4
Foucault, Arqueologia do saber: uma crítica ao historicismo modulador A introdução do texto de Foucault exalta uma crítica voraz aos historiadores. Como tais, esses últimos exercem, classicamente, um estudo aprofundado dos temas em períodos longos, exaustivos, evidenciando por grande parte de seu conteúdo uma análise positivista, baseada estritamente em casos factíveis. Essa produção delimita os estudos historiográficos em simples sedimentações lineares de casos, as quais possuem histórias planificadas e estereotípicas dos fatos: algo é algo e somente esse algo perante sua evidência unívoca: Pode-se definir uma totalidade ou é preciso limitar-se a reconstituir encadeamentos? 1 Assim, evocam-se os fenômenos de ruptura na história recente, em que transparecem os deslocamentos e transformações dos conceitos: ao que se refere o conceito? Quais são suas regras de uso corrente em determinada situação específica? A partir desses questionamentos, pertinentes em toda obra de Foucault (difícil contextualizar algum escrito do autor sem mencionar o frequente discurso ácido, contestador, numa linha de seguimento revolucionário!), somos levamos ao rompimento sucessivo das conceitualizações clássicas. Os conceitos, vinculados à uma rede de pensar “concreta”, “absoluta”, rompem-se a si mesmo: o saber é transmutável; logo, há mutação das ideias na dialética dos saberes. O erro dos clássicos, Foucault dirá, é a tentativa frequente de separar momentos da história a ponto de conceitualizá-los segundo parâmetros ideológicos. A ideologia funda a essência da ignorância sobre os fatos. A tendência a violentar o discurso com padronizações de ideias torna o mundo uma rede deficiente de relações entre conceitos moldados. Um momento, um espaço no tempo não é uma lacuna ideal a qual se pode vincular uma porção de substâncias, um apanhado de modelos planejados postumamente. Há uma estrutura própria das obras: um certo tipo de estruturalismo latente em Foucault; há, em momentos específicos da história, uma obra, seja científica, literária. A sua existência é determinada justamente pela sua existência. A ideologização progressiva acidenta o caráter próprio e único do trabalho. É violência determinar conceitos culturais em uma obra acima de pressupostos progressistas. 1 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 4.

Grupo de Estudos Sobre Foucault, Arqueologia Do Saber, 1969 (1)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Grupo de Estudos Sobre Foucault, Arqueologia Do Saber, 1969 (1)

Citation preview

Page 1: Grupo de Estudos Sobre Foucault, Arqueologia Do Saber, 1969 (1)

Foucault, Arqueologia do saber: uma crítica ao historicismo modulador

A introdução do texto de Foucault exalta uma crítica voraz aos historiadores. Como tais, esses últimos exercem, classicamente, um estudo aprofundado dos temas em períodos longos, exaustivos, evidenciando por grande parte de seu conteúdo uma análise positivista, baseada estritamente em casos factíveis.

Essa produção delimita os estudos historiográficos em simples sedimentações lineares de casos, as quais possuem histórias planificadas e estereotípicas dos fatos: algo é algo e somente esse algo perante sua evidência unívoca:

Pode-se definir uma totalidade ou é preciso limitar-se a reconstituir encadeamentos?1

Assim, evocam-se os fenômenos de ruptura na história recente, em que transparecem os deslocamentos e transformações dos conceitos: ao que se refere o conceito? Quais são suas regras de uso corrente em determinada situação específica? A partir desses questionamentos, pertinentes em toda obra de Foucault (difícil contextualizar algum escrito do autor sem mencionar o frequente discurso ácido, contestador, numa linha de seguimento revolucionário!), somos levamos ao rompimento sucessivo das conceitualizações clássicas. Os conceitos, vinculados à uma rede de pensar “concreta”, “absoluta”, rompem-se a si mesmo: o saber é transmutável; logo, há mutação das ideias na dialética dos saberes.

O erro dos clássicos, Foucault dirá, é a tentativa frequente de separar momentos da história a ponto de conceitualizá-los segundo parâmetros ideológicos. A ideologia funda a essência da ignorância sobre os fatos. A tendência a violentar o discurso com padronizações de ideias torna o mundo uma rede deficiente de relações entre conceitos moldados. Um momento, um espaço no tempo não é uma lacuna ideal a qual se pode vincular uma porção de substâncias, um apanhado de modelos planejados postumamente.

Há uma estrutura própria das obras: um certo tipo de estruturalismo latente em Foucault; há, em momentos específicos da história, uma obra, seja científica, literária. A sua existência é determinada justamente pela sua existência. A ideologização progressiva acidenta o caráter próprio e único do trabalho. É violência determinar conceitos culturais em uma obra acima de pressupostos progressistas.

Descontinuidade da história, ao qual se refere Foucault como um modelo de inexistência da necessidade habitual dos pensadores historicistas do saber em provocar uma reação linear da história, rupturas emotivas entre obras, entre pensares. A continuidade da história é vontade de distribuição organizativa da ciência moderna, de adequar à razão humana os limiares da existência do universo. A verdadeira sujeição da história do pensar ao homem é a descontinuidade, a qual permite que estruturas fixas se projetem com liberdade nessa "linha caótica" da história.

Crítica do documento. Autenticidade das verdades emitidas no papel estudado pelo historiador. Rastro de discurso falado que, organizado sob olhos historicistas (e não críticos!) torna-os decifráveis. Porém, decifráveis perante que pressuposto? Há verdade patente ou essa realidade é evocada de modelos de discursos concebidos pela forma de pensar atual? Foucault trabalhará mais arduamente com essas questões no decorrer da obra, estudando os meandros da origem do discurso e seus preconceitos estilísticos.

1 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 4.

Page 2: Grupo de Estudos Sobre Foucault, Arqueologia Do Saber, 1969 (1)

Saída do contexto meramente antropológico do estudo documental e o adentrar às modulações de unidades, conjuntos, séries e relações2:

O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa.3 (p. 8)

Antes, documentar para memorizar. Hoje, documentos vigoram como monumentos, estes dirigidos à relações grupais de saberes: "...a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia - para a descrição intrínseca do monumento."4

"A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história."5 Aqui está presente o vórtice da teoria foucaultiana de descontinuidade, termo central de uma possível conceitualização da obra estudada. O exprimir perante modelos é vago. A modulação temporal sobre um saber histórico linear baseia-se em uma crítica que cai no pernicioso lamento do tempo; o saber, mutável, crítica a si mesmo. O estudo descontínuo da história permite a desvinculação dessa ruína: os domínios e níveis são estudados justamente numa delimitação própria, sem linearidade. Os efeitos são extintos. A efetividade de tal modo de estudo é a propriedade do historiador em provocar rupturas às quais os obstáculos serão rechaçados em prol da prática arqueológica, a busca do saber na origem, não linear, porém intrínseca no discurso do próprio pesquisador. Então, uma liberdade fenomenológica do saber: e crê-se no discurso.

Do conceito de uma história global para a veiculação da história geral. A primeira julga a história, como já visto o conceito, de uma série de séries, um quadro dominante da metáfora histórica da idiossincrasia de uma época, um "rosto", como se refere Foucault. As séries vocalizam um acontecimento histórico abstraindo toda relação (econômica, científica, política, etc.) como conclusão de um quadro totalitário por definir aquela lacuna temporal. Erro, claro, que o autor ressalta como necessidade a adaptação de um momento geral, a história geral. Dirá, então, que

o problema que se apresenta - e que define a tarefa de uma história geral - é determinar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre essas diferentes séries; que sistema vertical podem formar, qual é, de umas às outras, o jogo de correlações e das dominâncias...6

Na introdução, Foucault determina uma série de problemas metodológicos: massa documental em homogeneidade, a tratar de fatos numéricos, institucionais, práticas e regras semânticas e interpretá-los em relação contínua. Crítica à teleologia do devir, à vontade totalizadora dos historiadores sistêmicos.

Apropriação do sujeito da linearidade histórica como defesa contra si mesmo, ao fato de que, ao restaurar as diferenças encontradas através da síntese dos acontecimentos em quadros, possa dominar novamente seu ser. A totalização do sujeito é veiculada ao fator de dominação de si: não havendo devir fora do linear, a revolução de consciência é controlada. O

2 Séries de séries: "quadros" ajustáveis de relações entre acontecimentos históricos. Elaboração

metodológica da séries.

3 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 8.4 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 8.5 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 10.6 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 11-12.

Page 3: Grupo de Estudos Sobre Foucault, Arqueologia Do Saber, 1969 (1)

humano como fonte de reflexão do mundo, domina e centraliza a historicidade. Foucault critica as teorias do primeiro Marx, hegeliano, de estabelecer um paralelo eterno da luta de classes: a história fadada ao embate entre dois grupos distintos. Elogio ao método genealógico de Nietzsche em apoio ao fim da racionalização totalitária. Foucault retoma a crítica ao afirmar que, na área da psicanálise, linguística e etnologia, ao retirar o ser humano do domínio total de si, dá vazão à tentativa desenfreada em busca de liberdade, rédeas do inconsciente, tentar tornar às vistas toda a origem do devir.

Há um erro fundamental (de certa forma já evocado acima no texto) na tentativa da história em tentar apreender todos os acontecimentos a que quase lhe escapam. O uso ideológico da história força o ser a uma totalidade dos atos, a percorrer um caminho infindável de estudos documentais para proporcionar o deleite do todo; o todo, a história global, inexiste. O domínio de si mesmo é impossível. E, no caminhar lento desse método progressista, o ser está escravizado pelas suas próprias correntes ideológicas. A pertinente pergunta de Foucault: entendendo a antropologia totalizante, há esclarecimento de si? Resposta:

...a história, pelo menos ela, é viva e contínua; que ela é, para o tema em questão, o lugar do repouso, da certeza, da reconciliação - do sono tranquilizado.7

Texto introdutório, verbalização ácida. Foucault e suas críticas em descontinuidades desvincula uma sociedade moldada em padrões de existência, rejeita a moralidade imposta nos discursos penitentes, repletos de preconcepções rotulador. Ler Foucault é destruir conceitos, lê-lo é pensar como livre-pensador, despido dos véus sociais.

7 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 17.