20
Editor: Instituto Politécnico de Santarém Coordenação: Gabinete coordenador do projecto Ano 6; N.º 233; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.59] FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013 As Mondas de Talavera de la Reina, açafates de Ceres Texto preliminar de contextualização Hoje em dia todas as tradições culturais estão em contacto. No mundo contemporâneo nenhuma cultura é uma ilha e cada vez se torna mais difícil manter o seu isolamento pois uma das consequências da globalização pode tender para o reforço das identidades locais. O significado deste Folha Informativa prende-se com dois factores: 1 – A existência de um protocolo de colaboração entre o Instituto Politécnico de Santarém e o pólo universitário de Talavera de la Reina. 2 – A existência de vários paralelismos entre as tradições culturais religiosas do distrito de Santarém e da comarca de Talavera de la Reina, nomeadamente no que diz respeito aos cortejos de louvor a uma divindade (Ceres) e da entrega de bens da terra em favor de instituições de solidariedade social. Cortejos de Oferendas Num texto publicado no Boletim Informativo Nº 42 da Santa Casa da Misericórdia de Santarém (SCMS) lê-se que a conceção dos Cortejos de Oferendas nasceu pela mão de uma benfeitora de Paços de Ferreira, Sílvia Cardoso, com o objetivo de acudir às despesas de administração do hospital da Misericórdia local, para o qual ela contribuía com bens próprios e através de peditórios que realizava pelas freguesias do concelho. A partir de 1923, Sílvia Cardoso, organiza comissões por cada freguesia do concelho, com o intuito de recolher géneros e os

FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Editor: Instituto Politécnico de Santarém

Coordenação: Gabinete coordenador do projecto

Ano 6; N.º 233; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.59]

FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013

As Mondas de Talavera de la Reina, açafates de Ceres

Texto preliminar de contextualização

Hoje em dia todas as tradições culturais estão em contacto. No mundo contemporâneo

nenhuma cultura é uma ilha e cada vez se torna mais difícil manter o seu isolamento pois uma

das consequências da globalização pode tender para o reforço das identidades locais.

O significado deste Folha Informativa prende-se com dois factores:

1 – A existência de um protocolo de colaboração entre o Instituto Politécnico de Santarém e o

pólo universitário de Talavera de la Reina.

2 – A existência de vários paralelismos entre as tradições culturais religiosas do distrito de

Santarém e da comarca de Talavera de la Reina, nomeadamente no que diz respeito aos

cortejos de louvor a uma divindade (Ceres) e da entrega de bens da terra em favor de

instituições de solidariedade social.

Cortejos de Oferendas

Num texto publicado no Boletim Informativo Nº 42 da Santa Casa da Misericórdia de Santarém

(SCMS) lê-se que a conceção dos Cortejos de Oferendas nasceu pela mão de uma benfeitora

de Paços de Ferreira, Sílvia Cardoso, com o objetivo de acudir às despesas de administração do

hospital da Misericórdia local, para o qual ela contribuía com bens próprios e através de

peditórios que realizava pelas freguesias do concelho. A partir de 1923, Sílvia Cardoso,

organiza comissões por cada freguesia do concelho, com o intuito de recolher géneros e os

Page 2: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

fazer transportar (em carros de tração animal) para Paços de Ferreira. Estava criado o conceito

de Cortejo de Oferendas que se espalhou por todo o país.

Em 1932, o 3º Congresso das Misericórdias Portuguesas defendeu uma maior autonomia das

Misericórdias em relação ao Estado e a sua dependência financeira. Nessa altura decidiu-se

por uma maior ligação à caridade particular incrementando-se a partir de então a tradição dos

Cortejos de Oferendas, que o povo organizou e animou como uma autêntica “festa de dar”.

Há notícia de que em Santarém, a partir de 1940, foram realizados peditórios de azeite junto

dos produtores por altura da apanha da azeitona e em 1941 o Governador Civil aprovou a

realização de um peditório, por todo o concelho, a favor do Hospital de Jesus Cristo e do Asilo

de Órfãos e Inválidos da Misericórdia.

O primeiro Cortejo de Oferendas em benefício da SCMS realizou-se em 1947 e surgiu como

resposta às dificuldades financeiras da instituição, devidas ao significativo aumento do

movimento do Hospital de Jesus Cristo, a seu cargo, e ao consequente crescimento das

despesas com o Asilo. A organização do evento implicava, entre outros aspectos, o

investimento na divulgação e na sensibilização e a constituição de comissões de angariação de

oferendas. O Cortejo consistia num conjunto de carros engalanados que transportavam as

oferendas de cada freguesia envolvida, desfilando pelas ruas de Santarém e terminando junto

ao Hospital. As ruas apinhavam-se de gente entusiasmada, muita música e muita cor. Era um

dia festivo que atraía à cidade centenas de populares das redondezas que vinham aclamar o

desfile das bandas e dos carros das suas freguesias.

Para além do significado económico, dando um contributo fundamental para o equilíbrio das

contas da SCMS, o Cortejo destacava-se pela sua grande capacidade mobilizadora e

representatividade social e assumia-se como “símbolo de caridade” no concelho. Este primeiro

Cortejo foi de tal modo exitoso que as seguintes Mesas Administrativas da SCMS mantiveram

na planificação das atividades anuais a realização de um Cortejo de Oferendas. Realizaram-se

Cortejos até 1954, porque em 1955 o Decreto-Lei 39.805 transformou o Hospital de Jesus

Cristo num hospital regional e a Mesa Administrativa deliberou que não se realizasse o

tradicional Cortejo de Oferendas de modo a não onerar os habitantes do concelho em

benefício dos outros concelhos do Ribatejo.

Em finais de 1958 para aquiescer a um pedido da Direção Geral de Assistência, a Mesa

Administrativa decidiu recuperar a realização do Cortejo de Oferendas mas tal não veio a

acontecer pois, mais tarde, decidiu não o levar a efeito devido ao mau ano agrícola que

ocorreu na região.

Page 3: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Cortejo de Oferendas em Santarém. Foto gentilmente cedida pela Santa Casa da Misericórdia de

Santarém.

Após a Reforma da Previdência de 1962 começa-se a desenhar uma mudança da organização

institucional da previdência, da cobertura material e pessoal dos riscos sociais, da grandeza da

despesa com as prestações sociais relativas a esses riscos, assim como a sua distribuição pelas

instituições que tinham a responsabilidade dessa cobertura e os Cortejos de Oferendas

começam a deixar de fazer sentido, no entanto voltaram a ser organizados em 1963, 64, 65 e o

derradeiro realiza-se em 1966.

Vivificará no imaginário da história recente de Santarém a memória das ofertas altruístas,

associadas ao espetáculo colorido do desfile dos carros alegóricos e à solidariedade das

populações no apoio à Santa Casa da Misericórdia.

Festa dos Tabuleiros, em honra da deusa Ceres

Em Tomar a “Festa dos Tabuleiros” ou “Festa do Divino Espírito Santo” é uma das

manifestações culturais e religiosas mais antigas, cuja origem se encontra nas festas de

colheitas à deusa Ceres.

Esta Festa de "Acção de Graças" e de oferendas manteve as suas características inalteráveis

até ao século XVII.

Page 4: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

A tradição continua e muitas das cerimónias como o cortejo da chegada dos bois do Espírito

Santo, conhecido por Cortejo do Mordomo, o Cortejo dos Tabuleiros, a sua bênção, a forma do

tabuleiro, os vestidos das raparigas portadoras dos Tabuleiros e a Pêza, ou distribuição do pão

e da carne, mantêm-se.

A principal característica da Festa dos Tabuleiros é o Desfile ou Procissão, com um número

variável de tabuleiros, em que estão representadas as freguesias do concelho.

Esta procissão de dignidade, cor, brilho e emoção percorre as principais ruas da cidade, num

percurso de cerca de 5 Km, entre colchas pendentes nas janelas, milhares de visitantes nas

ruas e uma chuva de pétalas que de forma entusiástica é lançada sobre o Cortejo.

A Festa dos Tabuleiros realiza-se de quatro em quatro anos no início de Julho.

Festa dos Tabuleiros, em Tomar

Lurdes Véstia

Page 5: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

EVOCAÇÕES DE TALAVERA DE LA REINA

Introdução

Pelo menos desde o século XVI que historiadores, clérigos, advogados, viajantes, mestres,

antropólogos, etnógrafos e humanistas nos têm dado a sua visão e interpretação sobre “As

Mondas”, que geralmente coincide com o momento em que cada um as viveu. Para uns são

ritos pagãos, para outros religiosos, para terceiros a combinação de ambos e para a grande

maioria pura festa. Assim “As Mondas”, por diferentes razões, foram proscritas ou exaltadas

segundo a caneta que as referiu. Mas em todos os autores que as viveram causaram

admiração pelos seus luxos, touros, cânticos, bailes, procissões, devoção cristã e algaraviada

buliçosa. Toda a cidade e o concelho vestidos de pompa e circunstância.

Neste novo fac-simile é-nos oferecido outro testemunho, inédito até agora, sobre tão

singulares manifestações. Ainda que sem a parafernália de séculos anteriores, mas sim como

prova firme de um dos rituais mais ancestrais e arreigados da nossa geografia.

O autor é um religioso agostinho César Morán Bardón, que nasceu em 1882 no povo leonês de

Rosales. Ingressou no Seminário dos Agostinhos Filipinos de Valladolid. Estudou Filosofia e

Teologia, ordenando-se posteriormente sacerdote. Mudado para Salamanca, para o Colégio de

Calatrava, começa a sua dedicação pela arqueologia e outras ciências afins. Foi membro

correspondente da Real Academia da História e da Academia de Ciências de Lisboa, sócio

honorário da Sociedade Ibérica de Ciências Naturais e da Sociedade Espanhola de

Antropologia, Etnografia e Pré-história. Realizou diferentes escavações na província de

Salamanca, onde é considerado pai da arqueologia, e em Zamora.

Faleceu em Salamanca em 1951, no mesmo ano em que publica este artigo sobre “As Mondas

de Talavera” na revista portuguesa “Guimarães”, devido seguramente á sua vinculação com a

Academia de Lisboa.

O seu amplo campo de investigação levou-o a divulgar trabalhos nas mais diversas disciplinas,

costumes, monumentos, lendas, filologia, dialectologia, arqueologia, arte, historia, folclore, e

etnografia, sobre tudo das províncias de Zamora, Léon e Salamanca.

A publicação que foi adquirida pela edilidade está dedicada, em nota manuscrita, a D. Juan

Munoz García, pessoa sobre a qual não temos dado mas que devia ser íntima do nosso

agostinho.

A edição fez-se na “Revista de Guimarães” uma das mais antigas revistas científicas

portuguesas, que começou a publicar-se em 1884.

Page 6: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

O artigo sobre “As Mondas de Talavera”, com o título original de “Evocações de Talavera de la

Reina”, saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a Dezembro de 1951, nas páginas 406 a 415,

ainda que o que aqui trazemos à colação seja uma separata das páginas 1 a 14.

O artigo “Evocações de Talavera de la Reina” está dividido em dois capítulos intrinsecamente

unidos para os talaveranos. Em primeiro lugar o autor fala-nos da Virgem do Prado e da Praça

de Touros, com os circundantes e belos jardins do Prado, que impressionaram o agostinho sem

dúvida nenhuma. Da dualidade do amor pela Virgem e pelos touros.

Une o santuário mariano à tradição pagã e vincula-os com os jogos taurinos, para de seguida

os ligar à tradição religiosa mariana.

Page 7: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Vista da praça de toiros de Talavera de la Reina, que é geminada com a Ermida de Nossa

Senhora do Prado.

Faz uma incursão sumária nos rituais antigos compatíveis com as novas crenças e como ele

mesmo diz:

(…) por isso, ermida e praça de touros se tocam ainda hoje em amigável consórcio e boa vizinhança e a seu lado tem lugar, desde tempos imemoriáveis, o concorridíssimo mercado de gado, separado daqueles edifícios unicamente pela calçada romana que, por Trujillo, conduzia de Mérida a Toledo, e hoje está convertida em estrada de 1ª classe, de Madrid a Badajoz. Recordações e vinculações, que não conseguirão dissipar-se, com o decurso dos séculos.

A segunda parte dedica-a às Mondas propriamente ditas incidindo nos seus aspectos rituais

ancestrais, já cristianizados, em que faltam elementos certamente pagãos; a munda, ou

oferenda, converte-se no eixo deste capítulo. São descritas as paragens urbanas por onde

passa a procissão. O cortejo ficou reduzido ao carrinho com os carneiros ricamente adornado

de flores, e ao acompanhamento de algumas autoridades junto com crianças, autênticos

protagonistas nestes anos de pós-guerra. Alguns dados que dá são inéditos, como por exemplo

a desaparição, durante a Guerra, da tribuna em que as autoridades procediam à mudança de

atribuições de autoridade ou intercâmbio de bastões. Também a lide dos touros que, ao invés

de uma vintena, agora é só uma, à corda ou amarrado.

Page 8: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Carrinho com os carneiros

A publicação está ilustrada com 3 fotografias da época; uma da ermida e duas dos cortejos e

do carrinho, que são um autêntico documento gráfico e histórico sobre esta antiquíssima

tradição.

O nosso agostinho devia ter chegado a Talavera, possivelmente, devido à existência do

convento das Agostinhas de Santo Ildefonso, pois sempre que tem oportunidade menciona-o

na sua narrativa. Conhece a celebração das Mondas mediante algum informante directo e

também através da história de Talavera escrita por Ildefonso Fernández Sánchez, publicada em

1896, a qual toma como referência para o seu artigo. Inclusive chega a fazer alguma incursão

na arqueologia urbana da cidade, em concreto sobre a torre da Cabeza del Moro, da qual não

pode evitar dar a sua opinião.

Torre Cabeza del Moro

Page 9: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Alguns dos dados que proporciona sobre as celebrações da festa são erróneos ou, pelo menos,

desconhecidos para nós, principalmente no que diz respeito às comarcas e povos que acodem

à festa e sobre as diferentes datas que aporta para o desenvolvimento da mesma em

princípios do século XX.

Contudo, traz ao conhecimento aspectos da festa em plena pós-guerra. Gamonal e o seu

carrinho puxado por carneiros é o eixo principal em torno do qual gira a celebração. Também

refere a presença de alguns povos que originariamente participavam no evento, e que

mudaram a oferenda da monda por uma quantia em dinheiro. Este facto deu-se até ao ano de

1908.

Mondas del Pueblo de Gamonal

O padre agostinho César Morán Bordón, com o seu artigo, responde às inquietações e

interesses despertados sobre As Mondas e que, desde outrora, se perguntaram muitos

autores. É possivelmente o primeiro profissional que aborda um estudo sobre elas, ainda que

certamente não com a profundidade que a muitos teria gostado. Mas não deixa de ser um

testemunho mais dentro da rica tradição escrita do que aquilo que sobre o tema existe e que

seguramente não será a última.

Rafael Gómez Díaz

(Arquivista no Arquivo Municipal de Talavera de la Reina)

Page 10: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

O TEXTO

Padre César Morán Bardón

I – A Virgem do Prado e a Praça de Touros

À margem do caudaloso Tejo, descansando da sua jornada ultrabimilenária, circundada de

encantadores e férteis pomares, os quais, semelhantes ac esplendidos adereços, a decoram e

embelezam, assenta a formosa Talavera, meditando os fastos da sua história, rindo ou

chorando, tal o destino da vida humana.

O Passeio do Prado, jardim que parece cuidado por mãos de fadas, é como que uma ponte ou

traço de união entre a cidade e o Santuário da Virgem, de onde brotou, qual rebento novo, a

de touros, famosa nos eus anais. S mais acendrados amores dos talaveranos são dedicados à

Virgem e aos touros, amores enraizados no firme subsolo das gerações pretéritas. Ermida e

praça surgem unidas, como mãe e filha que não querem separar-se. A ermida é uma bela pagã

convertida ao Cristianismo; foi inicialmente templo de Ceres, de Palas ou de qualquer outra

divindade feminina. Como os templos foram sempre frequentados pela multidão dos devotos,

à beira dela congregavam-se os feirantes e os mercadores, para realizarem os seus negócios, e

Page 11: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

ali, em honra dos deuses, eram celebradas festas cívico-religiosas, em que a juventude

mostrava as suas habilidades em diversos jogos – corridas, equitação, simulacros de lutas,

pugilato e ainda outros, menos honestos. Tal como em Espanha, isto mesmo tinha lugar no

Egipto, na Grécia e nas Ilhas do Mediterrâneo. Da Grécia, são universalmente conhecidas as

Olimpíadas festas que se realizavam na cidade de Olimpia, em honra de Zeus ou Júpiter, em

torno do seu templo, onde tiveram origem, chegando a revestir grandíssima importância em

todos os sectores da vida social, politica, intelectual e administrativa. Em Espanha, não era

possível faltar, a par de quaisquer outras diversões, a luta do homem com o touro; trazemo-la,

como costuma dizer-se, na massa do sangue. Conta Estrabão que os iberos tinham um feitio

alegra e divertido, tudo celebrando a cantar, e que a sua festa favorita era a lide dos touros.

Isso mesmo nos diz, também, as moedas antigas e as pinturas rupestres. Nenhum taurólogo,

portanto, poderá atrever-se a precisar quando, em nossa pátria, tiveram começo as corridas

de touros, visto elas remontarem aos alvores da história.

Com a pregação do Cristianismo, e quando a maior parte desta região já havia aceitado o

Evangelho, o templo da deusa talaverana converteu-se em ermida ou santuário da Virgem.

Mudado o culto, não mudaram porém os homens, nem as instituições, nem os costumes com

patíveis com as novas crenças. Por isso ermida e praça de touros tocam-se ainda hoje em

amigável consórcio e boa vizinhança, e a seu lado tem lugar, desde tempos imemoriais, o

concorridíssimo mercado de gados, separado daqueles edifícios unicamente pela calçada

romana que, por Trujillo, conduzia de Mérida a Toledo, e hoje está convertida em estrada de

primeira classe, de Madrid a Badajoz. Recordações e ligações estas, que não conseguiram

dissipar-se, no decorrer dos séculos.

A Universidade de Salamanca e, em geral, todas as velhas universidades surgiram das

catedrais, ou seja, das escolas que as catedrais sustentavam. Do Santuário do Prado, em

remota antiguidade, surgiu também a praça de touros, que de começo seria um campo raso,

depois um cercado de estacaria, em seguida uns humildes taipais, e finalmente uma praça

monumental.

O santuário começou por ser uma simples ara ou altar, destinado a libações e sacrifícios, um

pequeno recinto, sacellum, em que só penetravam os sacrificantes, e não a multidão, que

permanecia no exterior. Triunfante a doutrina de Jesus Cristo, e consagrado o templo ao culto

de Maria, muitas vezes ele se terá arruinado e outras tantas houve de ser reconstruido, pela

piedade dos fieis, chegando mesmo a ser designado a “rainha das ermidas”, conforme a

expressão de Filipe I, na sua viagem a Talavera.

Durante o domínio romano, certos magistrados regulavam as festas religiosas e os jogos, como

coisa inseparável, em honra da divindade; e assim, as leis de Osuna determinavam que os edis

Page 12: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

realizassem festas e jogos por três dias; que os duúnviros concedessem, durante a

magistratura, quatro dias de festas e jogos, em honra de Júpiter e dos outros deuses e deusas.

“Era obrigação dos Séviros Augustais celebrarem periodicamente certos sacrifícios, darem

espectáculos públicos e fazerem distribuições de víveres ao povo” (Hinojosa). Quer dizer que os

jogos eram considerados como algo de integrante, de inseparável da religião.

Com o advento do Cristianismo separaram-se as duas funções, ficando a religião nas mãos dos

sacerdotes, sem que estes todavia abdicassem por completo da jurisdição que ainda lhes

pudesse caber nos jogos, pelo menos nas lides de touros, nas quais nunca deixaram de intervir,

como a história nos mostra. Até data avançada dos tempos modernos, as corridas de touros

em Talavera, com todos os seus preâmbulos e consequências, ainda eram organizadas pelos

cónegos da Colegiada, de acordo com o Município, ora alternando nessa missão as duas

entidades, ora actuando conjuntamente, e por vezes também com violentas discussões de

permeio entre o poder espiritual e o temporal.

Segundo nos conta D. Ildefonso Sanchez na sua “História de Talavera”, no século XVI, eram um

cónego e um regedor os encarregados de escolher e comprar os touros que se haviam de

correr nas solenidades de quinta-feira, sexta, sábado e domingo seguintes ao domingo de

Páscoa. A chave do touril era guardada alternadamente, um dia pelo cónego, outro dia pelo

regedor. Em cada corrida lidavam-se onze touros, que obrigatoriamente deviam ser pagos pelo

Deão, pelo Cabido, Câmara, Mordomo da Vila e pelos diferentes grémios, de tecelões,

carniceiros, oleiros, etc. As corridas tinham lugar na praça da ermida, isto é, no mesmo sítio

actual, onde já se vem realizando desde o tempo dos Celtiberos.

Ainda havia uma outra corrida, cujos touros eram pagos cada qual por uma das paróquias.

Santa Leocádia, a velha paróquia, essa, pagava o touro do lenho, assim chamado pelo costume

que havia de um cónego e um regedor solicitarem dos paroquianos, no dia da Ressureição, um

certo número de carros e de cavalos para transporte da lenha dos montes, destinada ao

hospital da Virgem do Prado. No monte celebrava-se missa dedicada aos lenhadores. Em

segunda e terça-feira de Páscoa transportava-se a lenha, que entrava pela porta de Mérida,

dirigindo-se à ermida do Prado, acompanhada pelo clero das paróquias, de cruz alçada,

acompanhada pelos mestres e crianças das escolas, e por numeroso público. Após a corrida,

cada paróquia conduzia, numa carreta, o seu touro morto e degolado, a fim de a carne ser

distribuída pelos hospitais, clero, munícipes e pobres. A que sobrava dava-se a quem a pedia. A

última entidade a fechar o cortejo, como de maior categoria, era a Colegiada, cujo Cabido

tinha de ir a cavalo.

Page 13: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Figura 1: A ermida do Prado vista da praça de touros

Abdicaram os eclesiásticos da sua interferência nas corridas de touros, actualmente

monopolizadas pelo poder civil; só o público não variou, rezando diariamente aos pés da

Virgem, nunca a abandonando, e divertindo-se durante alguns dias na praça, para admirar e

aplaudir os ases do toureio, até os ver sucumbir, como aconteceu a Joselito.

II – As Mondas

A palavra Mondas, do latim mundus, parece que significa açafate de Ceres, mundus Cereris,

açafates sagrados de Ceres, com tudo quanto continham dentro (Apuleyo). Todos os

dicionários de certa extensão referem-se às Mondas de Talavera. O de Salvat (Paris, 1863) diz:

“En Talavera de la Reina es una espécie de manga grande de parroquia, que los pueblos

circunvecinos conducen en carro, adornada de cera, y la ofrecen ante la imagen de Nuestra

Señora del Prado. Usado en plural, significa las fiestas públicas que se celebran con dicho

motivo”. A mesma coisa diz, pouco mais ou menos, o dicionário da Real Academia, o de Calleja,

o de Espasa e o de Casares. Por aqui se vê que os léxicos consideram a palavra digna de ser

conhecida de todos os leitores em geral.

As Mondas ou mundas, puras, são efectivamente oferendas dedicadas à Virgem do Prado,

assim chamada talvez porque as oferentes, espécie de vestais, deveriam estar mundas, limpas,

Page 14: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

reminiscência das velhas sacerdotisas que ofertavam à divindade precursora da Virgem,

anteriormente ao Cristianismo. Essas oferendas não foram interrompidas: transformaram-se,

apenas cristianizaram-se, por assim dizer.

Em todas as religiões, sempre existiram sacrifícios e oferendas para aplacar a divindade

ofendida pelo pecado do homem, isto como voz da natureza e lembrança da cena do Paraíso.

Como tais oferendas eram compatíveis com a mudança de religião, perseverou o costume

estabelecido.

A primitiva divindade de Talavera não devia ter pertencido aos diis minores, ou locais, mas

seria alguma daquelas cujo culto se estendia por um dilatado território. Talvez por isso mesmo

não tivesse sido substituída por qualquer santa de categoria secundária, Santa Catarina, Santa

Inez, etc. mas sim pela primeira de entre todas, a Virgem Maria. Razão pela qual as ofertas não

provinham somente da região de Talavera, mas concorriam de muitas províncias de Espanha,

cujos portadores acampavam em frente ao templo do Prado, permutando os seus produtos

durante a semana de Páscoa, e continuando assim costumes ancestrais, semelhantes aos que

se praticavam em Olimpia, junto ao templo de Zeus. De entre as várias regiões, acudiam os

povos de Alcarria, que ofereciam favos de doce de mel, os da Mancha, que traziam queijos e

ânforas de leite e os da Estremadura, que apresentavam ricos enchidos; em suma cada região

era portadora daquilo que de mais precioso possuía. Estas oferendas já tinham raízes num

costume tradicional pagão.1 Nada foi, preciso, portanto, inventar; bastou adaptar o existente

ao culto da Hiperdulia, que a Igreja manteve sempre pela Mãe de Deus.

No decorrer do tempo estas singelas homenagens foram rareando, até ficzarem reduzidas à

Comarca de Talavera, isto é, aos povos que dependiam da sua jurisdição e senhorio. Reunidos

no primeiro dia de Páscoa, nomeavam o Mordomo das Mondas, normação que recaia no

individuo mais velho entre os do povo que primeiramente chegasse à Talavera com a sua

oferenda à Virgem. O Mordomo, a cavalo, e vestido à maneira do antigo uso, dirigia-se À

frente dos representantes das várias localidades, para a porta de Mérida, pela qual fazima

todos a sua entrada solene na povoação. Seguido da sua comitiva, batia, de cima do cavalo, à

porta da Câmara. Para esse efeito já se encontravam as aldravas à altura precisa para quem ia

montado. O alcaide da Vila recebia com todas as honras os forasteiros, e, juntos, tomavam o

caminho da Igreja das Ildefonsas ou Agostinhas; dali, com cruz alçada, os agrupamentos de

1 Conserva-se em Talavera um simulacro de falsa divindade. É um pedregulho chamado Cabeça do Mouro, que se encontra cravado, como um silhar, numa das torres da muralha, escultura do tipo dos Touros de Guisando, que abundam nesta terra toledana. São bem conhecidos os varrões ibéricos (porcos que não foram castrados por receberem a função de reproduzir) de Torralba; não tanto o de Alcoba, um outro de Sotocochinos, modernamente a chamada Casablanca, e o do castelo de Bayuela. Tais simulacros são considerados deuses dos criadores de gado. Abundam em Zamora, Salamanca, Ávila, Madrid, Toledo, Estremadura e em Portugal.

Page 15: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

todas as paróquias presentes seguiam pela Corredera, Praça Maior,rua de S. Francisco, bairro

da Trindade, Passeio do Prado até ao cruzeiro. Em todas as igrejas do percurso repicavam os

sinos, incluindo o do relógio da Vila. No cruzeiro, o Mordomo, sempre a cavalo, assistia e

tomava conhecimento da mudança de autoridade, que passava do Alcaide de Talavera para o

de Gamonal, assumindo este a representação da comarca e da Vila durante as horas da

cerimónia. Marchavam depois todos para a ermida, o Mordomo à frente, abrindo o cortejo a

cavalo; atrás dele o clero, com os seus guiões, os portadores das Mondas e o povo, formando

uma verdadeira procissão. Percutia o Mordomo uma aldravada, sempre sem apear-se (para o

que os ferrolhos estavam também a respeitável altura), e, aberta a porta, entravam todos: o

Mordom,o a cavalo, até ao momento de ajoelhar-se ante o altar da Virgem, os restantes a pé,

e ali ofereciam as suas Mondas à Rainha dos Céus, entoando cânticos devotos, que ressoavam

do coro, situado aos lados da capela-mor.

Concluída a cerimónia e reunidos todos diante da ermida, sempre sob a presidência do

Mordomo, procedia-se à mudança de atribuições de autoridade entre os Alcaides, numa

tribuna que desapareceu no tempo das invasões francesas. Seguidamente tinha lugar a corrida

do touro, à corda, do qual resta a lembrança ligada ao nome de uma das ruas.

Tais eram as Mondas nos séculos passados, segundo a descrição contida na já citada História

de Talavera.

De cada vez com menor aparato, é certo, mas ritualmente, constantemente, desde tempos

imemoriais se vinham oferecendo as Mondas à Virgem, até ao ano de 1919, data em que

deixaram de efectuar-se.

Figura 2: Procissão das Mondas. Carrinho puxado a dois carneiros, em

que o povo de Gamonal apresenta a sua oferenda à Virgem

Page 16: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Recomeçaram em 1925, por iniciativa da Câmara talaverana de então. Em 1932 foram

proibidas pela Câmara republicana, desaparecendo nessa altura o carrinho em que os de

Gamonal, desde há muitos anos, traziam a sua oferenda à Virgem; e desapareceu por motivos

fáceis de compreender, durante essa malfadada e vergonhosa república. Após a libertação de

Talavera, em 1937, Gamonal, cujo povo foi sempre o mais constante, renovou o costume, para

o que a Câmara de Talavera mandou construir outro carrinho igual ao anterior. As autoridades

de Gamonal continuam hoje a apresentar a sua oferenda de cera virgem sobre aquele

pitoresco carrinho, puxado a dois carneiros brancos, que parecem caminhar orgulhosos do

papel que desempenham. O veículo é revestido de tomilho e giestas, pomposamente

adornado e coberto de lindas flores que a risonha primavera faculta, engalanado com

bandeirinhas de cores garridas, tudo disposto com a mais pura devoção e com a melhor

vontade deste mundo. A Gamonal se vêm juntar outros povos, como Casar del Ciego e Velada.

Figura 3: Procissão das Mondas. Meninas da Falange, com açafates de

flores e pombas para oferecerem à Virgem do Prado

Em anos sucessivos tem acudido também Mejorada, que oferece à Virgem a imitação em cera

de uma corrida de touros. Ultimamente com parece por sua vez o povo de Pepino, com o seu

tributo à Virgem do Prado. São os Alcaides e clero destes povos os que respeitam e mantêm a

tradição. A secção feminina da Falange talaverana dá também a sua adesão à homenagem,

conduzindo pombas e açafates de flores.

Por vezes alguns destes povos, em lugar de cera ou de produtos da terra, oferecem uma

quantia em dinheiro, que entregam ao representante do Município junto da Irmandade do

Prado.

Page 17: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

As autoridades dos povos oferentes continuam a reunir-se da mesma forma na Câmara, e daí

se encaminham pela rua da Companhia às Agostinhas, onde se junta o clero, cantando as

litanias dos santos, com cruz alçada, seguindo o itinerário tradicional. Penetram no templo do

Prado, aos acordes do órgão e o capelão com os confrades da Irmandade recebem então as

Mondas, cantando-se uma Salve-Rainha. A entrega faz-se na presença dos Alcaides de Talavera

e de Gamonal, estes acompanhados dos povos a que preside, trocando para o acto a vara [o

bastão]2 da sua autoridade com o de Talavera.

Concluída a cerimónia, todos os adornos das Mondas são distribuídos, pelos assistentes que os

levam consigo como piedosa recordação.

A festa, que para os talaveranos constitui motivo de regozijo, celebra-se na terça-feira de

Páscoa, no mês de Abril, que era o tempo em que os pastores e criadores de gado faziam

também as suas oferendas à deusa Ceres, para que ela se mostrasse abundante e pródiga em

bens da terra.

Posto que simplificada e reduzida, hoje em dia, a um acto simbólico, a cerimónia das Mondas

contém em si vestígios de uma tradição multisecular, digna do maior respeito e carinho, como

acto cívico-religioso que, desde a sua origem, sempre tem sido.

A Câmara de Talavera esforça-se, na melhor das intenções, por dar incremento a este costume

tão típico, tão inocente, tão popular e de tão remota ascendência, merecendo por isso os

aplausos de toda a gente honrada.

Separata do volume LXI da “Revista Guimarães”, de 1951

2 Nota dos editores: a vara, bastão ou ceptro, continua a ser hoje o símbolo máximo do município de Talavera de la Reina, simbolizando a ligação do povoado às suas raízes ancestrais.

Page 18: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

ANEXOS

Capa da brochura editada pelo município de Talavera

Page 19: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Recibo de gastos com a Festa das Mondas, de 1908

Page 20: FOLHA INFORMATIVA Nº08-2013...O artigo sobre ^As Mondas de Talavera _, com o título original de ^Evocações de Talavera de la Reina , saiu editado no número 61 (3-4) de Julho a

Promoção das Mondas de 2013, considerada uma festa de interesse turístico nacional

In: http://www.talavera.org/