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JURISPRUDENCIALISMO : UMA RESPOSTA
POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE
DIFERENÇA?
JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
«The birds fly home to these great trees,
Here too I am at home…»
(Myfanwy PIPER, after Henry JAMES,
The Turn of the Screw,
Act I, scene IV- The Tour)
Permitam-me que comece por ousar um registo quase confessional. Por um lado para, na pessoa do Senhor
Doutor Nuno Santos Coelho, agradecer à Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete, à Universidade Presidente
Antônio Carlos e à Universidade Federal de Ouro Preto o privilégio de regressar a Vila Rica de Albuquerque (e à
praça de Coimbra… com a sua Pousada do Mondego). E de regressar sentindo-me em casa (here too I am at
home)…
Já no ano passado estive aqui mesmo, à porta da rota dos Diamantes... e não posso deixar de renovar a
minha profunda gratidão ao meu Bom Amigo, Senhor Doutor Nuno Manuel Santos Coelho, pela oportunidade que então
me proporcionou de, por três ou quatro dias inesquecíveis — sempre com encontros muito enriquecedores com jovens
mestrandos e doutorandos! — , me transformar num viandante (deslumbrado!) dos córregos e cerrados, dos planaltos e
montanhas da Estrada Real… ou do seu caminho novo. Como se se tratasse de seguir o percurso (os rastos do
percurso) projectado em 1698 pelo bandeirante Garcia Rodrigues… e de assim subir do Rio de Janeiro até Ouro
Preto… passando por Petrópolis, Juiz de Fora, Barbacena e Conselheiro Lafaiete. Com uma pequena mas significativa
incursão pelo caminho velho... para me deslumbrar com o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas (e as
operáticas criações do Mestre Aleijadinho).
Por outro lado para manifestar a honra e o gosto imensos — mas também o reconhecimento e a
emoção — que sinto em intervir neste encontro, que se quer expressamente em homenagem ao meu Professor, o
Senhor Doutor Castanheira Neves. Com o benefício de retomar a reflexão que tem estado presente em todo o meu
percurso (here too I am at home)… mas sobretudo com o privilégio de participar — com queridíssimos Amigos das
2
duas margens do Atlântico! — naquela que (com Derrida) poderíamos dizer uma «comunidade» (uma «cidade»-
refúgio?) de perguntas e responsabilidades. Como se se tratasse assim de visitar (-construir) um «lugar de
hospitalidade soberana» (communauté de la question sur la possibilité de la question1) : aquele lugar privilegiado que,
não pondo em causa a liberdade reflexiva de cada um — antes a estimulando! —, nos une em torno dos desafios
e das exigências (se não da urgência prático-cultural) da «aposta» jurisprudencialista2.
As breves reflexões que se seguem concentram-nos numa das exigências capitais
do discurso jurisprudencialista ou do caminhar-procura com que este nos responsabiliza
(il faut parier (…) et (…)cela n’est pas volontaire, vous êtes embarqué3)
. Refiro-me à
pressuposição de uma validade trans-subjectiva… ou mais rigorosamente à exigência
de vincular esta pressuposição (e o seu compromisso material) a uma experiência de
realização e à praxis que a consuma (dominada pela perspectiva da controvérsia-caso).
Mais do que invocar aquela pressuposição (enfrentando-isolando o discurso de
fundamentação que a sustenta4), trata-se com efeito de considerar a circularidade
constitutiva que — para além do modus operandi de uma simples dialéctica entre duas
dimensões ou dois interlocutores irredutíveis) — alimenta (prático-culturalmente) esta
1 Derrida, L’écriture et la différence, Paris, Éditions du Seuil, 1967, p. 118.
2 Trata-se evidentemente de, já com Castanheira Neves,
invocar a lição do pari de Pascal… para
assim mesmo reconhecer que, prosseguindo este caminho, podemos não ganhar nada... ou tudo ganhar:
veja-se desde logo O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, Lisboa,
edições Piaget, 2002, pp. 51-52, agora também em Digesta. Escritos acerca do direito, do Pensamento
jurídico, da sua Metodologia e outros, vol. 3º, Coimbra Editora, 2008, p.61. 3
Pascal, Les pensées, ed. 1671, VII («Qu‘il est plus avantageux de croire que de ne pas croire ce
qu‘enseigne la Réligion Chrétienne»).
4 E este como núcleo do problema capital dirigido ao quê do direito, um dos três grandes
problemas que a reflexão recuperadora do originarium do direito hoje nos impõe. «O ―quê‖ do direito —
qual o fundamento material que o seu sentido exige constitutivamente a sustentar a sua concreta
normatividade? Se a fundamentação jusnaturalista invocava uma acrítica referência já ontológico-
metafísica, já antropológica que se revelou insustentável, e a fundamentação racionalista, sob os diversos
modelos de auto-constituídas racionalidades procedimentais, implicava afinal pressuposições que a
invalidam nesse sentido, não fica excluído que se reconheça na experiência (poderá dizer-se, humano-
hermenêutica) da histórico-cultural prática humana e da corresponsabilizante coexistência uma específica
intencionalidade à validade em resposta ao problema vital do sentido, e estruturalmente constituída pela
distinção entre o humano e o inumano, o válido e o inválido, o justo e o injusto, intencionalidade que se
refere sempre e convoca constitutivamente na sua normatividade certos valores e certos princípios
normativos que pertencem ao ethos fundamental ou ao episteme prático de uma certa cultura numa certa
época…» (Castanheira Neves, A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p.
146). Ver também agora muito especialmente «Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está
a crescer...‖ ou a recuperação da filosofia do direito?», Digesta, vol. 3º, cit., pp. 93-94. Sem esquecer
«Pensar o direito num tempo de perplexidade», texto da conferência de abertura das I Jornadas da
Associação de Teoria do Direito, Filosofia do Direito e Filosofia Social (Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, 9 de Janeiro de 2009), in João Lopes Alves et al., Liber Amicorum de José de
Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário. Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra, Almedina,
2009, pp. 4-5 (1.2. «Uma Ursituation e os problemas implicados»).
3
exigência: uma circularidade que há-de estar em condições de assumir a validade em
causa responsabilizando-a (simultânea e incindivelmente) como um contexto-horizonte
de sentido (normativamente condutor) e como um correlato (permanentemente
reconstruído ou reinventado) de uma praxis de realização… mas então também uma
circularidade que nos obrigue a reconhecer nesta praxis — e no «pensamento» que a
«pensa»5 ou na auto-reflexão que este lhe proporciona (as a heightened degree of
attention while performing in the practice6)… e muito especialmente no discurso
metodológico que (como patamar destes pensamento) criticamente a reconstrói7 — uma
dimensão constitutiva da primeira (e da vocação integradora que a onera, se não mesmo
já do o sentido de juridicidade que esta fundamenta)8.
Que outra exigência (de vinculação recíproca) senão aquela que Castanheira
Neves assume ao convocar uma filosofia do direito problemática — a reflexão que a
«hora» da nossa «realidade-existência» (humanamente significativa) está em condições
de nos impor9? Convocar (exigir) esta filosofia como auto-reflexão — defendendo que
esta encontre o seu ponto de partida (ou o seu problema inicial, dito do por-quê) no
«transcender interrogante» de uma prática10
— é com efeito pedir-lhe que se nos exponha
sob uma dupla face: aquela em que a recuperação do originarium do jurídico se
5 «[A] uma ―teoria do direito‖ compreendêmo-la hoje sobretudo como a determinação crítico-
reflexivamente metanormativa do direito, i. é, das concepções e das práticas constitutivas da juridicidade
(…) e dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…) [P]ois só na unidade histórico-cultural entre
aquelas e estes o direito vem à sua existência, à sua objectivação real e pode, já por isso, ser ―objecto‖ de
uma reflexão teórica que nessa objectivação o queira compreender…» [Castanheira Neves, Teoria do
direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998, (versão em
fascículos) pp. 50-51, (versão em A4) p. 28]. 6 Para o dizermos com a ajuda insuspeita de Fish: «Insofar as one is ever critically reflective, one
is critically reflective within the routines of a practice. (…) What most people want from critical
reflectiveness is precisely a distance on the practice rather than what we might call a heightened degree of
attention while performing in the practice. (…) Insofar as critical self-consciousness is a possible human
achievement, it requires no special ability and cannot be cultivated as an independent value apart from
particular situations: it‘s simply being normally reflective. It‘s not an abnormal, special – that is,
theoretical - capacity…» [«Fish Tales: A Conversation with ―The Contemporary Sophist‖» (entrevista
concedida por Stanley Fish a Gary Olson), JAC Online (12-02-1992), http://www.cas.usf.edu/
JAC/122/olson.html (extraído em 11-04-2003)]. 7 Ver muito especialmente Castanheira Neves, Metodologia jurídica. Problemas fundamentais,
Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp. 9 e ss. («O problema metodológico-jurídico»). 8 Cfr. a síntese proposta em «Pensar o direito em tempo de perplexidade», cit., pp.18-22.
9 E que deverá começar por perguntar pelo «sentido do direito na realidade-existência e na
prática humanas»: ver «Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a
recuperação da filosofia do direito?»,, Digesta, vol 3º, cit., pp. 91-199 (4. e 5.). 10
Ver muito especialmente «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito
— ou as condições da emergência do direito como direito», in Estudos em homenagem à Professora
Doutora Isabel de Magalhães Colaço, vol. II, Coimbra, 2002, pp. 837 e ss., agora também nos Digesta,
vol 3º, cit., pp. 9 e ss..
4
compreende especificando (autonomizando) uma «intencionalidade ao fundamento»11
e a
autodisponibilidade que lhe corresponde12
… e aquela em que esta mesma recuperação se
realiza identificando (distinguindo) um modelo inconfundível de pensamento jurídico13
e
o tipo de racionalidade que este cumpre. Como se se tratasse afinal de articular dois
momentos ou duas «dimensões» (estruturantes) da «emergência constitutiva da
juridicidade»: a dimensão da validade e a dimensão metodológica14
. Bastando-nos aqui
ter presente… que a primeira destas dimensões (através da auto-reflexão que a
intensifica) se cumpre ela própria numa (ou como uma) interpelação (prático-
culturalmente contextualizada) de um «sentido» (também ele «civilizacionalmente
específico») de «universalidade» — uma interpelação assim mesmo indissociável do
modus operandi de uma reflexão interna e do contraponto crise /crítica que a
alimenta15
… indissociável se quisermos também da compreensão-experiência de uma
criação humano-cultural e do «contexto» a que «constitutivamente» esta se refere (e que
assim mesmo a torna possível ou que assegura a sua identidade-continuidade)16
. E que a
segunda nos incita a considerar uma compreensão específica do problema metodológico.
Uma compreensão que liberte este da demarcação (estanque) de territórios imposta pelo
discurso moderno dos Métodos17
… e que assim mesmo —sem deixar de confrontar a sua
11
«Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da
filosofia do direito?», Digesta, vol 3º, cit., p. 98. 12
Uma intencionalidade à validade precipitada numa perspectiva, num sentido, numa estrutura,
numa normatividade: para um desenvolvimento, ver «O direito interrogado pelo tempo presente na
perspectiva do futuro», in Avelãs Nunes / Miranda Coutinho (ed.), O direito e o futuro. O futuro do
direito, Coimbra, Almedina, 2008, pp.56-65 (3. a)). 13
Dito jurisprudencialista stricto sensu: ibidem, pp. 58 e 66-67 (3.b)). 14
Dimensões que Castanheira Neves faz de resto explicitamente corresponder às duas partes-
núcleos de um curso sobre O actual problema do direito: assim no «programa temático» da disciplina de
Filosofia do Direito e Metodologia Jurídica cumprido na Universidade Lusófona do Porto no ano lectivo
de 2005 /2006 (programa que desde então tem sustentado o percurso desta disciplina) [Primeira Parte – A
validade (I. A crise/ II. A crítica) / Segunda Parte – A metodologia (o sentido da dimensão metodológica
enquanto uma segunda dimensão da emergência constitutiva da juridicidade)]. 15
Já assim exemplarmente em Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema
metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica) – I. A crise, Coimbra, Almedina, 1967,
passim [ver muito especialmente pp. 63-84 (§ 3.º «O processo que conduz da ―crise‖ à ―crítica‖ e § 4.º «O
objecttivo: a crítica»)].Vejam-se também as páginas iniciais de O problema actual do direito. Um curso
de filosofia do direito, policop., terceira versão, Coimbra-Lisboa, 1997, pp. 3-9 (2. «A crise e a crítica» e
2.1. «Conceitualização prévia: o conceito de crise e a sua relação com a exigência crítica»). 16
Para compreender a especificidade desta «particular criação cultural» e do seu contexto
enquanto continuidade (projectado na experiência do tempo da «nossa civilização greco-romana, judaico-
cristã e europeia»), ver muito especialmente a síntese proposta em «O problema da universalidade do
direito – ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», Digesta, vol. 3º,
cit., pp. 111 e ss. (III). Ver também «Pensar o direito em tempo de perplexidade», cit., 7-10 (II.«O
contexto histórico-cultural civilizacionalmente global. As polaridades histórico-culturais») 17
Uma demarcação que nos obrigaria a tematizar o Método como uma operatória (se não como
uma técnica) e então e assim não só a determiná-lo prescritivamente mas também a atribuir-lhe o
território (analitica e cronologicamente) estanque de um posterus: como se se tratasse de reconhecer a
técnica que vem depois da ciência... ou pelo menos de autonomizar-isolar um conjunto de cânones (ou de
regras de correcto proceder) que pressuporiam a (que viriam depois da) estabilização dogmática
5
perspectiva e as opções do seu campo temático, mas sobretudo o seu discurso (o seu tipo
de racionalidade), com aqueles que são propostos por modelos de realização
alternativos18
— esteja em condições de o assumir como um problema normativo
(sustentado numa perspectiva noeticamente judicativa e na auto-reflexão crítica que a
leva a sério)19
. O que é ainda, et pour cause, responsabilizá-lo como uma dimensão
constitutiva do próprio sentido da juridicidade. Como a «auto-compreensão de algo — o
direito — que no modo por que realiza o seu sentido específico já em si mesmo se releva
como acto, como o processo prescrutante (fundamentante) de um logos — algo que no
seu próprio ser é meta-odos-logos...»20
Se, à luz da reflexão que nos ocupa, insisto na irredutibilidade e na
interdependência constitutiva destas duas «dimensões» de «emergência», é no entanto
também para sublinhar que não se trata tanto de as convocar como dimensões
autónomas — para depois as responsabilizar por uma dialéctica — quanto de identificar
cada uma delas a partir da dinâmica em que ambas indissociavelmente participam ou do
movimento comum que sustentam. É com este alcance — para exprimir uma certa
unidade intencional de determinantes e determinados e a textura de relações recíprocas
que a torna possível (e que assegura um recomeço permanente... na mesma medida em
que constrói uma perspectiva institucionalmente inconfundível!) — que me socorro da
representação do círculo... ou das possibilidades do pensar em círculo. Como me
poderia afinal socorrer doutras…
Outras representações seriam certamente mobilizáveis... e com contributos
relevantes (e as acentuações diferenciadas que estes permitem). Se não porventura a da
sobreposição-trama de bottom-up e top-down programming — a impor-nos uma
(eventualmente, também depois da objectivação-especificação da validade que esta traduz ou pode
traduzir). 18
Confronto que Castanheira Neves defende como uma das tarefas nucleares da teoria do direito
de que hoje precisamos (uma teoria que diz precisamente crítico-reflexiva). Para além da Teoria do
direito. cit, passim, vejam-se também as sínteses propostas em O problema actual do direito. Um curso
de filosofia do direito, policop., terceira versão, cit., pp.65-86, e muito especialmente em «Entre o
‗legislador‘, a ‗sociedade‘ e o ‗juiz‘ ou entre ‗sistema‘, ‗função‘ e ‗problema‘ – os modelos actualmente
alternativos da realização jurisdicional do direito», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 1 e ss., agora também nos Digesta, vol. 3º, cit., pp. 161 e ss.
Como é sabido, trata-se de assumir uma proposta de diferenciação (e de «explicitação sistemática») das
perspectivas (se não «paradigmas») de compreensão «pelas quais se oferece hoje a juridicidade»: uma
proposta que nos autoriza precisamente a contrapor normativismo, funcionalismo e jurisprudencialismo,
mas também a distribuir o segundo pelas modalidades principais do funcionalismo material e do
funcionalismo sistémico. 19
Ver supra, nota 7. 20
Já assim na Questão-de-facto ― questão-de-direito ou o problema metodológico da
juridicidade, cit., p. XI da Introdução.
6
suspensão epistemológica iluminada pelos discursos da informação e pela sua
perturbadora inteligibilidade sistémica —, seguramente a da espiral sem fim (Ricoeur) e a
do percurso do arado que sulca persistentemente um único terreno (Weinrib, Fish): a
primeira a identificar um processo de passagens sucessivas pelo mesmo ponto cumpridas
a altitudes distintas… e então e assim a acentuar uma dinâmica de transformação e de
irrepetibilidade, que é também de crescimento ou de adequação progressiva (a cet égard,
j’aimerais parler plutôt d’une spirale sans fin qui fait passer la méditation plusieurs fois
par le même point, mais à une altitude différente21
), a segunda a evocar um traçado que
deixa (que vai deixando) sempre rastos diferentes e mais profundos... e então e assim a
mostrar-nos que o problema a ter em conta é antes de mais o de uma certa perspectiva
interna e o das práticas que a constituem-cumprem ou o do contexto a que estas se
referem as doing what come naturally (inasmuch as [this](...) account of law does not
strive for any standing point beyond law, the most that it can do is plough over thesame
ground in ever deeper furrows22
)
Dizer que cada uma destas dimensões constitutivas deve ser identificada na
perspectiva da dinâmica em que participam… não significa no entanto invocar uma
conformação pré-determinada deste movimento (e muito menos garantir
aproblematicamente o seu êxito). É (será) de resto antes como um desafio explícito —
permanentemente assumido on the edge e sob o fogo de interrogações radicais — que
me proponho acentuar aqui esta experiência de irredutibilidade (e a conclusion-claim de
interdependência que lhe corresponde).
Como um desafio… e como um desafio situado. Um desafio que só estaremos
em condições de invocar (e de levar a sério) vivendo-experimentando o pathos de
«perdição» e de «autocriação» de uma hora de «abalo»23
. E que hora de «abalo»
(enquanto representação-experiência de uma circunstância prático-cultural irrepetível)
senão aquela em que nos reconhecemos feridos pela crise de uma certa ideia da Europa
21
Ricoeur, Temps et récit, tome I, Paris, Éditions du Seuil, 1983, p. 111. 22
Ernest J. Weinrib, «Legal Formalism: On the Immanent Rationality of Law», The Yale Law
Journal, vol.97, nº 6, 1988, p. 974. «Law‘s justification (…) cannot properly be truncated. It must be
allowed to expand completely into the pace that it naturally fills…» (Ibidem, p. 971, itálico nosso). Ver
também Fish, Professional Correctness. Literary Studies and Political Change (Oxford Clarendon
Lectures, 1993), Harvard, 1999, p. 22. 23
Jaspers, Einführung in die Philosophie, cit. na trad. portuguesa Iniciação filosófica, 6ª ed.,
Guimarães Editores, Lisboa, pp. 26-27.
7
e da civilização de direito que esta construiu... se não já também «comovidos» pelas
possibilidades-promessas de uma pós-filosofia e de um pós-direito24
?
Uma «hora» que — mais de um século depois da especificação programática da
Allgemeine Rechtslehre (e do seu exemplar tempo de teoria do direito) — nos obriga a
discutir outra vez a plausibilidade de uma perspectiva interna? Podemos dizê-lo. Sem
esquecer que a discussão daquele primeiro tempo — como uma oportunidade de justificar
metadogmaticamente a relação juridicidade / cientificidade / Método — obedeceu a um
traçado circunscrito — capaz de descobrir possibilidades (ou pelo menos alternativas de
solução-assimilação) predeterminadas25
—… e que esta (a presente!) só pode ser levada a
sério se nos expuser aos riscos (imprevisíveis) de uma interrogação radical. Ao ponto de
devermos reconhecer que discutir a possibilidade de uma perspectiva interna passa a ser
agora interpelar (não poder deixar de interpelar) a inteligibilidade-continuidade de uma
certa criação cultural e do projecto de demarcação humano/ inumano que lhe
corresponde... ou porventura mais do que isso, arriscar na renovação recuperadora de um
certo contexto (e do mundo humano que este constrói, condiciona e determina).
Que desafio é este... que se cumpre, como acabámos de ver, em nome da
reciprocidade constitutiva da dimensão intencional e da dimensão da realização? Na
nossa circunstância presente não será já só nem principalmente aquele que nos incita a
rejeitar em bloco a frente de reinvenção jusnaturalista (e os seus rastos, mais ou menos
persuasivamente defendidos)...
Isto na medida em que nos impede de conceber a validade pressuposta como um
núcleo de significações pré-determináveis em abstracto, reconduzíveis a uma
«universalidade intencional» auto-subsistente — uma universalidade que pudesse
(re)conhecer-se antes (ou pelo menos independentemente) da sua realização concreta (e
como um «modelo absoluto» desta realização)26
…
24
«Em termos de estar inclusivamente a ser ultrapassado o que se houvesse de entender por
―crise‖, naquele excesso problemático que a esta exactamente caracteriza...» (Castanheira Neves, «Pensar
o direito num tempo de perplexidade», cit., p. 3.) 25
Acentuar esta predeterminação não significa evidentemente ignorar as «feridas» que a frente
da Allgemeine Rechtslehre abriu e a produtividade com que tais feridas vieram a ser assimiladas! Uma
dimensão esta que procurei explorar em «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de
teoria do direito reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria», in João Lopes
Alves et al., Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, cit., pp. 261
e ss. 26
Ver muito especialmente Castanheira Neves, A crise actual da filosofia do direito no contexto
da crise global da filosofia, cit., pp. 37-52.
8
Porque é antes e sobretudo aquele a que a exigência de um pensamento
integralmente prático — livre do primado de um qualquer discurso teorético… e então e
assim apto a habitar um palco dominado pela tensão irredutível entre pretensões de
pluralidade discursiva e de unidade intencional27
— explicitamente nos submete.
Tensão ou tensões estas que nos obrigam a enfrentar o círculo validade /realização
acentuando (hipertrofiando!) factores e representações que o tornam particularmente
vulnerável? Podemos concluir que sim. Não tanto porque se trate de admitir que os
problemas a ter em conta se nos exponham iluminados (amplificados) pela vertigem de
uma configuração patológica (e pelo traço grosso que esta exige) quanto porque se trata
de reconhecer que a tensão ou tensões em causa só nos atingem (e só se tornam
enquanto tal experimentáveis) se levarmos a sério uma situação-limite. Ora uma
situação-limite de interpenetração e de incorporação recíproca, se não mesmo já de
«oposição em ninho» (a nested opposition is a conceptual opposition where the
opposed terms «contain each other»28
). Uma situação na qual o sofrimento-solidão
provocado pela fragmentação e pela incomensurabilidade — eventualmente também
pelo abismo sedutor de uma discursividade em degraus, infinitamente prosseguida (e
pela vertigem de incomunicabilidade que esta agrava) — se torne indissociável da
procura de uma «intercompreensão na existência»29
(de uma exigência de comunicação
que não seja apenas de «entendimento para entendimento» ou de «espírito para espírito»
...mas de «existência para existência»30
). Ou se quisermos, uma situação-limite na qual
a celebração (-consagração) prescritivamente feliz da pluralidade (por uma vez livre da
nostalgia da unidade perdida) se deixe permanentemente (mas nem por isso menos
paradoxalmente!) ferir pela urgência de uma cooperação (material!) entre experiências e
27
Num outro texto, complementar deste [«Validade comunitária e contextos de realização.
Anotações em espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema» (a publicar em breve)]—
apresentado também num encontro em torno de Castanheira Neves (Porto, Universidade Lusófona, 5 de
Novembro de 2009) —, a consideração dos problemas do mundo e do pensamento prático (no seu
contexto global) alarga-se a outras tensões (de aqui não tratamos directamente): refiro-me ao contraponto
dogmático / crítico (ao problema de uma normatividade crítica), mas também ao contraponto
juridicidade / moralidade. 28
Estamos evidentemente a mobilizar Balkin, «Nested Oppositions», Yale Law Journal, vol. 99,
1990, pp. 1669 e ss. Para um esclarecimento da categoria, ver infra, nota 112. 29
A expressão (convocada embora explicitamente a propósito de Habermas) é de Castanheira
Neves, «Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da
filosofia do direito?», Digesta, vol 3º, p. 90. 30
Jaspers, ob cit., p. 26.
9
formas racionais31
. Uma situação-limite que — já mergulhando no universo específico
do direito — nos autorize a mobilizar a vocação integradora da intenção à validade (e a
força condutora da sua perspectiva normativa) na mesma medida em que reconhecemos
que as resistências à univocidade de uma coordenação material se tornaram dimensão
constitutiva tanto das práticas de realização juridicamente relevantes quanto das práticas
que exteriormente as condicionam. O que é ainda e significativamente perguntar —
arriscarmo-nos a perguntar — se (e até que ponto é que) assumir um diagnóstico-
experiência de pluralidade não nos condena à celebração regulativa correspondente
(obrigando-nos a aceitar diversos caminhos e as auto-reflexões que os orientam e que
simultaneamente estes constróem).
Acentuação que nos basta para esboçar um percurso reflexivo: um percurso que
nos obriga a frequentar uma espécie de território-pagus — partilhado por um espectro
diversificado de diagnósticos e (ou) pela experiência que os concerta [1.] —... antes de o
submeter o contraponto pluralidade/ unidade a dois exercícios de contextualização
distintos: o primeiro a remeter-nos para uma compreensão global da praxis e do mundo
prático, que o é também já explicitamente da communitas ou do regresso desta [2.]; o
segundo a concentrar-nos no mundo prático do direito e na abordagem interna que a
sua renovação exige [3.].
1. O primeiro passo cumpre-se recolhendo (acumulando) os sinais de
fragmentação (de perda de unidade) que afectam as práticas juridicamente relevantes....
mas sobretudo permitindo que estes sinais se distribuam (se decomponham) em três
grandes núcleos de emergência. Sendo certo que se trata menos de identificar três
desafios de organização diferenciados do que de reconhecer (e isolar analiticamente)
três veios temáticos imprescindíveis e as resistências que estes geram.
1.1. Que sinais? Os primeiros a ter em conta são seguramente aqueles que
recolhemos quando nos concentramos na experiência da reflexão académica… — e nas
«situações institucionais» (e modos de fazer sentido) que a cumprem32
: sinais que nos
31
No sentido do processo de «cooperação material» entre «formas vitais» que a transversale
Vernunft (Vernunft als transversale Vernunft, Vernunft als Dimension der materiale Übergänge) de
Welsch nos incita a descobrir: ver exemplarmente Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta
Humaniora, 31991, pp. 315-318 («Transversale Vernunft und postmoderne Lebensform»).
32 Estamos evidentemente a dizê-lo com Fish... e então e assim a identificar a reflexão em causa
com uma «teoria» ou cálculo teorético (theoretical calculus): entenda-se — no sentido (amplíssimo) que
o Autor de Doing What Comes Naturally nos incita a reconhecer —, como uma prática discursiva ou
10
confrontam com a impossibilidade de uma linguagem única — se não com a perda de
uma linguagem-centro —, na mesma medida em que testemunham esta
impossibilidade ou este descentramento invocando o processo de erosão-Detruktion de
um certo paradigma33
... ou a circunstância prático-cultural que declara esta superação
irreversível34
.
α) Aqueles que identificamos «ouvindo» — mobilizando, na sua imediata
inteligibilidade semântica (mas também na sua integridade) — cada um dos
testemunhos que a academic house (tanto no plano dogmático como nas diversas
instâncias meta-normativas), está (estará) em condições de produzir.
Como se enfrentar o processo de «descentramento» do formalismo normativista
— a recondução deste à condição de uma perspectiva entre outras possíveis —
significasse antes de mais recolher os «sinais» que os seus interlocutores-oponentes
iluminam… e estes indissociados das decisões de relevância que os seleccionam35
e dos
«códigos» que os decifram e hierarquizam — se não também já das concepções do direito
que explicita ou implicitamente os sustentam como testemunhos36
.
como um projecto interpretativo que, invocando o significante direito ou as expectativas que o
determinam (dizendo-se dogmática ou metodologia jurídicas, teoria ou filosofia do direito), tem por
objectivo (e por horizonte de relevância) dirigir-se a outra prática ou acervo de práticas (também elas
iluminadas por uma pretensão de juridicidade). Para uma consideração do problema do cálculo teorético
em Fish (com as indicações bibliográficas indispensáveis), veja-se o nosso Constelação de discursos ou
sobreposição de comunidades interpretativas? A caixa negra do pensamento jurídico contemporâneo,
Porto, edição do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, 2007, pp.16-21 (1). 33
Identificado com a naturhistorische Anschauungsweise des Rechts e com a operatória
(Handwerkzeug) que o sustenta e que se diz Método Jurídico... mas também (evidentemente) com outros
formalisms (e rule conceptualisms) anglo-saxónicos... e então e assim, se quisermos, com um grande eixo
iluminado pelas sínteses fecundas da Theorie der juristischen Technik de Jhering e do system of
classification de Langdell. 34
Trata-se de partir da circunstância de um pensamento que — sendo discurso e prática (acervo
de discursos e de práticas) — perdeu (superou) o seu modelo (sem o ter substituído por outro). Sendo
certo que a experiência a ter em conta é menos a da consumação de um discurso dominante do que a da
reacção-resposta a esta perda: uma reacção que terá multiplicado as propostas de compreensão do direito
(e os projectos interpretativos que as especificam), enquanto permite que as práticas-labours dos juristas e
das comunidades dos juristas — e as situações institucionais que as estabilizam — sejam disputadas por
um espectro sem precedentes de possibilidades (com horizontes intencionais e processos de
racionalização inconfundíveis, se não incomensuráveis). 35
Que os reconstroem como condições-constrangimentos a ter em conta (entre outras condições-
-constrangimentos)… ou que os responsabilizam como materiais-recursos de um diagnóstico autónomo… 36
E então e assim acumular distintas «representações» do interlocutor-oponente «formalismo
jurídico»: perceber que a máscara deste interlocutor convocada pelo Rückgriff auf «Werte» de Esser
(enquanto defende uma perspectiva sistémico-dogmática dos Wertkonzense juridicamente relevantes)
acentua traços completamente distintos daqueles que o «programa construtivo» de Unger (ao defender um
uso puramente instrumental, politicamente comprometido, do jurídico) nos estimula a reconhecer —
percebendo também que são ainda outros traços (no limite do incomensurável!) aqueles que o
teleologismo tecnológico de Hans Albert e que a realistic pragmatic indeterminicy thesis de Anthony
D‘Amato desenham quando pretendem identificar tal interlocutor.
11
Com um resultado global que nos atinge como uma justaposição ou como uma
soma (eventualmente como uma sobreposição-overlapping) de experiências auto-
reflectidas — cada uma delas a procurar reagir à ausência de uma linguagem comum…
e neste sentido também a escolher um caminho37
…
β) E aquele que reconhece os sinais da fragmentação-divisão (e os rastos com
que estes nos ferem) considerando exclusivamente a pragmática destes testemunhos —
ou esta enquanto pressupõe, mas também enquanto reproduz, a experiência incon-
fundível de um confronto (entre testemunhos rivais).
Não um confronto qualquer — que nos surpreenda apenas pela frequência e
intensidade dos seus lances e pelos «resultados» devastadores que estes provocam (the
loth of faith concerning the availability of objective criteria, the intensification of the
conflict among the community of legal actors, the dissolution of any genuine consensus
over important values38
) —, mas um confronto que acaba por condicionar as respostas (e
por interferir nas principled solutions que estas propõem). Enquanto e na medida em que
ameaça perverter o cálculo teorético: um cálculo que tenderá assim a esquecer a prática-
alvo a que naturalmente se dirige… para a substituir por outra — precisamente aquela
que sustenta os testemunhos rivais (e estes como outras tantas principled solutions). O
que não é senão correr o risco de mobilizar discursos (e intenções conformadoras)… que
se alimentam menos dos problemas que pretendem enfrentar (ou converter) do que das
críticas que dirigem aos outros discursos.
O risco de condenar a reflexão académica à confidencialidade (se não
privacidade acroamática) de uma comunidade de vanguarda (e à experimentação
da pluralidade que esta está em condições de prosseguir)? Antes o de a fechar
sobre si própria, sem que esta clausura nos poupe no entanto ao ruído intenso que
a dinâmica do seu conflito interno provoca. O risco de a entregar a uma vertigem
auto-referencial? Também o de a incitar a produzir a cadeia de discursos e
37
Experiência paradoxal esta, enquanto nos condena a recolher-decifrar os sinais de
fragmentação ou de perda de unidade nas vozes que pretendem assimilar-superar tais sinais e constituir-
se como alternativas totalizantes. É este um paradoxo que considerei menos esquematicamente em
«Jurisdição, diferendo e ―área aberta‖. A caminho de uma ―teoria‖ do direito como moldura?» (a publicar
em breve nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias). 38
Michel Rosenfeld, «Deconstruction and Legal Interpretation: Conflict, Indeterminicy and the
Temptations of the New Legal Formalism», in Drucilla Cornell / Michel Rosenfeld/ David Gray Carlson
(ed.), Deconstruction and the Possibility of Justice, New York/London, Routledge, 1992, p.152.
12
metadiscursos que alimenta esta vertigem39
: como outras tantas pretensões de
racionalização que, dirigindo-se (as conclusions-claims) às práticas (de realização) do
direito, só conseguem, no entanto, enfrentar-assimilar os problemas dessas práticas
indirectamente, enquanto se interpelam umas às outras como discursos ou enquanto
desconstroem reciprocamente os argumentos que as sustentam (enquanto renunciam,
mais ou menos explicitamente, à vocação-destino de uma reflexão prático-normativa).
Como se se tratasse afinal de preservar uma intenção conformadora ou de optar por uma
das modalidades de determinação (normativa ou desconstrutiva) que esta oferece, sem
descobrir no entanto o caminho que a(s) possa projectar directamente nas práticas-alvo (e
na law in action que lhes corresponde). Ao ponto de o sucesso obtido por este espectro de
vozes inconciliáveis se reduzir paradoxalmente a um efeito de multiplicação de
possibilidades equivalentes40
…
Como se se tratasse por um lado de descobrir os «sinais»-problemas a ter em
conta nas — e através das (e de cada uma das) — reacções-respostas que se lhes
dirigem (ou no diagnóstico que explícita ou implicitamente estas pressupõem e
constroem)[α]… e de por outro lado reconhecer como problema o contraponto-
-confronto destas respostas e o diferendo que estas geram [β].
1.2. O núcleo que se segue continua a confrontar-nos com a impossibilidade de
uma linguagem única. A pluralidade com que nos atinge é no entanto outra, como
39
Com o alcance que o diagnóstico (conjunto) de Levinson e de Balkin nos permite reconhecer:
«[There is an] increasing amount of scholarship, especially in the elite journals, that is about other legal
scholarship, rather than about primary legal materials like statutes and cases. Legal scholarship becomes
an increasingly self-contained, self-referential discipline, which is "about itself" as much as it is about the
legal world outside, either law on the books or law in action. As interdisciplinary movements like law and
economics or law and literature spring up, they begin to focus not on their relationship to the work of
lawyers and judges, but to their own internal coherence and justification. Legal interpretation is replaced
by legal theory, which is replaced by meta-theory, which is replaced by meta-meta theory, and so on…»
(Sanford Levinson,/Jack Balkin, «Law, Music and Other Performing Arts» (1991), University of
Pennsylvania. Law Review, vol. 139, 1991, p. 1652). 40
Um efeito que nos expõe aos riscos do esoterismo (e da incomunicabilidade, se não
impotência) dos discursos teoréticos, na mesma medida em que entrega estes — enquanto desfazem e
refazem a urdidura-trama que os outros engendram — a um implacável jogo de Penélope. O jogo que
Duncan Kennedy denuncia enquanto surpreende o movimento perpétuo dos discursos que recriam
(positivamente) a pretensão de neutralidade do julgador (how judges can and should be neutral). « There
is no extant theory that threatens to end the current ideological conflict abut method by compelling a
consensus about how judges can and should be neutral. Indeed, the current multiplicity of contradictory
theories of neutrality seems a powerful, though of course not conclusive refutation of all of them. I am an
admirer of their work of mutual critique. I endorse Dworkin‘s critique of Richard Posner along with
Andrew Altman‘s critique of Dworkin and Fiss‘s doubtless forthcoming critique of Altman, and Posner‘s
critique of Fiss (if there is one) and on around the circle. This is not musical chairs but more like a game
of ―Penelope‖, in which each writer simultaneously weaves his own and unweaves other‘s work…»
[Duncan Kennedy, A Critique of Adjudication (fin de siècle), Cambridge Mass., Harvard University
Press, 1997, p. 91, itálicos nossos].
13
outros são de resto os seus sinais. Se o percurso anterior nos expôs a uma pluralidade
de linguagens enquanto contraponto-confronto (semântica e pragmaticamente relevante)
de vozes possíveis… — e de vozes que (conduzidas por uma reflexão metanormativa)
assumiam como tarefa procurar-prescrever exigências de sentido e de realização (se
não modelos de racionalidade… e esquemas metódicos) comuns a todo o território do
direito (que todos os discursos-práticas que mobilizam o significante direito pudessem
ou devessem partilhar)41
… —, o plano que agora nos importa descobre essa pluralidade
distinguindo (separando) grupos ou pequenas comunidades (experimentando um
imediato processo de separação-distribuição)… e então e assim permitindo que cada
uma daquelas práticas-discursos (sem excluir as que a academic house reúne) nos
apareça — enquanto tarefa e na imanência desta (ou da auto-reflexão que a conduz) —
vinculada a uma (determinada) experiência colectiva.
Experiência colectiva que as noções de grupo semiótico e de comunidade
interpretativa (comprometidas embora com horizontes de compreensão
inconfundíveis42
) nos ajudam a reconhecer. A primeira enquanto identifica um
«sociolecto»-território e a institucionalização de «correspondências» e «semelhanças»
que este defende — na mesma medida em que responsabiliza estas por uma «rede
limitada de comunicação» e pela construção interna (inconfundível) de uma pretensão
de juridicidade (The sense of the expression the ―law‖ is constructed internally, and
separately, within the discourse system of each group: what is common is the signifier,
the expression, not the signified, its meaning. Each semiotic group operates with its own
system of semantic values, its own system of meanings43
). A segunda enquanto
especifica tais correspondências ou as actualizações contínuas de significado que estas
prosseguem: por um lado para as comprometer como critérios (mais ou menos
explícitos) de «correcção profissional» e com as rotinas que estes (enquanto projectos
41
Vozes que assumiam esta procura enquanto discutiam a possibilidade-
impossibilidade de um paradigma-centro… ou pelo menos, a oportunidade de reconstruir-propor (de
determinar prescritiva e empiricamente) uma canonicidade profunda (the background strucures of «law-
talk» that shape conversation within and concerning the law (…) including (…) characteristic forms of
legal argument, characteristic approaches to problems, underlying narrative structures, unconscious
forms of categorization, and the use of canonical examples): assim em «Legal Canons: an Introduction»,
in Balkin/ Levinson, (ed.), Legal Canons, New York, 2000, pp. 5, 14-24 («Deep Canonicity»). 42
A primeira associada à gramática narrativa de um semiotic turn (susutentado na teoria do
significado de Greimas), a segunda vinculada ao convencionalismo pragmático de Fish. 43
Bernard s. Jackson, Making Sense in Jurisprudence, Liverpool, Deborah Charles Publications,
1996, p. 346. Para uma consideração do problema da especificidade dos grupos semióticos juridicamente
relevantes (num diálogo com Greimas, Landowski e muito especialmente Jackson) , veja-se o nosso Entre
a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, Coimbra, Coimbra
Editora, 2001, pp. 582 e ss., 592 e ss., 610 e ss.
14
interpretativos) estabilizam; por outro lado para acentuar a dinâmica de continuidade e
de transformação que distingue (que autonomiza) estes projectos — uma autonomia-
distinctiveness que só a inteligibilidade retórica, internamente assumida, de um
exercício profissional, na persistência exemplar do território-círculo que suas tarefas
constroem, está (estará) em condições de sustentar (as if ploughing over the same
ground in ever deeper furrows44
).
Seja como for, uma pluralidade de linguagens — melhor dizendo, de códigos
linguísticos e extralinguísticos — que corresponde a uma multiplicação de «situações
institucionais», de projectos de realização, de materiais canónicos, de processos de
textualização-retextualização, deregarasde procedimento, de intenções de leitura, de
destinatários e auditórios potenciais (se não de temas-problemas, de materiais-objecto,
de canais expressivos)… e ao cruzamento inevitável destes, em todas as arenas da
praxis — com expectativas e soluções de equilíbrio distintas, elas próprias em
conflito.45
.
Uma multiplicação-separação que nunca terá deixado de condicionar a expe-
riência dos juristas46
… e que no entanto atinge especialmente a nossa circunstância.
Como uma intensificação das divergências provocada pela opacidade crescente dos
grupos e das comunidades envolvidas… se não potenciada pelos diagnósticos que se lhe
dirigem e pelos meios-recursos que este mobilizam (no limite também por um horizonte
compreensivo sensível à pluralidade dos contextos e das convenções performativas, se
não mesmo à multiplicação dos usos… e dos usos que constroem sentidos)? Não será
difícil reconhecê-lo. Sem esquecer no entanto um outro problema. O das ameaças que
hoje se dirigem à integridade destes grupos e micro-grupos. Ameaças que
comprometem a unidade dos sociolectos e dos cânones profissionalmente mobilizáveis
e a plausibilidade das situações institucionais que estes garantem (se não a clausura que
sustenta os respectivos instrumentos de persuasão e a relação com os auditórios que
estes pressupõem). Antes porventura de imporem a fragmentação do projecto
44
Ver supra, nota 22. 45
«[An] increasing divergence in canon construction among (…) sociolegal (…) groups may be
a sympton of an increasing differentiation in purposes among academics, lawyers, and judges (in addition
to the professional differentiation that has always existed between lawyers and citizens). Each
interpretative community may have its own canon (or set of canons), and although these canons surely
overlap, they may also diverge in particular respects…» (Balkin/ Levinson, «Legal Canons: an
Introduction», cit., p. 11). 46
E que continuaria a condicionar-nos na sua insuperabilidade… ainda que admitíssemos que
uma das vozes em diferendo na academic house conseguiu finalmente impor-se às outras (e preparar o
terreno para um novo discurso dominante).
15
interpretativo e das finalidades que o iluminam47
. Ameaças que, como vemos, tornam
esta experimentação da pluralidade vulnerável à primeira. Como se os grupos e micro-
grupos em causa, preservando embora a identidade que os fecha uns perante os outros,
se nos expusessem enfim atingidos pela impossibilidade de reconstruir (teoreticamente)
um projecto integrante e pelo contraponto-confronto das vozes que pretendem reagir a
esta impossibilidade — vozes que, como sabemos, partem exclusivamente de um destes
grupos…
Acentuação no entanto que não nos obriga a reconhecer um fogo unilateral —
desencadeado-desferido apenas pela academic house —, que antes nos incita a explorar
um círculo de experiências partilhado por esta (enquanto feixe de discursos «dirigidos»
a outros discursos) e por todas as suas potenciais práticas-alvo. Na mesma medida em
que justifica a autonomização de um último núcleo.
1.3. Um último núcleo… no qual a pluralidade emerge directamente deste
círculo de experiências interdiscursivas e da reciprocidade constitutiva que as estimula?
Importa admiti-lo. E desde logo porque os «sinais» que este núcleo aglutina,
interferindo directamente com os dois núcleos anteriores (ou com uma dimensão que
47
Como se tivesse deixado de fazer sentido falar por exemplo do modus operandi e dos
procedimentos canónicos que distinguem (em bloco) a comunidade ou o grupo semiótico dos advogados,
impondo-se-nos antes reconhecer que as situações de leitura e que os processos de racionalização
permitidos devem ser hoje distribuídos (divididos) por um espectro de concepções possíveis e pelas
«imagens» que lhes correspondem. Imagens que nos expõem à(s) herança(s) do bad man de Holmes e às
possibilidades (pluralmente assumidas) de reconstituir empírico-explicativamente a sua estratégia-jogo (e
a situação de incerteza competitiva que o justifica)… na mesma medida em que — numa zona de
fronteira alimentada pelas seduções contrapostas das frentes law as science e law as politics (dos
Progressive Legal Realists e dos Radical Legal Realists, da Law and Economics Scholarship e dos
critical scholars) — nos oferecem modelos de escolha racional mais ou menos determinados (e a
projecção operatória que os assimila). Imagens ainda que nos obrigam a mergulhar no debate
individualismo/ comunitarismo: porventura para (com James Boyd White) reconhecermos as «situações
de leitura» (se não mesmo as formas de vida) dos advogados Euerges e Euphémios — o primeiro
comprometido com um certo pluralismo individualista («liberal» latissimo sensu), o segundo a assumir
uma explícita vocação comunitária (e a «cultura retórica do argumento» que a torna possível).
Imagens que se multiplicam… se quisermos considerar as «situações institucionais» do julgador,
exigindo agora que (entre muitos outros exemplos possíveis) se reconheçam (se demarquem) os
territórios-projectos do juiz administrador (consagrado pelo Estado Providência) e do juiz-«centro do
sistema» (justificado pela reprocessualização pós-instrumental), do juiz político do grande consenso
constitucional (táctico comprometido com uma grande estratégia material) e do juiz (ou juízes) da
comunidade dos princípios… sem esquecer decerto aqueles que vinculam o julgador a um critério de
maximização da riqueza ou que o responsabilizam por uma estratégia política alternativa… mas também
aqueles que o incitam a convocar o exemplum da ética da alteridade (se não a mergulhar num continuum
«prático-poiético»). Para uma reconstituição deste espectro com um número muito mais alargado de
interlocutores, vejam-se os nossos «A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz : o
―testemunho‖ crítico de um ―diferendo‖?» e «Jurisdição, diferendo e ―área aberta‖. A caminho de uma
―teoria‖ do direito como moldura?», , cit., passim.
16
lhes é comum e que até agora silenciámos), atingem significativamente — como outras
tantas ameaças-desafios — todos os discursos justificados por uma pretensão de
juridicidade e (ou) os territórios que estes defendem (e isto independentemente de os
podermos ou devermos isolar como discursos teoréticos ou como discursos-alvo48
).
Como ameças–desafios? Antes como uma frente pluridimensional de hetero-
-referências — com arenas propulsoras que poderão ir da política à filosofia, passando
pela economia, pela ciência e pela ética (e por uma ética que, ora submetida a um
esforço de «trivialização» e «tecnicização»49
, ora ocupada com a reinvenção de um
novo horizonte de sentido, se impõe cada vez mais como uma «alternativa» ao
direito50
). As hetero-referências que se impõem às decisões institucionalizadas nas
periferias (do legislador e da autonomia privada)51
… mas também aquelas que
48
Mantendo-se a distribuição de Fish apenas como um meio expressivo (sem as implicações que
o Autor lhes atribui). 49
Neste sentido, cfr. Fernando Araújo, «Pontos de interrogação na filosofia do direito», Revista
de Direito e de Estudos Sociais, ano XLVIII (XXI da 2ª Série), nºs 1-2, 2007, pp. 148-149 (34.). 50
A ética suportada por uma política, se não por um processo de politicização permanente (e a
exigir uma espécie de continuum prático): neste sentido (invocando o problema das alternativas ao
direito assumido por Castanheira Neves e sustentando a possibilidade de reconhecermos uma quarta
alternativa, precisamente a da ética, com frentes de reinvenção muito distintas, que poderão ir da ética
das virtudes comunitarista à ética da alteridade da Desconstrução, passando pela(s) ética(s) do
continuum das espécies), cfr. o nosso «O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e
Derrida», in Themis - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, VIII, nº 14,
2007, p. 50, nota 165 [remetendo para «A ética do continuum das espécies e a resposta civilizacional do
direito. Breves reflexões», Boletim da Faculdade de Direito LXXIX, Coimbra, 2003, pp. 197 ss., 214-215
e «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura
(law as literature, literature as law) à analogia com uma poiesis-techné de realização (law as
performance)», Boletim da Faculdade de Direito LXXX, Coimbra, 2004,, cit., pp. 65-66, 132-135]. Para
uma consideração do problema (acentuando a importância de reconhecermos limites ao direito como
«corolário» do «sentido da sua autonomia»), ver muito especialmente Castanheira Neves, «O direito
interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 69-81 (III., 1.) e «Pensar o direito
num tempo de perplexidade», cit., pp.27-28 (V.2. «Os limites do direito»). 51
Com o sentido que Luhmann sustenta, enquanto nos ensina a descobrir a «forma de
diferenciação interna» (autopoieticamente construída e assim livre de qualquer «conotação hierárquica ou
orgânica») que convoca o sub-sistema judicial para o centro do sistema. Uma forma de diferenciação que,
mobilizando a proibição da denegação da justiça e reconhecendo nesta um operador decisivo (no qual
todo o sistema aparece afinal implicado), garante às decisões judiciais — em confronto com as decisões
dos legisladores e com as decisões da autonomia privada — um muito maior «isolamento cognitivo» (o
isolamento que as impede de reconhecer nos «efeitos sociais» critérios juridicamente relevantes). «In der
Peripherie werden Irritationen in Rechtsform gebracht ― oder auch nicht. Hier garantiert das System
seine Autonomie durch Nicht-entscheiden-Müssen. Hier wird sichergestellt, daß das Recht nicht einfach
als willenlose Fortsetzung rechtsexterner Operationen fungiert. Das Zentrum bedarf dieses Schutzes ―
gerade weil es unter der entgegengesetzten Prämisse operiert. Deshalb arbeiten Gerichte, verglichen mit
Gesetzgebern und Vertragschlieβenden, unter viel stärkerer kognitiven Selbstisolation…» (Das Recht
der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1993, p. 322). Para uma consideração deste modelo centro
/ periferia, na sua relação decisiva com o paradoxo constitutivo do sistema jurídico — um sistema
jurídico que só poderá garantir a sua autonomia se contiver (se incluir, se fizer sua), ou se pelo menos não
excluir a negação desta autonomia (e com esta também a negação das convenções que a protegem)
[Ibidem, p. 545] —, vejam-se os nossos «A ―abertura ao futuro‖ como dimensão do problema do direito.
Um correlato do pretensão de autonomia?», in Avelãs Nunes / Miranda Coutinho (ed.), O direito e o
futuro. O futuro do direito, cit., pp. 397-412, e «Rechtsdogmatik, Autonomie und Reduktion der
17
condenam a dogmática (se não todo o Juristenrecht) a assimilar teleologias alheias
(acompanhando assim um direito que, no seu ímpeto regulatório, se pulveriza em
muitos direitos52
). Ou ainda aquelas que — independentemente dos movimentos
académicos que as mobilizam — se expõem nas práticas dos movimentos sociais e nas
identidades narrativas que as sustentam (o género, a raça, a orientação sexual, a
militância religiosa, a construção de uma identidade ambientalista). Sem esquecer
aquelas que são favorecidas (quando não construídas) por dinâmicas internas (a
começar certamente pela hipertrofia normativa da constitucionalização). Ou ainda
aquelas que (no plano já da teoria do direito) nos obrigam a discutir verdadeiros
problemas de fronteira(s)53
: bastando-nos aqui e agora convocar os percursos
exemplares (e exemplares também pelo espectro que os distingue) do narrativismo
comunitarista, da Law & Economics Scholarship e dos Crits da «terceira geração»54
(incluindo a(s) Feminist Jurisprudence(s), a Critical Race Theory, os Lesbian, Gay and
Transgender Legal Studies… mas também a Internal Network for Labor Law, a
Postcolonial Law Theory, as Third World Approaches of International Legal
Studies…55
).
Mais uma vez o problema parece ser o do paradigma perdido. Já não porventura
apenas nem principalmente enquanto ausência de uma linguagem-centro (com a
Komplexität. Brauchen die Gerichte ein Sicherheitsnetz?», in Schweighofer et alii (Hg.),
Komplexitätsgrenzen der Rechtsinformatik. Tagungsband des 11. Internationalen Rechtsinformatik
Symposions IRIS 2008, Boorberg Verlag, Stuttgart, 2008, pp. 464-467 (1.). 52
É um dos factores do diagnóstico de crise desenvolvido por Castanheira Neves em «Uma
reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da filosofia do
direito?», cit., pp.78-79 . 53
Com o alcance que David Howarth (insitindo nos mesmos exemplos de base) nos ajuda a
reconhecer: ver «On the Question ―What Is Law?‖», Res Publica, nº 6, 2000, pp.264-275 («Boundary
Disputes and Concepts of Law»). 54
A «geração» da fragmentação (concentrada nas identidades narrativas da perspectiva
interrogante) que Minda propõe como terceira geração [Gary Minda, Postmodern Legal Movements. Law
and Jurisprudence at Century’s End, New York /London, New York University Press, 1995, pp. 106 e
ss., 123-127 («Late-1980s Critical Legal Studies»)]. Uma sistematização-divisão esta que sempre
seguimos no nosso programa de Teoria do direito [ver Sumários Desenvolvidos (A), «As alternativas da
―violência mística‖ e da ―escolha racional‖ – I. A Correcção Situada das Injustiças ou a Procura Frustrada
de uma Violência Mística?», Coimbra, 2001-2002, polic., pp. 3 e ss.], que vemos também assumida por
Ana Margarida Gaudêncio [Entre o centro e a periferia : a perspectivação ideológico-política da
dogmática jurídica e da decisão judicial no Critical Legal Studies Movement (Dissertação de Mestrado
em Ciências Jurídico-Filosóficas), Coimbra, polic., 2004 (a publicar em breve), pp. 3 e ss., 6 e ss. (Parte
I) ] — e que não obstante se distingue daquela que Günter Frankenberg propõe em «Partisanen der
Rechtskritik: Critical Legal Studies, etc», in Buckel/Christensen /Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue Theorien
des Rechts, Stuttgart, Lucius & Lucius, 2006, pp. 96 e ss. [autonomizando uma primeira geração mais
próxima da teoria do direito neomarxista, uma segunda a superar esta sob a influência de Foucault (mas
também já da crítica feminista) e uma terceira (que corresponde à segunda autonomizada por Minda!) a
assumir o literary turn desconstrucionista… sem esquecer depois (como que num quarto tempo!) a
fragmentação e os Post-Critical Legal Studies que esta abre…]. 55
Ibidem, pp. 101-102.
18
renúncia ao modelo de unidade que esta constituiria) mas como superação
(desagregação) de uma pretensão de autonomia — ou de uma pretensão de autonomia
que, traduzindo-se numa perspectiva interior, pudesse assegurar uma autêntica
demarcação de fronteiras (unânime ou pelo menos dominantemente reconhecida).
Avaliação esta que se cumpre em três passos:
(a) pressupondo uma experimentação da autonomia vinculada ao discurso
jurídico iluminista e aos diversos fluxos que este alimenta, se não já concentrada na
«representação»-paradigma do Método Jurídico — uma experimentação que
circunscreva tal pretensão a uma defesa explícita de atributos formais (implicados na
auto-subsistência estrutural do texto-norma e na reconstituição dogmática ou
dogmático-sistémica da unidade destes);
(b) associando a plausibilidade desta pretensão ao destino deste paradigma
(tornando-a componente indissociável deste)… e então e assim apresentando-no-la
como elemento-núcleo de uma concepção do direito entre outras possíveis (aquela que
os normativismos do nosso tempo estão em condições de assumir);
(c) admitindo que o «descentramento» irreversível daquele Método e de outros
rule formalisms nos condena a uma explosão de modelos (e de filtros de relevância)
alimentados por arenas exteriores56
…
1.4. Admitido este diagnóstico-testemunho, urge voltar à pergunta que o
suscitou: como é que podemos compreender a vocação integradora da intenção à
validade (e a força da sua perspectiva normativa)... num momento (numa circunstância)
em que a experiência das práticas de realização juridicamente relevantes parece opor-
se à univocidade de uma auto-reflexão condutora?
Mais do que repetir esta pergunta, trata-se porém de a reformular. E de a
reformular sem romper o continuum com o diagnóstico anterior: antes confirmando a
resistência efectiva que a fragmentação dos discursos exerce... e ao ponto de admitir
que o problema que assim nos atinge possa ser directamente confrontado com as
intenções e exigências de unidade (se não integridade) da resposta jurisprudencialista.
Reformular a pergunta nestes termos será por exemplo querer saber se (e até que
ponto é que) a nossa circunstância nos permite reconhecer um commune de intenções
56
Será inevitavelmente assim no entanto? Até que ponto com efeito (e com que necessidade) é
que os passos desta avaliação se nos impõem? Não dependerá a sucessão que constroem ainda
integralmente da compreensão da autonomia (do direito e do pensamento jurídico) que é assumida pelo
formalismo normativista... uma compreensão que a avaliação em causa pretende rejeitar (cuja rejeição
pelo menos diagnostica como irreversível)?
19
autónomas às quais (a cujo horizonte de inteligibilidade) possamos referir as práticas
discursivas juridicamente relevantes — sendo certo que, para evitar um ponto de partida
comprometido com a antecipação de um qualquer commune, se entendem por tais
práticas aquelas nas quais o significante direito é invocado com uma pretensão (pelo
menos) identificadora. De uma forma mais clara e rigorosa, tratar-se-á no fundo de
perguntar se (e até que ponto é que) estamos em condições de invocar um tal horizonte-
referente e de o experimentar — com alguma univocidade! —… quando é certo que o
testemunho global de que podemos (e devemos!) partir reconhece ao fim e ao cabo que
tais práticas — independentemente de as vermos reunidas no seu território partilhado
[1.1.] ou separadas em pequenos territórios e outras tantas redes limitadas de
comunicação [1.2.] — se nos expõem invariavelmente disputadas por projectos de
integração inconciliáveis… ou mais do que isso, mergulhadas num (feridas por um)
contexto prático hostil — um contexto no qual as pretensões de identidade e de
continuidade (mas também de autonomia) do projecto cultural do direito se tornaram
dificilmente compreensíveis (e como tal insusceptíveis de serem univocamente
mobilizadas57
) [1.3.].
Formulação que, no seu deliberado nominalismo (aquele que o continuum com o
testemunho-diagnóstico lhe exige), está longe de ser neutra… porque nos aponta já um
caminho. Não se tratando tanto de reforçar o paradoxo que atrás reconhecemos — o de
um encontro com a pluralidade (e mesmo com a fragmentação) justificado como uma
sucessão-acumulação de reacções-respostas integradoras (orientadas pela intenção de
esquecer ou pelo menos de domesticar essa pluralidade) — quanto de o tratar como um
falso paradoxo e de assim mesmo reafirmar a solução organizatória que leva
pressuposta.
Que solução organizatória? Aquela que, ao condenar-nos ao patamar de um
diferendo entre vozes equivalentes — ao reconhecer-identificar o diferendo (e a
incomensurabilidade que o alimenta) nas vozes que admitem tê-lo superado e nas
respostas que estas propõem (e que encontram nos testemunhos rivais uma prática-alvo
privilegiada) —, nos leva a tratar a resposta jurisprudencialista como uma resposta
entre outras possíveis... — uma resposta com uma frente de conclusions-claims
selectivamente construída … e que como tal só faz sentido à luz de determinadas opções
57
A não ser porventura quando se trata de, pela negativa, identificar o programa de autonomia-
Isolierung do normativismo e outros formalismos…
20
ou códigos (mobilizando o sistema de valores semânticos e o modelo de antecipação
pragmática que estes pressupõem)58
...
Uma solução organizatória também que, em nome do mesmo continuum com a
celebração descritiva e prescritiva da pluralidade, nos obriga a tratar a exigência de
unidade intencional assumida pela resposta jurisprudencialista e a sua compreensão
(integrada) do projecto humano do direito — bem como o propósito de uma renovação
recuperadora do sentido originário deste — como outras tantas manifestações de uma
pretensão-aspiração de inter-semioticidade: uma pretensão que, em nome de uma
intenção de unidade ou de coerência normativa, se descobre assim constitutivamente
repetida... e isto enquanto e na medida em que se dirige (com expectativas diversas
embora) a todas as práticas que o significante direito identifica (ou a todas que ela
reconhece enquanto tal)59
.
Uma pretensão de inter-semioticidade entre outras possíveis? Importa
acrescentar. Sem esquecer que as outras a ter em conta são precisamente aquelas que as
outras vozes em diferendo (enquanto alternativas de compreensão da juridicidade)
efectivamente manifestam, sempre que explicita ou implicitamente convoquem a
categoria de inteligibilidade sistema jurídico (e esta como especificação de uma
representação ou de um projecto de unidade ou de coerência). Mas sem esquecer
também por fim que reconduzir estas intenções a meras aspirações de inter-
semioticidade significa ainda — perante a ausência de um significado univocamente
(consensualmente) determinável, no limite também perante a impossibilidade de invocar
um referente exterior (objectivamente reconhecível) — estar em condições de as
tematizar (entenda-se, de as comparar e de as distinguir)… apenas no plano dos
significantes (ou da teia argumentativa que os articula)…
2. É só quando rompemos o continuum com o testemunho da pluralidade —
menos porventura para reconhecer a impossibilidade de uma perspectiva equidistante
(metadiscursivamente legitimada) do que para resistir, com este reconhecimento, às
seduções de um pluralismo nomológico (e no limite também ao abismo de uma
indiferenciação hipertélica) — que conseguimos pensar uma alternativa às
interrogações anteriores (e às dificuldades em que estas nos aprisionam) [1.4].
58
Mas então também hipertrofiando factores-elementos em detrimento de outros (e submetendo
as práticas em causa a equilíbrios diferenciados). 59
Para o dizermos ainda com Jackson: ver supra, texto cit. na nota 43.
21
A primeira etapa para levar a sério a relação de compossibilidade entre
pretensões de unidade intencional e de pluralidade discursiva, vamos cumpri-la, com
efeito, introduzindo um filtro de relevância… e reduzindo (circunscrevendo) assim o
círculo das vozes protagonistas. Trata-se na verdade de mobilizar-experimentar já uma
certa concepção da praxis e do pensamento prático — não certamente por acaso aquela
que a aposta jurisprudencialista (uma destas vozes!) assume como um dos eixos
determinantes do seu corpus (e dos pressupostos culturais que o constituem)60
... —, na
mesma medida no entanto em que também se trata de admitir que esta experimentação,
ao deter-se num patamar de representação global, possa ainda (et pour cause!) abstrair
dos problemas de sentido e das exigências de institucionalização que o mundo prático
do direito especificamente suscita (ou pode suscitar).
Abstrair do modo como os diferentes discursos que se dirigem a este mundo
específico — ou que encontram neste (ou numa organização deste) a sua prática-alvo
(entre os quais certamente aquele que corresponde à abordagem jurisprudencialista) — se
relacionam com o referido horizonte. Abstrair, se quisermos, das diferenças que, logo
aqui, as referidas vozes nos impõem61
.
Mas então e assim… de mobilizar-experimentar já uma certa concepção da
praxis e do pensamento prático… convocando ainda (sobretudo) o horizonte de
inteligibilidade global (aberto pela segunda metade do século XX) que a torna
reflexivamente possível (se não exigível). Ora um horizonte que se constrói assumindo a
indissociabilidade desta praxis e do seu discurso. Uma indissociabilidade que só a
mediação reflexivamente autónoma de um mundo-referente — enquanto contexto-
ordinans dos sentidos culturais mobilizados e construídos pela praxis — nos autorizará
decerto a compreender e (ou) a experimentar.
60
Para uma exploração deste corpus da compreensão jurisprudencialista (enquanto núcleo de
«pressupostos fundamentantes»), ver Castanheira Neves, Apontamentos complementares de teoria do
direito – Sumários e Textos, policop., Coimbra, 1998, (versão em fascículos) pp. 71-86, (versão em A4)
40-47. 61
Diferenças inevitáveis e imediatas… não só porque as referidas vozes pressupõem diferentes
especificações deste horizonte global, mas também porque, como veremos, lhe atribuem um papel ou um
contributo distintos: num espectro de possibilidades que poderá ir da assimilação pura e simples (no
limite de uma transposição-projecção aproblematicamente unilateral do mundo prático global para o
mundo prático do direito) até à construção de uma conversação responsável, na qual o referido horizonte
seja tratado como o interlocutor indispensável de um diálogo possível (sendo o outro interlocutor
precisamente aquele que assume as preocupações e a identidade institucionalmente específica do universo
do direito). Importando antecipar que é nas oportunidades deste último pólo que se inscreve a resposta
jurisprudencialista…
22
Tratando-se por um lado de iluminar uma praxis que, sendo nuclearmente
energeia — enquanto estabelece um parentesco constitutivo com as coisas que mudam,
mas também enquanto se nos expõe indissociável das acções e dos juízos em que se
consuma… —, só se nos revela intencionalmente (só se especifica como interacção
humanamente significativa) ao assumir-realizar esse mundo e ao experimentar-construir
este como um contexto-correlato plausível — um contexto assim mesmo inevitavelmente
limitado e aberto, disponível e indisponível (ou com diversos degraus de
autodisponibilidade).
Tratando-se por outro lado de insistir no desafio de um pensamento integral e
auto-subsistente problemático… ou se quisermos na oportunidade (circunstancialmente
única) de o levar a sério. Que desafio? O de um discurso que, oferecendo-se-nos como
teia-contraponto e como dinâmica de logoi, possa não obstante continuar a orientar-nos (e
a ferir-nos!) como resolução antecipante (vorlaufende Entschlossenheit62
). Por outras
palavras (capazes de abranger outras respostas), o de um pensamento que esteja em
condições de acolher a situação-problema sem a diluir no processo reflexivo ou
deliberativo (sem a domesticar como etapa-componente do seu iter) … antes exigindo
que esta (na sua irrepetibilidade) o atinja como prius metódico ou perspectiva-visée de
uma analítica plena (de uma analítica que se quer e se diz quase sempre interpretação
existencial63
). Que oportunidade? A de retomar o curso de autonomização da praxis-
prattein aberto pela secularização aristotélica… ou mais rigorosamente, a de reconhecer
que, se o ciclo moderno-iluminista interrompeu (mais ou menos drasticamente) o curso
principal dessa autonomização, a possibilidade-urgência de o retomar (ou de engrossar
alguns dos seus fluxos subterrâneos) cumpre-se hoje — tem vindo a cumprir-se desde a
segunda metade do século XX! — como uma exigência única de desafiar-recusar o
predomínio do teorético64
e de assim nos expor a um pensamento de «imanência
62
Heidegger, Sein und Zeit, 18ª edição (reimpressão da 15ª), Max Niemeyer Verlag Tübingen,
2001, p. 310. 63
Ver infra, 2.2.3.1.1. 64
Decerto do teorético especulativo que fora alimentado pela virtude intelectual da sophia (e pela
institucionalização pré-moderna da conexão telos / êthos) — aquele que «neutralizava» as coisas da
prática como objectos. Mas também do teorético científico justificado pela hipertrofia da episteme… e
pela sua apropriação irreversível da technê — hipertrofia aquela e apropriação esta (diria Heidegger!)
consumadas, se não convertidas em metafísica, pela experiência da modernidade. Sem esquecer por fim
aquele outro teorético filosófico que, ao dizer-se dialéctica ou ao obrigar esta a esquecer a sua
«proveniência»-Herkunft e a romper assim o vínculo constitutivo com a tópica (para invocarmos o
diagnóstico de Bubner!), se apropriou da história para a dizer racional e se pré-determinar como método
ou discurso do método (Rüdiger Bubner, Dialektik als Topik. Bausteine zu einer lebensweltlichen Theorie
der Rationalität, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990, p.9, 79 e ss., 88-96).
Para uma exploração do sentido desta filosofia prática em geral e da sua recusa do primado do
teorético em particular, «tanto do teorético filosófico como do teorético puramente científico», ver
23
constitutiva»65
. O que sem qualquer paradoxo significa superar a tradição galilaica…
sem ter que voltar à tradição aristotélica (ou à «teleologia virtualmente necessária» que a
sustenta)66
.
Importando ainda acrescentar que, se o nosso percurso nos leva a encontrar-
reconhecer um território comum… — «livre» da ameaça do diferendo (e assim
construído ou dinamizado por verdadeiros litígios67
)68
—, se trata menos de o descobrir
como convergência empiricamente corroborável69
do que de o reconstruir (e explicitar
Castanheira Neves, O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., primeira
versão, Coimbra-Lisboa, 1982-1983, I. Prolegómenos, 2ª lição, 2.a), pp. 22 e ss., 24-27. 65
Oportunidade que é assim a de construir um discurso ou um pensamento integral e auto-
subsistentemente práticos. Um pensamento «de imanência constitutiva» (digamo-lo ainda com
Castanheira Neves) [ibidem, pp. 23-24] que, ao expor-se-nos como «filosofia prática», possa, numa
intenção «comprometidamente ―ascritiva‖ ou normativa», corresponder a uma «reflexão crítica»
(imanente) sobre os «momentos fundamentantes, regulativos e constitutivos» da praxis, na mesma
medida em que, explicita ou implicitamente, reconhece que o núcleo dessa reflexão imanente (na
autocompreensão e na autodeterminação que esta mobiliza ou na autotranscendência que intenciona)
convoca como problema maior (explícita ou implicitamente assumido embora) o da validade dessa
prática: o de uma validade que, sem poder contar com uma pré-determinação auto-subsistente das suas
significações normativas, se mostre no entanto em condições de superar a singularidade aleatória e a
contingência. 66
«A compreensão da praxis até aos nossos dias tem sido dominada pelas ―duas tradições‖ – na
expressão de Wright –, encarnadas respectivamente em Aristóteles e em Galileu. Depois que a praxis foi
por Aristóteles explicitamente diferenciada da theoria e da poiésis, sempre o pensamento clássico
procurou o seu sentido último – não obstante a sua imediata remissão, também por Aristóteles e pela
tradição cultural que sustentou, para a phronesis ou prudentia, que a tópico-retórica devia racionalizar –
numa pressuposta ordo ontológico-metafísica que lhe implicaria uma teleologia inferível de uma
essencial causa finalis e que na polis teria a sua directa mediação prática. Desta compreensão se
alimentou, como se sabe, o jusnaturalismo também clássico. Só que o homem moderno rompeu com ela
em dois pontos decisivos: por um lado, reassumindo-se na sua ―subjectividade‖ (a subjectividade
moderna), fica perante o mundo concebido e experimentado só empiricamente, não perante o mundo de
uma ordem ontologicamente definida e perfeita, que à ciência matemático-experimental, fundada por
Galileu, cabe conhecer e que o racionalismo sistemático-axiomático consequente deverá totalmente
determinar; por outro lado, reivindicando a sua autonomia-liberdade contra ordens metafísico-
transcendentes e integrantes, afirma o seu individualismo acomunitário e dessolidário. (…) Diferente de
ambos estes sentidos deverá ser o sentido actualmente compreensível da praxis. Nem estruturada por uma
integração de transcendência ontológica e actuando uma teleologia virtualmente necessária, nem referida
à mera contingência dos fins da vontade e dos interesses a submeter a um esforço de racionalização que
potencie e controle a eficácia, mas pressupondo e manifestando a intersubjectividade (a interacção)
histórico-social em que se reconhece, simultaneamente, a referência a um contexto comunitário-
culturalmente significante e a abertura de uma dialéctica concretamente problemático-constituinte –
aquela praxis, como inter-acção de sujeitos pessoais, que está sempre em condição comunitária ou em
contextual situação e continuamente supera essa situação…» [Castanheira Neves, Apontamentos
complementares de teoria do direito – sumários e textos, cit., (versão em fascículos) pp. 79-81, (versão
em A4) 43-45]. 67
Para continuarmos a usar os recursos expressivos do binómio de Lyotard. 68
Um território que nos autorizasse antes de mais a reconhecer que a resposta jurisprudencialista
não está isolada e que há outras vozes que, partilhando um certo núcleo de pressupostos e de pretensões
reflexivas (mobilizando desde logo uma certa compreensão global da praxis), se cruzam com ela (ou que
pelo menos desenham traçados paralelos). 69
Invocar a procura deste território partilhado enquanto tal (e reconduzir o discurso de razões a
esta exigência) significaria com efeito permanecer fiel a uma abordagem externa e à contingência a que
esta nos expõe. Como se se tratasse de, em nome das intenções-warrants de um testemunho empírico
24
reflexivamente) como pré-compreensão culturalmente significante70
— se não já
mesmo como condição (transcendental) de possibilidade (indissociável da inter-acção
que permite ou do universo de sentidos que inaugura).
Que condição de possibilidade? Aquela que associa a compreensão renovada da
praxis e os seus desafios de institucionalização ao compromisso (se não à
responsabilidade ou à virtude) de um regresso da comunidade... na mesma medida em
que (explícita ou implicitamente) exige que um factor de pluralismo ou de pluralidade
— pluralidade que será já menos a dos interesses, a dos fins da vontade ou a dos
programas ideológicos71
… do que a das situações singulares de escrita e de leitura, a
dos percursos vitais, a dos casos-acontecimentos irrepetíveis, a das perguntas
circunstanciadas, a das narrativas72
…— venha a conformar os pressupostos
constitutivos deste regresso. Ora a conformá-los positivamente. Para que a experiência
desta diversidade — longe de poder (e de dever!) corresponder a um diagnóstico de
limites ou de constrangimentos (que de alguma forma impusesssem resistências àquele
regresso) — se nos ofereça antes, e em contrapartida, como uma das suas dimensões —
e uma dimensão imprescindível! Que dimensão? Aquela que, ao responsabilizar-se por
uma argumentação aberta (e ao admitir o prolongamento metadiscursivo de uma
reflexão crítica), esteja em condições de restituir ao compromisso de identidade
comunitário-culturalmente significante uma dinâmica permanente de renovação. Mas
então também e ainda aquela que, ao assegurar um contraponto logrado com uma não
menos imprescindível (e irredutível) dimensão dogmática (e a sua «lógica» de finitude e
de clausura), nos autorize a compreender que as intenções condutoras da praxis
(intenções que, referindo-se a um commune culturalmente reconhecível, permitem
precisamente experimentá-la como unidade!) se nos exponham enfim constituídas,
explicitadas e transformadas por essa mesma praxis (e pelas suas múltiplas instâncias).
Acentuação esta última que nos restitui às seduções do pensar em círculo… na
mesma medida de resto em que nos autoriza a descobrir nos eixos da communitas e da
societas dois pólos racionalmente irredutíveis de experimentação-assimilação da
(empírico-descritivo, se não empírico-explicativo), isolar como backing os «factos» de um consenso
logrado (e da convergência inter-semiótica que o sustenta)… 70
Uma abordagem que nos permite tratar a convergência empiricamente determinável e os seus
resultados contingentes como manifestações-sinais (mais ou menos explícitos) desta pré-compreensão…
e neste sentido discutir na perspectiva desta (e do commune que antecipa) a plausibilidade e os limites de
tais resultados e dos consensos que estes asseguram. 71
A pluralidade assimilável pelo projecto da societas. 72
Aquela que só o projecto cultural da communitas está em condições de assimilar.
25
pluralidade (e então e assim também a distribuir por estes pólos e pelos seus projectos
os diversos sinais, elementos ou factores de uma tal pluralidade).
Acentuação que nos sugere um percurso? Admitamos que sim. Um percurso que
nos autorize a «situar» o regresso (se não regressos) da comunidade e a propor um
esquema de distribuição plausível [2.1.]… antes de exigir que os lugares assim
recriados sejam habitados por outras tantas vozes exemplares… e pelas
«representações» do mundo prático (e do mundo prático na experiência do tempo) —
todas elas de resto (não certamente por acaso) alimentadas pelas possibilidades
luminosas do círculo (ou do pensar em círculo)… — com que o nosso horizonte
prático-cultural mais eloquentemente nos interpela (ou continua a interpelar-nos) [2.2.].
2.1. Falar do regresso da comunidade no contexto desta recompreensão da
praxis significa evidentemente poder (dever) mobilizar o binómio sociedade /
comunidade… e então e assim estabelecer-desenhar um contraponto entre dois projectos
culturais inconfundíveis. Projectos que, correspondendo a dois modos de determinação
da identidade colectiva, representam também afinal duas faces típicas (irredutíveis) de
um certo teleological turn ou da compreensão que este hoje nos exige… mas também (e
muito especialmente) duas tentativas de responder à circunstância presente ou de
enfrentar o pluralismo que a caracteriza.
(α) De tal modo que o projecto da societas seja aquele que, permanecendo fiel à
narrativa de uma criação ex nihilo e ao homem desvinculado («independente de toda e
qualquer tradição»73
) que por ela se responsabiliza — se não mesmo ao status naturalis
e (ou) à original position (universalmente representados) que a tornam possível —, nos
incita a descobrir na emancipação lograda dos interesses e na equivalência (ou mesmo
na comensurabilidade quantitativa) dos fins— mas também na redução dos referentes (e
dos critérios) materiais a um acervo de afirmações de preferência (subjectivamente
experimentadas) — as coordenadas decisivas do seu problema (e da ordem que o
assimila)74
. Mas então também aquele que encontra a resposta instituinte (capaz de
73
«[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate
themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal,
tradition-independent norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and
is the project of modern liberal, individualist society…» (MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?,
London, Duckworth, 1988, p. 335) 74
«[N]unca até então os interesses, na sua radical expressão económica, se tinham reconhecido
como autónoma dimensão humana — ou melhor, como dimensão humana socialmente autónoma…»
(Castanheira Neves, «A imagem do homem no universo prático», Digesta – escritos acerca do direito, do
26
hierarquizar estes interesses, fins ou preferências) num processo-modelo de decisão — e
no artefacto sócio-político que legitima colectivamente esta decisão (e a cadeia de
decisões em que esta se integra).
(β) Para que o projecto da communitas abra a nossa experiência (e as nossas
possibilidades de practical deliberation) à consideração de um horizonte de integração
(justificado pela referência a responsabilidades e compromissos práticos partilhados),
na mesma medida em que defende (e explora) um dualismo insuperável entre objectivos
e bens (subjective goals v. human goods) ou entre fins e valores75
— na medida pelo
menos em que revela a importância de fins incomensuráveis, cada um deles prosseguido
como um fim em si mesmo e a exigir enquanto tal um acervo de especificações
plausíveis (non-commensurable (...) qualitatively distinct and separate (…) ultimate
ends, [each one pursued] for its own sake76
). O que, no plano dos tipos da
racionalidade, significa decerto mais do que resistir ao eixo discursivo da episteme-
technê ou da technê-episteme — e com este à exclusividade e unilateralidade do
projecto da societas (ou à possibilidade de o tratar como uma etapa evolutiva
historicamente insuperável) — , porque significa já vincular a communitas à «tradição»
de uma praxis-prattein autónoma (logistikon bouleuesthain to praktikon dianoètikon)…
e às virtudes intelectuais que a distinguem — à actividade-energeia da phronesis e ao
movimento-kinésis da poiesis-techné77
…
Que dizer no entanto das respostas que assumem esta segunda frente e os seus
desafios? Mais do que um overlapping de intenções distintas (alimentadas por uma
pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 1º, pp. 327-
328) 75
«Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e
que convoca a prática para o desempenho irrenunciável de ―tarefas‖ (...) em que se projecta essa sua
vinculação ou compromisso, os fins desvinculados pelo ―mecanicismo‖ moderno da teleologia
ontológica, são agora tão-só opções decididas pela subjectividade que programa os seus objectivos (...),
decerto sempre condicionados por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e
em vista deles – comunga-se nos valores, diverge-se nos fins e nos interesses...» [Castanheira Neves,
Teoria do direito (versão em fascículos), pp. 154-155, (versão em A4), pp.85-86] 76
Martha Nussbaum, «Virtue Ethics: A Misleading Category?», The Journal of Ethics, vol. 3,
1999, pp.179-188 («The Anti-Utilitarians; Expanding Reason‘s Domain»). As formulações citadas no
texto encontram-se nas pp.182-183. Para uma crítica à relativa fragilidade desta construção na proposta
de Martha Nussbaum (em confronto nomeadamente com uma autêntica distinção entre valores e fins),
veja-se o nosso «Imaginação literária e ―justiça poética‖. Um discurso da ―área aberta‖?» (a publicar em
breve), ponto 4.2.1. 77
Não sendo preciso acrescentar que se trata também de libertar estas virtudes (e os discursos
racionais que estas geram) do horizonte de inteligibilidade de uma ordem necessária — daquela ordem
que só a «contemplação» iluminada pela sophia (enquanto exigência de experimentar a articulação telos /
êthos como uma energeia autónoma, cumprida como bios e como mimesis) estaria afinal em condições
de garantir.
27
herança comum), dir-se-ia com efeito que estas respostas — e os processos de
desenvolvimento que elas asseguram — nos impõem antes um elenco de possibilidades
alternativas (cada uma delas com diversos caminhos). Possibilidades e caminhos que
poderemos distribuir por três eixos principais:
(β)’ O eixo dominado pelas exigências do narrativismo comunitarista e pelo
holismo ético-prático que as sustenta, a impor uma abordagem nuclearmente
macroscópica (pensada na perspectiva da comunidade, ainda que comunidade de
pequena escala). Com caminhos que se dividem78
entre a reinvenção de uma filosofia
sapiencial de inspiração pré-moderna (compossibilitada com as experiências da
historicidade e pluralidade) e a exploração culturalmente reflectida do liberalismo
como tradição — se quisermos, entre comunitarismos tout court e comunitarismos
liberais ou liberalismos comunitaristas79
— ... na mesma medida em que conjugam
distintas interpretações-articulações das exigências (e significações normativas)
imputáveis a uma comunidade de memória e a uma comunidade de ideias (e à dialéctica
que as integra e lhes faz corresponder horizontes antropológico-existenciais
inconfundíveis)80
…
(β)’’ O eixo vinculado ao sentido mais estrito (e mais genuíno) da reabilitação
da philosophia practica — precisamente aquele que faz corresponder a auto-subsitência
efectiva desta filosofia (emancipada do primado integrador da sophia e da colonização
da episteme-techné) a uma preocupação com a autonomia constitutiva da phronêsis e
com a racionalidade sujeito / sujeito que a distingue (sem esquecer que se trata assim
também de evitar a ameaça de um continuum com a poiesis!). Com caminhos que se
mostram capazes de acolher discursos de fundamentação material e de determinação
78
Cfr.a síntese destas «modalidades» ensaiada por Kurt Seelmann em Rechtsphilosophie,
München, Beck, 3ª edição (ampliada), 2004, pp. 193 e ss. («Kommunitaristische
Gerechtigkeitstheorien»). Sem esquecer as reflexões de Castanheira Neves em A crise actual da filosofia
do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva
reabilitação, cit., pp.92-96 (2)). 79
Para uma consideração de alguns aspectos deste contraponto (concentrado nas vozes
exemplares de MacIntyre por um lado e de Charles Taylor e Michael Walzer por outro lado), veja-se o
nosso «Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O ―pormenor‖ do
direito na ―ideia‖ da Europa das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista», Dereito. Revista
xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, volume 15, número 1, 2006, pp. 17 e ss., 34-53
(3.4. e 3.5). 80
Para uma síntese deste contraponto (concentrada nas vozes de Boyd White e Martha
Nussbaum), veja-se o nosso «Imaginação literária e ―justiça poética‖. Um discurso da ―área aberta‖»?
cit., ponto 3.2.
28
procedimental... e que assim mesmo nos aparecem exemplarmente distribuídos (quando
não fragmentados) pelos pólos–exigências da recontextualização hermenêutica e da
problematização retórico-argumentativa81
.
(β)’’’ O eixo enfim que nos compromete com as exigências de uma comunidade-
promessa e com a experiência microscópica que a determina, se não com a
inevitabilidade de um continuum prático — um continuum prático que sendo energeia
não o seja menos kinésis e aisthesis, e que assim mesmo nos condene a renunciar a uma
phronesis autónoma. Eixo decerto ainda mais (internamente) diversificado do que os
anteriores… e agora porque expõe a representação do sentido (e as possibilidades da
vocação integradora que o alimenta, se não a ordem-ordinans que o traduz) às seduções
(concertadas ou divididas) de uma moralidade política, de uma estética do sublime e de
uma ética da alteridade — a primeira preocupada com o encontro tentacular dos efeitos
de poder e de resistência e com o «entrincheiramento de hierarquias» que suspende (ou
vai suspendendo) o seu movimento perpétuo (mas também e muito especialmente com
a possibilidade de o inverter), a segunda a mobilizar a experiência do juízo ao qual «só o
particular é dado» para reconhecer a singularidade irrepetível de um momento de
sensação-aisthesis e exigir um discurso que liberte a phronesis do pensamento prático
(de um pensamento prático sustentado numa validade normativamente vinculante), a
última a reconhecer que o contexto-correlato da procura da relação singular (na
unicidade e incomparabilidade do seu dizer) se descobre enfim na perspectiva
(determinante) de um «Eu de responsabilidade infinita»82
.
81
Cfr. a síntese proposta por Castanheira Neves na Metodologia Jurídica. Problemas
fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora,1993, pp.70-78. Para uma reconstituição crítica das exigências
da hermenêutica compreensiva como «filosofia prática» e como «método» (nos seus cruzamentos
exemplares com o discurso jurídico), ver ainda O actual problema metodológico da interpretação
juridica, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 46-107, 362 e ss., 378 e ss. e A crise actual da filosofia
do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva
reabilitação, cit., pp. 58-68. 82
Para uma exploração das principais linhas destas promessas de comunidade, vejam-se os
nossos: Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, cit., pp. 92
e ss. e 181-211 (o contributo de Foucault) , 221 e ss. e 462-507 (a estética do sublime de Lyotard); e
«Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de Force de loi»
(2004), in Ars Iudicandi. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves (Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial) volume I, Coimbra, Coimbra
Editora, 2008, pp. 551-667 (a proposta de Derrida) [ver também «O dito do direito e o dizer da justiça.
Diálogos com Levinas e Derrida» (2006), in Themis - Revista da Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa, VIII, nº 14, 2007, pp.5-56 e «Dekonstruktion als philosophische (gegenphilosophische)
Reflexion über das Recht. Betrachtungen zu Derrida» (2005), Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie
(ARSP), Band 93 / 2007, Heft 1, pp. 39-66].
29
2.2. Reconhecido este tríptico [(β)’-(β)’’-(β)’’’] de representações-experiências
do mundo prático enquanto comunidade — que o são também indissociavelmente da
dialéctica comunidade /sociedade —, admitamos distribuir pelos painéis assim
esboçados algumas vozes exemplares.
Todas enquanto representações de um mundo-da-vida que se nos oferece
incindivelmente como contexto culturalmente significante e correlato problemático-
constituinte de uma prática. E todas a assumirem a inevitabilidade de uma reflexão
imanente, preocupada com as intenções e os sentidos que essa prática simultaneamente
mobiliza e inventa… e com a exigência de libertar tais exigências e sentidos de uma
vertigem de aleatoridade ou de contingência.
Nem todas porém a reconhecerem que esta libertação (ou que pelo menos a
resistência lograda aos perigos desta vertigem) deva ser procurada na referência
recuperadora a uma dimensão axiológica (e nos sentidos de validade que esta está em
condições de proporcionar ao problema da realização). Algumas a admitirem que só um
discurso contra os valores estará em condições de abrir o caminho (com a mediação
lograda de uma nova perspectiva ontológica)… outras a procurarem a resposta na
superação de uma racionalidade material ou na construção de uma dialéctica horizontal
(determinável numa racionalidade procedimental). Algumas a recuperarem as ambições
integradoras de uma visão unitária e integral da racionalidade humana (justificável
como sophia)… outras a exigirem a superação de toda e qualquer ontologia e a entrega
a uma nova ética.
Mas então e numa palavra, todas a assumirem a inevitabilidade de uma reflexão
imanente… sem prejuízo de pressuporem ou de experimentarem diferentes perspectivas
do que esta possa ou deva ser. Com opções antropológico-existenciais que não se
limitam a exprimir diversos graus de estabilização do mundo prático ou distintas
sensibilidades à transformação... que antes traduzem compreensões e experiências
heterogéneas...
Com as vozes inscritas nos painéis extremos do tríptico [(β)’ e (β)’’’] a
mobilizarem os desafios da pluralidade (ou da relação comunidade / pluralidade) como
um tema expresso. Com o painel central [(β)’’] a diluir este topos no problema da
historicidade (e na experiência prático-existencial de uma historicidade constitutiva)…
mas então também (e não certamente por acaso) a tematizar metadiscursivamente o
sentido positivo do círculo ou do pensar em círculo. Diferenças de acentuação que nos
30
bastam para iluminar também distintamente os painéis em causa… sugerindo-nos
(justificando) um caminho possível... e o percurso selectivo (muito selectivo!) com que
agora nos propomos atravessá-lo.
2.2.1. Percurso que nos autoriza a iluminar o primeiro painel [(β)’] ouvindo
apenas MacIntyre e Boyd White.
2.2.1.1. Ouvindo MacIntyre… decerto para reconhecer a dinâmica da tradução e
do exercício de traduzibilidade /intraduzibilidade que lhe corresponde — num
confronto entre possíveis tradições rivais que nos aparece justificadamente privado de
um patamar exterior83
—... mas sobretudo para surpreender o «núcleo duro» de uma
certa compreensão das virtudes (ou da reinvenção recuperadora que esta leva a sério)84
.
É que este núcleo (mobilizado «contra a ideia universalista da virtude no
singular»85
) cumpre-se desvelando três condições contextuais de emergência (tão
irredutíveis quanto inseparáveis). Com a primeira a abrir-nos para uma experiência
situada da communitas enquanto ensemble de práticas particulares86
— com «bens» a
concorrer na sua ineliminável diversidade… — e a exigir assim que as virtudes se nos
exponham como «qualidades da mente e do carácter»87
(as qualities necessary to achieve
the goods internal to practices88
). Com a última a permitir-nos pressupor aquela
communitas enquanto tradição societariamente vigente, estabilizada numa acervo de
padrões de comportamento ou de representações do bem comum (the stage which (...)
relates [the virtues] (...) to the porsuit of a good for human beings, the conception of
which can only be elaborated and possesed within an ongoing social tradition89
). Com a
segunda enfim a garantir a mediação indispensável: a mediação (se não reciprocidade
constitutiva de significações e de sentidos) que só um percurso vital assumido na sua
integridade (as a complete human life) — e como tal narrativamente reconstituível como
unidade (unitary life-story, unity of narrative) — estará por assim dizer em condições de
83
MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?, cit., pp. 349 e ss. («The Rationality of
Traditions»), 370-388 («Tradition and Translation»). 84
After Virtue. A Study in Moral Theory (1981), cit. na segunda edição (com Postscript),
London, Duckworth, 1985, pp. 204-225 («The Virtues, the Unity of a Human Life and the Concept of a
Tradition»), 272 e ss. («The Virtues and the Issue of Relativism»). 85
«Nietzsche ou Aristóteles?», entrevista de Giovanna Borradori a MacIntyre, in Borradori,
Conversazioni americane, 1991, cit. na trad. portuguesa A filosofia americana. Conversações, São Paulo,
Unesp, 1998, p. 203. 86
MacIntyre, After Virtue, cit., pp. 273-274. 87
«Nietzsche ou Aristóteles?», entrevista de Giovanna Borradori a MacIntyre, cit., p. 203. 88
MacIntyre, After Virtue, cit., p. 273. 89
Ibidem.
31
sustentar90
(the stage which (...) considers [the virtues] (...) as qualities contributing to
the good of a whole life91
).
2.2.1.2. Antes de ouvir de novo MacIntyre… na (ou através da) proposta de
Boyd White… agora numa especificação-projecção particularmente eloquente (já
construída a pensar no mundo prático do direito… ou pelo menos a propósito deste!).
Especificação esta que, não certamente por acaso, retoma todos os núcleos temáticos a
que acabámos de aludir: ora isto enquanto e na medida em que os projecta logradamente
numa certa compreensão-experiência do «continuum» praxis /poiesis92
Como se se tratasse de aplacar as tensões em causa (praxis versus poesis)
assumindo a oportunidade de pensar os mundos normativo e cultural em função do
sujeito que os interioriza…
Um sujeito-intérprete que possa assimilar os critérios e (ou) que responda aos
estímulos de «sentido» (virtual ou efectivamente) neles comunicados, mas também um
sujeito-autor que, ao prescindir das (ou ao desvalorizar as) diferenças que separam os
mundos em causa, reconcilie os respectivos procedimentos (e a «dialéctica» que os
ilumina).
O que, sem qualquer surpresa, há-de cumprir-se nas (ou pela mediação das)
narrativas que alimentam (e que acompanham ou que renovam como memória) um
certo percurso existencial irrepetível. Só que aqui como uma (ou como a antecipação
regulativa de uma) ontogenética totalizante: na qual mais do que a aprendizagem
importe reconhecer o cultus (mais do que o iter de decantação a vis de reconciliação)
das «virtudes intelectuais» envolvidas. Como se se tratasse ainda… de hesitar — e de
hesitar em termos constitutivamente irredutíveis! — entre uma comunidade de histórias
partilhadas (prolongada numa pragmática narrativa também comum) e a comunidade-
praxis de um certo cuidado-Sorge (iluminada pelo compromisso ético da «tradução»).
90
After Virtue, cit., pp. 216 e ss. 91
Ibidem, p. 273. 92
Para uma reconstrução menos esquemática do pensamento de Boyd White (e as indispensáveis
referências bibliográficas), vejam-se os nossos Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o
tratamento narrativo da diferença…, cit., pp. 679 e ss., «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do
ethos e do pathos...», cit., Coimbra, 2004, pp. 66-84, «Humanitas, singularidade étnico-genealógica e
universalidade cívico-territorial», cit., pp. 53-59 (3.6.) e ainda «Imaginação literária e ―justiça poética‖»,
cit., passim.
32
Ao ponto de, na intensificação reflexiva da compreensão (como atitude
originária), se inscrever já (mas agora como resposta ou solução apaziguadora) a
celebração de uma escolha (que é sobretudo aquisição e aposta) antropológica —
precisamente aquela que transmuta o homem finito em cultor triunfante do argumento, o
«destinatário»-vítima da contingência em «tradutor» circular e fecundamente
autopoiético», o opositor estratégico em Vernunftsperson93
. Perspectiva que nos
autorizará a inscrever os critérios pressupostos e os seus possíveis programas de fins
numa teia argumentativa dominada pelo prius da «situação retórica»... e isto enquanto (e
na medida) em que convoca recursos-armas inconfundíveis:
(a) recursos que nos incitam a descobrir o «arquétipo» performativo da prática e
do pensamento prático na pragmática do texto narrativo … e então e assim a desvendar
um universo-polis94
de «situações institucionais» — um universo que não só é habitado
pela linguagem prática (da interacção e da criação) e pela linguagem cultural do «saber»
(e dos materiais e recursos pressupostos) como impõe a estas linguagens uma assimilação
(se não fusão) irreversível (the community as (…) a group of people who tells a shared
story in a shared language95
, the narrative as the archetypal legal and rhetoric form (…),
as the archetypal form of human thought in ordinary life96
);
(b) recursos que culminam na representação de um contexto de significação-
limite — um contexto de significação que se nos impõe para além das possibilidades que
as diversas comunidades interpretativas nos oferecem… mas então também para além do
horizonte das expectativas civilizacionais.
93
White, Heracles’ Bow. Essays on the Rethoric and Poetics of the Law, Madison, The
University of Wisconsin Press, 1985, pp. 227 e ss, Justice as Translation. An Essay in Cultural and Legal
Criticism, Chicago / London, The University of Chicago Press, 1990, pp. 264-267 «The central image is
that of autopoiesis, the organism making itself in interaction with its environment. In the process both
organism and environment change. There is no one way the universe is constituted, no ultimate ontology
upon which everything can be grounded. All species, all individuals, all languages and cultures and
communities, are engaged alike in a process of reciprocal change» (Ibidem, 266) . 94
«What kind of community shall it be? How will it work? In what language shall it be formed?
These are the great questions of rhetorical analysis. It always has justice and ethics — and politics, in the
best sense of that term — as its ultimate subjects. (…) Like lawyers, literary readers are also members of
community defined by their shared interest in a set of texts, and whether they know it or not, both groups
are always asking and answering the central question: what kind of community shall we be? (…) Many-
voicedness; the integration of thought and feeling; the acknowledgment of the limits of one‘s own mind
and language (and an openness to change them); the insistence upon the reality of the experience of other
people, und upon the importance of their stories, told in their words — these values, implicit in this
kind of reading (…) are all in fact essential to our own best ideas of justice. They are political as well as
intellectual and aesthetic virtues. And they are political virtues not only in the reading and writing of law,
but in the reading and writing of anything …» (Heracles’Bow…, cit., pp. 39, 79, 132, itálicos nossos). 95
Heracles’Bow…, cit., p.172 «The law is a way of creating a rhetorical community over time
(…): it is a culture that makes us members of a common world. This culture is not reducible to rules, but
it is objective, in the sense that it can be found and mastered and in the sense as well that it cannot be
disregarded or unilateraly changed. Like the text produced by a single mind, the text produced by the
culture has a genuine force and reality notwithstanding its irreducibility to rules or to scientific
―knowledge‖…» (Ibidem, p. 98) . 96
Ibidem, p. 175.
33
Que contexto-limite? Aquele que corresponde à afirmação de uma pragmática
de tolerância? Antes aquele que justifica o cuidado-Sorge com o «diálogo intercultural»
como uma (como a) concepção da justiça hoje possível. E que assim se confunde (e se
quer confundir) com a opção ética do tradutor (justice as translation)97
.
2.2.2. Saltemos depois para o terceiro painel do tríptico [(β)’’’], privilegiando
também uma sequência de vozes… e estas ainda (et pour cause!) como especificações
assumidas umas das outras… num traçado paralelo que, como o anterior, nos vai
aproximando do mundo prático do direito (ainda que não nos aproxime certamente das
especificidades que o autonomizam ou dos problemas que o distinguem). É que se trata
de ouvir Levinas [2.2.2.1.] … antes de o ouvir também (concertado embora com outras
vozes fundadoras) através de Derrida [2.2.2.2.] … antes de redescobrir este último na
proposta correctiva de Balkin [2.2.2.3.]!
2.2.1.1. Com um primeiro patamar a ensinar-nos que a experiência do mundo
prático se abre e se consuma numa interrupção fundadora. Uma «interrupção» que só
se pode oferecer e legitimar como «exposição»-tempo (condição de toda a comunicação
possível) se e na medida em que nos restituir à gratuitidade (à generosidade)
extravagante de um encontro assimétrico com o Outro ao dizer sem dito que o cumpre98
97
Os ensaios decisivos são agora os dois últimos capítulos de Justice as Translation: pp. 229 e
ss. («Translation, Interpretation, and Law»), 257 e ss. («Justice as Translation»). Para uma compreensão
da tradução por um lado como núcleo (metódico) de um interdisciplinary work possível, por outro como
especificidade do humanistic work, ver também From Expectations to Experience. Essays on Law and
Laegal Education, Michigan, The University of Michigan Press, 1999, pp. 69-71 (V), 97-102 (II). «For
whatever the merits of the social sciences as methods for making and informing social policy, they cannot
be applied to what is more distinctive about what lawyers and judges actually do, which is to discover,
determine, interpret and compose legal texts (…). [Scientific] ―methods‖ cannot simply be applied to the
law, any more than its ―findings‖ can. There must be a process of translation (…) [which] is at heart
compositional and literary, in fact a form of writing (…). Humanistic work can thus be seen as a species
of ―translation‖.…» (Ibidem, pp. 70, 102). 98
Trata-se evidentemente de convocar o contraponto Dit/Dire desenvolvido por Levinas em
Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, La Haye, 1978, Paris, edição de bolso Kluwer Academic,
2004, pp. 16-20 («Le Dire et le Dit»), 55 e ss. («Temps et discours»), 78 e ss. («Le Dire et la
subjectivité»), 162 e ss. («La récurrence»), 179 e ss. («La substitution»), 188 ess. («La communication»),
206 segs. («Subjectivité et infini»). Com um dizer que corresponde à sucessão temporal do jogo das
significações — enquanto exposição ao Outro e condição de toda a comunicação (Dire, c’est approcher
le prochain (…) en tant qu’exposition, (…)[une] exposition qui a un sens radicalement différent de la
thématisation) [Ibidem, pp. 81-83]. Com um dito (mas também escrito) que submete aquele dizer a uma
representação temporalmente reversível, justificada pela simultaneidade de uma ―identificação‖ —
entenda-se, de um processo de determinação que possa emprestar aos entes-étants uma «identidade de
sentido» (l’identique n’a de sens que par le kerygme du Dit) [Ibidem, p. 66; cfr. ainda a síntese exemplar
de ―Diachronie et représentation‖ (1985), Entre nous, cit., pp. 165 e ss.]. De tal modo que possamos
reconhecer naquele o tempo da ética da alteridade e neste o da ontologia — mas também, o da prescrição
auto-subsistente e o da tematização-comparação (introduzida pela tertialité do jurídico). Para um
34
(le Dire (…) qui n’est pas compris comme dialogue mais comme témoignage de l’infini
à celui à qui infiniment je m’ouvre99
).
O que é decerto mais do que procurar o humano — as dimensões
(«probabilidades») humanas do eu — na «realidade excessiva» (tão estranha quanto
vulnerável) do Rosto do Outro-Autrui e da expiação pelo Outro (l’absolument Autre,
l'Etranger qui trouble le chez soi)100
. Porque é já encontrar tais «probabilidades» (dever
encontrá-las) no movimento-continuum de uma resposta ou de um ciclo de respostas
(heteronomamente solicitadas): no des-interesse fundador (sem expectativa e sem
reciprocidade) de um «Eis-me aqui»101
, que se quer «um-para-o-outro» (le mot Je signifie
me voici, répondant de tout et de tous102
)… mas então também (e muito
significativamente) na irredutibilidade constitutiva de uma «relação ética» pura (rapport
non-violent à l’infini comme infiniment-autre, [rapport] à autrui, passage et sortie vers
l’autre103
).
2.2.2.2. Com um segundo patamar a exigir por sua vez que este mundo prático
nos fira na (e através da) convocação (reflexiva) de uma escrita primordial (archi-
écriture ou écriture première)104
e da violência assimétrica (irredutível) que esta gera
(urgence précipitative, violence irruptive, précipitation essentielle105
). Uma violência
desenvolvimento (e outras indicações bibliográficas), ver o nosso «O dito do direito e o dizer da justiça.
Diálogos com Levinas e Derrida», cit., passim. 99
Levinas, «L‘extra-ordinaire de la responsabilité» (1976), Dieu, la mort et le temps, Paris,
edição de bolso Grasset & Pasquelle, 1993, p. 221. «Au Dire sans Dit, il faut une ouverture qui ne cesse
de s‘ouvrir et qui se déclare comme telle. Le Dire est cette déclaration…» [«La sincérité du Dire» (1976),
ibidem, p. 223]. Esclarecimento este que se nos impõe para afastar o misunderstanding de descobrir na
ética de Levinas (ou na tematização que esta admite) uma possível (ainda que especialíssima) filosofia do
diálogo [«Rien ne serait pire que d‘interpréter la pensée de Levinas comme une philosophie du
dialogue…» (Ibidem, p. 221, nota de Jacques Roland)]. 100
―O absolutamente Outro é Outrem-Autrui (…), o Estrangeiro. (…) Não faz número comigo.
(…) Eu (…) sou, tal como ele, sem género. Somos o Mesmo e o Outro…‖ (Totalité et Infini, La Haye
1961, cit. na tradução portuguesa Totalidade e infinito, Lisboa, edições 70, 1988, pp. 26-27) 101
Autrement qu’être, cit., pp. 156 segs. (todo o capítulo IV, intitulado precisamente «La
substitution»). 102
Ibidem, p. 180-181. 103
A fórmula é já de Derrida, no primeiro grande estudo que consagra a Levinas (a partir do qual
passa também ele próprio a assimilar o contraponto Dit / Dire): Derrida ―Violence et métaphysique‖,
L’écriture et la différence, Paris, Éditions du Seuil, 1967, p. 123. 104
Archi-écriture (ou écriture première) que, como se sabe, pretende iluminar as pressuposições
(de repetibilidade-espaçamento e de temporalização-substituição-transferência) que são comuns à palavra
escrita (concept vulgaire d’écriture) e à palavra falada — na mesma medida em que nos ensina a escapar
à hipertrofia da substância fónica e do système du ―s’entendre parler‖ (e a denunciar a máscara-disfarce
imposta pela ―concepção ocidental da linguagem): De la grammatologie, Paris, Minuit, 1967, pp. 15-21,
82 segs. 105
Force de loi. Le ―fondement mystique de l´autorité‖, Paris, Galilée, 1994, pp. 59, 60.
Recordemos que esta é a terceira e a mais completa das versões que Derrida propôs para este ensaio. As
duas anteriores versões (publicadas respectivamente em inglês e alemão) são Force of Law: The
35
que se impõe a todos os discursos... agora enquanto submete o sujeito descentrado
(humilhado) pela linguagem à condição estruturante de uma cadeia de «citações»
(substituições) — e com esta à prioridade de um jogo de reenvios entre significantes (ao
qual nenhum significado escapa).
À inevitabilidade do contexto ou das práticas de contextualização (there is
nothing outside context 106
) ? Antes à inevitabilidade da «abertura indefinida de todos os
contextos» (the finiteness of a context is never secured or simple, there is an indefinite
opening of every context, an essential nontotalization 107
). Uma abertura que nos entrega
a uma específica ―interpretação da interpretação‖ e à aventura-acontecer a que os seus
exercícios singulares nos submetem: àquela ―interpretação da interpretação‖ que
(enquanto deconstructive (…) pragrammatological (…) way of reading) se mostre capaz
de assumir cada um dos contextos de significação e de realização possíveis, reconhecendo
simultaneamente o pagus de estabilidade-instabilidade que estes especificam — na
mesma medida em que se dá conta do movimento-trama (espacial e temporalmente
indefinido) em que tal contextualização se integra e dos limites (de estabilização e
superação) que a condicionam (deconstruction (…) [as] the effort to take the limitless
context in account, to pay the sharpest and broadest attention possible to context and
thus to an incessant movement of recontextualization 108
).
Numa experiência da pluralidade que se objectiva num espectro de
significações pragmáticas singulares — espacial e temporalmente (mas também
agonisticamente) determinadas — e que assim mesmo, na sua «radicalidade elementar»
(als grundsätzliche Pluralität)109
, nos atinge e nos fere implacavelmente como
diferença: uma diferença que sendo «espaçamento»-espacement constitutivo da
―Mystical Foundations of Authority‖ (1989) e Gesetzeskraft. Der ―mystische Grund der Autorität‖,
(1991). Para uma consideração das especificidades que distinguem estas três versões (e um comentário
desenvolvido à proposta que lhes corresponde»), veja-se o nosso ―Autotranscendentalidade,
desconstrução e responsabilidade infinita‖, cit. 106
Derrida, «Afterword: Toward an Ethic of Discussion», Limited Inc, Northwestern University
Press, 1988, p. 136. 107
Ibidem, p. 137 108
Ibidem, p. 136. ―The ties between words, concepts and things, truth and reference, are not
absolutely and purely guaranteed by some metacontextuality or metadiscursivity. However stabilized,
complex, and overdetermined it may be, there is a context and one that is only relatively firm, neither
absolutely solid (fermeté) nor entirely closed (fermeture), without being purely and simply identical to
itself. In it there is a margin of play, of différence, an opening; in it there is what I have elsewhere called
―supplementarity‖ (…) or ―parergonality‖(…). These concepts come close to blurring or dangerously
complicating the limits between inside and outside, in a word, the framing of a context…‖ (Ibidem, p.
151) 109
Com o alcance que a reconstituição de Welsch nos autoriza a reconhecer: cfr. Unsere
postmoderne Moderne, cit., pp 143 ss. (―Jacques Derrida oder Differenz und Verstreuung‖).
36
«exterioridade»-dehors (mas também distância e incomensurabiulidade) não deixe
nunca de se nos impor como temporalização e circulação-devir: como aquela différence
que é infinitamente produzida pelo movimento da différance110.
2.2.2.3. Impondo-se-nos por fim uma brevíssima alusão a Balkin111
. A uma
proposta que, sendo responsável por uma das mais sugestivas interpretações do
processo de pensar em círculo (reflectida na categoria de inteligibilidade nested
opposition112
), parte explicitamente de uma interpelação da validade comunitária e da
autotranscendentalidade que a distingue… — se não mesmo de uma representação
(retoricamente desconstrutiva) do «fosso» ou da solução de continuidade
«normativamente» relevante (as a normative chasm or gap) que separa (que distingue)
110
Contraponto différence / différance que nos remete para a lição capital de «La ―différance‖»
(1968), cit. na tradução alemã ―Die différance‖, in Peter Engelmann (Hrgb.), Postmoderne und
Dekonstruktion, Stuttgart, Reclam, 1990, pp. 76 e ss. «L‘archi-écriture (…) qui est origine de l‘expérience
de l‘espace et du temps (…), première possibilité de la parole, puis de la ―graphie‖ au sens étroit (…),
cette trace est l‘ouverture de la première extériorité en général, l‘énigmatique rapport du vivant à son
autre et d‘un dedans à un dehors : l‘espacement. Le dehors, extériorité ―spatiale‖ et ―objective‖ dont nous
croyons savoir ce qu‘elle est comme la chose la plus familière du monde, comme la familiarité elle-
même, n‘apparaîtrait pas sans le gramme, sans la différance comme temporalisation, sans la non-présence
de l‘autre inscrite dans le sens du présent, sans le rapport à mort comme structure concrète du présent
vivant…» (De la grammatologie, cit., pp. 96, 103, itálicos nossos). 111
Para uma reconstrução menos esquemática do pensamento de Balkin (e outras referências
bibliográficas), vejam-se os nossos «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos...»,
cit., pp. 84-135, «Recht als dramatische und musikalische Aufführung: eine fruchtbare Analogie?», in
Schweighofer/ Liebwald / Drachsler, Geist (Hrsg.), E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht.
Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik, Tagungsband des 9. Internationalen Rechtsinformatik Symposions
Iris Wien 2006, Stuttgart/ München, Richard Boorberg Verlag, 2006, pp. 468-475
«Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita», cit., pp. 651-655, e ainda
«Imaginação literária e ―justiça poética‖», cit., passim. Ver ainda Ana Margarida Gaudêncio, Entre o
centro e a periferia, cit., passim [e a recensão de Cultural Software proposta no Boletim da Faculdade de
Direito LXXIX, Coimbra 2003, pp.847 e ss.]. Sem esquecer Breno Pena Mosso, A assimilação da
desconstrução por Jack Balkin, dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Filosóficas apresentada à
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, policopiado, Coimbra, 2009, passim. 112
«To deconstruct a conceptual opposition is to show that the conceptual opposition is a nested
opposition — in other words, that the two concepts bear relations of mutual dependence as well as mutual
differentiation. (…) [T]he concept of an indefinite, rather than an infinite, responsibility better
corresponds to the very important relationship of mutual differentiation and dependence that must always
exist between law and justice…» [«Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice», Jack Balkin
Home Page, http: /www.yale.edu/lawweb/jbalkin (extraído em 29-11-2000), cit., parte II, «A
Responsibility Without Limits», ps. web 14 e 15]. Para compreender o sentido das nested oppositions e
da teoria-grelha que as sustenta — e desta (teoria) como uma das peças decisivas do tratamento
(«instrumental») da desconstrução (as normative transcendental deconstruction) proposto por Balkin
(every conceptual opposition can be reinterpreted as some form of nested opposition / a nested opposition
is a conceptual opposition where the opposed terms «contain each other» / the deconstructive concepts of
différence and «trace» implicitly rely upon notions of nested opposition /to deconstruct a conceptual
opposition is to show that the conceptual opposition is a nested opposition) —, cfr. (para além do texto
decisivo que acabámos de citar) também «Nested Oppositions», Yale Law Journal, vol. 99, 1990, pp.
1669 e ss., 1683-1687 («Nested Oppositions in Legal Doctrine»), Cultural Software. A Theory of
Ideology, Yale 1998, pp. 221-222 («Mediation, Subcategorization and Nesting»), 226 e ss. («The
Economy of Oppositional Logic»), 230 e ss. («Nested Privileging»), 234–235 («Categories As Nested
Oppositions»), 235 e ss. («Suppression and Projecting»).
37
«valores humanos» (as transcendent values in an inchoate sense) e «convenções
culturais» (as immanent cultural articulations)113
…
Reconhecendo que o «argumento» que defende a «existência de valores
transcendentes» (e destes enquanto «exigências» ou «aspirações indeterminadas») se nos
impõe como uma «condição-pressuposto transcendental» (a necessary transcendental
precondition) da possibilidade (prática) da compreensão moral e política e da retórica
discursiva que a tematiza (ou que justifica o seu continuum) — mas então também da
análise ideológica em que esta tematização culmina (the analysis of ideology as a special
case of the dialogic encounter) 114
…
Na mesma medida, no entanto, em que defende uma concepção (ou pelo menos
um «tratamento») «instrumental» da desconstrução — por uma vez assumida como
«método»115
. Na mesma medida, sobretudo, em que — recusando o apelo de uma
responsabilidade infinita ou a possibilidade de o testemunhar (as an infinite duty toward
the Other)… e privilegiando o caminho e os recursos de uma political morality (se não
do continuum prático-comunitário que a traduz) — assume a pressuposição
113
É este problema que ilumina «Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice», cit. [ver
muito especialmente a Introdução e o ponto V («Deconstruction as a Normative Chasm»),
respectivamente parte I, ps. web 1-8 e parte III, ps. web 1-4], antes de justificar um dos capítulos centrais
de Cultural Software, cit., pp. 142 e ss. («Transcendence»). 114
«By a transcendental value, I mean (…) a value that is inchoate and indeterminate, which
human beings must articulate through culture but which is never fulfilled (…), a value whose existence is
presupposed by some essential human activity. Thus the argument for the existence of a transcendental
value is transcendental; the existence of the value must be presupposed given the nature of the activity.
Hence we can also speak of transcendent values as ―transcendental‖ values. (…) Transcendent ideals of
truth and justice are presupposed in our understanding of encounters between people as encounters
between subjects of justice — that is, as a sort of entities that can be treated justly or unjustly. (…) We
need them to understand the meaning of human action in encounters with others … (…) Our encounter
wiht the Other causes the transcendent norm magically to spring to life» (Cultural Software…, cit., 144,
146, 147, 150) 115
Um contributo que se nos impõe na série constituída por «Deconstructive Practice and Legal
Theory», Yale Law Journal, vol. 96, 1987, 743 e ss., «The Domestication of Law and Literature», Law
and Social Inquiry, 1989, vol. 14, 787 e ss., «Tradition, Betrayal and the Politics of Deconstruction»,
Cardozo Law Review, vol. 11, 1990, 1623 e ss., «Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice»,
cit., «Being Just With Deconstruction», Social and Legal Studies, vol. 3, 1994, 393 e ss.,
«Deconstruction», in D. Patterson (ed.), A Companion to the Philosophy of Law and Legal Theory,
London, 1996, «Deconstruction's Legal Career» (1998) [o primeiro e os cinco últimos disponíveis na
Jack Balkin Home Page, cit.]. «To be adapted to the needs and concerns of the legal academy, (…) as it
moved from philosophy to literature and then to law (…), deconstruction had to be translated and altered
in significant ways, making it more flexible, practical, and attentive to questions of justice and injustice.
(…) Its transformation eventually produced a deconstructive practice in law that emphasizes a sensitivity
to changes in interpretive context, a pragmatic attitude towards conceptual distinctions, and a careful
attention to the role of ideology and social construction in legal thought» [«Deconstruction's Legal
Career», Jack Balkin Home Page, cit. (extraído em 24-11-2000), parte I, p. web 1].
38
constitutivamente transcendental de uma exigência indeterminada de justiça (as an
indefinite, but not infinite, demand for justice116
)117
.
2.2.3. Concentremo-nos enfim (não menos rapidamente) no painel central. Já
não para surpreender uma sequência de degraus paralela às duas anteriores (e muitas
seriam possíveis!)... mas para privilegiar duas linhas de acentuação, ambas dirigidas à
tematização (mais ou menos explicitamente metadiscursiva) dos desafios da
circularidade: a primeira dominada pelo pólo da recontextualização hermenêutica
[2.2.3.1.], a segunda construída na perspectiva de uma problematização argumentativa
(e da dialéctica como tópica que a leva a sério) [2.2.3.2.].
2.2.3.1. Invocar a primeira é, com efeito, reconhecer (com Heidegger e com
Gadamer) uma recuperação ontologicamente positiva do círculo e do pensamento de
autotranscendência que este exige.
2.2.3.1.1. Uma tematização do círculo ou do mergulho no círculo que sabemos
inseparável da lição de Sein und Zeit… e da exigência de submeter a conexão-
Zusammenhang118
que vincula «resolução» e «antecipação» (Entschlossenheit e
Vorlaufen) a uma analítica auto-reflexiva lograda (dita methodische Besinnung119
).
Que analítica? Aquela que possa denunciar o desconhecimento-Verkennung a que
as diversas tentativas de «negar», «ocultar» ou «superar o círculo» nos condenam, na
mesma medida em que reconhece nestas tentativas outras tantas consagrações definitivas
desse «desconhecimento». Mas então também aquela que, ao libertar-se de (ao romper, ao
vencer) um tal desconhecimento, experimenta-ilumina a compreensão-Verstehen como
modo fundamental (Grundart) do Ser do estar-aí (Dasein), ao mesmo tempo que (muito
116
«Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice», cit., II, A. («The Infinite and the
Indefinite»), cit., parte I, ps. web 12-14, Cultural Software, cit., toda a parte II, pp. 99 e ss. («Ideology»). 117
«The encounter between deconstruction and justice has changed both parties; yet, of the two,
deconstruction appears to be the more transformed. If deconstructive practice is to be of any use to the
question of justice, it must become a transcendental deconstruction. It must exchange the logic of the
infinite for that of the infinite. It must act in the service of human values that go beyond culture,
convention and law. It must recognize the chasm that differentiates human values from articulated
conceptions of it, and it must identify Deconstruction with that chasm…» («Transcendental
Deconstruction, Transcendent Justice», cit., parte III, p. web 5). 118
Martin Heidegger, Sein und Zeit, 18ª edição (reimpressão da 15ª), Max Niemeyer Verlag
Tübingen, 2001, p. 309 119
Ibidem, p. 310.
39
especialmente) confirma que este Ser se constitui (circularmente) como pré-ocupação ou
cuidado120
.
Mas então uma auto-reflexão que, enquanto analítica da resolução antecipante
(vorlaufende Entschlossenheit121
), nos proporciona um vollen Blick (als vollen Blick auf
das zirkelhafte Sein des Daseins122
) —, adquirindo assim o sentido de uma autêntica
interpretação existencial. A interpretação que poderá explicitar a temporalidade do estar-
aí e do seu poder-ser (no mundo) como totalidade (enquanto ser-todo originário do
Dasein)... na mesma medida em que constrói (em que abre) uma compreensão autêntica
do tempo ontológico (die Zeitlichkeit als der ontologische Sinn der Sorge123
).
Uma tematização então e assim não menos indissociável da lição de Vom Wesen
des Grundes… entenda-se, da exigência de uma reflexão sobre o fundamento que possa
ser procurada no plano da transcendência constitutiva do estar-aí (e neste sentido
também encontrada e determinada com a mediação constitutiva da existência).
Ao ponto de podermos concluir que o discurso a construir (e a renovar
permanentemente) se move iluminado por uma exigência de verdade ontológica, ou mais
rigorosamente, pela consciência de que as verdades ôntica (ontische Wahrheit) e
ontológica (ontologische Wahrheit), ao referirem-se «de modo diverso respectivamente,
ao ente (das Seiende) no seu Ser e ao Ser (das Sein) do ente», devem impor-se-nos como
intenções-exigências nuclearmente «solidárias» (Sie gehören wesenhaft zusammen auf
grund ihres Bezugs zum Unterschied von Sein und Seiendem)124
.
Sem esquecer que se trata assim também de exigir que a transcendência —
enfim livre do esquema de determinação sujeito-objecto125
— se nos imponha ela
própria como liberdade para o fundamento (im Sinne der Freiheit zum Grunde)126
.
2.2.3.1.2. Uma tematização do círculo que nos atinge no entanto sobretudo
através da resposta de Gadamer. Uma resposta que faz corresponder o «esforço» de
«saltar» para o «interior do círculo» (e a interpretação do carácter «originário» e
120
Ibidem, pp. 315-316. 121
Ibidem, p. 310 122
Ibidem, p. 315 123
É a epígrafe do famoso famoso § 65 (pp. 323-331). 124
Vom Wesen des Grundes, 3ª ed., 1949, cit. na versão bilinge A essência do fundamento,
Lisboa, edições 70, 1988, pp.26-27. 125
Ibidem, pp.34-35. 126
Ibidem, pp. 106-107.
40
«pleno» deste «salto»127
) a uma exigência de tematizar a universalidade do
compreender-Verstehen enquanto forma imediata e principal (originária-ursprünglich)
de realização-consumação (Vollzugsform) do mundo prático-humano e da vida social
que lhe corresponde… vida social por sua vez que não só habita uma comunidade de
linguagem (e de linguagem comum) como em última instância (als letzte
Formalisierung) se constitui enquanto tal — impedindo que qualquer «experiência do
mundo» dela se exclua ou deva excluir-se (Von dieser Gesprächsgemeinschaft ist nichts
ausgenommen) 128
.
O que, como sabemos, significa restituir a compreensão ao modelo privilegiado
da phronesis (aristotélica) e exigir que o processo auto-reflexivo que a assume (enquanto
prima filosofia, capaz de reconstituir as condições transcendentais do compreender) se
nos exponha, sem hesitações, a constituir o território luminoso da filosofia prática e este
como um horizonte-compromisso (decisivo) de integração129
.
De tal modo que o sentido ontológico positivo do círculo se nos exponha já numa
unidade intencional de determinantes e determinados e na textura de relações recíprocas
que o torna possível: aquela que envolve (inextricavelmente!) finitude e transfinitude,
auctoritas e razão, tradição e discurso prático-racional, texto e presente, racionalidade
prático-prudencial e existir situado, logos e ethos, objecto e conteúdo interpretados…
antes de se nos expor com toda a transparência na applicatio e na conversação
responsável com o texto que esta constrói. Uma conversação aberta que, sendo critério
de si própria (garantindo ela própria, na imanência do seu percurso, uma selecção dos
pré-juízos a reter ou a superar), está no entanto longe de se desenvolver para garantir uma
confirmação «selectivamente anestesiante» à pré-compreensão do intérprete — porque
antes, e em contrapartida, submete os seus pré-juízos a riscos permanentes! —, mas
127
Ainda Heidegger, Sein und Zeit, cit., p. 315. 128
Gadamer, «Replik», in Apel, Bormann, Bubner, Gadamer, Giegel, Habermas, Hermeneutik
und Ideologiekritik, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1971, p. 289. Para um desenvolvimento, ver Wahrheit
und Methode, cit., na trad. castelhana da 4º ed. (Tübingen, 1975), Verdad y metodo, Salamanca,
Ediciones Sigueme, 1977, pp. 326 e ss. (14. «El lenguaje como horizonte de una ontología
hermenéutica»). 129
«Am Ende ist die aristotelische Tugend der Vernünftigkeit, die Phronesis, die hermeneutische
Grundtugend selbst. Sie diente mir als Modell für meine eigene Gedankenbildung..So wurde in meinen
Augen die Hermeneutik, diese Theorie der Anwendung, das heisst des Zusammenbringens des
Allgemeinen und des Einzelnen, ein zentrale philosophische Aufgabe...» (Gadamer, «Probleme der
praktischen Vernunft», in Derbolva u. alli (Hrsg.), Sinn und Geschichtlichkeit — Werk und Wirkungen
Theodor Litts, Stuttgart 1980, p. 155). Para além do desenvolvimento indispensável de Wahrheit und
Methode [Verdad y Metodo, cit., pp. 331-458 (nºs 9, 10 e 11)], ver ainda «Die Begründung der
praktischen Philosophie», o posfácio à tradução (proposta por Gadamer em 1998) do Livro VI da Ética a
Nicómaco (Aristoteles, Nikomachische Ethik VI, hrsg. und übers. Von Hans-Georg Gadamer, Frankfurt
am Main, Klostermann, 1998, pp. 61-67).
41
então também uma conversação que, ao garantir a unidade de um movimento-kinésis
(capaz de absorver a dualidade dos horizontes do intérprete e do texto sem a
abolir), encontra na consciência do seu próprio inacabamento — e na experiência
do tempo, da tradição e da História (também enquanto Wirkunsgeschichte) que
esta traz consigo… — a sua decisiva condição de possibilidade130
2.2.3.2. Que dizer, também em duas palavras, da acentuação tópico-
argumentativa e do modo como esta experimenta e tematiza o percurso do círculo e o
sentido do mundo prático que este revela?
(a) Que se trata, como em nenhuma outra, de iluminar a experiência do novo…
iluminando simultaneamente uma exigência de tratamento-assimilação131
— uma
exigência capaz de converter (de autonomizar) este novo como problema-controvérsia e
de assim mesmo o inscrever num contexto de referência.
(b) Como se trata ainda de, também como em nenhuma outra — graças
sobretudo à conexão entre argumento inveniendi e solução —, preservar a perspectiva
do problema (impedindo que este se dissolva no iter reflexivo).
Especificações que nos beneficiam com uma representação particularmente
persuasiva do mundo prático e do movimento que o constrói — enquanto referência a
um commune que é sempre também procura desse commune…
Uma procura que só encontra a sua unidade na perspectiva do problema... no
momento culminante em que a trama dos argumentos construídos se articula
logradamente com a tese defendida ou em que, também em nome das exigências da
phronesis, se garante a superação da singularidade por uma certa participação no geral.
E no entanto também especificações que trazem consigo o perigo de perverter
uma tal representação… e de a perverter comprometendo-interrompendo precisamente a
exigência de circularidade: não decerto porque ponham em causa a racionalidade
130
Cfr. o referido nº 11 de Wahrheit und Methode [Verdad y Metodo, cit., pp. 415 e ss., 446 e
ss.(agora explicitamente a propósito do «carácter original da conversação»)]. A fórmula «selectivamente
anestesiante», devêmo-la com alcuna licenza a Dunne (selective sedation) e à sua análise exemplar do
wirkungsgechichtliches Bewußtsein: Joseph Dunne, Back To the Rough Ground. Practical Judgment and
the Lure of Technique, Notre Dame Indiana, University of Notre Dame Press, 1993, p. 117. 131
Ao contrário do que acontece decerto com a celebração da singularidade-irrepetibilidade
justificada pelas linhas desconstrutivistas… na qual a acentuação do novo não é acompanhada por esta
exigência de tratamento.
42
sujeito /sujeito (porque persistam em não abandonar o esquema cognitivo sujeito/
objecto132
) ou porque se mostrem relativamente insensíveis (quando não hostis) ao
topos pluralismo133
, antes (e pelo contrário!) porque hipertrofiam o momento da
realização. Uma hipertrofia que, no limite, poderá reconduzir a validade pressuposta a
uma mera contingência (objectivável num consenso a posteriori)... na mesma medida
em que, como já anunciámos, nos condena a superar uma racionalidade material… para
assumir uma racionalidade procedimental134
.
Um perigo enfim que só poderá ser reconhecido e atenuado se se levar a sério
aquela pressuposição-procura do commune... e de tal modo que o novo e o antigo se
fundam na perspectiva da participação (ou da comunidade de comunicação) que
internamente desenvolve uma tal procura (das Neue das Alte ist, aber auf eine Weise, die
nicht nur in der einseitigen Perspective eines dem Zweifel ausgesetzten und nach Verteidigung
suchenden Partners als Verbindung von These und Argument gilt, sondern in der Perspective
aller Teilnehmener diesen Vorzug aufweist135
). Se não para renunciar deliberadamente à
equivalência em abstracto dos topoi — e admitir uma compreensão mínima da
sistematicidade136
(das topische System stammt aus der Rhetorik, bleibt ihr strukturell
verbunden und beschränkt sich darauf ein Argumentationssystem zu sein137
) —, pelo
menos para exigir que, em nome da instituição fundante daquelas exigências de
participação, se recupere o vínculo originário (entretanto perdido) entre dialéctica e
controvérsia... e assim também entre dialéctica e prática quotidiana (Alltag), dialéctica e
disposições existenciais, dialéctica e mundo-da-vida (Lebenswelt). O que — para o
dizermos com Bubner — significa, numa palavra, libertar o discurso dialéctico da
colonização que lhe foi imposta pela episteme moderna (e do discurso do método ou das
132
Crítica decerto insustentável (perante uma perspectiva exemplarmente assumida como trama
de logoi)... e que no entanto vemos dirigida por Kaufmann (com alguma equivocidade embora... e sem
acertar no alvo pretendido!) a todas as chamadas teorias da argumentação jurídica... e depois
recorrentemente glosada por representantes incondicionais da vertente hermenêutica! Ver Kaufmann,
Rechtsphilosophie, München, 1997, cit. na trad. portuguesa Filosofia do direito, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004, pp.72-73. 133
Outra das críticas (manifestamente injustas ou pelo menos desadequadas, porque dirigidas
sem discriminação a um amplíssimo common ground) que vemos autonomizadas por Kaufmann: ibidem,
p.73. 134
Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, cit, pp.71-74. 135
Bubner, Dialektik als Topik, cit., p. 64. 136
Alimentada eventualmente (já na sua projecção no universo do direito) pelo horizonte de
inteligibilidade de uma Rhetorische Rechtstheorie, com o alcance que Viehweg nos ensina a reconhecer:
ver neste sentido Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie. Gesammelte kleine Schriften. Baden-
Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1995, pp. 191 e ss. (III. «Zur Rhetorische Rechtstheorie
insbesondere») 137
Ibidem, p. 106. Ver ainda Castanheira Neves, «A unidade do sistema jurídico…», cit., pp.114-
116.
43
pretensões de racionalidade aprioristicamente concebidas que o quiseram aprisionar)…
para assim mesmo (também regressando a Aristóteles) renovar (reinventar) o
compromisso com uma dialéctica enquanto tópica (Die Dialektik in ihrer topischen
Gestalt tut nichts anderes als die lebensweltlich begründete Rationalität auf den Begriff
zu bringen, ohne damit wissenschaftliche Verfassungsweisungen zu imitieren138
).
2.3. Se convoco todos estes «intérpretes» do mundo prático-comunitário e dos
compromissos que o constituem, acentuando a tensão circular entre pluralidade
discursiva e unidade intencional, radicalização hermética da diferença e renovação
dos compromissos de identidade (que o é sempre também implicitamente entre
pressuposição dogmática e reinvenção crítica, disponibilidade e indisponibilidade,
estabilidade e transformação139
)…
… e esta tensão ou a dinâmica que lhe corresponde enquanto nos ensinam a
rejeitar as soluções da pura necessidade ôntica e do puro arbítrio decisório (a primeira
decerto compossível com a comunitas pré-moderna, o segundo a expor-se-nos já como
um resultado-limite da institucionalização da societas140
)…
… não é no entanto decerto para explorar o contraponto que os seus percursos e
pretensões de equilíbrio determinam (ou para testemunhar o espectro de possibilidades
que estes oferecem)141
. É antes para reconhecer que a exigência de enfrentar hoje o
problema do direito e de o enfrentar interrogando a sua procura — discutindo a
plausibilidade-«pontualidade» (se não urgência) prático-culturais da demarcação
humano / inumano que a sua praxis (de acontecimentos-decisões-interpelações) está em
condições de autonomizar — não pode cumprir-se se nos contivermos neste patamar,
entenda-se, se cedermos à tentação (fácil!142
) de admitir que o testemunho da
juridicidade de que hoje precisamos…
138
Bubner, Dialektik als Topik, cit., p. 7. Para um desenvolvimento, ver pp. 79-87 («Dialektik
und Topik») 139
Tensões a que me refiro explicitamente em «Validade comunitária e contextos de realização.
Anotações em espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema», cit. 140
De uma societas no entanto que, na claridade matinal da sua concepção, encontrara o seu
impulso construtivo principal na pressuposição de uma outra necessidade (a da ratio, onto-
antropologicamente sustentada). 141
Se assim fosse, não poderíamos deixar de convocar outros interlocutores indispensáveis à
tematização do pensar em círculo, a começar por Ricoeur e Jauss! 142
Sempre fácil... embora nos exija quase sempre também um percurso reflexivo eriçado de
dificuldades!
44
…e de que hoje precisamos sempre que se trate de, resistindo ao domínio do eixo
episteme-technê/technê-episteme, querer reagir à colonização ameaçadora da
Zweckrationalität (e com esta a uma compreensão inteiramente determinada pelo
horizonte da societas143
)…
…possa (ou deva) construir-se na perspectiva destas representações da
comunitas (e da sua autotranscendentalidade) e como uma assimilação aproblemática
(mais ou menos lograda, mas sempre unilateralmente conduzida) dos pressupostos,
códigos e categorias que estas mobilizam (quando não directamente das situações
institucionais a que estas nos expõem).
Quer se trate de privilegiar (escolher) um destes caminhos (e neste um dos seus
interlocutores-guias!), quer se trate de partir das suas convergências (ou de algumas das
suas convergências mais significativas) para recriar um grande horizonte comum (ou um
grande contexto auto-reflexivo e o consenso que o ilumina).
Expor o testemunho da juridicidade de que hoje precisamos à inevitabilidade
desta assimilação — até ao ponto de confirmar que estamos condenados à mediação de
uma teoria do direito externa puramente assimiladora144
(ou de que precisamos de uma
«filosofia no direito» e não de uma «filosofia do direito»145
!) — significa com efeito
postular já (aproblematicamente) a diluição (irresistível) do jurídico num continuum
prático (se não já prático-poiético).
Como se se tratasse por um lado de reconhecer (mais ou menos explicitamente)
a consumação-cristalização (historicamente insuperável) dos sentidos ou dos contextos
143
Ou pelo menos alimentada pela convicção de que é possível ver na exclusividade deste
horizonte uma etapa evolutiva historicamente insuperável! 144
A expressão é de Castanheira Neves, tendo sido especialmente mobilizada na comunicação de
abertura de um Seminário de teoria de direito do Programa de Doutoramento e Mestrado em Direito da
Universidade Federal do Paraná (Curitiba, 26-29 Setembro de 2007), seminário no qual tive o gosto e a
honra de participar. A sistematização proposta distinguia de resto diversas teorias do direito externas
(assimiladoras, analíticas, redutoras, construtivistas), reservando-se a qualificação assimiladora para a
proposta exemplar da Nova Hermenêutica e para o seu «optimismo» [para uma alusão a esta última
atitude de resposta («a resposta está dada!»), ver «O problema da universalidade do direito ou o direito
hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., p.118]. 145
Uma exigência especialmente defendida pela proposta de Lénio Streck e que — com um
importante contributo do Autor («Interpretando a Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta») —
constitui o núcleo temático do quinto número da Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ),
Porto Alegre, 2007 (número este intitulado precisamente A filosofia no direito e a filosofia do direito).
45
de significação que a procura do homo humanus autonomizada (isolada) pelo direito
está em condições de garantir…
…e nalguns dos casos mesmo de pressupor, implícita ou explicitamente, que o
padrão de humanidade que a nossa circunstância exige deva ser procurado para além do
direito ou pelo menos renunciando à tértialité que o distingue ou à pretensão de
comparação correspondente (à dialéctica de autonomia e de responsabilidade comunitária
limitada que o constitui).
Como se se tratasse por outro lado de ceder à sedução das hetero-referências…
admitindo sem mais que a exigência de resistir à exclusividade do pragmatismo
empírico-explicativo — e à pretensão de interdisciplinaridade a que este expõe o
jurídico — nos entrega sem alternativas à prioridade condutora de uma outra pretensão
de interdisciplinaridade (iluminada pelas Humanidades)146
…
Agora com arenas propulsoras que vão (poderão ir) da análise linguística e da
crítica literária à história e à filosofia... mas também com experiências e recursos que, na
sua recriação do mundo prático — ou na sua interpretação do regresso da comunidade,
mas também no seu tratamento da pluralidade e da diferença — se submetem a um
espectro de eixos reflexivos alternativos (e aos modos de organização que estes impõem).
Espectro que, não certamente por acaso, se desenha assumindo os painéis atrás esboçados
[supra, 2.1. (β)‘-(β)‘‘-(β)‘‘‘]: contrapondo as possibilidades da filosofia narrativo-
sapiencial às da ética da alteridade... e invocando como eixo central aquelas que a
tematização ontológico-existencial permite.
Mas então, e numa palavra, como se uma reconsideração hoje possível do
problema do direito só conseguisse resistir à hipertrofia das instrumentally calculating
146
De tal modo que a perspectiva-alvo (a que se resiste) seja aquela que nos aparece a consagrar
o domínio informativo e metódico das ciências sociais empírico-explicativas — se não a confimar-
consumar uma das profecias de Holmes (the man of the future (…) for the rational study of law (…) is the
man of statistics and the master of economics); de tal modo ainda que o exercício de resistência se
cumpra à luz do apelo não menos persuasivo do juiz Learned Hand — exigindo que as práticas e
discursos do direito passem a integrar a «nobre república das Letras»… ou pelo menos reconhecendo que
estas práticas e os pensamentos que as pensam permanecem «inacabados» (feridos na sua integridade ou
entregues a arbítrios incontroláveis) se não forem «alimentados» pelas (ou se não encontrarem «apoio» e
«exemplo»-edification nas) «fontes de conhecimento externo» que «as humanidades» (incluindo a
filosofia e a crítica literária) lhes proporcionam. Para reconstituir este exemplar «tale of two speeches»,
elenquentemente narrado por Balkin e Levison, ver «Law and Humanities: An Uneasy Relationship»,
Yale Journal of Law & the Humanities, vol. 18, pp. 155-160 («Introduction: Is Law Part of the
Humanities? A Tale of Two Speeches»).
46
forms of reason — e impor-se a estas como uma alternativa lograda (ou como núcleo
polar de uma dialéctica) —… se (e na medida em que), invocando em bloco o projecto
de humanidade do mundo prático (e o continuum em que as suas experiências são
pensáveis), admitisse mais ou menos explicitamente renunciar à especificidade prático-
cultural da juridicidade… ou pelo menos à possibilidade de lhe fazer corresponder uma
pretensão de autonomia (capaz de a distinguir das outras dimensões desse mundo).
Conclusão paradoxal esta — plausível embora… porque alimentada, como ainda
veremos, por uma compreensão redutora daquela pretensão de autonomia! —... e que
para além do mais nos expõe a um desafio particularmente difícil: o de ter que optar por
uma das representações em causa ou por um dos seus veios principais (aqueles que o
nosso tríptico quis identificar) [supra, 2.1. (β)‘-(β)‘‘-(β)‘‘‘], evitando (impedindo) assim
que a antecipação dos problemas do direito ou que a atenção às suas condições
específicas (ou às suas categorias de inteligibilidade) — porventura porque estas se
tornaram irreconhecíveis na nossa circunstância! — intervenha de alguma forma nessa
escolha.
O que é que significa com efeito invocar o prius de uma compreensão global da
praxis ou do seu ethos — e exigir que esta sustente (unilateralmente) uma
recompreensão das práticas juridicamente relevantes — senão reconhecer que, na sua
relação com o mundo prático do direito, todas as interpretações desta compreensão
global (interpretações que entre elas concorrem) devem à partida ser tratadas como
equivalentes? Se assim for, no entanto... a opção passa a depender exclusivamente do
diagnóstico da nossa circunstância que cada uma dos percursos reflexivos assuma (dos
factores ou dimensões que positiva ou negativamente entenda dever sublinhar, em
detrimento de outros também possíveis)... e então e assim da maior ou menor
sensibilidade a exigências de estabilidade ou de abertura, de determinação dogmática ou
de problematização crítica que descritiva e prescritivamente manifeste (ou defenda)...
— sensibilidade que (reflectindo uma compreensão selectivamente construída do
projecto global da humanitas e a aposta correspondente) nos permita concluir que
precisamos hoje sobretudo da concepção do mundo e do homem que o projecto do
comunitarismo sapiencial nos oferece [2.1.(β)‘]... ou daquela que a hermenêutica como
filosofia está em condições de justificar [2.1.(β)‘‘]... ou ainda daquela que só a ética
desconstrutivista pode abrir [2.1.(β)‘‘‘]147
...
147
Podendo quando muito admitir-se que, num segundo plano (analítica e cronologicamente
separado), se procurem eventuais afinidades electivas que favoreçam a projecção no universo do direito
47
3. É precisamente a oportunidade de escapar a este plano de inteligibilidade
global ou à exclusividade dos seus problemas-perguntas — mas também (et pour
cause!) à equivalência das respostas que nele se multiplicam — que queremos acentuar
convocando o modelo de pensamento jurídico que Castanheira Neves designa por
jurisprudencialimo: ora este modelo enquanto nos expõe a uma assunção recuperadora
do mundo existencialmente humano do direito — se não explicitamente à procura de
um «direito crítico» na «ordem da intencionalidade»148
(entenda-se, à assunção de um
sentido materialmente vinculante, que é também e indissociavelmente um fundamento
axiologicamente crítico) —... mas também e muito especialmente (aqui e agora!)
enquanto enfrenta (faz seus) os desafios da autotranscendentalidade prático-cultural.
A oportunidade de encontrar respostas-soluções para estes desafios e para a
auto-reflexão que os expõe e intensifica? Antes uma oportunidade de procurar-ensaiar
uma resposta diferente, diferente de todas aquelas que as interpretações narrativas,
ontológico-existenciais ou éticas (se não ético-políticas) — e estas separadamente ou a
convergirem num horizonte comum, eventualmente a assegurarem um overlapping
consensus (resta saber qual!) — nos permitem reconhecer. A oportunidade-exigência de
interpelar o mundo prático-comunitário (e a tensão entre estabilização dogmática e
realização transformadora) na perspectiva do direito e dos compromissos que o
distinguem… que é também afinal a de nos pôr perante a possibilidade de uma
perspectiva interna.
Sendo certo que não se trata assim de esquecer as condições de representação-
determinação impostas pelo contexto global — e pela nova compreensão da praxis que
este constrói —, como não se trata de propor especificações que neutralizem aqueles
desafios (e a auto-reflexão que os ilumina) — especificações que em nome de uma
celebração (apologética) da autonomia-Isolierung do jurídico pudessem ocultar-superar
os problemas correspondentes. Porque se trata antes de convocar «o originarium
constitutivo do problema do direito»… para experimentar a continuidade (e se
quisermos, a plausibilidade contextual) da procura que lhe correponde.
Ora experimentar esta continuidade (e a identidade que esta preserva)
submetendo-a a uma provação reflexiva radical. Uma provação reflexiva que devendo
de algumas das interpretações do mundo prático, nomeadamente daquelas em que o eixo da phronesis
apareça mais claramente autonomizado... 148
Castanheira Neves, «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit.,
p. 57.
48
apostar na possibilidade-exigência de responsabilizar este direito — enquanto sentido e
enquanto prática-pensamento, enquanto experiência diferenciadora e enquanto ordem
material — como um eixo-interlocutor indispensável da nossa circunstância presente (e
da Erschütterung com que esta nos fere), não deixe no entanto de assumir sem
equívocos a fragilidade prático-cultural do processo de comparação-tematização que o
distingue e das aquisições que este assume (alimentadas pela identidade do problema-
controvérsia e pelo tertium comparationis de uma dialéctica suum/ commune) — na
mesma medida de resto em que reconhece as alternativas que desafiam tais
aquisições149
.
Uma provação iluminada pelo problema da autonomia (ou pela
indissociabilidade constitutiva dos problemas do sentido e da autonomia150
)? Importa
acentuá-lo. E acentuá-lo insistindo em que se trata assim de assumir uma certa
compreensão da autonomia. Não decerto como uma experiência historicamente
circunscrita, que um acultural way of understanding — invocando uma sequência
implacável de futuros presentes — pudesse tratar como um output necessário e
absolutizar como etapa-limite (reivindicada por todo e qualquer processo evolutivo)151
.
Nem como uma concepção (entre outras concepções possíveis), que importasse de
149
Que outro problema senão o que Castanheira Neves nos ensina a descobrir quando reconstitui
as condições de emergência da juridicidade e nos confronta com as «alternativas ao direito» que resultam
da abstracção da chamada condição ética? Trata-se, com efeito, de contrapor a ordem de validade do
direito à ordem de necessidade do poder e à ordem de possibilidade da ciência (tecno-ciência) mas
também à ordem de finalidade da política… reconhecendo nestas outras tantas respostas (culturalmente)
possíveis. Para além dos importantes desenvolvimentos propostos nas lições nºs 7 («O por-quê do
direito») e 8 («As alternativas ao direito») de O problema actual do direito, cit., primeira versão, e muito
especialmente em «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as
condições da emergência do direito como direito», cit., passim [este último conjugado com as últimas
páginas de A crise actual da filosofia do direito, cit., pp.140-147 (V)], cfr. ainda «O princípio da
legalidade criminal», Digesta, cit., vol 1º, pp. 413-419, «O direito como alternativa humana. Notas de
reflexão sobre o problema actual do direito», ibidem, pp. 287-310, Metodologia Jurídica. Problemas
fundamentais, cit., pp. 231-234, «Pessoa, direito e responsabilidade», Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, nº 6, 1996, pp. 38-40 e O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do
direito, cit., pp. 53 e ss (IV) [ambos também nos Digesta, cit., vol.3º, respectivamente nas pp. 154-155 e
62 e ss.]. Sem esquecer as sínteses mais recentes propostas em ««Uma reflexão filosófica sobre o direito
— ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da filosofia do direito?», cit., pp.94-96, «O problema da
universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas»,
cit., pp.118-121, «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp.59-63,
«Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp.11-15. 150
Ver especialmente «O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade‖,
in J. A. Pinto Ribeiro (coord.), O homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira, Porto,
1999, pp. 87-114. 151
Trata-se de mobilizar a caracterização da «acultural» way of understanding the rise of moder-
nity ─ em contraponto com a «cultural» way ─ que Charles Taylor propõe em «Two Theories of
Modernity» (1993), The International Scope Review, volume 3, nº 5, 2001, disponível em
http://www.social-capitalfoundation.org/journal/volume%202001/issue&205/taylor_presentation.htm
(extraído em Outubro de 2006).
49
alguma forma tecer à custa daquelas (de todas aquelas) que se lhe opõem. Antes como
uma preocupação condutora, na qual a autonomia a ter em conta, interpelando-nos
como prática-procura cultural e civilizacionalmente comprometida — pré-ocupada com
um certo exercício de demarcação humano /inumano (e então também, hoje muito
especialmente, com a exigência de denunciar-desmascarar os intérpretes-defensores do
inumano que o desafiam!) —, não nos interpele menos como sentido-exigência
inconfundível e como experiência continuada de realização (mas também e ainda como
discurso culturalmente específico)152
.
Uma preocupação condutora que emerge de um processo historicamente situado
de autonomia-Isolierung… e que encontra neste (e na comunidade-civitas que o
assume) a sua «claridade matinal» (Steiner153
)154
… cujos sinais-rastos —
152
Sem esquecer que as emergências destas três autonomias («filosófica», prático-
-jurisprudencial e cultural) correspondem a três momentos inconfundíveis da aventura civilizacional da
resposta direito (de um direito que se descobre sucessivamente como sentido e como especulação
filosófica, como prática jurisprudencial e como domínio cultural universitariamente reconstituído e
comunicado) — numa conjugação-construção que o discurso medieval (ao assegurar a terceira das
autonomias e ao assimilar-reinventar as outras duas) pôde traduzir na relação sapientia / scientia / pru-
dentia. Cfr. neste sentido o Sumário desenvolvido proposto por Castanheira Neves na primeira sessão do
II Programa de Doutoramento (Faculdade de Direito de Coimbra, ano lectivo de 2001/2002), O actual
problema da autonomia do direito, I) Introdução, 1.a), b) e c) [«Se para os gregos o direito era um
problema filosófico — intencionalidade que se mantém na dimensão teológico-filosófica — e para os
romanos era uma prática, uma experiência socialmente prudencial, volve-se agora numa dogmática
(numa dogmática hermenêutica). Pelo que a autonomia do direito passa a ser uma autonomia cultural: o
direito não se especula apenas, nem se pratica só prudencialmente, estuda-se e reconstitui-se dialéctico-
-culturalmente — o logos jurídico torna-se hermenêutico-dialéctico. O que se manifesta secularmente no
ius commune…» (Ibidem, 4)] — sistematização que vemos retomada e desenvolvida em «O problema da
universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas»,
cit., pp. 111-116 (III). 153
A formulação é de Georges Steiner (sendo certo que o autor de The Idea of Europe não se
refere aqui à invenção romana do direito… mas ao «pensamento grego» e à «moral judaica»): The Idea of
Europe, cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa, Lisboa, Gradiva, 32006, p. 53.
154 Que outra «claridade matinal» senão aquela que inventa o «nome» humanitas (unter ihrem
Namen wird die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt) [Heidegger, Über den Humanismus,
Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1947, p.19]… e que o inventa como contexto e correlato de uma praxis
de responsa? Enquanto experimenta uma especificação inconfundível da virtude intelectual da phronêsis
— uma especificação que a «secularização» grega da praxis (ao assumir o problema da resolução de
controvérsias relativas a acontecimentos passados em continuum com as projecções éticas, político-
arquitectónicas, político-deliberativas e até económicas dessa virtude) não fora capaz de libertar [Bastará
invocar a lição do Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 8 (VI, 8 / 1141b23-1142a11)!] … —, mas sobretudo
enquanto garante que a procura correspondente e que o sentido da humanitas (e do homo humanus) que
esta persegue — alimentados embora pelo «fogo de Prometeu» da cultura grega (e pela sua filosofia da
«justiça») — se cumpram como um processo (permanente) de correcção-especificação da ordem material
pressuposta e da intenção à validade que se lhe dirige (capaz de a reconhecer e de a assumir como ius)…
e então e assim também indissociados (constitutivamente indissociados, prático-culturalmente
indissociáveis) de uma experiência de realização. Daquela experiência que só o juízo-julgamento,
enquanto tratamento prudencial das controvérsias-casos (sustentado num cálculo de tipos e numa
hipostasiação institucional radicalmente nova, mas também num exercício determinante de relativização-
comparação de sujeitos iguais e responsáveis) está (estará) em condições de garantir [Invoque-se sempre
a lição imprescindível do primeiro capítulo de Lombardi, Saggio sul diritto giurisprudenziale, Milano,
Giuffré, 1967, passim]
50
permanentemente sulcados e convertidos (mas nem por isso menos indeléveis) — nos
expõem assim (ainda hoje) a uma experiência privilegiada de continuidade. Uma
experiência de continuidade que, partindo daquele initium luminoso, nos remete para o
fogo criador da respublica christiana (e para a conversão axiológico-existencional que
este determina), como nos remete para a reinvenção moderno-iluminista — e para as
aquisições-desafios que a libertação da subjectividade intencional e a institucionalização
da relação direito / poder (iluminadas pela emancipação dos direitos do homem) nos
proporcionam —… remetendo-nos ainda (e indissociavelmente) para os processos de
superação ou de reescrita a que uma tal reinvenção e a sua raison raisonnante
(enfrentando uma celebração assumida da singularidade e da diferença) hoje
exemplarmente se submetem. Mas então uma experiência que, graças ao espectro de
intenções assim convocado e às etapas que o estabilizam e distribuem — como outros
tantos ciclos de procura do homem-pessoa e da luta pelo reconhecimento que lhe
corresponde (os que nos integram no intellegere de um contexto ôntico
comunitariamente indisponível e o(s) que nos compromete(m) com a criação ex nihilo
da societas, mas também o(s) que nos responsabiliza(m) pela inventio de uma intenção
à validade e pela autodisponibilidade que a radicaliza) —, nos aparece vinculada a
uma cera «ideia da Europa» e ao «sentido civilizacionalmente cultural» que nos permite
dizê-la (e continuar a dizê-la) «civilização de direito»155
… — o sentido que quis (e que
quer continuar a ver) no direito uma solução específica para o «problema do histórico-
social encontro, se não desencontro, humano no nosso espaço de coexistência e
convivência156
».
Reconhecida a especificidade-responsabilidade deste compromisso, urge mostrar
em que termos é que a aposta jurisprudencialista, ao reconstituir crítico-reflexivamente
o mundo humano do direito — ao exigir uma reconstituição crítica deste mundo
humano que seja «axiológico-normativa nos fundamentos, prático-normativa na
155
Se não dominada pelos dominada pelos pólos irredutíveis de Atenas e de Jerusalém — e pelos
deveres de fidelidade (aos filósofos e aos profetas) com que estes (e as suas heranças) oneram uma certa
«ideia da Europa». Sem esquecer que é esta mesma polaridade constitutiva (ferida no seu equilíbrio,
porventura já submetida a uma hipertrofia mais ou menos clara do segundo pólo) que nos condena a uma
interrogação radical (ao dever de perguntar se a nossa circunstância presente exige afinal um reencontro
com a humanitas distinto daquele que a resposta direito determina). Uma interrogação radical em que, no
limite, é a própria «ideia da Europa» — para além porventura da possibilidade de continuar a distingui-
la como «civilização de direito» (ou de continuar a ver neste um dos seus «pormenores» decisivos) —,
que claramente se discute (de cuja identidade se duvida). 156
«O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro
humano-dialogante das culturas», cit., p. 105.
51
intencionalidade e judicativa no modus metodológico»157
—, enfrenta (faz seus) os
desafios do círculo (e do pensar em círculo)… e muito especialmente aqueles que o
binómio unidade /pluralidade especifica158
. Tratando-se de resto de reconhecer (de
acentuar) outras tantas respostas específicas, que só esse mundo prático (condicionado
embora pelas exigências e interpelações de outros mundos práticos) está por assim dizer
em condições de assumir. Respostas com uma identidade mas também com uma
produtividade indissociáveis desse mundo e da sua dimensão normativa… aptas, neste
sentido, a solucionar problemas — ou pelo menos a institucionalizar (a garantir
institucionalmente) a procura de soluções para problemas — que o referido horizonte
global se limita a considerar ou a manifestar-exprimir aporeticamente (a começar
certamente por aquele que confronta pressuposição dogmática e reflexão crítica ou que
nos desafia a procurar-reconhecer os limites de cada um destes pólos159
).
Respostas que não iremos evidentemente desenvolver. Que nos limitaremos a
acentuar (quase sempre a traço grosso), distribuindo-as analiticamente por três eixos
possíveis.
3.1. O primeiro eixo de respostas a ter em conta concentra-nos no processo de
institucionalização internamente assumido pelo mundo prático do direito — ou mais
rigorosamente na inter-relação constitutiva que vincula as oportunidades de
construção-reconstrução dos sentidos comunitários (e da validade fundantemente crítica
que os contextualiza) à exigência de projectar estas numa determinação normativa
plausível (que possa dar conteúdo à validade intencionada).
3.1.1. A primeira das respostas (e primeira também no seu sentido gerador)
temo-la de resto na exigência de tratar os pólos da validade trans-subjectiva e da
controvérsia concreta (do compromisso axiológico assumido pela primeira e da
novidade irredutível introduzida pela segunda) como dimensões da racionalidade
157
Assim expressamente no ponto IV (Finale) da conferência de abertura deste nosso encontro
de Ouro Preto: supra, «O ―jurisprudencialismo‖ — proposta de uma reconstituição crítica do sentido do
direito». 158
A exploração directa de outros binómios levar-nos-ia a privilegiar (ou pelo menos a acentuar)
outras respostas, no mesmo quadro de possibilidades oferecvido pelo pensamento jurisprudencialista:
neste sentido, ver o nosso «Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em espelho sobre a
concepção jurisprudencialista do sistema», cit. 159
Problema que vemos exemplarmente acentuado por Joseph W. Singer em «Critical
Normativity», Law and Critique, volume 20 nº 1, 2009, pp. 27 e ss.
52
jurídica (da racionalidade que a realização judicativa do direito postula)160
. Mais do que
reconhecer estas duas dimensões (por assim dizer axiológica e problemática), trata-se
com efeito já de lhes associar outras duas: a que estabiliza a primeira numa mediação
dogmática e a que responde à segunda com uma mediação judicativa ou
judicativamente praxística (iluminada por uma dialéctica prudencial)161
. A
possibilidade de compreendermos o discurso problemático construído pelo direito (e o
mundo de interrelação que culturalmente este reproduz) à luz destas quatro dimensões
— e de tal modo que as duas últimas (ditas dogmática e judicativa) possam expor-se-
nos como condições de institucionalização das primeiras ou da identidade prático-
comunicativa que as constitui (se não da dinâmica de objectivação-realização que
situacionalmente as integra) — confere à experiência do círculo e aos sulcos-rastos que
a asseguram uma inteligibilidade inconfundível, que é também a de uma resposta
possível (simultaneamente conclusa e aberta): precisamente aquela que se cumpre na
dialéctica sistema / problema (e no pensamento-prática integralmente problemático que
esta persegue)162
.
3.1.2. Partamos desta resposta, enquanto compreendemos que esta nos incita a
desvelar uma convergência (e no limite também uma sobreposição lograda) de outras
procuras produtivamente circulares, se não já de outras dialécticas (e a
institucionalização de outras tantas possibilidades constitutivas).
3.1.2.1. A começar decerto pela experiência estratificado do sistema aberto, ela
própria também como prática-procura de um compromisso de unidade: um
compromisso que se postula como intenção e que permanentemente se renova e
reconstitui como tarefa, um compromisso que só a determinação auto-reflexiva
(aposterioristicamente compreendida... e assim também sempre permanentemente
recomeçada) de uma totalização ordenadora há-de estar enfim em condições de
160
Ver principalmente: «A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo
com Kelsen)», Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e
outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 2º, pp. 134-155 (2. «Os pressupostos»), «O actual
problema metodológico da realização do direito», ibidem, pp.251-256 (I, 2. e 3.), 272-281 (III 3.),
Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp.78-79, «O direito
interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 59 e ss., 66-67 (b). 161
Assim em «Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp.19-20 (IV.1.). 162
As leituras indispensáveis (entre muitas outras possíveis) são agora as de «A unidade do
sistema jurídico…», cit., pp. 165-174.
53
reconhecer e de experimentar163
. Acentuação tanto mais significativa quanto é certo que
um dos estratos deste sistema se autonomiza reconhecendo (como uma das suas
dimensões nucleares) a realidade dos problemas–acontecimentos juridicamente
assimilados164
.
3.1.2.2. Sem esquecer que a intenção desta procura encontra a sua condição de
possibilidade (e simultaneamente a sua experiência fundadora) num outro círculo e na
dialéctica que o assume: refiro-me evidentemente àquele ou àqueles que relacionam
valores e princípios (compromissos prático-comunitários e princípios normativos-
fundamentos), inscrevendo esta inter-relação na experiência de especificação-realização
dos primeiros e dos projectos de ser (e de plenitude de ser) que lhes correspondem… e
então e assim também reconhecendo que a emergência dos segundos nos remete para
um insuperável território de fronteira: que não será apenas aquele que nos expõe a uma
conexão-tensão entre experiências de comunidade distintas (e outros tantos contextos,
ditos geral e especificamente jurídico) — se quisermos a uma conexão entre dois
diferentes modos de reivindicar-construir um sentido comunitário165
—, porque é
também e muito especialmente aquele que nos confronta com um processo permanente
de constituição-objectivação-realização: aquele que experimenta as objectivações
normativas (normativamernte materiais) dos princípios enquanto as submete às
exigências simultâneas de uma dimensão axiológica (histórico-problematicamente
aberta) —— dimensão que postulam (cuja experiência os constitui) e que no entanto
não esgotam (porque esta os excede sempre nas suas possibilidades normativas) — e
uma dimensão (vocação) dogmática desoneradora («estabilizadora») — que os absorve
163
Ibidem, pp. 170-171. Ver também O Instituto dos ―assentos‖ e a função jurídica dos
Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, pp. 230 e ss., 251-269 [δδ) «Unidade de
ordenação a posteriori»], sem esquecer evidentemente o Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições
proferidas a um curso do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72,
policop., Coimbra, 1971-1972, pp. 328-330 [δ) «O direito é uma intenção axiológico-normativa que se
manifesta como um sistema aberto de realização histórica»], 331 e ss. [2. «O conteúdo do direito (análise
do sistema jurídico)»] 164
Ibidem, pp. 347-351 [d) A realidade jurídica (as instituições jurídicas)]. 165
Para uma compreensão da relação entre estes dois contextos e uma oportunidade única de
experimentar o «absoluto histórico» dos princípios normativo-jurídicos (e o sentido da
autotranscendentalidade prático-cultural que se leva a sério no mundo do direito), importa ter presente a
analítica da intencionalidade normativa (em três níveis ou degraus) que Castanheira Neves tem
desenvolvido ao invocar uma certa consciência jurídica geral. Analítica que não iremos considerar, para
cujas estações principais no entanto imediatamente nos remetemos. São estas: «A revolução e o direito. A
situação de crise e o sentido do direito no actual processo revolucionário», Digesta, vol. 1º, cit., pp. 207-
222 (11.), «Justiça e direito», ibidem, 273 e ss., «A unidade do sistema jurídico...», cit., pp. 174-179,
«Fontes do direito», Digesta, vol.2º, pp.58-67 («O momento de validade»), Metodologia Jurídica, cit., pp.
278 e ss, «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 63-65.
54
como seu primeiro estrato e a cujo desenvolvimento (-sistema) garantem por sua vez o
dinamismo constitutivo de um normans166
.
3.1.2.3. Sem esquecer ainda e por fim que a mais explícita das
institucionalizações do círculo é aquela que se cumpre distinguindo os diversos estratos
do sistema (e conferindo-lhes modos de vinculação-vigência institucionalmente
inconfundíveis). Trata-se com efeito de surpreender a regressividade problemático-
constituenda deste sistema… ou de a surpreender reconhecendo um movimento
partilhado (determinado pela prioridade metodologicamente constitutiva do caso-
problema ou pela perspectiva que este assegura): aquele movimento que se cumpre
levando a sério diversos tipos de presunções (ditas de validade, autoridade,
racionalidade e justeza) e inscrevendo nelas (ou na assimilação dos tipos de problemas
experimentáveis) outras tantas possibilidades (metodologicamente diferenciadas) de as
refutar-ilidir (e de assumir os explícitos ou apenas implícitos ónus de contra-
argumentação).
Com os princípios a beneficiarem de uma presunção de validade e a
vincularem-nos enquanto validade, as normas a beneficiarem de uma presunção de
autoridade e a vincularem-nos enquanto autoridade (político-constitucional), o direito
da jurisprudência judicial a beneficiar de uma presunção de justeza e a vincular-nos a
uma realização justa (prático-concretamente adequada) e à casuística que a objectiva, o
direito da jurisprudência doutrinal enfim a beneficiar de uma presunção de racionalidade
e a vincular-nos prático-culturalmente nos limites discursivos da sua concludência ou
fundamentação críticas…
Acentuação que nos autoriza a responder directamente ao contraponto
dogmático / crítico (a encontrar na experiência do direito uma caminho plenamente
institucionalizado para enfrentar este problema)… mas também a assumir um sentido
amplo de vinculação — irredutível ao modus prescritivo-autoritário (político-
166
Ibidem, p. 155 e ss. Sem esquecer o Sumário de uma lição-síntese sobre «Os princípios
jurídicos como dimensão normativa do direito positivo (a superação de positivismo normativista)»,
policop., Coimbra, 1976, sumário este permanentemente retomado e enriquecido em aulas preciosas, às
quais tive o privilégio de assistir.
55
constitucionalmente institucionalizado) que habitualmente (mas nem por isso menos
aproblematicamente) se postula167
.
3.2. Se o primeiro eixo de respostas nos concentra no processo de
institucionalização interna, o segundo permite-nos já considerar a relação com o
exterior ou com os interlocutores-oponentes que nele se identificam (ou pelo menos
com aqueles que fomos encontrando).
3.2.1. Tratando-se desde logo de reconhecer que a exigência de reagir à
unidimensionalidade de um discurso pragmático e às calculating forms of reason que o
sustentam — exigência de reacção esta que descobrimos no contexto global do
regresso da comunidade e como condição-traço de identidade deste regresso — , longe
de se contentar com uma reafirmação de afinidades electivas — que mais uma vez nos
exporiam às mediações da retórica narrativa, da ontologia hermenêutica ou da ética da
alteridade, se não à convocação explícita do universo das Humanidades e da linguagem
que este garante(law can also be viewed from the inside, by someone who lives on its
terms, and thus seen as a field of life and practice, as a set of intellectual and literary
activities that are far closer to the humanities than we normally imagine168
), está agora
em condições de nos oferecer um percurso autónomo e a institucionalização
correspondente (e esta fixada-experimentada numa sequência de especificações
metódicas) . Refiro-me a uma reinvenção do teleologismo que, superando a ameaça do
instrumentalismo pragmático e outros funcionalismos materiais (assumindo neste plano
a herança da Wertungsjurisprudenz)169
, se cumpre levando a sério a distinção entre fins
e valores… e instalando assim uma polaridade irredutível170
. Sem esquecer que nestes
termos se trata também e principalmente de respeitar um outro equilíbrio e a
167
«Fontes do direito», cit., pp. 82-90 (4) e 5)), Metodologia Jurídica, cit., pp. 154 e ss., «O
direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 66-67(b)). Ver também. o
desenvolvimento desta compreensão jurisprudencialista do sistema em geral e desta tectónica de
presunções em particular assumido por Fernando José Bronze em Lições de Introdução ao direito, 2ª
edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 607-681… e ainda aquele que propus nos Sumários
desenvolvidos de Introdução ao Direito II, Coimbra 2009, disponível no material de apoio da página on
line da respectiva unidade curricular, https://woc.uc.pt/fduc/, pp. 86-123 (e também, autonomizado como
«A compreensão jurisprudencialista do sistema», em https://woc.uc.pt/fduc/class/getmaterial.
do?idclass=282&idyear=6). 168
Boyd White, From Expectation to Experience. Essays on Law and Legal Imagination, cit.,
1999, p. 103. 169
Superação nem sempre lograda nalgumas das concepções que sacrificam a especificidade do
jurídico a um holismo prático-poiético 170
Ver supra, nota 75.
56
indispensável dialéctica: que outro equilíbrio e outra dialéctica senão aqueles que
convocam simultanea e constitutivamente uma exigência de justeza problemática e uma
intenção de unidade (uma dimensão teleológica ou problemático-teleológica e uma
dimensão dogmática)171
?
3.2.2. Tratando-se depois de mobilizar este mesmo teleologismo (de valores e de
fins) para enfrentar recto itinere o contraponto com a societas (entenda-se o contraponto
da communitas intencionada com a societas-artefacto)... mas então também para
propor uma especificação–institucionalização metodologicamente construída: uma
especificação que possa convocar como contexto imediato a denúncia (se não
desconstrução) de um certo paradoxo — um dos paradoxos que a crise do paradigma
moderno-iluminista nos permite reconhecer (o da procura da autonomia do jurídico no
parâmetro dos quadros constitutivos do Estado172
) — para a projectar no problema da
realização do direito com a mediação da norma… e mais especificamente ainda no
problema da experimentação da norma legal. Como se se tratasse de assumir o desafio
da realização da comunidade (ou da construção de um sentido comunitário) sem
renunciar (sem poder e sem dever renunciar) à relação dialéctica com a societas: antes
reflectindo sobre o modus operandi dessa compossibilidade ou dessa dialéctica.
Ora de assumir esse desafio microscopicamente: levando a sério a perspectiva do
caso para reconhecer na norma legal seleccionada (ou na índole normativa do seu
critério e da presunção de autoridade de que este beneficia) duas faces inconfundíveis e
outras tantas perspectivas de problematização-interrogação. Que faces?
(a) a da norma como «imperativo» e como «decisão impositivo-dogmática»
(como «manifestação optativo-teleológica» de uma voluntas em que se «afirma a sua
171
Ver neste sentido Metodologia Jurídica, cit., pp. 122-123. 172
Um dos paradoxos a que os fluxos da juridicização do poder e da politização do direito ou de
instrumentalização do direito pela política (potenciados pelos equívocos dos neoconstitucionalismos do
nosso tempo) inevitavelmente nos expõem. Para uma consideração (selectiva) de distintas dimensões
deste problema (ou que nele convergem), ver Castanheira Neves, O Instituto dos ―assentos‖ e a função
jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp. 583 e ss. (III a)), O problema actual do direito. Um curso de
filosofia do direito, policop., terceira versão, cit., pp. 15 e ss. [«O sentido moderno (moderno-iluminista) e
pós-moderno da normatividade jurídica»], 62-64 (o problema da «identificação da juridicidade com a
constitucionalidade»), Metodologia Jurídica, cit., pp.195-196 («A interpretação conforme a
Constituição»), Teoria do direito, cit., (versão em fascículos) pp. 224-227,(versão em A 4) pp. 121-124,
«A redução política do pensamento metodológico-jurídico», Digesta, vol 2º, pp. 404-409, «O direito
interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp.51-56 (b)).
57
dimensão político-programática (...) legitimada pela autoridade que invoca para a sua
prescrição»173
)...
...a suscitar o problema da justificação-legitimação da voluntas... e (ou) do poder
que a exerce... mas também a admitir uma reconstituição racional dos seus «elementos»,
agora não tanto daqueles que correspondem à sua formulação como
Konditionalprogramm, quanto daqueles que envolvem a sua construção (alternativa)
como puro Zweckprogramm (manifesto ou oculto)— a saber, dos fins (que prossegue) e
dos meios (que mobiliza... ou cuja mobilização prevê)... e das alternativas de decisão (que
enquadra ou que tacticamente permite)174
...
(b) e a da norma como critério jurídico (se não mesmo como juízo problemático,
autêntica expressão de um ius-dicere) constituído «no âmbito de um sistema de
normatividade jurídica» (sistema no qual é fundamentantemente constitutiva uma
intenção de validade)175
.
De tal modo que a prescrição legislativa nos apareça a respeitar os limites de
validade impostos pelos princípios normativos (dirigindo-se-nos como uma objectivação
possível, entre outras objectivações possíveis, das intenções destes princípios). O que não
é senão exigir que a «decisão dogmática» que constitui a norma se mostre «assimilável
(ainda que só a posteriori) por um juízo-judicium» singular e concreto (capaz de tratar-
solucionar o problema-caso), juízo decisório no qual «a prescrição» convocada como
critério «revele uma racionalidade de fundamentação normativa (a racionalidade que a
intenção de validade implica)»176
.
Que perspectivas? As da ratio legis e ratio juris. Sendo certo que a
interrogação da ratio legis nos concentra na procura do motivo-fim que determinou a
decisão da norma — na procura da sua justificação político-social e teleológico-
173
Metodologia Jurídica, cit., p.150. 174
Uma reconstituição racional esta última que se situa certamente para além do que
habitualmente se espera do elemento teleológico... Não se trata com efeito apenas de reconstruir a
finalidade prática da norma legal; trata-se também de estar em condições de reconstituir o programa final
explícito ou implícito (na sua maior ou menor intenção transformadora, na sua maior ou menor
vinculação político-ideológica) que a prescrição em causa estabelece ou que partilha com outras
prescrições (programa às vezes oculto sob a máscara do programa condicional!). Como se, numa palavra,
se tratasse de reconhecer a lei na imanência de uma racionalidade instrumental-estratégica... para
experimentar a sua adequação e a sua eficiência ou realizibilidade maximizadora (ou a antecipação em
abstracto que estes problemas permitem)... 175
Metodologia Jurídica, cit., p.150-1. 176
Ibidem, p.150.
58
estratégica (se quisermos na reconstiuição do seu argument of policy) —... e que a
problematização da ratio juris nos obriga já a confrontar esta teleologia com a coerência
normativa dos princípios (e dos correspondentes arguments of principle)... na mesma
medida em que nos onera com a responsabilidade constitutiva de «transcender aquela
teleologia por estes fundamentos»177
.
3.3.É a articulação dos dois eixos anteriores e das respostas que estes constroem
— numa última série de anotações indispensáveis — que nos vai permitir voltar ao
desafio da pluralidade. E para além decerto da experiência deste que vemos assimilada
pela prescrição-lex.
Para compreender enfim o modo como o mundo referido e construído pelas
práticas juridicamente relevantes institucionaliza a relação constitutiva unidade
/pluralidade? Antes para considerar o modo como este mundo (revisitado pela
reconstituição jurisprudencialista) pode e deve, na nossa circunstância presente,
institucionalizar uma tal tensão…— isto naturalmente se quiser estar à altura do
projecto-procura que o distingue (o autonomiza) na ordem da intencionalidade.
Institucionalizar esta tensão com que exigências? Sem renunciar à polaridade
que a dinamiza. E sem a reconduzir a uma conformação aporética. Mas também sem
que a reconstituição crítico-reflexiva que daqui resulte esteja condenada a dirigir-se-nos
como uma voz no diferendo com as outras vozes (e ao isolamento apologético que a
impostação-projecção reconhecível desta voz exige).
O que se compreende se tivermos presente que a reconstituição em causa nos
ajuda a resistir a esta fragmentação ou à sua superação unilateral. Mostrando que não
estamos condenados a que o fenómeno da multiplicação dos discursos e metadiscursos
(que se tornou uma dimensão inescapável da nossa circunstância) nos atinja enquanto
juristas — e enquanto juristas integrados numa determinada comunidade de juristas
(comprometidos com um socioleto possível ou com um desempenho profissional
específico e com as «situações institucionais» que o(s) assumem) — apenas como uma
experiência de indeterminação178
. Como não estamos condenados à pragmática de
177
Ibidem, pp. 184-195. Ver também «Fontes do direito», cit., pp.75-79 (o problema dos limites
normativos da lei). 178
A alternativa que esboçamos no texto parte de uma conhecida distinção de Derrida. Trata-se
de permitir que a uma acentuação indiscriminada (e como tal trivial) da indeterminação da linguagem —
que só pode remeter-nos para um exercício de discricionaridade (demitindo-se de explorar este e as
condições de relevância que o singularizam) — se contraponha uma representação da necessidade da
59
indecidibilidade ou mesmo ao paradigma de decisão que a consagração desta experiência
como palavra última inevitavelmente determinaria179
.
Preocupações que nos reconduzem ao núcleo da institucionalização do sistema
jurídico e muito especialmente ao modo como a procura de unidade que este traduz
(recusando a clausura holística e a auto-suficiência aproblemática justificadas pelo
isolamento normativístico) nos submete a uma dialéctica (permanentemente
recomeçada) entre práticas de estabilização e práticas de realização.
Acentuação que nos impõe uma última sequência de respostas ou pelo menos o
reconhecimento da dinâmica que as articula.
3.3.1. Com um primeiro passo iluminado pela distinção fundamentos / critérios
180[3.3.1.1.] e (ou) pela a exigência de a precipitar numa certa compreensão dos
princípios enquanto jus [3.3.1.2.].
3.3.1.1. Permitam-me que sublinhe a importância da primeira distinção na sua
relevância metodológica181
: aqui e agora (fundamentalmente) como uma distribuição de
possibilidades e experiências que, levada a sério na perspectiva do caso-problema,
contextualização e da abertura infinita de todos os contextos que (enquanto oscilação pragmática entre
sentidos possíveis), Derrida autonomiza precisamente como indecidibilidade: «Afterword: Toward an
Ethic of Discussion», Limited Inc, Evanston- Illinois, Northwestern University Press, 1988, pp. 148-149
(1.). O recurso a esta distinção não implica no entanto que atribuamos à pragmática da indecidibilidade o
alcance assumido por Derrida (um alcance que a torna indissociável da experiência da différance e do
movimento de recontextualização que se diz dissémination). Trata-se muito simplesmente de invocar dois
degraus da experiência da indeterminação, o primeiro radicalmente aberto, o segundo já racionalmente
controlado. 179
Este é um problema que tratei expressamente em ««Jurisdição, diferendo e ―área aberta‖. A
caminho de uma ―teoria‖ do direito como moldura?», , cit., passim. 180
Já assim no Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º
ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., pp.331 e ss («Os ―princípios
normativos‖ não são ―normas‖»). 181
Trata-se de autonomizar no fundamento a racionalização justificativa da inteligibilidade de
um certo domínio ou compromisso prático… e neste sentido de lhe atribuir o papel de um warrant
argumentativo autonomamente pressuposto (o fundamento justifica uma conclusão racionalmente
plausível mas não nos propõe uma solução ou tipo de solução, não nos dispensando assim do esforço
discursivo de a obter). Como se trata ainda de invocar o critério como «operador» («técnico») disponível,
um operador que pode ser imediatamente convocado para resolver um determinado tipo de problemas e
(ou) que pré-esquematiza a solução (exigindo não obstante um esforço discursivo de concretização-
realização). Como se os critérios se nos oferecessem como «objecto(s) da interpretação» e os
fundamentos como os «elementos de concludência racional que possibilitam, condicionam ou sustentam a
própria interpretação». O que nos permite reconhecer que os princípios normativos (prolongados por
algumas explicitações-objectivações da doutrina) se nos ofereçam (e devam ser tratados
metodologicamente) como fundamentos, devendo em contrapartida as normas, os precedentes ou
prejuízos jurisdicionais e a maior parte dos modelos dogmáticos ser assumidos e experimentados como
critérios.
60
confronta modos distintos de assimilação do binómio unidade / pluralidade (ou se
quisermos já do binómio práticas de estabilização / práticas de realização).
Permitam-me ainda que acentue esta importância construindo parafrasticamente
uma narrativa… e mobilizando para tal recursos exteriores: concertando as imagens do
farol e da bússola propostas respectivamente por Drucilla Cornell e Adela Cortina182
…
e permitindo que estas nos sirvam de estímulo para simplificar plasticamente o nosso
problema.
Trata-se, com efeito, de comparar os fundamentos (e muito especialmente os
princípios) à luz projectada por um farol ou à orientação determinada por uma bússola.
Como se tratar-solucionar uma controvérsia juridicamente relevante e o problema-caso
em que esta se transforma (ou vai transformando) — ou muito simplesmente considerar
um problema de direito (independentemente do plano de objectivação mais ou menos
abstracto com que este se nos expõe e da urgência reflexivo-decisória com que nos
estimula) — correspondesse afinal à travessia de um território desconhecido... ainda e
sempre por percorrer — com especificidades-novidades que se descobrem
caminhando... e que nos obrigam a enfrentar-inventar um caminho irrepetível.
Travessia que não se poderia cumprir adequadamente se o caminhante (à procura
da decisão-juízo) contasse apenas com a sua inventio... ou se esta inventio (decerto
indispensável!) não beneficiasse de apoios e orientações trans-subjectivamente
(racionalmente) vinculantes — entenda-se, das práticas de estabillização e realização do
sistema jurídico, práticas estas cumpridas, em planos-territórios muito distintos, por
outros caminhantes anteriores (legisladores, juízes, juristas dogmáticos!)... práticas que
assim mesmo constituem (e lhe proporcionam) um património precioso!
Travessia então que não se poderia cumprir adequadamente... se o caminhante
não beneficiasse de dois tipos de apoios-guias. Que tipos de apoios?
α) Aqueles que, sem preverem os problemas (ou tipos de problemas) que ele irá
enfrentar (sem anteciparem as encruzilhadas e os obstáculos, as armadilhas e os
182
A primeira (com um piscar de olhos a Virgínia Woolf!) a considerar globalmente o problema
dos princípios jurídicos, a segunda a referir-se já apenas ao contributo de Kant e à sua construção da «Paz
perpétua» ou aos princípios que esta assume (e então e assim a defender Kant de uma «injusta» crítica de
Hegel). «A principle (...) is not a rule (...). A principle is instead (…) a guiding light. It involves the
appeal to and enrichment of the ―universal‖ within a particular nomos. We can think of a principle as the
light that comes from the lighthouse, a light that guides us and prevents us from going into wrong
direction…» (Drucilla Cornell, The Philosophy of Limit, London, Routledge, 1992, p. 106). «La mejor
aportación (...) consiste en no ofrecer un solo camino (…), sino en ofrecer una brújula, en vez de un mapa
de carreteras.» (Adela Cortina, «Cosmopolitismo y Paz. La brújula de la razón en su uso político»,
Revista Portuguesa de Filosofia, 2005, vol. 61, fasc. 2, p. 390).
61
atalhos!) lhe proporcionam não obstante uma orientação (constitutiva) fundamental —
comprometendo o seu percurso com a realização de certas exigências (seguir a luz,
caminhar para o Pólo Norte)... e então e assim mostrando-lhe (muitas vezes apenas
pela negativa) que não deverá seguir um percurso que o afaste de tais exigências...
β) E aqueles que lhe proporcionam já itinerários ou mapas mais ou menos
pormenorizados — itinerários ou mapas que, mesmo no seu maior grau de
concretização (o dos critérios jurisprudenciais), não se confundem decerto com o
caminho a percorrer... e que no entanto antecipam (prevêem183
, exemplificam184
ou
reconstroem reflexivamente185
) situações-problemas (tipos186
ou exempla187
ou
modelos188
de situações-problemas), na mesma medida em que propõem
(esquematizam189
, exemplificam em concreto190
ou reconstituem racionalmente191
)
soluções, alternativas ou tipos de soluções plausíveis para estes problemas…
Sendo certo que a travessia deve submeter-se a duas exigências fundamentais e
às advertências que as iluminam:
(1) A de não tratar a orientação oferecida pelos princípios-fundamentos como se
esta correspondesse ao apoio proporcionado pelos critérios-mapas.
Os princípios não são critérios-regras (nem se distinguem destas apenas por
serem mais indeterminados ou abertos)... e neste sentido exigem metodologicamente um
outro tratamento!
(2) A de não se satisfazer com os critérios-mapas.
O nosso caminhante não pode com efeito pretender construir o percurso como se
este fosse uma mera desimplicação dos itinerários ou dos mapas! Mesmo que tenha
seleccionado itinerários ou mapas e os tenha à sua disposição (e o primeiro passo deve
183
As normas legais. 184
As decisões judiciais mobilizadas como critérios (pré-juízos-exempla, precedentes). 185
Os modelos dogmático-doutrinais que se nos oferecem como critérios. 186
Ainda as normas legais. 187
Ainda os critérios judiciais. 188
Ainda os modelos dogmáticos. 189
De novo as normas… 190
… os pré-juízos jurisdicionais… 191
… e os modelos dogmáticos.
62
sempre o da procura destes!192
), não poderá assim dispensar-se de por um lado os
experimentar no terreno (em dialéctica com as situações-problemas concretos) e de por
outro lado mobilizar inteligentemente as suas instruções — o que, como veremos,
significa sempre atender à luz do farol ou à indicação da bússola... (nunca caminhar em
sentido oposto ao destas, sejam quais forem as indicações dos critérios!).
3.1.2. Mais do que a distribuição de possibilidades em si mesma, importa-nos no
entanto a exigência de submeter o tratamento dos princípios a este contraponto rigoroso.
Ou muito simplesmente a conclusão de que a reabilitação dos princípios falhará se os
tratarmos como critérios mais indeterminados (ainda que façamos corresponder o
tratamento dessa indeterminação a uma pragmática de optimização de comandos).
Ao assumir uma compreensão dos princípios normativos como autêntico direito
vigente (princípios como jus193
)194
, no seu sentido forte e pleno195
— ao reconhecer
192
O passo por assim dizer mais natural: aquele que leva o jurista de um sistema de legislação a
procurar a norma legal e o jurista do common law a procurar o precedente vinculante... que assimilem a
relevância do seu problema-caso! 193
Recorde-se a distinção entre princípios como ratio, como intentio e como jus, na qual
Castanheira Neves tem exemplarmente insistido desde a sua citada lição-síntese… e que aqui e agora
reconstituímos invocando a mediação privilegiada das suas aulas e ensinamentos orais.
As concepções que vêem nos princípios apenas ratio (condições epistemológicas de uma
racionalização cognitivo-sistemática das normas legais) são, na verdade, herdeiras da compreensão
normativística dos princípios gerais de direito (e muito especialmente daquela que o positivismo
conceitual desenvolveu na segunda metade do século XIX) — uma compreensão que reduz o direito ao
estrato das normas para ver nos princípios gerais «normas mais abstractas e mais gerais» obtidas por
abstracção generalizante ou concentração-classificação (se não por indução) a partir das normas vigentes
e com o objectivo claro de conseguir um domínio cognitivo racionalmente mais logrado destas últimas e
da unidade horizontal (por coerência) que estas constituem… — normas que assim mesmo os princípios
gerais não excedem normativamente, às quais nada acrescentam no plano das «soluções» prático-
normativas, com as quais (enquanto axiomas racionalmente imanentes) nunca entram em confronto (às
quais nunca põem exigências de validade!)... cujas significações se limitam a reproduzir-sintetizar...
Outra é a compreensão dos princípios como intenções (intentio). Segundo esta linha de
compreensão (na qual reconhecemos a herança neo-kantiana de Stammler), trata-se de admitir que as
intenções-exigências dos princípios têm já um sentido prático-normativo... excluindo no entanto a
possibilidade de vermos nelas autêntico direito vigente. Para constituirem direito vigente (para adquirirem
juridicidade), estas intenções têm, à luz desta perspectiva, que ser assimiladas pelas normas legais (a
começar pelas leis constituticionais) e (ou) pelos precedentes vinculantes — têm, numa palavra, que se
manifestar em critérios positivos vinculantemente institucionalizados, recebendo destes (ou da
autoridade-potestas que os sustenta) a sua força jurídica (ou a dimensão constitutiva que a traduz). Há
aqui de resto duas possibilidades (que podem ser defendidas em conjunto ou separadamente... se não
concebidas como meras diferenças de grau). (1) A possibilidade de ver nos princípios intenções
regulativas (manifestação de expectativas sociais ou de compromissos comunitários sem carácter
jurídico) capazes de orientar directamente (mas apenas de orientar!) a construção-produção de critérios
jurídicos (especialmente legislativos) [função regulativa para a normativa constituição do direito positivo
(os princípios como intenções regulativas, não constitutivas, que a política legislativa deverá ter em
atenção ou que a poderão orientar na busca de soluções mais adequadas)]. (2) A possibilidade de ver nos
princípios intenções regulativas com um carácter metodológico: intenções que, não constituindo como tal
direito vigente, podemos convocar como apoios-arrimos (se não como cânones ou regras secundárias de
juízo... ou até mesmo como razões argumentativas) quando interpretamos uma norma legal ou um critério
jurisprudencial... e muito especialmente quando temos que enfrentar um caso omisso e resolver um
63
nestes os fundamentos constitutivos da validade do direito (em todos os planos de
afirmação e experimentação da juridicidade) —, a reconstituição jurisprudencialista não
só nos expõe a uma experimentação permanente do excesso normativo dos princípios
— enquanto intenções constitutivas de um normans (inesgotáveis nos critérios e nas
realizações que fundamentam) — como também exige que ao problema do tratamento
destes warrants corresponda uma experiência de constituição-manifestação-realização
inconfundível.
Acentuação esta última que nos permite reconhecer uma institucionalização
particularmente expressiva da relação entre a pressuposição integradora de um horizonte
de validade e a abertura permanente a uma pluralidade de contextos de realização — se
não já explicitamente do círculo ontologicamente produtivo em que esta
inevitavelmente se inscreve. O que aqui e agora significa testemunhar uma
especialíssima consonância prática entre os princípios que se invocam como
compromissos e projectos de ser ou de ser-com-os-outros (a cuja orientação-condução
nos submetemos) e o «conteúdo normativo-concreto» da realização destes
compromissos (indissociável dos problemas-controvérsias e do novum irredutível que
estes introduzem)196
. Decerto porque os princípios não antecipam problemas ou tipos de
problemas (ainda a imagem do farol ou da bússola!)... na mesma medida em que,
furtando-se a uma qualquer pré-determinação em abstracto das suas exigências, só
fazem sentido (só atingem a sua integridade normativa) realizando-se (e neste sentido
também transformando-se e transformando-se inevitavelmente em cada nova
experimentação concretizadora). Como se, numa palavra, se tratasse de experimentar
um continuum (sem soluções) de constituição-manifestação-realização —
exemplarmente distinto daqueles que os critérios legislativos, jurisprudenciais ou
dogmáticos nos impõem197
—… mas então e assim também de permitir um outro
problema (dito) de integração [função regulativa no direito positivo constituído e na prática de integração
ou desenvolvimento deste]. 194
A preferência pela formulação princípios normativos permite-nos desde logo distinguir esta
concepção (dos princípios como jus) da concepção dos princípios como ratio directamente associável à
expressão princípios gerais do direito. Ver neste sentido Fernando José Bronze, ob. cit., pp. 627-628 e
nota 61. 195
Algumas propostas tratam os princípios como jus mas atribuem-lhes um carácter subsidiário
(estes seriam apenas convocados quando os critérios não nos dão uma resposta!). 196
Metodologia jurídica, cit., pp. 203-204 197
«[A] ausência de hipótese-previsão nos princípios ou a sua indeterminação referencial, já que
essencial para eles é só o seu regulativo compromisso axiológico e prático, não impõe apenas que a sua
normatividade se determine realizando-se, solicita ainda uma compreensão prática (não simplesmente
dogmática ou lógica) dessa sua normatividade só possível de atingir-se mobilizando a dialéctica entre o
seu regulativo, que convoca à realização , e a prática (de acção e judicativa) em que encarne e a manifeste
64
tratamento da singularidade…— um tratamento que não fique prisioneiro de uma
assimilação da pluralidade previamente decidida ou experimentada (e da violentação-
domesticação do novum que todos os critérios, em termos mais ou menos drásticos,
representam)198
.
3.2. O segundo passo parte do primeiro e do seu ponto de chegada. Introduz no
entanto uma dinâmica distinta (aparentemente perturbadora). Trata-se, com efeito, de
mobilizar o estrato do sistema no qual as controvérsias se manifestam e o direito se
realiza: o estrato da realidade jurídica que, como sabemos, está longe de poder ser
compreendido como um mero campo de aplicação histórico-social de uma
normatividade dada ou pressuposta199
...
De o mobilizar em que termos? Por um lado para o descobrir como um território
privilegiado de explosão (e de enquadramento prático-normativo) da pluralidade.
realizada. Se as normas são auto-suficientes no critério abstracto que hipoteticamente prescrevem, os
princípios são fundamentos ―para tomar posição perante situações, a priori indeterminadas, que venham a
determinar-se concretamente‖ (Zagrebelski). Em síntese: as normas legais esperam a sua aplicação e em
último termo visam-na, mas podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsistência
abstracta; não assim os princípios, já que o seu verdadeiro sentido não é determinável em abstracto, e só
em concreto, porque só em concreto logram a sua determinação, e se lhes pode atingir o seu autêntico
relevo...» (Castanheira Neves, O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop.,
terceira versão, cit., pp. 59-60). 198 Partindo embora de um horizonte radicalmente distinto (comprometido com a ética da
alteridade e com a desconstrução como filosofia) — e não deixando por isso de preservar com alguma
ambiguidade os topoi da indeterminação e das diversas alternativas de resposta —, Drucilla Cornell chega
a uma exigência de diferenciação paralela (tanto mais exemplar precisamente quanto sustentada em
pressupostos que previsivelmente a levariam a trilhar um outro caminho). Tratando-se muito claramente
de confrontar a pretensão de auto-suficiência e auto-subsistência dos critérios-rules e o modo como esta
legitima uma «violência contra a singularidade» — legitimação que encontrará na compreensão do
positivismo jurídico (latissimo sensu) a sua consagração-forma (ontologicamente totalizante) — com a
pretensão de universalidade dos princípios e com o modo como esta é (ou deve ser) histórico-
pragmaticamente assumida (as for which principles we adopt within the nomos (…) of the law (…), we
are left with the process of pragmatic justification based on the ability of a principle to synchronize the
competing universals embodied in the nomos) [The philosophy of the limit, cit., p. 106]. Princípios que,
não deixando de perturbar a pureza do encontro ético e de «violentar» a diacronia do jogo das
significações (principles inevitably categorize, identify, and in that sense violate différence by creating
analogies between the like and the unlike) [ibidem, 105] nos aparecem não obstante a orientar uma prática
racional de «redução» da violência (e de respeito pelas diferenças). Decerto porque as exigências-
compromissos que os distinguem vão ser experimentadas na perspectiva de cada situação-problema. Sem
impor o «exacto caminho a percorrer», antes assumindo um potencial de fundamentação que supera as
pretensões da resposta única. Mas então e muito simplesmente excluindo as respostas que naquele
contexto pragmaticamente reconhecível — e naquele horizonte historicamente determinado — devam
dizer-se «incompatíveis» com a realização do seu compromisso. We can think of a principle as the light
that comes from the lighthouse, a light that guides us and prevents us from going in the wrong direction
[ibidem, 106]. Ver ainda «From the Lighthouse: the Promise of Redemption and the Possibility of Legal
Interpretation», Cardozo Law Review, 11, 1990, pp. 1689 e ss. 199
Castanheira Neves, Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso
do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., pp. 347-351, ««A
unidade do sistema jurídico…», cit., pp. 172-174, «Fontes do direito», cit., pp. 56-58, Metodologia
Jurídica, cit., pp.149,151 ess, 157 e ss., 176 e ss., 182-184.
65
Importando-nos agora menos a dimensão dinâmica (como que
microscopicamente «pontualizada») desta realidade, que até agora privilegiámos —
aquela que se esgota na emergência das controvérsias-casos e no seu tratamento
judicativo-decisório— do que a sua dimensão institucional. A dos institutos de direito
privado e a das instituições de direito público200
que, enquanto tipos de relação-
actuação201
, se nos expõem como manifestações de um autêntico law in action202
?
Também a daqueles «modos concretos de organização e de associação que se impõem na
vida social como entidades a se»203
. Só que também e ainda (permita-se-nos acrescentar!)
uma terceira frente, hoje absolutamente indispensável.
A daquela realidade jurídica que, enquadrando-assimilando o diagnóstico que
começámos por propor (ou um dos seus painéis204
), nos atinge sobretudo como um
ensemble plural de «situações institucionais» e de cânones205
— sustentados pelas
práticas profissionais das distintas comunidades de juristas (advogados, juízes, juristas
dogmáticos, juristas académicos) e então e assim precipitados em experiências colectivas
inconfundíveis… se não já distribuídos por outros tantos grupos semióticos ou
comunidades interpretativas (também eles divididos ou fragmentados). Situações
institucionais e cânones que se nos impõem como outras tantas experiências de
determinação-especificação e de realização do sistema jurídico (capazes de iluminar
diversamente os seus fundamentos e critérios e de reconhecer dimensões e possibilidades
distintas nos compromissos práticos e nos modelos-mapas que os estabilizam)
200
Se as expressões rechtprivatlichen Institute e rechtöffentlichen Institutionen nos remetem para
Carl Schmitt, importa esclarecer que as usamos aqui apenas para distinguir os domínios normativos em
causa e contrapor assim o instituto da propriedade à instituição do habeas corpus, o instituto do
casamento à instituição do contrato administrativo, o instituto do poder paternal às instituições do Estado-
de-Direito (sem as implicações que o konkretes Ordnungsdenken atribui a esta dicotomia). 201
Distintos assim dos «institutos» que, ao lado dos «conceitos», o positivismo científico do
século XIX isolava-construía como puras «individualidades lógicas»... na mesma medida em que
irredutíveis aos princípios ou critérios que normativamente os conformam... ou ao law in the books que os
enquadra ou disciplina. 202
Um law in action assim mesmo conformado por uma precipitação-cruzamento (e
interpenetração reciprocamente constitutiva) de intenções normativas e de factores e experiências e
práticas sociais (política, económica ou culturalmente relevantes)... suficientemente estabilizadas para
poderem ser reconhecidas como realidades («estruturas, esquemas ou tipos jurídico-sociais de actuação e
de relação»): Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º ano da
Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., p. 349. 203
Ibidem, pp. 349-350. Trata-se de identificar as realidades simultaneamente jurídicas e sociais
que correspondem ao exercício da autonomia privada (correlativas por exemplo da consagração pelas
partes A e B de um certo contrato ou cláusula contratual)... ou às práticas de especificação-realização de
um certo estatuto, mais ou menos convencionalmente objectivado (a realidade normativo-social que
descobrimos nas sociedades, associações e outros corpos autónomos ou nas práticas que os constituem). 204
Ver supra, 1.2. 205
Cânones que incluem evidentemente as regras ou bordões procedimentais autonomizadas por
Fernando Bronze como um dos estratos do sistema jurídico (aquelas que, segundo o Autor, beneficiarão
de uma presunção de prestabilidade): Bronze, ob. cit., p.670-671.
66
Por outro lado para considerar esta realidade plural na sua relação constitutiva
com os princípios: o que significa interpelá-la circularmente… tanto como aquela
realidade-referente que os princípios, na sua realização-determinação, conformam (e
que por isso mesmo «adquire» um «sentido juridicamente valioso»206
), quanto como
aquela prática de casos-acontecimentos e de decisões judicativas na qual as exigências
dos princípios (frequentemente manifestadas nos critérios, mas nem por isso menos
abertas a uma historicidade constitutiva) se tornam enfim plenamente inteligíveis e
determinadas.
Sendo precisamente da conjugação destas duas vertentes que resulta a
perturbação anunciada. Uma perturbação que podemos concentrar numa pergunta: a de
saber se — e até que ponto é que — a fragmentação (no limite do diferendo) que afecta
hoje as comunidades interpretativas e as suas situações institucionais (os projectos de
realização, os materiais canónicos, os códigos linguísticos e extralinguísticos)… não
ameaça afinal a própria manifestação constitutiva dos princípios — aquela que se
descobre in action na teia destas comunidades restritas e no jogo que, em cada contexto
histórico, as inter-relaciona —… ameaçando também, através dela, a pretensão de
unidade do sistema (e no limite, a inteligibilidade reconhecível do mundo humano do
direito ou do projecto que o ilumina). Se chegarmos à conclusão de que a multiplicação
das situações institucionais (e dos códigos que estas mobilizam) suscita processos de
realização-determinação incompatíveis com um sentido material (ou com a partilha
deste), o compromisso prático pressuposto e o próprio horizonte de validade
comunitária estarão certamente ameaçados. Uma ameaça que já não será certamente
aquela que reconduz tal validade à solução contingente de um puro consenso a
posteriori — a ameaça que associámos a uma possível hipertrofia tópico-problemática
— , porque é já aquela outra que, reconhecendo a impossibilidade deste consenso (ou de
uma sua repetição lograda), apenas preserva a possibilidade-limite de evocar uma tal
validade ou o princípio que a especifica (e que na situação em apreço a representa)
como se de um puro nomen (mais ou menos apelativo) se tratasse.
3.3.3. Pergunta que nos restitui ao último patamar de institucionalização. Aquele
em que tudo se recupera? Aquele pelo menos em que a exigência de uma articulação
206
O problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, cit.,
p. 60 (citando Zagrebelsky).
67
lograda entre validade comunitária e contextos de realização, entre unidade intencional
e pluralidade discursiva (se não mesmo entre clausura dogmática e problematização
crítica) encontra enfim a oportunidade de uma determinação reflexiva e a consciência
estabilizadora que a torna possível. Que determinação reflexiva? Aquela que a nossa
circunstância exige de uma dogmática doutrinal pratico-normativamente
reinventada207
? Antes aquela que só uma articulação lograda das jurisprudências
judicial e doutrinal — reconduzida à unidade prático-prudencial de um direito de
juristas208
, mas também (e significativamente) amplificada por um encontro com
patamares metadogmáticos (permitida por um diálogo fecundo com a reflexão
universitária209
) — estará em condições de enfrentar.
Para a dogmática em causa, responsabilizada pelo continuum em que se inscreve
ou pela «conjugação» (entre os «tribunais» e a «universidade»)210
que mediatiza, a hora
já não é certamente apenas a de renunciar aos despojos (sobrevivos) de um paradigma
perdido e aos simulacros de autonomia que estes aparentemente lhe garantem — quer se
trate de discutir as pretensões cognitivistas da dogmatische Rechtswissenschaft do
século XIX… ou de reconhecer hoje as suas cicatrizes, nos códigos-rotinas ou nos
sociolectos-territórios das diversas comunidades de juristas —, porque é também a de
resistir a novos apelos e de assumir auto-reflexivamente estas resistências…
A de resistir à conversão que a preserva (no seu cognitivismo categorial-
classificatório) como autêntica «organização das redundâncias» e rede de segurança —
na mesma medida em que a responsabiliza por uma efectiva desparadoxização da
jurisprudência judicial (Luhmann). A de resistir sobretudo aos apelos-programas que a
superam ou substituem: àqueles que a submetem às soluções de uma tradução
marginalista (as free market jurisprudence) [Law & Economics] ou às opções éticas de
uma microfísica de poderes e resistências e à analítica interpretativa (as deviationist
doctrine) que a prossegue (Critical Legal Scholars), quando não a substituem pelas
possibilidades-promessas (já radicalmente exteriores) de uma tecnologia social (social
207
Castanheira Neves, Curso de Introdução ao Estudo do Direito. Lições proferidas a um curso
do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., pp. 343-347, «A unidade
do sistema jurídico…», cit., pp. 172, «Fontes do direito», cit., pp. 89-90, Metodologia Jurídica, cit., pp.
157, 184 e ss. 208
«Fontes do direito», cit., pp.90-93, Metodologia Jurídica, cit., pp. 185-186, O problema
actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, cit., pp. 54-F a 54-Q. 209
O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, cit., pp. 74-75
(também nos Digesta, cit., vol.3º, pp.71-72.). 210
Ibidem, p. 74 (e 71).
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engineering) ou de uma crítica de ideologia (teorias crítico-dialécticas, postmodern
jurisprudences)211
…
Sem ficarmos por aqui. Porque é também a hora desta dogmática se debater com
a pluralidade de vozes que (já para além destas grandes opções-modelos) internamente a
fragmentam… vozes que, disputando também a jurisdictio e a academic house que com
ela convergem (e muito especialmente esta última… quando não são directamente
produzidas por ela!), ameaçam ainda a inteligibilidade unitária de um autêntico
Juristenrecht.
A hora, entenda-se, de se debater conscientemente com esta pluralidade. Como
se não pudessemos confiar já apenas na dinâmica que inter-relaciona communis opinio
e fluxos desviantes — no contraponto-ordinans entre as correntes que ocupam o centro
ou que dominam a superfície e os pequenos rios periféricos ou subterrâneos (que se vão
impondo... muitas vezes para ocupar o lugar dos primeiros!) — ou nesta dinâmica
pressuposta (garantida) as doing what comes naturally. Mas então também como se
uma comunicação criticamente lograda com as diversas comunidades interpretativas e
as suas redes limitadas de codificação (ou pelo menos com os problemas que a
pluralidade dos seus diagnósticos nos autoriza a detectar) se tivesse tornado
indispensável para garantir que a dogmática doutrinal possa efectivamente desempenhar
a sua tarefa desoneradora.
Não tanto nem apenas para impedir que as suas dimensões descritivo-empírica e
lógico-analítica (empenhadas respectivamente na descrição reconstitutiva do direito
vigente e no esclarecimento de categorias ou usos linguísticos) possam ser sustentadas
autonomamente (em nome de uma intenção cognitiva ou de uma intenção analítica),
entenda-se, para exigir que todas estas práticas-tarefas sejam levadas a sério na
perspectiva de uma unidade intencional normativo-prática (e assumindo um discurso
sujeito / sujeito) — intencionalidade e discurso estes especialmente visíveis na tarefa que
explicita-constitui princípios ou que constrói modelos-critérios212
. Também e muito
especialmente para garantir que… entre o desempenho desonerador (e o contrôle
sistemático-racional) que a dogmática cumpre dirigindo-se à prática judicativo-decisória
211
Para um confronto esquemático de algumas destas propostas, veja-se o nosso
«Rechtsdogmatik, Autonomie und Reduktion der Komplexität. Brauchen die Gerichte ein
Sicherheitsnetz?», cit., passim. 212
Trata-se, como é evidente, de partir da distribuição de dimensões proposta por Alexy: Theorie
der juristischen Argumentation, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1978, pp. 308 e ss.
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por um lado, e a invenção autónoma (heurístico-antecipante) de fundamentos e critérios
específicos que ela assume fazendo novas perguntas e esboçando respostas também novas
por outro lado, passe a impor-se uma conexão muito mais reflectida (que não se limite a
intensificar discursivamente a natural convergência destas duas tarefas)213
. Ora uma
conexão que se cumpre internamente, desempenhando uma outra (uma terceira) tarefa;
aquela que responsabiliza a dogmática por uma reelaboração estabilizadora do próprio
sistema (pela reconstitução prática das normas, pela explicitação normativa da
experiência constituinte da casuística e da prática judicativa, pela mediação manifestante
e reconstitutiva dos princípios), na mesma medida em que lhe exige que reconheça neste
sistema a unidade-ordinans de uma pluralidade historicamente realizada.
Reconhecimento que exige hoje por sua vez uma tematização crítico-reflexiva (com o
apoio precioso das arenas metadogmáticas da teoria, metodologia e filosofia jurídicas!)...
dependendo desta afinal a possibilidade de corresponder ao desafio de uma intenção que
se possa dizer simultanea e incindivelmente hermenêutico-sistemática, prático-judicativa
e prático-realizanda.
Uma comunicação criticamente lograda (e por isso mesmo muito exigente)…
mas não certamente equidistante… porque comprometida com a procura hoje possível
do projecto humano do direito (se não com a «proclamação» contextualmente
plausivel, mas nem por isso menos «incondicional», de um direito autónomo214
).
O que, como se vê, corresponde a uma institucionalização com condições
específicas. Condições que, permitindo-nos levar a sério uma dialéctica entre unidade e
pluralidade, integração e diferença, não são partilhadas pelos outros mundos práticos,
nem podem ser reconhecidas e experimentadas projectando unilateralmente os
problemas e soluções que estes enfrentam… e muito menos desvelando (sem mais!) o
horizonte compreensivo (e as categorias de inteligibilidade) em que todos estes mundos
participam.
Especificidade que a reconstituição crítica do sentido do direito assumida pelo
pensamento jurisprudencialista nos ensina privilegiadamente a reconhecer e a
experimentar? Importa acentuá-lo. E agora para concluir. Respondendo à pergunta que
nos conduz. Já não só para dizer que a compreensão jurisprudencialista abre uma
213
Trata-se ainda de mobilizar (selectivamente) a especificação das funções da dogmática
proposta por Alexy: ibidem, pp. 326-332 (2.4.5.). 214
Castanheira Neves, O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do
direito, cit., p. 74 (e 71).
70
resposta possível em tempo(s) de pluralidade e de diferença. Mas para afirmar que em
tempos de pluralidade e de diferença como são os nossos, esta corresponde, cada vez
mais claramente, a uma aposta prático-culturalmente indispensável. Il faut parier (…) et
(…) cela n’est pas volontaire, vous êtes embarqué.
Coimbra e Ouro Preto, Outubro de 2008