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FÓRUM SENADO BRASIL 2012 Avaliar a primeira década do século XXI e pensar o futuro Democracia em tempos de mutações REGISTROS DE UM PENSAR SOBRE A DEMOCRACIA

Forum Senado Brasil 2012

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  • Espero ter outras oportunidades desta natureza. Tomara que

    este frum no seja nico e sim o primeiro.

    Esses eventos deveriamser mais frequentes,

    pois o cotidiano nos condenaa um reducionismo

    homogneo.

    Os temas abordadosme fizeram pesquisar mais...

    aumentando o meu senso crtico

    e formao de opinio.

    Seria bem interessantese pudssemos dar

    continuidade a essas reflexes.

    Vale a pena mantereste Frum.

    fundamental abriro Senado a uma maior

    participao dos cidados.

    Manifestaes do pblico

    louvvel trazer

    a sociedade para debater

    a poltica num mbito

    mais profundo e amplo.

    Eu no imaginava que discutir democracia

    pudesse ser to agradvel.

    fundamental abrir o Senado a uma maior participao popular

    Pela primeira vez sentio Senado como uma casa

    que nos representa. Me senti acolhida.

    O Parlamento brasileiro deve investir na criao

    de ncleos para o cidado aprender a refletir.

    FRUM SENADO BRASIL 2012Avaliar a primeira dcada do sculo XXI e pensar o futuro

    Democracia em tempos de mutaes

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    uma iniciativa ps-democratizao da informao, arrisco dizer tratar-se da democratizao da lucidez espao de socializao de ideias

    e conhecimentos de vanguarda.

    O Senado precisa continuar com essesencontros geniais.

    O contedo gerado a partir das palestras mereceser editado e amplamente divulgado.

    FRUM SENADO BRASIL 2012

    Registros de um pensar sobre a dem

    ocracia

    Participantes

    Registros de um pensar sobre a dem

    ocracia

    REGISTROS DEUM PENSAR SOBRE A

    DEMOCRACIA

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  • Sumrio

  • 3Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    Palavra do Presidente Jos Sarney ................................................................................................ 5

    PalestrasDemocracia em tempos de mutaes Adauto Novaes .......................... 8

    O apolitismo, a maior ameaa democracia Francis Wolff ................... 16

    Sobre o consenso na democracia Igualdade, unanimidade, legitimi-dade Charles Girard .......................................................................... 22

    Homo civilis (ou Homo sapiens 2.0) Luiz Alberto Oliveira ...................... 26

    Esquecimento da poltica: o caso da religio Sergio Paulo Rouanet ..... 28

    tica, moral e poltica Franklin Leopoldo e Silva .................................... 32

    Representao poltica: fundamentos e dilemas Renato Lessa ............ 34

    A democracia-espetculo e a imagem da poltica Eugnio Bucci ......... 38

    A democracia para alm do Estado democrtico de direito VladimirSafatle ..................................................................................................... 40

    Democracia Liberal e Governamentalidade Helton Adverse .................. 46

    A palavra livre e infeliz Renato Janine Ribeiro ........................................ 48

    O Frum na imprensa ................................................................................... 50

    Avaliao dos participantes ......................................................................... 145

    Bibliografia ..................................................................................................... 193

    Ato de criao do Frum .............................................................................. 195

  • Palavra do Presidente

  • 5Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    DEMOCRACIA EM TEMPOS DE MUTAES

    O Senado Federal realizou um amplo debate sobre as ideias que reexaminam o papel da democracia na sociedade contempornea. Denominado Democracia em Tempos de Mutaes, o seminrio trouxe pensadores com contribuio ori-ginal para discutir o tema e disseminar entre ns a capacidade de refletir sobre as perplexidades do presente e sobre os caminhos que se abrem para o futuro.

    A democracia continua vlida na velha definio de Churchill de que a pior forma de governo, salvo todas as outras. Continua vlida na busca de Lincoln do regime do povo, pelo povo, para o povo. Continua vlida na medida em que a realizao do homem, nos limites humanos. Mas o que significa hoje a democracia?

    No tempo da comunicao em tempo real, das novas tecnologias, da formao da opinio pelos meios de comunicao de massa e da busca da opinio pe-los mesmos meios de comunicao de massa, do questionamento disperso e incontrolvel das mdias sociais, da manipulao das mesmas mdias sociais, o sistema representativo enfrenta o grande desafio de sua histria.

    Reunimos no Senado Federal, sob a liderana do Embaixador Jernimo Mos-cardo, auxiliado pelo filsofo Adauto Novaes, o professor Helton Adverse, da UFMG; o professor Frdric Gros, da Universidade Paris-Est Crteil; o professor Vladimir Safatle, da USP; o professor Eugnio Bucci, da USP; o professor Rena-to Lessa, da UFF; o professor Franklin Leopoldo e Silva, da USP; o acadmico Sergio Paulo Rouanet; o professor Luiz Alberto Oliveira, do CBPF; o professor Charles Girard, da Universidade Sorbonne; o professor Francis Wolff, da cole Normale Suprieure de Paris; o professor Renato Janine Ribeiro, da USP. Conta-mos com a parceria e o apoio das universidades UDF, UPIS e UNIEURO.

    O seminrio Democracia em Tempos de Mutaes teve um grande sucesso de pblico, que externou sua receptividade em comentrios entusiasmados. Para ns, o importante que abrimos uma porta de reflexo que deve ter continuida-de e que ser de grande auxlio para a comunicao entre o Senado Federal e o mundo acadmico e intelectual brasileiro.

    Jos SarneyPresidente do Senado Federal

  • Palestras

  • 8 Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    Adauto Novaes

    Jornalista e professor; foi por vinte anos diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundao Nacional de Arte/Ministrio da Cultura. Em 2000, fundou a empresa de produo cultural Artepensamento. Os ciclos de conferncias que organizou resultaram nos seguintes livros de ensaios: Os sentidos da paixo; O olhar; O desejo; tica; Tempo e

    histria (Prmio Jabuti); Rede imaginria: televiso e democracia; Artepensamento; A crise da razo; Libertinos/libertrios; A descoberta do homem e do mundo; A outra margem do Ocidente; O avesso da liberdade; Poetas que pensaram o mundo; O homem-mquina; Civilizao e barbrie; O silncio dos intelectuais, todos editados pela Companhia das Letras. Publicou ainda, Muito alm do espetculo (SENAC So Paulo, 2000); A crise do Estado-nao (Record, 2003); Oito vises da Amrica Latina (SENAC So Paulo, 2006); Ensaios sobre o medo (SENAC So Paulo/Edies SESC SP, 2007); O esquecimento da poltica (Agir, 2007); Mutaes: ensaios sobre as novas configuraes do mundo (Agir/SESC SP, 2008); Vida, vcio, virtude (SENAC So Paulo, 2009); A condio humana (Agir/SESC SP, 2009); Mutaes: a experincia do pensamento (SESC SP, 2010); Mutaes: a inveno da crena (SESC SP, 2011).

    Democracia em tempos de mutaes

    Alexis de Tocqueville

    1. No livro publicado em 1954 A crise da cultura, oito exerccios do pensamen-to poltico Hannah Arendt nos desafia com estas interrogaes:

    Como pensar no intervalo entre passado e futuro posto em evidncia com o desaparecimento da tradio? O que so Autoridade e Liberdade a partir do momento em que nenhuma resposta oferecida pela tradio vale mais? Como pensar o acontecimento: a crise da cultura, a crise da educao, o advento da mentira na poltica, a conquista do espao? Pensar supe ter a coragem de afrontar o mundo, a pluralidade de nossos semelhantes, instaurar novos come-os. Renunciar a pensar renunciar a ser homem.

    Hoje, poucos negariam o diagnstico: vivemos um momento de incerteza, de-sordem, grandes mutaes. Em qualquer domnio da atividade humana esfe-ras do saber e do poder, costumes, mentalidades, sensibilidade tica, valores notamos transformaes sem precedentes: Ns, civilizaes, sabemos que somos mortais, escreve o poeta e ensasta Paul Valry. A poltica , certamente,

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    a parte mais afetada por estas transformaes. Lemos, no ensaio A poltica do esprito, de Valry:

    O mundo moderno, em toda sua potncia, de posse de um capital tcnico pro-digioso, inteiramente penetrado de mtodos positivos, no soube no entanto criar uma poltica, uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais que estejam em harmonia com os modos de vida que ele criou, e at mesmo com os modos de pensamento que a difuso universal e o desenvolvimento de certo esprito cientfico impem pouco a pouco a todos os homens.

    Uma idia chama ateno neste fragmento: a potncia do desenvolvimento tc-nico e o descompasso entre o esprito cientfico e a poltica. Traduzindo: ausn-cia de normas polticas compatveis com o tempo.

    2. certo que um dos pressupostos fundamentais da mutao poltica est no papel atribudo tecnocincia. Uma frase do filsofo alemo Martin Heidegger, sujeita a muitas e contraditrias interpretaes pela sua radicalidade, d a pen-sar: para mim uma questo decisiva hoje: como um sistema poltico e qual pode, de maneira geral, ser coordenado na era da tcnica. No sei responder a esta questo. No estou convencido de que seja a democracia. A cincia e a tcnica produziram, na poltica e no pensamento, aquilo que os tericos definem como o mundo da especializao. As snteses tericas permitiram, du-rante sculos, grandes realizaes, mas hoje, com a crise dos ideais polticos, restam apenas as desvantagens de uma democracia dos fatos. A definio de Robert Musil: a poltica, tal como a entendemos em nossos dias, o contrrio

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    Solenidade de abertura do Frum Senado Brasil 2012 com a presena de autoridades e execuo do Hino Nacional pela Orquestra Social Unio Planetria

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    absoluto do idealismo, quase sua perverso: ao levar em considerao apenas os fatos, o homem que especula por baixo sobre seu semelhante e que se intitula poltico realista s tem por reais as baixezas humanas, nica coisa que considera confivel; ele no trabalha com a persuaso, apenas com a fora e a dissimulao.

    Outro filsofo, nosso contemporneo, vai alm na observao: para Jean-Pierre Dupuy, presuno fatal acreditar que a tcnica, que tomou o lugar do sagrado, do teatro e da democracia, poder desempenhar o mesmo papel que eles de-sempenhavam na poca em que a capacidade de agir dizia respeito apenas s relaes humanas: Acreditar nisso [escreve Dupuy] permanecer prisioneiro de uma concepo que v na tcnica uma atividade racional, submissa lgica instrumental, ao clculo dos meios e dos fins. Francis Wolff reverte estas ideias para o campo da poltica: os utpicos de ontem foram substitudos pelos espe-cialistas de hoje. No disputamos mais os fins polticos, afirma Wolff, discutimos, sim, os meios e os fins tcnicos.

    3. O domnio da tcnica sobre a poltica leva perda dos fundamentos polticos, isto , daquilo que a filosofia poltica criou e recriou ao longo da histria como resposta s interrogaes levantadas pelo advento da sociedade, ou melhor, a ideia e a prtica que definem a sociedade como origem da lei e dos direitos. Era o momento em que a prxis tinha uma relao estreita com os princpios teri-cos, muitas vezes para neg-los. Hoje, vivemos aquilo que j se definiu como o princpio do sem princpio. Mais: sendo apenas partes da vida social, a econo-mia, a privatizao da vida pblica, a religio, o moralismo e a eficincia tcnica

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    Embaixador Jeronimo Moscardo (E) o filsofo Adauto Noavaes iniciam o Frum Senado Brasil 2012

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    procuram ocupar o lugar da poltica de maneira totalizante. a escandalosa e inconsequente busca da hegemonia de uma dessas variantes sobre a poltica. Esta tendncia dominante hoje abole todos os princpios polticos. Como obser-va o filsofo Newton Bignotto, retomando Hannah Arendt, parecemos condena-dos a oscilar entre democracias apticas, comandadas exclusivamente pelas foras de mercado, e regimes autoritrios.

    4. Em um ensaio sobre o Imaginrio poltico grego e moderno, Corneluis Casto-riades escreve sobre a ruptura radical, uma criao histrica, que a inveno da democracia moderna. Antes a poltica era regida por instncias extrassociais, externas ao poder e ao agir dos humanos (as leis emanavam dos deuses e he-ris fundadores) para quem nenhuma questo poderia ser posta uma vez que eles j tinham resposta para tudo. Ora, o advento da democracia o reconheci-mento de que a fonte da lei a prpria sociedade eis o grande fato fundador: a ruptura do fechamento antigo a abertura de uma interrogao ilimitada. A interrogao da filosofia poltica jamais cessa diante de um ltimo postulado que jamais poderia ser posto em causa. isso a democracia: permanente cria-o de direitos. como define com clareza Castoriades:

    Na sua verdadeira significao, a democracia consiste nisso: a sociedade ja-mais se estabelece em uma concepo do que o justo, o igual ou o livre, dado de uma vez por todas, mas institui-se de tal sorte que as questes da liberdade, da justia, da equidade e igualdade possam sempre ser repostas no quadro do funcionamento normal da sociedade. Eu diria que uma sociedade autnoma no apenas se ela sabe que faz suas leis, mas se ela est em condies de p--las em questo.

    Assim, a poltica entendida no apenas como instrumento de dominao (o que , em grande parte, verdade) mas tambm, e no sentido forte e originrio do termo, polo de organizao de direitos.

    Eis o grande problema dos nossos tempos. Muitos pensadores afirmam que nossa poca nem chega a ser niilista, mas simplesmente nula; outros, mais pessimistas, afirmam que nem mesmo chega a ser uma poca. Ora, como observa ainda Castoriades, a sociedade s pode viver criando significao, e significao para ele quer dizer idealidade, coisa mais importante do que as coisas materiais. Na mesma linha de pensamento, Valry comea um dos famo-sos ensaios dizendo que a era da barbrie a era dos fatos e que nenhuma so-ciedade se estrutura, se organiza, sem as coisas vagas. Por coisas vagas ele entendia tambm os ideais polticos. Perguntamos: que ideais nos estruturam hoje, quando notamos uma enorme prevalncia da cincia, da tcnica e do do-mnio do capital financeiro em todas as reas da poltica? Seria uma nova forma de totalitarismo, sem aluso expressa a formas de dominao passada? Essa nova forma reivindica at mesmo certo parentesco com a democracia: demo-cracia cientfica, democracia burocrtica, democracia tcnica, democracia financeira etc.? Mais: patente que existe hoje o que alguns denominam o

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    outro da poltica, que representa a economia, momento de superao da ideia de Estado-Nao pela mundializao.

    5. Outro pensador da filosofia poltica, Claude Lefort, autor dos grandes ensaios sobre o totalitarismo, observa que, para pensar este enigma da democracia, de-vemos recorrer menos a uma construo conceitual definitiva e dar mais aten-o ao acontecimento, histria e aos testemunhos dos homens. Mas toda poltica, segundo ele, vive de enigmas e ambiguidades: uma sociedade que se inventa permanentemente traz potencialidades de desenvolvimento demo-crtico e riscos de poder totalitrio. Relembremos a interpretao que Lefort d a Maquiavel em um dos livros mais importantes sobre a poltica Le travail de loeuvre (1971): toda cidade ordena-se e se constri a partir de uma diviso primeira que se manifesta inicialmente pelo desejo dos grandes de comandar e oprimir e do povo de no ser comandado nem oprimido desejo de liberdade.

    O poder totalitrio pode assumir hoje novas formas, que dispensam a domina-o hierarquizada e centralizada. Lemos, por exemplo, em um dos ensastas que participam dos ciclos de conferncias sobre as mutaes, o filsofo Frd-ric Gros, que, no nosso mundo liberal, trata-se de dispor as coisas de tal manei-ra que, atravs delas, sem obrigar, obtm-se a reao adequada. Com as redes sociais e a geolocalizao, diz Gros, ningum nos obriga a dizer o que estamos fazendo nem onde estamos. A tcnica consiste em saturar os objetos tcnicos a fim de faz-los interagir sem a interveno da vontade do homem: De repen-te, a dvida, a hesitao, a deciso, a conscincia e a vontade desaparecem. Esse modo de funcionamento parece dar razo a Heidegger.

    Mas h um segundo caminho: novas formas de expresso democrtica surgem a partir das novas tecnologias. certo que vivemos uma mudana na ideia e na prtica da representao: sentimos que somos cada vez menos representados pelos partidos polticos e pelos sindicatos: os Estados esto cada vez mais pri-sioneiros e dependentes do mercado e da lgica financeira. Mas vemos, ao mes-mo tempo, surgir novas tecnologias de comunicao internet etc. que abrem espao para novas formas de participao e interveno polticas. Manifestar-se, defender posies, reagir sem passar por corpos intermedirios, ou seja, os partidos polticos, os sindicatos, as mdias: a realidade atual dupla e ambiva-lente ou, segundo Gros:

    Profunda crise da democracia quando se sabe que os instrumentos tradi-cionais da democracia so desprezados e que representantes polticos no aparecem mais como legtimos; dinmica democrtica nova, trazida pelas novas tecnologias, que permite a todos os cidados exprimir-se de maneira direta, fcil e sem custo.

    Mas isso seria o bastante para redefinir a democracia crtica? Exemplos recen-tes no Oriente Mdio talvez nos trazem mais desmentidos do que certezas.Ora, o avano da tcnica tido como smbolo do progresso moderno e da reali-dade democrtica, em princpio, ao alcance de todos. Isso chega a caracterizar

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    democracia? Mas a questo que se deve pr se tal mutao produzida pela tecnocincia eleva o nvel moral e poltico. Talvez a maneira mais justa de pr a questo seja: como reativar a democracia a partir dessa mutao? certo que a mutao pode trazer no seu bojo um poder instituinte jamais explicitado com-pletamente, oculto nos intramundos da sociedade, mas que abre espao tam-bm para o seu contrrio. Cabe poltica dar expresso e visibilidade e esses movimentos implcitos, de dimenses temporais no controladas, um futuro a ser construdo que jamais se realiza inteiramente.

    As ideias de representao, consenso, poder da imagem, tica e moral, poder da palavra, Estado democrtico de direito, ciberdemocracia so alguns dos temas propostos neste ciclo de conferncias: Democracia em tempos de mu-taes.

    6. Resta, enfim, a questo: o que o homem poltico? Ou melhor, como defi-nir o homem hoje diante de tudo isso? A noo de homem passou a ser flui-da, cambiante, mltipla, dependendo do interesse imediato da poltica e dos problemas e circunstncias de cada momento. O homem, tal como a filosofia antiga pensava, perdeu o seu carter abstrato e universal. Nosso pensamento desdobra-se, de maneira anrquica, e considera o homem ora cidado, ora consumidor, contribuinte, eleitor, especulador, segundo a excitao do momento. Uma democracia e uma poltica sem forma podem facilmente adotar as mais disformes ideias de homem. Da as caractersticas atuais de economi-cus, connecticus, ps-poltico, neo-humano ou simples dado abstrato da razo instrumental. Talvez seja difcil sustentar o que dizia Aristteles: O homem um animal poltico.

    Lemos, assim, pelo menos cinco noes sobre o homem contemporneo nas conferncias deste ciclo:

    Francis Wolff define-o, em seu apolitismo, como Homo economicus. O que res-ta ao homem hoje, pergunta ele: Viver juntos? No. O bem viver em comum?

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    Jamais. A vida apenas: a troca de bens e servios, as duras necessidades do mercado. No lugar da ao poltica... apenas as atividades do dia a dia do Homo economicus. Impossvel no retornar, mais uma vez, a Robert Musil, para quem uma sociedade baseada na especulao no passa de um egosmo organiza-do, isto , a mais revoltante organizao do egosmo, fundada sobre a maior ou menor capacidade de fazer dinheiro. No apenas os Estados mas tambm os indivduos esto cada vez mais prisioneiros dos mercados e dependentes das lgicas financeiras: Esta maneira de contar com as ms capacidades do homem escreve Musil consiste na especulao por baixo. Uma ordem em baixa consiste no trilhar a baixeza: tal a ordem do mundo atual: Eu o deixo ganhar para que eu possa ganhar maisou Eu o deixo ganhar mais para que eu possa ganhar alguma coisa. Eis a lgica da poltica regida pela especulao.

    Para Frdric Gros, nasce um novo indivduo, o Homo connecticus. O homem hoje est em permanente conexo. Tecnicamente, afirma Gros, mais fcil para o cidado exprimir-se em fruns, defender posies, dar opinio sem passar por corpos intermedirios os partidos, os sindicatos e as midias clssicas. Mas esta realidade atual ambivalente: profunda crise da democracia quando os instrumentos tradicionais so esquecidos e quando os representantes pol-ticos no mais aparecem como legtimos; dinmica democrtica nova trazida pelas novas tecnologias que permitem a todos os cidados exprimir-se de ma-neira direta, fcil e barata. As novas tecnologias trazem grandes mutaes da percepo do tempo, do espao, mas tambm na nossa relao com os outros e com a democracia gerando transformaes importantes na vida poltica.

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    Ao falar da tica, da moral e da poltica, Franklin Leopoldo e Silva pensa o ho-mem hoje como um dado abstrato da razo instrumental. O indivduo passa a ser um agente econmico formalmente definido: evidente, escreve Franklin, que o processo de abstrao do indivduo burgus paralelo ao progressivo desaparecimento da poltica, substituda pela gesto das necessidades no con-texto da racionalidade instrumental.

    Entre os cinco pontos que o filsofo Sergio Paulo Rouanet apresenta para carac-terizar o recuo da esfera pblica e a atrofia do poltico, um deles particularmente importante na definio do homem hoje. Rouanet fala da criao de homens ps-polticos. Pesquisas cientficas tendem a construir, biologicamente, um ho-mem novo, dotado de predisposies genticas de comportamentos autma-tos: Desapareceria com isso, escreve Rouanet, a necessidade de mediao poltica, forma tradicional de conciliar interesses de indivduos e grupos com interesse social. Teramos, em vez disso, a fabricao em laboratrio de homens ps-polticos.

    Por fim, a nova definio do homem, a partir das grandes mutaes provocadas pela cincia e pela biotecnologia exige nova relao com a poltica. O fsico e filsofo Luiz Alberto Oliveira considera que o homem caminha em direo ao inevitvel Homo Civilis (ou Homo sapiens 2.0). Como pensar a democracia na sua relao com o que o fsico chama de evoluo da evoluo isto , o aparecimento ou antes, a produo de um novo estgio da vida? Torna-se, assim, indispensvel, diz Luiz Alberto Oliveira, debater os aspectos ticos, pol-ticos e histricos desta transio autogerada para uma condio neo-humana.

    A complexidade da democracia poltica e intelectual hoje exige de todos um permanente trabalho de criao de obras de pensamento: eis uma das ma-neiras de combater as incertezas, a apatia, o pessimismo e, principalmente, o apolitismo.

    Adauto NovaesRio, abril de 2012

  • 16 Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    O apolitismo, a maior ameaa democracia

    Francis Wolff

    A democracia um regime curioso. Quando ela no existe, objeto de dese-jo; quando existe, cessa de ser este objeto. O povo parece politizado quando aspira democracia; mas se ele a obtm afasta-se da poltica. como se, de repente, ele rejeitasse uma amante to desejada a partir do momento em que a conquistou. Ele est para a democracia como Don Juan para as mulheres: a conquista mobiliza toda sua energia, a posse o entedia. Este o destino de quase todas as revolues: o povo instala-se na cena da histria para conquis-tar sua liberdade poltica, mas a partir do momento em que a obtm, usa de sua liberdade para no mais se meter com a poltica.

    A democracia tem assim dois adversrios: um inimigo externo, a tirania sob todas as suas formas; e um inimigo interno, o apolitismo. Existe um lao se-creto entre estes dois adversrios: Democracia pode bem significar poder do povo; o povo no gosta do poder. o caso desde a inveno da democracia em Atenas no sculo 5 a.C. O povo execra naturalmente aqueles que exercem o poder contra ele, mas tem horror de exerc-lo ele mesmo. Ele tem outras coi-sas a fazer alm da poltica e prefere que outros a faam no seu lugar. Da esta forma estranha de regime que se chama hoje democracia, que no outra coisa seno um governo representativo: um regime no qual o povo escolhe, se possvel livremente, os polticos, isto , aqueles que exercem o poder em seu

    Francis Wolff

    Professor de filosofia na Ecole normale suprieure (Paris). Foi profes-sor na Universidade de Paris-Nanterre e na USP. autor de artigos e livros dedicados filosofia antiga, filosofia da linguagem e meta-fsica contempornea, entre os quais destacam-se: Socrate (edio portuguesa: Scrates, Teorema); Aristote et la politique (edio bra-

    sileira: Aristteles e a poltica, Discurso Editorial); Dire le monde (edio brasileira: Dizer o mundo, Discurso Editorial); Ltre, lhomme, le disciple (PUF); Notre humanit, dAristote aux neurosciences (Fayard). Publicou ensaios nos livros A crise da razo; O avesso da liberdade; Muito alm do espetculo; Poetas que pensaram o mundo; O silncio dos intelectuais; Ensaios sobre o medo; O esquecimento da poltica; A condio humana; Vida, vcio, virtude; Mutaes: a experincia do pensamento.

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    lugar na esperana de que o seja em seu interesse e no no interesse deles. De certa maneira, eleger profissionais da poltica uma traio idia de democra-cia. Mas, de outra maneira, obrigar o povo a se interessar pelas coisas pblicas quando ele deseja apenas as coisas privadas um atentado ao princpio da liberdade que funda tambm a democracia.

    Essa tenso entre dois objetivos incompatveis talvez a que conheceu o Bra-sil dos ltimos trinta anos, desde a conquista da democracia. Gostaramos de aprofundar este paradoxo na nossa conferncia, insistindo no risco inerente a toda democracia: o apolitismo.

    Quais so pois as formas de apolitismo em todas as democracias modernas pelo mundo?

    Existe, inicialmente, o debruar-se sobre si mesmo, ou melhor, sobre o si mes-mo. Deixamos de acreditar que a poltica pode trazer felicidade comum; a feli-cidade deve ser buscada na vida privada, na realizao individual, no casal, na famlia, ou s vezes nessas identidades ambguas como o gnero, o solo, a nao. As normas polticas (solidariedade, justia, igualdade) so substitudas por valores morais como o cuidado familiar e a solicitude individual. Mesmo a

    vida social julgada em nome de a moral: a corrupo ento o pior vcio em escala nacional e a ateno humanitria o nico programa em escala inter-nacional. Outra forma de apolitismo o refgio no sagrado: o apelo s ajudas da transcendncia toma o lugar do desejo de uma salvao imanente, e nos espritos a esperana da Cidade de Deus substitui a cidade dos homens. Mas se a alma enviada ao cu, se s existe salvao na transcendncia, o que

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    resta para viver aqui embaixo? O viver juntos? No. O bem viver em comum? Jamais. A vida apenas: a troca de bens e servios, as duras necessidades do mercado, e, no lugar da ao poltica, voltada para amanhs que despontam, restam apenas atividades do cotidiano do Homo economicus. Porque e esta

    uma outra forma de apolitismo os utpicos de ontem deram lugar aos ex-perts de hoje. No se disputam mais fins polticos, discutem-se meios, e esses meios so tcnicos: so dossis, comisses, departamentos de estudos, encarregados de relatrios sobre os meios para melhorar a eficcia da defesa nacional, o rendimento da pesquisa, a fiabilidade dos transportes etc. Que resta pois aos polticos a no ser os slogans, as promessas e os sorrisos forados das campanhas eleitorais?

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    O territrio de si, os valores morais, as crenas religiosas, as realidades econ-micas, o saber dos experts, eis cinco tipos de apolitismo. Mas no so apenas desdobramentos fora da poltica, so tambm cinco maneiras de pensar a poltica, inerentes democracia representativa. So cinco refundaes antin-micas da poltica: sobre o si (individualismo ou nacionalismo), sobre a moral (as normas ou os direitos), sobre a religio (o sagrado, a transcendncia), sobre a economia (o real, o mercado) e sobre a especializao (o saber da tcnica). Como salvar a democracia do apolitismo? E como a poltica pode abrir um ca-minho hoje em meio a seus fantasmas?

    Lapolitisme, la plus grande menace pour la dmocratie

    Francis Wolff

    La dmocratie est un rgime curieux. Quand elle nest pas l, elle est objet de dsir, quand elle est l, elle cesse de ltre. Le peuple semble politis quand il aspire la dmocratie ; mais, sil lobtient, il se dtourne de la politique. Cest comme sil rejetait soudain une amante tant convoite ds quil lavait conquise. Il est devant la dmocratie comme Don Juan devant les femmes : la conqute mobilise toute son nergie, la possession lennuie. Tel est le sort de presque tou-tes les rvolutions : le peuple sinstalle sur la scne de lhistoire pour conqurir sa libert politique, mais ds quil la obtenue, il use de sa libert pour ne plus se mler de politique.

    La dmocratie a ainsi deux adversaires : un ennemi extrieur, cest la tyrannie sous toutes ses formes ; et un ennemi intrieur, cest lapolitisme. Il y a un lien secret entre ces deux adversaires : Dmocratie a beau signifier pouvoir du peuple, le peuple naime pas le pouvoir. Cest le cas depuis linvention de la dmo-cratie Athnes au Ve sicle avant J-C. Le peuple excre naturellement ceux qui lexercent contre lui, mais il a horreur de lexercer lui-mme. Il a dautres choses faire que la politique et prfre que dautres en fassent sa place. De l cette forme trange de rgime quon appelle aujourdhui dmocratie et qui nest autre quun gouvernement reprsentatif : un rgime dans lequel le peuple choisit, si possible librement, les politiques, cest--dire ceux qui exerceront le pouvoir sa place, avec lespoir que ce soit dans son intrt lui, et non dans leurs intrts eux. Dune certaine manire, lire des professionnels de la politique est une trahison de lide de dmocratie. Mais dune autre manire, contraindre le peuple se mler des affaires publiques quand il ne dsire que se mler de ses affaires prives est une atteinte au principe de libert qui fonde aussi la dmocratie.

    Cette tension entre deux objectifs incompatibles est peut-tre celle qua connue le Brsil de ces trente dernires annes, depuis la reconqute de la dmocratie. Nous voudrions dans cette communication approfondir ce paradoxe, en insis-tant sur le risque inhrent toute dmocratie reprsentative : lapolitisme.

  • 20 Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    Quelles sont donc les formes de lapolitisme dans toutes les dmocraties mo-dernes de par le monde ? Il y a dabord le repli sur soi ou plutt sur le territoire du soi . On a cess de croire que la politique pouvait apporter le salut commun, le bonheur se cherche, tant bien que mal, dans la vie prive, dans la russite in-dividuelle, dans le couple, la famille, ou parfois dans ces identits ambigus que sont le genre , le sol ou la nation. Aux normes politiques (solidarit, justice, galit) se substituent des valeurs morales comme le soin familial et la sollicitu-de individuelle (le care). Mme la vie sociale se juge au nom de la morale : la corruption est dsormais le pire vice lchelle nationale, et lattention humani-taire le seul programme lchelle internationale. Une autre forme dapolitisme

    est le refuge dans le sacr : lappel aux secours de la transcendance remplace le dsir dun salut immanent, et dans les esprits, lesprance de la Cit de Dieu sest substitue celle des hommes Mais si lme est laisse au Ciel, sil ny a de salut que transcendant, que reste-t-il pour vivre ici-bas ? Le vivre ensemble ? Nullement. Le bien vivre en commun ? Pas du tout. Seulement la vie tout court : lchange des biens et des services, les dures ncessits du march ; et au lieu de laction politique, tourne vers les lendemains qui chantent, il ny a que les activits au jour le jour de lHomo economicus. Car et cest l une autre forme de lapolitisme les utopistes dhier ont fait place aux experts daujourdhui. On ne dispute plus des fins, politiques, on discute des moyens, et ceux-ci sont techniques : ce sont autant de dossiers , de commissions , de bureaux dtude , chargs de rapports sur les moyens damliorer lefficacit de la dfense nationale, le rendement de la recherche, la fiabilit des transports, etc. Que reste-t-il donc aux politiques, sinon justement les slogans, les promesses et les sourires forcs des campagnes lectorales ?

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  • 21Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    Le territoire du soi, les valeurs morales, les croyances religieuses, les ralits co-nomiques, le savoir des experts, voil cinq types dapolitisme. Mais ce ne sont pas seulement des replis hors du politique, ce sont aussi cinq faons de penser la politique, inhrentes la dmocratie reprsentative. Ce sont cinq refondations antinomiques de la politique : sur le soi (individualisme ou nationalisme), sur la morale (les normes ou les droits), sur la religion (le sacr, la transcendance), sur lconomie (le rel, le march), sur lexpertise (le savoir, la technique). Comment sauver la dmocratie de lapolitisme ? Et comment la politique peut-tre se frayer une voie aujourdhui au milieu de ses fantmes ?

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    O filsofo Adauto Novaes (E), embaixadores Samuel Pinheiro Guimares e Jeronimo Moscardo e o jornalista Mauro Santayana acompanham palestra de Francis Wolff

  • 22 Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    Sobre o consenso na democracia

    Igualdade, unanimidade, legitimidade

    Charles Girard

    A democracia exige consenso. pelo menos o que sugere o esforo de tantos filsofos modernos para fundar a legitimidade da ordem poltica sobre o acor-do unnime dos cidados. Duas exigncias prprias ao regime democrtico explicam esse desejo de unanimidade. De um lado, cada indivduo, enquanto cidado, deve ser reconhecido como igual em direito como qualquer outro. De outro, o consentimento dos cidados a fonte de todo poder legtimo. Se todos tm o direito de participar da tomada de decises polticas e se apenas a von-tade dos cidados justifica o carter obrigatrio da lei, apenas as leis aprova-das por unanimidade deveriam, em principio, ser reconhecidas como legtimas. Apenas a unanimidade poderia realizar a promessa do governo do povo, per-mitindo a cada um se governar verdadeiramente, isto , s obedecer s leis que ele consente. Jean-Jacques Rousseau via assim, no seu Contrato Social, o acordo de todas as vontades como o sinal mais seguro da expresso da von-tade geral: Mais o concerto reina nas assembleias, isto , mais os pontos de vista aproximam-se da unanimidade, mais tambm a vontade geral dominan-te: mas os longos debates, os dissensos, o tumulto anunciam a ascenso dos interesses particulares e o declnio do Estado.

    Apesar de tudo, o consenso ameaa a democracia. Esperar que ele se forme es-pontaneamente para agir , na realidade, renunciar a agir porque em pequenas sociedades, como nas sociedades de massa contemporneas, no existe unani-midade. Querer criar ativamente o consenso pr em perigo a pluralidade das opinies em particular nas sociedades contemporneas, que abrigam culturas, etnias, religies e mltiplas tradies. A democracia, a partir da, impotente ou autoritria. Este dilema frequenta os discursos e os escritos sobre o debate pbli-co, percebido pelos tericos polticos, de John Rawls a Jrgen Habermas, como

    Charles Girard

    Doutor em filosofia, professor da Universidade Sorbonne de Paris e membro da equipe Racionalidades contemporneas, da qual tam-bm editor. Membro do comit de redao das revistas Participation e Razo pblica, dirige a coleo Advogado do Diabo, que publicada pela Editora Hermann.

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  • 23Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    o corao da vida democrtica. Se a troca conflitual e cooperativa das opinies e ideias jamais conduz ao consenso e no nos livra do recurso regra da maio-ria, por que debater? Se o esforo e a persuaso pblica, visando ao acordo do maior nmero, pem em perigo a diversidade de opinies, no seria prudente se precaver? A deliberao pblica pode assim tornar-se suspeita de ser apenas o substituto ilusrio do jamais encontrado consenso. Mas deve-se renunciar a ele?

    Abandonar toda referncia unanimidade coisa a considerar. Em sociedades dominadas por irredutveis desacordos, apenas a garantia do maior nmero pode constituir um fundamento prtico para a legitimidade. Mas em um sistema fun-dado sobre a regra da maioria, os membros da minoria, que so submetidos a leis que eles no aprovaram, podem julgar que eles no so verdadeiramente tratados com igualdade com relao aos membros da maioria, que so subme-tidos a leis que aprovaram. preciso, pois, definir o que a maioria tem o direito de impor ou no minoria. Como fazer ento para que essa demarcao dos limites do poder majoritrio permanea de natureza democrtica, isto , para que ela no constitua uma violncia externa restringindo a vontade do povo? Diversos filsofos contemporneos sugerem retomar a ideia de unanimidade: no mais unanimidade de fato, efetiva, portanto, improvvel, mas uma unanimidade de direito, hipottica, portanto, disponvel. Nesta perspectiva, os indivduos so tra-tados em igualdade e, como cidados, obedecem a leis que eles poderiam ou deveriam querer (mesmo se, na realidade, eles no as querem). Os membros da minoria no so tratados de maneira desigual se eles devessem em direito aprovar as leis que eles desaprovam de fato. Invocar o bem comum, nas de-mocracias contemporneas, consiste precisamente em invocar aquilo com que todos deveriam consentir e que preciso promover, mesmo se nem todo mundo o admite. A dificuldade, apesar de tudo, menos solucionada do que deslocada. Dado que o consenso real no existe, como concordar com o objeto de um con-senso ideal?

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  • 24 Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    Du consensus en dmocratie

    galit, unanimit, lgitimit

    Charles Girard

    La dmocratie exige le consensus. Cest du moins ce que suggre leffort de tant de philosophes modernes pour fonder la lgitimit de lordre politique sur laccord unanime des citoyens. Deux exigences propres aux rgimes dmocratiques ex-pliquent ce dsir dunanimit. Dune part, chaque individu, en tant que citoyen, doit tre reconnu comme gal en droit tout autre. Dautre part, le consentement des citoyens est la source de tout pouvoir lgitime. Si tous ont le droit de partici-per la prise de dcisions politiques et que seule la volont des citoyens justifie le caractre obligatoire de la loi, seules les lois prises lunanimit devraient, en principe, tre reconnues comme lgitimes. Seule l unanimit pourrait raliser la promesse du gouvernement du peuple, en permettant chacun de se gou-verner vritablement lui-mme, cest--dire de nobir qu des lois auxquelles il consent. Jean-Jacques Rousseau voyait ainsi, dans son Contrat social, laccord de toutes les volonts comme le signe le plus sr de lexpression de la volont gnrale : plus le concert rgne dans les assembles, cest--dire plus les avis approchent de lunanimit, plus aussi la volont gnrale est dominante ; mais les longs dbats, les dissensions, le tumulte, annoncent lascendant des intrts particuliers et le dclin de ltat .

    L e con-sen-sus,

    pourtant, menace la dmocratie. Attendre quil se forme spontanment pour agir, cest en ralit renoncer agir car dans de petites socits comme dans les socits de masse contemporaines, lunanimit fait dfaut. Vouloir faire advenir activement le consensus, cest mettre en pril la pluralit des opinions en par-

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  • 25Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    ticulier dans les socits contemporaines, abritant des cultures, des ethnies, des religions et des traditions multiples. La dmocratie, ds lors, est soit impuissante, soit autoritaire. Ce dilemme hante les discours et les crits sur le dbat public , dsormais peru par les thoriciens politiques, de John Rawls Jrgen Haber-mas, comme le cur de la vie dmocratique. Si lchange conflictuel et coopratif des avis et des ides ne conduit jamais au consensus, et quil ne nous pargne pas le recours la rgle majoritaire, pourquoi dbattre ? Si leffort de persuasion publique, visant laccord du plus grand nombre, met en pril la diversit des opi-nions, ne faut-il pas sen prmunir ? La dlibration publique peut ainsi tre soup-onne de ntre quun substitut illusoire de lintrouvable consensus. Faut-il alors y renoncer ?

    Abandonner toute rfrence lunanimit est certes envisageable. Dans des soci-ts traverses par dirrductibles dsaccords, seul le soutien du plus grand nom-bre peut constituer un fondement pratique pour la lgitimit. Mais dans un syst-me fond sur la rgle de la majorit, les membres de la minorit, qui sont soumis des lois quils nont pas approuves, peuvent juger quils ne sont pas vraiment traits galit avec les membres de la majorit, qui sont soumis des lois quils ont approuvs. Il faut donc dfinir ce que ce que la majorit a le droit dimposer ou non la minorit. Comment faire, alors, pour que cette dlimitation des limites du pouvoir majoritaire reste de nature dmocratique, cest--dire pour quelle ne constitue pas une contrainte extrieure restreignant la volont du peuple ? Maints philosophes contemporains suggrent de renouer pour cela avec une autre ide dunanimit : non plus lunanimit de fait, effective et donc introuvable, mais une unanimit en droit , hypothtique et donc disponible. Dans cette perspective, les individus sont traits galit et en citoyens sils obissent des lois quils pourraient ou devraient vouloir (mme si, en ralit, ils ne les veulent pas). Les membres de la minorit ne sont pas traits de faon ingale sils devraient en droit approuver les lois quils dsapprouvent de fait. Invoquer le bien commun, dans les dmocraties contemporaines, cest prcisment invoquer ce quoi tous devraient consentir, et quil faut promouvoir, mme si tout le monde ne ladmet pas. La difficult, pourtant, est moins rsolue que dplace. Car si le consensus rel fait dfaut, comment saccorder sur lobjet dun consensus idal ?

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    Homo civilis (ou Homo sapiens 2.0)

    Luiz Alberto Oliveira

    A Teoria da Evoluo por Seleo Natural de Charles Darwin foi um dos maio-res feitos das Cincias da Natureza, nos ltimos 150 anos, ao vincular o de-senvolvimento dos seres vivos a uma dupla contingncia: por um lado, a deri-va microscpica dos caracteres genticos responsveis pela hereditariedade; por outro, a ao, como causas livres, de grandes fatores ambientais que implementaram a seleo por adaptao e assim dirigiram a variao das es-pcies. Esse o mbito bio-ecolgico no qual as origens de nossa prpria es-pcie, Homo sapiens, podem ser adequadamente situadas. possvel argu-mentar, porm, que desde o surgimento da Civilizao Tcnica (associada

    Luiz Alberto Oliveira

    Fsico, doutor em cosmologia, pesquisador do Instituto de Cosmo-logia, Relatividade e Astrofsica (ICRA-BR) do Centro Brasileiro de Pesquisas Fsicas (CBPF/MCT), onde tambm atua como profes-sor de Histria e Filosofia da Cincia. ainda curador de Cincias do Museu do Amanh (em implantao) e professor convidado da

    Casa do Saber do Rio de Janeiro e do Escritrio Oscar Niemeyer, dentre outras atividades. Escreveu ensaios para Tempo e histria; A crise da razo; O avesso da liberdade; O homem-mquina; Ensaios sobre o medo; Ensaios sobre as novas configuraes do mundo; A condio humana e A experincia do pensamento; Mutaes: a inveno da crena (SESC SP, 2011).

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  • 27Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    apario aproximadamente concomitante da agricultura, da cidade, da escrita e da matemtica), h cerca de 12 mil anos, foram criadas as condies para uma artificializao crescente e cada vez mais ampla dos domnios da ativida-de humana. Essa artificializao teria dado lugar a um processo progressivo e cumulativo de converso da ambincia humana, cada vez mais tecnificada, em um contexto impulsionador para essa prpria atividade transformadora. A evoluo darwiniana pura estaria sendo suplementada em ambas as di-

    menses fundamentais de contingncia quer em funo da amplitude pla-netarizada dos empreendimentos econmicos, comparvel s das grandes causas ambientais; quer devido proliferao e difuso de extenses tcnicas de movimento, sensibilidade e cognio que reconfiguram as potencialidades de ao e pensamento dos seres humanos. Atravs de processos em escala global como a urbanizao e de tecnologias profundamente revolucionrias, como a manipulao antrpica do design bsico de clulas, rgos e organis-mos, estaria assim em curso uma mutao sui generis: embora a morfologia orgnica do Homo sapiens seja a mesma desde 120 mil anos, os humanos contemporneos estariam experimentando uma autntica deriva cognitiva, in-comensurvel aos padres anteriores, rumo a uma verso 2.0 da espcie, que poderemos chamar de Homo civilis. Uma especiao no-orgnica, cor-respondente a uma evoluo da evoluo, permitindo antever o aparecimento ou antes, a produo de um novo estgio da vida. Torna-se assim indispen-svel debater os aspectos ticos, polticos e histricos desta transio autoge-rada para uma condio neo-humana.

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  • 28 Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    Esquecimento da poltica: o caso da religio

    Sergio Paulo Rouanet

    Muitos se queixam, hoje em dia, de certa tendncia politizao excessiva de certos temas e atividades. Exemplos dessa politizao seriam a explorao eleitoral dos assassinatos de rua ocorridos h algum tempo em So Paulo ou o aparelhamento da administrao pblica atravs de nomeaes poltico-partidrias para cargos de confiana, ou ainda a utilizao de critrios partidrios para orientar numa ou noutra direo as comisses parlamentares de inqurito, sem qualquer preocupao com a descoberta objetiva dos fatos.

    E se tudo isso fosse um mal-entendido? E se em vez de poltica demais, tivssemos poltica de menos? E se em vez da hipertrofia do poltico estivssemos assistindo a um recuo da esfera pblica, a uma atrofia do poltico, em todas as esferas, a um processo de esvaziamento progressivo do processo democrtico?

    Outrora, essa atrofia caracterizava os pases totalitrios, em que a onipotncia do Es-tado produzia um encolhimento correlativo da sociedade civil, lugar por excelncia do debate e da ao poltica. Com a democratizao de grande parte do mundo, surgem ou se acentuam tendncias globais, na esfera da economia, da sociedade e da cincia, que apontam para outras variedades de retrao do poltico. Esse recuo se manifesta:

    (1) em pases sujeitos a um alto ndice de excluso social. A caracterstica do capitalis-mo globalizado seu carter estruturalmente excludente. Ao contrrio do capitalismo

    Sergio Paulo Rouanet

    Doutor em cincia poltica pela USP, autor de dipo e o anjo (Tem-po Brasileiro, 2007); Riso e melancolia (Companhia das Letras, 2007); Ideias da cultura global e universal (Marco Editora, 2003); Interrogaes (Tempo Brasileiro, 2003); O espectador noturno e Os dez amigos de Freud (Companhia das Letras, 2003); Mal-estar na modernidade (Companhia das Letras, 1993); A razo cativa (Brasi-

    liense, 1990); As razes do Iluminismo (Companhia das Letras, 1987). Publicou ensaios nos livros Os sentidos da paixo; O olhar; A crise da razo; Brasil 500 anos: a outra margem do Ocidente; O avesso da liberdade; O homem-mquina; O silncio dos intelectuais; O esquecimento da poltica; Mutaes: ensaios sobre as novas configuraes do mundo; A condio humana; Mutaes: a experincia do pensamento; Mutaes: a inveno da crena (SESC SP, 2011).

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  • 29Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    clssico, em que a expulso de parcelas da populao trabalhadora assumia a forma de um exrcito de reserva, isto , como a prpria expresso indica, de uma fora de trabalho que a qualquer momento podia ser convocada para retornar ao processo produtivo, a marginalidade hoje muito mais definitiva, porque ela se compe no s dos que perderam seu emprego como dos que nunca foram nem sero emprega-dos. So os inassimilveis do capitalismo atual, que, por serem excludos, no podem exprimir seu ressentimento com a arma reservada aos protagonistas plenos do jogo poltico-partidrio: a arma do voto. Em parte, o que est na raiz da crescente crimina-lidade urbana, no Brasil, e da violncia dos jovens da periferia, em Paris, que reagem, incendiando carros ou praticando atos de terrorismo, sociedade que os tornou des-cartveis. Comum aos bandidos paulistas e aos vndalos de Paris a conscincia de que estando excludos do sistema social e poltico no tm nenhuma esperana de mudar pelo voto suas condies materiais de vida: no tm fora poltica por estarem excludos e esto excludos por no terem nenhum poder de alterar o estado de coi-sas que os condenou excluso. Expulsos da poltica, s lhes resta a rua;

    (2) na disjuno entre os dois polos do processo poltico, que numa democracia clssica esto unificados: o polo que manda (constitudo pelos sujeitos do poder) em princpio apenas a outra face do polo que obedece, (constitudo pelos desti-natrios ou objetos do poder) porque, como afirmou Rousseau, ao submeter-se lei que ele prprio promulgou o cidado est obedecendo apenas a si mesmo. Essa unidade se rompe com a perda de autonomia introduzida pelo processo de globali-zao e pelo unilateralismo imperial da nao hegemnica. Somos todos objetos de poder, sofrendo os efeitos de decises tomadas pelas corporaes transnacio-nais ou pelo presidente dos Estados Unidos, mas no sujeitos de poder, pois no participamos da elaborao das diretrizes que vo nortear a estratgia empresarial de Bill Gates nem do processo poltico que levou eleio de George W. Bush;

    (3) na tendncia a tratar problemas polticos como se fossem problemas tcnicos ou burocrticos. A consequncia que esferas inteiras da vida social so subtradas

    Ministro Carlos Fernando Mathias de Souza (E), Senador Rodrigo Rollemberg e o servidor do Senado Armando Rollemberg acompanham palestra de Sergio Paulo Rouanet

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  • 30 Frum Senado Brasil 2012 | Democracia em tempos de mutaes

    ao debate pblico e necessidade de justificao poltica, sob a alegao de que elas esto sujeitas apenas a imperativos tcnicos, que esto sob a jurisdio de es-pecialistas e no precisam de qualquer justificao. Essa tendncia se mostra com especial clareza em agrupamentos como a Unio Europeia, em que decises que normalmente deveriam ser submetidas s instncias polticas apropriadas, dentro da prpria Unio Europeia ou nos Estados-membros, so tomadas pelos eurocra-tas de Bruxelas. Foi a revolta diante dessa usurpao de poder que levou rejeio do projeto de Constituio europeia, resultado em si indesejvel, por sinalizar uma regresso para posies nacionalistas ultrapassadas, mas compreensvel como re-ao ao esvaziamento do processo poltico europeu;

    (4) tambm como reao parcial globalizao e ao unilateralismo norte-americano, na proliferao do terrorismo, que a institucionalizao da fora, e portanto a mais completa rejeio da via democrtica para a soluo dos conflitos, baseada na livre argumentao e na discusso de todos os pontos de vista, e no na imposio uni-lateral de uma posio apoiada na violncia;

    (5) enfim, em certas linhas de pesquisa cientfica, que tendem para a construo biolgica de um homem novo, dotado de predisposies genticas que o en-caminhassem automaticamente para comportamentos condizentes com o bem coletivo. Desapareceria, com isso, a necessidade da mediao poltica, forma tradicional de conciliar os interesses de indivduos e grupos com o interesse social. Teramos, em vez disso, a fabricao em laboratrio de homens ps--polticos.

    Esses fatores macroestruturais, de alcance global, so reforados no Brasil por dficits internos de moralidade pblica, que aceleram o processo de esvazia-mento do poltico:

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    Senador Cristovam Buarque (C) participa da palestra

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    (a) ndices sem precedentes de corrupo em toda a nossa classe poltica, asso-ciada percepo por parte da opinio pblica de uma impunidade generalizada, levam a um radical descrdito das instituies republicanas e preparam a populao para uma soluo extrapoltica;

    (b) desaparece a exigncia da accountability, da prestao de contas, que obrigava um homem pblico a justificar sua atuao, tornando-a transparente, isto , plena-mente acessvel ao escrutnio dos eleitores. A prtica do caixa 2, cujo principal efei-to subtrair opinio pblica dados sobre quem financia a campanha poltica dos vrios candidatos, sonega informaes que permitiriam controlar a integridade dos detentores de cargos eletivos, verificando se suas posies so de fato independen-tes, ou se so distorcidas pelos interesses dos doadores. Por isso a ideia de que a prtica do caixa 2 um delito menor, comparado a crimes de corrupo financeira, demonstra uma total insensibilidade poltica, pois os crimes financeiros afetam ape-nas o bolso dos contribuintes, enquanto o caixa 2 corrompe at a medula o mais valioso de todos os bens, a democracia. O que visto como um atenuante de fato um agravante. A exigncia da accountability frustrada, igualmente, quando os parlamentares se escondem atrs do voto secreto para acobertar sua participao em votaes escandalosas, ignorando o direito dos eleitores de serem informados sobre cada ato que seus representantes executam no exerccio dos seus mandatos;

    (c) a representao partidria, no Congresso, vai sendo substituda pela represen-tao corporativista. Nosso Parlamento composto em grande parte de lobbies representando interesses setoriais (bancada ruralista, bancada evanglica, banca-da das armas, bancada dos laboratrios farmacuticos, bancada das faculdades particulares), cujos integrantes se encontram em todos os partidos, e esto entre os principais atores do jogo parlamentar, independentemente das legendas oficiais.

    Em todos os exemplos acima, a poltica deslocada por sucedneos, como a tecno-burocracia, o terrorismo, a dominao imperial e a programao gentica. Trata-se de um processo global, fortalecido por dficits internos de democracia, que talvez conduza, no limite, a um estado de coisas em que a prpria memria do poltico, em que a prpria recordao de que num certo momento do seu passado a humanida-de julgou possvel regular a vida social pelo discurso e pela ao poltica, sucumbam ao esquecimento. Ou ser que a amnsia j se instalou? Seria ainda possvel, nesse caso, recuperar o esquecido por uma anamnese coletiva?

    O autor tentar responder a essa pergunta recorrendo ao exemplo da religio. Em sua variante fundamentalista, ela talvez o obstculo maior poltica democrtica, pois para o fundamentalismo a lei seja ela a sharia islmica, a halach judaica ou a Bblia crist emana diretamente de Deus, e no da vontade do povo soberano. Como o fundamentalismo no aceita a separao entre a Igreja e o Estado, os pre-ceitos da f se transformam em polticas governamentais. Mas ser que, de outro ponto de vista, a religio no poderia levar a uma revitalizao da democracia, como sustenta Jrgen Habermas?

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    tica, moral e poltica

    Franklin Leopoldo e Silva

    A palavra grega ethos, origem do termo e do conceito de tica, muitas vezes ver-tida para costume, traduo que, sem ser errada, nos faz, entretanto, perder as-pectos importantes, e mesmo fundamentais, do significado, tendo em vista a relativa banalizao de palavras como costume, costumeiro, pelas quais entendemos muitas vezes condutas repetitivas, reiteradas ou at automatizadas. Ora, o ethos remete a muito mais do que comportamento habitual, pois designa o modo de estar no mundo, a maneira pela qual determinado ser habita o mundo e o torna seu pela escolha de suas aes. No termo etologia este significado sobrevive obscuramen-te, na designao do objeto da disciplina cientfica. Ethos, relacionado a tica, quer dizer, pois, a maneira humana de habitar o mundo, isto , os fundamentos da con-duta enquanto expresso da conscincia de si e dos outros.

    Moral (do latim, mores) tambm significa costume, e esta acepo corre igualmen-te o risco de empobrecer a determinao romana do contedo semntico, pois tambm neste caso no se trata de um simples conjunto de hbitos que poderiam definir tipos de conduta, mas, sobretudo na Roma republicana, de uma singularida-de a ser conquistada pelo cultivo de valores e modos de vida que distinguiriam o romano do brbaro. Neste sentido, a virtude cvica, entendida como a fora da roma-nidade, definiria a tmpera do cidado, que lhe conferiria a marca de uma excelncia moral como atributo especfico.

    possvel notar, em ambos os casos, a presena forte do aspecto poltico. Entre os gregos, a pertinncia essencial do indivduo a um conjunto de homens, fatos e

    Franklin Leopoldo e Silva

    Professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP e pro-fessor-visitante no Departamento de Filosofia da UFScar. Publicou: Descartes, metafsica da modernidade (Moderna, 2005); Bergson: in-tuio e discurso filosfico (Loyola, 1994); tica e literatura em Sartre (Unesp, 2004) e Felicidade; dos pr-socrticos aos contemporneos (Claridade, 2007), alm de ensaios nos livros A crise da razo; Tempo

    e histria; O avesso da liberdade; Muito alm do espetculo; O silncio dos intelectuais; O esqueci-mento da poltica; Mutaes: ensaios sobre as novas configuraes do mundo; Vida, vcio, virtude; A condio humana; Mutaes: a experincia do pensamento; Mutaes: a inveno da crena (SESC SP, 2011).

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    valores, seja no caso da aristocracia na poca herica ou arcaica, seja quanto polis democrtica da idade clssica. No caso de Roma, a construo e a consolidao de um carter do cidado e da cidade justifica a identificao cvica do indivduo a algo que no apenas um territrio, mas o locus de enraizamento dos valores mais condizentes com a ordem humana da liberdade, o mais ntido sinal de humanidade.

    Na histria que se seguiu, as significaes originrias se transformaram e se perde-ram. tica passou a significar a normatividade da conduta na escala da universali-dade, e moral a qualidade dos atos pelos quais os indivduos assumem regras e obrigaes socialmente sistematizadas. Essa tendncia abstrao dos modos de julgar a vida pode ser considerada decorrncia do carter abstrato que passa a ter o prprio indivduo, na particularidade de sua funo scio-histrica na modernidade, isto , de seu papel como agente econmico formalmente definido.

    evidente que o processo de abstrao do indivduo burgus paralelo ao pro-gressivo desaparecimento da poltica, substituda pela gesto das necessidades no contexto de uma racionalidade instrumental. Da a dificuldade que se experimenta, na atualidade, para definir e julgar aes polticas, bem como as responsabilidades inerentes. A moralidade privada seria insuficiente, dado o bvio carter pblico da poltica; mas a tica, ao estender o alcance de uma crtica a partir de valores, passa ao largo da esfera pblica e se torna abstrata. Na verdade, as duas perspectivas esto em crise: de um lado, o indivduo, ao demitir-se da sua subjetividade, perdeu contato com a singularidade moral e no atina com os limites do privado; de ou-tro, a dissoluo do espao pblico impede que os indivduos percebam o carter concreto da vida poltica, a dimenso social da existncia e as tenses histricas produtoras da aventura humana.

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    Renato Lessa

    Professor titular de teoria e filosofia poltica do Departamento de Cin-cia Poltica da UFF, no qual Coordenador Acadmico do Laboratrio de Estudos Hum(e)anos. presidente do Instituto Cincia Hoje e In-vestigador Associado do Instituto de Cincias Sociais, da Universidade de Lisboa e do Instituto de Filosofia da Linguagem, da Universidade Nova de Lisboa. Dentre os livros e ensaios sobre filosofia poltica que

    publicou, destacam-se: Veneno pirrnico: ensaios sobre o ceticismo (Francisco Alves, 1997); Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia poltica (Editora da UFMG, 2003); Ceticismo, crenas e filoso-fia poltica (Gradiva, 2004); Pensar a Shoah (Relume Dumar, 2005); La fabricca delle credenze (Iride, 2008); Montaignes and Bayles Variations (Brill, 2009); The Ways of Scepticism (European Journal of Philosophy and Public Debate, 2009) e Da interpretao cincia: por uma histria filosfica do conhecimento poltico no Brasil (Lua Nova, 2011). Publicou ensaios em O esquecimento da poltica; Mutaes: ensaios sobre as novas configuraes do mundo; Vida, vcio, virtude; A condio humana; Mutaes: a experincia do pensamento; Mutaes: a inveno da crena (SESC SP, 2011).

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    Representao poltica: fundamentos e dilemas

    Renato Lessa

    A constituio de uma sociedade poltica isto , a de um conjunto de sujei-tos polticos vinculados a um espao pblico comum resulta necessariamente de um ato ficcional, pelo qual um agregado demogrfico atribui a si mesmo uma identidade, para alm de dimenses primrias e acidentais. Jean-Jacques Rousseau, no Contrato Social, designava tal ato de inveno como o ato pelo qual um povo se faz um povo. Em outros termos, a ideia de sociedade poltica resulta de um ato de representao que constitui uma imagem vinculante, cujo carter pblico e propriamente poltico repousa na inveno de formas prticas de associao.

    A populao ateniense do sculo 5 a.C., por exemplo, representava-se, a partir das reformas de Solon e Clstenescomo, polis, assentada na soberania do demos. Ainda na chave exemplificadora, outra populao, em fuga da escravi-do no Egito, a partir de imposio, em circunstncias no de todo esclarecidas, do declogo mosaico, reafirmou sua representao como povo homogneo, eleito e constitudo a partir de um pacto divino. Poderamos seguir com exem-plos, para alm do histrico e do bblico aqui indicados, mas basta dizer que

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    h que distinguir, portanto, uma ideia de representao originria (chamemo-la R1) da de representao poltica (chamemo-la R2). Esta constitui o modo histo-ricamente especfico e particular de materializao da representao originria (R1), pelo qual se constitui uma comunidade poltica, fundada no princpio da representao poltica (R2). No h, pois, relao necessria entre (R1) e (R2): a populao ateniense, afinal, representava-se como comunidade cvica na qual no operava o princpio da representao poltica. Ou, se quisermos, possvel sustentar a possibilidade de outras formas de materializao da representao originria que inventa um povo enquanto povo , distintas do modo particular da representao poltica. Sendo assim, R1 poderia expressar-se por qualquer exemplar da srie R2, R3, R4,....Rn.

    Importa, pois, considerar o cenrio no qual a forma especfica de R1 afirma-se como R2, em um processo no qual se configurou o enquadramento normativo e institucional que interagiu com a crescente expresso de demandas democr-ticas. Coube, nos limites da experincia civilizatria na qual nos encontramos, tradio liberal, fundada no sculo XVII e consolidada nos sculos seguintes, a

    fixao de valores e normas para o enquadramento do processo de democra-tizao (entendido como demanda difusa por igualdade). O sucesso da forma representao (R2) repousa no fato de que as demandas por igualdade e por representao acabaram por se sobrepor.

    A apresentao pretende considerar alguns fundamentos da representao po-ltica, fixados no campo da filosofia poltica, indicando a dimenso necessaria-mente ficcional que encerra, assim como suas possibilidades de universaliza-o. Por assentada em um fundamento ficcional qual seja, o da possibilidade

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    de se fazer presente por meio de uma distino que sustenta uma ausncia , a representao poltica constitui-se, desde a partida, como processo de ex-

    tenso possvel ilimitada e no restrita necessariamente a segmentos sociais especficos. Tais limites, quando presentes, relevam mais de circunstncias his-tricas especficas, do que fatores inerentes ideia de que um corpo mnimo pode reencenar a presena de um corpo mximo.

    Como ser sugerido, a universalizao da representao, pela extenso do direito de voto, constituiu a forma especfica pela qual a demanda democr-tica por igualdade acabou associada cultura da representao, conferin-do-lhe abrangncia crescente. Em adio, tal abrangncia se fez presente tanto na introduo de alteraes substantivas na dinmica social como na configurao de uma forma histrica precisa e especfica: o governo repre-sentativo fundado na extenso progressiva do sufrgio. Pretendo explorar a ideia de que a qualidade do experimento, mais alm do que de seus aspec-tos tcnicos internos mas sem desprezar a sua relevncia depende da intensidade e da qualidade da demanda externa por igualdade. Em suma, a anlise do sistema representativo pelo fato de estar ele fundado na su-posio de uma relao entre um interior e um exterior no pode limitar--se a consideraes de corte internalista. Como notou, h muito, Alexis de Tocqueville, a democratizao enquanto demanda por igualdade uma dimenso constitutiva das sociedades modernas. Se a forma poltica afe-tada, por certo, pelo engenho e pela arte ou por sua falta dos reforma-dores, o seu exterior que contm as reservas mais fundas de exigncias para a operao da forma representativa.

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    A democracia-espetculo e a imagem da poltica

    Eugnio Bucci

    A palavra imagem cobre um vasto oceano de sentidos. Do ponto de vista da prtica poltica, um desses sentidos, bem intrigante, aquele que substitui a palavra conceito. Do governante que bem avaliado nas pesquisas de opinio pblica, diz-se que tem uma boa imagem. A acepo do termo no nova, por certo, mas agora, em nossa poca, ela acentua ainda mais a prevalncia do visvel sobre o imaterial, da forma externa sobre o suposto contedo, do fe-ntipo sobre a ideia, da representao sobre o pensamento. Para o poltico, a boa imagem no apenas desejvel ela parece ser tudo, tudo o que importa.

    A popularidade da marca se sobrepe legitimidade da proposta, soterrando-a. Marca eis a outra palavra crucial. Se, nos tempos dos totalitarismos, que se formataram ainda na primeira metade do sculo XX, a identidade visual do parti-do era transplantada no cerne e na pele do Estado, feito tatuagem, transfiguran-do a mstica de um fanatismo partidrio qualquer em esttica oficial, hoje, todos os governos, autoritrios ou no, duradouros ou no, adotaram o rito de criar para si, mais que uma marca, uma logomarca, um logotipo comercial. Os go-vernos, como os polticos ou os partidos, adquirem o aspecto integral da merca-doria. A imagem do governo (cristalizada em sua logomarca, mas no contida dentro dela) passa a funcionar como a imagem da mercadoria imagem que , tambm ela, mercadoria parte. Nesse regime, o voto opera como moeda, sendo capaz de realizar o valor de troca da logomarca poltica na indstria (e no mercado) do imaginrio. A estetizao do Estado deixa de ser exceo: a regra. A democracia, por fim, transmuta-se em espetculo.

    Eugnio Bucci

    Jornalista, professor doutor da Escola de Comunicaes e Artes da USP e tambm da ESPM. Escreve quinzenalmente para o jornal O Estado de S. Paulo e colaborador do site Observatrio da Imprensa. autor de, entre outros livros, Sobre tica e imprensa (Companhia das Letras, 2000); Videologias, em parceria com Maria Rita Kehl (Boi-

    tempo, 2004); Em Braslia, 19 horas (Record, 2008); e A imprensa e o dever da liberdade (Contexto, 2009). Foi editor de revistas, Secretrio Editorial da Editora Abril e presidente da Radiobrs. Integrou o Conselho Curador da Fundao Padre Anchieta. Participou como ensasta do livro A condio humana.

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    A, o debate poltico escorre para fora do estatuto da razo e se converte numa categoria imaginria em estreita ligao com a indstria do entretenimento. A poltica precisa entreter, seduzir, divertir, gerar vnculos afetivos, proporcionar o gozo esttico. assim que, de uns quinze anos para c, os comcios de Primeiro de Maio desabrocham em megashows de forr, duplas sertanejas e pagodo.

    Quanto ao Estado, tambm ele, por fim, assume funes prprias de agncia de publicidade, escritrio de promoo de eventos e de emissoras de rdio e televi-so. O Estado vira o Estado-anunciante com um crescimento vertiginoso das verbas de publicidade oficial em veculos pblicos e privados. No apenas no Bra-sil, mas nas Amricas e em toda parte. Fora daqui, mas s vezes perto daqui, os regimes ainda autoritrios ou tendentes a totalitrios monopolizam, sobre suas sociedades, a fabricao e a difuso de cones que abasteceram o mercado (por vezes estatizado) do imaginrio. De um lado a outro, os polticos constroem suas imagens pessoais (privadas) valendo-se de verba pblica.

    nesse contexto que a palavra imagem, com seus significados mltiplos, mas compactados num sentido geral nico, impera, soberana. Que democracia vai brotando dessa grande mutao?

    Essa pergunta vale uma conversa.

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    A democracia para alm do Estado democrtico de direito

    Vladimir Safatle

    Mas o Estado democrtico excede os limites tradicionalmente atribudos ao Es-tado de direito. Experimenta direitos que ainda no lhe esto incorporados, o teatro de uma contestao cujo objeto no se reduz conservao de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder no pode dominar inteiramente. Quem diz isso no

    Vladimir Safatle

    Professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, pro-fessor-visitante das Universidades de Paris VII, Paris VIII, Toulouse e Louvain, bolsista de produtividade do CNPq, autor de: Fetichismo: colonizar o Outro (Civilizao Brasileira, 2010), La passion du nga-

    tif: Lacan et la dialectique (Georg Olms, 2010), Cinismo e falncia da crtica (Boitempo, 2008), Lacan (Publifolha, 2007) e A paixo do negativo: Lacan e a dialtica (Unesp, 2006). Desenvolve pesquisas nas reas de epistemologia da psicanlise, desdobramentos da tradio dialtica hegeliana na filosofia do sculo XX e filosofia da msica. Participou das coletneas: A condio humana e Mutaes: a experi-ncia do pensamento; Mutaes: a inveno da crena (SESC SP, 2011).

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    um adepto da esquerda revolucionria que estaria procura do melhor momento para solapar as bases do Estado de Direito. Quem o diz Claude Lefort, em A inveno democrtica, um livro, ao contrrio, largamente dedicado crtica das sociedades burocrticas no antigo Leste Europeu.

    Nessas frases esto sintetizadas algumas reflexes maiores sobre a relao intrin-cada entre Justia e Direito. Relao que ultimamente tendemos a ignorar, como se tudo aquilo que acontecesse margem do Estado de direito fosse necessa-riamente ilegal e profundamente animado por premissas antidemocrticas. Talvez

    tenhamos perdido a capacidade de pensar qual o sentido dessa democracia que excede os limites tradicionalmente atribudos ao Estado de direito. Pois acredi-tamos que tudo o que se coloca fora do Estado de direito s poderia ter parte com o mais claro totalitarismo.

    No entanto, a democracia reconhece a existncia de uma soberania popular que pode, muitas vezes, ser a voz de exigncias de justia que ainda no encon-tram lugar no interior do ordenamento jurdico atual. Neste sentido, a democracia reconhece a possibilidade de dissociaes entre direito e justia, assim como reconhece a legitimidade de violaes polticas do direito ou, ainda, a legitimida-de do direito resistncia contra situaes nas quais a realizao de exigncias substanciais de liberdade encontra-se bloqueada.

    Trata-se ento de discutir essa necessidade fundamental da democracia para admitir uma poltica para alm do Estado de direito. Trata-se ainda de procurar compreender porque amplos setores do pensamento conservador nacional pro-curam, de maneira cada vez mais brutal, desqualificar tal debate.

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    Introduo s ciberdemocracias: elementos para

    uma antropologia do Homo connecticusFrdric Gros

    As novas tecnologias da informao e da comunicao trouxeram s nossas existncias cotidianas mutaes importantes na percepo do tempo e do es-pao, mas tambm na nossa relao com ns mesmos e com os outros. Nasceu um indivduo: o Homo connecticus. Essas novas tcnicas produziram consequ-ncias importantes na vida poltica dos pases desenvolvidos. Fala-se hoje em democracia digital, democracia eletrnica ou mesmo ciberdemocracia e ci-bercidado. Com efeito, as tecnologias modernas transformam profundamente nossas prticas polticas e representam ao mesmo tempo novas possibilidades e novos perigos para a democracia. Trata-se inicialmente de novo acesso cultura. A web transformou consideravelmente a relao com o conhecimen-to, tornando disponveis os contedos de saber antes reservados a uma elite intelectual. A relao com a cultura democratizou-se graas a esse acesso. En-tretanto, essa facilidade apresenta inconvenientes: as informaes tornaram-se muito numerosas, elas no so hierarquizadas nem verificadas, de tal forma que se pode dizer que os contedos de conhecimento na web tornaram-se to acessveis quanto pouco confiveis. Esse acesso no diz respeito apenas ao sa-ber constitudo, acadmico, mas s informaes que se referem atualidade. A partir de agora, no preciso esperar os jornais da noite para se informar sobre este ou aquele acontecimento: a internet criou a informao em tempo real. A difuso da informao tornou-se fcil e rpida. Os regimes polticos no podem mais, como antes, exercer uma censura total da informao: imagens e vdeos, suscitando a indignao da opinio pblica mundial, so difundidas por inter-

    Frdric GrosProfessor da Universidade Paris-Est Crteil (UPEC) e editor dos ltimos cursos de Michel Foucault no Collge de France. autor de livros sobre a histria da psiquiatria e filosofia penal. Estabeleceu, com Arnold David-son, uma antologia de textos de Foucault: Philosophie (Folio essais 443, Gallimard, 2004). Escreveu ainda: Caminhar, uma filosofia (Ed. Relizaes, 2010) e tats de violence Essai sur la fin de la guerre (Gallimard, 2006).

    Participou das coletneas: Mutaes: ensaios sobre as novas configuraes do mundo e Mutaes: a experincia do pensamento; Mutaes: a inveno da crena (SESC SP, 2011).

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    mdio das redes sociais. Mas a web no apenas uma fonte de documentao ou informao, tornou-se tambm um espao de discusso, dilogo e debate. Essa segunda dimenso favoreceu o tema de uma democracia moderna mais participativa. A cidadania no se exprime hoje apenas atravs do direito de voto nas eleies. A relao com os dirigentes polticos tornou-se muito mais crtica: seus argumentos, suas decises so comentadas, criticadas, refutadas. a re-lao com as autoridades que est transformada: tudo se discute, se argumen-ta, torna-se discutvel.

    Os especialistas atrs dos quais os polticos se dissimulam para justificar suas decises provocam de imediato contraespecialistas. Essa agitao crtica, se ela manifesta uma vitalidade democrtica, ganha s vezes aspectos mais som-brios: a web permite uma maior e mais profunda difuso dos rumores; pode-se facilmente propagar contra-verdades. Nada verificado e tudo flutua sem ces-sar. As redes sociais (Facebook ou Twitter) desencadearam uma ltima mutao importante: a da relao do homem pblico e do cidado. A web criou a iluso de uma relao direta entre o homem pblico e seus representados: o eleito di-rige-se diretamente a seus administrados, de cibernauta a cibernauta. Essa relao direta acompanhada da eroso nas democracias contemporneas dos corpos intermedirios (partidos polticos, sindicatos etc.). Essa maneira de pr em causa a representao denunciada s vezes como perigosa porque poderia levar as democracias a uma nova forma de totalitarismo democrtico: o cibertotalitarismo (tornado possvel tambm pelas novas tcnicas de vigi-lncia e controle). As novas tecnologias desenham pois o rosto de uma nova democracia: uma democracia direta, imediata, participativa, transparente, que comporta sua parte de luz e sombra.

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    Introduction aux cyberdmocraties

    (lments pour une anthropologie de lhomo connecticus)

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    Les nouvelles technologies de linformation et de la communication ont entran, pour nos existences quotidiennes, des mutations importantes, dans notre per-ception du temps et de lespace, mais aussi dans notre rapport nous-mmes et aux autres. Un nouvel individu est n : lhomo connecticus. Ces nouvelles techniques ont eu des consquences importantes sur la vie politique des pays dvelopps. On parle aujourdhui de dmocratie numrique, de dmocratie lectronique ou mme de cyberdmocratie et de cybercitoyen. Les techno-logies modernes transforment en effet profondment nos pratiques politiques et reprsentent la fois de nouvelles possibilits et de nouveaux dangers pour la dmocratie. Il sagit dabord dun nouvel accs la culture. Le web a consid-rablement transform le rapport la connaissance en rendant disponibles tous des contenus de savoir autrefois rservs une lite intellectuelle. Le rapport la culture sest dmocratis grce cette accessibilit. Cette facilit prsente cependant des inconvnients : les informations sont devenues trop nombreu-ses, elles ne sont ni hirarchises, ni vrifies, de telle sorte quon peut dire que les contenus de connaissance sur le web sont devenus aussi accessibles que peu fiables. Cette accessibilit ne concerne pas seulement le savoir constitu, acadmique, mais aussi les informations concernant lactualit. Il ny a plus d-sormais attendre les journaux du soir pour se renseigner sur tel ou tel vne-ment : Internet a cr linformation en temps rel. La diffusion de linformation est devenue facile et rapide. Les rgimes politiques ne peuvent plus exercer comme autrefois une censure totale de linformation : des images et des vidos,

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    suscitant lindignation de lopinion publique mondiale, sont diffuses par le biais des rseaux sociaux. Mais le web ne constitue pas seulement une source de documentation ou dinformation, il est aussi devenu un espace de discussion, de dialogue et de dbat. Cette deuxime dimension a favoris le thme dune dmocratie moderne plus participative. La citoyennet aujourdhui ne sexprime plus seulement par le droit de vote aux lections. Le rapport aux dirigeants poli-tiques est devenu beaucoup plus critique : leurs arguments, leurs dcisions sont comments, critiqus, rfuts. Cest le rapport aux autorits qui se trouve par l transform : tout se discute, sargumente, devient discutable. Les expertises der-rire lesquelles les politiques se dissimulent pour justifier leurs dcisions entra-nent aussitt des contre-expertises. Cette agitation critique, si elle manifeste une vitalit dmocratique, prend parfois des aspects plus sombres : le web permet une diffusion plus large et plus profonde des rumeurs, on peut facilement propa-ger des contre-vrits. Rien nest vrifi, et tout fluctue sans cesse. Les rseaux sociaux (les comptes Facebook ou Twitter) ont entran une dernire mutation importante : celle du rapport de lhomme publique et du citoyen. Le Web cre lillusion dun rapport directe entre lhomme politique et ses administrs : llu sadresse directement ses administrs, de cybernaute cybernaute. Cette relation directe saccompagne de lrosion dans les dmocraties contemporai-nes des corps intermdiaires (partis politiques, syndicats, etc.). Cette remise en cause de la reprsentation est dnonce parfois comme dangereuse, car elle pourrait entraner les dmocraties vers une nouvelle forme de totalitarisme dmocratique : le cybertotalitarisme (rendu possible aussi par les nouvelles techniques de surveillance et de contrle). Les nouvelles technologies dessinent donc le visage dune nouvelle dmocratie : une dmocratie directe, immdiate, participative, transparente, qui comporte sa part de lumire et dombre.

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    Helton Adverse

    Doutor em filosofia pela UFMG, atualmente professor e coordenador do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da mesma universida-de. Tem diversos trabalhos publicados na rea de filosofia poltica, notadamente o livro Maquiavel. Poltica e Retrica (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009) e a organizao, apresentao e traduo de Maquiavel. Linguagem e Poder (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010).

    Recentemente publicou artigos sobre Michel Foucault, Hannah Arendt e Maquiavel em diversos peri-dicos especializados.

    Democracia Liberal e Governamentalidade

    Helton Adverse

    Nos fundamentos da moderna concepo liberal de democracia esto as no-es de direitos humanos, soberania popular e liberdade individual. Contudo, uma investigao sobre a gnese do Estado moderno permite compreender que a democracia est intimamente associada ideia de governo e, mais espe-cificamente, de governamentalidade. Para compreendermos esta noo temos de nos referir ao trabalho investigativo realizado por Michel Foucault na segun-da metade da dcada de 1970. Para o filsofo francs, a democracia liberal no pode ser devidamente compreendida se desconsiderarmos a natureza das relaes de poder que a condicionam, e, ao mesmo tempo, so por ela condi-cionadas. Essas relaes se cristalizam naquilo que ele denominou de gover-namentalidade.

    O fenmeno da governamentalidade, ainda segundo Foucault, teria seu incio no sculo XVI, consistindo, em linhas gerais, em uma extenso a todo corpo social das prticas de governo forjadas originalmente no interior das instituies religiosas. A partir da Antiguidade Tardia e at o final da Idade Mdia formaram--se as artes de governar no quadro da instruo religiosa e, sobretudo, no trabalho de orientao espiritual. Essas tcnicas de conduo de vida ga-nharam uma notvel expanso no mesmo momento em que os Estados na-cionais consolidaram seu poder na Europa, ultrapassando o mbito restrito do monastrio para adquirir uma dimenso poltica. A disseminao das tcnicas de conduo, com sua consequente aplicao poltica, constitui, ento, o cerne do fenmeno da governamentalizao.

    Se, de um lado, o efetivo exerccio do poder do Estado moderno informado pelas tcnicas de conduo, por outro ele dar ensejo a uma elaborao con-

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    ceitual ou ideolgica (no tomando este termo, contudo, no sentido de Marx). Isso significa que a governamentalidade se constitui tambm como uma pr-tica refletida de governo cuja histria pode ser dividida em dois momentos: o primeiro coincide com o desenvolvimento das teorias da razo de Estado, enquanto o segundo corresponde formao da Economia poltica, ncleo da racionalidade poltica liberal.

    Como podemos ver, o liberalismo e a forma de organizao poltica democrti-ca que ele reivindica como aquela que lhe mais afim encontra sua motivao inicial e mais profunda na necessidade de governar a vida, em vez daquilo que estamos habituados a denominar de luta pelo reconhecimento dos direitos fun-damentais. A democracia moderna (em sua acepo liberal) , ento, afetada por um paradoxo: o mpeto libertrio e o desejo de liberdade que animam seu gesto inaugural no podem ser desvencilhados das prticas de poder que eles visam combater. A promessa de liberdade (e este um dos traos daquilo que Foucault chamou de biopoltica) est integrada s formas de dominao.

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    Renato Janine Ribeiro

    Professor de filosofia poltica e esttica na USP. Publicou, entre outros livros, A marca do Leviat, A etiqueta do Antigo Regime, Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, alm de ensaios nas coletneas Os sentidos da paixo, O olhar, tica, Tempo e histria, Arte-pensamento e Libertinos libertrios, editados pela Companhia das Letras.

    A palavra livre e infeliz

    Renato Janine Ribeiro

    Nunca houve tanta liberdade de palavra no mundo. O debate a respeito, nos s-culos que precederam a democracia, pode ser resumido em duas formulaes de dois filsofos em princpio muito parecidos nos fundamentos de suas teorias polticas. Para Hobbes, a liberdade de expresso acentua extraordinar