sentido da “morte”, e essa “negação” refere-se ao nada, “onde” palavras como “mesmo”, mesmidade, si-mesmidade experimentam seu verdadeiro sentido.

Esse nada deveria ser pensado radicalmente. Portanto, se de algum modo quisermos determinar o “nada”, só iremos alcançá-lo negando todas as afirmações e negações sobre o “nada”, a fim de que o “nada ele mesmo” venha à aparição. Mas visto que nada nada é, não vem propriamente nada à aparição. O que vem à aparição é meramente a si-mesmidade. Nada é portanto uma formulação formal vazia da si-mesmidade da coisa ela mesma. É algo assim como caráter de todo ente, de ser “ele próprio”. Algo assim como condição “originária”, pela qual são os próprios entes.

Aqui temos de evitar de compreender “condição” como “espaço”. É aquele algo que “torna” os entes em próprios, sendo ao mesmo tempo e por isso a cada vez o ente singular ele mesmo. Não é horizonte nem espaço, justo porque algo como horizonte, espaço, são horizonte, espaço justo através de nada.

Esse nada enquanto si-mesmidade perfaz justamente a “essência” da consistência da solidez-rudeza. E o lado “positivo” da si-mesmidade é consistência.

A consistência da solidez-rudeza se mostra, por exemplo, na solidez-rudeza de uma porcelana translúcida-opaca. Visto com precisão, na solidez-rudeza da porcelana não há propriamente solidez-rudeza, mas “consistência”, por assim dizer, autoidentidade. Mas esta é uma identidade que se encontra “além” da contraposição diferença-identidade. Tampouco é compreendida a partir de diferença, de modo que nem sequer podemos dizer: idêntica consigo mesma. Constitui diferença, na medida em que enquanto autoconsistência é a coisa ela mesma, numa unidade tão consistente do próprio ente singular que

sem se destacar dos outros entes, torna-se em si mesma radicalmente diferente dos outros.

Como já se disse, poderíamos afirmar: solidez-rudeza é intensidade do nada. Essa afirmação naturalmente não é correta, na medida em que aqui não há uma intensificação gradual ou algo como densidade. Isso porque há, por exemplo, consistência (si-mesmidade) da densidade e consistência da “finura”. Mas consistência como consistência, isto é, como “si-mesmidade da coisa” é sempre “densa” no sentido de ser si mesma. A afirmação de que “solidez-rudeza é intensidade do nada” me mostra, porém, como o nada enquanto consistência não pode ser pensado apenas como a-dimensionalidade vazia, mas também como tudo, densidade, plenitude etc.

O nada como coisa ela mesma, onticamente, é a cada vez o singular radical. Isso porque significa a si-mesmidade do ente cada vez vigente. Portanto, também não há comparação entre dois entes na si-mesmidade enquanto si-mesmo. São e estão radicalmente separados pela consistência da identidade do si-mesmo. Mas justo por essa diferença radical, constituída pela autoidentidade, modifica-se a compreensão da unidade de todo ente. Unidade não é pois espaço, algo vinculativo, algo comparativo, não é horizonte, nem sequer algo identificável, mas algo como consistência harmônica de uma pintura-zen (Ramo de ameixeira e rouxinol de Hakuin; Paisagem com Fuji, Zen-ga de Suiô, p. 23; 40).

Seria a unidade do meio de uma esfera, que está por toda parte e em cada ponto da esfera. A dificuldade se encontra em que não podemos nos “representar” uma esfera enquanto esfera. Tudo que dizemos de uma esfera é uma tradução linear da esfera tridimensional.

Como está esse nada (si-mesmidade) em relação ao jogo (vida)?

Como origem do jogo: isto é, como a si-mesmidade do jogo ele mesmo.

Aquilo que dissemos no começo, portanto, que a “solidez” não teria lugar no jogo em certa perspectiva não está totalmente correto: A solidez-rudeza, enquanto consistência, enquanto si-mesmidade, é a origem do jogo ele mesmo. Nesse sentido, já não mais está em contraposição ao jogo, tampouco está em correspondência com ele, antes é a própria unidade-jogo. Mas a solidez, como a solidez da porcelana, por exemplo, da esgrima etc. e o jogo enquanto jogo de luz e sombras são radicalmente “diversos” justo pela si-mesmidade-consistência do ente singular respectivo.

Mas se perguntarmos “como” é o nada enquanto si-mesmidade em algo como jogo, então poderíamos quiçá dizer: é de início algo como silêncio transparente do espaço-de-jogo, onde cada vibração a mais tênue encontra seu movimento livre; e então igualmente como consistência, o sustento harmônico do jogo, que mantém em si ao

mesmo tempo e de uma só vez algo como leveza, tensão e precisão. A solidez-rudeza do jogo é a graça do jogo.

52

Pergunta feita a Rombach depois de uma preleção12

Eu não sei se esse resumo atinge o que o Sr. apresentou de forma viva e concreta nas preleções. Em todo caso, gostaria de averiguar se eu o compreendi direito ou não.

1. A autoidentidade da estrutura acontece como implicação em transição. Na sucessão e jogo que atravessa da “contraposição-distinção-composição mútua” dos diversos momentos, caminha para o aberto a estrutura como o rigor do perfil: isolamento, unicização (Vereinzelung). Esse caminhar para o aberto é de vez e igualmente fechar: conclusão, ocaso, morte. O fechar-se como ocaso é portanto, também, um momento essencial da gênese: a unicização enquanto fechar-se “para dentro de si” como isolamento da autoidentidade é igualmente caminhar para o aberto como perfil. Como tal, ocaso não pode “ser” sem “caminhar para o aberto” próprio da gênese. E visto que esse caminhar para o aberto só pode acontecer no “caminhar”, o ocaso só pode “ser” como “caminhando” (gehend): portanto, “vivendo”. Portanto: morte = vida, vida = morte. Então, eu tenho a seguinte impressão:

a) Em suas preleções, ocaso foi apresentado como sendo igual a em cima.

b) Mas para baixo e para cima oscila o significado da morte em outra (?) direção, a saber:

Na morte como unicização, que “nada mais diz”, surge o momento: solidificação (de um lado), nivelamento, esgotamento, esvaziamento (de outro lado). Portanto, como um momento que já não “é” mais como perfil, mas como solidez-decadência ou vazio-decadência, na medida em que esta nega o “respirar”, a vida, a “dinâmica-de-espaço” do alavancar-se: portanto, como morte da estrutura. Agora, às perguntas:

- Também a morte pertence essencialmente à estrutura nesse último sentido? Ou a estrutura exclui “essa” morte?

- Se a morte pertence essencialmente à estrutura no sentido recém mencionado, então ela lhe pertence como perfil. Nesse sentido, fenomenalmente a morte não “aparentaria” ser diversa que a morte-vazio ou a morte-enrijecimento, rumo à imobilidade? Talvez como solidez-rudeza e precisão do perfil, por assim dizer, concentrado-cristalino do movimento, de tal modo que “a partir do” movimento da estrutura acaba brotando uma dimensão que “está” “além” do “ocaso-gênese”. Ou seja, que o “ocaso-gênese” é caminho, mas não mais o “cume”?12 NdT: Escrito a lápis.

- Ou temos de dizer: gênese + ocaso + cume são três momentos próprios da estrutura? Se, agora, eu qualifico: gênese = caminhar para o aberto e ocaso = morte (enrijecimento como decadência), como se relaciona cume com morte?

Mas aqui surge outra questão:

2. Gênese + ocaso + cume em concreto, a saber, como poesia de Hölderlin é pois essa poesia ela mesma: enquanto tal estrutura é essa poesia. Nesse sentido, não se pode “ter” uma estrutura como universal, mas apenas na vigência do cada vez. Nesse sentido, estrutura é cada vez uma concreção. E nessa concreção enquanto concreção (perfil) o universal da estrutura deve caminhar para o aberto como “compreensão”.

Mas se, em vez de poesia, eu quiser analisar estruturalmente a constituição do objeto, então tenho como perfil: constituição de objeto como constituição de objeto. Ou seja, expresso formalmente: constituição do objeto da estrutura “nada” tem em si de estrutura, ou seja, no sentido de poesia-estrutura. Isso me parece significar: estrutura é aquilo que fomenta a vir a lume toda “constituição” enquanto constituição, mas ela mesma não é constituição. Fomenta o vir a lume a si mesmo como “estrutura”, por exemplo, na poesia, mas ali como uma constituição de “ser”. Mas ao mesmo tempo relativiza a si mesma e diz: não está dito que na “estrutura” tenham de estar presentes sempre gênese-ocaso-cume, pois se trata de concreção cada vez com vigência única. Pode-se ver a “estrutura” assim como relativização radical?

3. Nos quadros de Van Gogh (segunda-feira, 26.06) vimos a decadência da coisa (aldeia, casa) como “divisão” (Spaltung), onde a estrutura por assim dizer pode rebrilhar. Isso tudo ficou muito claro para mim, por exemplo, no quadro (aldeia), onde o plano de fundo (horizonte) “vem” para o primeiro plano.

Então tive dificuldades de ver exatamente o mesmo no quadro da casa em decadência. Pois, precisamente a decadência – assim pareceu-me – remete por assim dizer a casa de volta para a constituição de coisa. Justo pelo fato de a casa estar em decadência, tornou-se só agora em casa-coisa: justo como num busto. Ou teremos de dizer: que esse retroceder à coisa já é um resultado da constituição da estrutura? Será necessário, porém, [dar-se] essa “mediação” (palavra muito inapropriada) através da estrutura, para que se possa retroceder, ou será que pode acontecer sem “mediação”, por assim dizer, por si?

P. 5413

1. A autoidentidade da estrutura acontece como implicação em transição. Na sucessão e jogo que atravessa da “contraposição-distinção-composição mútua” dos diversos momentos, caminha para o aberto a estrutura como o rigor do perfil: isolamento, unicização (Vereinzelung). Esse caminhar para o aberto é de vez e igualmente fechar: conclusão, ocaso, morte.

O fechar-se como ocaso é portanto, também, um momento essencial da gênese: a unicização enquanto fechar-se “para dentro de si” como isolamento da autoidentidade é igualmente caminhar para o aberto como perfil. Como tal, ocaso não pode “ser” sem “caminhar para o aberto” próprio da gênese. E visto que esse caminhar para o aberto só pode acontecer no “caminhar”, o ocaso só pode “ser” como “caminhando” (gehend): portanto, “vivendo”. Portanto: morte = vida, vida = morte. Então, eu tenho a seguinte impressão:

a) Em suas preleções, ocaso foi apresentado como sendo igual a em cima.

b) Mas para baixo e para cima oscila o significado da morte em outra (?) direção, a saber:

Na morte como unicização, que “nada mais diz”, surge o momento: solidificação (de um lado), nivelamento, esgotamento, esvaziamento (de outro lado). Portanto, como um momento que já não “é” mais como perfil, mas como solidez-decadência ou vazio-decadência, na medida em que esta nega o “respirar”, a vida, a “dinâmica-de-espaço” do alavancar-se: portanto, como morte da estrutura. Agora, às perguntas:

- Também a morte pertence essencialmente à estrutura nesse último sentido? Ou a estrutura exclui “essa” morte?

- Se a morte pertence essencialmente à estrutura no sentido recém mencionado, então ela lhe pertence como perfil. Nesse sentido, fenomenalmente a morte não “aparentaria” ser diversa que a morte-vazio ou a morte-enrijecimento, rumo à imobilidade? Talvez como solidez-rudeza e precisão do perfil, por assim dizer, concentrado-cristalino do movimento, de tal modo que “a partir do” movimento da estrutura acaba brotando uma dimensão que “está” “além” do “ocaso-gênese”. Ou seja, que o “ocaso-gênese” é caminho, mas não mais o “cume”?

2. Nos quadros de Van Gogh (segunda-feira, 26.06) vimos a decadência da coisa (aldeia, casa) como “divisão” (Spaltung), onde a estrutura por assim dizer pode rebrilhar. Isso tudo ficou muito claro

13 NdT: Esta p. parece uma reformulação das questões apresentadas nas duas ps. anteriores.

para mim, por exemplo, no quadro (aldeia), onde o plano de fundo (horizonte) “vem” para o primeiro plano.

Então tive dificuldades de ver a necessidade dessa “passagem” (salto) para a estrutura. Não a passagem, pois essa podia ser vista claramente, em sua exposição. Mas a necessidade. Pois, precisamente a decadência – assim pareceu-me – remete por assim dizer a casa de volta para a constituição de coisa. Justo pelo fato de a casa estar em decadência, tornou-se só agora em casa-coisa: justo como num busto. Ou teremos de dizer: que esse retroceder da coisa já é um resultado da constituição da estrutura? Será necessário, porém, [dar-se] essa “mediação” (palavra muito inapropriada) através da estrutura, para que se possa retroceder, ou será que pode acontecer sem “mediação”, por assim dizer, por si?

Eu não sei se esse resumo atinge com precisão o que o Sr. expôs nas preleções de forma viva e concreta. Em todo caso, gostaria de averiguar se eu consegui compreendê-lo corretamente ou não. Muito obrigado.

Harada

P. 55

[Escrito a lápis: Um trecho de aula de Rombach]

Tentamos adiantar uma visão do que se pode chamar de estrutura e haurimos dali por assim dizer um dado arbitrário, uma poesia de Hölderlin, para aprender a vê-la como estrutura. Mas não precisa ser uma poesia, poderia muito bem ter sido outra coisa; tampouco seria incondicionalmente necessário que fosse outra poesia ou alguma obra de arte, mas qualquer dado alheatório deve poder ser compreendido como estrutura, se na estrutura está em questão um modelo ontológico fundamental como no objeto. Objetos, coisas (Ding), cousas (Sache), tampouco são grupos de entes, mas são tipos de ser, portanto formas fundamentais que podem ser vistas projetadas para dentro de qualquer dado ou donde se pode compreender todo e qualquer dado. Hoje, agora, gostaria de proceder do seguinte modo, mais uma vez, na primeira metade dessa aula, tomemos o exemplo, mas de tal modo que lemos o texto juntos. Mas antes de começarmos propriamente, gostaria de lhes mostrar novamente, e chamar a atenção mais uma vez para o modo e a maneira como nos achegamos a isso, não com algum interesse filológico, com algum interesse da ciência da literatura, mas com um interesse ontológico-filosófico, e como tentamos dar uma interpretação da poesia – não, isso é falso. Não, precisamente não damos uma interpretação, mas diríamos: toda e qualquer interpretação que diz, eu interpreto isso assim e assado seria a priori falsa, e quiçá porque de certo modo podem ser feitas muitas interpretações, não só podem mas até tem de serem feitas. Portanto toda restrição do sentido da compreensão da poesia a um único sentido seria um equívoco. Agora, quando lermos, quero lhes mostrar como podem dar-se diversas interpretações seguidas, e quiçá até tenham de seguir uma sequência precisa. Distingo, por assim dizer, quatro interpretações. 4 vezes a poesia, 4 vezes a mesma poesia. E a interpretação correta seria precisamente quando apresentamos essas quatro, e quiçá em sua sequência de tal modo que se possa compreender o todo como movimento. Esse é o nosso plano. É isso que vocês devem perseguir agora.

(Isso agora é simplesmente o texto – projetado na parede – a fim de poder lê-lo. Isso é importante. Pessoalmente sempre fiz a experiência de que temos de ler, não poder ouvir). Isso foi portanto “aprovação humana”, nessa divisão em dois círculos:

1. Círculo, ou seja, a parte superior do primeiro círculo: (Não é sagrado meu coração, cheio de vida mais bela, desde que amo?)

Depois, salto-guinada, virada no círculo interior: “Por que me deram mais atenção, uma vez que eu era mais altivo e selvagem, mais rico

em palavras e mais vazio? Ah, agrada a multidão o que presta na praça do mercado, e o servo honra só os violentos”.

E agora retorna o círculo exterior: “No divino só crêem os que o são eles próprios”.

1. Interpretação: isso são os que acolhemos no ler ou pelo menos no ler reiterado. Essa diz propriamente: São duas posições afastadas uma da outra, uma positiva contra uma negativa. Positiva é inicialmente: “desde que amo” – “no divino só crêem os que o são eles próprios”. Esse amor que desperta o divino, que é o próprio amante, esse amor se contrapõe então à multidão, a praça do mercado, o vazio. Essa é a contraposição. Disso se destaca esse divino, essa vida, essa vida plena, essa santidade do ser (?). – Isso seria a primeira interpretação. Agora vem a 2. interpretação.

A 2. diz: pois bem, o que significa, por exemplo, “vazio”! não, “vazio” seria propriamente o melhor contraconceito, a palavra mais forte, a palavra mais negativa do lado negativo. E o que significa isso? Não significa propriamente, como foi admitido na primeira interpretação, oco, oco e vazio, nada dentro, perdido, sem valor. Mas vazio é o estado a partir do qual cresce uma poesia enfática, e com isso se tem em mente uma poesia enfática da juventude. Mas isso não é vazio nesse sentido ne-gativo, mas significa propriamente ampliação do pego (Ausgriff), vastidão, amplidão, que é naturalmente, poderíamos dizer, espaço de jogo, liberdade. Esse é o sentido positivo desse vazio. E nessa liberdade, e nessa ampliação de pego, e nessa ferocidade selvagem (Wildheit), e nessa altivez (Stolz), que resulta precisamente do pego (Griff) que aqui adentra a vastidão, nessa altivez reside também um caminho. Sim, ali reside também um amor. Essa ampliação do pego, esse êxtase, esse ênfase era amor, uma forma de amor. E por isso rico em palavras: A boca fala daquilo que o coração está cheio. Isso é portanto um outro amor. Não se contrapõe amor a falta-de-amor, mas amor se contrapõe a amor. Essa é a segunda interpretação. Agora, através do descarte (Rückwurf) da primeira interpretação conquistamos uma segunda, que se erige, sendo perfeitamente coerente e inevitável. Agora vem a terceira.

A terceira interpretação diria: Não é assim que amor se contrapõe a amor; pois o segundo é o mesmo que o primeiro, não são dois modos distintos de amor, mas o segundo é a transformação do primeiro. O segundo é a transformação do primeiro amor. É só através do primeiro, portanto, através do vazio, através do horizontal, poderíamos dizer, através daquele que vive a partir do horizonte, a partir da abertura, a partir da vastidão, é só através desse que surge o segundo, que se tem em mente aqui, alcançado ou alcançável, e justamente não como segundo, mas como a maturidade, poderíamos dizer, do primeiro. Essa é a terceira interpretação. Agora vem mais uma.

4. interpretação, que afirma: Sim, é correto isso de dizer que esse sagrado amor é pois o ponto-final do outro, do selvagem e vazio. Será assim que também o movimento tem de ser levado a efeito para que se possa alcançar esse fim? Ou não será que o segundo amor, o sagrado, só é possível na transformação, apenas como mudança. Que portanto o amor é precisamente o curso de um para o outro? O que se tem em mente não é propriamente a forma conclusiva, de modo que então será preciso esquecer a primeira, mas a transição como tal, a transformação como fenômeno próprio é o decisivo, é em geral o amor ou o divino, do que se fala aqui.

Isso seria a quarta interpretação. Agora, se nos perguntarmos: onde está pois a poesia, a própria poesia? Como se compreende a poesia ela mesma? Então temos de dizer: A poesia não se encontra no nível da 4. interpretação, mas no nível da 3. A poesia fala como se o amor superior, o divino, fosse o superior, aquele propriamente a que se tem de ir; e o outro deve ser precisamente riscado, isto é, aquele que é bom para a multidão fala negativamente contra sua contraimagem, ou seja, a própria poesia ainda não está junto a si mesma, a poesia detém um estágio anterior a seu ranking próprio. Isso é um fenômeno que me parece essencial para a poesia, que toda e qualquer poesia contém em si também, sempre, uma interpretação de si mesma, não sendo apenas poesia, mas sempre também interpretação dessa poesia; e ali então se coloca sempre a questão: onde está essa interpretação? Nossa interpretação científica, portanto, deve interpretar sempre não apenas a poesia, mas igualmente também a autointerpretação da poesia, e então ver ali o verdadeiro espaço interior da interpretação, vê-lo na questão: como se relaciona a autointerpretação para com a poesia? Se isso for um equívoco – então não seria poesia. Se aqui não se alcança uma coincidência (Deckung), a razão disso está na própria poesia. O que significará que uma poesia não coincide perfeitamente consigo mesma? Significará que não pode deter-se nessa poesia, que por assim dizer a poesia transborda suas garras para além de si mesma e como que lança o poeta para fora, além de si, coloca-o novamente no dever, ou se coloca novamente ao seu encargo. Isso não significa, por assim dizer, que essa poesia ainda não alcança a si mesma. Para isso precisa ainda de outras poesias.

Agora vou para a segunda poesia que consideramos. Mais uma breve reflexão retrospectiva em vista da praça do mercado e do divino! Trata-se de enunciados bem contrários, embora agora, em nossa interpretação, olhando de passagem, vimos que essa contrariedade se deixa levar a uma identidade. O que significa praça do mercado? Praça do mercado conflui com vazio. Praça do mercado significa uma não-compreensibilidade-divina (?). O que se tem em mente é uma poesia, uma poesia dos primórdios que fala de tal modo que qualquer um consegue compreender. Mas isso não significa que seja simplesmente primitiva ou simplória, desclassificada, mas isso significa que essa poesia ainda não fala a partir das palavras, mas a

partir dos significados que são atribuídos usualmente às palavras. Trata-se, portanto, de uma poesia que ainda não vive totalmente a partir de si mesma. Uma poesia que segue o caminho tão distante, como a que seguimos nós, e foi precisamente isso que propriamente mais nos interessou a partir do aspecto estrutural, uma poesia que vai tão longe que aquilo que ela diz só se torna compreensível através do modo como o diz, é só uma tal composição poética (Dichtung) que é uma poesia (Gedicht), ou seja, agora já não está mais na praça do mercado, a ser considerada de fora, mas agora é seu próprio lugar e praça, detém seu próprio lugar, seu ranking próprio, ou seja, só pode ser compreendida ainda a partir do interior, a partir da co-realização da relação, com a qual as palavra se in... mutuamente14. Assim, voltada em si mesma, a poesia é singularizada (vereinzelt), unicizada (vereinzigt), sendo assim um signo do divino, que tem sua essência na unicidade (Einzigkeit). Assim, o divino está contra o mercado. Isso foi, então, a posição de 2 e 3. conservam então a posição de 4, que nessa poesia ainda não foi alcançada na autointerpretação, embora na estrutura da poesia isso já esta presente, portanto nessa posição 4, a diferença de praça do mercado e divindade, de pleno, pleno de vida e vazio, rico em palavras e vazio, acaba suspensa. Então, retornemos à poesia e perguntemos: como ir adiante, se ainda não chegou à coincidência consigo mesmo? – Então tomemos a próxima; a qual também já conhecemos, eu já a apresentei a vocês: “Die Kürze” (A concisão, a brevidade). Como preparação, novamente, por favor, recordar: Se a poesia for tão longe quanto foi a anterior, a saber, que se volta em si para si mesma, rumo a sua própria unicidade, então nada mais diz que poesia, ou seja, não fala para fora. Só fala ainda para dentro, mas nada diz. Ainda fala, mas nada diz. Portanto, nada fala no sentido de uma comunicação. E assim, de um certo modo, perde as palavras, torna-se silente (wortkarg). E é isso que o poeta vivencia faticamente aqui na execução; no co-viver, co-fazer, co-sofrer da execução interna dessa essência da poesia ele perde a palavra, torna-se silente, torna-se conciso, breve. “Por quê você é tão breve...” isso são aspas que nós ele de algum modo perguntado15. (Lido). Ou seja, assim como a felicidade se foi, também a canção se foi. – Ou seja, tomar banho contentes só podemos no rubro da manhã. No rubro da noite a coisa não vai, se fecha, ali não se pode tomar banho contentes. – Em que sentido pois isso é uma continuação da outra? Nisso que nessa poesia se diz aquilo que na outra poesia se efetua, sem que nessa outra ainda se houvesse adotado isso a partir de si mesmo. O que se efetua? Se realiza o autoretraimento do poetar na poesia. Ali onde se torna poesia, isto é, ali onde ele se fala em si mesmo, o poetar torna-se silente, deixando de ser uma canção. A canção se põe como o sol.

Isso é o que se tem em mente aqui com rubro da noite. Trata-se do ocaso da canção. E quiçá se põe necessariamente, não a partir de

14 NdT: Parece faltar um verbo, estar insinuado no ein ... (einflüssen = influenciar?).15 NdT: Frase no alemão ilegível: Das sind Auführungszeichen (deve ser Anführungszeichen), das wir er gleichsam gefragt.

certas razões históricas, razões exteriores, pessoais, de destino, razões psicológicas, razões geográficas, mas se põe a partir da necessidade íntima da poesia, e isso é vivenciado então pelo poeta como infelicidade, como entrada do frio, como anoitecer. A poesia se recolhe e vai-se embora em si mesma, porque nada mais diz. No instante em que a linguagem se torna eloqüente, em que as próprias palavras se tornam linguagem, se concedem elas próprias, por vez primeira, umas às outras seu sentido, se significam mutuamente, nesse instante a linguagem enquanto linguagem se põe; isso é a morte da linguagem o que aqui se apreende na poesia, a morte da linguagem. E essa morte é experimentada pelo próprio falante como a grande infelicidade. Isso significa simplesmente que aquilo que na outra poesia se deu como “cheio de vida”, que essa plenitude consiste justamente no fato de plenificar-se em si mesma, não persiste para fora, portanto, tampouco pode ser mantida, ser fixada e conservada. Não se pode tê-la. E experimentando isso, quiçá no primeiro instante vivenciando a plenitude, mas depois experimentando também que essa não pode ser mantida, não pode ser tida, acaba-se perdendo-a, no instante da poesia. Essa perda é dita aqui, uma perda que pertence porém à poesia ela mesma, pertence ao próprio processo, é totalmente inevitável.

Agora a poesia “Die Heimath” (A pátria).Froh kehrt der Schiffer heim an den stillen StromVon fernen Insel, wo er geerndtet hat;Wohl möcht’ auch ich zur Heimath wieder;Aber was hab’ ich, wie Laie, geerndtet?

Alegre retorna o marinheiro para o lar, na torrente serena, De distantes ilhas, onde colheu;Bem que eu também gostaria de retornar à pátria;Mas o que terei colhido eu, como leigo?

Ihr holden Ufer, die ihr mich auferzogt,Still ihr der Liebe Leiden? Ach! Gebt ihr mir,Ihr Wälder meiner Kindheit, wann ich Komme, die Ruhe noch Einmal wieder?

Vós, margens formosas, que me formaram e educaramAcalmarão as dores do amor? Ah!, irãoAs florestas de minha infância, quando venho,Devolver-me-ão mais uma vez o repouso?

Agora, nessa poesia, vem à expressão com precisão essa vivência da perda, mas com uma pequena variante, a qual nos interessa agora. – O marinheiro retorna contente ao lar, porque sabe que será acolhido em casa, pois sabe que tem algo a contribuir. O que ele tem a contribuir? Nada além de dor. E a questão é se as margens do começo voltarão a doar, se voltarão a propiciar o que propiciaram no início, a saber, o repouso. E o repouso é aqui o que na primeira poesia era a vida mais bela. Mostro-lhes essa poesia porque aqui se torna mais claro o que é o ocaso da poesia propriamente na própria poesia. A dor que figura ali é propriamente a dor de amor, ou seja, é ela própria uma forma de amor. É portanto, como poderíamos dizer

agora, um novo estágio na volta (Umgang) ou na transformação que observamos anteriormente. A transformação levou de um amor para o outro, do amor vazio para o cheio, do público por assim dizer para o único, para o sagrado, do profano para o sagrado. E aqui então esse amor sagrado converte-se em dor. Mas seguramente também como agora ouvimos por assim dizer com ouvidos treinados, que a dor não é o contra[posto] da vida mais bela ou do amor primitivo, mas que isso é novamente uma transformação do mesmo, e que essa transformação pertence ao âmbito da essência da outra transformação, que isso não passa de um novo estágio do mesmo, fomentado a partir da plenitude de vida. Eis, então, a última que queremos ler: “curso de vida” (Lebenslauf).

Essa poesia resume a totalidade.

Hoch auf strebte mein Geist, aber die Liebe zog Schön ihn nieder; das laid beugt ihn gewaltiger; So durchlauf ich des Lebens Bogen und kehre, woher ich kam.

Meu espírito anelou para o alto, mas o amor puxou-o com beleza para baixo. A dor dobrou-o violentamente; assim transcorri o arco da vida e retorno de onde vim.

Essa poesia consiste de 4 palavras: espírito, amor, dor, vida. Os três estágios que distinguimos são citados propriamente aqui. Espírito é a ampliação do pego, a vastidão, a riqueza de palavras, a altivez, o feroz selvagem. Amor é o pro-ceder no qual um passa para o outro, se transforma e ressurge perfeito como o amor da vida mais bela. Amor é o sagrado, espírito, por assim dizer o amor profano. Ora, se acrescenta o terceiro: essa pertence a esse elo, não se trata de um meio arco, mas um arco completo, um circulo, um círculo é o que se tem em mente. O próprio amor já dobra para baixo, e a dor dobra para baixo ainda mais. E esse dobrar para baixo não pode acontecer de outra maneira que através da dor, de tal modo que é só através dessa que a vida se torna plena como totalidade. Poderíamos dizer que isso é a autoconsciência da primeira poesia. Essa poesia é o lugar ou a vivência, o testemunho, o documento para o vir-a-si da primeira poesia que lemos, Menschenbeifall” (Aprovação humana).

Todas as quatro poesias que vimos agora, e outras também – isso poderia ser verificado também em outras – outras poesias também tem propriamente o mesmo conteúdo, tem o mesmo proceder do espírito, do amor e da dor, para dentro da unidade e para a realização plena da vida, de tal modo que volta a encontrar a saída (Ausgang), e a saída recebe o duplo sentido, com o qual ligamos essa palavra em nossa língua, saída, de certo modo, como exitus, ou seja como fim, e saída como aquilo donde algo começa, incipit, donde algo sai. E esse ponto inicial só pode ser reconquistado apenas pela dor, só através disso se torna possível a forma que aqui se constitui abertamente na autoexecução da linguagem na essência da poesia.

Eram essas as quatro poesias que eu queria lhes mostrar, e das quais portanto podemos aprender que ali há algo que se transforma, mas não se modifica, de tal modo que se dá dentro de um horizonte – uma vez que ali haveria um horizonte, uma determinada base fundamental, e então vai passando propriamente de uma estação para a outra. Ao modo, portanto, como compreendemos, por exemplo, o curso de vida do ser humano. Isso é sua subjetividade, que permanece sempre a mesma, ali é primeiramente criança, depois jovem, depois adulto, depois ancião. Não é assim, antes, é cada vez vigência de uma vida, cada vez uma interpretação, que perpassa completamente, estando totalmente fechada em si, ao modo exato como a consideramos como essência da historicidade na unicização epocal. E a transição não é precisamente um movimento, mas uma mudança, uma transformação, que, portanto, modifica tudo, de tal modo que o começo aparece a cada vez novo a partir do fim, do mesmo modo que o fim se dá novo a partir do começo, é começado de novo. É a cada vez novamente um começo, mas é sempre de novo o mesmo começo. Aqui (mostrado na mesa) era a posição da primeira poesia e é só no momento em que a poesia se realizou plenamente a si mesma, ou seja, quando viu que não se trata apenas de duas posições fundamentais, espírito e amor, mas também da terceira, e que essa é então a religação, nesse momento por assim dizer o indicador desse poetar, a autoapreensão desse poetar salta para a última posição, para a última possibilidade, de compreender a si mesmo, para a possibilidade na qual o todo é concebido como marcha, como curso de vida e quiçá de tal modo que só ali o andar, o desenvolvimento, o movimento em geral é a coisa em questão. – O que apreendemos dali para a estrutura é por um lado que desaparece o âmbito de validade do horizonte, surgindo em seu lugar outra coisa, algo dinâmico, um movimento. O fato de que aquilo que ali apareceu aparece agora unicizado para si, e quiçá de tal modo que a unicização (Vereinzelung), isto é, a divinização, a autosantificação, citada nessa primeira poesia, é o decisivo. E isso de tal modo que naquela posição que procede dessa unicização, tudo se determina a partir de si mesmo em plena confluência e disposição, de tal modo que a própria poesia se expressa em palavras. Mas esse expressar-a-si-mesma-em-palavras, a partir da relacionalidade mútua, em si mesma, na medida em que acontece é igualmente uma espécie de fechamento, volta a se fechar. Isso é por assim dizer um abrir – de imediato abre caminho, irrompe enfaticamente, é experimentado como abertura – depois, como fechar, a saber, ali onde o sagrado é apreendido como o unicizado, exclusivo, apreendido como o templo, o circunscrito, ali é um fechamento. Isso precisamente não são todos que compreendem, mas só aquele que se compreende a si mesmo ou aquilo que se compreende a partir do interior, aquilo que não se pode comunicar para fora. Depois, então, nesse fechamento volta a se abrir, e quiçá ali onde agora aparece, que isso não se fecha contra o outro, mas que reside justamente na transformação, que justo essa transição é o decisivo. Então volta a se abrir, e a transição aparece ali como transição pura e simples, isto é, como ocaso no sentido de dor e

morte, sejam quais forem os sinais para isso, o rubro da tarde ou o que quer que seja. Assim, poderíamos traçar a linha do seguinte modo: abertura, fechamento abertura, e então eu diria: conclusão (Verschluss). Se preferirem, pode-se dizer também: encerramento (Schluss). De modo que ali se locupleta uma linha toda própria, que aparece a partir de necessidade interna.

Ora, eu lhes disse há pouco que essa constituição pode ser encontrada propriamente em toda parte. Não só na poesia como aqui, onde a experimentamos como o acontecer da morte da linguagem, mas que propriamente pode ser observada em tudo. Todavia, e isso faz uma grande e essencial diferença, não no mesmo grau de claridade, não tão desdobrada e, poderíamos dizer, não tão sofrida, combatida, destacada, trazida a lume como aqui. É essa precisamente a profissão do poeta, portar por assim dizer as feridas abertas, que todo o restante fechou em si. Para deixar isso um pouco mais claro, quero vos colocar em contato com uma questão totalmente profana, que possui grandes analogias. Trata-se de um fenômeno biológico: A assim chamada teoria do mundo circunstante (Umwelttheorie) de Uexküll. Gostaria de expor essa teoria aqui, de modo bem resumido. Jakob v. Uexküll, um biólogo, por volta de 1930 expôs a teoria do meio-ambiente, que diz mais ou menos o seguinte, esquematizado grosseiramente: enquanto antigamente se admitia que todos os seres vivos, todos os animais se movem justamente no mundo, ali buscam suas coisas de que precisam , e ali voltam a finar, Uexküll interpreta as coisas de modo diverso e seguramente de maneira mais correta, a saber, tal que cada ser vivo possui seu mundo. Não existe um mundo onde os animais se movem, onde os seres vivos se movem, mas existe apenas o respectivo mundo do animal como seu mundo circunstante. Como se da isso? Isso se dá assim: Ele delineia isso na forma de um assim chamado círculo funcional. O círculo funcional de Uexküll parece como: Cada ser humano possui órgãos receptivos, um receptor. Esse receptor anuncia algo que ele percebeu. Isso é um sinal perceptivo (Merkmal) que lhe chamou a atenção; portanto, da natureza, ele toma algo como sinal, algo que pode ser para ele sinal, repassa-o ao órgão da percepção, o órgão da percepção repassa-o ao órgão da atuação, o órgão da atuação gera uma ação (Wirkung) através de um efetivador, através de algum aparelho de atuação, que então produz uma determinada modificação no objeto.

Uma vaca experimenta o sabor do trevo (órgão perceptivo), (órgão da atuação:) dá o alarme, por assim dizer, a indicação para a atuação do comer, então a vaca se lança a isso, e através do fato de ela comer, irrompe isso, só agora sente perfeitamente o sabor, uma vez que o apetite vem com o comer, e assim aciona a atuação, ele a chama de função-atuação (Wirkmal), que o animal imprime ao objeto, a saber, que é decepado, que agora a seiva jorra, essa função-atuação proporciona agora um novo sinal perceptivo (Merkmal), que é conduzido novamente ao órgão da percepção, que influi e age

correspondentemente sobre o órgão de atuação, o que provoca novamente um novo efeito do efetivador.

Ao conjunto global de todas as notificações ele chama de mundo da percepção (Merkwelt), o conjunto global de todas as atuações, o mundo da atuação (Wirkwelt), ambos estão ligados pelo universo interior do ser vivo, e todos os três mundos juntos perfazem, e quiçá dito a partir daqui, o mundo circunstante (Umwelt). Esses são os quatro mundos que pertencem à constituição de ser do ser vivo. E quiçá agora se dá o caso que, através desse círculo funcional, o ser vivo é inserido em seu mundo de tal modo que isso se corresponde perfeitamente. Esse círculo funcional está vivo ainda hoje na biologia moderna e na mais recente, portanto, por exemplo, na cibernética biológica, está vivo sob o nome de “círculo regular”; Vocês já ouviram sobre isso, conhecem de que se trata, no momento isso está muito em moda. Círculo regular (Regelkreis): Delineio brevemente mais uma vez essa coisa em questão na versão apresentada pelo biólogo freiburguense Hassenstein em sua “cibernética biológica” (Biologische Bybernetik). Ele diz: Normalmente temos uma grandeza regular. Ele afirma, como exemplo, o curso de circulação sanguínea, uma determinada temperatura. Essa temperatura oscila pela ação de uma grandeza perturbadora vinda de fora, é colocada fora dos trilhos: o homem cai dentro da água fria. Agora, temos ali um sensor, trata-se portanto do receptor de Uexküll, que repassa isso a outro regulador. O regulador, agora, é o mundo circunstante de Uexküll, o conjunto de órgão de percepção e órgão de atuação, ou via de regra o sistema nervoso central, no caso de seres vivos, portanto. Mas esse sistema não se aplica apenas ao ser vivo. É isso a novidade frente a Uexküll e a novidade frente à teoria biológica do mundo circunstante, a novidade da cibernética, pois, isso se aplica a todos os processos, inclusive para os processos das máquinas, a mecânica; onde quer que se acione tal coisa, ela terá no fundo essa configuração. O sensor, portanto, passa para um regulador, o regulador remete de volta, dá-se uma certa grandeza de ajuste, então surge o valor-real (ist-wert), que no regulador é comparado com um valor-ideal (Sol-wert). A partir dos dois surge uma grandeza de ajuste e essa grandeza de ajuste é introduzida aqui nessa região do fenômeno através de um mecanismo de correção ou através de um membro de ajuste (Stellglied), de modo que se restaura a grandeza regular. Irrompe portanto uma perturbação e é harmonizada através desse mecanismo, através de uma correção. Isso é um círculo regular; um exemplo, portanto: a queda na água, a temperatura do sangue cai de repente, isso é anunciado, daí surge uma atuação, a indicação de uma atuação, digamos, portanto, a contração dos vasos sanguíneos exteriores, para com isso provocar uma retenção sanguínea no interior etc. Como isso tem de ser explicitado depois fisiologicamente. Isso é portanto o mesmo, igual nos dois lados. Acho o modelo de Uexküll um pouco melhor por uma razão: porque a cibernética precisa acrescentar alguma coisa, o que Uexküll não precisa acrescentar uma vez que já estaria ali, a saber, aqui, uma ação influente (Beeinflussung

intervenção). Ali é preciso, por assim dizer inserir a partir de cima uma normativa, um valor-ideal. O todo precisa de certo modo ser ajustado, então funciona. Enquanto que em Uexkül as coisas são de tal modo que através do percurso constante do círculo a normalização se realiza por si mesma. Do modo como são as atuações, incidem também as recepções. E assim o todo se regula através de jogo mútuo de recepção e efeito. Enquanto aqui nesse modelo, o todo é pensado apenas numa única marcha (Gang): anuncia-se uma perturbação, é corrigida, e volta à ordem. Em Uexküll vê-se que essa marcha tem de ser perpassada muitas vezes, cem mil vezes até ser corrigido, e que a corretura é a própria essência interna desse círculo funcional, ou seja, é o funcionar do círculo funcional. Essa exteriorização que se dá na cibernética, depois é retomada por um determinado tempo morto (Todzeit), isso é portanto um aparelhamento complexo que reconduz novamente para tal aquilo que se deu desde cima. Trata-se de um pro-cesso de reacoplamento. Nós o conhecemos da alta frequência. Então retorna aquilo que foi o caso em Uexküll. O que foi ali, pois, o caso? O que é a novidade da interpretação? A novidade dessa interpretação é que ali não há o mundo e ali o ser vivo, que ali se localiza sofrivelmente e se afirma, empreende uma luta pela existência e depois volta a ser deslocado de lugar, mas que o mundo e o ser vivo, num processo de constituição mútua, são ligados numa unidade através do atuar e perceber. Vou ler para vocês uma frase, e é possível extrair uma infinidade de coisas de Uexküll. Ele diz: “Através desse pro-cesso, os animais são construídos de tal modo dentro da natureza, que também o mundo circunstante trabalha como uma parte planejada do todo”. Portanto, como um órgão do próprio ser vivo, o mundo circunstante é intro-organizado no ser vivo, assim como o ser vivo se organiza para dentro do mundo tornando assim o mundo em mundo circunstante. “Pode-se expressar isso também do seguinte modo”, afirma ele, “onde há um pé ali há também um caminho, onde há uma boca ali há também alimento, onde há uma arma, ali há também um inimigo”. Isso significa, portanto, o verdadeiro ser vivo não é esse animal dentro de seu mundo, mas o ser vivo é o mundo circunstante como um todo, onde o animal tem apenas a função de um órgão, todavia do mais poderoso em atuar, poderíamos dizer: o motor, portanto é o órgão, o único, que leva a organização do todo, como tal, à impulsão (Schwung) e em equilíbrio. Muito bom, diríamos, mas o que isso tem a ver com as nossas 4 interpretações? Isso resulta naturalmente muito fácil: o que aqui na interpretação é por exemplo o autofechamento da linguagem, é na vida dos animais a morte. E cada uma das posições que desenvolvemos, posições do falar poetizante, podem ser realizados também na natureza de forma bem concreta, de forma bem infame, bem profana, como fenômeno.

[Espaço, tempo]

P. 63 Outra aula de Rombach16

Na aula de hoje vamos encerrar nossa reflexão um tanto arriscada sobre a relacionalidade das medidas básicas cosmológicas e do a-sistema. No primeiro ponto aprendemos a compreender a relação fundamental pela qual espaço e tempo deveriam ser compreendidos não como campo homogêneo mas como estruturas inhomogêneas, de tal modo que a cada vez surge uma densificação (Verdichtung – consolidação) ou uma dissolução, um aumento transitivo continuado ou uma minoração da consistência de espaço e de tempo.

Num segundo momento relacionamos com isso o fenômeno do movimento. E vimos que essa inhomogeneidade de espaço e tempo, só pode se estabelecer através da intervenção da essencialidade do movimento, do fenômeno do movimento. A condição de possibilidade dessa estrutura é a sua mobilidade. É só porque o espaço é móvel – não o espacial, mas o próprio espaço ou tempo “sobrepassa” –, não sendo apenas uma forma de sobre-passagem, mas ele próprio “sobrepassa” – por isso pode ser inhomogeneidade, ou seja, tem estruturalidade como tal. Num terceiro ponto, começamos a observar a desigualdade de espaço e tempo dos lugares dentro dessa estrutura. E vimos que, de princípio, há lugares de duas ordens. Justo porque pode se dispor um ponto central ou um campo central, que é de outra natureza, de outra constituição, diferente das zonas periféricas dessa estrutura concêntrica.

De princípio, há portanto sempre duas determinações divididas, sendo que a segunda determinação permanece retroreferida à primeira como determinação de movimento. Chamamos a isso de disposição inicial (Ansatz). Há portanto um espaço de disposição inicial e espaço relacional ao seu redor, um tempo de disposição inicial e um espaço de relações ao seu redor. Poderíamos explicitar ainda essa relação de inhomogeneidade da desigualdade de espaço e tempo deixando claro que então mais espaço significa: o espaço não é propriamente como que um estado, mas um acontecer, espaço é propriamente como que um fenômeno temporal e só pode permanecer aberto nesse desdobramento. No instante em que retirássemos o tempo, o espaço se fecharia como o fechar-se de um guarda-chuva. O tempo é a tensão interna do espaço. Isso porque é aberto através de mobilidade. Mobilidade é então, agora, apenas tempo. O mesmo se dá no momento em que se retirasse o espaço. Não restaria tempo vazio, mas também o tempo caminharia para sua própria impossibilidade. O espaço mantém o tempo aberto, na medida em que tempo é sempre igualmente estendido sobre um campo temporal como desigualdade temporal, portanto está sempre numa relação de desigualdade para consigo.

16 NdT: Escrito a lápis.

Essa relação só se pode manter aberta sempre através de, sobre e passando pelo espaço.

Consideremos agora uma passagem (Passe) da distribuição do tempo. Isso é (cf. a imagem) o ponto central. Isso é como que o limite do todo do mundo no sentido recém descrito e restrito. Então a condição de possibilidade de tempo, da não-uniformidade, é que aqui a relação temporal está principialmente diferente do que aqui. Portanto, diferente do que aqui e aqui. Diferença dos lugares é a pressuposição da estruturabilidade do tempo. O espaço, portanto, o espaço trilhado é a determinação da possibilidade do tempo.

Nesse contexto podemos dizer também que a inhomogeneidade dos lugares surge levando em consideração a mudança do movimento vertical para o movimento horizontal. E quiçá assim: nos representamos a coisa de tal modo que na estrutura espacial, ao redor de um ponto central, na direção para fora se encaminha um movimento que ultrapassa o espaço. Digamos até um determinado ponto, até um limite “determinado”, que não pode ser indicado com precisão, portanto até um limite indeterminado. Ora, se deixamos e fazemos com que as relações de espaço se estendam para todos os lados, para todas as três dimensões, então temos mais ou menos o espaço que corresponde àquilo que aprendemos em nosso manual de geometria. Ora, as coisas são tal que, além desse limite indeterminado, os movimentos dos lados se tornam cada vez menores em relação ao movimento horizontal-radial, até que por fim, na margem, só resta ainda o movimento radial com velocidade. Todavia, ali o espaço parece infinitamente condensado, de tal modo que o movimento já não existe para nós, já não leva à extensão. Mas mesmo assim, ali, persiste o limite infinito extremamente máximo de velocidade como movimento de fuga, medido no qual, tudo o mais se torna igual a zero e assim, aqui, o movimento vertical se torna cada vez mais num movimento horizontal, e como vimos no final da primeira aula, surge a questão: qual é pois, propriamente, o estado de movimento originariamente autêntico? Essa panlateralidade do movimento é mais elementar que a unilateralidade do movimento final? E eu decidiria a questão a favor da última resposta e diria que esse é o movimento originário. Isso porque esse ponto no qual o movimento nos parece possível ao mesmo tempo, é ele próprio novamente fenômeno marginal, fenômeno limítrofe, de tal modo que tudo que aqui vemos na multiplicidade do movimento, pode ser apreendido ele próprio como um único feixe, radialidade do movimento. De acordo com isso, é possível reconduzir o movimento a um movimento de único feixe (einstrahlig), num movimento radial ou o movimento radial é a forma cósmica de todo e qualquer tipo de mobilidade. Assim, quando temos isso presente, hoje, sabemos então que há uma possibilidade dupla dentro dessa estrutura. Há um campo interior no qual só podemos falar de um movimento como estamos acostumados, e uma possível configuração do campo exterior, do

âmbito exterior, onde se pode falar do movimento num significado de um sentido único.

Também aqui portanto inhomogeneidade do campo de movimento, distributividade do movimento e modo fundamental de mobilidade como tal. De tal modo que,retrospectivamente, se deve levar em consideração também se um estado de movimento deve ser descrito. Por dentro temos espaço, por dentro trata-se de espaço como o âmbito aberto para movimento como possibilitação de movidos (Bewegte), e por fora temos o próprio espaço como movimento; por dentro como possibilitação (Ermöglichung) do acontecer, por fora o espaço como o próprio acontecer do espaço.

Se quisermos inserir aqui uma pequena reflexão retrospectiva, deveríamos dizer: por dentro é espaço horizonte, portanto, em certa medida ato, onde tudo é possível, e fora se concretiza, torna-se necessário (vernotwendigt sich) o próprio espaço em acontecer. O próprio espaço concretamente prenhe.

Como dissemos, a partir de fora, o acontecer interno é ele mesmo acontecer externo, de modo que permite distinguir a ambos; através de distinguibilidade pode ser fixado. De fora, expressa-se a identidade das duas formas de movimento espacial que podemos apreender.

É portanto, por assim dizer, uma tentativa de compilação de Einstein e Hölderlin.

4. A inhomogeneidade do espaço não só não é contra o caráter espacial, mas muito ao contrário é somente ela que atribui o caráter de espaço. Noutra versão, expresso negativamente: um espaço homogêneo de modo algum poderia ser espaço. É precisamente isso que se deve refletir agora: de início, dissemos: em nosso espaço, a relação é tal que no limite imediatamente não dá para ir adiante. Por outro lado, sabemos que no limite dá para ir adiante. Portanto, ele vai mais adiante. Mas o que significa aqui ir adiante? Ir adiante, agora, deve referir-se a: ou a esse principiar (Ansatz), e então não dá pra ir adiante; ou a um novo principiar, e então dá para ir adiante, mas não no sentido de “isso vai adiante”, mas só aqui começa como tal. É isso perfeitamente a retrorelacionalidade de toda e qualquer determinação espacial, de todo e qualquer padrão cósmico de medida a um respectivo principiar.

Limite é, portanto, apenas relativo ao principiar. E é só porque há o deslocamento da ordem de grandeza da medida espacial que há espaço como espaço do mundo, ou seja, como uma grandeza atribuível. É, portanto, pelo fato de o espaço experimentar em si essa densificação (Verdichtung – solidificação), que ele se abre em geral de densificação para densificação. E libera um espaço de jogo para o

acontecer cósmico como campo de jogo, cuja medida pode ser computada como E-anos.

Se não se desse a condensação do espaço, isto é, se fosse apenas espaço homogêneo, então teríamos espaço infinito do universo, cuja essência propriamente só pode ser compreendida como autoaniquilação.

Vamos tentar deixar isso claro através de um experimento do pensar: penso num espaço infinito. E então, locada, dentro dele como algum dado material, uma estrela por exemplo. E então, que não vai adiante infinitamente, que não vai adiante aleatória e infinitamente, ou que pode ir, se reduz assim, de certa forma, a medida que eu já percorri numa grandeza confiável, medido naquilo que eu ainda não percorri. Num espaço infinito, aquilo que eu ainda não percorri iria ser sempre mais infinito [isso deve significar!] sempre maior que aquilo que eu já percorri. Assim, aquilo que eu ainda não percorri aniquila aquilo que eu já percorri. Ou seja, o espaço se aniquila, de certo modo, na consideração, na explicação de sua própria execução. Só se pode pensar ou representar espaço quando ele está estruturado, isto é, quando possui um limite finito. Mas só tem um limite finito quando, enquanto possibilidade cósmica, se finaliza como próprio espaço ali, e não finaliza dentro do espaço. O espaço só pode finalizar-se como espaço ele mesmo nessa forma de uma transição igual de um autoaniquilamento próprio absoluto no modo descrito, de tal modo que ele próprio é pensado como movido. A densificação, portanto, a estruturalidade do espaço possibilita como tal, pela primeira vez, o caráter espacial.

5. O quinto ponto é uma consideração do movimento e parte diretamente de um dado afirmado pela teoria da relatividade: não há movimento absoluto, ou seja, que de imediato não há velocidade ilimitada, mas que velocidade é sempre uma determinada medida, talvez c, que como diz Einstein, não pode ser aumentada.

Podemos compreender essa implicação de uma velocidade absoluta num duplo sentido. Por um lado, de modo que não podemos constatar um movimento absoluto; pelo fato de se dizer isso é movido, aquilo repousa, mas que tudo pode ser movido ou ser visto como repousando dependendo de como as determinações são colocadas em relação com outros dados. Movimento é só uma constatação relacional, não é uma propriedade das coisas elas mesmas.

Por fim, isso é uma pressuposição simples e autoevidente, mas além disso creríamos que o discurso de Einstein de que há velocidade absoluta igual a c, além da qual não pode ser aumentada, que também esse enunciado devesse ser relativizado. Relativizado no sentido de que dizemos: aqui temos um ponto central, a partir donde parte um movimento, um movimento crescente, que adota um movimento c. Além deste não se pode ir adiante. Está cadeado. Mas

quando estamos num outro posto e vemos que a coisa vai adiante, então temos uma outra velocidade e quiçá nessa direção, na direção para fora. De acordo com isso, deveríamos dizer assim: aqui temos a terra, sobre a mesma, pessoas dotadas de poder de observação normal que se movem para essa direção com a velocidade c. Ora, aqui nesse planeta constatamos que a partir daqui os raios são irradiados para todos os lados com velocidade c. A partir daqui, portanto, pode ser enviado um raio que tivesse a velocidade c desde a partida. Mostrar-se-ia portanto 2 c como velocidade. Mas não é esse o caso, uma vez que o raio de luz que incide na terra encontra aqui um novo principiar. Apagamos o velho de tal modo que agora só temos a velocidade c restante.

Mas essa consideração mostra precisamente que não conseguimos ir além de crealiter, mas apenas idealiter. Portanto, é em referência a um determinado principiar, a um medir determinado dos físicos que não se pode ir simplesmente além de c, que não há, que não pode haver algo mais rápido que c. Jamais haverá, portanto, algo que seja mais rápido que c. Mas nesse posto onde se fixa o c, posso constatar novamente c, portanto, praticamente ter a velocidade de 2 c. Poderíamos dizer portanto que não há um limite da velocidade da luz no sentido da grandeza real, mas apenas no sentido da ideal, como grandeza de medida. Essa dupla velocidade não pode ser medida. Mas devo poder pensá-la, pensá-la realiter, a fim de que não surja nenhuma contradição no sistema. Isso seria portanto a primeira pequena correção à regulação da linguagem de Einstein. Ele a chama de constância absoluta, ou melhor, constante. Nós iremos chamá-la de constante relativamente ao principiar.

Mas em relação ao principiar absolutamente válido, não mais suplantável, não mais ultrapassável. Este (Einstein) tampouco a relacionou ao principiar, mas apenas ao observador.

6. Um sexto ponto deveria mostrar que a partir da reflexão que fizemos até aqui dos princípios fundamentais, não há espaço, mas apenas ainda relações espaciais. Há espaço mas apenas em relação a um principiar. Não há espaço mas apenas relações espaciais. Só posso falar de espaço ali contra o que algo é, em relação interna para com outro algo, e quiçá em relação ôntica. Onde nada há, de modo algum posso falar de espaço, isto é, do que pode ser colocado em relação. Com isso não se disse que deva haver matéria para que seja possível espaço. Pode bem ser que espaço seja colocado em movimento em si mesmo para si mesmo, e assim se possibilite como espaço. O espaço, pois, levado à relação consigo mesmo – isso não é possível no espaço cartesiano – com esse espaço isso é possível, pois aqui ele é levado de si mesmo para si mesmo como movimento. Esse é o espaço ele mesmo. Explicamos essa relação, portanto no modelo-fonte do espaço.

Portanto, só ali onde se podem realizar, manter, mensurar relações reais é que pode surgir algo como espaço. Portanto, algo como espaço de mundo.

Mundo não é primeiramente possível e depois se dá dentro do âmbito de sua possibilidade, mas o mundo se torna possível apenas em sua realidade. É só ali onde há o mundano (welthaft), onde se estabelece o acontecer relacional, só ali é possível relacionalidade.

A possibilidade do mundo segue sua realidade, e não por exemplo o contrário, que a realidade siga a possibilidade. Ademais, isso se torna interessante em referência à cosmologia clássica tomista-aristotélica.

Para a cosmologia tomista sempre foi um problema: como o mundo criado está para com o criador. Ele acrescenta ou em nada contribui? Se o mundo não contribui com nada de novo, então não seria criação. Se acrescentar algo de novo, então antes estava faltando. Se antes faltou, então Deus criador não é absoluto. Absoluto significa pois: nada falta. Em sua realidade a tudo se deu possibilidade (ist alles Möglichkeit gegeben). Portanto, esbarra-se em contradição. Se admitirmos o mundo como real, então não dá certo. Se não, portanto, se o admitirmos como não real, portanto, como algo novo, como algo acrescido, tampouco dá certo.

Esse dilema só pode ser solucionado dizendo: no instante imediatamente “antes” de o mundo ser criado, tem de ter sido criada por vez primeira a possibilidade do mundo. Portanto o espaço aberto no espaço-espaço e espaço-tempo, para dentro do qual o mundo material deve ter sido criado. Esse espaço aberto não pode ter-se dado antes, se não seria espaço vazio.

Temos de nos representar esse estado de coisas do seguinte modo, que o espaço do mundo só foi criado junto com o mundo. Espaço de mundo é possibilidade do mundo, possibilidade física, geométrica do mundo, que então não precede a realidade do mundo, mas precisa primeiramente pender desta, deve somente ter-se dado junto.

É precisamente isso que afirma a tese tomista, pelo menos onde é executada coerentemente. Não é aristotélica. Para Aristóteles há que se dar primeiramente a possibilidade depois a conceitualidade do mundo. Ora isso, soluciona o problema metafísico, mas de algum modo nos deixa insatisfeitos humanamente. Agora, a teoria da relatividade confirma precisamente essa via metafísica nos moldes científicos, quiçá na versão relacional que apresentamos.

Isso é o princípio da concreção absoluta do mundo. Mundo se atém a sua concretude. Só é ali onde é concretamente fático, onde não, nem sequer não é. Se o mundo fosse aniquilado, aniquilado num golpe, ali então não há o nada ou antes espaço de mundo, mas com o mundo também seu não (ihr Nicht) é aniquilado. Ali, depois nada falta quando não se dão. Exatamente como dissemos antes, com a criação

do mundo, teve de ser criado também o seu não, assim também aqui tem de ser criado primeiramente o fato que ele não é. E então poderia ser criado. Mundo traz consigo o envoltório de sua possibilidade em sua realidade-concreção.

O sétimo ponto é o momento que é possível como princípio ... por toda parte, onde vige repouso por toda parte, onde não há espaço absoluto, mas se constitui meramente espaço através dos dados relacionais. Isto é, cada ponto, enquanto ponto central, é igualmente ponto de repouso, em relação ao qual outras coisas devem ser designadas como movidas.

Poderíamos construir um contra-caso, trazendo demonstração para nossa afirmação a partir da negação dessa possibilidade contrária. Perguntamo-nos, portanto, se alguém consegue pensar um todo imóvel. Não. Isso não é possível, pois em tal modelo de espaço, totalidade do mundo, as coisas poderiam, teriam de se distribuir por assim dizer no mesmo ritmo, não poderia ser densificadas primariamente pelo espaço. Mas a densificação do espaço é necessária para a constituição de espaço. Ou seja, um espaço relacional só é pensável na mobilidade. Ou seja, de modo que surja encurtamento (Verkürzung) em relação ao espaço, dilatação (Verlängerun) em relação ao tempo. Isso significa, portanto, movimento. Movimento constitui o espaço, na medida em que é pensado como estruturado.

Repousando, ou seja, sempre o ponto central, e quiçá de tal modo que está sempre relacionado com tudo o mais enquanto movimento, de modo que tudo o mais pode ser pensado ele mesmo como ponto de repouso, em relação ao qual, toda outra determinação de lugar deve estar referida à mobilidade. Podemos tornar evidente esse pensamento, que traz em si mesmo (der in sich selbst trägt), dizendo: cada ponto do todo do universo tem de ser pensado como determinado relacionalmente com todos os lados. Não há nenhum posto que esteja relacionado com a metade dos lados. Não há portanto um meio-fenômeno, nenhum fenômeno-limite no mundo. Se tudo deve ser determinado relacionalmente com todos os lados, então poder-se-ia pensar tudo como repousando, em relação a que, tudo o mais é movido. Ou seja, em relação a que tudo o mais foge. Localizado, portanto, tudo é como relacional para todos os lados, localizado portanto, pelo fato de poder ser ligado a todos os lados, que, tomado precisamente, como um único ponto, pois no campo do mundo está o ponto central.

O repouso constitui o lugar, cada ente é, repousando, relacional para com tudo. Lugar é apenas ponto de repouso, só assim é definível, numa amplidão cósmica. Não portanto através de coordenada. Não como estamos acostumados a fazer: nós determinamos uma relacionalidade-pontual a um sistema coordenado. Mas logo surge a pergunta: a que está relacionado o sistema coordenado?, e assim por

diante, ao infinito. Uma determinação se encaminha sempre a uma indeterminidade. E assim, de imediato, se dissolvem todas as determinações na indeterminidade do espaço. A não ser que pudéssemos constatar um ponto absoluto no espaço estruturado, a saber, como ponto central. Todavia, de tal modo que tudo pode tomar essa posição: que de imediato aparece como um ponto espacial mas logo se torna dissolução, quando pensamos proporção métrica como um referir a um principiar.

8. Como não existe nenhum limite absoluto, tampouco há limite temporal absoluto do mundo. Em parte alguma há, portanto, um posto onde o tempo de mundo de certo modo finalize, mas apenas que ali o tempo passa ao infinito, ou seja, decorre referido a nosso principiar (Ansatz). Mas isso em nada modifica o fato de ele surgir nesse posto, surgir factualmente. Já esclarecemos que precisamente ali à margem do mundo pro-cessos adotam uma lentidão monstruosa num decurso infinitamente igual no predomínio excessivo da massidade.

Duas pessoas que queiram se dizer “bom dia” no fim do mundo se arrastam nesse movimento infinitamente lentos. Neles o tempo corre tão de vagar que esse acontecimento tido por eterno é experimentado como decurso normal. Esse é pois o ardil de toda essa explicação. É só em relação a esse principiar, aqui em relação a nós, que estamos aqui sentados, e em relação a que nos denominamos como tais estando à margem, só em relação a esse principiar é que estamos propriamente assim. [Frase estranha: Im Bezug auf sich, wenn ich hier hinstelle, sagen wir guten Tag, gehen wir zusammen ins Kino, nach Hause usw.] Em relação a si, quando coloco aqui, dizemos bom dia, vamos juntos ao cinema, para casa etc. Essa dilatação aqui só persiste para nós, em nosso principiar. Em referência a si mesma não é uma dilação, não é uma contração.

Mas se nos colocamos nós mesmos nesse ponto, então decorre tempo infinito, e um passado infinito já se passou, de modo que posso pensar retroativamente o começo do tempo dilatado. O tempo é em si portanto contínuo, portanto falar de uma explosão do mundo num determinado ponto do tempo, ou de fuga da névoa e da expansão do mundo é propriamente absurdo. Com sentido só está referido a nosso tempo, mas enquanto enunciado cosmológico absoluto é insustentável.

9. Viagem pelo espaço. Em relação à totalidade do mundo a gente sempre repousa. Isso porque o todo enquanto todo só pode ser apresentado a partir de um si mesmo, a partir de um principiar adotado por nós. Portanto de modo algum é possível perambular pela totalidade do universo. Tudo que encontro no mundo está em repouso, em vista do mundo não em vista de vizinho. Ali está alguém de pé e eu me afasto dele. Mas ao mesmo tempo o mundo se move e dele se afasta. Mas o mesmo vale para mim. Na medida em que eu

me afasto dele, o mundo se afasta de mim. Enquanto ele se move afastando-se de mim. Porque tudo pode ser compreendido ponto central do mundo e com isso como principiar. A partir de si, e assim como principiar absoluto, não há. E visto que tudo é centro do mundo, não é possível perambular no mundo, ou viajar espacialmente (raumfahren). Pensando a partir do todo, portanto, não há qualquer movimento translatório, nenhum movimento espacial movido, movimento só é possível sempre e apenas num sistema estanque, num sistema portanto que fixei artificialmente em relação a que, depois, podem-se constatar movimentos. Mas fixação artificial separa esse sistema da verdadeira estrutura de mundo. O sistema artificial só é manutenciável num âmbito de aproximação, ao meu redor, por exemplo, no âmbito que eu delimitei. É só no âmbito direcionado a partir do principiar que se pode pensar movimento translatório nalguma forma dentro do espaço; quanto mais se avança para fora, tanto mais desaparece o movimento translatório dentro do movimento e cria lugar o próprio movimento espacial.

Portanto, é só na proximidade do movimento no espaço, mas o que significa na proximidade, até onde alcança essa proximidade? Isso não pode ser dito de forma absoluta, mas novamente apenas de forma relativa, ou seja, apenas em relação ao dado do espaço ele mesmo. É só através do fato de que o espaço pode ser trazido para a relação consigo mesmo, isso é, pode ser interpretado como movimento, é só por isso que há, como tal, proximidade e distância, é só assim que se pode falar de medida cosmológica.

10. Matéria. Consideramos até agora a inhomogeneidade do espaço, a inhomogeneidade do tempo. De forma breve queremos falar da inhomogeneidade da matéria. Isso porque a mesma estrutura na qual o espaço adquire uma densificação absoluta, o tempo uma dilatação absoluta, a matéria se encaminha para uma densificação absoluta. Onde o tempo já não corre, a matéria corre para um espaço de medida absoluto e infinito. Tudo “esmorece”, “esmorece” (erstirbt) em morosidade e massividade, se aconteceu pois em si de forma plena. Matéria tem de ser totalmente reformulada pelo pensamento portanto, na massa. Não há matéria. Alguém que se encontre aqui possui um peso monstruoso. Mas não através de si mesmo, mas apenas em referência a esse principiar. Referido a si mesmo, ele pesa precisamente, por exemplo, mais ou menos como um Pfind (???). Ou seja, nesse contexto matéria não pode ser tratada como realidade, mas apenas como massa m. Ou seja, só o que nessa matéria atua como efeito constatável para fora, na atuação relacional. E quiçá, realmente, enquanto m referida ao principiar parece gigantesca. Referida a si mesma, apenas o que “pesa”. Mas justo como o espaço tem sua estrutura, o tempo tem sua estrutura, assim também há campo de massa com estrutura chamado gravitação. Esse é o conteúdo da teoria geral da relatividade.

11. Mais uma vez uma reflexão retroativa sobre relacionalidade temporal.

Não há espaço, mas apenas relação exterior. Não há matéria, mas apenas relações materiais. Ou seja, determinações de massa. Assim, não há tempo, mas apenas relações temporais. M. a. W. tudo está no centro do tempo, tudo tem seu aqui ou mais tarde, é enquanto não propriamente mais cedo ou mais tarde (ist als nicht selbst früher oder später). Com isso, soluciona-se um dilema temporal que costuma aparecer num determinado estágio da vida, quando me pergunto: Por que “existo” precisamente agora e não antes ou depois? Agora posso dizer: estou agora no século XX. Sou precedido pelo século anterior. Não gostaria de ter nascido no século passado, etc. Só gostaria de saber se essa linha total do tempo não permite por exemplo ser pensada como deslocada. A saber, de tal modo que o século XX já tivesse transcorrido antes do século XX. Todo o tempo pode ser pensado como deslocado.

Ora, as coisas são tais que toda a linha do tempo está de tal modo constituída que o século XX transcorre no instante em que eu sou. Pois eu ocorro no século XX e não no século XVII. Como advém que a totalidade desse tempo está presente agora nesse instante? Em cada ponto no local em que incide, ali é agora. É só em relação a esse posto que há antes, agora e depois. Mas a totalidade do tempo não é assim um determinado tempo, mas apenas relacional consigo mesmo. Não há portanto tempo algum em que César não seja, seu agora é medida para antes e depois. É só em relação a César que nós ainda não somos. Somos pois posteriores a César. Ou César, em relação a nós é anterior assim e assado. Mas não podemos dizer propriamente que César se foi. Como na realidade cósmica, tudo é ponto central, então agora é propriamente o tempo, é o ponto central em cada principiar vigente.