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_________________________________________________________________________ Jean-Luc Godard e a crítica do tempo histórico Antoine de Baecque 1 Tradução: Humberto Pereira da Silva 2 História(s) do Cinema (1989-1999), de Jean-Luc Godard. O passado não existe nos primeiros filmes de Jean-Luc Godard. François Truffaut, em 1966, se surpreende e fica mesmo impressionado: “Em doze filmes, Godard jamais faz alusão ao passado, mesmo nos diálogos: nenhum personagem fala de seus pais ou de sua infância, isso é extraordinário. Ele filma apenas o 1 Publicado originalmente em Vingtième Siècle. Revue D´Histoire 2013/1 (Nº 117), pp. 149-164 (https://www.cairn.info/revue-vingtieme-siecle-revue-d-histoire-2013-1-page-149.htm) 2 Professor de história do cinema na Faap e na Academia Internacional de Cinema, autor de Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016). Coorganizador, com Fatimarlei Lunardelli e Ivonete Pinto, de Ismail Xavier – um pensador de cinema brasileiro (Sesc/Abraccine, 2019). Membro da Abraccine.

J e a n - L u c G o d a r d e a c r í t i c a d o t e m p o h i s t ó r i c o · 2020. 10. 29. · Siegfried Kracauer é apaixonado pela homologia entre história e cinema (a historicidade

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  • _________________________________________________________________________

    Jean-Luc Godard e a crítica do tempo histórico  Antoine de Baecque  1Tradução: Humberto Pereira da Silva  2

    História(s) do Cinema (1989-1999), de Jean-Luc Godard. 

    O passado não existe nos primeiros filmes de Jean-Luc Godard.                   

    François Truffaut, em 1966, se surpreende e fica mesmo                 

    impressionado: “Em doze filmes, Godard jamais faz alusão ao                 

    passado, mesmo nos diálogos: nenhum personagem fala de seus                 

    pais ou de sua infância, isso é extraordinário. Ele filma apenas o                       

    1 Publicado originalmente em Vingtième Siècle. Revue D´Histoire 2013/1 (Nº 117), pp. 149-164 (https://www.cairn.info/revue-vingtieme-siecle-revue-d-histoire-2013-1-page-149.htm) 2 Professor de história do cinema na Faap e na Academia Internacional de Cinema, autor de Glauber Rocha: cinema, estética e                                         revolução (Paco Editorial, 2016). Coorganizador, com Fatimarlei Lunardelli e Ivonete Pinto, de Ismail Xavier – um pensador de                                   cinema brasileiro (Sesc/Abraccine, 2019). Membro da Abraccine. 

    https://www.cairn.info/revue-vingtieme-siecle-revue-d-histoire-2013-1-page-149.htm

  • que é moderno”. Trinta anos mais tarde, no fim dos anos 1990,                       3

    quase podemos inverter essa proposição, assim como ignorar o                 

    termo “extraordinário”: não existe mais nos filmes de Godard, de                   

    História(s) do Cinema a Filme Socialismo, da Nouvelle Vague à                   

    exposição no Centro Georges Pompidou em 2006, senão retorno                 

    ao passado, por meio de personagens, imagens, citações,               

    histórias, sua própria persona. “Duas histórias nos acompanham,               

    ele diz numa entrevista em dezembro de 1977, retomando à sua                     

    maneira uma metáfora de Fernand Braudel. A história que se                   

    aproxima de nós a passos apressados e outra que nos acompanha                     

    a passos lentos. Os passos apressados terminaram para mim;                 

    agora, estou na história a passos lentos”. Para Godard, o cinema                     4

    é desde então a forma de arte que permite “tornar visível” a                       

    história de seu século, e com isso salvá-la. “Minha ideia, bastante                     

    ambiciosa, é que Jules Michelet não detinha elementos em seu                   

    tempo, mesmo quando terminou sua monumental História da               

    França, para dizer o que é propriamente a história, pois só o                       

    cinema pode torná-la visível”. O cinema conquistou em nosso                 5

    tempo um papel histórico, uma missão face a face com o passado:                       

    “Ele é tão somente um mascate que nos fornece a um bom preço                         

    os sinais da história”.  6

    O cineasta explica a relação de seu cinema com o passado a partir                         

    de sua situação singular, ao se colocar no centro de uma dupla                       

    história sobreposta: um lugar geracional, o de um artista que teve                     

    origem na Nouvelle Vague, “talvez a única geração que se                   

    encontra no meio do século e do cinema” (Godard parece ter                     7

    compreendido e assumido a força dessa encarnação) e o                 

    cruzamento entre a história pessoal e a do século, que tem como                       

    ponto preciso a Nouvelle Vague, o trampolim do qual ele se                     

    lançou para tornar visível a história. Esse destino é formulado no                     

    segundo episódio das História(s) do Cinema: “O cinema foi a única                     

    3 Le cinéma selon François Truffaut, Paris, Flammarion, 1988, p. 239.  4 “La vie vécue depuis”, Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, Paris, Éd. des Cahiers du cinéma, 1998, t. II, p. 10. 5 “À propos de cinéma et d´histoire”, discurso de Godard ao receber o prêmio Adorno em 1995. Reproduzido em Ibid., p. 401-4015.  6 Ibid. 7 Ibid. 

  • forma de fazer, de contar que há a minha história, eu tenho uma                         

    história enquanto eu, dentro da história de todos. Se não                   

    houvesse cinema, eu não saberia que tenho uma história nem que                     

    a história existe”. A única forma de contar a história, ou de fazer                         8

    a história, é pelo cinema. Como se Godard fosse o depositário de                       

    uma herança que o supera e ao mesmo tempo o enriquece com                       

    uma promessa a ser cumprida: mover a história do século para a                       

    história do cinema e vice-versa. 

    A respeito de Godard vale destacar, entre muitos retratos                 

    possíveis, o de um artista que devaneia, e assim ele pode ser visto                         

    também como historiador. Para ele se trata sempre de “montar e                     

    mostrar ao mesmo tempo” o que é (foi) o cinema e o que é (foi) o                               9

    século. O cineasta criou uma forma de montagem-ensaio com                 

    vocação para incorporar a história à maneira de uma epopeia                   

    íntima e coletiva, uma forma de confissão infantil do século que                     

    seria também um “cine-filho”. Nos colocamos frente a uma                 10

    forma cinematográfica de autobiografia de todos, na qual o                 

    cineasta, ao buscar a razão de ser como ele é em sua própria                         

    história, acaba iluminando as razões da história, e tenta mesmo                   

    salvá-la, conferindo ao cinema, que faz o registro, uma                 

    responsabilidade moral. Contudo, Godard trabalha a história da               

    vida do cinema em dois tempos: o presente, na primeira parte de                       

    sua obra, a dos anos 1960; e em seguida o passado, em um                         

    segundo momento a partir dos anos 1980. Mas, cada um destes                     

    tempos possui uma virtude crítica, a que põe em causa no                     

    presente a insatisfação com a civilização ocidental. Godard               

    começa a criticar o presente em nome do presente, que ele                     

    registra como um quase cineasta sociólogo; em seguida, ataca o                   

    presente tendo como arma o passado, que é resgatado com                   

    lirismo graças à montagem. Nos dois casos, trata-se da postura                   

    de artista historiador, no sentido em que a escrita da história                     

    pode ser definida como uma abordagem crítica dos tempos, um                   

    8 Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma, episódio 1B. 9 Antoine de Baecque, “Sur les Histoir(s) du cinema”, Cahiers du Cinéma, 513, maio de 1997.   10 Serge Daney, “Itinéraire d´un ciné-fils”, Éd. Montparnasse, 2004.  

  • confronto conflituoso dos tempos produzindo uma interpretação             

    histórica. 

     

    Historicidades do cinema 

    O cinema é a arte que dá forma à história, pois é aquela que pode                             

    mostrar a realidade histórica dispondo de fragmentos da própria                 

    realidade segundo uma organização original e estética: a               

    encenação. É assim que ele torna visível sua própria historicidade.                   

    É a arte de uma forma sensível da história e sensível à história;                         

    como escreve Jacques Rancière, o cinema “tece o tecido que é                     

    sensível ao mundo comum”. Jean-Luc Godard tão somente               11

    propõe que filmes permitam um jogo no qual a estética revele a                       

    história. A estética, dimensão formal, tem um papel essencial na                   

    historicidade do cinema, ou seja, na transformação de alguns                 

    filmes em história. Pela encenação, pelo estilo cinematográfico,               

    um filme pode provocar vivas reações sociais: a forma, aqui,                   

    responde às necessidades de conhecimento histórico de uma               

    sociedade, enquanto corresponde às intenções precisas do             

    realizador, que é simultaneamente artista criador e intérprete.               

    Siegfried Kracauer defende a ideia de que o cinema, ao menos                     

    alguns filmes, representa uma “forma social” que revela um                 

    estado psicológico de opinião, mesmo físico, e igualmente uma                 

    “estética social” que é um dos meios de conhecimento da                   

    identidade histórica de uma sociedade. Trata-se de passar pela                 12

    arte para expressar os motivos sociais, históricos, por vezes                 

    latentes ou reprimidos ou ainda opacos. Em alguns momentos de                   

    crise, de trauma, de guerra, de autoquestionamento sobre o Eu                   

    coletivo, a forma cinematográfica aparece como um dos melhores                 

    índices de conhecimento da história, pois essa forma torna                 

    inteligível certo estado histórico da sociedade. Isso de duas                 

    maneiras. A forma cria, de um lado, um espaço de diálogo, em que                         

    se pode provocar um debate de opinião, uma recepção social ou                     

    11 Jacques Rancière, “Les mots de l´histoire du cinéma”, Cahiers du Cinéma, 496, outubro de 1995. 12 Siegfried Kracauer, Théorie du film, Paris, Flammarion, 2010, p. 21-22. 

  • política. Por outro lado, a forma, uma vez formatada, é como uma                       

    empreitada que cruza a sociedade, a qual se vê e por vezes se                         

    reconhece revelada pela estética. 

    Há um marco primordial: enfrentar o problema da forma como                   

    historiador. Trata-se de provocar um corte cômodo nos campos                 

    de pesquisa e nos problemas: aos historiadores e historiadores de                   

    cinema, a contextualização de filmes populares, de gênero,               

    mesmo de minorias, de “filmes sem qualidades” relevantes na                 

    cultura de massa; e aos estudos cinematográficos, a análise                 

    formal e o estudo de caso. Não acreditamos na definição nem na                       

    limitação de “filme histórico” ou mesmo de “filme de história”.                   

    Mas distinguiremos, sem regras nem normatização de campo               

    disciplinar, três linhas no horizonte das relações entre o cinema e                     

    a história. A atitude do cinema em que se faz a reconstituição do                         

    passado, o que de fato, dizia Abel Gance, “entra definitivamente                   

    no templo das artes pela gigantesca porta da história”; a                   13

    capacidade do cinema para “embalsamar o real”, isso que                 14

    metamorfoseia todo filme em testemunha histórica em             

    potencial, que se pense no presente de 1960 captado pelas obras                     

    da Nouvelle Vague; enfim, o potencial do cinema para se oferecer                     

    como forma ao processo histórico: ferramentas ideais para               15

    elaborar uma interpretação da história, cujos motivos podem ser                 

    o olhar-câmara, a montagem, os efeitos de estilo etc. Assim, o                     

    cinema, em sua diversidade, opera com registros tão vastos que                   

    autoriza o historiador, que os observa e os utiliza como                   

    instrumentos de revelação, a ver, analisar, compreender tão bem                 

    os excessos quanto a frágil veemência, o lirismo quanto a                   

    contemplação, a violência quanto a calma, o grande espetáculo                 

    quanto o tedioso, a emoção quanto a banalidade do cotidiano.                   

    Todas essas manifestações da história são possíveis em um filme. 

    Siegfried Kracauer é apaixonado pela homologia entre história e                 

    cinema (a historicidade do cinema), vendo uma analogia entre                 

    13 Abel Gance, “Appel à tous les collaborateus de Napoléon”, Paris, 4 de junho de 1924. 14 Antoine de Baecque, Histoire et cinéma, Paris, Éd. Cahiers du cinema, 2007, p. 27. 15 Antoine de Baecque, L´Histoire-caméra, Paris, Gallimard, 2008, p. 19-52. 

  • dois “estados intermediários pré-cozidos”. Com Kracuaer,           16

    pensamos que a operação historiográfica e a cinematográfica têm                 

    em comum a capacidade de dar uma forma inteligível aos traços                     

    materiais de uma realidade que elas testemunham, a forma                 

    escrita no caso da história e visual no do cinema. Podemos dizer                       

    que o historiador e o cineasta apelam a todos recursos formais                     

    para dissolvê-los nos fenômenos da vida banal, pois os                 

    reconfiguram por meio da escrita (a história) ou da montagem                   

    visual (o cinema), de tal forma que os fenômenos da realidade                     

    sejam lidos ou vistos segundo uma aptidão que diz respeito à                     

    imaginação e aos sentidos, e então eles assumem um sentido                   

    histórico. 

     

    Godard e a doença do presente 

    Jean-Luc Godard é um radar, a placa tectônica sensível de sua                     

    época, o melhor sismógrafo dos movimentos da sociedade e das                   

    rupturas que percorrem a vida coletiva. Existe nele a vontade                   

    constante de ir até o topo e tocá-lo, de ser contemporâneo. Ele                       

    possui uma relação por vezes soturna, mas sempre sensível com o                     

    presente de sua época. “Filho de seu tempo, assim como seu pai”,                       

    escreve Marc Bloch. Isso transforma cada filme, cada palavra,                 17

    cada engajamento, em testemunho. Mas não o impede de ter                   

    estilo, ao contrário, há um estilo Godard reconhecível entre                 

    todos, frequentemente imitado, mas inimitável: nele, o estilo faz                 

    a época, que imediatamente se torna uma forma cinematográfica                 

    da história. Godard vive no mundo em que filma e filma o mundo                         

    em que vive, mesmo que deseje, por vezes, se ausentar, se manter                       

    distante. Ele envia sua imagem com um potencial inigualável.                 

    Isso é mais que uma petição de princípio: um protocolo                   

    epistemológico, um constante recurso metodológico, uma           

    incitação sempre articulada com o presente e o mundo. 

    16 Siegfried Kracauer, L`Histoire: de avants-derniers choses, Paris, Stock, 2006, p. 117. 17 Marc Bloch, Apologie pour l´histoire ou Métier d´historien, Paris, Armand Colin, 1949, p. 14. 

  • Assim, Godard ficou preso a seu tempo porque não estava à                     

    vontade nele. De modo que todos seus heróis dos anos 1960                     

    acabaram mal, menos em Alphaville: Poiccard morreu com um                 

    tiro nas costas, Nana de bala perdida no fim de Viver a Vida, os                           

    carabineiros fuzilados às escondidas com uma rajada de               

    metralhadora, Camille de O Desprezo abalroada em seu carro                 

    vermelho por um caminhão, Paul Doinel em Masculino-Feminino               

    caiu do quarto andar sem que se saiba se foi suicídio ou acidente,                         

    os dois, sem dúvida. Essas mortes são isoladas, sem causas, sem                     

    passado, são mortes absurdas, mas ainda não são a de todo o                       

    cinema, nem da sociedade. O primeiro, ao contrário, está em                   

    plena forma; já a sociedade deixa a impressão de viver seus                     

    “Trinta gloriosos”. * Em contrapartida, o indivíduo em Godard               18

    está imediatamente em plena desordem, pouco à vontade diante                 

    da história, entre o dandismo e a melancolia. Encontramos o                   

    traço desse desespero face a face com o presente desde o primeiro                       

    filme manifesto godardiano, O Pequeno Soldado (1960). A relação                 

    com sua época é o sinal de uma crise profunda, o que exprime                         

    exemplarmente Bruno Forestier, o herói do filme, encarnado por                 

    Michel Subor, em sua confissão final de jovem cooptado pela                   

    política da desilusão, do desencantamento, do mal-estar, que se                 

    torna testemunha irônica, cínica, maliciosa, de seu próprio               

    declínio: 

    “É terrível hoje, se você permanecer tranquilo sem fazer                 nada, se esgoelar, justamente porque você não faz nada.                 Então, fazemos coisas sem convicção, e acho perigoso ir                 para a guerra sem convicção. Há uma frase muito bela, de                     quem é ela? Acho que é de Lênin: ‘a ética é a estética do                           futuro...’ Acho essa frase bem comovente. Ela reconcilia a                 direita e a esquerda. Em que pensam as pessoas de direita e                       as de esquerda? A partir do momento que um governo                   reacionário chega ao poder, ele aplica uma política de                 esquerda, e o contrário... Em meados da década de 1930, os                     jovens esperavam a revolução. Por exemplo, Malraux, Drieu               la Rochelle, Aragon. Nós não esperamos nada. Eles tinham                 diante deles a guerra espanhola, nós não temos mesmo uma                   guerra diante de nós” 

    18* A expressão, usual na França, designa o período de forte crescimento econômico e de aumento de nível de vida na maioria dos                                             países desenvolvidos entre 1946 e 1975. (N. T.) 

  •  

    Forestier, anarquista de direita, mas leitor de autores de                 

    esquerda, dândi de estilo desesperado, está à procura de um ideal.                     

    Ele não o encontra. “Pode ser que, apesar de tudo, levantar                     

    questões seja mais importante que achar respostas”, acaba por                 

    concluir. É muito difícil (isso é um eufemismo) encontrar uma                   

    posição política definida em O Pequeno Soldado, como além disso                   

    no pensamento de Godard nessa época, em que ele alterna                   

    tomada de posição e provocações. 

    Mas é certo que o cineasta e seus heróis, e mais geralmente a                         

    Nouvelle Vague, partilham o sentimento de mal-estar com               

    respeito a seu tempo: ambos profundamente deslocados,             

    conscientes da pouca espessura histórica do presente e               

    fascinados pelos perdedores da história. Esse “outro             

    acampamento” de que fala Godard mistura todos aqueles que não                   

    têm razão face ao engajamento massivo dos intelectuais               

    franceses de esquerda: ex-colaboradores da ocupação purificados             

    com a libertação, hussardos que se tornam “escritores fascistas”                 

    para a prosa progressista da revista Les Temps modernes *,                 19

    pequenos soldados da extrema direita da OAS * vistos como tema                   20

    de interesse romântico e romanesco no momento em que são                   

    perseguidos tanto pela polícia gaullista quanto pelos militantes               

    do anticolonialismo. Mais do que um engajamento reivindicado e                 

    contextualizado, trata-se de um desarranjo temporal face ao               

    mundo e à sua história recente. O que caracteriza o espírito da                       

    Nouvelle Vague não é a ausência de contexto presente (ao                   

    contrário, ele é muito mais persistente do que no cinema francês                     

    de duas décadas antes), mas a recusa de simplificações que                   

    fariam a eficácia do engajamento. A ideia segundo a qual o mundo                       

    é mais complexo do que sustentam os militantes é a força de um                         

    movimento que, politicamente, sempre quis embaralhar as             

    19* Revista política, literária e filosófica francesa mais prestigiosa no período pós-guerra; em seu corpo editorial destacavam-se                                 Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Raymond Aron e Maurice Merleau-Ponty. (N. T.)   20* OAS – Organisation armée secrèt - foi uma organização político-militar clandestina que defendia a presença francesa na Argélia,                                     e isso incluía a adoção de atos de terror em grande escala. (N. T.) 

  • pistas; como se a Nouvelle Vague, que dificilmente admirou seu                   

    tempo, tenha preferido romantizá-lo, transformá-lo em lenda             

    em preto e branco graças ao estilo soberano de uma forma                     

    cinematográfica muito poderosa. 

    O verdadeiro tema de O Pequeno Soldado e de Godard dos                     

    anos1960, mesmo quando ele passa da direita à esquerda no                   

    tabuleiro de xadrez político por volta de 1964, e igualmente nas                     

    múltiplas censuras de seus filmes pelo poder gaullista, é a doença                     

    na história da geração Nouvelle Vague: uma juventude               

    amplamente despolitizada que não tem mais os referenciais de                 

    seus pais, pois estes vivenciaram engajamentos claros, heroicos,               

    na Resistência ou na Espanha republicana por exemplo, e com                   

    isso, por meio da figura de Malraux e de numerosas referências,                     

    assombram literalmente Bruno Forestier. Essa relação delicada             

    com sua época ou nostálgica com o passado é o sinal de uma                         

    interrogação sobre o presente historicamente não resolvido. 

     

    Um sociólogo crítico do presente 

    Em 1965, para resumir Masculino-Feminino, o cineasta escreve: 

    “Um dos 121 filmes que eu deveria consagrar à juventude e                     não o fiz... Dezembro de 1965 em Paris. No clima de eleições                       presidenciais, Paul acaba de cumprir o serviço militar.               Madeleine encontra emprego para ele, com ajuda de um                 amigo. Paul ama Madeleine. Madeleine é cantora. Ela               registra seu cotidiano num diário e mora com duas                 companheiras de quarto, Élisabeth e Catherine. Paul busca a                 ternura e encontra o desespero...”  

    21

     

    Eis aqui duas juventudes: a dos rapazes, Paul e seu amigo                     22

    Robert, que leem France nouvelle, militam à esquerda, se                 

    sindicalizam, se aproximam do Partido Comunista, se engajam               

    contra a guerra do Vietnã e o imperialismo americano, se                   

    encontram para discutir política nos cafés. E a das moças: que                     

    21 Bibliotèque de l´institue Lumière, Lyon, collection Anatole Dauman/Argos films, dossiê Masculin Féminin. 22 Jean-Pierre Esquenazi, Godard et la societé française des années 1960, Paris, Armand Colin, 2004, p. 237-242. 

  • falam da vida, de sexo, hesitam fazer amor e se engajar; elas                       

    preferem esperar e se encontrar nos cafés para falarem dos                   

    rapazes, amam comprar roupas, mas a identidade profunda delas                 

    é musical, geração iêiê. Para definir essa juventude dividida,                 23

    Godard se serve de uma fórmula datada: “as crianças de Marx e                       

    da Coca-Cola”. O mais contemporâneo, para Godard, é               24

    seguramente a tomada de consciência política: nisso está seu                 

    terreno comum de conivência com a juventude masculina de seu                   

    filme. Entre novembro e dezembro de 1965, o cineasta segue                   

    atentamente as eleições presidenciais, mesmo não sendo             

    militante. François Mitterrand ameaça a vitória de Charles de                 

    Gaulle, pois obteve, em 19 de dezembro, 45,5% dos votos, o que                       

    não era esperado alguns meses antes. A esquerda francesa retoma                   

    a esperança, o poder do general de Gaulle é falível. Essa                     

    mobilização política é o principal vetor de identificação de Godard                   

    com Paul/Léaud em Masculino-Feminino, que vende jornais e cola                 

    cartazes de esquerda, que picha “paz no Vietnã” em um                   

    automóvel da embaixada americana, que ousa um grafite               

    proibido pela censura gaullista: “DE GAULLE=UBU”. Os rapazes               

    de Masculino-Feminino descobrem a política como herdeiros dos               

    comunistas. As moças do filme ficam na superficialidade do modo                   

    de vida da sociedade de consumo, o principal tema de conversa                     

    para elas, quase uma obsessão, é o controle de natalidade, os                     

    meios de contracepção. Mas, por isso mesmo, elas também                 

    descobrem a política militando pela legalização da pílula, pois a                   

    contracepção, ilegal na França, foi um dos temas centrais da                   

    campanha de Mitterrand em 1965. 

    Masculino-Feminino é oportuno, pois consegue reter os sinais               

    efêmeros do contemporâneo pelo prisma da enquete. A enquete                 

    está presente na imagem, mas é igualmente origem de                 

    informação, objeto de crítica e método de trabalho, pois o                   

    cineasta reuniu o essencial de sua matéria e seus diálogos                   

    entrevistando propriamente os cinco atores principais do filme.               

    23 Ludivine Bantigny et Ivan Jablonka (org.), Jeunesse oblige: histoire des jeunes en France, Paris, PUF, 2008, p. 183-197. 24 Le Monde, 22 de abril de 1966. 

    10 

  • Masculino-Feminino incorpora o que há de melhor em Godard, um                   

    gênero de filme do presente que está muito ligado à metade dos                       

    anos 1960: a enquete sociológica. Mas esta acaba sempre em                   

    xeque, mesmo que consiga sublinhar verdades profundas, pois               

    não alcança a descrição “objetiva” de um grupo social ou de uma                       

    situação dada. É um modo de filmar a enquete enquanto faz sua                       

    crítica. Assim, Jean-Pierre Léaud faz pesquisa, após vagamente               

    ter sido jornalista e escritor. Ele trabalha para L´Institute français                   

    d´opinion publique (IFOP) e pergunta: “Com o que sonham as                   

    moças em Paris?”. Ele entrevista Elsa Leroy, a jovem eleita                   

    “Garota 19 anos” na revista Mademoiselle âge tendre. “Diálogo                 

    com um produto de consumo”, diz o letreiro, impiedosamente.                 

    Paul leva a sério sua missão de pesquisador, “que é observar a                       

    realidade coletiva”, e se inscreve, de forma consciente para                 

    Godard, num contexto em que as pesquisas, desde a do L´Express                     

    sobre a Nouvelle Vague no outono de 1957 até Rapport sur le                       

    comportement sexuel des Français, em 1970, passando por La                 

    Française et l´Amour em 1961 e La France et sa Jeunesse em 1962,                         

    têm expandido, popularizado, legitimado, o olhar sociológico             

    sobre o objeto de estudo “jovem”, que elas também contribuem                   

    para construir. A questão e sua resposta dão forma à pesquisa que                       

    inspira Masculino-Feminino. Esse protocolo de palavras e de               25

    investigações se sustenta então igualmente no domínio da ficção.                 

    Georges Perec, aos 29 anos, publicou Les Choses, “romance                 

    documentário” com subtítulo Um Roman des annèes soixante. Jean                 

    Rouch e Edgar Morin exerceram mais influência em Godard que                   

    Pierre Bourdieu, notadamente com Crônica de um verão, de 1960,                   

    sobre a vida de um grupo de jovens revelados pela questão                     

    lancinante: “você é feliz?”. Há igualmente Chris Marker e Le Joli                     

    Mai, de 1963, que toma o modelo de entrevista para se voltar para                         

    a política francesa, as mortes em Charonne * e o fim da guerra da                         26

    Argélia. Além disso, Morin escreveu a propósito de               

    Masculino-Feminino: “Antes, pensava-se que além da ficção             

    25 Ludivine Bantigny et Ivan Jablonka (org.), op. cit. p. 225-237. 26* Antoine de Baecque se refere às vítimas da violência policial no metrô de Charonne, em fevereiro de 1962, quando uma                                         manifestação protestou contra o terrorismo de extrema direita nos últimos dias da guerra da Argélia. (N. T.) 

    11 

  • havia o documentário, e que além do documentário havia o filme                     

    de ficção. Agora, com Masculino-Feminino, estamos ao mesmo               

    tempo além do realismo de ficção e do cinema-verdade, isso é                     

    para mim o primeiro resultado de cinema ensaio que há anos se                       

    procura”. Godard presta explicitamente homenagem a Crônica             27

    de um verão e Le Joli Mai em Masculino-Feminino, considerando                   

    seu filme a terceira parte de uma trilogia sobre a entrevista como                       

    veículo e objeto de uma crítica da sociedade por meio do cinema.                       

    Se bem que o filme de Godard seja ao mesmo tempo sobre sua                         

    época e crítico do presente, o que Paul claramente expressa,                   

    quando toma consciência da irrelevância de sua tarefa: “Pouco a                   

    pouco eu percebi que todas essas questões, em lugar de refletirem                     

    uma mentalidade coletiva a traíam e a deformavam. À minha falta                     

    de objetividade mesmo inconsciente correspondia, com efeito, a               

    maior parte do tempo, uma falta de sinceridade entre mim e                     

    aqueles que eu interrogava”. Godard sociólogo, certamente, mas               

    não entusiasta, consciente de que a entrevista também está a                   

    caminho de se tornar instrumento para os estudos de mercado, as                     

    reportagens jornalísticas, as enquetes publicitárias, as sondagens             

    políticas, tanto quanto para as ciências sociais. Godard é um                   

    pesquisador cético. O que Italo Calvino, em resposta a um                   

    questionário sobre a narrativa nos Cahiers du Cinéma, em                 

    dezembro de 1966, descreve muito justamente a propósito de                 

    Masculino-Feminino: “O filme de enquete sociológica tem sentido               

    apenas se for algo diferente de uma ilustração filmada sobre uma                     

    verdade que a sociologia ou a historiografia já estabeleceram, se                   

    for uma intervenção para contestar alguma coisa que a sociologia                   

    ou a historiografia sustentam. Considero esse verdadeiro             

    ‘filme-ensaio’ um gesto não pedagógico, mas de interrogação”.  28

    Essa vontade de testemunhar e sobretudo de analisar graças a um                     

    filme um estado social não cansa de perseguir Godard, como                   

    27 Anatole Dauman, Argos Films: souvenir-écrain, Paris, Centre Georges Pompidou, 1989, p. 194.  28 Italo Calvino, Cahiers du Cinéma, 185, dezembro de 1966. 

    12 

  • testemunha o longo texto que ele escreveu ao Nouvel Obsevateur,                   

    em 12 de outubro de 1966, “A vida moderna”: 

    “Indago que raramente um país oferece tantos temas de                 filmes como a França hoje. O número de temas excitantes é                     surpreendente. Posso fazer o que quiser sobre esportes,               política e mesmo mercearia; observemos um homem como               Édouard Leclerc, é apaixonante, eu adoraria fazer um filme                 sobre ele, ou com ele. Quando me perguntam por que falo,                     ou tenho falado do Vietnã, de Jacques Anquetil, de uma                   dama que engana o marido, respondo que não tenho em                   mente ninguém em seu cotidiano habitual. Para mim, tudo                 é e está justaposto. É por isso que estou tão atraído pela                       televisão. Ela está entre as mais interessantes expressões da                 vida moderna. Um jornal televisivo feito com documentos               oficiais, isso seria extraordinário”. 

     

    O que Godard consegue formalmente reter, com um propósito                 

    gráfico por vezes entorpecente, é uma estética do presente. O                   

    presente se expressa por meio da color (o vermelho,                 

    evidentemente, que sucede rapidamente o preto e branco tão                 

    particular de Masculino-Feminino), da matéria, de roupas e               

    aparências, de corpos e poses ritualizadas, de cartas e slogans                   

    utilizados como os balões nos HQs, da cenografia e dos                   

    happenings. O presente é uma plástica tanto quanto uma política,                   

    atualização pré-68 de um princípio godardiano de sempre: a                 

    forma dita o fundo, o fundo é a forma. Esse presente político                       

    passa pela intensidade de uma cor, pela decupagem de uma                   

    sequência, pelas rimas de um slogan, pelo travelling ao longo de                     

    um balcão, pela maneira de filmar uma conversa tão bem quanto                     

    um rosto. Ele é antes de qualquer coisa um material estético.                     

    Como escreve Jean-Louis Comolli, redator chefe dos Cahiers du                 

    Cinéma: 

    “O que é visível e audível é cinematograficamente. As                 imagens de A Chinesa não descrevem uma realidade, nem                 mesmo uma ficção política, elas são a realidade, ou a ficção;                     melhor, as fazem. A forma está em Godard antes da                   formulação. Assim, está distante da política estender sua               armadilha sobre o filme, ela nasce e se desenrola ao mesmo                     

    13 

  • tempo que outras aventuras formais, ela se movimenta               plasticamente”.  

    29

     

    O presente aqui se transformou em material estético. 

     

    Godard e a morte do cinema 

    Jean-Luc Godard completou 82 anos. É difícil imaginá-lo um                 

    patriarca. As imagens que vêm naturalmente ao espírito, quando                 

    seu nome é evocado, correspondem mais à superatividade               

    desenvolta do trintenário, à sombra da clandestinidade rebelde               

    do quarentenário, à maturidade coroada de sucesso do               

    quinquagenário. Passa o tempo e Godard não projeta               

    propriamente a imagem de um ancião. Ele disse em várias                   

    ocasiões que pensava morrer jovem e de morte violenta. Que                   

    assim seja, François Truffaut morreu primeiro, aos 52 anos em                   

    1984, e foi para ele uma surpresa atroz. Godard esteve com                     

    frequência próximo da morte entre os 20 e 40 anos, de tentativas                       

    de suicídio a acidentes. E quando ele se retira (talvez mesmo por                       

    se retirar), encontra refúgio no país de sua infância, o cantão                     

    suíço de Vaud. Nesse período, ele desponta fantasmagórico,               

    inebriante, menos em sua própria existência que em seus filmes,                   

    ideias, ambiente familiar, na história: a “morte do cinema” é                   

    parte importante do pensamento godardiano, e funda o segundo                 

    momento de sua obra, no início dos anos 1980, e se torna então                         

    cada vez mais presente até ocupar o centro das História(s) do                     

    cinema. 

    A ideia de morte do cinema , que sempre existiu na história da                       30

    sétima arte, é não obstante mais particularmente datada dos anos                   

    1980, e encontra seu apogeu na primeira metade da década de                     

    1990, como se um pensamento milenarista tivesse acompanhado               

    e esperado a vinda de seu centenário, tal qual uma contra                     

    celebração melancólica. Dois pensadores concentram e           

    29 Jean-Louis Comolli, Cahiers du Cinéma, 194, outubro de 1967. 30 Antoine de Baecque et Philippe Chevallier (org.) Dictionnaire de la pensée du cinéma, Paris, PUF, 2012, p. 462-466. 

    14 

  • expressam amplamente essa ideia: Jean-Luc Godard, cineasta             

    filósofo e profeta, e Serge Daney, o crítico e “cine-filho”. Os                     31

    dois foram intimamente persuadidos de que encarnavam os               

    últimos sobreviventes de sua espécie: o último crítico para Daney                 

    , que morreu em 1992 aos 48 anos; o último cineasta para                       32

    Godard, que conta então a história de uma arte e de um século                         

    com seu inevitável desaparecimento nas História(s) do cinema,               

    empreendimento que acompanha, entre 1988 e 1998, a escalada                 

    ao poder do passado e do pensamento histórico em sua obra. 

    Em Godard, a “morte do cinema” representa a oscilação entre a                     

    onipresença do presente e a obsessiva marca do passado. Esse                   

    momento dura uns quinze anos e a proposição aparece em Lettre                     

    à Freddy Buache, filme ensaio em onze minutos absolutamente                 

    essencial às História(s) do cinema, série assombrada, visitada,               

    pelo espectro do cinema defunto no momento de seu centenário.                   

    De fato, ele manifesta o traço da morte do cinema antes: quando                       

    os Cahiers du Cinéma lhe pedem, em 1965, para falar sobre o                       

    futuro imediato, e menos imediato, do cinema. Godard responde:                 

    “espero a morte do cinema com otimismo”. Isso dá o tom de seu                         33

    último filme dos anos 1960, Weekend à Francesa, rodado no                   

    outono de 1967, o ponto de inflexão na direção da revolução                     

    apocalíptica, cujo letreiro registra, após a sequência final com                 

    sangue e alegria, a morte da civilização: “FIM DO CINEMA”. 

    Em 1983, o cineasta responde à questão “o cinema vai morrer                     

    com você?” com esse silogismo incontornável: “Essa é mesmo a                   

    única esperança que tenho. Esse o objetivo de minha vida. Eu                     

    acreditava, quando jovem, que era eterno, mas isso porque eu                   

    acreditei que era eterno”. Ora, todo o cinema desaparece e                   34

    morre para Godard a partir dos anos 1980. Ele passou dos                     

    cinquenta anos e retorna ao cinema após uma década de                   

    experiências (aventuras com vídeo), um exílio (em Grenoble,               

    31 Serge Daney, op. cit. 32 Serge Daney, Persévérance, Paris, POL, 1994. 33 Jean-Luc Godard, Cahiers du Cinéma, 161-162, janeiro de 1965.  34 Le Nouvel Observateur, 30 de dezembro de 1983.  

    15 

  • depois em Rolle) e muita provação (acidente, solidão, travessia do                   

    deserto); ele próprio se toma como morto psíquica,               

    cinematográfica, midiaticamente para a profissão no cinema,             

    após ter enterrado com suas mãos seu próprio cinema, aquele dos                     

    anos 1960, ao renunciar, denunciar e relegá-lo ao passado. 

    No início de 1981, La Lettre à Freddy Buache aparece como um                       

    autorretrato do cineasta no momento em que “há urgência: há a                     

    paisagem, há luz e o cinema vai morrer”. Esse autorretrato, no                     

    ponto preciso em que “o cinema vai morrer”, será retomado em                     

    outras ocasiões: de Carmen de Godard a Rei Lear, ele acampa seu                       

    personagem, “JLG” torna-se “tio Jean” ou “Jeannot”, cineasta               

    aposentado que vive em um hospital no meio de loucos e                     

    impotentes. O personagem de Carmen de Godard espera no                 

    hospício, acompanhado por Jean-Pierre Mocky, o fim do cinema.                 

    Ele volta em Atenção à Direita como “Idiota”, palhaço patético no                     

    meio de bobinas de “velhos filmes” e de pilhas de “velhos                     

    livros”, depois em Rei Lear, vestindo sacos de lixo, é o professor                       

    Pluggy (de plug, “plugado”, com o penteado feito de fios elétricos                     

    de todas as cores), inventor solitário que mora entre duas paredes                     

    sem teto, e tenta aperfeiçoar sua última criação: “a imagem”. Ele                     

    fuma e fala com trejeitos que deformam seus lábios e o lado                       

    direito de seu rosto. É um personagem pós-catástrofe: ele                 

    acompanha o fim do mundo, escolhe se retirar, à margem, como                     

    uma espécie de vagabundo das imagens. Godard, então, filma                 

    certo cinema que se despede, como sublinha em Detetive (1985) e                     

    Grandeza e decadência de um pequeno negócio de cinema (1986). No                     

    primeiro, Alain Cuny, espectro surgido do passado, encarna a                 

    morte. Mas a morte é a do próprio cinema. Em outro momento,                       

    no episódio 3A das História(s) do cinema, “A moeda do absoluto”,                   

    Cuny aparece subitamente no plano, se aproxima e bate na                     35

    janela, e seu rosto de 1942, nos Visitantes da Noite de Marcel                       

    Carné, se alterna com a imagem do presente. Trata-se de um                     

    jovem e de um velho, separados por cinquenta anos, e o mesmo                       

    35 Jean-Luc Godard, História(s) do cinema, episódio 3A. 

    16 

  • homem, sobretudo a mesma voz que chama do passado, se                   

    alterna com a voz de uma atriz, Juliette Binoche em início de                       

    carreira, sentada e lendo Charles Baudelaire, que conclama os                 

    vivos para segui-lo rumo à morte. Este rosto e essa voz são o                         

    cinema caminhando para a morte. 

    Grandeza e decadência... mostra o chamado dos mortos, nomes                 

    citados, desaparecidos no “campo de honra do cinema”. Ao lado                   36

    de Jean-Pierre Mocky, produtor à antiga, “a caminho de                 

    desaparecer”, encontra-se Jean-Pierre Léaud, o “adolescente”           37

    que Godard teve com Truffaut, motivo de disputa entre eles no                     

    momento em que romperam, doze anos antes. Léaud incorpora                 

    em Godard uma espécie comovente de remorso vivo, o de nunca                     

    ter se reconciliado com Truffaut antes da morte do inventor de                     

    Doinel. Mocky escreve a propósito de Grandeza e decadência...:                 

    “Godard pensa que somos os últimos moicanos, os últimos a                   

    fazer cinema como o Chaplin dos primórdios. Eu indago se isso                     

    não existirá mais quando homens como nós estiverem mortos”.                 38

    Esse cinema desparece com Jean Eustache, que cometeu suicídio                 

    em 1981, com Truffaut, que morreu em 1984, com os produtores                     

    Raoul Lévy, Georges de Beauregard, Gérard Lebovici, Jean-Pierre               

    Rassam, Pierre Braunberger, todos recentemente falecidos. O             

    filme é assombrado por esses fantasmas, cujos rostos despontam                 

    subitamente em flashes, e Godard identifica sua própria morte,                 

    que ocorrerá, e a do cinema, que está em curso, assim como                       

    confidencia a propósito de Truffaut: “Truffaut talvez esteja               

    morto. Eu talvez esteja vivo. Não há diferença, não é?”  39

    Jean-Luc Godard, último dos moicanos, o sobrevivente de um                 

    cinema que está a caminho do desaparecimento, é uma primeira                   

    interpretação de “a morte do cinema”: fim de certo cinema,                   

    aquele que ele conheceu e fez. Mas a partir das História(s) do                       

    cinema, uma outra variação, mais profunda, sobre o mesmo tema,                   

    36 Jean-Luc Godard, Grandeur et décadence d´um petit commerce du cinéma, Paris, POL, 1994. 37 Ibid., p. 14. 38 Jean-Pierre Mocky, Télérama, 21 de maio de 1986. 39 Prefácio à correspondência de François Truffaut, Paris, Hatier/Cinq Continents, 1988. 

    17 

  • atravessa seus filmes: se o cinema vai morrer, está a caminho da                       

    morte, é o que a história impõe. Não mais o fim do cinema e de                             

    suas figuras, míticas ou pessoais, mas a “morte de uma                   

    civilização do cinema”. O contexto histórico da concepção dos                 

    primeiros episódios das História(s) do cinema, o fim dos anos                   

    1980, resume essa orientação, centrada na responsabilidade do               

    cinema diante da guerra, no extermínio, no poder destrutivo dos                   

    totalitarismos e dos imperialismos. Para Godard, esta “era               

    histórica” se abre com a exibição de Shoah, filme síntese de                     

    Claude Lanzmann, de abril de 1985, que o afeta profundamente,                   

    suscitando-lhe reservas e polêmicas. Philippe Sollers, em uma               

    entrevista aos Cahiers du Cinéma, resume muito apropriadamente               

    o alvo das História(s), ao mencionar que se trata de um “filme de                         

    último julgamento”: 

    “A prédica de santo Godard é clara: de imediato, ele trata do                       reino dos mortos, e o tema do apocalipse assombra esse                   filme. Godard está lá, sentado atrás de seu micro, ou de sua                       máquina de escrever, ou então em pé, como um maestro da                     orquestra dos espectros, e dá vida a milhares de sombras                   que são projetadas na tela: ele as julga e as salva. Este é o                           último julgamento dos filmes, reconhecidos como culpados             ou inocente em relação à história do século.”  

    40

     

    A prova da verdade do cinema é a história que impõe, e Godard                         

    ordena o julgamento. Esta história é a seguinte, a do cinema que                       

    deve morrer: um primeiro meio século esquecido, do qual                 

    ninguém ainda vivo tem memória; um segundo meio século                 

    desmemoriado, devorado pelo dinheiro, pela televisão, se             

    precipita lentamente para a morte; e no meio, o corte essencial,                     

    nascido da história, da guerra, do extermínio, da morte em                   

    massa, dos totalitarismos, estes traumas do século que o cinema                   

    não pôde impedir e não soube filmar. 

    A morte do cinema pode assim ser observada de muitas maneiras                     

    na obra de Godard. De início, ele nos diz: “eu morro, vou morrer,                         

    eu encarno o cinema, logo eu desapareço com ele”. Essa é uma                       

    40 Philippe Sollers, Cahiers du Cinéma, 513, maio de 1997.  

    18 

  • leitura egocêntrica, angustiante e narcísica, à maneira depois de                 

    mim vem o dilúvio. Em seguida, Godard nos murmura com sua                     

    voz além-túmulo: “o cinema morre, e isso me faz morrer, isso                     

    põe fim a meus filmes, que têm por fim mostrá-lo; o cinema                       

    morre, logo eu devo desaparecer”. Esta é uma leitura das eras                     

    sucessivas da vida das imagens: como um dinossauro, um                 

    cineasta que encarna uma arte, um momento dessa arte, morre                   

    com o fim dessa arte, era que se abre com os Lumières e se fecha                             

    com Godard e suas História(s). Enfim, em Godard a morte do                     

    cinema acompanha a morte de um tempo histórico: é não                   

    somente o desaparecimento de uma arte, mas também de uma                   

    civilização, da história, uma espécie de fim do mundo, de                   

    julgamento último dos filmes. Não obstante, a grandeza, o dever                   

    de Godard, o último suspiro dessa arte agonizante, às vezes                   

    sublime e suicida, consiste em registrar o que sobrevive no                   

    presente, uma última vez: o fim, a queda. A morte do cinema é o                           

    fim de Godard como homem, do cinema como arte inventada no                     

    século XIX, e a queda de um tempo histórico. É sobretudo o                       

    próprio movimento de filmar e dar testemunho. Esse movimento                 

    não tem nostalgia para Godard, é como uma energia inspirada                   

    pela arte do cinema para agir uma última vez: morrer com beleza. 

    Evidentemente, a morte do cinema não ocorre: a ideia é antes de                       

    tudo um conceito para reflexão. É nesse sentido que ela                   

    permanece viva. E o vazio mortífero deixado pela cinefilia                 

    clássica, por seus heróis (os cineastas) e seus arautos (os críticos                     

    ou os aficionados), é rapidamente preenchido por uma               

    proliferação de formas e de corpos que dominamos com                 

    dificuldade e que nos deixam frequentemente perplexos,             

    intrigados, por vezes deslumbrados. Desde então, o pensamento               

    sobre o cinema retoma seu trabalho de Sísifo: ele percebe,                   

    classifica, interpreta o que vem após a morte do cinema, que                     

    ainda é cinema. 

     

    19 

  • A passagem ao passado em Godard, cineasta historiador 

    Em 17 de setembro de 1995, em Frankfurt, Jean-Luc Godard                   

    recebeu o prêmio Adorno, uma recompensa que lhe tocou o                   

    coração. Na ocasião, ele pronunciou a conferência “A respeito de                   

    cinema e de história”, na qual fala sobre sua consciência de                     

    ocupar um lugar na história: “Eu estou hoje em estreita                   

    solidariedade com o passado. Recuso o esquecimento, pois não                 

    desejo definhar”. O cineasta está então no momento crucial da                   41

    realização das História(s) do cinema, seu principal projeto nos                 

    anos 1990, década na qual se torna sexagenário, assim como do                     

    centenário do cinema e de efervescência na Europa, queda do                   

    comunismo e retorno da guerra, desintegração da ex-Iugoslávia.               

    Todos esses fios de tempo se cruzam, se imbricam e, para                     

    Godard, eis a ocasião para um triplo retorno ao passado: dele, do                       

    cinema e da história. 

    Godard não consegue manter juntos dois fragmentos do passado,                 

    o cinema e a história, pois nesse instante visita seu próprio                     

    passado. Essa exploração é nova para ele, preparada pelo retorno                   

    ao país de infância (ele se instala em Rolle, às bordas do lago                         

    Léman, em 1977), com marcas na consciência, reavaliações,               

    desaparecimentos e luto. Na ficção, ele se exprime mais                 

    geralmente no cruzamento de três filmes, Nouvelle Vague,               

    Infelizmente para mim, For Ever Mozart, e em um ensaio                   

    autobiográfico, JLG/JLG. Contudo, os traços do passado pessoal e                 

    familiar estão tão apagados que Alain Bergala chega a ponto de                     

    interrogar, na ausência de documentos: “Godard foi criança?”               42

    Esses traços aparecem pouco a pouco nos filmes, no correr dos                     

    anos 1990, resultado de um trabalho de reminiscência íntima.                 

    Primeiro, acha-se em um pequeno filme de encomenda, realizado                 

    em alguns dias no início do verão de 1988, Le Dernier Mot,                       

    financiado por Le Figaro magazine por seus dez anos, no seio de                       

    uma série intitulada Os franceses vistos por... Godard adapta em                   

    41 “À propos de cinéma et d´histoire”, op. cit. 42 Alan Bergala, “Godard a-t-il été petit?”, Cahiers du Cinéma, número especial sobre Godard, novembro de 1990, p. 28-29. 

    20 

  • doze minutos o fim trágico de Valentin Feldman, jovem filósofo                   

    fuzilado pelos alemães em 1942 que grita para o pelotão de                     

    fuzilamento: “Imbecis, é por vocês que eu morro”. Esse raro                   

    filme histórico de costumes coloca em correspondência os               

    tempos da história ao retornar a Anthy, à beira do lago Léman, na                         

    antiga propriedade em que Godard brincava em sua infância e                   

    passava o verão, tão descuidada trinta anos depois, comprada por                   

    um príncipe iraniano que a deixou abandonada. “Essa é a                   

    infância, confessa o cineasta, essa é casa dos meus avós, cujo                     

    aspecto é de decadência. Como ela ainda se mantém intacta, eu a                       

    aluguei para filmar For Ever Mozart. Essa a casa onde estive, lugar                       

    real [...] Eu retornei a ela: tudo ainda está reconhecível, nada foi                       

    modificado depois de cinquenta anos”. Doravante, nos filmes e                 43

    na vida de Godard, essas impressões do passado vão se                   

    multiplicar. 

    Nesse impulso na direção do passado estilhaçado, o dele e o da                       

    história, Godard reivindica a influência dos historiadores. Ele os                 

    lê, os exercita à sua maneira, que não é propriamente a de                       

    especialista. Encontra de preferência nessas leituras ideias,             

    reconciliações, visões que o estimulam, e não hesita em afiliar                   

    suas História(s) a uma genealogia de historiadores; evoca Marc                 

    Bloch, Fernand Braudel, a Escola dos Annales. * “Apenas os                 44

    franceses fazem história, diz ao receber o prêmio Adorno. Pelo                   

    menos, mais que os outros, eles não duvidam que estavam numa                     

    história, e desejam saber qual história aconteceu, a deles na                   

    grande, ou a grande na deles?”. Dificilmente causaria surpresa                 45

    que alguns historiadores importantes se apoiem nas História(s) de                 

    Godard. Desde sua concepção, seu projeto recebeu a assistência                 

    de Georges Duby, professor de história medieval do Collège de                   

    France, que em 1986 se tornou presidente da SETP * e                   46

    43 “La vie vécue depuis”, op. cit., t. II, p. 41. 44* A Escola dos Annales foi um movimento historiográfico do século XX, surgido na França, que substituiu o tempo breve da                                         história dos acontecimentos pelos processos de longa duração, com o objetivo de tornar inteligíveis o sentido de uma civilização e a                                         mentalidade de uma época. Fernand Braudel e Marc Bloch são os expoentes mais representativos do movimento. (N. T.) 45 “À propos de cinéma et d´histoire”, op. cit. 46* Société européenne de programmes de télévision, atual Arte France, é uma sociedade francesa de edição de programas de                                     televisão criada em 1986. (N. T) 

    21 

  • manifestou vivo interesse pela história do audiovisual, vendo nas                 

    História(s) um elemento da “plêiade audiovisual” com a qual ele                   47

    sonhava para sua rede de difusão cultural. Godard mostra em                   

    seguida seu ensaio histórico cinematográfico para outros             

    historiadores. Não mais a Duby, que morreu em 1996, mas a                     

    Pierre-Vidal Naquet, Marc Ferro, François Furet. Só este último,                 

    historiador da revolução francesa e do comunismo, convidado               

    por Godard em seu escritório em Paris para ver os quatro                     

    primeiros episódios das História(s), discutiu com o cineasta antes                 

    de confiar aos Cahiers du Cinéma suas reflexões sobre o que ele                       

    considera uma “visão lírica e sagrada da história”, mesmo que                   48

    ele levante questões sobre o filme em seu conjunto. O encontro se                       

    deu em junho de 1997, algumas semanas antes da morte do                     

    historiador. Para Furet, o movimento do cinema em Godard                 

    parece coincidir com o de um século percorrido por revoluções e                     

    agitação: “Só o cinema ainda pode levar a que se acredite na                       

    beleza do movimento de uma revolução, pode reter alguma coisa                   

    profunda nas grandes ofensivas da história. Os filmes de Godard                   

    têm uma força verdadeira, pois relatam o século como uma                   

    epopeia”. Isso oferece ao cineasta um poder de historiador                 49

    multiplicado: “O filme trata assim de um caos cosmogônico que                   

    conta a história de nosso século. Eu tenho muita admiração por                     

    esse poder de dar sentido pelo excesso e pelo épico, pois é um                         

    poder de evocação que nenhum historiador jamais dispõe”.               50

    Assim como Furet sustenta, podemos legitimamente considerar o               

    trabalho de Godard como o de um historiador, mesmo que seja                     

    singular: a tentativa, visionária e épica, de forjar uma forma                   

    cinematográfica suscetível para mostrar a história. 

    Para filmar a história, Godard, que se define como “um prático,                     

    um jardineiro do cinema”, tem necessidade de um método                 51

    teórico e prático. A montagem é o método. Na conferência para o                       

    47 Christian Delage, “Le vaste appétit de l´histoire de Jean-Luc Godard”, Vingtième Siècle. Revue d´histoire, 64, outubro-dezembro de 1999, p. 145-148. 48 François Furet, Cahiers du Cinéma, número especial, “Le Siècle du cinéma”, novembro de 2000, p. 6-9. 49 Ibid. 50 Ibid. 51 Libération, 26 de dezembro de 1988. 

    22 

  • prêmio Adorno, o cineasta multiplica os exemplos: como a                 

    montagem, ao aproximar duas ideias, fabrica uma imagem               

    histórica. 

    “Se dissermos que Copérnico, por volta de 1540, lançou a                   ideia de que a terra gira em torno do sol, e dissermos que                         Vesálio publicou De corporis humanis fabrica três anos               depois, então temos o livro de Copérnico e o de Vesálio. Em                       um livro, o universo é infinitamente grande. No outro o                   interior do corpo humano é infinitamente pequeno. E               depois, 450 anos mais tarde, temos o biólogo François                 Jacob, que escreve: ‘No mesmo ano, Copérnico e Vesálio...’,                 eh, bem, de fato ele não é biólogo, mas cineasta. A história                       está tão somente lá, aqui ela é juntada pela montagem”.  

    52

     

    Esta é a montagem que, tudo ao mesmo tempo, inicia, justifica e                       

    autoriza o trabalho histórico de Godard, aproximando sem cessar                 

    recortes, planos, palavras. E Godard conclui: 

    “Existe então essa coisa que permanece de modo estrito no                   interior do cinema, crisálida que nunca se tornará               borboleta, essa coisa é a montagem. O que busca a                   montagem? A aproximação de alguma coisa distante com               outra próxima, sobretudo no tempo... Minha ideia, de               médico de campanha do cinema, é que um dos objetivos do                     cinema seria inventar ou descobrir a montagem para poder                 fazer a história.”  

    53

     

    A demonstração de Godard põe em jogo o poder histórico do                     

    cinema e uma relação de associação permanente: em suas                 

    História(s), toda imagem pode ser aproximada de outra e assim                   

    ser condenada ou salva. Ele faz de cada imagem a imagem de                       

    outra coisa, que é susceptível de revelar a verdade. 

    “É isso que vemos, explica ele, aproximando duas imagens:                 uma moça que sai de um filme soviético não é a mesma                       quando sai de um filme nazista. E o Chaplin de Tempos                     modernos, como ponto de partida, é exatamente o mesmo                 operário da Ford, quando filmados seguindo os princípios               de Frederick Taylor. Fazer história, isso é, passar horas                 olhando imagens e depois, com um corte, aproximá-las,               provoca uma faísca. Isso constrói constelações de estrelas               que se aproximam e se afastam, como queria Walter                 

    52 “À propos de cinéma et d´histoire”, op.cit.  53 Ibid. 

    23 

  • Benjamin. O cinema vive assim, funciona então como uma                 metáfora do mundo. Ele permanece como arquétipo,             envolvendo no todo a estética, a técnica, a moral”.  

    54

     

    Quanto mais as relações entre duas realidades aproximadas por                 

    meio de imagens estejam distantes, mais o sentimento de                 

    historicidade é forte, adianta Godard, “porque a condensação               

    existe também na história”.  55

     

    O passado como crítica histórica do presente 

    Não obstante, a tese que resume o projeto da série godardiana das                       

    História(s), como adianta Jacques Rancière, de início revela-se               56

    frágil: a história do cinema falha ao se encontrar com a história,                       

    contratempo que Godard tenta remediar. A renúncia abre as                 

    História(s): os dois primeiros episódios são amplamente             

    centrados na falha coletiva do cinema no momento da escalada                   

    perigosa do nazismo, da guerra, da colaboração e da “Solução                   

    final”. O episódio 1B sobretudo, “Uma só história”, é assombrado                   

    pela culpabilidade dos intelectuais do cinema, esses grandes               

    realizadores incapazes de controlar a vingança e a violência que                   

    encenam vinte vezes, que vemos entregues como responsáveis,               57

    pela montagem godardiana, impiedosamente acusadora, assim           

    como de outra forma talvez incrivelmente salvos da catástrofe                 

    estalinista e hitlerista. A sucessão ilustrada de cronologias               

    hollywoodiana, realista socialista, fascista, nacional socialista é             

    bastante cruel: o cinema teria se servido à indústria,                 

    instrumentalizado pela propaganda, e finalmente se           

    transformado num vetor de morte. Godard remonta os filmes que                   

    os cineastas (aqueles que esqueceram a história ou se afastaram                   

    dela) não fizeram. História(s) torna-se desde então um               

    empreendimento de salvação: subitamente, dessas imagens           

    54 Jean-Luc Godard, Libération, 6 de abril de 2002. 55 Jean-Luc Godard, JLC/JLC, Paris, POL, 1996, p. 124. 56 Jacques Rancière, op. cit. Os dois primeiros episódios das História(s) foram lançados em 1988. Na versão de 1998, na série completa com os oito episódios, os dois primeiros foram alterados em razão das observações de Rancière. (N. T.) 57 Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma, episódio 1B.  

    24 

  • culpáveis (de terem abandonado a história, cegado os homens,                 

    conduzido à catástrofe), Godard é inocente desde a montagem, a                   

    aproximação, a poética, o lirismo dos fragmentos, as associações                 

    e os paralelos; elas são susceptíveis de salvar o mundo,                   

    tornando-se ícones da história, “mesmo arranhado até a morte,                 

    um simples retângulo de 35 mm salva a honra de toda realidade”,                     

    ele resume em uma frase impressionante. 58

    Nessa redenção do cinema pelo confronto com a história, passam                   

    dois grandes momentos, segundo Godard, que salvam toda a                 

    história, mesmo as piores traições ou dissensões: as notícias                 

    filmadas por cinegrafistas americanos na abertura dos campos da                 

    morte e, na sequência, o neorrealismo italiano. Se o cinema traiu,                     

    falhou, é por não ter filmado os campos da morte. O cinema                       

    deveria estar presente em Auschwitz, pois era de sua essência e                     

    seu dever estar lá, hic et nunc. Ele não esteve. São os                       

    documentários, unicamente, que podem resgatar essa ausência,             

    aqueles registros do inverno e da primavera de 1945. E essas                     

    notícias, esses filmes com os sobreviventes da morte em massa,                   

    podem mesmo salvar a Babilônia moderna, Hollywood: “Se               

    George Stevens não utilizou o primeiro filme em 16mm colorido                   

    em Auschwitz e em Ravensbrück, sem dúvida jamais a felicidade                   

    de Elizabeth Taylor teria encontrado um lugar ao sol”. Stevens,                   59

    cinegrafista em Dachau, eleva assim o mesmo homem, que se                   

    tornou o realizador americano de Um lugar ao sol, à gloria                     

    histórica. Depois, há o neorrealismo e “o grande cinema italiano”                   

    que, no episódio 3A das História(s), apaga todos os compromissos                   

    do cinema com a indústria dos estúdios: saindo enfim para as                     

    ruas e filmando a vida onde ela está, esse cinema não reencontra                       

    unicamente as origens ideais da arte dos Lumières, é um tipo de                       

    ressurreição das imagens. Jamais Godard foi tão lírico assim. O                   

    neorrealismo salvou todo o cinema, cumprindo assim sua               

    missão, filmar a história no momento em que ela acontece,                   

    58 Ibid. 59 Ibid. 

    25 

  • submeter seus personagens, suas intrigas, suas pequenas             

    histórias, à grande história. 

    Em junho de 1995, a associação de críticos de Nova York premia                       

    Godard pelo conjunto de sua obra e o convida para uma cerimônia                       

    de recepção e homenagem. Ele recusa e se explica: 

    “Agradeço que aceitem as muito incompletas razões que               seguem. JLG, ao longo de toda a sua carreira de movie maker,                       não foi capaz de: impedir Spielberg de reconstruir               Auschwitz, convencer a Senhora Turner a não pintar as                 queridas Fanny Faces desgastadas, condenar o Senhor Bill               Gates por ter nomeado Rosebud sua fábrica de pulgas,                 constranger os críticos de Nova York a não esquecer Shirley                   Clark, [...] obrigar os membros do Oscar a votarem em                   Kiarostami e não em Kieslowski, persuadir o Senhor Kubrick                 a assistir os curtas metragens de Santiago Alvarez durante a                   guerra do Vietnã, ler para a Senhorita Keaton a biografia do                     fundador de Las Vegas, refazer O Desprezo com Sinatra e                   Novak. Minha long voyage home até a morada do                 cinematografo ainda não foi concluída, Senhor, mas eu               perdi o ingresso, de onde se conclui que não mereço                   nenhuma honra”.  

    60

     

    O cineasta assina sua carta com um deslumbrante “Godard                 

    1995”. 

    Não escapa a ninguém que o cinema se aproxima de seu                     

    centenário. As comemorações são numerosas, sobretudo na             

    França, país do cinematógrafo e pátria da comemoração               

    generalizada, coordenada por uma missão ministerial especial, a               

    associação Primeiro Século do cinema, presidida por Michel               

    Piccoli, dirigida por Alain Crombecque e Serge Toubiana. Godard,                 

    como outros (Agnès Varda, Bertrand Tavernier, etc.), mas mais                 

    que outros, sem dúvida, foi solicitado. Sua posição é rapidamente                   

    fixada: ele é contra toda celebração ao cinema. “Celebrar cem                   

    anos de cinematografia – que palavra rudimentar, orgulhosa e                 

    inútil”, ele escreve na carta de 1995. Godard é contra porque,                     61

    sendo profundamente melancólico, não tem gosto mortífero pelo               

    passado; para ele, um filme jamais é “velho” ou “antigo”, mas                     

    60 Jean-Luc Godard, JLG/JLG, op. cit., t. II, p. 344. 61 Ibid., p. 345. 

    26 

  • sempre visto no presente. Ele não aprecia o que o cinema se                       

    tornou, com algumas exceções. Sobretudo, seu espírito             

    “negativo”, ao menos cético ou histórico, o conduz a ver antes o                       

    que o cinema não fez do que o que foi feito. O cineasta recusa                           

    celebrar, ou seja, “tornar célebre” tudo o que “a última das artes                       

    – bem entendido o sentido da palavra, a última – fez bem, mas                         

    sobretudo celebrar o que não fez ou fez mal, ou tão pouco quanto                         

    nada, como escreveu o assistente de Malraux após L´Espoir” .                 62

    Sustentamos que essa é uma das teses, a mais forte seguramente,                     

    das História(s): a falha do cinema, suas falhas (que Godard atribui                     

    também a si próprio, quando escreve que não soube prevenir                   

    Spielberg de reconstruir Auschwitz ), consiste em não ter sido                 63

    capaz de “salvar a história” de suas principais tragédias. Godard                   

    contesta triplamente o centenário porque recusa celebrar uma               

    arte que não tem memória, uma arte que já está quase morta e                         

    uma arte culpável diante da história. Quando a revista Studio, no                     

    número especial “Cem anos de cinema” escolheu dois grandes                 

    testemunhos, Spielberg e Godard, e foi encontrá-los, ele               

    declarou: “O cinema não cumpriu seu papel”. Essa missão                 64

    falhou, e ele a retoma sem cessar: 

    “Privilegiamos os direitos do cinema e não seus deveres. O                   cinema não tem feito seu papel de instrumento do                 pensamento, fizemos um chocalho. [....] A conclusão             ocorreu no momento em que não foram filmados os campos                   de concentração. Naquele instante o cinema falhou             totalmente em seu dever. Houve seis milhões de pessoas                 mortas nas câmaras de gás, principalmente judeus, e o                 cinema não estava lá. Contudo, O Grande Ditador e A Regra do                       Jogo anunciaram todos esses dramas. Ao não filmar os                 campos, o cinema se resignou totalmente”.  

    65

     

    Jean-Luc Godard, então, está agarrado ao passado, à história e                   

    mesmo a historiadores que ele lê e interroga, a fim de falar sobre                         

    sua insatisfação com o tempo presente, que nele passa de início                     

    62 Ibid. L´Espoir (“A Esperança”), filme dirigido por André Malraux e Boris Peskine, de 1945; adaptação de livro escrito por Malraux,                                         aborda sua participação na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos. (N. T.) 63 Ibid. 64 Jean-Luc Godard, Studio, 156, março de 1995. 65 Ibid.  

    27 

  • por uma impiedosa crítica endereçada ao cinema, que não cessa                   

    de se autocelebrar, de comemoração em comemoração,             

    esquecendo, negando, apagando seu papel diante da história. Do                 

    sociólogo crítico da juventude de seu tempo, o cineasta se tornou                     

    o profeta das desgraças do cinema, que está a caminho da morte                       

    com sua presentificação frenética que o cega e o leva a esquecer                       

    todo o passado. Por meio dessa posição delicada, em que o                     

    cineasta construiu sua crítica dos tempos históricos, Jean-Luc               

    Godard se tornou, contudo, se não um estranho historiador ao                   

    menos um assunto para a história. 

     

    28