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A incompletude do simbólico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra 1 Lacan : O sujeito da letra (p. 147-166) 3.2.1. Uma distinção surpreendente A questão mais conhecida, aquela que trouxe êxito a este ensino, gerando, como se consagra, a mais ampla confusão, resulta do termo significante. Ninguém para ignorar que ele vem de Saussure (o próprio Lacan, como será visto adiante, tendo feito a mais brilhante publicidade do santo pai da lingüística moderna), mas esta prestigiosa geração pede que seja sopesada ... na letra. A despeito das múltiplas advertências sobre os perigos da confusão desse ponto será preciso esperar 1986 para que um lingüista, Michel Arrivé, faça um honesto esclarecimento sob o título “Significante saussuriano e significante lacaniano”. 1 Pode-se ler o essencial da operação lacaniana no texto-chave “A instância da letra no inconsciente“, ainda que, como sempre com Lacan, convém conservar ao menos uma “atenção flutuante” sob a ótica do conjunto dos seminários para esclarecer o que os textos dos Escritos têm com freqüência de excessivamente concentrado. No dizer de Lacan, portanto, “algoritmo” (a palavra é dele cifrada e recorrente no seu ensino) lançado por Saussure no fundamento da lingüística moderna “é o seguinte: S s que se lê: significante sobre significado, o sobre correspondendo à barra que separa as duas etapas.” 2 1 M. Arrivé, Linguistique et psychanalyse, Klincksieck, Paris, 1986, p. 123-143. 2 J. Lacan, Écrits, Le Seuil, Paris, 1966. p. 497.

Le gaufey

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Cap. de "la incompletud de lo simbolico"

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  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    1

    L a c a n :

    O s u j e i t o d a l e t r a ( p . 1 4 7 - 1 6 6 )

    3.2.1. Uma distino surpreendente

    A questo mais conhecida, aquela que trouxe xito a este

    ensino, gerando, como se consagra, a mais ampla confuso, resulta do termo significante.

    Ningum para ignorar que ele vem de Saussure (o prprio Lacan, como ser visto adiante, tendo feito a mais brilhante publicidade

    do santo pai da lingstica moderna), mas esta prestigiosa gerao

    pede que seja sopesada ... na letra. A despeito das mltiplas advertncias sobre os perigos da confuso desse ponto ser

    preciso esperar 1986 para que um lingista, Michel Arriv, faa

    um honesto esclarecimento sob o ttulo Significante saussuriano e significante lacaniano. 1

    Pode-se ler o essencial da operao lacaniana no texto-chave A instncia da letra no inconsciente, ainda que, como sempre com Lacan, convm conservar ao menos uma ateno flutuante sob a tica do conjunto dos seminrios para esclarecer o que os textos

    dos Escritos tm com freqncia de excessivamente concentrado.

    No dizer de Lacan, portanto, algoritmo (a palavra dele cifrada e recorrente no seu ensino) lanado por Saussure no

    fundamento da lingstica moderna o seguinte:

    S s

    que se l: significante sobre significado, o sobre correspondendo

    barra que separa as duas etapas. 2

    1 M. Arriv, Linguistique et psychanalyse, Klincksieck, Paris, 1986, p.

    123-143. 2 J. Lacan, crits, Le Seuil, Paris, 1966. p. 497.

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    2

    Evidentemente, basta seguir, mesmo que furtivamente o Curso de Lingstica Geral

    para ver que no h nada no que assinala a discreta correo sobre o qual Lacan encadeia sua apresentao do signo saussurriano:

    O signo assim escrito merece ser atribudo a Ferdinand de Saussurre, ainda

    que ele no se reduza estritamente a certa forma em nenhum dos

    numerosos esquemas sob os quais (ele) aparece na impresso das lies

    diversas dos trs anos 1906-7, 1908-9, 1910-11 que a piedade de um grupo

    de seus discpulos reuniu sob o ttulo de Curso de lingstica geral3

    Uma palavra primeiro sobre a piedade. A 1a edio do CLG (dita do nome dos transcritores Bailly-Sechehaye) prope trs esquemas do signo saussuriano:

    Onde conceito , rvore e so apresentados como significados e respectivamente imagem acstica, arbor e arbor como significantes. Ora, a ltima edio do CLG4 mais completa, mais crtica, assinala (nota da

    pgina 132) que, o terceiro esquema, aquele em que aparece a representao,

    a imagem arquetpica, no est presente nos papis de Saussure, e se

    encontra, portanto, devido piedade dos discpulos. Mas, longe de esclarecer o debate, como sua ambio, uma tal adio o complica perigosamente, colocando ao ensino do significado uma imagem, ainda que as relaes entre conceito e imagem sejam um verdadeiro pot au noir*. No h

    evidentemente que se confundir a imagem de uma rvore com uma rvore mas

    3 J. Lacan, crits, op. cit. 4 F. de Saussure, Cours de linquistique gnrale, dition de Tullio de Mauro, Payot, 1986.

    * regio de brumas opacas temidas por navegadores e aviadores

    Saussure denunciou suficientemente a concepo da lngua como

    nomenclatura ligando palavras e coisas para suportar mal um tal

    retorno problemtica da imagem da coisa na arquitetura interna de seu conceito sobre signo. De tal modo que o uso por Lacan

    5

    desta mesma imagem rvore (tomada aqui no seu valor

    pictogramtico) no o que se pode imaginar alm disso o que em acordo com o CLG. Mas, apesar das questes que este ponto

    de erudio evoca esse discreto mal uso / abuso (que no nada

    imputvel a Lacan, visto que em 1957 somente a 1a primeira

    edio era incontestvel) nada, em comparao quilo que se pode ver como o nariz no meio da figura, a saber uma

    surpreendente inverso: o significado cai para a parte inferior (e

    correlativamente se v reduzido a seu caixa-baixa [ letra minscula] acrofnico: s) enquanto que o significante

    promovido parte superior e construdo com uma letra

    maiscula, tambm sempre acrofnica: S. No se omitir de

    observar que desaparecem pela mesma ao o trao que fechava a definio saussuriana do signo como tal, e as flechas direitas e

    esquerdas que acentuavam o fato que a barra transversal era para

    ser lida tanto como trao de unio que como trao de separao6

    Para um algoritmo, isto , uma pequena mquina de alta preciso,

    isto faz muita diferena. Mas verdade que Lacan persegue

    outros objetivos, que ele avana imediatamente aps:

    a que se tornar possvel um estudo exato das ligaes

    prprias/particulares do significante e da amplitude de sua

    funo na gnese do significado.

    Pressente-se aqui o que o diferencia de Saussure, mesmo quando,

    isto dizendo, ele permanece em (um) certo acordo com as

    opinies comumente recebidas na lingstica dos anos cinqenta quando ela verdadeiramente comeou a tornar-se saussaurriana.

    Observemos bem, portanto que a questo desde j deslocada

    das ligaes entre significantes e significados (ligaes constitutivas do signo saussaurriano) s nicas ligaes entre

    5 J. Lacan, crits, op. cit., p.499 6 ibid.

    Conceito

    Imagem

    acstica

    rvore

    arbor arbor

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    3

    significantes, as quais efetuam - ou no mnimo participam da gnese do

    significado . Contrariamente a outro esquema saussaurriano das duas massas amorfas recortadas por pontilhados verticais (esquema que Lacan critica

    expressamente, por exemplo, em As psicoses7, e onde Saussure encena, sua

    maneira, uma certa homologia entre significado e significante, Lacan faz valer,

    desde o princpio, uma autonomia do significante em que os cortes prevalecem na produo de significaes nas quais aparecem ento, e somente ento, os cortes no

    significado .

    Nenhuma chuva vertical - vinda no se sabe de onde, alm disso, at esse momento no vem para Lacan cortar / recortar um mesmo movimento e o significado e o significante . Muito pelo contrrio: h o corte/recorte significante, primeiro,

    indubitvel s as correlaes do significante com o significante oferecem o padro para qualquer busca de significao8 , enquanto que o significado suposto conhecer somente um deslizamento incessante sob o significante.

    Concebe-se que aps ter-se dado (uma) tal heterogeneidade na partio significante /

    significado, Lacan encontre fina a marca de referncia saussurriana dos traos de chuva que segmentariam as duas camadas ao mesmo tempo. Toda experincia diz o contrrio, 9 acrescenta ele, lembrando seu seminrio sobre as psicoses onde ele teria avanado a noo de ponto de capitonagem para designar um tipo altamente local de fixao/ligao do significante ao significado.

    No sei o clculo, dizia ele ento em 1955, mas no impensvel que se chegue a

    determinar o nmero mnimo de pontos de fixao/ligao fundamentais entre o

    significante e o significado necessrios a que um ser humano seja normal e que,

    quando no so estabelecidos, ou que eles se soltem, fazem o psictico 10.

    A somente enaltecer a concepo de uma perfeita independncia do significante que

    cortaria sozinho na massa amorfa do significado para produzir esses elementos de

    sentido chamados significaes, e haveria risco de cair no excesso sobre esse ponto, risco de esquecer a discreta prudncia que havia levado Lacan a considerar esta independncia somente como caso limite, como neste final de seminrio sobre as psicoses:

    7 J. Lacan, Les psychoses, Le Seuil, Paris, 1981, p. 296 8 J. Lacan, crits, op, cit., p. 502 9 Ibid. 10 J. Lacan, Les psychoses. op, cit., p. 304

    Por que no conceber que no momento preciso onde saltam,

    onde se revelam deficientes as colises / os ganchos? do que

    Saussure chama/denomina (a) massa amorfa do significante

    com a massa amorfa das significaes e dos interesses, a

    corrente contnua do significante retoma ento sua

    independnica11

    Assim portanto, Lacan subverteu o achado saussurriano e, qualquer precauo que ele tome, est claro, contudo, que ele

    sustenta por indubitvel a articulao interna do estatuto do

    significante, e para, digamos, uma articulao altamente

    problemtica que seria, tambm por pouco/que seja , prpria do estatuto do significado. Na medida em que se deslize no

    algoritmo proposto por Lacan uma funo de matriz , ela retorna

    ao significante que recortaria, que informaria as ondas do significado, este significado do qual no h meio de saber, fora

    das vias do significante, se ele ou no segmentado.

    Uma tradio dividida

    Todas essas formulaes devem comear a fazer eco ao que ns j pudemos ver em duas reprises, e que capaz de nos esclarecer

    sobre esse desmoronamento de Lacan com relao a Saussurre,

    desmoronamento que deve pouco ao narcisismo da pequena diferena, mas muito a uma tradio que aqui nos interessa no

    mais aspecto mais elevado.

    Descartes no tinha sob a mo a distino significado/significante, com certeza. Mas ns o temos visto,

    desde les Regulae, atrelado ao difcil problema da figurao, e

    disso tomar um partido muito abrupto. As figuras no so a emanao, para abstrao ou qualquer outro processo intelectual,

    das coisas. Na constituio da mathesis universalis, o recorte

    das coisas que nossos sentidos nos liberam no intervem em nada, certamente, mas no h a prioridade. Uma vez que toda figura

    obtida por cifragem por iniciativa de ego, (condio de

    11 Ibid., p.330

    Pg. 151

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    4

    univocidade da mathesis ) o nico recorte que importa est na ordem do figurativo, a

    ponto que a nica dificuldade decisiva na criao das figuras deve ser a regra da

    no-equivocidade, dito de outra forma, o fato que nenhuma figura no pode ter o mesmo valor de uma outra, isto , que elas so todas diferentes desde que elas

    pretendem figurar das coisas diferentes. Esta condio respeitada, elas podem ento restabelecer do mais puro arbitrrio , uma vez que toda preocupao de semelhana que nos incitaria a medir a pertinncia de uma figura com respeito ao

    que ela figura no tem nenhum direito de cidadania na ascese egolgica de

    Descartes .

    Leibnitz, em compensao, pretendendo ele tambm esclarecer at o mais ntimo a profundidade da anlise cartesiana , faz o vapor agir do outro lado do pisto* cedendo muito menos ao arbitrrio da figurao. Foi visto que, ele no rejeita, na

    oportunidade (carta Tschirnaus) a prpria mimesis no caso em que a imagem seria uma boa representao da coisa. Pura heresia cartesiana. Por mais convencional que ele possa igualmente ser na poca, o signo leibniziano deve ser/estar

    apropriado / adequado ao objeto e sua complexidade interna12

    .

    De tal modo que desde as primeiras etapas da constituio desta lngua pura do saber que escolta o projeto cientfico sua origem, duas opes comeam a aparecer

    sobre o carter matricial dos signos ou figuras destinados a povoar esta lngua que,

    em oposio s lnguas naturais, deve eliminar a equivocidade e permitir os clculos. E esta oposio que ns j inscrevemos nos termos de figurao e de representao

    (aqui, considerado no como produto, resultado, elemento, mas como ato) no cessa

    de percorrer completamente o fio esticado entre Descartes e Lacan. Ora a figurao, preocupada com sua nica coerncia interna, vir cifrar algebricamente qualquer

    objeto do mundo sem mais considerar suas eventuais propriedades , ora a representao deixar surgir do objeto (um) certa quantidade de traos que ser

    necessrio reconhecer como figuras.

    Pudemos apreciar um novo salto de tudo isso na pequena disputa entre Frege e

    Boole via Schrder. Frege rejeita em parte a violenta crtica de Schrder que media

    12 Regra 3: Os signos devem ser concebidos de maneira tal que, por toda a parte onde se apresente um

    objeto de pensamento que pode ser dividido em componentes, os signos desses componentes so eles mesmos componentes do signo do objeto do pensamento.

    * fazer o vapor agir do outro lado do pisto , a fim de interter o sentido da marcha da mquina ( o que tem por 1o efeito frear o movimento.

    ** antiga medida de comprimento francesa alna

    sua Begriffschrift com a alna ** da lgebra boleana. Ora,

    responde Frege, a linguagem formulrio de Boole consiste em vestir a lgica abstrata com as roupas dos signos algbricos; ela no prpria para a expresso de um contedo, e tal no

    tampouco seu objetivo. A tambm a disputa no mais exatamente como aquela entre Leibniz e Descartes, pois os termos colocados em jogo , na oposio no so equivalentes

    queles que dividiam seus predecessores. Mas resta uma certa

    comunidade de conduta e Booler, Schrder e Descartes

    reencontram-se / se reconhecem juntos ao lado dos algebristas , este termo designando aqui um modo de cifragem que faz

    prevalecer a cifra sobre o objeto a cifrar, como se s o

    combinatrio da cifra fosse pertinente, digno de ateno, capaz de tomar sob sua responsabilidade quase que qualquer coisa.

    Por outro lado, Leibniz ou Frege se mostram mais nuanados e admitem, alm da atividade de fabricao das figuras, a pesquisa

    de certa adequao entre a figura e o que ela figura. dizer

    tambm que, por esse lado, no se duvidar que h, desde o incio, um mundo, e mais ainda, que esse mundo seja organizado

    (segmentado) relativamente independentemente do mundo dos

    signos chamado a tom-lo sob sua responsabilidade, desde quando no importa como.

    Entre Frege e Hilbert, a disputa/o debate ganha ainda em clareza.

    Frege, como foi visto, reivindica que seja claramente designado o

    objeto do mundo capaz de responder bateria axiomtica, esta, encontrando, ento, nesse correspondente, a garantia de sua

    consistncia. Hilbert, ao contrrio, afasta deliberadamente esta

    problemtica representacional, decreta que a bateria axiomtica (desde que ela seja comprovada como no contraditria) vale para

    ela mesma, independentemente de suas capacidades para

    representar o que quer que seja. A aposta formalista aqui levada a seu cmulo / excede seus limites , seja o ponto onde

    um sistema formal no est mais para ser concebido como o

    mapa de um territrio mundano, mas como uma parte muito observvel/notvel do prprio territrio, um objeto do mundo

    pg. 153

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    5

    como os outros para o que de seu grau de existncia, e no mais este ser diminudo (ens diminutum) que caracterizava classicamente o signo, reflexo mais ou menos veraz? do mundo.

    Assim, portanto, a subverso? de Lacan em relao a Saussure se inscreve em toda uma tradio em torno da questo do signo. Vejamos, portanto, mais de perto,

    os termos nos quais Saussure diz isto.

    O problema do arbitrrio do signo

    Uma distino essencial introduzida no CLG entre valor e significao, distino que necessria traar claramente... sob pena de reduzir a lngua a uma simples nomenclatura

    13.A despeito de certas flutuaes terminolgicas das quais Tullio de Mauro faz meno (nota 231), deve-se entender por significao a realizao do significado de um signo feito no nvel da palavra, da execuo. Ela

    marcada no esquema saussuriano do signo pelas flechas que colam significado e significante. Por outro lado, o valor de um signo estritamente diferencial: ele prende-se ao fato que esse signo necessariamente diferente de todos os outros para

    ser eficaz e pertinente na lngua. Assim, se a unio de tal significado e de tal

    significante estiver submetida lei do arbitrrio (cf. infra) , assim que o signo constitudo, ele um elemento positivo que entra no sistema de diferena que toda

    lngua, ele possui um valor. E, aqui, Saussure se interroga: Como acontece que o valor, assim definido, se confunda com a significao, ou seja, com a contrapartida

    da imagem auditiva14

    ? Isto , a contrapartida do significante, portanto, o significado.

    Comentando imediatamente aps a noo de valor, Saussure observa que todo valor

    deve poder ser trocado com qualquer outra coisa (uma palavra pode ser trocada contra qualquer coisa no semelhante/diferente : uma idia... isto , que tem tal ou

    tal significao), mas deve sempre ser comparada com qualquer coisa de mesma natureza: uma outra palavra. Ele conclui:

    Fazendo parte de um sistema, ela (a palavra) revestida, no somente de uma

    significao, mas tambm e, sobretudo, de um valor, o que coisa totalmente

    diferente15

    13 F. de Saussure, Cours de linguistique gnrale, op. cit., p. 158 14 F. de Saussure, Cours de linguistique gnrale, op. cit., p. 159 15 Ibid.,p.160

    Mas isto vlido somente para as palavras aqui tomada como exemplar do signo lingstico e no para seus constituintes significante e significado, os quais, para Saussure, no tm

    nenhuma existncia independente do fato positivo que o signo.

    Ainda que o significado e o significante, cada um tomado

    parte, seja (m?) puramente diferenciais e negativos, sua

    combinao um fato positivo.16

    Em outras palavras, no existe para o Saussure do Cours, nenhum

    sistema articulado do significante e/ou do significado exceto o fato positivo do signo. Desde o incio do captulo IV, alis, ele anunciava o que tinha a dizer:: Tomado nele mesmo, o pensamento como uma nebulosa onde nada no necessariamente delimitado(isto em oposio hiptese de uma lngua mental que se encontra em certos autores, notadamente Santo Agostinho e sua teoria do signo como encarnao da idia. Iria ele diferentemente pela face significante: os sons, escreve ele, ofereceriam atravs deles prprios, entidades do ser

    circunscritas por antecipao? Resposta sem ambigidade: No muito. E disso, evidente, que comea a se apresentar o esquema das massas amorfas j comentado.

    preciso, portanto, compenetrar-se da idia que no CLG ele no

    saberia ter a mnima articulao interna do estatuto significante ou do estatuto significado fora o signo,elemento de primeiro da

    lngua. E o que permite considerar em toda sua pertinncia a

    difcil questo do arbitrrio do signo, que tem sua importncia na

    subverso lacaniana.

    Existe uma idia admitida sobre esse ponto que no simplifica sua

    aproximao : num artigo clebre a esse ttulo17

    , Benveniste teria

    regulamentado a questo, recusando, de uma vez por todas, a

    16 Ibid., p.166 17 E.Benveniste, Problmes de linguistique gnrale, Gallimard, Paris, 1966, p. 51-55 * bf a pronncia de boeuf, em francs

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

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    pertinncia desse termo na lingstica saussurriana. Nada menos evidente quando

    faz a aproximao.

    Benveniste, tem primeiro seu modo muito particular de deslocar o termo antes de despedi-lo/manda-lo embora:

    Entre o significante e o significado, escreve ele, o elo no arbitrrio; ao contrrio,

    ele necessrio. O conceito (significado) boeuf* (boi) forosamente idntico na minha conscincia no conjunto fnico (significante) bf* Por que seria de outra forma? Juntos, os dois foram suprimidos de meu esprito; juntos eles

    se evocam em todas as circunstncias. 18

    Partindo de uma tal petio de princpio **, tudo dito, ou quase. Com efeito, prossegue Benveniste, se o arbitrrio no para ser procurado a, pois porque

    Saussure o colocava, no entre significante e significado, mas, de fato entre o signo

    e a realidade extra-lingstica designada pelo signo (e verdade que certos exemplos dados por Saussure caem nessa crtica ). Se o que se chama boeuf pode assim como se chamar em outro lugar ox, ento sim, h algum arbitrrio entre um signo e o

    que ele denota. Mas, diz ainda Benveniste, isso s s demasiadamente verdade e portanto pouco instrutivo. E, de repente, o arbitrrio saussuriano assim entendido- cai na crtica do relativismo cultural. Falar de arbitrrio nesse sentido

    (que Benveniste isola para seus prprios fins) permite-o escrever: Isso equivale dizer que a noo de luto arbitrria porque ela tem como smbolo, o preto na Europa, o branco na China. Quaisquer que sejam os mritos de Benveniste lingista, esse passe de mgica no resolve em nada o problema posto por Saussure.

    A despeito, a tambm, freqentes ambigidades, Saussure afirma vrias vezes claramente que o elo que une o significante e o significado radicalmente arbitrrio19. Ora, se se quiser bem admitir que arbitrrio apela a noo de ato, a dificuldade para receber um tal arbitrrio imediatamente perceptvel logo que se

    faz a pergunta: qual poderia bem ser o momento desse ato onde se encontrariam juntos, arbitrariamente, portanto, (isto , de maneira imotivada ) um significante e um significado? Por onde se percebe imediatamente que o espao mesmo dessa

    questo pois que ela supe um tempo, to breve que se querer, onde um sujeito teria em sua possesso um significante de um lado, um significado de outro, sem

    estar para tanto ainda em possesso do signo onde esses dois buscariam ento, e somente ento, se unir. Eis a verdadeira dificuldade, e pode-se disso se convencer,

    18 Ibidem., p. 51 ** raciocnio vicioso que consiste em manter verdadeiro o que se trata precisamente de demonstrar 19 F. de Saussure, Cours de linguistique gnrale, op.cit., note 136

    tornando-se atento s razes pelas quais Saussure,

    cuidadosamente, sempre preservou-se de utilizar a palavra mais

    codificada desde Plato nesta problemtica, a saber a do convencionalismo . O convencionalismo supe de fato que estejam disponveis um thesaurus (um tesouro) de unidades lingsticas pr-recortadas, e um mundo de objetos eles prprios pr-recortados, podendo ento, ser considerada a colocao em

    relao, unidade por unidade, seja como estritamente

    convencional, seja como correspondendo a algumas razes

    necessrias entre a escolha de uma palavra e a natureza do que ela designa. Para um lingista como Saussure, o no-emprego da

    palavra convencional s pode ser o resultado de uma vigilncia particular a esse respeito: ele, que recusava a noo de lngua como nomenclatura, colocando em relao palavras e coisas, no

    podia, em nenhum caso, usar tranqilamente esse vocbulo.

    Mas, no mais, ele no o emprega para dizer a aparelhagem entre

    significado e significante, consciente que ele podia estar de que uma tal palavra pressupunha, a tambm, a existncia de

    segmentaes intrnsecas a cada uma das ordens e,

    secundariamente, a ligao termo a termo das unidades assim pr-formadas . Ora, viu-se, ele ope-se explicitamente a uma tal

    concepo, sustentando que significado e significante so

    somente, como tais, massas amorfas. De sorte que, a palavra arbitrrio toma totalmente um outro relevo se verdade que ele designa, a propriamente falar, um ato impossvel e isso na exata medida em que ele implica a anterioridade de um

    significado e de um significante ao signo que , alm disso, o nico a dar-lhe uma existncia localizada.

    No concluamos demasiadamente rpido, entretanto, como

    Benvenisiste, que esta noo no serve para nada pois que a insistncia de Saussure sobre o termo inegvel. De preferncia,

    convm a ele aperceber-se que esta palavra para ele somente um

    mito de origem, to necessrio e impossvel quanto o homicdio / a pena do pai freudiano. Impossvel, acaba-se justamente de ver

    o porqu. Mas, necessrio, tudo quanto, pois que ele o nico a

    poder dizer a aparelhagem local do significante e do significado

    sob uma perspectiva gentica do signo, o nico a poder dizer a

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

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    partio do significado e a partio do significante antes que eles concorram no

    signo? Ora, Saussure dedicado a postular uma tal anterioridade porque, tendo

    posto o signo em seus constituintes, em vo ele os disse negativos , ele no pode fazer mais do que lhes dar um mnimo de existncia localizada fora da sua

    combinao no signo, e precisamente o que a palavra arbitrrio vem tomar sob sua

    responsabilidade: esta sombra de existncia de um fragmento significado e de um fragmento significante, exatamente o que vem figurar, no esquema das massas amorfas, os traos verticais descontnuos (a descontinuidade grfica sempre um pequeno ser , um ser em furos: uma suposio).

    Por que ento, um tal mito de origem se bem o caso em Saussure? No se pode aqui arriscar uma hiptese: como muitos outros mitos desta ordem, este visa a

    separar o lugar de um sujeito, precisamente de um sujeito fabricador da lngua. A

    grande oposio saussuriana lngua/palavra no basta, com efeito, para prestar conta da perptua dependncia * de uma lngua, da incessante criao de signos novos

    atravs de unies de significantes j disponveis (j fragmentados, localizados) a

    significados eles mesmos mais ou menos pr-existentes. Nesse cadinho (?)

    inventivo da lngua, Saussure no pode fazer menos do que alojar um sujeito, ao invs de adiant-lo sob esse termo muito difcil de sustentar, ele nomeia o modo de

    ato segundo o qual ele opera: arbitrrio. Ele distingue, alis, muito entre o

    arbitrrio relativo, aquele em que os mecanismos da lngua regulam uma parte da fabricao do signo (e.g.: Assim, vinte imotivado, mas dezenove no o no mesmo grau porque ele evoca os termos dos quais ele se compe e outros que lhe

    so associados [ ...] tomados separadamente, dez e nove esto no mesmo p que vinte, mas dezenove apresenta um caso de motivao relativa

    20), e o arbitrrio absoluto, em que a lngua se revelaria incapaz de explicar racionalmente a produo de uma palavra, esta, remetendo ento a um impensvel sujeito que vem

    dizer a palavra do arbitrrio absoluto.

    Esta palavra arbitrrio pode assim ser lida como o lugar de uma operao complexa

    da qual se compreende que os lingistas tenham em seguida buscado se separar na

    sua ambio de fundar uma lingstica cientfica. Saussure, ele prprio, dava como horizonte lingstica cientfica que ele chamava de seus votos ( votos dele)

    A limitao do arbitrrio. a melhor base possvel [ ...] . Se o mecanismo da

    lngua era/fosse inteiramente racional, poder-se-ia estud-lo ele mesmo / estudar

    20 F. de Saussure, Cours de Linguistique gnrale, op, cit., p. 181 * mouvance : estado de dependncia de um domnio/ feudo,. o contrrio de um bem prprio.

    nele prprio; mas como ele s uma correo parcial de um

    sistema natural catico, adota-se o ponto de vista imposto pela

    natureza mesmo/ prpria natureza da lngua, estudando esse

    mecanismo como uma limitao do arbitrrio. 21

    Sua pesquisa sobre os anagramas testemunha muito sobre esta

    paixo por desalojar um hipottico sujeito para, limitando o arbitrrio, instalar nesse lugar mais clareza racional. Sabe-se

    agora, por Starobinski, at onde Saussure fez progredir este

    questionamento, o silncio hostil ao qual suas pesquisas se chocaram, seu abandono final. Mas a luz trazida por esse

    trabalho nos mostra um Sausurre atormentado por esta questo do

    sujeito: nesses jogos anagramticos que ele se aplica a ler,

    preciso ainda a postular um sujeito (mais ou menos intencional, Saussure no tem outra disposio), ou continuar a ver a somente

    fatos de uma tal contingncia que ele afasta toda idia de sujeito?

    A pergunta permanece para ele aberta.

    Uma tal perspectiva pode nos permitir compreender porque Lacan

    recusou, ele tambm, este arbitrrio no tempo mesmo onde ele se

    dedicava a introduzir uma nova concepo do sujeito que Saussure, certamente, no tinha nenhuma possibilidade de colocar

    em jogo.

    21 Ibid., p 182-183

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    8

    3.2.2. Introduo lacaniana do sujeito * Aps ter dado prevalncia ordem significante, Lacan volta a falar da questo que

    a sua nessa Instncia da letra, ou seja, a do sujeito, uma vez que se trata, nisso tudo, no de teorizar sobre a lngua e suas estruturas, mas de ver em que a operao

    da lngua acarreta a determinao de um sujeito.

    Mas todo esse significante, diro s pode operar por estar presente no sujeito.

    justamente a isso que respondo ao supor que ele passou ao patamar do significado22.

    Se o ele da ltima proposio pode ser equvoco, a coisa /est no se pode explicar doze pginas mais longe/ frente, quando se trata da metfora:

    Essa transposio exprime a condio da passagem do significante para o significado

    cujo momento assinalei, mais acima, confundindo-o provisoriamente com o lugar do

    sujeito. na funo do sujeito, assim introduzida, que devemos deter-nos agora, pois ela

    est no ponto crucial de nosso problema23.

    , portanto justamente do posicionamento do sujeito vai-se progressivamente ver o que Lacan, ao longo dos anos, colocou nesse termo que se vai falar, a partir deste momento. Mas um ltimo ajuste vai permitir que nos aproximemos claramente do ponto de divergncia com Saussure:

    [...] o S e o s do algoritmo saussuriano no esto no mesmo plano, e o homem se

    enganaria ao se crer situado no eixo comum a ambos, que no est em parte alguma24.

    (aqui, se continuarmos: isso pelo menos at Freud haver feito sua descoberta. Pois se o que Freud descobriu no exatamente isso no nada = anotao da Cia)

    *traduo feita para estudo por Tereza Maluf, Conceio Azenha e Viviane Veras

    (IEL/Unicamp/1o. sem/2004) 22 J. Lacan, Escritos, op. cit., p. 508. 23 Idem, p. 519. 24 Idem, p. 521.

    Com a sada dos pequenos tratos verticais descontnuos das duas

    massas amorfas atravs dos quais Saussure ns conjeturamos enganchava, com sua palavra arbitrrio, um tipo de sujeito ao qual Lacan deliberadamente volta s costas.

    Eis, portanto, para comear, nosso sujeito (tiraremos as aspas quando a significao desse termo tiver se tornado clara) na

    mesma situao embaraosa do significado. Isto no tem sentido

    seno porque Lacan parte nitidamente da idia jamais enunciada como tal por Saussure de uma autonomia do significante na gnese do significado. O sujeito pode ser posto por ele no lugar do significado pela nica razo de que so

    todos dois apreendidos como efeitos da combinatria significante.

    Mas, o que pode haver de provisrio em uma tal localizao do sujeito ? E, correlativamente, o que que pode designar essa aberrao saussuriana de uma passagem do significante ao significado? Enfim, Lacan falou em vo do significante e do

    significado como absolutamente distintos, a reflexo de Benveniste com relao a Saussure vale para todo: no h meio

    de se tomar um sem tomar o outro, tanto que no se saiu do

    signo no qual eles esto indissoluvelmente ligados. e Lacan tomou a precauo de fazer saltar a oval que encerrava o signo

    saussuriano, assim como as flechas que soldavam significado e significante, seu algoritmo continua a ser o do signo e no

    permite tomar parte um significante qualquer sem seu significado. Enquanto o significante for tomado como constituinte

    do signo, no h esperana de querer alcanar sua dinmica

    prpria.

    Vrias formulaes de Lacan no decurso dos anos cinqenta

    permitem freqentemente supor que ele no confunde signo e significante

    25, preciso esperar 1961 e seu seminrio sobre A

    Identificao (indito) para ver claramente expressas as

    definies do signo e do significante que autorizam tratamentos

    25 J. Lacan, Les psicoses, op. cit., p. 504

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    9

    separados. Nosso sujeito est evidentemente nas primeiras fileiras de uma tal clarificao.

    Signo e significante : a partio

    Aquilo de que se trata deve ser propriamente, na identificao, a relao do sujeito ao significante

    26. Eis o que est claro: com a operao identificao , Lacan se sente convocado a resolver uma questo que, devido a alguns retornos ao menos de

    seus alunos mais atentos, ele podia saber que ela era muito mal compreendida .

    bem verdade tambm, que esse termo sujeito (aqui sem aspas) particularmente equvoco na lngua francesa, acolhendo tanto o sujeito (assunto) de uma tese quanto

    o sujeito rei da Espanha, sem esquecer o sujeito transcendental, o psicolgico, o

    fenomenolgico etc. A coisa se precisa ainda durante a primeira sesso, quando Lacan declara:

    [...] nada mais sustenta a idia tradicional filosfica de um sujeito, seno a existncia

    do significante e de seus efeitos [...] [aqui, o tradicional remete a Descartes, ao qual retornaremos. Ele prossegue:] uma tal tese [...] exige que experimentemos articular de

    uma forma mais precisa como concebemos efetivamente essa dependncia da formao do

    sujeito em relao existncia de efeitos do significante como tal.

    Aqui, pequeno problema de transcrio: como tal ou como tais? Optar-se-, no momento, de bom grado, pela tese considervel que exprime aqui o singular,

    registrando que Lacan no se enganava em sua conta:

    quase fatal que eu seja levado a retornar a esse ponto [este ponto =Saussure] pois que

    no podemos dar um passo a mais sem tentar aprofundar esta funo do significante e,

    conseqentemente, sua relao com o signo.

    Tratar-se-ia ento de seguir as pegadas dos lingistas? Claro que no!

    Vocs devem contudo, desde j, saber: [...] que de fato, a posio que eu tomo aqui em

    adiantamento, diretamente em relao de Jakobson concernente primazia que dou

    funo do significante em toda realizao, digamos, do sujeito.

    E, tendo tomado a precauo de pr momentaneamente de lado tudo o que pode ser da

    ordem da identificao imagem (ponto longamente tratado por ele em seminrios

    26 J. Lacan, Lidentification, 15 de novembro de 1961, indito.

    anteriores), pergunta sobre a identificao dita simblica, atacando

    as coisas na raiz, isto , a prpria definio da identidade: A A. Isso, diz ele, significa nada. O no aqui no est faltando, pois que prossegue: justamente desse nada que se vai tratar, pois esse nada que tem valor positivo para dizer o que isso significa. Lembra ento o clebre jogo do fort-da, substituindo o carretel por uma bola de pingue-pongue que se empenha em escamotear:

    Eu a pego, eu a escondo, eu a mostro novamente [ a um suposto

    beb]: a bola de pingue-pongue a bola de pingue-pongue [...] . Que

    relao vai haver entre o que une as duas aparies da bola e essa

    desapario intermediria?

    E a esta questo, assim formulada, que Lacan responde por um dos segredos da identificao, a saber: essa assuno espontnea pelo sujeito da identidade de duas aparies, todavia muito

    diferentes.

    Certamente, a bola de pingue-pongue no um significante,

    observa bem Lacan, um objeto. Essa histria s uma aproximao no sentido de articular esse estatuto do significante como tal (na passagem: a est! nosso problema de transcrio est definitivamente resolvido). E est claro desde j que esse estatuto

    vai implicar o do sujeito, segundo uma ligao tornada explcita pelo aplogo da bola de pingue-pongue: sujeito a resposta que, pela mediao verbo ser, faz a solda entre duas aparies essencialmente diferentes, essa soldagem que vem dizer: o mesmo sobre fundo de diferenas. Assim, portanto, a identidade da letra a ela mesma credo lgico se ele faz parte no apresentada por Lacan como um dado de base, mas como qualquer coisa de construda a partir de diferenas primeiras, em uma

    operao que se nos apresenta agora como o lugar mesmo desse

    sujeito que Lacan busca a introduzir aqui. Por que a bola de pingue-pongue no passa de uma aproximao

    enganosa? que, como objeto, somos levados a pensar que ela

    perdura, que se mantm idntica a ela mesma, e que as nicas diferenas nesse jogo de esconde-esconde so diferenas espao-

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    10

    temporais. Ora, um pouco cedo para localizar o sujeito que Lacan quer utilizar.

    Ele se volta ento para o significante saussuriano que no definido como idntico a ele mesmo, mas de sada como diferente de todos os outros. Ele s vale relativamente

    a uma bateria e designa tanto o que ele no (os outros significantes) quanto o que ele

    . Essa no-identidade do significante a ele mesmo o legado mais precioso de Saussure para Lacan, que no hesita ento em dizer:

    no prprio estatuto de A [a compreender aqui como letra na expresso A A] que est inscrito que A no pode ser A .

    Mas de novo reincidimos na aporia encontrada anteriormente: como ento, apoderar-se de um significante como tal, uma vez que, at o momento, no conhecemos dele nenhuma existncia localizada fora do signo em que confina sem parar com seu

    significado? aqui tambm, nesse seminrio de 6 de dezembro 1961, que Lacan

    introduziu sem maiores rodeios sua questo: O que um significante? (No mais o , mas um significante.)

    Primeira resposta: para suportar o que se designa, preciso uma letra [...] e vou me esforar para lhes mostrar na letra, justamente essa essncia do significante pela qual ele se distingue do signo. E eis, sem tambores nem trombetas, introduzida a escrita (to ausente, to inessencial no Saussure do CLG) na abordagem da questo do

    significante, essa escrita que se encontra nas sesses posteriores deste seminrio, especialmente naquelas relacionadas questo do nome prprio. A escrita, para

    Lacan, tambm a chinesa, que ele ia aprender em frente de sua casa, no Instituto de

    Lnguas Orientais, e ei-lo falando de duas caligrafias idnticas de sete caracteres cada

    uma, o que lhe permite observar a funo do trao nesse contexto: o chins mais ignorante, diz ele, pode bem observar que so os mesmos sete caracteres, quando

    evidente que os traos apresentam importantes diferenas qualitativas. Estaria a a

    no-identidade a si do significante? No mais que as diferenas espao-temporais das aparies da bola de pingue-pongue. Simplificando ainda esses exemplos, Lacan

    volta fileira de pedaos de giz na escola maternal para precisar: no so as suas

    diferenas qualitativas que fazem sua no-identidade.

    E a, surge, ao longo desse seminrio, um acontecimento enunciativo que me parece

    significativo. At aqui, o propsito foi, digamos, essencialmente, terico; ele vai

    subitamente tornar-se quase ntimo.

    Ide ento, diz Lacan a seus ouvintes, ao museu Saint-Germain.

    fascinante, apaixonante [...] um lugar deveras

    extraordinrio[...]talvez, depois de tudo, em meu nome esse deserto

    vos animar [...]

    O que ento que se pode ver a, nesse museu? [...]sobre um osso de costela delgado, manifestamente um osso de

    mamfero [...] uma srie de pequenos bastes: dois no incio, depois

    um pequeno intervalo, e, em seguida, cinco, e depois isso recomea.

    Eis, eu pensava comigo mesmo, atravs de meu nome secreto ou

    pblico, eis por que tua filha tua filha, pois, se fssemos mudos,

    ela no seria absolutamente sua filha!

    Emoo, colocao em jogo do sujeito atravs do apelo do nome, leis da filiao em suas relaes com a fala e a linguagem...

    demais!? (A partir da, no de assombrar que as sesses

    seguintes do seminrio busquem resolver a difcil questo do nome prprio em suas relaes com o sujeito e com o

    significante, dois anos antes do famoso no-seminrio dos Noms-

    du-Pre). Mas, verdade tambm que o essencial aqui est no

    que concerne a responder pergunta O que um significante? Visto que esses entalhes no s resultam do trabalho de uma mo

    humana, mas se apresentam como traos... dele impossvel

    saber. Houve um (animal morto? morte na horda? lunao?) depois um, e mais um... e algum (exterior primeira srie) para

    inscrev-lo. Emoo do visitante nomeado Jacques Lacan (nome

    pblico), elevado classe desse algum. A identificao simblica no implica menos emoo que a imaginria, mas ela

    desvela tambm na circunstncia seu fundamento em que essa

    srie de entalhes, se ela faz signo a qualquer visitante atento, no

    para ele composta de signos. Para aquele que inscreveu os entalhes, cada um era um signo, cada um designava o objeto que

    ele tomava em considerao; mas, para ns, visitantes do museu

    Saint-Germain, esse elo est irremediavelmente rompido. A dissoluo desse elo que ligava o signo coisa que ele estava

    encarregado de representar a condio do surgimento de um

    significante como tal. O significante literalizado no mais o que

    est para ser posto como estando logicamente antes do signo

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    11

    (como um de seus constituintes), mas o que surge do apagamento da relao entre o

    signo e a coisa, seu referente, o que Lacan denomina

    os diversos apagos se os senhores me permitem servir-me dessa frmula dos quais vem luz o significante, [de que] daremos os modos maiores da manifestao do sujeito.

    Assim, portanto, signo e significante comeam a encontrar seu estatuto respectivo

    relativamente a um terceiro termo. O signo , portanto, a partir de ento, o que

    representa alguma coisa para algum. Como freqentemente em Lacan (nisso muito hilbertiano), os prprios termos da definio se interdefinem: esse algum que no participa dessa definio do signo no mantm alhures sua existncia, ele o que acessvel a um signo, ou seja, o lugar em que se faz a diferena e a relao entre o signo e sua coisa (nome que Lacan empresta ao referente como resto da operao de apagar que isola o significante como tal).

    Um sujeito pode ento se revelar quando o signo apagado tornado incapaz de dizer de que ele o trao deixa aparecer, no mais o, mas um significante. O que suposto por Lacan, alm disso, que quando o referente se encontra assim

    ausentificado, reduzido coisa, o significado se indiferencia a ponto de tornar-se nada (cf. supra), deixando todo o lugar para o significante. Esse significante, no idntico a ele mesmo, somente diferente de todos os outros que ele implica por sua

    existncia localizada, a prova de fogo de Lacan, revient a poser en dessous a supor-lhe um sujeito, um novo sujeito: no mais aquele que suporta o elo do signo a seu

    referente, que alinha signo e referente, mas um sujeito que faz elo entre significantes como tais, de modo que de um significante para um outro haja relao, uma relao no mediada pelo mundo referencial, seus objetos e suas coisas .

    Essa promoo do significante, no mais em lenol nem em massa amorfa , mas em cadeia de elementos discretos, permite a Lacan recolocar a questo do sujeito

    como o que faz elo, no mais entre representantes, uma vez que os apagos dissiparam a liga representativa do signo a sua coisa, mas entre significantes literalizados. E esse significante como tal expresso que no cessa de se circular durante o seminrio Lacan j nos havia advertido de que para suportar o que se designa, preciso uma letra . Aqui, no se entrar muito no detalhe da histria da escrita: dela vamos reter

    somente que a emergncia de um alfabeto pode ser tida como um dos grandes

    apagos da humanidade. por isso que a entrou um certo nmero de signos, no funcionamento dito do rebus de transferncia

    27; ao notar unicamente seu som, as ligaes s coisas que eles designavam anteriormente se romperam, seu

    significado tendendo ento a zero, a nada. A histria da letra

    para Lacan o apoio mais seguro para justificar a existncia dos apagos: porque com respeito a certos signos, foi posto em evidncia seu valor significante (fnico), o referente

    primitivamente denotado tinha sido apagado, no deixando de um lado mais do que a coisa (dita mais tarde tambm objeto metonmico) e, de outro lado, o significante como tal, localizado na forma da letra. Esse nascimento da letra se deve a

    uma inverso que Lacan comenta a propsito de determinado ideograma da escrita chinesa :

    [...] articulado an, o sujeito que olha esse ideograma o nomeia

    an pelo fato de que ele representa o cu, mas o que vai resultar

    disso, que a posio se revira: que, a partir de um certo momento,

    esse ideograma do cu vai servir, em uma escrita de tipo clssico, para suportar a slaba an que no ter mais nenhuma relao,

    nesse momento, com o cu.28

    Isso vale para as escritas ideogrficas, mas Lacan amplia o

    quadro lembrando os trabalhos de Sir W. M. Flanders Petrie iluminando o fato de que os traos que formam letra na seqncia

    parecem ter sido, primeiro, marcas distintivas, tanto que Lacan,

    por sua vez, conclui:

    A escrita como material, como bagagem, aguardava l [...] a

    escrita esperava ser fonetizada, e na medida em que ela

    vocalizada, fonetizada como outros objetos, que ela aprende, a

    escrita, se posso dizer, a funcionar como escrita.

    De modo que a letra, a letra da escrita, aparece, na perspectiva que desenvolve ento Lacan, no somente como suporte desse

    famoso significante como tal, mas como seu verdadeiro

    27 Cf. J. Allouch, Lettre pour lettre, Ers, Toulouse, 1984, p. 153 e segs. 28 J. Lacan, Lidentification, 20 de dezembro de 1961, indito.

  • A incompletude do simblico Gay Le Gaufey Lacan: o sujeito da letra

    12

    prottipo. Pode-se falar de um significante porque a letra nos apresenta um modelo

    do esvaziamento do referente que reduz a nada o significado, para nos apresentar somente consistncia significante: a letra, escreve Lacan em uma frmula para no ser esquecida, a saber a estrutura essencialmente localizada do significante

    29. Isto posto, a coisa pode ento se concluir rapidamente :

    O significante, ao inverso do signo, no o que representa qualquer coisa para

    algum, o que representa precisamente o sujeito para um outro significante.30

    Primeira ocorrncia parece que da clebre frmula que co-define significante e sujeito (doravante sem aspas). O essencial a no deixar escapar na emergncia

    desta frmula, o que o prprio Lacan nomeia, bem no final do seminrio de 20 de dezembro:

    o nascimento do significante a partir do qual ele o signo. O que ele quer dizer?

    aqui que se insere como tal uma funo que a do sujeito, no do sujeito no

    sentido psicolgico, mas do sujeito no sentido estrutural.

    Esse sujeito estrutural, onde ele encontra lugar na tradio freudiana qual se refere ento claramente Lacan? Concluamos esta questo antes de investigar em

    Descartes.

    Traduo para estudo feita por Tereza Maluf e Conceio Azenha

    Unicamp/IEL/ maio-2004.

    29 J. Lacan, Escritos, op. cit., p. 505. 30 J. Lacan, Lidentification, 6 de dezembro de 1961, indito.