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IMAGENS CINEMA, DOCÊNCIAS E INVENÇÕES CURRICULARES: CONVERSAS SOBRE OUTROS MODOS POSSÍVEIS DE APRENDER E ENSINAR Esse painel problematiza as experimentações de outros modos de aprender e ensinar nos/com os currículos escolares, conjugando estudos voltados para a compreensão de imagens do cinema e das escolas que contestam o dogmatismo do pensamento com docentes e estudantes. Apresenta experiências que recusam o automatismo e a reprodução mecânica, ao movimentar o pensamento na busca pela diferença. Toma como referencial metodológico as redes de conversações (CARVALHO, 2009; 2012). Articula pesquisas envolvidas em compreender os currículos desenvolvidos em escolas da região metropolitana do Espírito Santo, a partir de imagens do cinema, das escolas e das redes de conversações tecidas com os sujeitos que produzem esses espaçostempos. Justifica-se pela aposta na desconstrução de imagens que reduzem e fixam os pensamentos à recognição. Insere-se no campo de discussão proposto no Eixo 1, “Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública” e de modo específico no subeixo 3 “Modos do ensinar e aprender em experiências”, uma vez que utiliza pesquisas e produções do cotidiano da educação básica com alunos/as e professores/as como lócus privilegiado de suas discussões. O primeiro texto dialoga sobre o que devém nos encontros cotidianos entre professores e crianças de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental, pela intercessão entre as imagens cinema de “O balão Vermelho” e das imagens escola. O segundo artigo trata dos movimentos de invenções curriculares engendrados nos encontros das crianças e professoras de uma escola de educação infantil agenciados pelas imagens cinematográficas de “Mogli”. O terceiro texto destaca as imagens de existências e de espaçostempos de aprendizagens possíveis na constituição dos currículos escolares, ao disparar as imagens fílmicas de “Quem quer ser um milionário?”. Nas diferentes propostas das pesquisas que o constituem, esse painel trata de modos de aprender e ensinar que forçam o pensamento a se romper e a não se acomodar. Palavras-Chave: Currículos, Imagens Cinema, Aprender e Ensinar XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 2467 ISSN 2177-336X

IMAGENS CINEMA, DOCÊNCIAS E INVENÇÕES …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10566_37092.pdf · Tania Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni/ Dtepe-Ufes Resumo O artigo apresenta uma

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IMAGENS CINEMA, DOCÊNCIAS E INVENÇÕES CURRICULARES:

CONVERSAS SOBRE OUTROS MODOS POSSÍVEIS DE APRENDER E

ENSINAR

Esse painel problematiza as experimentações de outros modos de aprender e ensinar

nos/com os currículos escolares, conjugando estudos voltados para a compreensão de

imagens do cinema e das escolas que contestam o dogmatismo do pensamento com

docentes e estudantes. Apresenta experiências que recusam o automatismo e a

reprodução mecânica, ao movimentar o pensamento na busca pela diferença. Toma

como referencial metodológico as redes de conversações (CARVALHO, 2009; 2012).

Articula pesquisas envolvidas em compreender os currículos desenvolvidos em escolas

da região metropolitana do Espírito Santo, a partir de imagens do cinema, das escolas e

das redes de conversações tecidas com os sujeitos que produzem esses espaçostempos.

Justifica-se pela aposta na desconstrução de imagens que reduzem e fixam os

pensamentos à recognição. Insere-se no campo de discussão proposto no Eixo 1,

“Didática e prática de ensino: desdobramentos em cenas na educação pública” e de

modo específico no subeixo 3 “Modos do ensinar e aprender em experiências”, uma vez

que utiliza pesquisas e produções do cotidiano da educação básica com alunos/as e

professores/as como lócus privilegiado de suas discussões. O primeiro texto dialoga

sobre o que devém nos encontros cotidianos entre professores e crianças de uma Escola

Municipal de Ensino Fundamental, pela intercessão entre as imagens cinema de “O

balão Vermelho” e das imagens escola. O segundo artigo trata dos movimentos de

invenções curriculares engendrados nos encontros das crianças e professoras de uma

escola de educação infantil agenciados pelas imagens cinematográficas de “Mogli”. O

terceiro texto destaca as imagens de existências e de espaçostempos de aprendizagens

possíveis na constituição dos currículos escolares, ao disparar as imagens fílmicas de

“Quem quer ser um milionário?”. Nas diferentes propostas das pesquisas que o

constituem, esse painel trata de modos de aprender e ensinar que forçam o pensamento a

se romper e a não se acomodar.

Palavras-Chave: Currículos, Imagens Cinema, Aprender e Ensinar

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2467ISSN 2177-336X

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MOVIMENTOS DE INVENÇÕES CURRICULARES NA EDUCAÇÃO

INFANTIL POTENCIALIZADOS PELAS IMAGENS-CINEMA: DO

NECESSÁRIO AO EXTRAORDINÁRIO

Sandra Kretli da Silva/Dtepe-Ufes

Tania Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni/ Dtepe-Ufes

Resumo

O artigo apresenta uma pesquisa que aposta nos “usos” (CERTEAU, 1994) das imagens

cinematográficas para o desalojar dos modos de pensar dogmáticos que impedem o

plano de imanência fluir. As imagens-cinema (DELEUZE, 2005) movimentam o

pensamento em busca de novos sentidos para a docência, para a infância,

potencializando os processos de aprender e de ensinar e a reinvenção da escola. Como

metodologia, este trabalho utiliza redes de conversações (CARVALHO, 2012). As

conversas são enredadas por meio das emoções, sensações e sentidos estabelecidos com

as imagens-cinema que nos possibilitam inquirir e criar outros/novos modos de pensar,

de aprender, de ensinar, de compor as invenções curriculares na educação infantil.

Nesse contexto, problematizamos a partir das imagens do filme Mogli: O que é

“necessário” e/ou “extraordinário” na educação infantil? O que estamos considerando

“necessário” e ou “extraordinário” nas infâncias? O que tem sido “necessário” e ou

“extraordinário” em nossas vidas? Por que o necessário não pode ser extraordinário e

vice-versa? Como romper com as dicotomias tão marcantes nos espaçostempos

escolares? Como tornar o “extraordinário” possível? Aponta a necessidade de ampliar

as conversas nos cotidianos escolares, a fim de fortalecer a “zona de comunidade”

(TEIXEIRA, apud CARVALHO, 2012) aumentando, assim, a nossa potência de ação.

O cotidiano escolar, como espaço micropolítico, engendra-se na macropolítica,

portanto, a cartografia das questões que envolvem os processos de subjetivação em sua

relação com o político, o social e o cultural, por meio dos quais se configuram a

realidade em seu movimento de criação coletiva, potencializa os movimentos de

invenções curriculares e os processos de aprender e de ensinar. A potência da vida

cotidiana está nas suas diferenças, multiplicidades, singularidades, nos seus devires,

fluxos, intensidades, acontecimentos, no extraordinário.

Palavras-chave: Invenções curriculares. Imagens cinematográficas. Redes de

conversações.

Entre fluxos, forças, intensidades e devires...

Porque uma história é, antes de mais nada,

aquilo que se busca e que se encontra para contar.

(Raymond Bellour)

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O artigo apresenta os movimentos de invenções curriculares engendrados nos

encontros das crianças e professoras de uma escola de educação infantil com as imagens

cinematográficas. Tais fluxos compõem a pesquisa intitulada Filmes e Conversas: por

uma estética dos encontros, que objetiva capturar as forças e potências que as imagens-

cinema (DELEUZE, 2005) provocam/afetam e possibilitam o movimento do

pensamento, produzindo diferentes modos de aprender e de ensinar e, assim,

potencializam novos sentidos para educação infantil.

Apostamos que os “usos” (CERTEAU, 1994) das imagens cinematográficas nos

cotidianos escolares promovem o desalojar, rompem com os modos de pensar

dogmáticos que impedem o plano de imanência fluir. Nesse contexto, vivenciamos uma

experiência com as imagens-cinema que nos levou a pensar, juntamente com as

professoras e as crianças, os movimentos de invenções curriculares e os processos de

aprender e de ensinar.

Inspiradas pela trilha sonora e pelas imagens dos filmes, as crianças traçam

linhas de linhas de vida ao procurar o lugar mais gostoso para se aconchegar, ao buscar

o colega para acolher, interagir e brincar. Deslizando entre um corpo e outro, tecem

afetos e afecções, que impulsionam as experiências e descobertas, inventando rotas e

linhas de fugas para compor outros/novos encontros. Encontros entre as pessoas, com

ideias, com aprendizagens, com novos modos de pensar, de se posicionar em diferentes

espaços e tempos, pois as crianças não hesitam em experimentar ou, quando se cansam

de uma experiência, alteram, modificam, inventam outra.

Como acompanhar esses devires, fluxos e forças? São tantas intensidades

imbricadas aos planos, aos desejos e aos movimentos dos corpos que vibram e pulsam

sem parar... No entanto, não há como escapar, pois as crianças puxam, laçam e nos

envolvem problematizando, propondo, reinventando e renovando sempre... Como

afirmam Deleuze e Parnet (1977, p.12): “[...] os devires são geografia, são orientações,

direcções, entradas e saídas”. São expressos e contidos em uma vida, em um estilo. E

prosseguem os autores: “[...] Um estilo é conseguir gaguejar na sua própria língua. É

traçar uma linha de fuga” (p.13). Devir não é, portanto, seguir modelos, parâmetros e/ou

referenciais curriculares. Não existem nos devires dicotomias, máquinas binárias, isto

ou aquilo, mas, sim, conversas, muitas conversas, que significam cartografias de um

devir.

Para Maturana (1997), conversar vem do latim cum – com e versare – dar voltas

com o outro. As nossas conversas com as crianças e as professoras vão sendo enredadas

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por meio das emoções, sensações e sentidos estabelecidos com as imagens-cinema que

nos possibilitam inquirir e criar novos modos de pensar, de aprender, de ensinar e de

compor as invenções curriculares na educação infantil. Acreditamos, como Carvalho

(2012, p. 206), que o currículo se enreda com uma cultura que “[...] é uma rede de

conversações que define um modo de viver, um modo de estar orientado no existir [...],

e envolve um modo de atuar, um modo de emocionar e um modo de crescer no atuar e

no emocionar [...]”.

O encontro com as crianças se deu a partir de uma proposta realizada com as

professoras. Iniciamos a pesquisa dialogando com elas e, em um dos encontros, surgiu a

ideia de ampliarmos as nossas conversas convidando as crianças para entrar na roda e

participar dos encontros com as imagens cinematográficas. Desse modo, com a

ampliação dos diálogos envolvendo as crianças, fortalecemos a “zona de comunidade”

(TEIXEIRA, apud CARVALHO, 2012) aumentando, assim, a nossa potência de ação.

Portanto, acreditamos que os movimentos de invenções curriculares e os

processos de aprender e de ensinar, que se estabelecem por meio dessas múltiplas

relações estabelecidas entre crianças, professoras e todos e tudo que envolvem os

processos de subjetivação em suas singularidades e diferenças, reinventam e

potencializam os cotidianos das escolas todos os dias.

O encontro com Mogli e Balu: uma conversa sobre o “necessário” e o

“extraordinário” nas infâncias

Eu uso o necessário

Somente o necessário

O extraordinário é demais

[...] Assim é que eu vivo

E melhor não há

Eu só quero ter

O que a vida me dá.

Uma lista de filmes foi selecionada para fazer parte dos nossos encontros com as

crianças. No dia em que assistimos ao filme Mogli, por várias vezes, cantamos e

dançamos o refrão acima citado: “[...] Eu uso o necessário, somente o necessário... O

extraordinário é demais!”. Nas redes de conversas com as crianças, perguntamos, por

exemplo, o que elas mais gostavam da/na escola. Uma fala categórica nos afeta

(SPINOZA, 2014) e possibilita uma rasura no pensamento: “[...] eu gosto mais é da

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comida, mas as cozinheiras estão em greve e nós não estamos jantando, só

lanchando!”. Outra criança complementa: “[...] às vezes, a mãe do Paulo traz comida

pra gente”. “[...] A professora também já fez bolo, cachorro-quente, salada de frutas”.

Nesse contexto, problematizamos: O que é “necessário” e/ou “extraordinário” na

educação infantil? O que estamos considerando “necessário” e ou “extraordinário” nas

infâncias? O que tem sido “necessário” e ou “extraordinário” em nossas vidas? Por que

o necessário não pode ser extraordinário e vice-versa? Como romper com as dicotomias

tão marcantes nos espaçostempos escolares?

Spinoza, ao tratar da natureza e virtude dos afetos e da potência da mente sobre

eles, considerou as ações e os apetites humanos como se fosse uma questão de linhas,

superfícies ou de corpos. Para esse autor, afetos são “[...] as afecções do corpo, pelas

quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao

mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2014, p. 98).

A conversa com as crianças sobre a greve dos servidores e a disponibilidade da

mãe de uma delas em trazer eventualmente a comida abriram espaço para que muitos

outros assuntos entrassem na pauta de discussões, ampliando os movimentos de

invenções curriculares e os processos de aprender e de ensinar. Temas como: trabalho,

movimentos sociais, culinária, alimentação, amizade e muitos outros que não estavam

nas listas dos currículos prescritos pelas Secretarias de Educação foram dialogados,

problematizados e, assim, fomos compondo um currículo vivido, sentido e praticado.

É claro que, nas narrativas das crianças, além da comida, outros desejos

coletivos considerados “necessários” e ou “extraordinários” foram anexados à lista do

que gostam e do que fazem da/na escola: as brincadeiras de pátio, os passeios, os

amigos, as aprendizagens, as histórias, as professoras, as construções, o pula-pula, a

música, os jogos, a biblioteca, os conflitos, os empurrões, as mordidas, a presença das

famílias na escola, os dinossauros, as brincadeiras, o sonho de ter uma piscina e um

tobogã na escola, assistir a filmes, muitos desenhos e animação, enfim...

Foto 1 – Os movimentos de invenções curriculares e os processos de aprenderensinar por

meio das imagens-cinema

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Fonte: Fotos das autoras; imagem Mogli e Balu: http://www.vagalume.com.br/disney/mogli-somente-o-

necessario.html#ixzz41DATxZtK

Masschelein e Simons (2014), ao problematizarem sobre a história da escola,

apontam que não podemos visualizá-la apenas como uma história de reformas e

inovações, de progressos e modernização, mas, principalmente, como uma história de

repressão, com estratégias e táticas para dispersá-la, reprimi-la, coagi-la, neutralizá-la

ou controlá-la. Estamos cheios de estratégias para formatação de currículos, marcadas

por uma política crescente de avaliação padronizada em larga escala. A escola, nesse

sentido, “doma” os seus praticantes, fazendo-os acreditar que “o necessário” para a

escola é o que eles prescrevem nos descritores avaliativos ou nos referenciais

curriculares. E o “extraordinário”? E as invenções curriculares criadas pelos alunos e

professores? E os processos de aprender e ensinar vividos e sentidos pelos professores e

alunos nas mais diferentes realidades escolares e não escolares? E a reinvenção da

escola que é realizada todos os dias? É demais, como diz a música do filme Mogli?

A escola surge como o lugar para remediar os problemas sociais, culturais e

econômicos que são traduzidos como problemas de aprendizagens. Desse modo, uma

nova lista de competências é acrescentada aos currículos. Consequentemente, com toda

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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a atenção focada na aquisição “obrigatória” e urgente de competências úteis, qualquer

possibilidade de renovação e de tempo livre é suspensa.

Masschelein e Simons (2014) apresentam, ainda, algumas variantes de “domar”

o professor que deverá estar sempre a serviço de algo ou alguém. A primeira variante

seria substituir a sabedoria da experiência do professor por especialização ou

competência, ou seja, supostos conhecimentos, habilidades e atitudes em nome das

exigências atuais do mercado, do consumo ideal e da empregabilidade. A segunda

variante para domar o professor seria torná-lo flexível. O professor flexível é aquele que

é arrebatado por tudo, na medida em que a demanda exija. Por fim, defendem a criação

de “tempo livre” e que os jovens possam dialogar em torno de bem comum, portanto,

ampliar a formação e o fornecimento de tempo livre para o estudo, a prática e o

pensamento.

Voltando a Spinoza (2014), o corpo humano pode ser afetado de muitas

maneiras pelas quais sua potência de agir pode aumentar, diminuir ou nada mudar. Nas

conversas e vivências com as professoras e com as crianças, procuramos capturar quais

afetos promovem o aumento das nossas potências de ação coletiva.

As imagens-cinema aparecem, então, como uma força que nos movimenta a

pensar o impensado, a apostar nos possíveis e no “extraordinário”, pois produzem

processos de subjetivações em sua relação com o político, o social e o cultural.

Propiciam encontros, experiências que nos possibilitam rir, chorar, surpreender, entrar

em choque, silenciar, gritar, questionar, pensar, movimentar, fazer fluir o pensar...

Permitem-nos viajar para outros/novos mundos e caminhos ainda não percorridos,

sentidos e vividos nos processos de aprender e de ensinar e na fabricação das invenções

curriculares, favorecendo, assim, a reinvenção da escola.

A questão que nos move nesses encontros com o cinema é ir para além dos

clichês que nos impedem de produzir novos modos de ser, estar, fazer e de viver nos

cotidianos escolares e não escolares. É capturar de que modo professores e alunos tecem

as rasuras nos movimentos curriculares. Segundo Carvalho (2014, p. 167), o conceito de

clichê, na definição de Deleuze (1990), é de uma espécie de imagem-lei “[...] de

imagem-moral, que age como um mecanismo padronizador e determinador de valor e

que no cinema aparece num jogo de criá-las desconstruí-las”.

As imagensnarrativas das imagens cinematográficas possibilitaram que as

crianças e as professoras pensassem e expressassem os acontecimentos e as experiências

que potencializam as suas invenções curriculares, bem como provocaram a

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problematização de ações que engessam os praticantes dos cotidianos escolares,

buscando novos sentidos aos processos educacionais cotidianos. Entendemos que, nas

experiências, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-

posição” (nossa maneira de opormos), nem a “im-posição” (nossa maneira de

impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex-posição”,

nossa maneira de “ex-pormos” com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco.

Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se

propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência a quem nada lhe passa, “[...]

nada lhe chega, nada lhe afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre”

(LARROSA, 2002, p. 25). É nesse contexto que se insere a potência das redes de

conversações.

O cotidiano escolar em seus movimentos de criação coletiva

Entendemos o cotidiano escolar como espaço micropolítico que se engendra na

macropolítica. Apostamos, assim, que a cartografia das questões que envolvem os

processos de subjetivação em sua relação com o político, o social e o cultural, por meio

do qual se configuram a realidade em seu movimento de criação coletiva, potencializa

os espaçostempos de invenções curriculares. Nesse contexto, colocamo-nos em relação

às imagens, às crianças, às escolas em redes de conversações, de afetos e de afecções,

envolvendo-nos em agenciamentos de enunciação coletivos nas micropolíticas.

As pesquisas com os cotidianos apresentam uma multiplicidade de significações

e de sensações que, ao invés de aprisionar, fechar, limitar, restringir, abre a

possibilidade de se pensar numa metodologia da vida cotidiana que está atenta à

complexidade, à imprevisibilidade e às inúmeras possibilidades que o plano de

imanência apresenta. A potência da vida cotidiana está, justamente, em suas

multiplicidades de conexões, rasuras, aproximações, percepções e sensações.

Em conversa com as professoras, perguntamos: o que mais renova os cotidianos

escolares? O que mais aumenta ou diminui a nossa potência de ação nos processos de

aprenderensinar e nos movimentos de invenções curriculares?

[...] Penso que o que nos renova é trabalhar em um ambiente com

relações mais humanas, que tenha troca e espaço para compartilhar

experiências. Renova-nos também ver o desenvolvimento das

crianças, desenvolver propostas que elas gostem e curtem. Ver as

famílias elogiando e participando do processo.

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[...] O que diminui a nossa potência de vida é ver a precarização do

trabalho educativo. Não valorização da educação em si. Por exemplo,

quando se faz processo seletivo de voluntários para atuar na escola.

[...] O horário escolar e outras prescrições curriculares, tão

rigidamente hierarquizados no cotidiano escolar, necessitam ser

assim? Podemos pensar diferente? Como? Como destaquei, a

Proposta Curricular para Educação Infantil é bem ampla, com

objetivos nas diferentes linguagens e penso que podemos pensar

diferente buscando não listar conteúdos previamente, mas pensar a

partir dos interesses da turma, considerando os sujeitos alunos e

professores, seus conhecimentos e saberes.

As professoras clamam por mais diálogo, valorização e reconhecimento

profissional, parceria, trabalho coletivo, melhores condições de trabalho, gestão

democrática e apontam que compartilhar as experiências é o que movimenta os

processos de aprenderensinar, as invenções curriculares e a possibilidade de reinvenção

da escola:

[...] Nosso papel no coletivo seria de contribuir compartilhando

experiências... Buscar diálogo entre os contextos nos quais as

crianças estão inseridas, os sujeitos praticantes da escola (alunos e

professores) e as áreas. Penso também que precisamos romper com a

fragmentação entre o trabalho desenvolvido na sala de aula com o

professor regente e os demais profissionais que atuam com as

crianças”.

[...] Penso que as possibilidades de compor modos potentes seria a

partir de uma perspectiva dialógica e discursiva, considerar o

protagonismo das crianças, práticas que considerem os interesses das

crianças e valorizem os processos inventivos que se constituem nos

cotidianos [...].

Os movimentos de agenciamentos coletivos suscitados a partir do desejo de

habitar e produzir os espaçostempos das infâncias e da educação infantil compõem

multiplicidades e diferenciações em meio às complexidades cotidianas, mas com atitude

eticopoliticaartística que acolhe a vida em seus processos de invenção em um plano de

imanência.

Retomamos a música do filme Mogli na tentativa de não concluir nada, mas

deixar claro que queremos o contrário do que diz a música: queremos mais, sempre

mais, muito mais, pois apostamos na vida cotidiana que incessantemente se faz e refaz

com a luta diária de seus praticantes ordinários (CERTEAU, 1994): “[...] Assim é que

eu vivo e melhor não há, eu só quero ter o que a vida me dá”.

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A vida cotidiana, em sua complexidade, imprevisibilidade, não cabe em um

referencial único, em uma única teoria, em uma única verdade, em uma única prática

metodológica, nas quais são estruturadas categorias de análise. A potência da vida

cotidiana está nas suas diferenças, multiplicidades, singularidades, nos seus devires,

fluxos, intensidades, acontecimentos.

Os conhecimentos são tecidos em redes de linguagens, afetos, afecções com as

particularidades de cada um, portanto há necessidade de diálogos e muitas redes de

relações entre todos que praticam e habitam esses espaçostempos cotidianos. Os sujeitos

praticantes ordinários do cotidiano falam, atuam, inventam por si próprios atravessados

por todos os outros que os habitam e que os constituem. Não existe uma única autoria,

mas sim, rizomas, ecceidades.

A ecceidade aqui é entendida como coletividade molecular (GUATARRI, 1987),

em que não há possibilidade de se dizer onde passam as fronteiras de uns e as de outros,

e onde o que se individualiza não é uma pessoa, mas um acontecimento em sua

singularidade. Um acontecimento produz mudanças nos processos de subjetivações e,

assim, novas possibilidades de vida, de experimentações e de criações emergem.

Nesse contexto, o encontro com as imagens cinematográficas do Filme Mogli

nos possibilitou pensar a respeito do necessário e extraordinário nas infâncias. No

“necessário”, o que foge é a abertura às experiências, aos movimentos que nos sacodem.

“Que se passa?”, questionam as professoras, quando inseridas nas redes de linguagens,

de afetos e de afecções. “Que passa, que passa?”, repetem as crianças. E elas não podem

saber, não conseguem capturar. As experiências correm nas conversas e a música, tão

forte em seu refrão, fraqueja diante dessas vozes que pedem mais. E, aos poucos,

percebemos uma molécula do coletivo. Mogli, a criança “necessária”, é evocada nessa

nova voz, Mogli foi chamado à experiência!

Outra força das imagens cinematográficas irrompe para nos ajudar a pensar e

ampliar a nossa defesa da potência das imagens cinematográficas para desalojar o

pensamento. Revendo o filme Uma mente brilhante, recortamos o fragmento que mais

nos afeta, quando Alícia (interpretada pela atriz Jennifer Connely), esposa do

matemático John Nash (interpretado por Russell Crowe) desiste de enviá-lo a uma

clínica após mais uma de suas crises de alucinações. Ela, após dizer ao médico que não

precisaria levá-lo, explica para ao marido a sua decisão: “[...] Eu preciso acreditar que

aquilo que é extraordinário é possível”. E é essa a nossa aposta: devemos buscar o

extraordinário que se apresenta no plano da imanência, no plano da vida!

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2476ISSN 2177-336X

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Referências

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DP et Alii; Brasília, DF: CNPq, 2009.

CARVALHO, J. M. A Problematização pelo uso de imagens-movimento e imagens-

tempo na pesquisa com o cotidiano escolar. In: GARCIA, A; OLIVEIRA, I.B.

Aventuras de conhecimento: utopias vivenciadas nas pesquisas em educação.

Petrópolis, RJ: De Petrus; Rio de Janeiro, RJ: Faperj, 2014.

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Tradução de Ephraim

Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

DELEUZE, G. Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.

DELEUZE, G., PARNET, C. Diálogos. Tradução de José Gabriel Cunha. São Paulo:

Escuta, 1988.

GUATARRI, F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo:

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LARROSA, J. Linguagem e Educação depois de Babel. Tradução de Cynthia Farina.

Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2004.

MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública.

Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

SPINOZA, B. de: Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora,

2014.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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ENCONTROS ENTRE IMAGENS CINEMA E O OUTRO DO

PENSAMENTO NAS REDES FORMATIVAS COM PROFESSORES

Larissa Ferreira Rodrigues/Criarte-Ufes

Janete Magalhães Carvalho/PPGE-Ufes

Resumo

O presente artigo é uma composição de imagens e conversações tecidas junto a um

grupo de professores de uma escola do município de Vitória-ES, em pesquisa concluída

no ano de 2015. Problematiza, a partir de conversas com docentes, pela intercessão

entre as imagens cinema e as imagens escola, o que devém nos encontros cotidianos

entre professores e crianças? Articula as conversas docentes com a maneira de Bergson

(2006) e de Deleuze (2007) pensar o mundo como um metacinema, com o devir-infantil

de Corazza (2008) e o cuidado de si e do outro (FISCHER, 2009), na problematização

da escola e dos processos constituintes da docência. Metodologicamente, articula a

cartografia e a pesquisa com os cotidianos (CARVALHO, 2008; 2009), seguindo as

linhas imanentes das práticas educativas e de pensamentos não dogmáticos para a

formação de professores, ao utilizar como disparador de conversas o filme “O balão

vermelho. Conclui que o que devém nos encontros cotidianos entre professores e

crianças é a capacidade de fabular imagens-sonho que criam linhas errantes, ao seguir

por caminhos desconhecidos e nômades, ao mostrar na superfície das relações, lógicas

mais sensíveis para os processos de criação e de devir-outro: devir-criança e devir-

balão. Como a câmera do cinema, os processos constituintes da docência fazem mexer o

caminho sobre o qual ela se desloca. Assim, nos encontros entre imagens cinema e

docências e infâncias também vão se compondo experiências de relações estilísticas

com o outro do pensamento, cunhando outros sentidos para os movimentos educativos,

cartografando suas experiências e mobilizando o pensamento para a criação de outras

imagens que impliquem os cuidados com o outro e consigo mesmo.

Palavras-chave: Cinema. Pensamento. Formação continuada de professores.

Nas dobras das imagens…

Ao discutir sobre as imagens cinema, Deleuze (2007) dizia que desde cedo se

procurava circuitos cada vez maiores que fossem capazes de unir uma imagem atual a

imagens-lembranças, imagens-sonho e imagens-mundo. Porém, a partir das teorizações

de Bergson, o autor indagava: Não seria preciso contrair, em vez de dilatar a imagem?

Procurar um menor circuito que fosse limite interior aos outros? Procurar um circuito

capaz de colar a imagem atual a um tipo de duplo correspondente?

Ao fazer a análise de diversos filmes, Deleuze (2007) destacava que em muitos,

ao evocarem os circuitos da lembrança, acabavam se remetendo e repousando em

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circuitos menores. Essas análises ajudaram-no a tecer teorizações, afirmando, assim

como Bergson, que a “[…] própria imagem atual tem uma imagem virtual que a ela

corresponde, como um duplo ou reflexo. […]. Há uma formação de uma imagem

bifacial, atual e virtual” (DELEUZE, 2007, pp. 87-88).

O circuito atual-virtual passa a ser vislumbrado como um espelho no qual as

imagens se proliferam, tornando-se umas nas outras ao mesmo tempo, fazendo o jorro

do tempo e da vida em sua diferenciação. A esse movimento coalescente e incessante,

Deleuze (2007) e Bergson (2006) consideraram como formação de cristais, quando uma

imagem atual, separada de seu „prolongamento motor‟ ou automatismo (DELEUZE,

2007), cristaliza com sua própria imagem virtual, constituindo uma imagem-cristal.

Esse circuito menor (atual-virtual), limite para acionar outros circuitos mais

complexos do pensamento e com grande importância para a percepção de um tempo que

se apresenta de forma direta e pura, inquieta-nos a problematizar ainda mais sobre o

movimento do pensamento dos docentes, a partir dos efeitos das imagens cinema nas

redes de conversações com professores em formação continuada.

Considerando que as imagens deslizam umas sobre as outras, refletindo em

todas as suas faces, havendo uma “[…] indiscernibilidade do real e do imaginário, ou do

presente e do passado, do atual e do virtual […]” (DELEUZE, 2007, p. 89), como um

duplo movimento de liberação e de captura, tornou-se necessário seguir as linhas que

desenhavam as imagens-cristal, os encontros que perfuravam o prolongamento motor

(automatismo/dogmatismo do pensamento) e nele entravam, saindo de si imagens ou

realidades. A cartografia e a pesquisa com o cotidiano (CARVALHO, 2008; 2009)

buscaram percorrer a superfície dos encontros estabelecidos entre as imagens cinema e

as imagens das redes de conversações com professores em formação continuada em

uma Escola Municipal de Ensino Fundamental de Vitória/ ES, abordados em pesquisa

concluída em 2015, para conhecer que vir-atualizações formativas são possíveis no

encontro com o “outro” do pensamento.

Em muitos dos momentos experienciados pela interseção entre cinema e

formação continuada na escola, os professores mobilizavam as imagens dos filmes,

tomavam-nas por uma relação especular ou relação de troca, na qual personagens-

professores se imbricavam numa indiscernibilidade entre imagens virtuais e atuais. A

esse respeito, Deleuze (2007, p. 89) ressalta que “[…] quando as imagens virtuais assim

proliferam, o seu conjunto absorve toda a atualidade da personagem, ao mesmo tempo

que a personagem já não passa de uma virtualidade entre outras”.

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Nesse sentido, foi possível perceber que nas dobras das imagens os professores

faziam denúncia e quebravam alguns clichês, como, também, eram capturados por

outras imagens-moral, já que o cinema, como gostava de dizer Deleuze, não apenas

apresenta imagens, mas as cerca com um mundo. E esse mundo aqui se mostra o da

docência e da escola.

Assim, a aposta aqui apresentada intencionou incomodar o pensamento dos

professores com imagens de um mundo que os cercam. Violentar o pensamento por

meio de imagens-movimento, com intuito de esgarçar o „arco sensório-motor‟

(DELEUZE, 2009) dos automatismos e dogmatismos, fazer denúncia e quebra de

clichês, assim como mover-se em meio às imagens-tempo do cinema para experimentar

o jorro da vida em vias de diferenciação.

Importava uma „cartografia do cotidiano‟ (CARVALHO, 2008) escolar que

fizesse „mostragem‟ (DELEUZE, 2007) dos movimentos do pensamento nas redes de

conversações com professores em formação continuada num jogo de dobras, fazendo

perceber a face límpida (visível) e a opaca (invisível) das imagens escola, provocadas

pelas imagens cinematográficas do filme de curta metragem Balão Vermelho.

Quando a imagem virtual se torna atual, então é visível e límpida, como um

espelho ou na solidez do cristal terminado. Mas a imagem atual também se

torna virtual, por seu lado, remetida a outra parte, invisível, opaca e

tenebrosa, como um cristal que mal foi retirado da terra. O par atual-virtual

se prolonga, pois, imediatamente em opaco-límpido, expressão de sua troca

(DELEUZE, 2007, p. 90).

A partir dessas concepções, as imagens do filme se entrelaçaram às redes de

conversações com professores, imbricadamente, formando imagens-cristal, as quais

seus espelhos tomavam a atualidade dos docentes e da escola que, consequentemente,

encontravam suas imagens virtuais correspondentes. Deste modo, o presente texto

objetivou compreender, por meio do encontro entre as imagens cinema com as imagens

escola, o que devém nos encontros cotidianos entre professores e crianças?

Encontros com o outro do pensamento: entre imagens e professores e crianças e

balão vermelho...

A escola apresenta seus modos de composição: professores, pensamentos,

famílias, imagens, crianças, conteúdos disciplinares. Está aberta aos acontecimentos,

aos duplos movimentos de busca por escavar a profundidade das coisas, a estrutura das

experiências, uma consciência já dada e a identidade das relações. Porém, o duplo abre

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o campo das experimentações para o deslizar pela superfície das relações educativas e

de suas afecções e sensações.

A escola, também devém ao permitir a tessitura de linhas nômades que

percorrem os desertos e que almejam o encontro de corpos e a composição de um plano

estilístico de vida, pois “[…] na superfície, primeiro se levantam estes duplos ou estas

Imagens aéreas; depois, no sobrevôo celeste do campo, estes Elementos puros e

liberados […] outrem desaparecido”. (DELEUZE, 2011, p. 325). É na superfície das

relações escolares que devém o encontro com o outro que estava desaparecido, apagado

ou excluído: o encontro com o outro do pensamento.

O devir é intempestivo, não estruturado. Não apresenta uma imagem-fixa.

Como, então, perceber o que devém do encontro com o outro do pensamento? Como

compreender as imagens recortadas do „plano-sequência‟ (DELEUZE, 2007) e os afetos

que se descolam das imagens-movimento, permitindo sentir os processos de criação que

se dão no encontro com o outro do pensamento?

O que se passa entre cinema e formação deixa algumas pistas. Convoca o olhar e

violenta o pensamento a se chocar contra o apagamento de outrem e chama a atenção

para a potência do devir. As imagens do filme “O balão vermelho”, uma produção de

1950, evocam a tessitura de conversas com os docentes.

O filme permite mover-se sobre a superfície de uma relação singular e

incorporal entre um garoto e um balão. Uma criança desliza pelas ruas da periferia

parisiense, cartografando os enquadramentos, até se encontrar com um balão vermelho

que estava em perigo, preso e solitário no alto de um prédio. Um afeto emerge: era

preciso ajudá-lo...

Imagem 1: Imagem do filme “O balão vermelho”

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=_SaRIP44CQQ>. Acesso em: 18-05-2014.

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Ao liberar a passagem para o balão, a criança ganha sua lealdade, e o novo

amigo passa a segui-lo pelas ruas de Paris, por bondes, escolas, becos e avenidas... A

criança entra em relação com o balão. O balão vermelho a provoca, alegra,

As crianças realizam viagens histórico-mundiais sem saírem do Continente

da Infância e da Arte [...] abrem e fecham portas, telhados e planos,

enlouquecendo totalmente o pensamento do bom senso da Infância e do

senso comum da Arte. Em suma, em devir-infantil, as crianças, cartógrafas-

impessoais-artistas fazem até voar os morcegos que bicam suas janelas [e por

que não voar com os balões?] (CORAZZA, 2008, p. 240, grifo nosso).

No agenciamento do desejo de experimentar uma vida outra, fazem amizade

com balões que voam sozinhos rumo ao encontro da alegria e, assim, um acontecimento

emerge no cuidado de si e do outro, no cuidado de uma relação de amizade em devir-

criança e devir-balão.

E na escola, o que devém nos encontros cotidianos entre professores e crianças?

Entre as imagens cinemas e as imagens escolas, o encontro com as imagens das

crianças coloca o pensamento em movimento. Provoca outros sentidos cognitivos para a

docência e para as redes de aprendizagens infantis. As cenas do balão vermelho

entrelaçavam-se com as memórias dos docentes ao narrarem suas histórias de encontro

com as crianças... Outra estética da existência pode ser sentida. Torna-se possível pensar

a “[...] docência como um lugar privilegiado de experimentação, de transformação de si

[...]” (FISCHER, 2009, p. 94).

E uma personagem-escola dispara: “O balão vermelho para mim é a curiosidade

das crianças e o desejo que têm por aprender e, eu penso que ensinar está diretamente

relacionado com a forma como nós, professores, nutrimos esse desejo”.

Imagem 2: Imagem do filme “O balão vermelho” – curiosidade da criança

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=_SaRIP44CQQ>. Acesso em: 18-05-2014.

Criança e balão conquistam-se. O desejo de experimentar dá passagem para

imagens-afecção e cria pontes para sua efetuação. O acontecimento da conquista abre

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um campo possível para a afirmação de uma vida bela que não se deixa aprisionar pela

dureza da sociedade moderna, pelos enquadramentos da infância, que não lhes

permitem o direito de entrar com seus sonhos em locais sérios demais, como o bonde e

a escola, punindo-as com a inércia de um mundo sem inventividade.

Professores, parentes e amigos tentam tirar o balão do garoto, mas ambos traçam

suas linhas de fuga, brincam de esconder, inventam planos para enganar os adultos.

Tecem uma relação sensível.

Imagem 3: “O balão vermelho” e as tentativa de enquadramento do devir-criança e do devir-

balão

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=_SaRIP44CQQ>. Acesso em: 18-05-2014.

Assim,

[...] como mapeadoras intensivas dos movimentos das relações pedagógicas

de poder e dos deslocamentos dos saberes curriculares, as crianças

redistribuem os impasses e a abertura desse poder, limiares e clausuras desses

saberes, limites e superações dos seus modos de subjetivação, em busca do

Acontecimento [...] (CORAZZA, 2008, p.240).

As crianças sabem “profanar” a vida (AGAMBEN, 2007). E nós, professores,

não estaríamos demasiadamente endurecidos, de modo que não nos entregamos aos

acontecimentos e aos encantamentos das/nas salas de aulas? Não estaríamos sujeitados

pela ordem disciplinar de controle dos corpos e dos pensamentos, da afetividade que

não nos permite segurar o balão?

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Imagem 4:“O balão vermelho” – O professor que tenta apreender o devir-balão

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=_SaRIP44CQQ>. Acesso em: 18-05-2014.

As narrativas do filme mostram como algumas imagens ortodoxas de

pensamento se fixam nas instituições, entre estas, a escola. O engessamento das relações

e do encontro com o outro do pensamento por essa imagem-moral tenta bloquear a

abertura do campo das experimentações para o que é colorido, para o desejo de encontro

da criança, mantendo em seu seio a lógica da disciplina, do enfileiramento dos corpos,

da punição dos que subvertem a ordem do estabelecido, tentando aprisionar o tempo da

infância a sua projeção futura e não a um tempo em que a criança possa experienciar sua

duração e o sentido dos acontecimentos, ou seja, a vida em sua diferenciação.

Nas conversas com os docentes, outras histórias de professores provocam o

pensamento a buscar o heterogêneo e o encontro com o “outro”: Fico pensando que, às

vezes, a criança chega toda empolgada na minha mesa para perguntar, ou até mesmo

para contar uma coisa que lhe aconteceu, e estou tão atarefada, com tanta coisa para

fazer, que nem dou a devida atenção ao que ela estava dizendo, nem noto se seus olhos

estavam brilhando. Eu sei que não faço isso porque não gosto da criança, mas tem uma

força maior que me obriga a cumprir com os conteúdos do livro, com o preenchimento

das pautas, com a correção dos cadernos. Mas vejo que tenho que fazer de outra forma,

porque, assim, acabo minando com o desejo de aprender da criança (Narrativa da

personagem-escola B).

A imagemnarrativa argumenta sobre a necessidade da constituição de uma ética

e de uma estética docente que coloca em questão a possibilidade de tecer um outro

estilo para as práticas pedagógicas. A transformação de si e a abertura para sentir e viver

os acontecimentos escolares perpassam por uma dobra na força que sujeita os

indivíduos ao engessamento e os distanciam do “outro”. É um convite estilístico de

desaprender a ser triste...

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As imagens cinematográficas de “O balão vermelho” potencializam as

imagensnarrativas docentes ao abrirem o campo da percepção para imagens-afecções

de um encontro estabelecido entre criança e balão em devir, permitindo a produção da

liberdade, o encantamento e experimentações (in)corporais, que só em devir-criança e

devir-balão são capazes de traçar um plano de fuga das durezas da sociedade “produtiva

demais”, competitiva, intolerante, impaciente e demasiadamente cruel.

O convite é para devir-criança. Infantilizar-se com a beleza das coisas, dos

pensamentos e das pessoas. Essa é a arte do encontro. Abrir-se à magia do inesperado e

provocar o olhar para a potência das relações tecidas nas salas de aula pela emergência

do acontecimento e de toda sua capacidade de ser inesgotável, “[...] porque é imaterial,

incorporal e virtual” (CORAZZA, 2008, p. 240).

Imagem 5: Imagem do filme “O balão vermelho” – A arte do encontro entre devires

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=_SaRIP44CQQ>. Acesso em: 18-05-2014.

O cinema desliza sobre as imagens-mundo e faz mostragem dos dogmatismos,

ao expor o endurecimento das relações humanas que sobrecodificam também as crianças,

já que nem todas são capazes de se lançar aos encontros e ao campo do devir. O cinema

convida a desaprender a ser triste e a desaprender o que não nos serve.

O que fazemos na escola, em nossas salas de aula com as crianças vem me

fazendo pensar no que vale realmente a pena na educação. Quando eu comecei no

magistério, eu pensava que o mais importante era instruir bem meu aluno, mas hoje eu

penso que de nada adianta eu encher a cabeça das crianças com um monte de

conteúdos, com regras. Eu tento fazer o máximo para que a minha sala de aula seja um

lugar especial, lugar de brincadeira, de fantasia, e eu me divirto com isso, me canso

também, mas depois vejo que isso é que é legal na nossa profissão (Narrativa da

personagem-escola V).

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E, como um balão e uma criança que devêm e resistem às tentativas de

aniquilamento da imaginação e do desejo, a docência se reinventa como uma obra de

arte. Cria outros olhares mais sensíveis para as relações educativas.

O cinema convida a abrir-se à experiência do acontecimento e devir como

criança e como balão. O convite é para transformar-se, produzir a diferença pelo

cuidado ético de si e do outro, pois,

[...] a constituição para si de um estilo de vida teria a ver com a dinamização

de uma capacidade de provocar, de duvidar, de dedicar-se a si mesmo com

vigilância e esforço, com vigor, com entrega ao genuíno desejo de

desaprender o que já não nos serve [...] (FISCHER, 2009, p. 95).

As imagens de “O balão vermelho” colocam o pensamento docente em

movimento. Fazem mostragem das linhas molares que escavam relações de

profundidade, que visam à estruturação do outro e, assim, constituem alguns processos

de subjetivação que moldam o comportamento de meninos e meninas a agirem de

acordo como se pede, pela disputa do espaço e destruição do outro. O balão é

apedrejado, estouram imagens-sonho.

Imagem 6: Imagem do filme “O balão vermelho” – Luta pela existência de uma vida outra

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=_SaRIP44CQQ>. Acesso em: 18-05-2014.

Entre imagens-sonho e Cinema e Educação: algumas considerações e encontros

possíveis

Estaria o menino sonhando com um encontro afetivo com um balão? Estariam as

imagens do filme a desencadear imagens-sonho de um encontro possível entre crianças

e professores e tantos outros do pensamento?

Deleuze (2007) convida a pensar nessas imagens não como imagens-lembranças

virtuais de um encontro, mas, a partir de Bergson, como um circuito que liga as

sensações do mundo exterior ao interior. Assim, as imagens de “O balão vermelho”

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mostram o movimento de dobras possível no encontro com o outro do pensamento, que

se faz nos processos de profundidade e de superfície da cartografia de uma vida.

Dormindo… a criança cartografa imagens-sonho como percursos nômades

criados por seu encontro com o balão e, também, traça outras linhas de existência por

entre ruas, escolas, avenidas… pois, “[…] as percepções da pessoa que dorme

subsistem, porém no estado difuso de uma nuvem de sensações atuais, exteriores e

interiores, que não são apreendidas por si mesmas, escapando à consciência”

(DELEUZE, 2007, P. 73).

As imagens-sonho desenhadas pelo filme apresentam imagens de encontros

possíveis, encontros que desencadeiam um devir… uma outra força, uma potência, uma

outra existência possível. A imagem virtual de crianças estourando o balão não prolonga

o vínculo sensório-motor, não remete logo à atualização do fim do encontro entre o

menino e o balão, mas atualiza outras imagens, outras composições com o outro do

pensamento.

Desse modo, a imagem-movimento é paralisada. Isso, porque a vida não se deixa

enquadrar e nem se entrega a um pensamento da representação. A maneira de perceber

o outro como afecção de si é o que permite que outras imagens de pensamento surjam e

quebrem os clichês que buscam fixar a reprodução das pessoas e de seus papéis sociais,

não aceitando mais os modelos de criança ou a „ideia de professoralidade‟ (CORAZZA,

2008), posta como a mais adequada para as escolas, para as ruas, para a existência da

humanidade.

Surgem imagens-sonho que também “[…] desempenham o papel de imagem

virtual atualizando-se numa terceira, ao infinito: o sonho não é uma metáfora, […] mas

um devir que pode, em direito, prosseguir ao infinito” (DELEUZE, 2007, p. 73).

[...] quando professores-e-artistas compõem, pintam, estudam, escrevem,

pesquisam, ensinam, eles têm apenas um único objetivo: desencadear devires.

Devires que não são sempre moleculares, já que devir não é imitar algo, nem

identificar-se com alguém, tão pouco promover relações formais entre

identidades. (CORAZZA, 2008, p. 243).

As imagensnarrativas da docência e as imagens cinema de “O balão vermelho”

apresentam um “sonho implicado”, que, como diz Deleuze (2007), ao separar a imagem

ótica e sonora de seu prolongamento motor, permite prolongá-las em movimento de

mundo.

Pelas imagens-sonho, a atualização de uma terceira imagem faz a ruptura do

vínculo sensório-motor e permite o surgimento do reflexo de outra imagem: a imagem-

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tempo. O jorro do tempo ao experimentar a duração do encontro entre menino e balão

deslizando pelo céu. A potência do devir-criança e do devir-balão na composição de

outras forças no campo do desejo educativo.

Assim como nas imagens do filme, nas imagensnarrativas tecidas pelos

professores, percebe-se que a “[…] câmera lenta libera o movimento de seu móvel para

fazer dele um deslizamento de mundo” (DELEUZE, 2007, p. 76). Ocorre a passagem de

uma suposta realidade (balão em fuga, balões em composição, professores a enunciarem

outros modos de existência) ao sonho (composições com o outro do pensamento). Os

movimentos da câmera, os movimentos da escola e os movimentos de conversações

entre os professores expressam esses movimentos de mundos, que se libertam no sonho

implicado.

A criança aterrorizada não pode fugir ante o perigo, mas o mundo se põe a

fugir por ela e a leva consigo, como sobre uma esteira móvel. As personagens

não se mexem, mas, como num filme de animação, a câmera faz mexer o

caminho sobre o qual elas se deslocam (DELEUZE, 2007, p. 76).

Imagem 7: Imagem do filme “O balão vermelho” – sonho implicado

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=_SaRIP44CQQ>. Acesso em: 18-05-2014.

Assim, uma vida também ensina que é possível desterritorializar, embarcar com

o mundo em suas fugas. Torna-se possível perceber que o que devém nos encontros

cotidianos entre professores e crianças é a capacidade de fabular imagens-sonho que

criam linhas errantes, que seguem por caminhos desconhecidos, nômades, ao mostrar na

superfície das relações, lógicas mais sensíveis para os processos de criação e de devir-

outro: devir-criança e devir-balão. Como a câmera do cinema, os processos constituintes

da docência fazem mexer o caminho sobre o qual ela se desloca. E nos encontros entre

cinema e docências e infâncias também vão se compondo experiências de encontros

estilísticos com o outro do pensamento, cunhando outros sentidos para os movimentos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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educativos, cartografando suas experiências e mobilizando o pensamento para a criação

de outras imagens que impliquem os cuidados com o outro e consigo mesmo.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. 1942- Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José

Assmann. - São Paulo: Boitempo, 2007.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o

espírito. Tradução Paulo Neves. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006.

CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos.

Petrópolis, RJ: DP et Alii; Braísilia, DF: CNPq, 2009.

_______. Devir-docência potencializando a aprendizagem sem medo. XVI ENDIPE

- Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino. UNICAMP, Campinas, 2012.

_______. Cartografia e o cotidiano escolar. IN: Ferraço, C.E; Perez, C.L.V;

Oliveira,I.B. Aprendizagens cotidianas com a pesquisa: novas reflexões em pesquisa

nos/dos/com os cotidianos das escolas. Petrópolis: DP et Alii, 2008.

CORAZZA, Sandra Mara. Para artistar a filosofia-educação: sem ensaio não há

inspiração. Revista de Educação Pública. Cuiabá, v. 17, n.34, pp. 237-254, mai/ago,

2008.

DELEUZE, Gilles. Imagem-Tempo. 1985. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro.

Brasiliense. 1ª ed., 2007.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Docência, cinema e televisão: questões sobre formação

ética e estética. Revista Brasileira de Educação, 2009, Vol.14(40).

O BALÃO VERMELHO. Direção: Albert Lamorisse. Paris, 1956.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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CINEMA E EDUCAÇÃO: (DES) DOBRAMENTOS DE EXPERIÊNCIAS COM

UM CURRÍCULO PARA “QUEM QUER SER MILIONÁRIO?

Rejane Gandini Fialho/ PMV- FABRA

Helder Januário Da Silva Gomes/ Ifes

Hiran Pinel/ PPGE-Ufes

Resumo

O presente artigo é oriundo de pesquisa com professores de diferentes instituições

públicas da região metropolitana do Espírito Santo que, em roda de conversas,

colocaram-se a problematizar as potencialidades do cinema para pensar a Educação,

mais especificamente, Currículo Escolar. Toma como disparador as imagens fílmicas de

Slumdog Millionaire (Quem quer ser um milionário?), pois desenham linhas de fuga

para as contraposições curriculares prescrito/vivido. Objetiva investigar as imagens de

existências e de espaçostempos de aprendizagens possíveis na constituição dos

currículos escolares. Toma como intercessores teóricos Gilles Deleuze (2006), Michel

de Certeau (1998) com o intuito de dialogar sobre currículos que atuam em redes,

fugindo do campo disciplinar e formando rizomas capazes de responder à pergunta do

policial que não consegue entender como Jamal (um jovem de 18 anos e assistente de

call center) pode chegar a disputar o prêmio máximo que nem professores, doutores e

intelectuais puderam vislumbrar: “O que um moleque favelado pode saber?”.

Metodologicamente, utiliza a potência das pesquisas com o cotidiano escolar,

mobilizando como instrumento de tecitura de redes de conversações com professores

(CARVALHO, 2009) por meio das imagens do cinema. O filme apresenta quatro

imagens como opções para o feito: trapaça, sorte, genialidade ou destino. Quão ligadas

estão essas alternativas às propostas de aprendizagem? Conclui que os docentes e as

imagens do filme vão indicando que as imagens de existências e os espaçostempos de

aprendizagens na constituição dos currículos escolares são complexos, diversos e

múltiplos, atravessando a produção das subjetividades pelos movimentos

teoricopráticos da escola e também de uma vida na produção de outros conhecimentos.

Jamal e tantos outros alunos sabem as respostas e, mais do que isso: tecem-nas em redes

de sentidos, caracterizando a potência de uma vida que escapa por meio da oralidade e

das experiências.

Palavras-chave: Currículo. Cinema. Aprendizagem.

Introduzindo algumas imagens e sabedorias

O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome:

sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o

lado épico da verdade – está em extinção. Walter Benjamin. O narrador.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

2490ISSN 2177-336X

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O movimento de dobras proposto por Gilles Deleuze (1968) ajuda a pensar na

tecitura da existência e das experiências como algo incessante e que move-se pelas

relações de si com o mundo, permitindo problematizar com professores da rede pública

de escolas situadas em municípios que compõem a Região Metropolitana do Espírito

Santo (Vitória, Serra e Vila Velha), durante o ano de 2015, a constituição de

determinados territórios onde se experimentam e produzem movimentos curriculares.

Dobrando-se e desdobrando-se diante das cenas de uma vida, o cinema convida a pensar

a Educação. Uma vida marcada por experiências... Jamal sabia as respostas e, mais do

que isso: ele soube tecê-las na rede de sentidos caracterizando a potência da vida que

escapa por meio da oralidade. Essa tática, vista a partir do pensamento de Certeau

(1998), leva às discursividades que nos fazem compreender melhor um dos campos do

currículo pelas imagens do filme “Quem quer ser milionário?”.

A sabedoria, apresentada por Benjamin, pelo viés da narração, constitui-se como

um movimento de dobras inerentes à vida humana que produz saberes, fazeres e poderes

que ajudam a movimentar o pensamento, a buscar - em meio à „repetição cotidiana, a

diferença‟ (DELEUZE, 2006), possibilidades para a produção de outros sentidos

cognitivos, linguísticos e afetivos para os currículos escolares e para a vida. Assim, a

sabedoria da narração apresenta-se nesse texto como um movimento de dobras entre as

imagens do filme e as imagens do pensamento dos professores explicitadas por suas

redes de conversações.

Deste modo, o presente trabalho teve como objetivo investigar imagens de

existências e de espaçostempos de aprendizagens possíveis na constituição dos

currículos escolares. Tomou como principais intercessores teóricos Gilles Deleuze e

Michel de Certeau com o intuito de dialogar sobre currículos que atuam em redes,

fugindo do campo disciplinar e formando rizomas capazes de responder à pergunta do

policial que não consegue entender como Jamal (um jovem de 18 anos e assistente de

call center) pode chegar a disputar o prêmio máximo que nem professores, doutores e

intelectuais puderam vislumbrar: “O que um moleque favelado pode saber?”.

Metodologicamente, utiliza a potência das pesquisas com o cotidiano escolar,

mobilizando como instrumento de pesquisa a tecitura de redes de conversações com

professores (CARVALHO, 2009) como potência para agenciar as narrações disparadas

pelas imagens do cinema e entrevistas semiestruturadas realizadas em nove escolas,

abordando trinta professores.

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Imagens cinema e os espaçostempos que marcam a aprendizagem

Carregado de toda a realidade que uma fantasia é capaz de criar, o roteiro de

“Quem quer ser um milionário?” foi adaptado do best seller indiano Q & A, de Vikas

Swarup. A maioria dos espectadores do filme é capturada logo na primeira cena pela

fotografia atraente, pela música incidental misturada à sonoplastia indiana e pelo

questionamento: como um menino da favela conseguiu chegar ao topo de um jogo

televisivo por onde já passaram tantos outros sem sequer chegarem à pergunta final?

Órfão muçulmano, Jamal cresceu ao lado do irmão Salim e da pequena Latika,

por quem nutre uma paixão desde pequeno. É um roteiro sobre amor e destino, mas que

muito ajuda a conversar sobre Educação e Aprendizagem. Partindo do conceito de

Deleuze (1968) para a dobra, podemos inferir que Jamal exprime a invenção de

diferentes formas de relacionar-se consigo e com o mundo, ora dentro, ora fora do que a

vida lhe ofereceu como possibilidade.

Enquanto é torturado, o rapaz afirma ao policial: “Eu sei as respostas”. A certeza

é capaz de levar à dúvida o mais reticente dos homens. Desde que assistimos pela

primeira vez ao filme essa afirmação trouxe uma inquietação aos professores: por que

buscamos uma resposta para a certeza de tantos AlunosJamal que povoam as ruas

brasileiras, que passam por nossas escolas e potencializam respostas que não

conseguimos ainda tecer?

O movimento de dobras, em Jamal, expõe-se em um processo de organização do

conhecimento que o captura por meio de um sistema de códigos próprio do sistema

capitalista, uma subjetivação quando descortina diferentes formas de produção de

subjetividade em uma determinada formação social. Para Deleuze e Guatarri (1992), a

subjetivação constitui um modo intensivo e não um sujeito pessoal. Daí inferimos que o

processo de subjetivação vivenciado por Jamal traduz o modo singular pelo qual se

estabelece a flexão de certos tipos de relação de forças, seja na escola, na TV, no

trabalho, na constituição familiar...

Quantos “ProfessoresJamal”, parafraseando mais uma vez a unidade

indissociável de termos, proposta pelas professoras Regina Leite Garcia e Nilda Alves

(2000) sabiam a resposta, mas foram excluídos dos contextos de formação? Quantos

alunos são forçados a abandonar a complexidade dos cotidianos em nome de um saber

anteriormente sistematizado e programado? Escapando da contraposição

prescrito/vivido, o filme apresentou aos professores possibilidades de diálogos levando

a uma proposição de currículos que atuam em redes, fugindo do campo disciplinar e

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formando rizomas capazes de responder à pergunta do policial que não consegue

entender como Jamal (um jovem de 18 anos e assistente de call center) pode chegar a

disputar o prêmio máximo que nem professores, doutores e intelectuais puderam

vislumbrar: “O que um moleque favelado pode saber?”.

O filme é baseado na história real de um menino que perdeu a mãe em uma

guerra religiosa, estudou pouco e afirma saber ler com tamanha segurança que nos leva

a acreditar que ele gosta de ler muito mais do que sabe ler. Jamal foi morador de rua e

talvez por esse motivo chame tanto a atenção dos brasileiros: a pobreza apresentada nos

é muito familiar, com cores saturadas e uma câmera inquieta que faz da favela em

Mumbai (Índia) um espaçotempo muito próximo dos brasileiros. Em “O que é a

filosofia?” Deleuze e Guatarri (1992) explicam que a criação de todo conceito está

diretamente relacionada a um problema com o qual o filósofo se vê confrontado. Diante

dos problemas o personagem experimentava os conceitos (sistematizados pela escola ou

que emergiam pela vivência cotidiana em outros espaçostempos de aprendizagens) e

deles se apropriava para constituir sua existência. Essa similaridade social reportou

professores às intensidades do cotidiano e às tênues linhas de possibilidades de dobras

criadas e praticadas no plano de imanência, ou seja, no plano de uma vida em que as

imagens são capazes de aguçar.

O filme vai movimentando suas imagens, que se apresentam como opções para o

entendimento das respostas dadas pelo personagem: trapaça, sorte, genialidade ou

destino. Quão ligadas estão essas imagens às propostas de aprendizagens intensivas?

Essa pergunta movimenta o pensamento, capturado inicialmente pela linha poética do

filme e que segue aprofundando-se em um questionamento sobre a possibilidade de

produção de conhecimentos e de experimentação da aprendizagem em diversas

instâncias, espaços e temporalidades.

A narrativa fílmica apresenta ao pensamento a consideração de que a proposta

curricular para a “sabedoria” começa bem antes da entrada na escola, tecendo-se no

cotidiano de Jamal e de seu irmão Salim. As imagens da existência se teciam em meio

ao que Benjamin (1996) retratou como experiência: cada experiência, um aprendizado e

mais algumas rúpias no jogo. Ele havia investido com muita persistência para ter o

autógrafo do ator cujo nome foi solicitado na primeira pergunta do jogo e, mesmo o

papel assinado tendo sido vendido pelo irmão, Jamal jamais esqueceria o que aprendeu.

Assim conseguiu as primeiras mil rúpias no jogo e deu início a um caminho pautado na

complexidade das relações cotidianas.

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Neste contexto, os docentes entrelaçavam imagens do filme com as imagens de

suas práticas e ressaltavam em conversações: “Em sala de aula a gente faz o tempo todo

referências à vida cotidiana porque eles fazem a relação e aprendem. Se não for assim

fica parecendo que a escola está falando de algo que não existe” (Professor 18)”.

Na segunda pergunta o protagonista nos leva a um importante questionamento: o

que é importante saber? Quem deve saber o quê? A pergunta feita era considerada de

um nível bastante fácil, mas Jamal não sabia respondê-la e recorreu à plateia. O policial

diz a ele que qualquer criança de cinco anos saberia aquela resposta e o garoto, então,

retruca com questionamentos que refutam a afirmação: o senhor sabe quem roubou a

bicicleta em Juhu (bairro onde ele morava) na semana passada? A partir da negativa do

investigador, ele diz: qualquer criança de cinco anos por lá sabe quem foi. Assim, Jamal

mostra a necessidade de compreendermos os modos e as intensidades do que está sendo

estudado, tanto quanto suas formas e conteúdos.

O plano de imanência discutido por Deleuze (1968) rompe com uma imagem do

pensamento que remete o próprio pensamento a pressupostos implícitos que têm como

base a forma pessoal e individual de um sujeito empírico. Do mesmo modo, Jamal

rompe com o plano cartesiano proposto/ imposto ao pensar e desenvolve um movimento

que ultrapassa o recurso estabelecido das memorizações mecânicas, muitas vezes

sistematizadas pelos sistemas de ensinos.

Assumindo diálogos permanentes com o cotidiano, o menino da favela de

Mumbai chegou à terceira pergunta e os nossos professores, a mais um questionamento:

como produzir uma nova imagem do pensamento? Para Deleuze (1968), pensar não é o

exercício natural de uma faculdade: nós só pensamos raramente e sempre a partir do

encontro com algo que nos força a pensar. A questão posta a Jamal tratava de

conhecimento sobre um poeta indiano que escreveu uma das mais belas poesias

musicadas. Jamal havia aprendido com a mãe essa canção e foi levado a pensar que

poderia ganhar dinheiro cantando profissionalmente. Assim ele conheceu Surdas, autor

de Darshan do Ghanshyam. Pensar exige uma relação imediata com o “fora”, como

parte constituinte da dobra.

A escola continua priorizando a memorização, mesmo que alguns

profissionais tentem fazer diferente, a gente está sempre encontrando alunos

e professores que se voltam para o não refletir. Essa é a imagem que a gente

tem hoje da escola: decoreba, boas notas e aprovação (Professora 35).

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A cena em que resolve ser guia turístico no Taj Mahal nos coloca frente a frente

com as inúmeras possibilidades de significações que vão sendo embricadas no contexto

da formação. Jamal traz a história do templo para dias atuais, dá seus próprios sentidos,

mata a personagem em um acidente de trânsito com um engarrafamento enorme e,

enfim, escreve uma nova história para o Taj Mahal. Ele ouviu contar por um guia

turístico, confundiu datas que para ele não faziam o menor sentido, vestiu-se de

autoridade e contou uma nova história. Relacionou a história ao seu tempo, sem

qualquer mediação e seguiu tecendo suas “emissões de singularidade” (DELEUZE,

1968), fazendo do pensar imensa potência de invenção.

A próxima questão a ser respondida por Jamal é sobre quem está estampado na

nota de cem dólares. Ao responder corretamente que era Benjamin Franklin, o garoto

confunde mais uma vez o investigador, já que não sabia quem estava na nota de mil

rúpias, ou seja, Gandhi. Como poderia Jamal conhecer sobre uma cultura que não é a

dele? E na explicação o menino mais uma vez demonstra a confirmação da teoria na

prática. Um amigo cego o havia ensinado a partir de uma pergunta. Ao questionar quem

estava na nota fez com que Jamal a observasse e a aprendizagem se fez mais uma vez

repleta de sentido, compondo o que Deleuze (1968) chamou de campo transcendental,

povoado de singularidades-acontecimentos providos de uma “energia potencial”.

O rapaz indiano subverte as representações desde a infância e não aceita “as

máscaras da conformidade”, conforme abordado por Certeau em “A invenção do

Cotidiano” (1998). Jamal utiliza-se mais da „tática‟ do que da „estratégia‟ (CERTEAU,

1998) uma vez que esta última tem a identidade e o modo de operar já determinados.

Mas, ao contrário, foi capaz de se desestruturar e agrupar-se novamente com

naturalidade, uma resiliência necessária ao processo de tecitura que nos leva à

aprendizagem. Jamal não está atado à estratégia porque é flexível, não está amarrado a

uma localização espaçotemporal própria. Tal como o modelo tático de Certeau (1998),

Jamal é capaz de realizar um agrupamento de forma ágil para responder a uma

necessidade.

O autor afirma que uma tática infiltra, mas não tenta dominar e não se envolve

em sabotagem. Ciente de seu status de "fraca", a tática não faz nenhuma tentativa de

enfrentar a estratégia de frente. Jamal é um jogador e assim permanece até a

aprendizagem final, manifestando-se muito mais na metodologia do que na estrutura e

aí está parte significativa do poder da tática já que promove uma subversão difícil de ser

mapeada ou descrita. O apresentador dá ao rapaz uma resposta, mas ele faz outra

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opção. Por qual motivo optou por outro caminho? Quando subverteu a ordem de

confiança no apresentador, Jamal modificou o caminho da tática e, também os

professores, questionam sobre os caminhos que os alunos tomam entre táticas e

estratégias.

Às vezes a gente traz uma reflexão e os alunos vêm com respostas que

seguem outras lógicas. Nós poderíamos dizer que estão erradas essas

respostas, mas pensando no caminho que percorreram e no que viveram

aquilo faz muito sentido (Professora 22).

Buscando no filme pontos que nos aproximam de Michel de Certeau e Gilles

Deleuze, que se dedicaram a pensar sobre as invenções cotidianas como modos de

experimentar e de produzir conhecimentos para além da reprodução do mesmo, importa

também indagar: quais diálogos são possíveis com as perspectivas de formação de uma

sociedade cada vez mais instantânea, unida por uma diferença cada vez mais igual?

Onde estão as sinapses capazes de levar à ligação entre o que se sabe , o que se espera

que saibamos e o que somos capazes de compartilhar? Jamal aprendeu com o irmão sem

escrúpulos, com o algoz explorador de crianças, com a menina que amava, com a mãe,

com o insulto do professor. Tal como no filme, a rede cotidiana se constitui nos

processos de formação de professoresalunos dentrofora das escolas. Como essa rede se

constitui na sociedade atual e como se concretiza na formação das gerações marcadas

intensamente pela tecnologia é um desafio para todos nós que aos poucos fazemos

conexões capazes de estabelecer sentidos com grupos diversos, possibilitando a

desvinculação do homem de um mundo previamente programado.

As „redes de conversações e ações complexas‟ (CARAVALHO, 2009) tecidas

durante a pesquisa com os professores foram também apontando para a complexidade

de seus processos constituintes e das diversas imagens do pensamento que surgem ao se

falar da escola, do currículo e da aprendizagem, já que também se formam pelas

experiências produzidas dentrofora das escolas.

Ao dialogarem sobre as diferentes imagens presentes no filme, não preocupados

em classificá-las entre trapaça, sorte, genialidade ou destino para as respostas do

personagem, os docentes em suas narrativas compreendem que as redes de

conhecimentos, linguagens e afetos presentes nas escolas rompem com a possibilidade

de uma totalidade curricular estática, explicando-se a partir das produções discursivas

que vão dar sentido à materialidade. Apenas quando materializou-se, o conhecimento

fez sentido para Jamal e ainda assim permanecia sem o menor significado para alguns

grupos de telespectadores.

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As imagens fílmicas de “Quem quer ser um milionário?” vão deslizando entre a

dureza de uma sociedade totalitária, previamente fabricada, consumista e individual e

entre a composição de intensidades e de agenciamentos feitos em diferentes

espaçostempos de aprendizagem. Imbricada nesse movimento de dobras, a narrativa

fílmica vai possibilitando a desconstrução da ideia de identidade do muçulmano que

apresenta uma essência fixa. A cultura apresentada por Jamal produz um discurso sobre

o mundo e suas relações, algo potente trazido à tona para simplesmente seguir algum

curso na vida. Ele toma a palavra, estabelece conexões e cresce no jogo. Busca

parceiros todo o tempo (na plateia, na sorte, nas vivências, nas materialidades, no

amor...) e com a ajuda desses atravessamentos vai ressignificando, aproximando e

criando suas redes de aprendizagens.

Do cinema ao cotidiano as imagens se entrelaçam em pequenas apostas em outro

mundo de aprendizagens possíveis

Se para Agnes Heller (2004) o cotidiano é reprodução, marcado pela alienação;

para Certeau (1998) há nesse cotidiano a possibilidade da crítica, do escape e, para

Deleuze (2006), é nesse cotidiano ou plano de imanência que pode-se provar diante da

repetição cotidiana o surgimento potente da diferença. É nesse instante do escapar

potencializado que um rapaz indiano vai modificando não apenas a sua vida, mas a de

milhares de indianos que passam a acreditar na possibilidade de um fazer diferenciado

com temporalidades superpostas em um mesmo tempo histórico e, assim, a diferença se

apresenta como um possível.

O filme retrata ainda como Jamal aprendeu a lidar com as relações de poder que

se colocam no dia a dia como verdadeiras armadilhas do tempo. São representações que

coadunam com o tempo em que estão sendo vivenciadas e repensadas. A proximidade

com o que está sendo argumentado ao policial faz circular entre eles representações de

saberes que atuam como dispositivos de legitimidade. Encontrando o que havia de

comum em diferentes movimentos, o diretor nos apresenta uma sociedade de cegos, tal

como José Saramago nos mostra no romance “Ensaio sobre a cegueira” (1995): “A

sociedade hodierna é uma sociedade de cegos; cegos que veem”. Mas Jamal vê e

agencia outros olhares por meio de uma proposta de resistência, indignação, persistência

e reinvenções.

É um olhar a partir do cinema, mas que abarca toda a sociedade e suas

instituições, marcado pela intensidade. Conforme Deleuze (2006), é sempre pela

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intensidade que o pensamento nos advém, uma intensidade que se produz no encontro

com o que força a pensar.

Podemos afirmar que o roteiro de “Quem quer ser um milionário?” é actante,

coloca o pensamento em movimento... Revela invisibilidades que nos levam a aprender

e desaprender e aprender... complexidade latente no discurso de Jamal: uma história e

seus acontecimentos. Os docentes colocam em questão as invisibilidades que provocam

o pensamento e não deixam que adormeça sobre o paradigma da pura representação

mecânica:

“Os alunos criam conexões para chegarem ao aprendizado final e assim a gente

acaba chegando a um conteúdo que não estava estabelecido inicialmente nem por eles e

nem por mim. Acho isso maravilhoso, mas também assustador porque a gente sai muito

do que foi programado”.(Professor 18).

A vida foi para Jamal, assim como para vários alunos brasileiros, um

espaçotempo de infinitas aprendizagens, ressignificadas conforme se apresentavam os

questionamentos. Por outras vozes ele contou sua história e jogou. Diversas vezes o

filme mostra essas situações de aprendizagens fora da escola: vendendo batatas,

negociando sua música, acessando a internet, pesquisando... Rompendo com o estigma

de que só se aprende na escola, a partir de um currículo elaborado e organizado para

criar vencedores. Jamal mostra ao mundo como o conhecimento se tece em redes, com

espaçostempos diversos e complexos.

Assim, para os professores que participaram desta pesquisa, “Quem quer ser um

milionário?” esclarece que educar e educar-se é uma atividade realizada a partir da

coletividade, pautada na flexibilidade e não pressupõe a existência de um roteiro pré-

estabelecido, limitador tanto da forma quanto do conteúdo. O filme ajuda a entender

alguns processos de transformação pelos quais passam a escola e a sociedade. Apresenta

temáticas transversais latentes no cotidiano das aprendizagens significativas, tal como

nos ensina Alves (2000): “[...] fique claro ser a prática um lócus de produção de

conhecimentos que muitas vezes antecipa o que a teoria mais tarde afirma ser a verdade

científica”.

A discussão sobre a dicotomia entre teoria e prática evidenciada pela narrativa

do filme se apresenta atualmente por outro viés pelos olhares de muitos estudiosos do

currículo escolar. O que tem chamado atenção é uma aposta em movimentos de dobras

entre praticateoriapratica, de modo indissociável, destituindo os lugares demarcados de

poder de uma sobre a outra, assim como argumenta GARCIA (2003): “Há diferentes

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lógicas presentes na sala de aula e há caminhos diferentes de chegarmos ao mesmo

lugar”.

Para compreender o que dizia Jamal, o policial teve que despir-se de uma série

de pré-conceitos para investir na compreensão de uma lógica bastante diversa da que foi

experimentada por ele. As lógicas que constroem o sentido do saber são, para Jamal,

bastante diversas daquelas propostas pela escola. As conversações com os professores

também caminham nesta direção, indicando que as aprendizagens são múltiplas e que

não cabe à escola definir quais são validadas e quais são desprezíveis à vida.

Os docentes e as imagens do filme vão indicando que as imagens de existências

e os espaçostempos de aprendizagens na constituição dos currículos escolares são

complexos, diversos e múltiplos, atravessando a produção das subjetividades pelos

movimentos teoricopráticos da escola e também de uma vida na produção de outros

conhecimentos. Jamal e tantos outros alunos sabem as respostas e, mais do que isso:

tecem-nas em redes de sentidos, caracterizando a potência de uma vida que escapa por

meio da oralidade e das experiências.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ______. Obras escolhidas: Magia e

técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. (Texto originalmente

publicado em de 1933).

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

DELEUZE, G. Différence ET répetition. Paris: PUF, 1968.

DELEUZE, G. e GUATARRI, F. O que é a filosofia?. São Paulo: Ed.34, 1992.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e

Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

GARCIA, R. L.; MOREIRA, A. F. (ORG.). Currículo na Contemporaneidade. São

Paulo: Cortez, 2003

GARCIA, R. L.; ALVES, N. (ORG.). O sentido da escola. Rio de Janeiro: DP&A,

2000

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