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No panorama teatral atual, algumas produções cênicas tratam de dis- cutir questões caras à contemporaneidade por meio de inquestioná- vel precisão formal. Esse é o caso dos dois espetáculos analisados neste ensaio, ambos integrantes do repertório do teatro Schaubühne, em Berlim: enquanto Never Forever, do alemão Falk Richter em par- ceria com a Total Brutal, encena a melancolia contemporânea, I’d rather Goya robbed me of sleep than some arsehole, do espanhol Rodrigo García, discute o vínculo entre humanismo e antropotécnica.
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Melancolia e antropotcnica na cena alem: Falk Richter e Rodrigo Garca
Melancholy and anthropotechnics in the German scene: Falk Richter and Rodrigo Garca
Manoel Silvestre Friques
Manoel Silvestre FriquesMestre pelo PPGAC da UNIRIO e
doutorando pelo PPGHS da PUC do Rio de Janeiro
DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v15i1p276-287
sala preta Sala Aberta
Revista sala preta | Vol. 15 | n. 1 | 2015 277
Melancolia e antropotcnica na cena alem
Resumo
No panorama teatral atual, algumas produes cnicas tratam de dis-
cutir questes caras contemporaneidade por meio de inquestion-
vel preciso formal. Esse o caso dos dois espetculos analisados
neste ensaio, ambos integrantes do repertrio do teatro Schaubhne,
em Berlim: enquanto Never Forever, do alemo Falk Richter em par-
ceria com a Total Brutal, encena a melancolia contempornea, Id
rather Goya robbed me of sleep than some arsehole, do espanhol
Rodrigo Garca, discute o vnculo entre humanismo e antropotcnica.
Palavras-chave: melancolia, antropotcnica, teatro contemporneo,
teatro alemo.
Abstract
In the present art scene, some theatre productions discuss important
issues of the contemporaneity through unquestionable formal accura-
cy. This is the case of two plays reviewed in this essay, both of them
on the repertoire of Berlins Schaubhne: while Never Forever, by the
German director Falk Richter with Total Brutal, enacts a contemporary
portrait of melancholy, Id rather Goya robbed me of sleep than some
arsehole, by the Spanish director Rodrigo Garca, discusses the link
between Humanism and Anthropotechnics.
Keywords: melancholy, anthropotechnics, contemporary theatre,
German theatre.
Introduo
No panorama teatral contemporneo, algumas produes cnicas tra-
tam de discutir questes caras contemporaneidade por meio de inquestio-
nvel preciso formal. Esse o caso dos dois espetculos analisados neste
ensaio, ambos integrantes do repertrio do teatro Schaubhne, em Berlim:
enquanto Never Forever, do alemo Falk Richter em parceria com a compa-
nhia alem Total Brutal, encena a melancolia contempornea, Id rather Goya
robbed me of sleep than some arsehole, do espanhol Rodrigo Garca, discu-
te o vnculo entre humanismo e antropotcnica. No primeiro caso, a reflexo
desenvolvida neste ensaio busca compreender a coreografia cnica sob a
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perspectiva psicanaltica desenvolvida por Sigmund Freud no seminal ensaio
Luto e melancolia. A anlise do segundo espetculo mencionado entrelaa
teatro e filosofia, a partir das indagaes de Peter Sloterdijk quanto aos rumos
da teoria crtica e do humanismo.
No div com Falk Richter
Never Forever investiga a condio melanclica do sujeito contempo-
rneo. Dada a instabilidade semntica caracterstica da melancolia, e tendo
essa disposio da alma sido objeto de escrutnio de diversos pensadores ao
longo da histria, a definio anterior parece no informar muito. preciso
dizer, portanto, que o espetculo de Richter lana luz no sobre o sentido
solar da disposio melanclica, mas para seu lado centrfugo e disperso,
adequadamente descrito por Sigmund Freud (2011). Conforme o psicanalista
austraco postula, a melancolia no um trabalho de perda derivado de uma
unidade narcsica e coesa, cuja identidade trata de suprimir o objeto perdido.
Pelo contrrio, o eu tributrio do objeto perdido, identificando-se plenamente
com ele. Sendo assim, a rebelio melanclica de tal ordem, que o eu nada
mais faz do que consumir a si mesmo.
Se Richter trata de investigar a condio melanclica do sujeito contem-
porneo, o faz justamente criando um espetculo no qual os oito personagens
so possudos por desejos ingovernveis, de modo que seus comportamen-
tos so desenfreados e de mltiplas direes, em um desespero corporal
que destri a pretensa coeso identitria que porventura poderiam parecer
possuir. Esse drama do sujeito contemporneo, na medida em que, de um
lado, se afirma como fico e, de outro, se passa em uma modernidade lqui-
da exageradamente mediada por perfis de Facebook, frases de impacto do
Twitter, hashtags e demais recursos tecnolgicos que nos inserem em uma
rede neobarroca na exata proporo que nos torna puros avatares, cpias
sem original. A melancolia, portanto, no seria apenas do sujeito, mas uma
base da economia de redes de nossa sociedade informacional.
O cenrio de Never Forever formado por uma plataforma em forma-
to de U que ocupa toda a extenso traseira, bem como as laterais do pal-
co do Schaubhne. Tal tablado no nivelado uniformemente, sendo cons-
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titudo por mdulos de diversas alturas, criando, com isso, plats menores.
Circunscrito pela plataforma, o meio do palco permanece vazio e em sua
altura original, havendo apenas duas fileiras paralelas de cadeiras pretas
que aludem s poltronas de consultrios mdicos que ocupam o fundo da
rea e do corredor correspondente da plataforma, mais acima. Ao longo de
todo o permetro da plataforma, elevam-se arestas metlicas que perfazem
as supostas paredes dos plats. Em determinados nichos, um anteparo real
colocado entre as arestas, seja grades de elsticos, seja uma parede leitosa
branca no lado direito da plataforma, seja uma faixa vertical de plstico trans-
parente no lado esquerdo, seja estruturas metlicas que dividem, como de-
graus, determinadas faces desses cubos vazados. A disposio cenogrfica
criada por Katrin Hoffmann parece corresponder, com isso, exatamente in-
teno dramatrgica, na medida em que os pequenos quartos que circundam
a arena central separam os performers e os unem em uma apreenso global;
os localizam e os revelam tomados pela avalanche melanclica.
No incio do espetculo, os oito performers esto encerrados em suas pe-
quenas clulas. Tudo indica uma suposta normalidade entre os indivduos, apa-
rentemente ensimesmados em seus afazeres caractersticos. A normalidade
ento quebrada por uma das atrizes, que, com um microfone, passa a narrar,
no centro do palco, a histria de uma mulher que a visita regularmente, deixan-
do-nos entender se tratar de uma relao profissional entre psicanalista ela
prpria e paciente. O ritmo do monlogo, todavia, acelera-se e, conforme se
intensifica a velocidade do discurso, h a mistura entre as figuras do analista
e do analisado, de modo que, ao final, impossvel dizer qual seria a funo
social exata daquela mulher no processo psicanaltico. Muitos recursos empre-
gados neste primeiro momento de Never Forever so recorrentes em todo o
acontecimento cnico: o microfone como instrumento de enunciao; a inten-
sificao do ritmo da fala acompanhada pelo seu correspondente corporal; a
atomizao dos performers; a dissoluo do indivduo (na e) da fala etc. Todos
esses procedimentos so utilizados em diversos momentos, cabendo ainda
destacar o papel da trilha sonora para a gradao rtmica das cenas, de modo
que muitas vezes est-se diante de mquinas melanclicas desesperadas.
Em meio orquestrao formal de tais recursos cnicos, emergem os
dramas do sujeito contemporneo. Constituda consideravelmente por per-
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guntas, a dramaturgia apresenta exemplos da melancolia atual: um homem
posto para fora de casa (e bloqueado no Facebook) por sua mulher, proibido
de ver seu filho; um jovem gay que, com um discurso todo entremeado de
hashtags um dos momentos mais hilrios do espetculo , trata de questio-
nar seu abandono pelo parceiro encontrado no GrindR, Tinder, OkCupid ou
qualquer outro aplicativo de relacionamento; um professor que prepara sua
aula sobre o culto atual da carreira empreendedora, revelando o isolamento
a que esto submetidos os lderes atuais etc. Todas as trajetrias convergem
para um retrato um tanto desolador de nossa contemporaneidade, posto que
cada performer governado por desejos insaciveis (de pertencimento, de
reconhecimento, de ser amado etc.) que o conduzem inevitavelmente a um
estado de permanente frustao. A onipresente rede miditica parece no
ajudar, exacerbando, todavia, tal condio, pois a plena conexo que nos pro-
metem (para sempre) as novas tecnologias de informao e de comunicao
nos pe em ritmo intenso de procura como se nossa vida fosse o espao
em branco da ferramenta de busca do Google. Tudo se passa ento como se
fssemos caadores de novidades e romances, sendo a presa, na realidade,
aquilo que fazemos de ns mesmos. Tornamo-nos ento incessantes stalkers,
coletando todos os indcios deixados nas diversas redes sociais: por que voc
publicou determinada foto? Por que no posta nada h duas horas? O que
voc quer dizer ao compartilhar este vdeo? Tais so exemplos de perguntas
repetidas pelos performers de Never Forever, que tratam de questionar se a
lista de publicaes criada em nosso feed de notcias poderia corresponder,
de fato, histria do sujeito. Os dados computados seriam dados narrados?
(No podemos nos enganar em pretensos surtos nostlgicos, como se antes
fosse possvel delimitar uma identidade estvel; h que se, todavia, questio-
nar a promessa de felicidade oferecida pela world wide web, pois, enquan-
to nos expomos publicamente com nossos avatares, resguardamos nossas
identidades em protestos pblicos atravs das to antigas mscaras.)
Um contraponto ao desespero corporal que assalta os performers do
espetculo dado pela personagem de Ilse Ritter. Sendo mais velha que as
demais, ela parece no compartilhar inteiramente da disperso melanclica
que envolve os outros sujeitos. Em sua primeira fala, Ritter demonstra uma
autoconscincia de seu papel no espetculo, respondendo, a uma atriz que
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lhe chama de me, no ser me de ningum, posto que nunca aceitou tal pa-
pel em seus espetculos. Ao considerar sua vida como uma espcie de teatro,
esta figura parece se resguardar da condio que toma os outros. No entanto,
no se trata disso, pois, em uma das cenas mais sugestivas do espetculo,
no palco transformado em cemitrio, Ritter declama versos de Meine Ruh
ist hin (Minha paz se foi), retirado da dcima quinta cena da primeira parte
do Fausto de Goethe. Ao entoar os primeiros versos, Minha paz se foi/Meu
corao est pesado/Eu no a acharei nunca e nunca mais, a personagem
se une ao coro melanclico, trazendo um contraponto histrico que refora a
instabilidade dos outros personagens. O arco da personagem completa-se ao
final, quando ento o dilogo entre me e filha prossegue e percebe-se que
Ritter, antes de ser autoconsciente em relao ao papel que representa, na
realidade procura, em vo, as histrias vividas: onde esto os ltimos vinte
anos que deixei nesta bolsa, pergunta-se, atordoada.
O contraponto entre Ilse Ritter e os personagens de Florian Bilbao, Ka-
tharina Maschenka Horn, Johanna Lemke, Chris Scherer, Kay Bartholomus
Schulze, Tilman Strau e Regine Zimmermann representa dois lados de uma
mesma melanclica moeda. Os ltimos tratam de revelar uma imagem desse
estado emocional afim instabilidade semntica do termo e tambm ao sujei-
to que se perde com o objeto, propondo, portanto, uma leitura dessa condio
da alma antagnica tradio pictrica que a representou, pautada primor-
dialmente por figuras isoladas e pensativas (pense-se em obras como: a gra-
vura Melancolia I (1514), de Albrecht Drer; o leo sobre madeira Melancolia
(1532), de Lucas Cranach; as figuras contemplativas dos quadros de Edward
Hopper; e at mesmo as esculturas pictricas hiper-realistas de Ron Mueck).
Antropotcnica em Rodrigo Garca
O ttulo do espetculo do diretor espanhol Rodrigo Garca cuja es-
treia se deu em 2011 no Festival Internationale Neue Dramatik (F.I.N.D), no
Schaubhne define de imediato uma voz narrativa na primeira pessoa em
pleno exerccio de ajuizamento: Eu preferiria que Goya roubasse o meu sono
do que qualquer outro babaca (na verso original Prefiero que me quite el
sueo Goya a que lo haga cualquier hijo de puta). Quem diz isso um ho-
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mem na aurora da meia-idade que tenta convencer seus filhos (dois garotos,
de 2 e 6 anos) a invadir o Museo Nacional del Prado, em Madri, noite para
observar as pinturas, os desenhos, as gravuras e os documentos do pintor es-
panhol. Tentativa cujo principal obstculo o desejo das crianas em ir para a
Disney. Goya ou Mickey? Tudo soaria como mais um captulo da batalha entre
o Entretenimento e a Arte (ambos com letras maisculas), fazendo que as
desconfianas da Escola de Frankfurt sejam novamente encenadas. Cultura
erudita ou cultura de massa, eis a questo. Todavia e de modo surpreendente,
Garca trata de reverter o antagonismo, pois quem fala no um intelectual,
mas um babaca que trata de convidar o filsofo Peter Sloterdijk para se unir
a sua famlia na visita ao Prado. E o debate entre Arte e Entretenimento
reveste-se em uma indagao a respeito da viabilidade do humanismo no
mundo contemporneo.
O espetculo, com cenrio assinado tambm pelo diretor, centra-se em
Lars Eidinger. O ator comea deitado sobre uma plataforma circular, vestido
de urso, mos de Mickey Mouse e com a cabea encostada em um carro todo
brilhante. A viatura, completamente ladrilhada de pequenos quadrados espe-
lhados (de modo semelhante ao artefato Disco), tambm est sobre o tablado
redondo de grama verde, que, por sua vez, gira em torno do prprio eixo
direita do palco. Logo o ator levanta-se narrando sua histria e, conforme livros
caem por baixo de sua fantasia, ele se dirige ao lado esquerdo do palco, onde
h uma mesa de disc-jockey e todo o aparato necessrio para samples e mash
-ups. Sob a mesa, esto alinhadas seis pilhas de livros, dando-nos a entender
que tais objetos suportam a atividade do DJ. Somam-se ao carro-globo-de-dis-
coteca e mesa de discotecagem uma luz estroboscpica e uma mquina de
fumaa, as quais, indubitavelmente, aludem atmosfera das boates. No caso,
porm, os elementos deixam de compor um ambiente danante, estando su-
bordinados, todavia, trajetria do protagonista, um babaca exemplar1.
Afirmar que o ator principal de Id rather Goya um babaca exige escla-
recimentos. Claro, no se pretende esbarrar aqui em moralismos nostlgicos.
1. H uma montagem inglesa do monlogo de Garca, com direo de Jude Christian e performance de Steffan Rhodri em companhia de dois leites. O espetculo, cuja estreia se deu no Notting Hills Gate Theatre em 2014, se passa em uma cozinha. Para mais informaes sobre esta montagem, ver . Acesso em: 2 mar. 2015.
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Porm, enquanto a voz narrativa, a princpio, se faz localizar no terreno da
erudio (preferindo Goya a um babaca), a performance de Eidinger se dirige
ao lado oposto. Pois este pai, longe de ser o exemplo da alta cultura, rasteja
grotescamente ao nvel, digamos, da contracultura; ele deseja visitar o Pra-
do em horrios suspeitos (quando a instituio est fechada visitao) e
tambm realizar a iniciao sexual dos filhos com prostitutas, descrevendo
felaes e demais estripulias que aguardariam seus rebentos menores de
idade. A figura paterna mantm relao visceral com todos os objetos: bebe,
baba, cospe e lana cerveja para diversos lados; come e regurgita uvas, bolo,
sanduches e at mesmo rao para gatos; arrasta e sobe em pilhas de livros;
fica diante da luz estroboscpica por um perodo considervel, em flagrante
autotortura; dirige a mquina de fumaa para seu rosto, de modo a criar a ima-
gem de um corpo sem cabea etc. Tudo na performance de Eidinger aponta,
portanto, para uma inconsequncia de seus gestos e aes, fazendo que o
personagem se filie no aos intelectuais, mas a Pato Donald, Pluto e todos os
outros desenhos animados. Quem prefere Goya , portanto, Mickey.
O personagem icnico da Disney (por quem Garca parece nutrir ver-
dadeira obsesso, basta que se pense em um dos seus ltimos espetcu-
los, Arrojad mis cenizas sobre Mickey, onde a figura aparece no ttulo) surge
antes mesmo de Eindiger, sendo o protagonista de dois vdeos que abrem o
espetculo: no primeiro, Mickey surge como Farfour, verso do personagem
criada por um canal da organizao palestina Hamas para o programa infantil
Pioneiros do Amanh (acusado de difundir o antissemitismo e o extremismo
islmico). No caso, o rato surge como mrtir do povo, sendo espancado at
a morte por um policial israelense. No segundo, Mickey reaparece em um
episdio de South Park (The Ring, a dcima terceira premire do desenho),
desta vez no mais sendo o alvo da ira, mas seu instrumento. Diante de uma
plateia que o vaia, Mickey aumenta de tamanho muitas vezes e, como um
drago, cospe fogo em todo o teatro, destruindo, por fim, a cidade de Denver.
De um lado, vtima do terrorismo; de outro, drago destruidor: a osci-
lao entre o papel de vtima (o mrtir) e de opressor (que devasta os anta-
gonistas) tpica de desenho animado. Neste terreno, as decapitaes, as
mortes e os assassinatos geram seu caracterstico e incessante processo de
anamorfose. Para comprovar o fato, basta que retomemos a precisa anlise
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de Theodor Adorno (2002) a respeito da lgica dos desenhos animados: no
meio dos aplausos do pblico, o protagonista atirado por todas as partes
como um trapo. Assim, a quantidade de divertimento converte-se na qua-
lidade da crueldade organizada (p. 32-33). Tal anlise surge em 1947, no
momento em que Adorno, em companhia de Max Horkheimer, publica sua
Dialetica do esclarecimento, designando como indstria cultural um conjun-
to de produes culturais que tem nas operaes industriais seu suporte de
fabricao. Alm dos desenhos animados, as revistas Life e Fortune, o jazz, o
rdio, o cinema (leia-se star system norte-americano), resultariam da lgica
industrial, sendo caracterizados pelo sucesso comercial vinculado diretamen-
te, segundo os autores, ao processo de reificao do sujeito promovido pelo
capitalismo tardio. De certo modo, quando se l e ouve a valorao de Goya,
pressupe-se que seja do ponto de vista adorniano. No entanto, a lgica dos
desenhos animados caracteriza a interpretao de Eidinger, um perfeito boal
que o exato oposto da autoridade erudita. Quem prefere Goya cospe uvas,
rasga livros, vomita cerveja e exercita, no comportamento, fortes traos de
asquerosidade. aqui que entra em cena Peter Sloterdijk.
Filsofo alemo famoso por suas polmicas, Sloterdijk j rompera com
Jrgen Habermas em uma carta pblica onde afirmou que a Teoria Crtica
inaugurada pela Escola de Frankfurt de Adorno estava morta. Tal diagnstico
origina-se de uma de suas palestras mais debatidas, Regras para um parque,
de 1999, em que o filsofo retoma o escrito platnico Poltica, afirmando que,
desde ento,
os discursos no mundo que versam sobre a comunidade humana falam como de um parque zoolgico, que tambm um parque temtico; a manuteno de seres humanos em parques ou cidades parece, dali em diante, uma tarefa zoopoltica. O que se apresenta como uma considera-o sobre poltica na verdade uma reflexo radical sobre as regras para a administrao do parque humano. (p. 32)
A reviso que Sloterdijk realiza de Plato parte de um conjunto de in-
dagaes filosficas a respeito da viabilidade do humanismo na contempo-
raneidade. Tendo em vista as grandes atrocidades que marcaram a histria
mundial do sculo xx, o filsofo trata de recuperar a desconfiana de Heide-
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Melancolia e antropotcnica na cena alem
gger em relao crena em um humanismo capaz de conduzir o homem a
uma domesticao de seus instintos brbaros, em um processo que poten-
cializaria as virtudes humanas. Diante do fracasso do humanismo tradicional,
Sloterdijk pergunta-se radicalizando a metfora platnica da tecedura, na
qual o tecido social seria composto pelo entrelaamento entre os fios br-
baros e aqueles reflexivos se a melhor constituio de uma comunidade
no deveria ser criada biologicamente, via manipulao gentica, em uma
prtica denominada por ele de antropotcnica. Sendo assim, a conquista do
humanismo no seria realizada pelos livros (como quis Ccero, em oposio
brutalidade marcante dos espetculos apresentados no anfiteatro romano),
mas pela engenharia gentica. Pois os livros fracassaram:
Sloterdijk parece enxergar, nas prticas genticas, um reforo aos impul-sos inibidores que os meios tradicionais de educao no mais conse-guem gerar em proporo suficiente para se opor ao crescente embru-tecimento da sociedade contempornea de massas, submetida a uma onda desinibidora sem precedentes, pelos meios de divulgao da in-dstria de entretenimentos. (MARQUES, 2002, p. 8)
No parque humano criado por Garca, o personagem Sloterdijk est lon-
ge de ser o filsofo Sloterdijk. Sendo um saco humano, a figura animalesca
surge de dentro do porta-malas do carro-globo, sendo alimentada pelo seu
dono, ou melhor seu cordial convidador. Alm dos momentos de semidomes-
ticao, Sloterdijk tambm nos oferece seu pensamento; desta vez, porm,
quem emite a voz do filsofo no a trouxa annima, mas um pequeno micro
system. Para ouvir as reflexes filosficas, pressione o play. Pode-se ento
dizer que a dissociao entre fala e figura, presente tanto em Sloterdijk quanto
no personagem principal, a operao teatral que Garca utiliza para relativi-
zar a voz filosfica, seja da primeira gerao da Teoria Crtica (como Adorno),
seja de uma terceira gerao bastarda (como o caso de Sloterdijk). Tome-
se como exemplo a cena em que, enquanto o filsofo alemo versa sobre
rao para gatos em uma fala que parece ter sido retirada de seu programa
televisivo Das Philosophische Quartett (O quarteto filosfico) , Eidinger est
dentro do carro se alimentando de um enorme pacote de Whyskas, sendo
suas reaes aos jarges filosficos projetadas no telo ao fundo. Evidencia-
Manoel Silvestre Friques
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se, na cena, uma inverso do parque humano: a fala intelectual o objeto de
escrnio e desconfiana de um sujeito bovino.
Tal inverso, todavia, revela explicitamente menos uma reprovao do
pensamento filosfico do que a necessidade de confront-lo. Nesse sentido,
vlido recorrer a uma das cenas cruciais do espetculo, na qual Eidinger, de
p sobre o teto do carro e com um bon customizado que ilumina seu rosto
escondido atrs de um carrilho preso na aba, diz o seguinte:
Y cavo profundo en mdiminuto pedazo de tierra
Cavo siempre por debajo de mis pies que me sostienen cavandoY doy espesor a una sola accin
Y la protejo de vosotros con tantos pensamientos comouna cebolla de capas y capas y capas de piel de cebolla
Y soy ms que nunca una cebollarodeada de finas y precisas y hmedas capas de
pensamientosY alejndome os busco
EnteroDesaparecido-desapareciendo
Cavando2.
O texto anterior interrompe o dilogo entre o filsofo e o personagem
principal, narrado pelo ltimo. Tal quebra narrativa ilumina a interlocuo sob
outra perspectiva: a a atividade mineradora do personagem principal con-
traposta ao exerccio intelectual do convidado, pois a espessura do buraco
cavado se confronta s camadas sobrepostas do pensamento-cebola. Nesse
sentido, o antagonismo no a concluso final: se, por um lado, a atividade
suja de um coveiro o protege das superfcies lmpidas do pensamento, por
outro, a mesma atividade transforma o personagem em uma cebola. Tal n
parece no significar outra coisa do que a falncia de um pensamento bin-
rio, sublinhando, por sua vez, mtua implicao entre ao e pensamento.
Como a superfcie no orientvel da garrafa de Klein, Garca parece encenar
um espao topolgico em que, quanto mais fundo se vai, mais superfcies de
pensamento so sobrepostas. Nessa topologia sem bordas, a continuidade
2. Trecho retirado do texto em espanhol, disponvel na ntegra no site do diretor: . Acesso em: 2 mar. 2015.
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Melancolia e antropotcnica na cena alem
entre organismo e mquina (quando a engenharia gentica rompe a quarta
barreira metafsica, observa Sloterdijk) confrontada pela mtua implicao
entre ao e pensamento. Neste domnio, o Museo del Prado equipara-se
Disney, e Saturno devorando um filho torna-se, melancolicamente, Mickey
incendiando Denver. E aqui o teatro no mais o local da selvageria romana,
mas, surpreendentemente, da busca por um possvel humanismo. No toa,
na cena final, Eidinger rega os livros que ele mesmo plantou sobre a plata-
forma de grama verde. Que espcie de humanismo poderia ser cultivada por
um babaca?
Referncias bibliogrficas
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CARVALHO, N. Esttica e teoria da melancolia: o caso Jackson Pollock. Kairos. Re-
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MARQUES, J. O. A. Sobre as Regras para o parque humano de Sloterdijk. Natureza
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SLOTERDIJK, P. Regras para o parque humano: uma reposta carta de Heidegger
sobre o humanismo. Trad. Jos Oscar de Almeida Marques. So Paulo: Estao
Liberdade, 2000.
Recebido em 06/03/2015
Aprovado em 23/05/2015
Publicado em 30/06/2015