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tirodeletra.com.br Isak Dinesen 24 min read • original Entrevista conduzida por Eugene Walter, publicada originalmente na Paris Review, nº de e republicada no livro: Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, de onde foi extraída. * * * Isak Dinesen nasceu em 1885, em Rungstedlund, Dinamarca, com o nome de Karen Dinesen. Freqüentou, na juventude, a sofisticada classe alta de Copenhague. Em 1913 ficou noiva de seu primo sueco, o barão Bror von B1ixen-Finecke. Decidiram então emigrar para a África e lá comprar uma fazenda. Casaram-se em 1914, em Mombasa, e mudaram para uma fazenda próxima a Nairobi. Foi um casamento infeliz; em poucos anos separaram-se e em 1921 divorciaram-se. Karen (agora) Blixen continuou a viver da plantação de café, que desenvolveu e administrou por dezessete anos. Quando o mercado do café entrou em colapso, em 1931, foi forçada a deixar a África e voltar para sua antiga casa, em Rungstedlund. Ali dedicou-se à literatura, escrevendo sob o pseudônimo de Isak Dinesen. Seven gothic tales (Sete novelas fantásticas) foi publicado na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1934, e deu-lhe fama imediata. Out of Africa (Uma fazenda africana), sobre seus anos no Quênia, foi lançado em 1937. Alguns de seus trabalhos posteriores são Winter's tales, 1942; Last tales, 1957; Anedoctes of destíny, 1958; Shadows on the grass, 1960 e Ehrengard, 1963. Isak Dinesen continuou a morar na Dinamarca até o fim de sua vida. Tem-se atribuído a saúde extremamente precária da escritora a uma doença venérea, que ela teria adquirido do marido nos primeiros anos do casamento, e que não foi devidamente tratada. Com longos períodos de internação, quase sempre doente e fraca demais até mesmo para se manter sentada, ditou suas últimas histórias à secretária. Faleceu aos setenta e sete anos, no dia 7 de setembro de 1962. Foi, de certa forma, uma escolha perfeita, quando há poucos anos, planejou-se um filme com Greta Garbo no papel de Isak Dinesen, na versão cinematográfica de Out of Africa. Pois a escritora é, como a atriz, uma Misteriosa Criatura do Norte. Isak Dinesen é, na verdade, a baronesa Karen Christentze Blixen-Finecke, dinamarquesa, filha de Wilhelm Dinesen, autor de uma obra clássica do século XIX, Boganis' Jagtbreve (Cartas de um caçador - ou esportista). A baronesa Blixen publicou seus livros em vários países usando nomes diferentes: geralmente Isak Dinesen, mas também Tania Blixen e Karen Blixen. Os velhos amigos a chamam de Tanne, Tanya e Tania. Há, além disso, um romance delicioso, que ela preferiu não reconhecer como de sua autoria por um certo tempo, se bem que qualquer leitor, sem dificuldade, seja capaz de ver a .baronesa se escondendo atrás de um outro pseudônimo, Pierre Andrézelo Os círculos literários viviam cheios de lendas e rumores a seu respeito: Ela na verdade é um homem; ele na verdade é uma mulher; "Isak Dinesen" na verdade é a criação conjunta de um casal de irmãos; "Isak Dinesen" foi para os Estados Unidos por volta de 1870; ela na verdade é parisiense; ele mora em Elsinore; ela passa a maior

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Isak Dinesen

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    Isak Dinesen

    24 min read original

    Entrevista conduzida por Eugene Walter, publicada originalmente na Paris Review,

    n de e republicada no livro: Os escritores 2: as histricas entrevistas da Paris Review.

    So Paulo: Companhia das Letras, 1989, de onde foi extrada.

    * * *

    Isak Dinesen nasceu em 1885, em Rungstedlund, Dinamarca, com o nome de Karen

    Dinesen. Freqentou, na juventude, a sofisticada classe alta de Copenhague. Em 1913

    ficou noiva de seu primo sueco, o baro Bror von B1ixen-Finecke. Decidiram ento

    emigrar para a frica e l comprar uma fazenda. Casaram-se em 1914, em Mombasa, e

    mudaram para uma fazenda prxima a Nairobi. Foi um casamento infeliz; em poucos

    anos separaram-se e em 1921 divorciaram-se. Karen (agora) Blixen continuou a viver

    da plantao de caf, que desenvolveu e administrou por dezessete anos. Quando o

    mercado do caf entrou em colapso, em 1931, foi forada a deixar a frica e voltar para

    sua antiga casa, em Rungstedlund. Ali dedicou-se literatura, escrevendo sob o

    pseudnimo de Isak Dinesen.

    Seven gothic tales (Sete novelas fantsticas) foi publicado na Inglaterra e nos Estados

    Unidos em 1934, e deu-lhe fama imediata. Out of Africa (Uma fazenda africana), sobre

    seus anos no Qunia, foi lanado em 1937. Alguns de seus trabalhos posteriores so

    Winter's tales, 1942; Last tales, 1957; Anedoctes of destny, 1958; Shadows on the grass,

    1960 e Ehrengard, 1963.

    Isak Dinesen continuou a morar na Dinamarca at o fim de sua vida. Tem-se

    atribudo a sade extremamente precria da escritora a uma doena venrea, que ela

    teria adquirido do marido nos primeiros anos do casamento, e que no foi devidamente

    tratada. Com longos perodos de internao, quase sempre doente e fraca demais at

    mesmo para se manter sentada, ditou suas ltimas histrias secretria. Faleceu aos

    setenta e sete anos, no dia 7 de setembro de 1962.

    Foi, de certa forma, uma escolha perfeita, quando h poucos anos, planejou-se um

    filme com Greta Garbo no papel de Isak Dinesen, na verso cinematogrfica de Out of

    Africa. Pois a escritora , como a atriz, uma Misteriosa Criatura do Norte. Isak

    Dinesen , na verdade, a baronesa Karen Christentze Blixen-Finecke, dinamarquesa,

    filha de Wilhelm Dinesen, autor de uma obra clssica do sculo XIX, Boganis' Jagtbreve

    (Cartas de um caador - ou esportista). A baronesa Blixen publicou seus livros em vrios

    pases usando nomes diferentes: geralmente Isak Dinesen, mas tambm Tania Blixen e

    Karen Blixen. Os velhos amigos a chamam de Tanne, Tanya e Tania. H, alm disso, um

    romance delicioso, que ela preferiu no reconhecer como de sua autoria por um certo

    tempo, se bem que qualquer leitor, sem dificuldade, seja capaz de ver a .baronesa se

    escondendo atrs de um outro pseudnimo, Pierre Andrzelo Os crculos literrios

    viviam cheios de lendas e rumores a seu respeito:

    Ela na verdade um homem; ele na verdade uma mulher; "Isak Dinesen" na verdade

    a criao conjunta de um casal de irmos; "Isak Dinesen" foi para os Estados Unidos

    por volta de 1870; ela na verdade parisiense; ele mora em Elsinore; ela passa a maior

  • parte do tempo em Londres; freira; ele muito hospitaleiro e recebe jovens

    escritores; ela difcil de se encontrar, vive como reclusa e escreve em francs; no,

    em ingls; no, em dinamarqus; na verdade, ela. .. - os rumores nunca terminavam.

    Em 1934, a editora Haas e Smith (posteriormente incorporada Random House)

    lanou Seven gothic tales, livro que Robert Haas tinha resolvido publicar no instante

    em que o lera. Tornou-se um best seller. Popular entre escritores e pintores, o livro

    foi, desde seu lanamento, tema de discusses que duraram um bom tempo.

    Fora dos cnones da literatura moderna, como um pssaro livre espiando uma

    gaiola, Isak Dinesen" oferece aos leitores a satisfao infinita do conto contado: E

    ento, o que aconteceu? ... Bem, ento ... " Seu instinto de contadora de histrias, ou de

    autora de baladas, associado a um estilo pessoal marcado pela clareza ornada com

    extremo bom gosto, levou Hemingway a fazer um protesto, no instante em que recebia

    seu Prmio Nobel, dizendo que o prmio deveria ter sido dado a Dinesen.

    CENA 1

    Roma, vero de 1956. O primeiro encontro acontece em um restaurante com mesas

    na calada, em Piazza Navona - aquele lugar amplo, outrora coberto de gua, onde se

    travavam batalhas navais simuladas. O crepsculo tinge o cu de flores iridescentes.

    O obelisco, rodeado pelas figuras de Bernini, parece plido e insignificante contra o

    cu. Em uma das mesas do caf encontram-se a baronesa Blixen, sua secretria e

    acompanhante de viagem, Clara Svendsen, e o entrevistador. A baronesa parece um

    personagem de suas histrias. Esguia, refinada e elegante, ela est vestida de preto,

    com longas luvas pretas e um chapu parisiense igualmente preto, que esconde seus

    olhos extraordinrios, mais claros na parte superior do que embaixo. O rosto fino e

    distinto; em torno de sua boca e dos olhos h sugestes de sorrisos que mudam

    constantemente. A voz agradvel, suave, mas com fora e timbre suficientes para

    que se perceba de imediato que aqui est uma senhora com opinies de grande

    profundidade e da mais encantadora frivolidade. Sua acompanhante, Clara Svendsen,

    jovem, tem um rosto expressivo e sorriso encantador.

    Entrevista? Oh, Deus ... Bem, tudo bem, acho que sim ... Mas no uma lista infinita de

    perguntas, ou um interrogatrio, espero ... Fui entrevistada h pouco tempo...

    Terrvel...

    SVENDSEN: , um homem veio fazer um documentrio... Foi como uma aula de

    catecismo ...

    No podamos ficar conversando, como agora, e voc anotaria o que quisesse?

    - Est bem. Assim a senhora poderia eliminar algumas coisas e acrescentar detalhes.

    Isso. Eu no devo me esforar muito. Estive doente por mais de um ano, numa casa de

    sade. Pensei at que fosse morrer. Planejei a minha morte, quer dizer, tomei algumas

    providncias. Esperava a morte.

    SVENDSEN: o mdico em Copenhague me falou: "Tania Blixen muito inteligente,

    mas a coisa mais inteligente que ela fez na vida foi sobreviver a duas operaes".

  • At cheguei a planejar o ltimo programa de rdio ... Havia dado uma srie de palestras

    sobre diversos assuntos pelo rdio, na Dinamarca . . . . Eles pareciam gostar de me

    ouvir. .. Planejei um programa sobre como era fcil morrer ... No uma mensagem

    mrbida, no era isso o que eu queria, mas uma mensagem de, bem, de alegria. ..

    dizendo que a morte era uma experincia intensa e bela. Mas eu estava muito doente,

    voc sabe, para fazer isso. Agora, depois de ficar tanto tempo na casa de sade, e to

    doente, no sinto que eu pertena mais a esta vida. Estou flutuando como uma gaivota.

    Sinto que o mundo feliz, esplndido e segue seu curso, mas que no fao parte dele.

    Vim a Roma para tentar entrar no mundo novamente. Oh, veja o cu agora!

    - A senhora conhece bem Roma? H quanto tempo a senhora esteve aqui?

    H poucos anos, quando tive uma audincia com o papa. A primeira vez foi em 1912,

    quando era menina. Fiquei com minha prima e melhor amiga, que era casada com o

    embaixador dinamarqus em Roma. Passevamos na Villa Borghese, todos os dias.

    Havia carruagens, que conduziam as beldades da poca. Podamos parar e conversar.

    Era maravilhoso. Agora olhe para esses carros, motocicletas, todo esse barulho e

    correria. Mas isso que os jovens de hoje querem: a velocidade a coisa mais

    fantstica que existe para eles. Quando me lembro do tempo em que eu andava a

    cavalo - sempre tive cavalo quando era menina - sinto que algo muito especial se

    perdeu para os jovens de hoje. As crianas de antigamente viviam de outro jeito.

    Tnhamos poucos brinquedos, mesmo nas famlias ricas. Brinquedos mecnicos

    modernos, que se movem sozinhos, mal comeavam a aparecer. Nossos brinquedos

    eram mais simples e tnhamos que fazer toda a parte de animao. Acho que a minha

    paixo pelas marionetes vem da. Tentei escrever peas para marionetes. Podia-se,

    naturalmente, comprar um cavalinho de pau, mas gostvamos muito mais de escolher

    pessoalmente um galho nodoso na floresta, que a imaginao logo transformava em

    Bucfalo ou Pgaso. Ao contrrio das crianas de hoje, que se contentam, desde que

    nascem, em serem observadores. .. ramos criadores. Os jovens de hoje no esto

    familiarizados com os elementos e nem em contato com eles. Tudo mecnico e

    urbano: as crianas so criadas sem conhecer o fogo em brasa, a gua corrente, a terra.

    Os jovens querem romper com o passado, eles odeiam o passado, no querem nem ouvir

    falar do passado, e, em parte, pode-se entender esta atitude. O passado imediato, para

    eles, no nada alm de uma histria interminvel de guerras, que no tem o menor

    interesse. Talvez seja o fim de alguma coisa, de um tipo de civilizao.

    - Mas o dio leva ao amor: eles podem ser levados, como num crculo, de volta

    tradio. Eu temeria mais a indiferena.

    Talvez. E eu mesma, sabe, gostaria de amar o que eles amam. Hoje eu adoro jazz. Acho

    que a nica novidade que surgiu na msica, desde que nasci. Ainda prefiro a msica

    antiga, mas gosto muito de jazz.

    Uma boa parte da sua obra parece pertencer ao sculo passado. Por exemplo, The

    angelc avengers.

    (rindo): Ah, esse o meu filho ilegtimo! Durante a ocupao alem da Dinamarca, eu

    pensei que iria enlouquecer de tanto tdio e desnimo. Queria tanto ter algum tipo de

    distrao, me divertir, e, para completar, estava sem dinheiro. Ento fui ao meu editor em

    Copenhague e disse: "Olha, voc pode me dar um adiantamento por um romance e enviar

    uma estengrafa para que eu possa dit-lo?". Eles concordaram, ela apareceu, e comecei a

  • ditar. Eu no tinha a menor idia sobre o que seria a histria, quando comecei.

    Acrescentava um pouco a cada dia, improvisando. Era tudo confuso demais para a pobre

    estengrafa.

    SVENDISEN - ela estava acostumada a cartas comerciais, e quando datilografava a

    histria, com base nas anotaes que havia feito, s vezes, colocava nmeros, como "as

    2 garotas apavoradas" ou "1 amor".

    Um dia eu comecei dizendo: "E a o Sr. Fulano de Tal entrou no quarto", e a estengrafa

    protestou: "Oh, Deus, mas ele no pode fazer isso! Ele morreu ontem, no captulo

    dezessete". No, prefiro manter The angelic avengers como sendo um segredo meu.

    - Adorei esse livro, e lembro que recebeu crticas favorveis. Muitas pessoas

    adivinharam que a senhora era a autora?

    Algumas.

    - E quanto a Winter's tales? Foi lanado no meio da guerra ... como a senhora conseguiu

    levar o livro para os Estados Unidos?

    Fui para Estocolmo - o que em si j no foi fcil de se fazer - e o mais difcil foi levar o

    manuscrito comigo. Fui embaixada norte-americana e perguntei se eles tinham

    avies saindo para os Estados Unidos todos os dias, e se poderiam levar o manuscrito,

    mas disseram que s levavam documentos polticos ou diplomticos. Ento fui

    embaixada britnica para me informar, e eles perguntaram se eu tinha referncias na

    Inglaterra, e eu tinha (vrios amigos meus faziam parte do ministrio, entre eles

    Anthony Eden). Eles passaram um telegrama para verificar a informao e disseram

    que sim, que enviariam,e foi assim que o manuscrito se ps a caminho dos Estados

    Unidos.

    - Eu me sinto envergonhado pela embaixada norte-americana. lgico que eles

    poderiam ter levado.

    Ah, no seja to duro com eles. Devo muito ao pblico norte-americano. De qualquer

    forma, alm do manuscrito enviei uma carta a meus editores nos Estados Unidos, para

    dizer que tudo estava nas mos deles, e que no poderia me comunicar com eles de

    forma alguma. No soube nada sobre Winter's tales, sobre como foi recebido, at o

    final da guerra, quando, de repente, chegaram dezenas de cartas encantadoras de

    soldados e marinheiros norte-americanos de todas as partes do mundo. O livro havia

    sido includo nas Armed Forces Editions - livros pequenos, que cabiam no bolso de um

    soldado. Fiquei muito emocionada. Recebi dois exemplares; dei um para o rei da

    Dinamarca e ele ficou feliz em ver que, apesar de tudo, uma voz havia se erguido do

    silncio de seu pas, naquele tempo de escurido.

    - A senhora estava falando sobre seu pblico norte-americano?

    , jamais vou me esquecer de como eles me receberam bem. Quando voltei da frica

    em 1931, depois de ter morado l desde 1914, eu havia perdido todo o dinheiro que tinha

    quando me casei, porque a plantao de caf no deu retomo. Pedi a meu irmo que me

    sustentasse por dois anos, enquanto eu preparava Seven gothic tales, e disse a ele que

    em dois anos estaria vivendo por minha conta, Quando o manuscrito ficou pronto fui

    para a Inglaterra, e um dia, num almoo, encontrei um editor, Huntington, e disse: "Sr.

    Huntington, tenho um manuscrito; gostaria muito que o senhor desse uma olhada", E

  • ele: "Do que se trata?", E quando respondi: "Um livro de contos", ele jogou as mos para

    o alto e exclamou: "No!". E eu implorei: "O senhor no vai nem ao menos dar uma

    olhada?". E ele: "Um livro de contos de uma autora desconhecida? De jeito nenhum!",

    Ento enviei o manuscrito para os Estados Unidos, e ele foi aceito imediatamente por

    Robert Haas, que o publicou, e os leitores, de um modo geral, acolheram bem o livro,

    gostaram, e sempre foram muito fiis. No, muito obrigada, chega de caf. Vou fumar

    um cigarro.

    - O editor, em qualquer lugar do mundo, sempre um cabea dura. a queixa

    tradicional dos escritores.

    O engraado que depois que o livro foi publicado nos Estados Unidos, Huntington

    escreveu para Robert Haas, elogiando o livro e pedindo o endereo do autor, dizendo

    que queria public-lo na Inglaterra. Ele tinha me conhecido como baronesa Blixen,

    enquanto Robert Haas e eu jamais havamos nos encontrado. Huntington nunca fez

    qualquer ligao entre Isak Dinesen e eu. Tempos depois ele realmente publicou o

    livro na Inglaterra.

    - Essa mesmo muito boa. Parece um dos contos do livro.

    Que gostoso ficarmos sentados aqui, ao ar livre. Mas acho que est na hora de ir

    andando. Que tal continuarmos nossa conversa no domingo? Gostaria de ver as peas

    etruscas em Villa Giulia. Podemos conversar mais um pouco l. Veja que lua!

    - Perfeito. Vou chamar um txi.

    CENA II

    Domingo, meio-dia quente e chuvoso. A coleo etrusca da Villa Giulia no tem

    visitantes demais por causa do tempo. A baronesa Blixen agora veste um conjunto de

    l marrom-avermelhado e chapu ocre de palha, cnico, que novamente esconde seus

    olhos extraordinrios. Enquanto a baronesa caminha entre as figuras, cermicas e

    jias etruscas, recentemente includas na exposio, parece to distante dos

    freqentadores comuns da galeria quanto as prprias peas. Caminha devagar, ereta,

    parando para apreciar demoradamente os detalhes que a agradam.

    Como ser que eles conseguiam esse tom de azul? Lpis-lzuli em p? Veja o porco! No

    Norte damos grande importncia ao porco em nossa mitologia. Ele uma espcie de

    protegido do sol. Imagino que seja porque no tempo do frio e da escurido sua gordura

    macia ajude a conservar o corpo aquecido. Um animal muito inteligente... Amo todos

    os animais. Tenho um cachorro enorme na Dinamarca, um alsaciano; ele imenso. Eu o

    levo para passear. Se ele morrer antes de mim, acho que vou preferir um cachorro

    pequeno - um buldogue-ano. Se bem que no sei se ainda possvel encontrar

    buldogues-anes hoje em dia. Houve uma poca em que era moda ter um. Veja s os

    lees nesse sarcfago. Como puderam os etruscos ter conhecido o leo? Na frica era o

    animal que eu mais gostava.

    - A senhora deve ter conhecido a frica em sua fase urea. O que fez com que se

    decidisse a ir para l?

    Quando eu era menina, ir para a frica era algo muito distante dos meus pensamentos, e

    nem sonhava, na poca, que uma fazenda africana seria um lugar em que eu poderia ser

    plenamente feliz. Isso prova que Deus tem uma imaginao muito maior e muito melhor

  • que a nossa. Mas, quando fiquei noiva de meu primo, Bror Blixen, um tio foi para a frica,

    fazer uma grande caada, e voltou deslumbrado com a regio. Theodore Roosevelt estivera

    caando por l nesta poca, tambm. A frica Oriental era moda. Ento Bror e eu

    decidimos tentar a sorte l, e nossas famlias financiaram a compra da fazenda, que ficava

    na regio montanhosa do Qunia, no muito distante de Nairobi. Logo no primeiro dia em

    que cheguei, fiquei apaixonada pela regio, e me senti em casa, mesmo entre flores,

    rvores e animais desconhecidos, e nuvens inconstantes sobre as montanhas Ngong,

    diferentes de todas as nuvens que j tinha visto. A frica Oriental era, ento, um

    verdadeiro paraso, aquilo que os ndios norte-americanos chamavam de "terras felizes de

    caa". Eu gostava muito de caar quando era jovem, mas o maior interesse durante minha

    longa estada na frica, eram os nativos africanos de todas as tribos, em especial os

    somalis e os masas. Eram povos bonitos, nobres, destemidos e sbios. Administrar uma

    plantao de caf no era nada fcil. Dez mil acres de terras, com gafanhotos, secas ...

    Percebemos muito tarde que o planalto onde ficava a nossa fazenda na verdade era alto

    demais para ter bons resultados com o caf. Acho que a vida l era um pouco como na

    Inglaterra do sculo XVIII; podia-se ficar sem dinheiro muitas vezes, mas, ainda assim,

    tinha-se uma vida rica, de vrias maneiras, uma paisagem linda, dezenas de cavalos e

    ces, e um monte de empregados.

    - Imagino que foi l que a senhora comeou a escrever seriamente?

    No, na verdade comecei a escrever antes de ir para a frica, mas antes no me

    passava pela cabea ser escritora. Publiquei alguns contos em revistas literrias na

    Dinamarca, quando tinha vinte anos, e as resenhas foram encorajadoras, mas no fui

    adiante - no sei, acho que tinha um medo intuitivo de cair numa armadilha. Alm

    disso, quando eu era moa, estudei um pouco de pintura na Academia Real

    Dinamarquesa; depois fui para Paris, em 1910, para estudar com Simon e Menard, mas

    ... (rindo) mas fiz poucos trabalhos. O impacto de Paris foi muito grande; senti que era

    mais importante sair e ver quadros, ver Paris, na verdade. Pintei um pouco na frica,

    em geral, retratos de nativos, mas toda vez que ia comear a trabalhar, aparecia

    algum dizendo que tinha morrido um boi ou alguma outra coisa, e eu tinha que ir para

    o campo. Depois, quando percebi que seria obrigada a vender a fazenda e voltar para a

    Dinamarca, comecei realmente a escrever. Para me distrair, comecei a escrever

    contos. Escrevi dois dos Gothic tales l. Mas, antes disso, havia aprendido a contar

    histrias. Pois, voc sabe, eu tinha a platia ideal. Os brancos no sabem mais ouvir

    uma histria contada. Ficam inquietos ou sonolentos. Mas os nativos ainda tm

    sensibilidade para isso. Eu vivia contando histrias para eles, todos os tipos de

    histrias. E todos os tipos de bobagens. Eu dizia: "Era uma vez um homem que tinha um

    elefante de duas cabeas" ... e na mesma hora eles j ficavam loucos para ouvir o resto

    da histria. "Oh, verdade? Mas Mem-Sahib, (1)* como ele o encontrou, e como fazia para

    aliment-lo?" ou outra pergunta qualquer. Eles adoravam fbulas desse tipo. Ficavam

    encantados ao me ouvir falar usando rimas; eles no tm rimas, voc sabe, no a

    tinham descoberto. Eu falava coisas como "Wakamba na kula mamba" ("A tribo

    Wakamba come cobra"), que, em prosa, os deixaria loucos de raiva, mas que, assim,

    rimado, os divertia muitssimo. Depois que fiz isso pela primeira vez, eles sempre

    pediam: "Por favor, Mem-Sahib, fale como a chuva", e foi a que soube que haviam

    gostado, pois a chuva l era muito preciosa para todos ns. Ah, Clara est chegando. Ela

    catlica, e hoje foi missa, para ouvir a um cardeal. Vamos comprar postais agora.

    Tomara que tenha algum com os lees.

    SVENDSEN: Bom-dia.

  • Clara, voc tem que ver que lees lindos; depois vamos comprar alguns postais e

    almoar.

    Compram-se os postais, chama-se um txi, guarda-chuvas abertos, o grupo corre para o

    txi, que parte dos chuvosos jardins da Villa Borghese.

    CENA III

    O Casino Valadier um restaurante elegante da Villa Borghese, logo acima da Piazza

    del Popolo, e oferece uma vista excelente de Roma. Depois de dar uma olhada rpida na

    cidade cinzenta de chuva, em um terrao completamente inundado, o grupo se

    encaminha para o salo forrado de detalhes em relevo, iluminado suavemente por

    candelabros, com carpetes de cores vivas e muitos quadros.

    Vou sentar aqui, assim posso ver tudo. (Acende o cigarro.)

    - Lugar agradvel, no?

    , muito agradvel e estou reconhecendo esse lugar. Estive aqui em 1912. Em Roma, de vez

    em quando, reconheo lugares que j visitei; de uma forma muito vvida. (Pausa) Oh! Vou

    ficar louca!

    - (Assustado): O que foi?

    Olha como aquele quadro est torto! (Aponta um quadro escuro do outro lado do salo)

    - Eu vou endireit-lo. (Vai at o quadro)

    No, mais para a direita.

    - Assim?

    Assim est melhor. (Dois cavalheiros de aspecto solene, mesa logo abaixo do quadro,

    demonstram certa perplexidade)

    - Em casa assim o tempo todo. O trnsito to intenso na rua que vivo arrumando os

    quadros.

    Moro no mar do Norte, a meio caminho entre Copenhague e Elsinore.

    - Talvez a meio caminho entre Xiraz e Atlntida?

    ... A meio caminho entre aquela ilha de A tempestade e onde quer que eu esteja. (O garom

    anota os pedidos; o almoo servido.) Vou fumar um cigarro agora. Voc se importa de

    ficar aqui mais um pouco? Detesto ter que sair de um lugar, depois de estar instalada num

    ambiente que me agrada. As pessoas vivem me dizendo para andar depressa, ou para fazer

    isso ou aquilo. Uma vez, quando eu estava navegando no cabo da Boa Esperana e

    surgiram albatrozes no cu, as pessoas ficavam dizendo: "Por que voc vai ficar no

    convs? Venha para dentro". Diziam: " hora do almoo", e eu disse: "Dane-se o almoo.

    Posso almoar todos os dias, mas bem provvel que eu nunca mais veja albatrozes". Um

    vo to lindo!

    - Fale sobre seu pai.

  • Ele serviu no exrcito francs, como meu av. Depois da guerra franco-prussiana, foi

    para os Estados Unidos e morou com os ndios das plancies, na imensa regio central

    de seu pas. Construiu sua prpria cabana e deu-lhe o nome de um lugar na Dinamarca

    onde, quando jovem, havia sido muito feliz - Frydenlund (Bosque feliz). Caava os

    animais por causa das peles, e tornou-se um comerciante de peles. Vendia

    principalmente para os ndios, e, com o que ganhava, comprava-lhes presentes. Uma

    pequena comunidade cresceu ao redor de sua cabana, e creio que hoje Frydenlund o

    nome de uma localidade no estado de Wisconsin. Quando ele voltou para a Dinamarca,

    escreveu seus livros. Ento, como voc pode ver, era natural que eu, sendo sua filha,

    fosse para a frica, convivesse com os nativos, voltasse para casa e escrevesse a

    respeito. Por sinal, ele tambm escreveu um livro falando de suas experincias

    durante a guerra intitulado Paris sob a comuna.

    - E como que a senhora escreve em ingls?

    Foi um processo natural. Freqentei escolas na Inglaterra por um bom tempo, depois

    de ter estudado com governantas, em casa. Por causa disso desconheo fatos comuns

    que so de conhecimento geral. Mas as governantas eram ambiciosas: ensinavam bem

    os idiomas, e uma delas me fez traduzir The lady of the lake para o dinamarqus.

    Depois, na frica, s convivia com ingleses. Falei ingls ou swahili durante vinte anos.

    E lia os romancistas e poetas ingleses. Prefiro os mais antigos, mas lembro a primeira

    vez em que li Chrome yellow de Huxley; foi como morder uma fruta desconhecida e

    refrescante.

    - Quase todas as suas histrias se situam no sculo passado. A senhora nunca escreve

    sobre os tempos modernos.

    Escrevo, se voc considerar que a poca de nossos avs, uma poca to fora do nosso

    alcance, tambm faz parte de ns. Assimilamos tanta coisa sem perceber. E, alm

    disso, escrevo sobre personagens que, juntos, so a histria. Comeo dando o sabor da

    histria, entende? Depois encontro os personagens, e eles assumem o comando. Eles

    tomam conta de tudo, eu simplesmente permito que tenham liberdade. Agora, na vida

    moderna, e na fico moderna, existe uma certa atmosfera, e principalmente, um

    movimento interior - dentro dos personagens - que algo completamente diferente.

    Sinto que na vida e na arte as pessoas se afastaram um pouco, neste sculo. A solido

    agora o tema universal. Mas escrevo sobre personagens dentro de um traado, como

    eles atuam uns sobre os outros. A relao com as outras pessoas importante para

    mim, entende, a amizade algo muito especial, e tenho sido abenoada com amizades

    verdadeiramente hericas. Mas o tempo em minhas histrias, flexvel. Posso comear

    no sculo XVIII e ir at a Primeira Guerra Mundial. Essas pocas esto bem separadas,

    so claramente distintas. Alm disso, so tantos os romances que pensamos que tm

    temas contemporneos data de sua publicao - pense em Dickens, Faulkner, Tostoi

    ou Turgueniev - e que, na verdade, situam-se em um perodo anterior, uma ou duas

    geraes antes. O presente sempre conturbado, ningum tem tempo para

    contempl-loa com tranqilidade... Fui pintora antes de ser escritora... , e o pintor

    nunca quer que o tema fique debaixo do nariz; ele quer recuar e estudar a paisagem

    com os olhos semicerrados.

    - A senhora j escreveu poemas?

    Escrevi, quando era menina.

  • - Qual a sua fruta favorita?

    Morango.

    - A senhora gosta de macacos?

    Gosto, adoro macacos na arte: em pinturas, histrias, porcelanas, mas no ao vivo; de

    alguma forma eles parecem to tristes. Eles me deixam nervosa. Gosto de lees e

    gazelas... Voc acha que pareo um macaco?

    (A baronesa refere-se a uma conversa anterior, em que algum havia sugerido, caso o

    conto The monkey viesse a ser filmado, que ela fizesse o papel do personagem que se

    transforma em um macaco.)

    - Sem dvida. Mas a senhora deve saber que existem. muitos tipos de macacos.

    (O entrevistador havia copiado um trecho de The monkey kingdom de Ivan Sanderson, e,

    para a imensa satisfao da baronesa, comea a l-lo.)

    -"A definio da palavra 'macaco' no foi, no entanto, resolvida de forma satisfatria.

    Alm do mais, essa questo aparentemente simples requer uma anlise cuidadosa,

    antes que possamos dar prosseguimento a nossa histria, pois, embora no estejamos

    nica nem principalmente interessados em meros macacos, no podemos, sem essa

    resposta, nos lanar ao universo maior das formas de vida ao qual eles pertencem."

    (Ri, encantada): Mas nenhuma histria pode prosseguir sem a anlise de questes

    aparentemente simples. E nenhuma cauda, tambm. (2)

    CENA IV

    Agora estamos no parapeito da torre central do Castelo de Sermonetta, no alto de um

    monte, rodeado por uma cidade, a cerca de uma hora e meia ao sul de Roma. Para

    chegar ali, havamos atravessado a ponte levadia sobre o fosso que cerca o castelo e

    subido uma escada de mo que no oferecia a mnima segurana. Vimos fragmentos de

    afrescos do sculo XIV e, na priso da torre, frases e desenhos rabiscados na parede, que

    pareciam ter sido escritos hoje, mas que, na verdade, datavam da poca em que

    soldados do exrcito de Napoleo haviam sido encarcerados ali. O grupo chega ao alto

    da torre, protegendo os olhos contra a luz do sol. L embaixo, a plancie Pontine se

    estende verdejante e dourada at o mar, banhada pela luz resplandecente do sol da

    tarde. L de cima, podemos avistar figuras minsculas trabalhando nos campos de

    gros e pomares de pssegos.

    - Acho estranho que praticamente nenhum crtico, seja nos Estados Unidos, seja na

    Inglaterra, tenha apontado o elemento cmico to evidente em suas obras. Acho que

    poderamos falar um pouco sobre o humor de suas histrias.

    Ah, fico contente por voc ter mencionado isso! As pessoas vivem me perguntando qual

    o significado disso ou daquilo em minhas histrias - "O que isso simboliza? O que quer

    dizer aquilo?" E sempre muito difcil fazer com que elas acreditem que quero dizer

    exatamente o que est escrito. Seria horrvel se a explicao de um trabalho estivesse

    fora do prprio trabalho. E quase sempre tenho realmente uma inteno cmica, adoro

  • uma histria engraada, adoro o humor. O nome "Isak" significa "riso".

    Freqentemente penso que o que ns mais precisamos hoje em dia de um grande

    humorista.

    - Quais so os humoristas de lngua inglesa que a senhora mais gosta?

    Vejamos ... Mark Twain, por exemplo. Mas todos os escritores que eu admiro

    geralmente tm uma veia cmica. Pelo menos os escritores de contos sempre a

    possuem.

    - E quais so os escritores de contos que mais a atraem, com os quais a senhora sente

    uma certa afinidade?

    E. T. A. Hoffman, Hans Andersen, Barbey D'Aurevilly, La Motte Fouqu, Chamisso,

    Turgueniev, Hemingway, Maupassant, Stendahl, Tchecov, Conrad, Voltaire ...

    SVENDSEN: No se esquea de Melville! Ela me chama de Babu, como o personagem de

    Benito Cereno - quando no me chama de Sancho Pana.

    - Nossa, a senhora leu todos eles!

    que, na verdade, tenho trs mil anos, e j jantei com Scrates.

    - Como?

    (Rindo e acendendo um cigarro): Nunca me disseram o que eu devia ou o que no devia

    ler. Eu lia tudo que caa em minhas mos. Descobri Shakespeare muito cedo, e hoje sinto

    que a vida seria um imenso vazio sem ele. Uma das minhas novas histrias, por sinal,

    sobre um grupo de atores encenando A tempestade. Gosto muito de alguns escritores

    vitorianos que ningum mais l: Walter Scott, por exemplo. Ah, e gosto muito de Melville,

    da Odissia, das sagas nrdicas - Voc j leu as sagas nrdicas? Adoro Racine, tambm.

    - Eu me lembro da observao que a senhora fez sobre a mitologia nrdica em uma das

    histrias de Winter's tales. (3) Por sinal, acho muito interessante o fato de a senhora ter

    privilegiado o conto.

    Foi uma coisa natural. Meus amigos literatos na Dinamarca disseram que o corao da

    minha obra se encontra no na idia, mas no fio da histria, algo que se pode contar,

    como se pode contar Ali Bab e os quarenta ladres, mas no se pode contar Anna

    Karenina, por exemplo.

    - Mas algumas pessoas acham que seus contos so "artificiais" ...

    (Sorrindo): Artificiais? Lgico, eles so artificiais. Foram feitos com este propsito, pois

    esta a essncia da arte de contar histrias. E sinto que reconheci isso. .. ou melhor, que

    sugeri isso. .. ao chamar os meus primeiros contos de "gticos" .. ,. Quando usei a palavra

    gtico, no me referia ao gtico propriamente dito, mas imitao do gtico, ao

    romantismo de Byron, poca de Horace Walpole, que criou Strawberry Hill, poca do

    renascimento do esprito gtico ... Voc conhece Castle of Otranto de Walpole, no

    conhece?

    - Conheo, claro. Num conto o enredo o mais importante, no ?

  • Sim, . Comeo com um formigamento, uma espcie de pressentimento da histria que

    vou escrever. Ento surgem os personagens, e eles assumem o comando, fazem a

    histria. Mas tudo isso acaba sendo um enredo. Para outros escritores, parece uma

    coisa artificial. Mas uma histria de verdade tem forma e contorno. Numa pintura a

    moldura muito importante. Onde o quadro termina? Que detalhes devem ser

    includos? Ou omitidos! Onde vai a linha que delimita o quadro? As pessoas vivem me

    perguntando se em The deluge at Nordeney as personagens morrem afogadas ou

    conseguem se salvar no final. (Voc se lembra, elas ficam presas num sto durante

    uma enchente e passam a noite contando suas histrias enquanto aguardam o resgate.)

    Bem, o que posso responder? O que dizer a eles? Isso est fora da histria. Eu no sei

    mesmo!

    - A senhora reescreve seus contos muitas vezes?

    Ah, reescrevo, muitas vezes. infernal. Muitas, muitas vezes. A, quando penso que

    terminei, e Clara faz as cpias para enviar aos editores, dou uma olhada, tenho um

    acesso, e reescrevo mais uma vez.

    SVENDSEN: Em uma das histrias havia uma personagem secundria, Mariana the rat,

    dona de uma taverna chamada "The lousing-comb". Os editores mencionavam a

    personagem na sobrecapa do livro, mas quando estavam com as provas finais prontas,

    ela j no fazia mais parte da histria. Isso deve ter causado uma certa perplexidade.

    - Muitas pessoas ficam bastante confusas com o conto The Monkey.

    , fico cansada com tantas perguntas que so feitas sobre este conto em particular.

    Mas uma histria fantstica; deve ser vista como tal. A idia deixar que o macaco

    resolva toda a confuso, quando o enredo ficar complicado demais para personagens

    humanas. Mas as pessoas dizem: "O que isso significa?". isso o que isso significa ...

    (Faz uma pausa, com um leve sorriso.) Seria horrvel se eu pudesse explicar o conto

    melhor do que j expliquei no prprio conto. Como nunca me canso de dizer, a histria

    deveria ser tudo.

    - Acho que todo mundo tem interesse em saber como seus contos ganham forma.

    Especialmente aqueles com histrias dentro da histria. Por exemplo, The deluge at

    Norderney... Parece algo to inevitvel e ordenado, mas se analisarmos a histria, como

    ela feita, uma coisa surpreendente. .. Como a senhora ... ?

    (Interrompe, sorrindo com uma certa malicia) Leia, leia a histria, e voc vai saber

    como ela escrita !

    Como eplogo, vamos transcrever um trecho de Albondocani, uma serte de contos

    interligados, inacabados devido ' morte da autora, em 1962. Esse trecho de The blank

    page, publicado em Last tales (1957). Uma mulher idosa, que ganha a vida contando

    hist6rias, diz:

    Com a minha av, passei por um duro aprendizado. "Seja fiel histria" a velha bruxa

    costumava me dizer - "seja eterna e constantemente fiel histria." "E por que tenho

    de ser assim, vov?" - perguntei a ela. "Por acaso estou aqui para lhe dar motivos,

    atrevida?" - gritou. "E ainda pretende ser uma contadora de histrias! Bem, se voc

    quer mesmo ser uma contadora de histrias, eu vou lhe dizer a razo! Preste ateno:

    quando o contador de histrias fiel, eterna e constantemente fiel histria, ento, no

  • final, o silncio se manifesta. Quando a histria trada, o silncio que surge no

    nada alm de um vazio. Mas ns, os fiis, quando tivermos falado nossa ltima palavra,

    ouviremos a voz do silncio. Quer uma pirralhinha irritante entenda isso ou no!"

    "Quem, ento - ela continua - capaz de contar uma histria mais bonita do que

    qualquer um de ns? O silncio. E onde se l uma histria mais profunda do que na

    pgina mais bem impressa do mais belo dos livros? Na pgina em branco. Quando a

    pena delicada e elegante, no momento da mais elevada inspirao, escreve a histria

    com a mais rara das tintas - onde, ento, leremos uma histria ainda mais profunda,

    mais alegre, mais doce e mais cruel do que essa? Na pgina em branco."

    (Traduo de Luiza Helena Martins Correia)

    Notas:

    (1) Forma respeitosa que os nativos usam para se dirigir a uma mulher europia.

    Utilizado pelos indianos, foi levado para a frica pelos colonizadores britnicos. (N.

    T.)

    (2) No original h um jogo entre as palavras tale (conto, histria) e tai! (cauda, rabo).

    (N. T.)

    (3) "E fico pensando, enquanto leio", diz o jovem nobre em "Sorrow-acre",. "que at

    agora no compreendemos o quanto a nossa mitologia nrdica supera em grandeza

    moral a mitologia da Grcia e de Roma. No fosse pela beleza fsica dos deuses antigos,

    que chegou at nossos dias atravs do mrmore, nenhuma mente moderna poderia

    consider-los dignos de adorao. Eram deuses mesquinhos, caprichosos e traioeiros.

    Os deuses de nossos antepassados dinamarqueses so muito mais divinos, como os

    druidas so mais nobres do que os ugures."

    Original URL:

    http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/IsakDinesen.htm