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VINÍCIUS FERNANDES MACIEL
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
CURITIBA
2008
VINÍCIUS FERNANDES MACIEL
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Monografia apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Especialista em Ministério Público –
Estado Democrático de Direito, na área
de concentração em Direito
Constitucional, Fundação Escola do
Ministério Público do Paraná -
FEMPAR, Faculdades Integradas do
Brasil - UniBrasil.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre
Coutinho Pagliarini.
CURITIBA
2008
TERMO DE APROVAÇÃO
VINÍCIUS FERNANDES MACIEL
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista no curso
de Pós-Graduação em Ministério Público - Estado Democrático de Direito, Fundação Escola
do Ministério Público do Paraná - FEMPAR, Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil,
examinada pelo Professor Orientador Alexandre Coutinho Pagliarini.
_____________________________
Prof. Dr. Alexandre Coutinho Pagliarini
Orientador
Curitiba, 15 de dezembro de 2008.
RESUMO
Este trabalho cuida da possibilidade do Ministério Público empreender, diante da nova
ordem constitucional instaurada a partir de 1988, investigações criminais de forma
direita. Tomando como ponto de partida a analise de sua evolução histórica, bem como
de suas conquistas relacionadas às suas prerrogativas e finalidades, procurar-se
sustentar de forma clara essa função atribuída ao Parquet. Em um segundo momento,
discute-se a mudança de posicionamento do Supremo Tribunal Federal que, negando
esse progresso histórico, retira do Ministério Público a possibilidade de realizar tais
investigações preliminares de forma direita. Por fim, tenta-se demonstrar o equívoco
desse posicionamento adotado pela Suprema Corte e propõe-se uma reafirmação do
valor institucional e das finalidades do Ministério Público em um Estado que pretende
manter o status de um Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS CHAVE
Investigação criminal direta; Ministério Público; prerrogativas e finalidades
institucionais
ABSTRACT
This work takes care of the possibility of prosecutors undertaken, before the new
constitutional order established since 1988, direct criminal investigations. Building on
the analysis of their historical development, as well as their achievements related to
their prerogatives and purposes, seek support is clearly the task entrusted to the
Parquet. In a second time, we discuss the change of position that the Supreme Court,
denying that historical progress, derives from the public prosecutor the possibility of
conducting such preliminary investigations so right. Finally, attempts to demonstrate
that mistake the position adopted by the Supreme Court and it is a reaffirmation of the
institutional and purposes of prosecutors in a state that wants to maintain the status of
a democratic rule of law.
KEY WORDS
Direct criminal investigation, prosecutors, prerogatives and institutional purposes
SUMÁRIO
RESUMO...............................................................................................................II
ABSTRACT..........................................................................................................III
INTRODUÇÃO....................................................................................................05
I – O MINISTÉRIO PÚBLICO........................................................................... 08
1.1 Origens históricas ......................................................................................... 08
1.2 O Ministério Público no Brasil ..................................................................... 09
1.3 Visão sistêmica: o Ministério Público na Constituição de 1998.................... 14
1.4 O Ministério Público no direito comparado...................................................20
II – FUNÇÕES INSTITUCIONAIS PENAIS DO MINISTÉRIO
PÚBLICO CORRELATAS À INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA......... 25
2.1 O princípio da obrigatoriedade e a privatividade da ação penal pública ...... 25
2.2 Atribuição de expedir notificações nos procedimentos administrativos....... 27
2.3 Atribuição de requisitar diligências investigatórias e de instaurar
inquéritos policiais .............................................................................................. 29
III – SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS....................................................... 31
3.1 Sistema inquisitivo........................................................................................ 31
3.2 Sistema acusatório ........................................................................................ 34
3.3 Sistema misto ................................................................................................ 38
IV – PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.................... 39
4.1 Posição da doutrina pátria............................................................................. 39
4.2 A alteração de orientação no Supremo Tribunal Federal.............................. 50
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 60
5
INTRODUÇÃO
O processo penal, como instrumento de concretização do ius puniendi, nem
sempre foi estruturado como hoje se conhece. Em um período histórico não muito
distante, vigorava um processo penal inquisitivo onde a figura do juiz e do acusador
confundia-se em uma única pessoa.
Pior do que isso, o princípio unificador do sistema inquisitivo firmou-se na
gestão da prova pelo órgão julgador. O juiz, ou melhor, o inquisidor, além de
concentrar em uma só pessoa as tarefas de acusar, defender e julgar, controlava, em
suas mãos, a produção das provas.
O processo penal servia, na realidade, não como um sistema de garantias do
indivíduo acusado, mas como procedimento legitimador de um juízo condenatório
preconcebido na mente do inquisidor.
O Estado, mediante a aplicação de penas injustas e desproporcionais, firmava-se
como um ente superior ao próprio indivíduo, como se quisesse a todo o momento
afirmar que o individuo existia para o Estado e não o contrário.
Após séculos de dominação e controle institucionalizado do indivíduo novas
idéias foram lançadas no seio da sociedade, idéias essas que foram apanhadas por nova
classe social que almejava a tomada do poder – a burguesia francesa - e acabaram por
fundamentar um novo discurso de poder.
Com o alvorecer da Revolução Francesa de 1789 – firmada no lema liberdade,
igualdade e fraternidade – o Ministério Público, já então incipiente na figura dos
procuradores do rei, ganhou uma estrutura mais adequada e a seus membros foram
asseguradas novas garantias, assemelhando-a ao Ministério Público atual.
As atrocidades cometidas durante o período em que o sistema inquisitivo
prevaleceu imbuíram no homem comum um pavor tão grande, que exigiu a elaboração
de um sistema penal em que as partes do processo fossem claramente distintas.
Durante mais alguns séculos de progresso histórico, entre idas e vindas, lutou-se
para definir os papéis que cada uma dessas partes deveria assumir no processo penal a
fim de que fosse concebido um verdadeiro sistema de garantia dos direitos
8
6
fundamentais do indivíduo.
Até a atual conjectura do quadro mundial e, mais especificamente, diante do
novo cenário nacional, recém inaugurado com a Constituição Federal de 1988, muitas
discussões foram travadas até a consagração das funções atribuídas ao Ministério
Público ou, às Instituições que o valham nos Estados Democráticos de Direito.
A nossa Constituição Federal de 1988, em seu artigo 129, estabeleceu as
funções institucionais do Ministério Público e, juntamente com a legislação ordinária,
atribuiu-lhe, de forma privativa, a promoção da ação penal pública.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ignorando séculos de árduo trabalho,
dificultou, data venia, o exercício de algumas funções institucionais no exato
momento em que, alterando seu posicionamento, vedou a possibilidade do Ministério
Público empreender investigações criminais de forma direta, investigações que muitas
vezes forneciam subsídios para o oferecimento de denuncias em situações que a
Instituição não contava com outro material indiciário confiável.
Assim, neste trabalho, procura-se reafirmar de forma clara as funções
institucionais atribuídas ao Ministério Público, em particular a que se refere à
possibilidade de instauração de procedimentos investigativos criminais de forma direta
para fundamentação da ação penal pública.
Mais do que isso, busca-se demonstrar o equívoco no posicionamento que
atribui a Polícia Judiciária o monopólio da investigação criminal, principalmente, em
casos que essa Instituição está comprometida com outros interesses políticos ou
internos que não os atribuídos pela Constituição.
Para tanto, este trabalho realiza uma análise mais atenta da doutrina pátria que,
na sua grande maioria, enumera os argumentos que autorizam o Ministério Público a
empreender investigações preliminares de forma direta não só para subsidiar a ação
civil pública, como querem os doutrinadores contrários a essa tese, mas também para
justificar a instauração da respectiva ação penal.
Na tentativa de propor ao leitor uma visão lógica das idéias que possibilitam
sustentar a prerrogativa do Parquet realizar investigações criminais de forma direta,
este singelo trabalho foi dividido didaticamente em quatro capítulos os quais não
encerram a pretensão de doutrinar ninguém, mas apenas de reforçar os fundamentos
7
construídos pela melhor doutrina que sustenta referida possibilidade.
O Primeiro capítulo cuida da evolução histórica do Ministério Público desde a
sua origem mais remota até sua conformação atual na Constituição Federal Brasileira
de 1988. Reporta-se, ainda que de forma sintética, ao Ministério Público no direito
comparado, isso com o objetivo de realçar a configuração que a Instituição assumiu
durante a sua constituição.
Em um segundo momento, aponta-se algumas das funções institucionais do
Ministério Público correlatas à investigação criminal direta conduzindo o leitor para a
parte final da pesquisa em que os esforços se concentram no tema central desse
trabalho.
O terceiro capítulo faz um panorama com relação aos principais sistemas
processuais penais, quais sejam, o sistema inquisitivo, o sistema acusatório e o sistema
misto. O escopo desse capítulo é demonstrar que não há uma incompatibilidade entre o
sistema acusatório e a possibilidade do Ministério Público empreender investigações
criminais de forma direta.
No capítulo derradeiro cuida-se especificamente do tema concernente à
possibilidade do Ministério Público realizar investigações criminais de forma direita,
para isso enfrentam-se, de maneira crítica, os argumentos contrários a essa tese. Por
fim, destaca-se a alteração no posicionamento do Supremo Tribunal Federal e aponta-
se, data venia, o equívoco das teses ali levantadas.
8
CAPÍTULO I – O MINISTÉRIO PÚBLICO
1.1 Origens históricas
Não há entre os pesquisadores um consenso relativo à origem histórica do
Ministério Publico. O que os estudiosos fazem, quando buscam identificar a origem
remota da instituição, é identificar as funções de investigação de atos ilegais e de
acusação atribuídas a cargos de agentes do período analisado1.
Partindo dessa premissa, alguns doutrinadores citam como percussores da
Instituição os magiaí no antigo Egito. Registros datando mais de quatro mil anos
comprovam a existência de funcionários reais cuja principal função era denunciar as
práticas criminosas aos magistrados. Os magiaí ficaram conhecidos como “a língua e
os olhos do rei”2.
Outros pesquisadores atribuem à origem remota do Ministério Público à
Antiguidade Clássica. Os Éfores de Esparta, por exemplo, apesar de juízes, exerciam
uma função moderadora entre o poder real e o senado, além de exercer o papel de
órgão de acusação em alguns casos3.
Nesse período, há quem aponte, em Roma, os advocatus fisci e os procuratores
caesaris, aos quais incumbia vigiar a administração dos bens do imperador4.
De forma pacífica, a doutrina aponta a origem do Ministério Público, nos
moldes como hoje é concebido, a partir da ampliação dos poderes de intervenção do
Estado na esfera das liberdades individuais e indica como justificativa, sobretudo na
esfera penal, a necessidade de se suprir a vingança privada, bem como de se
jurisdicionar os conflitos sociais5.
Com o abandono do modelo acusatório privado, desenvolvido na Antiguidade
1 RANGEL, Paulo. Investigação criminal direta pelo Ministério Público: visão crítica. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 125.
2 Idem.
3 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 574.
4 Idem.
5 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7 ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte:
Del Rey, 2007. p. 385.
9
Clássica, passou-se pela experiência do modelo inquisitivo, para se desembocar em um
sistema fulcrado em uma Justiça Penal Pública, tanto no que diz respeito à
jurisdicionalização dos conflitos, quanto na formulação da acusação6.
Essa conjectura de requisitos ocorreu em 25 de março de 1302, na França, de
Felipe IV. Sob o julgo desse monarca, foi promulgado a Ordenança de 1302, primeiro
diploma legal a tratar dos procuradores do rei. Com esse dispositivo legal, o rei
demonstrou, através dos seus atos, a vontade de se estabelecer um Ministério Público
independente da magistratura7.
Após a Revolução Francesa de 1789 conferiu-se uma estrutura mais adequada a
instituição e foram asseguradas novas garantias aos seus membros, assemelhando-a ao
Ministério Público atual. Foi justamente nesse período que surgiu a expressão
“ministério público”, uma vez que a função dos procuradores do rei foi considerada
como verdadeiro ministério em defesa dos interesses públicos8.
Como afirma Hugo Nigro MAZZILLI, embora possam ser buscadas a origem
histórica do Ministério Público no antigo Egito ou nos textos romanos clássicos, o fato
é que o Ministério Público, como hoje é conhecido, teve sua origem nos procuradores
do rei, e o Ministério Público brasileiro, por sua vez, nos procuradores do rei do
Direito lusitano9.
1.2 O Ministério Público no Brasil
Antes de analisar-se a configuração do Ministério Público na ordem
constitucional brasileira é preciso ressaltar que a presença dessa instituição está ligada
umbilicalmente ao Estado Democrático de Direito.
Dessa forma, para que se possa abordar a presença ou a ausência do Ministério
Público nas constituições brasileiras é fundamental a compreensão do processo
6 Idem.
7 RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 126.
8 LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e persecução penal. 3. ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 1-2. 9 MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 35.
10
histórico, político, social e cultural no qual a sociedade da época analisada está imersa.
Na realidade, de acordo com os ares democráticos ou ditatoriais será maior, menor ou
até nenhuma a presença do Ministério Público nas constituições10
.
Isso ocorre por fatores óbvios, em uma sociedade ditatorial o Ministério Público
atuaria de forma contraria aos interesses emanados das forças políticas dominantes,
uma vez que essas têm como pratica usual a redução das liberdades individuais com o
objetivo de se manter o regime de opressão.
Nos dizeres de Paulo RANGEL “ditadura e Ministério Público é um binômio de
combinação incompatível em uma sociedade, pois, quando o Estado adota o regime
ditatorial, repele a presença do Parquet, que seria seu inimigo público n° 1.”11
Torna-se necessário, ainda, fazer uma breve menção às codificações que
estruturaram a ordem normativa brasileira, mais especificamente as Ordenações
Afonsinas (ano de 1446), Manuelinas (ano de 1521) e Filipinas (ano de 1603), uma
vez que nas duas últimas surge à figura do promotor de justiça12
.
É nas Ordenações Manuelinas que se faz, pela primeira vez, menção a figura do
promotor de justiça e se rascunha as delimitações funcionais do Ministério Público.
Posteriormente, com as Ordenações Filipinas fixam-se a função fiscalizatória e
acusatória do parquet13
.
Todavia, no Brasil Colônia, os Procuradores da Coroa – percussores dos
promotores de justiça – eram simples agentes do rei, sem qualquer autonomia ou
garantia que lhes possibilitassem a defesa dos interesses do povo. Somente com a
promulgação da Constituição do Império em 1824 e, mais exatamente, com o advento
do Código de Processo Penal do Império de 1832 foram numeradas as atribuições do
Ministério Público14
.
Destarte, devido ao momento histórico vivido no Brasil Império, não há como
se falar em um Ministério Público dotado de independência funcional. Na realidade, a
Constituição de 1824 faz menção apenas aos procuradores da Coroa e Soberania
Nacional, fato este estritamente coerente, uma vez que a Constituição do Império fora
10
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 128. 11
Ibidem, p. 136. 12
Ibidem, p. 126. 13
Ibidem, p. 127. 14
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit. , p. 7.
11
outorgada pelo monarca, não sendo vontade desse conceder à sociedade da época um
Ministério Público que a defendesse15
.
A Proclamação da República apesar de representar uma ruptura com a ordem
até então vigente, poucas mudanças trouxe para o Ministério Público. A segunda
Constituição brasileira promulgada em 1891 relegou um papel secundário ao
Ministério Público escondendo-o em um capítulo destinado ao Poder Judiciário. Nesse
sentido leciona Paulo RANGEL.
A segunda Constituição brasileira é inspirada no modelo norte-americano, inaugurando a
República Federativa liberal e sendo promulgada em 24 de fevereiro de 1891, porém apenas
tratando, quanto ao Ministério Público, da nomeação do Procurador Geral da República pelo
Presidente da República, dentre ministros do Supremo Tribunal Federal, no título referente ao
Poder Judiciário (art. 58, § 2°), sem tratar de sua institucionalização16
.
Na ordem infraconstitucional o Decreto n° 848, de 1890, da autoria do Ministro
Campos Sales, deu ao Ministério Público os contornos de uma verdadeira Instituição.
Mas só a Constituição de 1934 elevou o Ministério Público ao status de Instituição,
uma vez que reservou um capítulo a parte para o seu tratamento, fixou garantias e
impedimentos destinados aos seus membros e organizou, ainda, os Ministérios
Públicos Militar e Eleitoral17
.
Mas o cenário político mundial e as pressões internas no país não eram
favoráveis à solidificação de um regime democrático e, por conseqüência, a
consolidação de um Ministério Público atuante. A ascensão de Mussolini na Itália, de
Stálin na União Soviética e de Hitler na Alemanha, bem como as constantes greves no
quadro nacional, os movimentos no ocorridos dentro do exército brasileiro e, por fim,
a Aliança Nacional Libertadora liderada por Carlos Prestes foram a justificativa para a
instalação de outro regime ditatorial que ficou conhecido como Estado Novo18
.
Esse regime ditatorial imposto pelo governo de Getúlio Vargas exigiu a
elaboração de uma nova Constituição a qual sustentasse a nova política implantada.
Desta feita, em 1937 foi promulgada a quarta Constituição brasileira na qual, como
15
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 130. 16
Ibidem, p. 131. 17
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit. , p. 7. 18
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 134.
12
não poderia deixar de ser, o Ministério Público teve sua previsão constitucional
reduzida quase à zero. Foram feitas breves menções a Instituição no capítulo destinado
ao Poder Judiciário, sendo abolidas as garantias destinadas aos seus membros19
.
O fim da Segunda Guerra Mundial e o retorno das tropas brasileiras que haviam
com combatido os regimes ditatóriais de Hitler e de Mussolini aceleram o processo de
redemocratização do país o que culminou com a realização de eleições livres. A
reabertura política exige uma nova Constituição e a reestruturação do Ministério
Público quanto defensor das garantias individuais. Paulo Rangel enumera de forma
clara conquistados no âmbito do Ministério Público.
Em 18 de setembro de 1946, surge a quinta Constituição brasileira, dando novos contornos ao
Ministério Público, pois, diante do novo quadro político existente, restabelecendo a
democracia no país, a presença da instituição era indispensável. Os arts. 125 a 128 davam
título próprio à instituição, disciplinando sua organização; a escolha do Procurador Geral da
República; o ingresso na carreira mediante concurso público e garantias de estabilidade a seus
membros; legitimou o Procurador Geral da República a representar pela inconstitucionalidade
de leis e atos normativos e deu competência ao Senado para aprovar a escolha do procurador
geral20
.
Esse clima de relativa segurança jurídica não suportou as sucessivas crises
políticas vividas no país as quais acabaram por justificar o golpe militar de 1964. Esse
novo quadro político instalado pelo regime militar necessitava de uma nova
Constituição a qual veio a ser promulgada em 1967. Diante desses acontecimentos, o
Ministério Público foi condenado a outro retrocesso institucional, retornando a sua
condição de subordinação ao Poder Judiciário21
.
O golpe final dado contra a esperança de uma reabertura política e o
restabelecimento de um regime democrático ocorreu com a edição do Ato Institucional
n° 5 o qual suspendeu de vez a vigência da Constituição de 1967. Selando,
definitivamente, a postura adotada pela linha dura do exercito foi promulgada a
extensa emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, considerada por muitos
doutrinadores como a sétima Constituição brasileira, tão profunda as mudanças
19
MORAES, Alexandre de. Op. cit. , p. 576. 20
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 137-138. 21
Ibidem, p. 140.
13
impostas22
.
Mais uma vez, torna-se oportuno colacionar as palavras lapidares de Paulo
RANGEL.
Na Constituição de 1969 (Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro), o Ministério
Público foi retirado do capítulo referente ao Poder Judiciário e colocado no capítulo do Poder
Executivo sem uma posição constitucional própria que pudesse delinear seu verdadeiro perfil.
Com a Constituição de 1969, o Ministério Público perdeu duas grandes conquistas: a isonomia
de condições de aposentadoria e vencimentos dos magistrados e a perda de sua independência
funcional, já que estava subordinado ao Poder Executivo23
.
A tão almejada reabertura política só ocorreu no final da década de 80 com a
pressão exercida por diversos movimentos sociais dentre os quais o movimento das
Diretas Já. Os anseios da sociedade consubstanciados na figura de um Estado
Democrático de Direito desabrocharam com a promulgação da Constituição Federal de
1988. O salto democrático foi tão grande que até hoje a atual Constituição recebe o
título de Cidadã.
Diante das inúmeras garantias atribuídas constitucionalmente aos indivíduos o
Ministério Público assumiu uma posição de destaque e firmou-se, nesses quase vinte
anos de Constituição, como verdadeira Instituição, permanente e necessária à defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. MAZZILLI define bem o perfil do atual Ministério Público.
É órgão do Estado (não do governo, nem do Poder Executivo), dotado de especiais garantias
para desempenhar funções ativas ou interventivas, em juízo ou fora dele, em defesa dos
interesses da coletividade, com a promoção da ação penal ou civil públicas, a defesa do meio
ambiente, do consumidor, do patrimônio público e social. Em suma, zela por interesses
indisponíveis ou de larga abrangência social24
.
Se não resta cristalizado o exagero de se reconhecer no Ministério Público um
quarto poder, está claro a intenção do legislador constituinte em conferir à Instituição a
função de fiscalizar as atividades dos três poderes. Isso se torna nítido no exato
momento em que o legislador constituinte consagra um capítulo a parte para
disciplinar o Ministério Público – Das funções essenciais à justiça – não o inserindo
22
Ibidem, p. 140-143. 23
Ibidem, p. 143. 24
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. Op. cit. , p. 33.
14
nos tradicionais poderes de Estado25
.
Constantes e árduas foram as lutas sociais e da própria Instituição para que o
Ministério Público assumisse sua configuração atual. Mas essa luta está longe de
acabar, ao contrário, ela se renova todo momento, sempre que nos deparamos com
novos interesses sociais e individuais indisponíveis que por algum motivo estão sendo
desrespeitados.
Deveras, não há como se conceber um Estado Democrático de Direito sem o
seu maior guardião, bem como não há um Estado totalitário dotado de um Ministério
Público forte e atuante, pois, nesse caso, ou a Instituição sede aos interesses dos que
controlam o poder ou é calada pela voz do autoritarismo.
1.3 Visão sistêmica: o Ministério Público na Constituição de 1988
Embora a Instituição do Ministério Público tenha sido objetivo de previsão
constitucional nos textos que antecederam a Constituição Federal de 1988, conforme
alhures mencionado, até aquele momento histórico o Parquet não havia encontrado
terreno fértil para consolidar suas funções institucionais, sua posição institucional, bem
como suas garantias e prerrogativas.
Mas o atual texto constitucional que cuida do Ministério Público não foi
produto de geração espontânea, ao contrário, resultou de um árduo esforço que
mobilizou, talvez, pela primeira vez, a Instituição como um todo. Esse trabalho de
síntese, que antecedeu ao texto promulgado na Constituição de 1988, tem um
panorama bem delineado.
Com as eleições presidenciais indiretas de 1984 e a consagração de Tancredo
Neves como presidente da República colocou-se um ponto final no ciclo de governos
militares, representantes da ditadura militar no Brasil.
O povo vivenciava um momento de euforia que - mesmo abalado com a morte
do recém-eleito Presidente da República – recebeu nova injeção de ânimo com a
nomeação da Comissão Constituinte, conhecida como Comissão de Notáveis. A
25
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit. , p. 9.
15
função desta Comissão era elaborar um anteprojeto de texto constitucional que
refletisse o anseio democrático do povo e preparasse o país para uma reabertura
democrática.
Diversos setores da sociedade se reuniram para apresentar suas respectivas
sugestões ao pretenso anteprojeto constituinte. O Ministério Público, por sua vez não
ficou alheio a esse movimento. Algumas mobilizações da Instituição contribuíram
efetivamente com a redação definitiva do atual texto constitucional e merecem ser
mencionadas.
Em junho de 1985 realizou-se, em São Paulo, o VI Congresso Nacional do
Ministério cujo escopo era elaborar propostas a serem encaminhadas aos trabalhos da
Comissão Constituinte no que se referia a Instituição do Ministério Público. Logo em
seguida ao VI Congresso Nacional do Ministério Público, em outubro de 1985, a
Conamp enviou inúmeros questionários aos membros do Ministério Público com o
objetivo de receber sugestões que poderiam enriquecer os trabalhos já desenvolvidos.
Como resultado da pesquisa ficou claro o desejo dos membros do Ministério Público
de ver consagrado no texto constitucional um capítulo a parte que trata-se da
Instituição e fixasse suas principais garantias e funções institucionais26
.
Como movimento paralelo, no início de 1986, o então Procurador-Geral da
República, José Paulo Sepúlveda Pertence, membro da Comissão de Estudos
Constitucionais, elaborou sua proposta de texto referente ao Ministério Público,
acolhendo algumas sugestões feita pela Conamp27
.
Todavia, a Conamp, com pretensões mais audaciosas, desejava entregar um
projeto que harmonizasse todos os trabalhos realizados até então. Na expectativa de
obter uma proposta nacional que deveria ser entregue a Comissão Constituinte, a
Conamp agendou o Primeiro Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e
Presidentes de Associações de Ministério Público o qual se realizou entre os dias 20 a
22 de junho de 1986, na Cidade de Curitiba, e teve como resultado a elaboração da
26
MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público: análise do Ministério Público
na Constituição, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, na Lei Orgânica do Ministério
Público da União e na Lei Orgânica do Ministério Público paulista. 5. ed. rev., ampl. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2001. p. 115-116. 27
Ibidem, p. 117.
16
Carta de Curitiba28
.
Segundo MAZZILLI, a importância da Carta de Curitiba está no fato de ser o
primeiro texto de consenso do Ministério Público nacional, bem como na circunstância
de ter inspirado diversos dispositivos da Constituição29
.
A Constituição Federal de 1988 acabou por inserir o Ministério Público no
Capítulo IV “Das Funções Essenciais à Justiça” que integra o Título IV “Da
Organização dos Poderes” de forma a atender as sugestões propostas na Carta de
Curitiba. Essa disposição espacial do Ministério Público no texto constitucional deixa
claro que a Instituição não integra nenhum dos três Poderes. Outra não é a lição de
Emerson GARCIA “os alicerces da Instituição, não obstante dispostos no mesmo
Título dos demais Poderes, o foram em Capítulo distinto, o que determinou por afastar
a falsa concepção de que o Ministério Público integra o Poder no qual sua disciplina
fora encartada” 30
.
Destarte, isso não confere ao Ministério Público o status de um quarto Poder.
Embora exista respeitável posicionamento doutrinário que defende a elevação do
Ministério Pública a categoria de um quarto Poder, essa conclusão não pode ser
retirada do texto constitucional. A Constituição, ao estabelecer no seu artigo 2° que
são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo
e o Judiciário, não consagrou o Ministério Público como um de seus Poderes.
Ao tratar da estrutura administrativa Hely Lopes MEIRELLES estabelece uma
classificação dos órgãos públicos na qual separa os órgãos independentes, autônomos,
superiores e subalternos. Os órgãos independentes são conceituados pelo autor como
aqueles originários da Constituição e representativos dos Poderes de Estado –
Legislativo, Executivo e Judiciário – colocados no ápice da pirâmide governamental,
sem qualquer subordinação hierárquica ou funcional, e só sujeitos aos controles
constitucionais de um Poder pelo outro31
.
Heley Lopes MEIRELLES acaba incluindo nesta classe de órgãos
28
Ibidem, p. 118-119. 29
Ibidem, p. 130. 30
GARCIA, Emerson. Ministério Público: Organização, atribuições e Regime Jurídico. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 36. 31
MEIRELLES, Heley Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. São Paulo. Malheiros,
2004. p.70.
17
independentes o Ministério Público, e os Tribunais de Contas da União, dos Estados e
dos Municípios, os quais, embora não sejam órgãos representativos de nenhum dos
Poderes, são funcionalmente independentes e seus membros verdadeiros agentes
políticos, inconfundíveis com os funcionários das respectivas instituições32
.
O mais relevante, contudo, não é consagrar o Ministério Público como um
quarto Poder, mas sim compreender sua previsão constitucional como verdadeira
clausula pétrea. Ao levar-se em conta as atividades desenvolvidas pelo Ministério
Público, principalmente, no que tange a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a sua existência pode
se considerada como inerente ao rol dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º,
IV, da CF)33
.
Tendo a Instituição o dever de zelar pelo bem-estar da coletividade e protege-la
dos arbítrios dos demais Poderes, constitui um direito de toda a sociedade a
preservação de um Ministério Público atuante e independente, não subordinado a
nenhum subordinado dos poderes e imparcial, o suficiente, para garantir uma atuação
justa.
Deveras, enquanto Instituição permanente e essencial a função jurisdicional do
Estado, qualquer tentativa do poder constituinte derivado reformador de,
indiretamente, anular a existência do Ministério Público, seja reduzindo as garantias e
prerrogativas dos seus membros, seja suprimindo sua autonomia financeira, será um
verdadeira atentado aos direitos e garantias individuais. É um direito de todo cidadão a
existência de um Ministério Público forte e atuante34
.
Mais do que isso, conforme ensina MAZZILLI, há uma estreita ligação entre
democracia e um Ministério Público forte e independente. Todavia, a existência de um
Ministério Público forte não é sinônimo de um Estado Democrático, caso àquela
Instituição não tenha independência e esteja subordinada aos interesses de um governo
totalitário.
Embora a história traga exemplos de Ministério Público forte (mas não independente) em
32
Ibidem, p. 71. 33
GARCIA, Emerson. Op. cit. , p. 41 34
Ibidem, p. 42.
18
regimes autoritários, na verdade, um Ministério Público realmente votado à defesa dos
interesses da coletividade (e não do governo ou dos governantes) somente poderá vicejar e
produzir furtos para esta sob regime democrático, sob pena de prestar a servir à exceção e ao
arbítrio, não a coletividade35
.
Entretanto, para tornar concreto o mandamento constitucional de que o
Ministério Público está a serviço da defesa do regime democrático a Constituição
Federal teve que estabelecer alguns princípios institucionais – unidade, indivisibilidade
e autonomia, artigo 127, § 1°, da Constituição Federal – bem como algumas garantias
e prerrogativas para seus membros – vitaliceidade, inamovibilidade e irredutibilidade
de subsídios, artigo 128, § 5º, incisos I, “a”, “b” e “c”, da Constituição Federal – tudo
para resguardar uma atuação imparcial e independente.
Com relação aos princípios institucionais a unidade significa que os membros
do Ministério Público integram um único órgão e estão sob a direção de um único
chefe. Mas, ao contrário do que pode parecer, essa unidade mencionada no texto
constitucional só existe dentro de cada Ministério Público, não há unidade alguma
entre o Ministério Público Federal e os Ministérios Públicos dos Estados, bem como
não há unidade entre Ministérios Públicos de Estados diferentes ou entre os ramos do
Ministério Público da União36
.
A indivisibilidade significa que os membros do Ministério Público podem ser
substituídos uns pelos outros, desde que respeitada os requisitos estabelecidos em lei.
Isso quer dizer que o membro do Ministério Público que instaurou um Inquérito Civil
não será, necessariamente, o mesmo que poderá propor a respectiva Ação Civil
Pública, caso aquele não esteja mais na comarca em que o Inquérito foi instaurado37
.
Já a autonomia funcional, talvez o princípio institucional mais importante,
impede que seja imposto qualquer procedimento funcional a um membro do
Ministério Público por seu superior hierárquico. Ao contrário do Parquet francês, a
hierarquia no Ministério Público brasileiro só pode ser exercida no seu aspecto
meramente administrativo, o que impõe a obediência às decisões administrativas
tomadas pelos órgãos da administração superior. Na esfera de atuação funcional, os
35
MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público , p. 149. 36
Ibidem, p. 155-156. 37
Idem.
19
órgãos superiores só podem fazer recomendações sem caráter normativo ou
vinculativo38
.
Com relação às garantias dos membros do Ministério Público, a Constituição
Federa estabelece no artigo 128, § 5°, I, “a”, que se adquire vitaliceidade após a
transcorrência do período probatório, ou seja, após dois anos de efetivo exercício do
cargo, tendo sido admitido na carreira, mediante aprovação em concurso de provas e
títulos.
A vitaliciedade assegura que a perda do cargo só poderá ocorrer por meio de
sentença judicial transitada em julgado, sendo impossível a produção antecipada de
efeitos, salvo o caso de afastamento cautelar dos membros do Ministério Público de
suas funções, fato este que não lhe suprime seus direitos, garantias e prerrogativas
inerentes ao cargo39
.
A inamovibilidade, prevista no artigo 128, § 5º, I, “b”, da Constituição Federal,
assegura que o membro do Ministério Público não poderá ser removido ou promovido,
unilateralmente, sem a sua autorização ou solicitação, salvo por motivo de interesse
público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público
(Conselho Superior do Ministério Público), por voto da maioria absoluta de seus
membros.
Esta garantia deve compreender não apenas o seu aspecto meramente físico, ou
seja, a simples vinculação do agente a determinado órgão. Deve englobar também as
características intrínsecas do cargo, valer dizer, as atribuições inerentes ao cargo não
podem ser suprimidas sob pena de esvaziamento do princípio da inamovibilidade40
.
Por fim, o artigo 128, § 5°, I, “c”, da Constituição Federal garante a
irredutibilidade nominal dos subsídios dos membros do Ministério Público, os quais
são fixados com parâmetro no artigo 39, § 4°, da CF. Essa garantia visa evitar que os
membros sofram qualquer espécie de intimidação ou mesmo retaliação, mediante
perdas financeiras, sempre que contrariarem os interesses dos detentores do poder41
.
Todo este desenvolvimento histórico, bem como a atual configuração
38
Ibidem, p. 156. 39
GARCIA, Emerson. Op. cit. , p. 390. 40
Idem. 41
Ibidem, p. 390-391.
20
constitucional do Ministério Público, fruto de árduo trabalha, permitem que a
Instituição ocupe papel cada vez significativo na sociedade brasileira. Nesse vinte anos
de Constituição cidadã o Ministério Público se solidificou como defensor do regime
democrático, da ordem jurídica e dos interesses difusos, coletivos e individuais
indisponíveis.
1.4 O Ministério Público no direito comparado
Inicialmente, deve-se alertar que o objetivo deste tópico não é analisar de forma
exaustiva a Instituição do Ministério Público nos países que serão aqui mencionados.
A intenção é estabelecer uma analisa, um tanto quanto sumária, da sua atuação
enquanto órgão responsável pela investigação criminal e titularidade da ação penal.
Pode-se adiantar que no direito alienígena há uma forte tendência de se atribuir
ao Ministério Público à prerrogativa de conduzir investigações criminais de forma
direita, função essa que, via de regra, é realizada com o auxílio da Polícia Judiciária.
Na Espanha o Ministério Público recebe o nome de Ministério Fiscal e encontra
assento legal na Constituição de 1978. Embora haja algumas opiniões divergentes, o
Ministério Fiscal é parte integrante do Poder Judiciário e exerce a função de custos
legis42
.
O Código de Processo Penal Espanhol de 1882 estabelece a obrigatoriedade da
ação penal e divide o processo penal em três fases distintas. A primeira delas, a fase
sumária, e conduzida por um juiz instrutor e tem como objetivo preparar o juízo oral,
para tanto, averigua-se todas as circunstâncias que possam influenciar na classificação
do delito e da culpabilidade do investigado. Na fase intermediária realiza-se um juízo
sobre os indícios colhidos durante a fase sumária, prosseguindo-se ou não para a fase
derradeira. Na terceira e última fase, a fase oral, é que se vai realizar a instauração do
processo propriamente dito e a fixação do contraditório43
.
A investigação dos delitos na Espanha fica a cargo da Polícia Judiciária que por
42
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 149. 43
Ibidem, p.150-151.
21
sua vez é auxiliar dos juízes e do Ministério Fiscal. Todavia, há uma tendência recente
na Espanha de se afastar os juízes da persecução penal e de se atribuir ao Ministério
Fiscal tal função44
.
Há, entretanto, apesar da tendência legislativa, uma séria dificuldade de se
implantar na Espanha a figura do promotor investigador haja vista a própria estrutura
do Ministério Fiscal espanhol. A instituição, na Espanha, não goza de independência
funcional, além do que está submetida a uma rígida hierarquia interna dinamizado por
um sistema de instruções vinculante – circulares de la fiscalía45
.
Já Ministério Público italiano tem uma fisionomia particular que favorece o
sistema do promotor investigador. Neste país, de um ponto de vista estrutural, a
magistratura está unificada e os magistrados distinguem-se entre si pelas funções que
cada uma assume (função julgadora e função postulatória ou investigatória). Assim, ao
Ministério Público é atribuído o gozo de todas as garantias orgânicas estabelecidas
para a judicatura46
.
A Instituição também possui previsão no artigo 107 da Constituição Italiana,
sendo a ação penal vinculada ao princípio da obrigatoriedade. O Código de Processo
Penal tedesco, por sua vez, adotou um sistema processual acusatória em que, em uma
primeira fase – investigações preliminares – o Ministério Público e a Polícia Judiciária
buscam indícios de autoria e materialidade para se instaurar o juízo oral, isso tudo sob
o controle de um juiz das investigações preliminares47
.
A fase de investigação preliminar na Itália, chamada de indagi preliminari,
sofreu forte influência do modelo adotado pela Alemanha em 1974. O Ministério
Público assumiu quase que por completo as funções exercidas na fase de investigação
preliminar, podendo, interrogar suspeitos, receber declarações de testemunhas,
determinar a realização de perícias, efetuar diligências de identificação de pessoas,
ordenar acareações, buscas pessoais e inclusive determinar a quebra de sigilo bancário,
mediante prévia autorização do Procuratore de la República ou do juiz competente48
.
44
Ibidem, p. 152. 45
LOPES JÚNIOR. Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo. 2. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 221. 46
Ibidem, p. 239. 47
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 153-154. 48
LOPES JÚNIOR. Aury. Op. cit., p. 240
22
A direção das investigações preliminares ficou realmente a cargo do Ministério
Público, sendo tal função delegada materialmente à Polícia Judiciária cujo papel é
assegurar as fontes de prova e identificar as pessoas investigadas. Ao Poder Judiciário
é relegada a tarefa de resguardas os direitos fundamentais dos investigados e atuar nas
medidas de caráter cautelar49
.
Na França, apesar da figura do juiz de instrução ser muito forte, a partir da
década de 90, o Código de Processo Penal passou a prever duas espécies de instrução
preliminar: a instruction préparatoire e a enquête préliminaire. A primeira é uma
autêntica instrução preliminar judicial, a cargo de um juiz instrutor, sendo obrigatória
para os delitos de maior gravidade e facultativa para os delitos de menor gravidade. Já
a segunda, consiste em um conjunto de averiguações realizadas pela polícia judiciária,
orientada pelo Ministério Público – procureur de la Republique - e está reservada aos
delitos de menor gravidade50
.
Importante destacar que o Ministério Público francês é considerado uma
magistratura especial. Seus membros, após cursar a Escola da Magistratura, podem
optar por serem juízes ou promotores51
. Assim, há os magistrats du parquet e os
magistrats du siège, segundo pertençam à carreira do Ministério Público ou a carreira
judicial.
Haja vista que esses dois órgãos pertencem ao Poder Judiciário pode-se afirmar
que a natureza jurídica das duas espécies de instrução preliminar será de um
procedimento judicial pré-processual. Não obstante, o que mais importa é a separação
entre a autoridade de investiga, instrui e julga no processo penal francês52
.
Portugal também atribuiu status constitucional ao Ministério Público em 1976.
Neste país as investigações criminais são dirigidas pelo Ministério Público o qual é
assistido pela Polícia Judiciária que, por sua vez, está sob sua orientação e
dependência funcional. A Instituição pode ainda realizar diretamente as investigações
criminais. Nesse sentido ensina Jorge de FIGUEIREDO DIAS.
49
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 154-157. 50
LOPES JÚNIOR. Aury. Op. cit., p. 234-235. 51
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 3. 52
LOPES JÚNIOR. Aury. Op. cit., p. 236.
23
Como órgão encarregado de promover a perseguição das infrações, compete ao MP, antes de
tudo, proceder à sua completa investigação e ao seu possível esclarecimento. Para lhe permitir
a plena realização desta finalidade atribui-lhe a lei (art. 14 do DL n. º 35.007) a direção da
instrução preparatória, que o MP exercerá com observância das máximas que regulam a sua
actividade, nomeadamente o principio da legalidade e o dever de objetividade 53
.
Para dar efetividade à investigação criminal realizada de forma direita pelo
Ministério Público, Portugal criou um Departamento de Investigação Criminal
presidido pela Instituição, sem prejuízo das atividades realizadas pela Polícia
Judiciária54
.
De acordo com Jorge de FIGUEIREDO DIAS, o Ministério Público, em
Portugal, assume, no processo penal, uma posição jurídica de administração da justiça,
que não se confunde nem com a função executiva comum, nem com a função judicial.
O autor entende que o conceito de administração da justiça abrange toda atividade,
estatal ou não, que pela sua estreita relação com o direito está subordina aos valores da
verdade e da justiça e cujo fim precípuo é a realização daquele no caso concreto;
embora apenas uma parcela dessa atividade possa ser considera função judicial55
.
Todavia, embora possa empreender investigações criminais direitas, os
membros do Ministério Público português não gozam de algumas garantias
asseguradas aos membros do Ministério Público no Brasil, dentre as quais pode-se
citar a ausência de independência funcional.
Devendo o Ministério Público português adaptar suas funções processuais
penais às exigências impostas pela luta contra a criminalidade em diferentes contextos
se aceita que seus membros possam receber, dentro de certos limites, ordens de serviço
de suas instâncias superiores, bem como se admite que a Instituição esteja sujeita ao
controle externo do Ministro da Justiça, órgão do Executivo56
.
Na Alemanha, a partir de 1974, ficou estabelecido que as investigações
preliminares – ermittlungsverfahren e vorverfahren - ficariam a cargo do Ministério
Público, devendo o promotor averiguar não só as circunstâncias capazes de comprovar
a responsabilidade penal, como também aquelas capazes de exculpar o sujeito passivo
53
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 395. 54
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 167. 55
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit. , p. 367-368. 56
Ibidem, p. 372-375.
24
sobre o qual recaem as investigações57
.
A posição jurídica do Ministério Público dentro da estrutura política do Estado
alemão é alvo de muitas discussões. A Instituição é enquadrada como uma autoridade
da administração da justiça, não pertencente ao Poder Judiciário – uma vez que não
exerce atividade judiciante – nem pertencente ao Poder Executivo – haja vista que não
se trata de uma autoridade puramente administrativa. Apesar dessas características, a
investigação preliminar, a cargo do Ministério Público, pode ser classificada como um
procedimento administrativo pré-processual58
.
Na Inglaterra não há um Ministério Público como conhecemos. Devido ao
sistema do common law, o Attorney General – que faz às vezes do promotor de justiça
– é escolhido dentre advogados de notório saber jurídico pelo Primeiro Ministro e
nomeado pelo Parlamento Inglês59
. É a polícia inglesa que inicia, na maior parte das
vezes, a ação penal.
A Argentina atribui previsão constitucional para o Ministério Público em 1853,
mas o papel por ele assumido na investigação dos delitos é bem reduzido. As
investigações criminais são, na realidade, conduzidas por um juiz instrutor, restando ao
Ministério Público e a Polícia Judiciária o dever de auxiliá-lo. Findas as investigações
conduzidas pelo juiz instrutor o Ministério Público pode apenas requer a instauração
da ação penal ou a realização de novas diligências60
.
Talvez, tão importante quanto a possibilidade do Ministério Público
empreender investigações criminais de forma direta é assegurar uma separação clara
entre as atividades jurisdicionais e de persecução penal. Nos países em que o Poder
Judiciário controla a fase preliminar de investigação e ao final do processo concede a
tutela penal há um sério risco de se implantar um sistema penal inquisitivo.
Nos ordenamentos jurídicos citados pode-se notar uma tendência doutrinária de
se resguardar a atividade persecutória ao Ministério Público e a Polícia Judiciária, bem
como esforços no sentido de se atribuir ao parquet à possibilidade de instaurar
procedimentos investigativos de forma direita.
57
LOPES JÚNIOR. Aury. Op. cit., p. 245. 58
Ibidem, p. 246-247. 59
LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit. , p. 3. 60
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 169
25
CAPÍTULO II - FUNÇÕES INSTITUCIONAIS PENAIS DO MINISTÉRIO
PÚBLICO CORRELATAS À INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA
2.1 O Princípio da obrigatoriedade e a privatividade da ação penal pública
Diante das funções institucionais atribuídas pela Constituição Federal ao
Ministério Público pode-se perguntar qual seria o verdadeiro sentido do princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública. O Ministério Público teria alguma
discricionariedade ou disponibilidade na sua atuação? Poderia, por razões de
oportunidade e conveniência, deixar de agir nas hipóteses em que o legislador previu
sua atuação61
?
Excluindo algumas exceções, como por exemplo, a possibilidade de se propor
transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo – apontada por alguns
doutrinadores como atenuação do princípio da obrigatoriedade da ação penal – o
Ministério Público está obrigado a atuar sempre que se deparar com uma violação da
lei a qual está obrigado a tutelar. Nesse sentido, ensina Hugo Nigro MAZZILLI.
Assim, se o Ministério Público identifica a existência da lesão, em caso no qual a lei lhe
imponha a ação, não lhe é possível alegar conveniência em não propor ou em não prosseguir
na causa. Não é o Ministério Público livre para valorar se deve agir, depois de identificada a
hipótese legal que lhe torne exigível a intervenção. Entretanto, quando decide sobre a
propositura da ação, seja a ação penal, seja a ação civil, é livre para identificar se ocorre a
hipótese que lhe torne exigível a sua iniciativa62.
Ademais, como afirma FIGUEIREDO DIAS, a atividade do Ministério Público
no processo penal não pode ser compreendida como puramente administrativa, quer
porque ela se submete ao princípio estrito da legalidade, quer porque, se desenvolva,
durante todo o processo, vinculada não a considerações de oportunidade e
discricionariedade, mas sim subordinada à colaboração em um processo judicial63
.
Em um sistema penal acusatório como o nosso não há como se infligir uma
sanção penal sem que antes tenha se oportunizado ao réu o devido processo penal, com
61
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. Op. cit., p. 230. 62
Ibidem, p. 231. 63
DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 364-365.
26
todas suas garantias e formalidades. A persecução criminal in judicio depende de um
requisito formal que é a propositura da ação penal, daí a obrigatoriedade de seu
oferecimento sempre que houver a violação de um tipo penal64
.
Nesses moldes, a obrigatoriedade da ação penal pode ser encarada como um
verdadeiro poder-dever, um munus público, concedido pela sociedade ao Ministério
Público para que esse exija do Estado-juiz a devida prestação da tutela penal65
.
Se o Estado retirou das mãos do particular o poder de impor a sua vontade para
que fosse possível a vida em sociedade, não há como o mesmo Estado furtar-se ao
dever de promover o devido processo sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a um
bem juridicamente tutelado.
O que não pode ser confundido é a obrigatoriedade da ação penal com a
obrigatoriedade da propositura da ação penal. Para que a ação penal seja proposta o
Ministério Público deve contar com um mínimo de prova, deve ter a sua disposição
indícios suficientes de autoria e materialidade que viabilizem o oferecimento de uma
denúncia. Diante de um fato típico, antijurídico e culpável o Ministério Público não
tem discricionariedade para propor a devida ação penal66
.
O sistema acusatório, adotado por nós, exige a separação entre órgão acusador e
órgão jurisdicional. Não existe a possibilidade de se concentrar no mesmo indivíduo a
função de acusar e de julgar. Por isso, a necessidade de conceder a uma Instituição
imparcial e independente a titularidade da ação penal. No nosso sistema tal
legitimação foi conferida ao Ministério Público.
Com a promulgação da Constituição Federal 1988 e a adoção clara do sistema
processual acusatório não há como se conceber hipóteses em que o juiz ou a
autoridade policial possam dar início a ação penal de ofício. Completamente
teratológica é a visão de um sistema processual acusatório em que o órgão julgador é o
incumbido de exercer a função de órgão acusador, assim como não há espaço para a
figura do promotor ad hoc nessas condições 67
.
A necessidade de se garantir um processo penal justo faz com o Estado crie um
64
RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 174. 65
Idem. 66
Ibidem, p. 174-175. 67
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. Op. cit. , p. 229.
27
órgão isento de qualquer outro sentimento que não o de justiça, independente
funcionalmente e apartado da função jurisdicional. Afinal, o Direito Penal e o Processo
Penal modernos não podem ser encarados como instrumentos de punição, mas sim de
garantia do cidadão68
.
Desta feita, a outorga da titularidade da ação penal pública ao Ministério
Público acaba por prestigiar o sistema acusatório e, concomitantemente, preserva a
imparcialidade do órgão jurisdicional, na exata medida em que afasta os
procedimentos penais de officio e a possibilidade de que o mesmo órgão de acusação
profira a decisão final no processo69
.
2.2 Atribuição de expedir notificações nos procedimentos administrativos
O artigo 129, inciso VI, da Constituição Federal de 1988, atribuiu, dentro
outras, ao Ministério Público a função institucional de expedir notificações nos
procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e
documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva.
Hugo Nigro MAZZILLI faz uma pequena crítica à redação do dispositivo legal
e afirma que este é um instrumento de atuação do Ministério Público e não uma função
institucional como mencionado no texto constitucional70
.
A doutrina contrária a possibilidade do Ministério Público realizar
investigações criminais de forma direta sustenta que a prerrogativa da Instituição
expedir notificações restringe apenas aos procedimentos correlacionados à ação civil
pública, ou seja, àqueles realizados no âmbito do inquérito civil.
Destarte, como melhor ficará explicado adiante, referidas notificações podem
ser realizadas tanto na esfera civil quanto penal. Quando o inciso VI, do artigo 129, da
Constituição Federal refere-se à “procedimentos administrativos de sua competência”
aborda, com referida expressão, todos aqueles procedimentos inerentes às funções
68
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 173. 69
GARCIA, Emerson. Op. cit. , p. 223. 70
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. Op. cit., p. 127.
28
Institucionais do Parquet71
. Se outra fosse à intenção, bastaria à menção feita ao
inquérito civil e a ação civil pública feita no inciso III do mesmo dispositivo legal.
Conforme afirma Paulo RANGEL “a restrição do alcance da norma fere os
princípios comezinhos de hermenêutica jurídica, pois as normas que conferem direitos
não podem ter interpretação restritiva” 72
.
Ademais, importante relembrar que os incisos do artigo 129 da Constituição
Federal guardam relação de subordinação apenas com este e não entre si, com a
relação hierárquica estabelecida entre um artigo e seu respectivo parágrafo. Assim, não
contém relevância alguma o fato do inciso referente ao inquérito civil e a ação civil
pública preceder o inciso VI que menciona a possibilidade do Ministério Público
expedir notificações nos procedimentos de sua competência.
Está disposição espacial dos incisos não quer dizer que o inciso VI estaria
subordinado ao conteúdo do inciso III do artigo 129 e, assim, restringindo a
possibilidade do Ministério Público expedir notificações apenas nos inquéritos civis e
procedimentos correlatos à ação civil pública.
MAZZILLI ao referir-se à Lei Orgânica do Ministério Público da União e a Lei
Orgânica Nacional do Ministério Público relembra ainda que na hipótese do Ministério
Público expedir essas notificações o não comparecimento do intimado pode ter como
conseqüência sua condução coercitiva; que a requisição de informações, exame e
perícias pode ser feita a autoridades federais, estaduais e municipais, ou aos
respectivos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional; bem
como tais requisições podem ser dirigidas às entidades privadas73
.
Deve-se ter em mente, todavia, que a possibilidade de se determinar a condução
coercitiva deve ficar restritas àqueles casos em que o intimado, deliberadamente,
descumprir a notificação para comparecimento, não àqueles que foram surpreendidos
por uma notificação com prazo exíguo para apresentação e já estejam vinculados a
outros compromissos impostergáveis74
.
71
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 184. 72
Idem. 73
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. Op. cit., p. 128. 74
GARCIA, Emerson. Op. cit. , p. 295.
29
2.3 Atribuição de requisitar diligências investigatórias e de instaurar inquéritos
policiais
A Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso VIII, autoriza, ainda, o
Ministério Público a requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito
policial, desde que indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações
processuais.
Clássica é a diferenciação doutrinária feita entre requisição e requerimento.
Segunda a doutrina o conceito de requisição traz implícito a idéia de ordem, de
determinação legal que não pode deixar de ser atendida pelo órgão ou entidade
requisitada. Já o termo requerimento pressupõe a idéia de solicitação que pode ou não
ser atendida.
A partir desta diferença semântica e de outros postulados de hermenêutica
jurídica, os doutrinadores que sustentam a possibilidade do Ministério Público realizar
investigações criminais de forma afirmam que a prerrogativa de requisitar a realização
de diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial traz implícita a
faculdade de realizá-las de forma direita, pois, que pode o mais – que é o requisitar –
pode o menos – que seria realizar pessoalmente.
De forma clara, Paulo RANGEL sustenta este postulado, no sentido de que o
Ministério Público pode realizar investigações criminais de forma direita já que está
autorizado a requisitar a instauração de inquéritos policiais.
Seria um contra sensu, pelo menos assim nos parece, dar-lhes a legitimação para exigir que se
faça, mas negar-lhe o direito de fazê-lo, pessoalmente. Em outras palavras, é como se
disséssemos: “pode o Ministério Público fazer o mais, porém lhe é negado fazer o menos”.
Violaríamos as regras comezinhas de hermenêutica jurídica se assim pensássemos75
.
Um exemplo prático pode reforçar ainda mais essa interpretação. Imagine uma
situação hipotética em que um membro do Ministério Público, mediante informações
prestadas por um particular, tomasse conhecimentos de condutas criminosas praticadas
por policiais civis que compõe o auto-escalão da Policia Judiciária.
75
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 190.
30
Nesta situação pouco, ou nenhum efeito teria a requisição feita pelo membro do
Ministério Público que tomou conhecimento do fato à autoridade policial responsável
pela apuração da conduta criminosa, sobretudo se essa mesma autoridade estivesse
envolvida na praticais de tais condutas.
O corporativismo, que não é de forma alguma privilégio da Polícia Judiciária,
impediria a realização de investigações eficientes e isentas de posturas tendenciosas.
Deixar, nesses casos, o monopólio da investigação criminal com a Polícia Judiciária é
tornar inócua a função institucional atribuída ao Ministério Público quanto a
titularidade privativa da ação penal e, mais do que isso, seria uma afronta ao interesse
social na repressão ao crime.
31
III – SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
3.1 Sistema inquisitivo
O sistema inquisitivo teve sua origem no Império Romano, durante a cognitio
extra ordinem, como um procedimento destinado a apuração de uma classe especial de
delitos. Enquanto a persecução dos delitos comuns era relegada aos particulares, os
crimes consistentes em idéias políticas que questionassem os fundamentos do Império
eram levados ao conhecimento do imperador que concentrava o poder de julgá-los76
.
Cronologicamente o sistema inquisitivo sucede o sistema acusatório privado -
nesse, a persecução criminal, bem com a iniciativa da ação penal eram deixadas a
cargo dos particulares. Entretanto, o sistema acusatório privado era incompatível com
os objetos da Igreja que necessitava de um procedimento repressor capaz de garantir o
poder que vinha conquistando sem qualquer questionamento.
Assim, a justiça eclesiástica apropria-se e aperfeiçoa as praticas do processo
romano imperial com o fim de punir enérgica e eficazmente o pecado sem se importar
com a sorte do presumido pecador. Desta maneira, assim como o crimen majestatis
deu vida em Roma ao procedimento da cognitio extra ordinem, o crimen majestatis
divina determinou que a inquisição se convertesse em instrumento de dominação
política77
.
Destarte, o sistema inquisitivo só vai ganhar força em meados do século XI, a
partir das reformas implantadas pelo Papa Gregório VII. Nesse momento histórico, a
centralização, na figura do Papa, de todos os assuntos da Igreja, a sua organização
institucional e administrativa, bem como a atualização e codificação do direito
canônico, serviram como terreno fértil para instalação de um modelo de persecução
tão eficaz e repressor quanto o sistema inquisitivo78
.
No início, a repressão imposta aos indivíduos de uma comunidade surgiu com a
76
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de investigação criminal. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2002, p. 3. 77
Ibidem, p. 30. 78
Ibidem, p. 4-5.
32
incursão dos “Obispos” às paróquias que componham a sua diocese. Em incursões
nessas comunidades, os Obispos tinha a tarefa de se informar sobre as práticas
religiosas e o comportamento moral dos indivíduos que a compunham e tinham o
poder der reunir algumas pessoas que sobre juramento deviam delatar qualquer tipo de
desordem79
. Na realidade, a “desordem” perseguida pela Igreja era aquela que
representasse qualquer forma de questionamento ao seu poder.
Nas palavras de Alfredo Vélez MARICONDE, a jurisdição eclesiástica aparece
primeiro como um instrumento de defesa dos interesses da Igreja e de subtrair dos
clérigos a jurisdição secular. Depois se torna um atributo de influência e dominação,
para menoscabo da própria autoridade real, em virtude de uma paulatina multiplicação
dos atos que se consideravam lesivos de tais interesses. O fundamento religioso que a
sustentou no começo fortificou-se com o político. É certo que, em um primeiro
momento, o próprio monarca incentivou o poder da Igreja com a esperança de que as
armas espirituais do Papa se sujeitassem aos nobres e favorecessem, assim, a sua
estabilidade; mas tarde se observa, diante da desmedida ingerência daqueles, uma
verdadeira luta entre os três poderes que disputavam a preeminência: real, senhoril e
eclesiástica80
.
Em meados do século XII, o poder eclesiástico conquista uma posição tão
privilegiada que se instaura a Justiça Eclesiástica. Num primeiro instante, a Justiça
Eclesiástica é criada para defender a fé e garantir os dogmas da Igreja, julgando com
exclusividade os delitos eclesiásticos. Ao longo dos séculos XIII, XIV e XV os
poderes da Igreja tomam dimensões tão grandes que a Justiça Eclesiástica estende seu
julgo aos demais delitos81
.
No processo inquisitivo os direitos e garantias dos acusados eram postos de
lado. A Igreja não estava preocupa em apurar com imparcialidade dos fatos, a única
preocupação era instaurar um regime de terror, suficientemente forte, para garantir a
manutenção do poder clerical através da manipulação da fé, nos moldes impostos pelo
alto clero. O processo inquisitivo, da maneira pela qual foi forjado, tornou-se muito
79
Ibidem, p. 29. 80
VÉLEZ MARICONDE, Alfredo. Scritti Giuridici in Memoria di Piero Calamandrei, apud
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de investigação criminal, p. 5. 81
Ibidem, p. 5.
33
mais um sistema de justificação do poder eclesiástico do que um instrumento de
garantia do acusado82
. Neste sentido, bem ilustrativas as palavras de MENDRONI.
O verdadeiro objetivo da batalha era a consciência do indivíduo, assim como o delito era o seu
pecado e a sanção a sua penitencia, sua confissão representava para a inquisição o preço da
vitória. Nada podia opor-se à consecução desse fim, que era a defesa dos interesses
vulnerados, e isso justificava todos os meios que então se praticava (...).
Assim, posta a sorte do processo na integridade do inquirido, a que se privava toda a defesa
pelo temor de que esta fosse um obstáculo ao descobrimento da verdade e, em conseqüência,
ao logro da finalidade que se tinha em conta, a investigação se realizava em ótimas condições
para assegurar a condenação e prevalecia o conceito de que mesmo inocente deveria morrer
sempre – para que o culpado não ficasse impune83
.
Para se compreender a sustentação do sistema inquisitivo por um período de
tempo tão logo e necessário ter em mente a ordem dos pensamentos vigente naquele
determinado momento histórico. O povo acreditava em uma ordem divina superior e,
na Igreja enquanto representante desta ordem na terra, bem como se enxergava como
uma engrenagem desta ordem, que por sua vez não poderia ser questionar.
Por isso, o sistema inquisitivo, implantado em todo o Continente Europeu,
apesar de ter assumido facetas diferentes em cada país, apresenta algumas
características marcantes que o distingue claramente do sistema acusatório.
Para que o processo inquisitorial fosse instaurado bastavam rumores públicos
da prática do delito; o juiz atuava de ofício durante o processo, sendo abolida a
acusação regularmente formalizada e a publicidade de todo procedimento; confundia-
se em uma única pessoa a figura do acusador e do juiz; buscava-se, a qualquer custo, a
confissão do acusado, para isso era submetido a todos os tipos de sevicias e torturas,
bem como privado de qualquer defesa; adotou-se o sistema da prova tarifada, em que
cada prova tinha um valor previamente fixado84
.
Com essas características, o processo inquisitivo perdeu um dos principais
atributos que eleva qualquer procedimento a dignidade de um verdadeiro processo: a
imparcialidade do órgão julgador. Extremamente distante do ideal concebido para um
Estado Democrático de Direito, o processo inquisitivo não atende os anseios de uma
sociedade moderna em que os direitos e garantias dos indivíduos são postos em
82
Ibidem, p. 6. 83
Ibidem, p. 30. 84
Idem.
34
posição de destaque.
Os erros cometidos neste passado sombrio alertaram as gerações futuras para a
necessidade de separar a figura do órgão de acusação do órgão jurisdicional, com o
escopo de se garantir a imparcialidade nas decisões. Daí a criação e fortalecimento do
Ministério Público como titular exclusivo da ação penal pública.
Conveniente ressaltar que o nosso sistema processual penal, apesar de se
enquadrar no conceito de sistema acusatório, devido aos diversos dispositivos
constitucionais que salientam as características principais deste sistema, guarda um
ranço do sistema inquisitivo. Fato este suficiente para chamar a atenção dos
operadores do direito quanto à necessidade de se buscar um aprimoramento da nossa
legislação processual penal, bem como para a necessidade de se realizar uma
interpretação constitucional dessa legislação, como o objetivo de se garantir, cada vez
mais, os direitos fundamentais e a consolidação do Estado Democrático de Direito.
Pois, conforme alerta Aury LOPES JUNIOR a uma Constituição autoritária
corresponde um processo penal autoritário, utilitarista. Contudo, de uma Constituição
democrática como a nossa corresponde um processo penal democrático e garantista,
até porque a idéia de garantismo brota da Constituição como reduto intangível dos
direitos e garantias fundamentais orientadores de todo o sistema85
.
Garantismo este que só pode ser assegurado dentro de um sistema acusatório,
diga-se de passagem, estabelecido na própria Constituição, em que a gestação da prova
não é entregue ao juiz, mas às partes do processo.
3.2 Sistema acusatório
O sistema acusatório tem sua origem na antiguidade clássica no direito grego. A
Grécia, com sua vocação democrática, criou um sistema processual no qual havia a
participação direta dos cidadãos na acusação e julgamento dos delitos. A acusação
pertencia a todo cidadão e era considerada uma decorrência lógica da soberania
popular. O Império romano também viu florescer o sistema acusatório no período da
85
LOPES JÚNIOR. Aury. Op. cit., p. 4.
35
república86
.
Todavia, em Roma o sistema acusatório era privado, fato este que legitima o
ofendido ou qualquer pessoa do povo a promover a acusação em face de quem
infringisse a lei. Além da indiferença do Estado no que tange ao conflito de interesses
instalado entre as partes, o sistema acusatório privado apresentava outros
inconvenientes graves, pois, muitas vezes, o ofendido não possui os recursos
necessários para promover a ação penal de modo satisfatório ou movia-se imbuído em
propósitos de vingança87
.
A fragilidade da acusação particular, embora com a vantagem de ser promovida
em contraditório, justificou a necessidade do Estado exercer a persecução criminal e a
instalação do sistema inquisitivo o qual aniquilou o actum trium personarum e reduziu
o acusado a condição de objeto de investigação88
.
O sistema acusatório dotado de um órgão de acusação público só nasceu no
século XVIII, com a decadência do poder eclesiástico e, consequentemente, do sistema
inquisitivo. A burguesia francesa, intelectualmente privilegiada e ávida por conquistar
um espaço na sociedade, passa a questionar os dogmas impostos pela Igreja e o que se
convencionou chamar de “fé pura e simples” 89
.
A burguesia, enquanto classe detentora do poder econômico e,
consequentemente, fadada ao controle político da sociedade da época, necessitava de
um sistema processual que garantisse maior liberdade aos seus membros e o mínimo
de segurança jurídica. Diante desse quadro, o sistema inquisitivo – o qual
impossibilitava o exercício da defesa em contraditório – não encontrava mais espaço
para prosperar. Paulo RANGEL sintetiza bem esse momento histórico.
O avanço e as conquistas sociais, no campo dos direitos e das garantias fundamentais, exigiu
uma nova postura do Estado, que deveria afastar o juiz da persecução penal, assegurando ao
acusado todos os direitos e garantias inerentes ao pleno exercício de sua defesa,
principalmente a imparcialidade do órgão julgador. Era o começo de uma nova era. Era a
instituição de um processo penal justo e independente da vontade e do interesse das partes. O
Estado continuava assim com a titularidade do ius persequendi in judicio, porém nas mãos de
86
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Op. cit. , p. 8. 87
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 197. 88
Ibidem, p. 197-198. 89
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Op. cit. , p. 8-9.
36
um órgão criado para tal mister: O Ministério Público90
.
Portanto, o substituto escolhido para o sistema inquisitivo foi o acusatório,
marcado por uma acusação prévia e pela elevação do acusado ao status de sujeito de
direitos91
.
Seguindo o melhor caminho firmado nos Estados Democráticos de Direito, a
Constituição Federal de 1988 firmou um modelo penal claramente acusatório e
estabeleceu um rol considerável de instrumentos destinados a refrear o poder estatal
em face da liberdade individual que pode ser entendido como o conjunto mínimo de
condições necessárias para a estruturação de um devido processo penal92
.
Em um modelo acusatório, mesmo na fase de investigação preliminar, avultam
inúmeros instrumentos de garantia da liberdade individual, como, por exemplo, o
demoninado direito ao silêncio, pelo qual o suspeito deixa de ser considerado um
objeto de investigação e passa a ser considerado sujeito de direitos, o qual, não é
obrigado a produzir prova contra si mesmo. Nessa mudança de paradigma, qualquer
até que implique em restrição à liberdade do indivíduo, até um simples ato de
indiciamento, deve ser fundamentado pela autoridade competente93
.
A exigência de se informar ao preso em flagrante delito a identificação dos
autores de sua detenção também é um postulado da Constituição Federal de 1988. A
questão da identificação da autoridade responsável pela prisão em flagrante assume
um compromisso democrático na medida em que exterioriza um repúdio claro à
pratica ditatorial e policialesca das prisões que prevalecia no regime anterior a nova
ordem constitucional94
.
Nesse mesmo viés, o ordenamento constitucional brasileiro tratou de
regulamentar o tema do direito à informação quando da prisão ligando-o a informação
da acusação. A informação dos motivos que levaram a prisão deve ser feita tanto ao
preso, mediante a entrega da nota de culpa, como ao juiz competente e à pessoa
90
RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 198. 91
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Op. cit., p. 9. 92
CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na investigação criminal. 2 ed. ver.,
ampl. e atual. Rio de Janeiro: 2001. p. 29.
93 Ibidem, p. 30.
94 Idem.
37
indicada pelo detido; uma vez que, somente a publicidade do ato de constrição da
liberdade pode evitar prisões arbitrarias e ilegais95
.
Há inúmeros outros instrumentos de garantia do indivíduo que se aplicam às
investigações preliminares em um modelo acusatório, dentre as quais pode-se citar
ainda a atenuação da regra do sigilo das investigações – que não pode mais ser
imposto ao advogado do investigado – a manutenção do princípio da inocência nos
casos em que não há uma sentença penal condenatória com trânsito em julgado, bem
como a possibilidade de se constituir um advogado para acompanhar os procedimentos
investigativos preliminares. O mais importante, contudo, é perceber a clara mudança
de paradigma do modelo inquisitório – em que o investigado era tratado como objeto
de investigação – para o modelo acusatório – em que o investigado deve ser visto
como um sujeito de direito.
A reconstrução do sistema acusatório se deu, contudo, com algumas
modificações em relação ao modelo acusatório de iniciativa privada. A mais
significativa dentre elas talvez seja a criação de um órgão público de acusação: o
Ministério Público, titular da ação penal.
A atribuição dessa função a um órgão público, via de regra representado pelo
Ministério Público, encontra dupla justificativa: a primeira é a de garantir a afetividade
da persecutio criminis e a segunda é de reforçar a imparcialidade do órgão judicante96
.
O progresso social, nas mais diversas áreas, foi a causa de um incremento na
complexidade das relações intersubjetivas e por conseqüência na ampliação dos
direitos tuteláveis e dos conflitos sociais. Diante dessas condições, sentiu-se a
necessidade de se combater a criminalidade através de um órgão público e retirar das
mãos do particular a disponibilidade na propositura da ação penal.
Hoje, o Ministério Público, enquanto titular privativo da ação penal pública
incondicionada, está incumbido de promover não só a persecução criminal, como
também as investigação preliminares na área criminal, sem que se possa falar em uma
violação do sistema acusatório e sempre que o caso concreto assim exigir.
95
Ibidem, p. 31-33. 96
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Op. cit., p. 11.
38
3.3 Sistema misto
O sistema misto é uma simbiose do sistema acusatório privado e do sistema
inquisitivo. Buscou-se retirar a persecução criminal das mãos dos particulares e
atribuí-la a um órgão público, via de regra, o Ministério Público, porém permitiu-se
que a investigação criminal ficasse sob o controle do Estado-juiz97
.
Esse sistema pode ser dividido em duas fases distintas: uma fase de instrução
preliminar e outra judicial. A primeira fase, inspirada no sistema inquisitivo, é
marcada por investigações prévias realizadas diretamente por um magistrado que em
tudo é auxiliado pela polícia judiciária; nesta há formação de um juízo prévio que recai
sobre os elementos justificadores da acusação penal e, em alguns países é chamada de
juízo de instrução. Na segunda fase surge a acusação propriamente dita, formulada por
um órgão distinto do órgão judicante; aqui o processo é público e o acusado possui
amplo direito de defesa, sendo respeitado o contraditório98
.
Apesar do avanço que representa em relação ao sistema inquisitivo, o sistema
misto não é a melhor opção quando se pensa em um processo como instrumento de
garantia do acusado. Apesar da segunda fase ser desenvolvida sob o crivo do
contraditório e a acusação ser feita por um órgão diverso daquele que vai julgar, o
ideal é que o Estado-juiz permaneça o mais distante possível das investigações,
preservando sua imparcialidade enquanto órgão julgador.
Pela analise dos diferentes sistemas acima mencionados pode-se notar com
facilidade que o modelo acusatório é aquele que mais se aproxima de um ideal de
justiça. Assim, se o sistema acusatório brasileiro relega ao Ministério Público a
titularidade da ação penal, por óbvio, garante também a possibilidade de coordenar as
investigações preliminares ou realizá-las de forma direta.
97
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 206. 98
Idem.
39
IV – PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
4.1 Posição da doutrina pátria
A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova fase no Ministério
Público. De simples órgão vinculado ao Poder Executivo o Ministério Público
passou ao status constitucional de instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado.
Em matéria criminal o legislador constituinte atribuiu não só a titularidade
exclusiva da ação penal, como também lhe resguardou o poder de expedir
notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando
informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva
(art. 129, inc. VI da CF), além da possibilidade de exercer outras funções que lhe
forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade99
.
Para assegurar o exercício dessas funções com autonomia e imparcialidade, o
legislador constituinte conferiu ao Ministério Público garantias institucionais e
garantias reservadas aos seus membros – vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de subsídio – sendo, essas últimas, equiparadas às garantias
asseguradas aos membros da magistratura.
Dentre as funções institucionais reservadas ao Ministério Público,
especificamente no que se refere às suas funções institucionais penais, a doutrina e a
jurisprudência pátria vêm atribuindo ao Parquet à prerrogativa de instaurar
99
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007.
40
procedimentos administrativos não só para instruir ações civis públicas, como
também para justificar a ação penal.
A jurisprudência e a doutrina – entre progressos e retrocessos – vinham
firmando, com argumentos técnicos, a possibilidade do Ministério Público
engendrar investigação criminal de forma direta.
Não obstante, em recente decisão, a segunda turma do Supremo Tribunal
Federal, no RHC 81326, cujo relator é o ex-ministro Nelson Jobim, afirmou que a
Constituição Federal concedeu ao Ministério Público apenas o poder de requisitar
diligências e de determinar a instauração de inquérito policial, mas não a função de
inquirir diretamente pessoas suspeitas de terem praticado condutas delituosas.
Essa modificação na orientação do STF, impossibilitando a condução de
investigações criminais pelo Ministério Público, data venia, representa um
retrocesso nos quadros da doutrinária e da jurisprudencial pátria, bem como um
enfraquecimento da instituição a qual se atribui à defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Diante do novo status constitucional atribuído ao Ministério Público com a
promulgação Constituição Federal de 1988, assim como em virtude da posição que
a instituição assumiu no quadro nacional e nos demais países em que há um regime
democrático de direito solidamente estabelecido, torna-se elementar reafirmar os
argumentos que sustentam essa função institucional tão relevante.
A doutrina pátria que nega a possibilidade do Ministério Público conduzir
investigações criminais de forma direta apega-se, principalmente, em dois
fundamentos. Num primeiro momento, afirma que a atividade de investigação
criminal é exclusiva da Polícia Judiciária, para, logo em seguida, ressaltar que ao
Ministério Público é resguardado apenas a função de instaurar o inquérito civil
41
público para justificar a propositura da ação civil pública e não de ação penal100
.
Para essa parcela minoritária da doutrina, a Polícia Judiciária deteria o
monopólio da investigação criminal, pois, o artigo 144 da CF/88 teria revogado o
parágrafo único do art. 4° do CPP. Assim, toda prova produzida pelo Ministério
Público na fase pré-processual estaria eivada de inconstitucionalidade, sendo, por
sua vez, nula101
.
Destarte, nem mesmo no campo da hermenêutica puramente gramatical não
há como se afirmar que o art. 144 da CF/88 reversa à Polícia Judiciária o monopólio
da atividade investigativa. Na realidade, a única menção feita à exclusividade no
exercício de funções da Polícia Judiciária diz respeito ao disposto no art. 144, § 1°,
IV, da CF, que garante à Polícia Federal o monopólio das funções de polícia
judiciária da União102
.
Todavia, a expressão “exercer, com exclusividade” apenas refere-se ao fato
de que as funções de polícia judiciária da União devem ser exercidas pela
denominada Polícia Federal, afastando as demais (polícia civil e militar), inclusive a
Polícia Rodoviária Federal. Essa interpretação foi firmada pelo Pleno do STF na
ADIn. 1.517 interposta pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia –
ADEPOL103
.
Outros doutrinadores dão uma interpretação diferenciada para o art. 144,
parágrafo único, IV da CF, no mesmo viés de se negar a exclusividade da atividade
investigativa a Polícia Judiciária. Esses autores fazem uma divisão entre as “funções
da polícia judiciária” e a atividade de “apuração de infrações penais”104
.
A exclusividade de que trata o art. 144 da Constituição Federal é mencionada
apenas no seu inciso IV e se refere às funções da Polícia Judiciária, dentre as quais
100
GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Controle externo da atividade policial pelo
Ministério Público. Curitiba: Juruá Editora, 2002. p. 93-107.
101 Ibidem, p. 94.
102 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7 ed. rev. atual. e ampl. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007. p. 62.
103 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Op. cit. , p. 103.
104 FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Investigação criminal. Disponível em: <http//www.jfse.gov.br/
noticiasbusca/noticias_2005/setembro/invest_crim.html> Acesso em: 17/11/2007.
42
pode-se citar o cumprimento dos mandados de busca e apreensão, a realização de
perícias e de outras diligências em colaboração com a atuação do Poder Judiciário.
Já a apuração das infrações penais é mencionada apenas no inciso I do artigo 144
que não faz qualquer referência à expressão “exclusividade”.
De fato, o sistema constitucional brasileiro adotou o que se convencionou
chamar de “princípio da universalização da investigação criminal”, não cabendo o
monopólio da investigação criminal à Polícia Judiciária. Esse princípio está em
consonância com os ideais de uma democracia participativa e com a maior
transparência dos atos administrativos estatais105
.
Ademais, a legitimação do Ministério Público para apuração de infrações
penais tem assento constitucional, conforme o disposto no art. 129, incisos I, VI e
IX da CF. O texto constitucional no art. 129, inciso I, afirma ser função institucional
do Ministério Público a promoção, com exclusividade, da ação penal pública.
Dessa maneira, do que valeria a previsão constitucional acima mencionada se
o parquet, titular exclusivo da ação penal, não pudesse intentar investigação
persecutória preliminar nos casos em que a situação fática exigir. Nas palavras de
Paulo Rangel, a atividade investigatória realizada pelo Ministério Público é inerente
à privatividade da ação penal pública, ademais quando a situação apresentada possa
impedir a apuração do delito pela ausência ou insuficiência de investigação da
Polícia Judiciária106
.
Neste mesmo sentido, leciona Rodrigo Régnier CHEMIM.
Cabe, então ao Ministério Público adotar providências para que possa exercitar plenamente
suas funções constitucionais, suprindo as omissões evidenciadas, pois como parte autora da
ação penal a ele incumbe provar o que alega em Juízo. E se é titular exclusivo da ação penal
pública incondicionada e tem o ônus de provar, nada mais justo que também possa produzir a
prova, quando a polícia não agir com a diligência necessária107
.
105
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007. 106
RANGEL, Paulo. Investigação criminal direta pelo Ministério Público: visão crítica. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 210.
107 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Op. cit. , p. 99.
43
A Constituição Federal não criou o Ministério Público para ser um órgão
inerte. Esse não é o perfil constitucional que a Carta Magna atribuiu à Instituição,
muito menos a vontade do legislador constituinte. Se o Ministério Público é o titular
exclusivo da ação penal pública e incube a ele a persecutio criminis não é razoável
que fique ao talante da autoridade policial, aguardando a conclusão do inquérito
para decidir se vai oferecer denúncia, requer o seu arquivamento ou a realização de
novas diligências. Ao Ministério Público não pode ser relegado o papel de mero
espectador das investigações, ao contrário, deve dispor de mecanismos técnico-
jurídicos que permitam a realização da persecução penal108
.
A prática mostra que não há outra posição a ser adotada, sobretudo nos casos
em que a apuração da infração penal envolve suspeitos diretamente ligados a
atividade da Polícia Judiciária. Nesses casos, o corporativismo pode anular o
interesse social na repressão de condutas criminosas e tolher o Ministério Público
na sua função de desempenhar o papel constitucional de defensor da ordem jurídica
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Exemplo prático desse tipo de situação ocorreu em São Paulo, quando o
Ministério Público paulista, sob a direção do Procurador de Justiça Hélio Bicudo,
empreendeu, de forma direta, diversas diligências investigativas no caso que apurou
os crimes praticados pelo “Esquadrão da Morte” 109
.
Outro exemplo citado por MAZZILLI que autorizaria o Ministério Público a
conduzir investigação criminal de forma direta apresenta-se nos casos em que a
Polícia Judiciária não está em situação adequada para conduzir investigações contra
altos administradores ligados, principalmente, aos interesses do Poder Executivo110
.
Dada a sua condição de organismo subordinado ao Poder Executivo e à
administração, muitas vezes, a Polícia Judiciária está impedida de exercer uma
108
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007. 109
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p.
144-145.
110 Idem.
44
apuração isenta de qualquer conotação político-partidária111
. De fato, as autoridades
policiais não têm as mesmas garantias asseguradas aos membros do Ministério
Público, condição está que as deixam mais sujeitas as pressões externas.
Nesses casos, em que o Poder Executivo pode exercer direita influência
sobre o trabalho de investigação e impedir a apuração de crimes praticados por
pessoas influentes social ou politicamente, ou nas situações em que o
corporativismo pode afetar a diligência das investigações, alguns autores chegam a
afirmar que o monopólio da atividade investigativa pela Polícia Judiciária fere o
princípio da igualdade (art. 5°, caput e I da CF), uma vez que nem todos os
investigados seriam submetidos a investigações rigorosas112
.
Não se pode perder de vista que a investigação criminal, bem como a
persecução criminal são atividades de autodefesa da sociedade contra a prática de
infrações penais. Assim, quando esta não se desenvolve de forma adequada, devido
às peculiaridades do caso concreto, o Ministério Público deve interferir na fase
preliminar de investigação para garantir o sucesso da persecução criminal em
juízo113
.
Em um Estado Democrático de Direito a lei penal e o processo penal têm por
escopo tutelar os bens reconhecidos pela sociedade como dignos de proteção. Para
manter um equilíbrio social e garantir a aplicação da lei da forma mais imparcial
possível o Estado retira das mãos dos particulares, como regra, a possibilidade de
autotutela, enfim, de fazer justiça com as próprias mãos. Assim, a sociedade
depende da eficiência e da eficácia dos métodos praticados pelo aparato estatal para
ver seus bens mais relevantes protegidos e o Estado necessita ter a sua disposição os
instrumentos adequados para garantir a segurança dos seus administrados114
.
Assim, a segurança pública, enquanto dever do Estado, direito e
111
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 213. 112
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007. 113
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007. 114
JATAHY, Carlos Roberto de C. A investigação direta pelo Ministério Público: uma interpretação
institucional. Disponível em: <http//www.femperj.org.br/artigos/artigo_inv_direta.php> Acesso em:
17/11/2007.
45
responsabilidade de todos, não pode ser prejudicada pelo espírito corporativista das
entidades encarregadas de realizar a apuração dos fatos delituosos ou pela pressão
política sob a qual estão subjugadas. O Ministério Público também integra o sistema
estatal de prevenção à criminalidade, daí sua prerrogativa de proceder investigações
criminais de forma direta115
.
Ainda, nessa linha de raciocínio, se cabe ao Ministério Público promover,
com exclusividade, a ação penal é evidente que a ele é atribuída todas as outras
prerrogativas para exercer essa função. Esta possibilidade vem assegurada na Teoria
norte-americana dos Poderes Implícitos, a qual é reconhecidamente passível de
aplicação no direito pátrio116
.
Deveras, o exercício da titularidade da ação penal pública apresenta grande
dependência com relação as investigações preliminares, de modo que o sucesso da
atividade fim (propositura da ação penal e persecução penal) está intimamente
vinculado a correta realização da atividade-meio (investigação preliminar)117
.
Complementando o inciso I do artigo 129 da CF, o inciso VI, do mesmo
artigo, menciona a possibilidade da instauração de procedimento administrativo
investigatório, atribuindo a lei complementar respectiva a tarefa de sua
regulamentação. É esse o rumo da melhor doutrina nacional.
Esta “lei complementar respectiva” referida, pode ser, como primeira ratio, a Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/93); num segundo momento, a Lei Complementar
do Ministério Público da União (Lei 75/93), aplicada subsidiariamente aos Ministérios
Públicos Estaduais, de acordo com o art. 80, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público;
e, num terceiro momento, as respectivas Leis Orgânicas Estaduais de cada um dos Ministérios
Públicos dos Estados da Federação118
.
Por outro lado, não há como negar vigência, validade e eficácia a essas
normas infraconstitucionais (LONMP e LOMPU) como querem algumas
115
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007. 116
GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Op. cit. , p. 99. 117
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007. 118
GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Op. cit. , p. 100.
46
doutrinadores. A vigência, quanto possibilidade temporal de aplicação da norma,
não pode ser negada uma vez que não há lei posterior revogando-as. A eficácia, no
que diz respeito à aptidão da norma de produzir seus regulares efeitos é extraída da
própria Constituição, no exato instante que esta fixa as funções institucionais do
Parquet. Por fim, a validade dessas normas, no que tange a sua perfeita adequação
aos preceitos da Lei Maior, salta aos olhos no momento em que se procede a
simples leitura do art. 129, inciso VIII, o qual estabelece, como função institucional
do Ministério Público, a prerrogativa de requisitar diligências investigatórias e a
instauração de inquérito policial119
.
Outro argumento utilizado para tolher o Ministério Público da possibilidade
de proceder à investigação criminal de forma direta é no sentido de que a
Constituição Federal, no seu artigo 129, inciso VI, teria reservado ao parquet
apenas a possibilidade de requisitar informações e documentos para instruir
procedimentos administrativos de natureza civil, mais especificamente, aqueles que
embasariam a propositura da ação civil pública.
Todavia, os procedimentos administrativos mencionados no inciso VI do art.
129 não estão restritos ao inquérito civil, como faz pensar a doutrina contraria a
investigação direta pelo Ministério Público. Não estando adstritos às investigações
da Polícia Judiciária, resta aos membros do parquet à possibilidade da coleta direta
de elementos de convicção para elaboração da sua opnio delicti, sempre que o caso
concreto assim solicitar120
.
Destarte, se a intenção do legislador fosse conferir ao Ministério Público
apenas o poder de instaurar procedimentos administrativos de natureza civil,
bastaria a menção feita no inciso III, do art.129, da CF, ao inquérito civil, deixando
de mencionar os “procedimentos administrativos de sua competência”, no inciso VI.
A doutrina alerta ainda para o fato de que a legislação ordinária, sempre que
faz referência ao inquérito civil, utiliza a conjunção aditiva “e” para, logo em
119
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 214. 120
LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e persecução penal. 3. ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 90.
47
seguida, mencionar a expressão “outros procedimentos administrativos”. Assim,
fica evidente que ao Ministério Público é resguardada a possibilidade de instaurar
procedimentos administrativos de natureza criminal121
.
Isso tudo, sem mencionar na Lei 8.429/92 (Lei de improbidade
administrativa), que em consonância com o artigo 129, inciso III da CF, autorizou o
Ministério Público a conduzir inquéritos civis para apurar atos de improbidade
administrativa. Nessas hipóteses, em que o Ministério Público investiga atos de
improbidade administrativa, caso o promotor de justiça encarregado a investigação
se deparasse com provas da prática de uma conduta delituosa estaria por acaso
impedido de oferecer a competente ação penal por ter colhido o material que a
embasaria? Neste exemplo, qualquer resposta afirmativa seria um completo
absurdo122
.
Relevante mencionar ainda que o art. 129, inciso IX da CF, garante ao
Ministério Público o exercício de outras funções que lhe forem conferidas, desde
que compatíveis com sua finalidade. Ora, uma das finalidades atribuída ao
Ministério Público é a persecução penal e o combate à criminalidade, para isso, é
preciso que a Instituição disponha dos meios adequados para cumprir seu papel
constitucional, dentre os quais pode-se citar a prerrogativa de empreender
investigações criminais de forma direita.
Esse dispositivo constitucional funciona como uma cláusula aberta e opera
uma abertura na esfera de atribuições do Ministério Público que fica potencializada
com a atuação do legislador ordinário. No nosso sistema normativo, essa atuação
complementar do legislador ordinário já está consagrada na Lei complementar
75/93 (Estatuto do Ministério Público da União), aplicável subsidiariamente ao
Ministério Público dos Estados-membros, e na Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional
121
GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Op. cit. , p. 107. 122
FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Investigação criminal. Disponível em:
<http//www.jfse.gov.br/noticiasbusca/noticias_2005/setembro/invest_crim.html> Acesso em:
17/11/2007.
48
do Ministério Público), citadas alhures123
.
Reforçando esses argumentos, observa-se que a Constituição Federal atribuiu
a outros órgãos a possibilidade de exercer diretamente a investigação criminal. Esse
é o caso das CPIs, utilizadas tanto pela Câmara dos Deputados quanto pelo Senado
Federal, com previsão expressa no artigo 58, § 3º, da CF124
.
A Lei 4771/65 (Código Florestal), em seu art. 33, também prevê a
possibilidade dos funcionários da repartição florestal e de autarquias com
atribuições correlatas instaurar procedimentos investigativos em casos da prática de
crimes previstos nessa lei. No âmbito do Poder Executivo, o Banco Central também
tem a prerrogativa de iniciar procedimentos para apurar delitos de sonegação
fiscal125
.
Levando-se em conta o contexto histórico em que a Constituição de 1988 foi
promulgada, principalmente no que se refere à quebra de vínculos com a ordem
política e jurídica anterior, seria, de todo ilógico, atribuir, com exclusividade, a
atividade investigatória a Polícia Judiciária. Definitivamente não há como se
compatibilizar uma hermenêutica constitucional principiológica com um sistema
que reservar o monopólio das investigações à polícia126
.
O monopólio ou a exclusividade da investigação criminal não serve a
questão da segurança pública, ao contrário sugere uma disputa de poder que só
prejudicaria a sociedade. Um Estado Democrático de Direito, orientado por um
sistema de freios e contrapesos, não deve concentrar funções dessa magnitude em
um único órgão, no caso a Polícia Judiciária, ainda mais quando esse órgão esteja
vinculado diretamente a um dos Poderes do Estado127
.
123
JATAHY, Carlos Roberto de C. A investigação direta pelo Ministério Público: uma interpretação
institucional. Disponível em: <http//www.femperj.org.br/artigos/artigo_inv_direta.php> Acesso em:
17/11/2007. 124
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 223. 125
JATAHY, Carlos Roberto de C. A investigação direta pelo Ministério Público: uma interpretação
institucional. Disponível em: <http//www.femperj.org.br/artigos/artigo_inv_direta.php> Acesso em:
17/11/2007. 126
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit. , p. 63.
127 VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007.
49
Seria, no mínimo estranho, permitir-se que o Estado pudesse instaurar
processo crime com informações trazidas por particulares – notitia criminis – ou por
outros órgãos da administração, como no caso das CPIs, e fosse vedado ao titular da
ação penal colher essas informações de forma direta128
.
Argumenta-se, ainda, que uma investigação criminal levada a cabo pelo
Ministério Público pode afetar a imparcialidade do agente ministerial e ferir
garantias individuais atribuídas aos cidadãos129
.
Em primeiro lugar, mesmo que se admitisse a influência na imparcialidade
do membro do parquet, posicionamento esse de todo insustentável, bastaria uma
divisão, no âmbito interno da própria instituição, entre as funções de investigar e de
acusar, atribuindo a agentes diferentes estas tarefas130
.
Ademais, a imparcialidade que se quer impedir é aquela que leva o agente
para além das pré-compreensões presentes em todo ser humano. Todavia, uma vez
encerrada a investigação criminal direita, o Ministério Público pode tanto requerer o
arquivamento do procedimento administrativo como oferecer a denúncia, sendo
qualquer excesso solucionado pelos meios judiciais colocados a disposição dos
particulares131
.
Se não fosse assim, essa imparcialidade, que alguns autores dizem afetar o
Ministério Público, também poderia ser atribuída à Polícia Judiciária. É evidente
que a Polícia Judiciária não tem competência para iniciar a ação penal, uma vez que
a titularidade desta é do Ministério Público, mas, por outro lado, não há como negar
que os seus membros estão funcional e psicologicamente comprometidos com a
persecução penal132
.
Se for levado em conta o fato de que o inquérito policial é um procedimento
investigativo inquisitivo, no qual não é assegurado o contraditório, e que tal
128
RANGEL, Paulo. Op. cit. , p. 215. 129
GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Op. cit. , p. 95. 130
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit. , p. 66.
131 Ibidem, p. 66-67.
132 FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Investigação criminal. Disponível em:
<http//www.jfse.gov.br/noticiasbusca/noticias_2005/setembro/invest_crim.html> Acesso em:
17/11/2007.
50
procedimento serve de fundamento para a propositura da ação penal, poder-se-ia
afirmar que a visão, muitas vezes distorcida do aparato policial, é repassada para o
Ministério Público, que só tem como parâmetro as informações contidas nos autos
do inquérito.
Outros doutrinadores criticam tal prerrogativa ministerial ao afirmar que as
investigações criminais levadas a cabo pelo Ministério Público não estariam
submetidas a um controle de legalidade. Destarte, esse argumento não pode
prevalecer. A própria Constituição, no seu artigo 5°, inciso XXXV, afirma que a lei
não excluíra da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito, desta
maneira, sempre que o Ministério Público agir com excesso de poder, arbitrariedade
ou contra a lei caberá o controle judicial de seus atos mediante a impetração dos
remédios constitucionais, como, por exemplo, o habeas corpus e o mandado de
segurança133
.
Ademais, com a criação do Conselho Nacional do Ministério Público – EC
45/04, conhecida como Reforma do Judiciário – o controle interno da Instituição
passou a ser exercido por membros da sociedade civil, da magistratura e de
representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, fato este que implica uma maior
legitimação do Ministério Público na persecução criminal e na possibilidade de
empreender investigações preliminares de forma direta sem que se possa sustentar
qualquer ausência de controle na legalidade dos atos praticados134
.
Desta feita, quando se argumenta com a possibilidade de se garantir ao
Ministério Público a prerrogativa de realizar investigações criminais de forma
direta, não se pretende atribuir à Instituição a tarefa de presidir inquéritos policiais –
tarefa essa resguardada com exclusividade a Polícia Judiciária. Qualquer tentativa
em sentido contrário seria um completo absurdo, pois se estaria entregando ao
parquet a exclusividade de uma atividade que não se quer admitir seja conferida a
133
JATAHY, Carlos Roberto de C. A investigação direta pelo Ministério Público: uma interpretação
institucional. Disponível em: <http//www.femperj.org.br/artigos/artigo_inv_direta.php> Acesso em:
17/11/2007. 134
JATAHY, Carlos Roberto de C. A investigação direta pelo Ministério Público: uma interpretação
institucional. Disponível em: <http//www.femperj.org.br/artigos/artigo_inv_direta.php> Acesso em:
17/11/2007.
51
qualquer outro órgão135
.
Apesar de toda essa argumentação técnica, o STF vem alterando sua
orientação no sentido de se vedar ao Ministério Público à função de conduzir
procedimentos investigativos de forma direta.
Essa mudança de posicionamento pode ser comprovada pela analise dos
julgados RE n. 233.072-4/RJ, RE n. 205.473-9/AL e no Inq. n. 1.828, fato este que
por si só justifica reafirmar os argumentos sustentados pela doutrina e pela
jurisprudência nesses quase vinte anos de Constituição Cidadã, no sentido de se
ressaltar as funções institucionais do Ministério Público enquanto instituição
permanente, essência à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.
4.2 A alteração na orientação do Supremo Tribunal Federal
Neste subitem serão analisadas três decisões do Supremo Tribunal Federal,
mais precisamente, os recursos extraordinários 205.473-9/AL e 233.072-4/RJ e o
recurso ordinário em habeas corpus 81.326-7/DF, que bem evidenciam essa
mudança de posicionamento da Suprema Corte no que tange a possibilidade do
Ministério Público empreender investigações criminais de forma direita.
Partindo desses três casos concretos procura-se tecer algumas críticas
referentes aos fundamentos dessas decisões as quais têm como ponto em comum o
fato de negarem ao Ministério Público essa função constitucional. Data venia ao
posicionamento exposto no fundamento de tais decisões procurar-se-á demonstrar o
seu equivoco frente à nova ordem constitucional e ao papel do Ministério Público,
para isso, reforçar-se-á os argumentos já trabalhados no item anterior.
135
VIEIRA, Nedens Ulisses Freire. A investigação criminal pelo Ministério Público. Disponível em:
<http//www.mp.pr.gov.br/gabinete/indmp.html> Acesso em: 17/11/2007.
52
A primeira decisão a ser analisada foi proferida no recurso extraordinário
205.473-9/AL, pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, cujo relator foi o
Ministro Carlos Veloso. Tal recurso foi interposto de uma decisão prolatada pelo
Egrégio Tribunal Federal da 5° Região que concedeu ordem para trancar inquérito
policial instaurado em face do então Delegado da Receita Federal em Alagoas.
Essa celeuma teve como causa uma requisição feita pelo Procurador da
República no Estado de Alagoas ao Delegado da Receita Federal, Ivaldo Hélvio
Pinto Rego, no sentido de que fornecesse o conteúdo de “diligencias
investigatórias” sobre a Organização Arnon de Mello, com vistas à apuração de
possíveis ilícitos fiscais.
Com o argumento de que tais “diligências investigatórias” estariam
centralizadas em Brasília, uma vez que a apuração dos fatos envolvia o caso PC
Farias e o então Presidente Collor de Mello, o Delegado da Receita Federal deixou
de atender a requisição do representante do Ministério Público, que por sua vez,
requisitou a Policia Federal a instauração de inquérito policial para que a conduta
omissiva daquele fosse apurada.
Instaurado o inquérito policial o Delegado da Receita Federal, Ivaldo Hélvio
Pinto, impetrou habeas corpus preventivo para trancar o mencionado procedimento
investigativo.
Nesse ponto, não se tem a pretensão de discutir a justiça da decisão que
deixou de conhecer o recurso extraordinário interposto pelo representante do
Ministério Público Federal contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª
Região que concedeu a ordem para trancar o inquérito policial, mas tão somente
criticar um dos fundamentos da mencionada decisão.
Um dos fundamentos levantados pelo relator do recurso extraordinário,
Ministro Carlos Velloso, para não reconhecer do recurso foi no sentido de que não
compete ao Procurador da República, na forma do disposto no art. 129, VIII, da
Constituição Federal, assumir a direção das investigações, substituindo-se a
autoridade policial, dado que, tirante a hipótese inscrita no inciso III do art. 129 da
Constituição Federal, não lhe compete assumir a direção de investigações tendentes
53
à apuração de infrações penais, conforme interpretação extraída do artigo 144, §§ 1°
e 4° da Constituição Federal.
Conforme já analisado no tópico anterior, data venia a entendimento
contrário, tal fundamento não pode prosperar por pelo menos dois motivos. O
primeiro deles refere-se à possibilidade do Ministério Público empreender
procedimentos investigativos apenas para instruir inquéritos civis.
De fato, como dito alhures, se a intenção do legislador fosse conferir ao
Ministério Público apenas o poder de instaurar procedimentos administrativos de
natureza civil, bastaria a menção feita no inciso III, do art.129, da CF, ao inquérito
civil, deixando de mencionar os “procedimentos administrativos de sua
competência”, no inciso VI. O legislador ordinário não faria questão, de a todo o
momento, utilizar a conjunção aditiva “e” quando faz referência ao inquérito civil,
para, logo em seguida, mencionar a expressão “outros procedimentos
administrativos”.
Além do mais, não há como se desprezar a aplicação da Teoria dos Poderes
Implícitos. Ora, se cabe ao Ministério Público promover, com exclusividade, a ação
penal é evidente que a ele é atribuída todas as outras prerrogativas para exercer essa
função.
Assim, não estaria o Ministério Público restrito a requisitar diligências
investigativas e a instauração de inquérito policial como afirma o Ministro Carlos
Velloso. Tampouco, tais atividades são atribuídas com exclusividade a Polícia
Judiciária, como faz entender o Ministro Carlos Velloso quando menciona na sua
decisão o artigo 144, §§ 1° e 2° da Constituição Federal.
Outra decisão que merece atenção foi proferida no recurso extraordinário
233.072-4/RJ que teve como relator o Ministro Néri da Silveira e como recorrente o
Ministério Público Federal.
A questão chegou às portas da Suprema Corte tendo como ponto inicial
denuncia oferecida pelo Ministério Público Federal em face do então Delegado de
Administração do Ministério de Estado da Fazenda no Rio de Janeiro é de outros
54
comerciantes, pela pratica em tese do delito tipificado no artigo 92 da Lei 8.666/93.
Conforme consta da exordial acusatória o Delegado de Administração do
Ministério de Estado da Fazenda no Rio de Janeiro, representando a União, teria
celebrado contrato administrativo, cujo conteúdo regulava a prestação de serviços
de segurança nos prédios do Ministério da Fazenda, com os outros co-denunciados.
Referido contrato foi precedido de um procedimento licitatório, o qual tinha
como uma de suas clausulas a exigência de que a licitante vencedora prestasse uma
garantia correspondente a 5% (cinco por cento) do valor do contrato em favor da
Delegacia de Administração do Ministério da Fazenda no Estado do Rio de Janeiro.
Os co-denunciados, vencedores da licitação, deixaram de prestar tal garantia
e, mesmo assim começaram a receber a contraprestação por parte do Estado, sem
que o Delegado de Administração tomasse qualquer atitude no sentido de resolver o
contrato. Esses fatos motivaram a denúncia oferecida pelo Ministério Público
Federal.
Todavia antes do oferecimento da denúncia o Procurador da República
intimou o denunciado, então Delegado de Administração do Ministério de Estado
da Fazenda no Rio de Janeiro, para prestar esclarecimentos sobre o caso. Mesmo
sem o comparecimento do denunciado a denúncia foi oferecida com base em outras
provas que estavam em poder do Ministério Público.
Diante dos fatos, o denunciado impetrou habeas corpus perante a Segunda
Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região para trancar a respectiva ação
penal, alegando que o representante do Parquet, sem motivação aparente, instaurou
inquérito administrativo que ele mesmo realizou, exorbitando sua competência legal
e o qual culminou com o oferecimento de denúncia abusiva.
Participaram do julgamento os Ministros Néri da Silveira, na qualidade de
relator, Nelson Jobim, Maurício Corrêa, Marco Aurélio e o Ministro Carlos Velloso.
O resultado da votação terminou em três votos a dois no sentido de denegar
provimento ao recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público.
Compondo o voto vencedor, posicionaram-se os Ministros Nelson Jobim,
55
Marco Aurélio e Carlos Velloso no sentido de não conhecerem do recurso
extraordinário interposto pelo Ministério Público. Dentre esses Ministros, somente o
Ministro Nelson Jobim e o Ministro Marco Aurélio discutiram a possibilidade do
Ministério Público empreender investigações criminais de forma direita.
Fundamentado seu voto, o Ministro Nelson Jobim negou a possibilidade do
Ministério Público realizar investigações criminais de forma direta. Para tanto,
afirmou que, em passagens anteriores, primeiro quando da elaboração da
Constituição Federal de 1988 e depois com o projeto de lei complementar que tratou
do Ministério Público da União, o legislador constituinte e o legislador ordinário,
respectivamente, tentaram introduzir texto de lei que cuidava especificamente de
tema correlato a possibilidade do Ministério Público empreender investigações
criminais de forma direta, matéria essa que, segundo o Ministro, foi rejeitada nas
duas oportunidades.
Afirmou ainda o Ministro Nelson Jobim que o Ministério Público não tem
competência alguma para produzir inquérito penal, sob o argumento de que tem a
possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos. A única
competência assegurada ao Ministério Público seria no âmbito do inquérito civil
para a propositura de ação civil pública.
O Ministro Marco Aurélio, por sua vez, sustentou em seu voto que a abertura
de inquérito, sua condução, o ato de colher elementos dentro desse inquérito não é
atividade inerente à finalidade do Ministério Público. Os procedimentos
administrativos da competência do Ministério Público, segundo o entendimento do
Ministro, seriam aqueles destinados a propositura da ação civil pública.
Por fim, o Ministro Marco Aurélio afirma que as funções de policia
judiciária e a apuração de infrações penais incubem às policias civis e não ao
Ministério Público, para tanto, é citado o artigo 144, § 4° da Constituição Federal.
Importa ressaltar que o Ministro Maurício Corrêa, embora tenha conhecido e
dado provimento ao recurso extraordinário interposto pelo Ministério Publico,
deixou claro seu posicionamento no sentido de rejeitar a possibilidade do Parquet
realizar investigações criminais de forma direita enquanto não houver prévia
56
normatização legal que regule tal atribuição.
Pode-se observar, pelos votos dos eminentes Ministros, que os argumentos
levantados para se negar a possibilidade do Ministério Público empreender
investigações criminais de forma direita se repetem e, data venia, não devem
prevalecer conforme demonstrado acima.
Se a intenção do legislador constituinte fosse conferir ao Ministério Público
apenas o poder de instaurar procedimentos administrativos de natureza civil, como
sustenta o Ministro Nelson Jobim, bastaria ter feito menção ao inciso III, do artigo
129, da Constituição Federal, que trata do inquérito civil, deixando de mencionar os
“procedimentos administrativos de sua competência”, no inciso VI, do mesmo
artigo.
Por outro lado, não há como se afirmar que a atividade investigava para fins
penais é função exclusiva da Polícia Judiciária como afirma o Ministro Marco
Aurélio. Pela simples leitura do texto constitucional pode-se perceber que a única
menção feita à exclusividade no exercício de funções da Polícia Judiciária diz
respeito ao disposto no art. 144, § 1°, IV, da CF, que garante à Polícia Federal o
monopólio das funções de polícia judiciária da União e não o controle da atividade
investigativa.
O argumento do Ministro Maurício Correa também não pode prevalecer. A
prévia existência de normatização legal, que supre com largueza essa necessidade,
pode ser atribuída, num primeiro momento, a Lei Orgânica Nacional do Ministério
Público (Lei 8.625/93); num segundo momento, a Lei Complementar do Ministério
Público da União (Lei 75/93), aplicada subsidiariamente aos Ministérios Públicos
Estaduais, de acordo com o art. 80, da Lei Orgânica Nacional do Ministério
Público; e, num terceiro momento, pelas respectivas Leis Orgânicas Estaduais de
cada um dos Ministérios Públicos dos Estados da Federação.
Interessa comentar uma última decisão proferida no recurso ordinário em
habeas corpus n.° 81.326-7/DF, cujo relator foi o Ministro Nelson Jobim, para se ter
uma visão panorâmica dessa inversão de posicionamento do Supremo Tribunal
Federal relacionado à realização de investigação criminal direita pelo Ministério
57
Público.
Referida decisão foi tomada por unanimidade de votos, sendo que os demais
Ministros acompanharam o voto do Ministro Nelson Jobim, sem acrescentar outros
argumentos relevantes ao voto do relator. Por isso, interessa, nesse ponto final,
comentar apenas os fundamentos exarados no voto do Ministro-relator Nelson
Jobim.
A discussão contida nesse processo chegou à Suprema Corte através de
recurso ordinário em habeas corpus interposto contra decisão denegatória de habeas
corpus substitutivo impetrado pelo paciente, em última instância, perante o Superior
Tribunal de Justiça.
De acordo com o relatório do recurso, o recorrente, Delegado de Polícia, foi
notificado pelo representante do Ministério Público do Distrito Federal, para
comparecer ao Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade
Policial, a fim de ser ouvido em procedimento administrativo investigatório
supletivo, mediante ofício.
Contra essa notificação, o recorrente impetrou ordem de habeas corpus
perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e depois, de forma substitutiva,
perante o Superior Tribunal de Justiça, sendo, tais pedidos indeferidos em ambos os
Tribunais.
Da decisão denegatória proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, que
entendeu como válidos os atos investigatórios realizados pelo Ministério Público, o
recorrente chegou às portas do Supremo Tribunal Federal.
No ponto referente à impossibilidade do Ministério Público instaurar
procedimentos administrativos investigatórios para fins de oferecimento de
denúncia, o Ministro-relator Nelson Jobim, mais uma vez, reforçou os seus
argumentos já explanados no recurso extraordinário 233.072-4/RJ.
O eminente Ministro se apoiou em argumento histórico para afirmar que a
legitimidade para a condução do inquérito policial e a realização das diligencias
investigatórias é de atribuição exclusiva da polícia, lembrando que em todas as
58
passagens históricas em que se tentou formular uma alteração legislativa para
atribuir essa função ao Ministério Público não se obteve êxito.
O Ministro Nelson Jobim afirmou ainda que a Constituição Federal dotou o
Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração
de inquérito policial – artigo 129, inciso VIII – mas não contemplou a possibilidade
do mesmo realizar e presidir inquérito penal. Conclui seu raciocínio afirmando que
não cabe aos membros do Ministério Público inquirir direitamente pessoas suspeitas
de autoria de crime, mas requisitar tais diligências a autoridade policia.
Enfadonho repetir os argumentos – já exaustivamente trabalhados - que
contrariam esse posicionamento do eminente Ministro Nelson Jobim. Incube apenas
acrescentar uma pergunta: a quem interessa afastar o Ministério Público da
iniciativa de instaurar procedimentos investigativos quando o caso sob análise exige
tal postura?
Nas palavras da douta Procuradoria-Geral da República, em parecer que
propugnou pelo conhecimento do recurso extraordinário n° 233.072/4,
oportunamente mencionado, impedir ao titular da ação penal pública de exercer seu
mister em defesa da sociedade, sob a infundada alegação de que o fato não foi
investigado pela polícia é negar vigência ao preceito constitucional assecuratório da
titularidade da ação penal.
Em um Estado Democrático de Direito, no qual se afirma a essencialidade do
Ministério Público no desenvolvimento da função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis, como se pode pensar em tolher a possibilidade
do Parquet empreender procedimentos investigativos de forma direita, ainda mais
quando se esta diante de uma situação em se constata um desinteresse ou
comprometimento das outras instituições responsáveis por tal tarefa.
Importa afirmar que ainda há uma esperança. Desde o desenrolar das
decisões acima mencionadas a composição do Supremo Tribunal Federal mudou
bastante. Hoje, a Suprema Corte é composta pelos ministros Ellen Greice, Gilmar
Mendes, Celso Mello, Marco Aurélio Mello, Antonio Cezar Peluso, Carlos Ayres
59
Britto, Joaquim Barbosa Moreira, Eros Roberto Grau, Ricardo Lewandowski,
Cármen Lúcia e Carlos Alberto Menezes Direito.
Novos casos, referentes à mesma matéria, foram encaminhados ao plenário
da Suprema Corte. Espera-se, agora, que o Supremo Tribunal retome seu antigo
posicionamento e volte a consagrar as finalidades atribuídas ao Ministério Público
durante esses longos anos de construção histórica.
60
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após essas breves considerações, tornar-se interessante refazer algumas
perguntas. A quem interessa retirar do Ministério Público a possibilidade de realizar
investigações criminais de forma direta? Quem mais se beneficiaria com a nova
posição adotada pelo STF? O sistema acusatório estabelecido na Constituição
Federal pode ser utilizado como argumento para impedir o Parquet de realizar tais
investigações?
Como de resto ficou claro, a Polícia Judiciária não detém o monopólio da
investigação criminal. Isso porque, em um Estado Democrático de Direito, seria um
risco a própria defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis o monopólio de tal atividade.
Não há que se falar em usurpação da atividade da Polícia Judiciária, uma vez
que não se está defendendo a ingerência do Ministério Público em toda e qualquer
investigação criminal, mas tão somente naqueles casos em que a situação fática
exige.
Em determinadas hipóteses, a Polícia Judiciária, por ser uma instituição
vinculada ao Poder Executivo, perde muito de sua autonomia e realiza investigações
criminais contaminadas por forças político-partidárias extremamente prejudiciais ao
interesse primário do Estado.
Em outros casos, devido a um corporativismo exacerbado – o qual, diga-se
de passagem, não é privilégio da Polícia Judiciária – a investigação criminal não é
conduzida de maneira diligente. Nessas situações pode-se notar um claro
desinteresse em prosseguir com tais procedimentos investigativos.
Nesses casos, a vedação imposta ao Ministério Público só traria benefícios
aos altos cargos políticos e a uma parcela pequena da Polícia Judiciária que se
utiliza do sistema para alcançar interesses escusos, em muito apartados dos
objetivos buscados em um Estado Democrático de Direito.
Por fim, não se pode falar em uma afronta ao sistema acusatório, pois,
61
conforme sustentado, é a própria Constituição Federal que assegura ao Ministério
Público a possibilidade de empreender procedimentos investigativos criminais de
forma direta, sem qualquer ofensa a imparcialidade de seus membros.
Além do mais, o que caracteriza efetivamente um sistema acusatório não é,
como afirmam muitos autores, a existência de partes distintas no processo, mais sim
o afastamento do juiz da gestão da prova. Isso, mesmo que se reconheça ao
Ministério Público a possibilidade de empreender investigações criminais de forma
direita, está muito longe de ocorrer.
Assim, se o escopo maior de um Estado Democrático de Direito for resguardar
os interesses sociais e individuais indisponíveis e reduzir, o quanto possível à
desigualdade entre os seus administrados, deve-se se concluir pela impossibilidade de
se manter monopólio da investigação criminal nas mãos de uma única instituição.
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