Louis Lavelle Da Santidade

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  • 7/29/2019 Louis Lavelle Da Santidade

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    Louis Lavelle Da Santidade

    I. OS SANTOS EM MEIO A NS

    Os santos esto em meio a ns. Mas no logramos sempre reconhec-los. No cremos quepossam habitar nesta terra. Pensamos que eles deixaram-na. Invocamo-los como se estivessemtodos no cu, deles s podendo esperar graas invisveis e sobrenaturais. Seria muita ousadiaquerer imit-los: nosso nome de batismo nos sugere apenas a idia de uma proteo que elesnos poderiam dar; eles tornaram-se ministros de Deus e os dispensadores de seus dons.Contudo, sua morte que faz deles santos, ela que realizou a transfigurao espiritual semque seriam to-somente homens como ns. Nesse momento, esto de tal modo purificadosque deles s subsiste uma vaga idia de uma virtude que incarnaram e que despertam em ns,por meio de sua imagem, sem que possamos esperar igual-los. Para ns, seria derisriopensar que um homem que pudemos ver e tocar, de que observamos as fraquezas, os ridculose as faltas, que se misturou com nossa vida e cuja fronte no possuia aurola, tenha trilhado

    nossa presena o caminho da santidade sem que houvssemos sabido algo. Todavia, asantidade invisvel na terra como no cu, e muito mais difcil de discernir quando se revestedas aparncias que quando temo-la em nosso pensamento como uma imagem ou idia.Todavia, o santo no um puro esprito. No poderamos confundi-lo com um anjo. Mesmo amorte no poderia fazer dele anjo. Pois a santidade pertence, antes do mais, a terra. Elatestemunha que a vida que levamos aqui, totalmente mesclada com o corpo, com suasfraquezas, com suas trivialidades, capaz de receber o reflexo de uma luz sobrenatural, quepode adquirir uma significao que a ultrapassa, que nos ensina no apenas a suport-la, masa quer-la e am-la. Sempre se nos d que o santo um ser de exceo, que se apartou da vidacomum, que no participa mais de sua misria e que vive em comunho s com Deus, nomais conosco. Mas isso no verdade: por viver em comunho com Deus, ele nico homemque vive em comunho conosco, enquanto todos os outros permanecem, at certo ponto,apartados.Nenhum sinal exterior o distingue do passante, sobre que nosso olhar no se detm.Aparentemente, sua vida parece a vida de todos os homens. Vemo-lo preocupado do deverque lhe foi confiado, de que se no parece desviar nunca. No recusa nada do que lhe proposto: tudo o que lhe oferecido -lhe ocasio. Est pronto a todos e a cada um, de umamaneira to espontnea e to natural que s faz acrescentar sociedade que ns mesmosformamos. No vemo-lo, como se pensa que deveria ser, renunciando natureza, ou que osdefeitos de carter se lhe acham vencidos e anulados. Pode ser violento e colrico. Ainda estsujeito s paixes. No busca, como tantos homens, dissimul-los. V-lo submetido a eles

    um como escndalo que nos afasta consider-lo santo, inclinando-nos a considerarmo-nossuperiores.Podemos dizer, sem dvidas, que mortifica essas paixes, mas elas so uma condio, umelemento de sua santidade. J que a santidade , em si, uma paixo ou, se essa palavra choca,uma paixo convertida. Na paixo, h uma fora de cuja santidade necessita para afastar-se dopreconceito e do hbito. A paixo sempre cria razes no corpo ela que o eleva e o leva paraalm dele mesmo. No h nada mais belo que ver este fogo que se alimenta de materiaisimpurssimos, cuja chama produz muita luz, no alto.

    II. O SANTO SEMPRE VAI AT AO SEU PRPRIO ABSOLUTO

    Em cada um dos homens que nos cercam, h um santo em potencial, mas no vir a s-losempre. Nele tambm h um criminoso ou um demnio em potencial. A angstia em que

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    vivemose que a maioria dos modernos pensam que est na prpria conscincia exprime aincerteza de saber se um ou outro trinfar algum dia. Os jansenistas sentiram-na. O mais dasvezes, pesamos poder nos contentar de uma vida mediocre em que s teramos tarefas banaisa cumprir, interesses temporais a satisfazer. inerente ao santo ir sempre at ao seu prprio

    absoluto. No existe homem cuja vida esteja to prxima dos movimentos espontneos danatureza: ele est, por assim dizer, entregue; de si que tira todo seu mpeto. Ora, podemospensar que ele combate essa natureza, mas antes deve-se dizer que impele todos os impulsosao ltimo grau, at quele em que eles lhe do uma satisfao plena, cumulando-o. Obriga-oassim a ultrapassar os limites da natureza de sorte que, por esta feita, a natureza atinja nele ofim para que se inclina. Assim vemos o matemtico, na idia de limite, levar ao infinito umasrie de termos e, contudo, super-los. Da mesma forma, o santo nunca os pe em jogo, mass nos sugere os sentimentos mais familiares: nenhum homem nos to acessvel. Ele far umuso extraordinrio desses sentimentos: conseguir preencher toda sua potncia to-somente aofor-los a fim de se realizarem a superar o emprego para que os consagramos at ento;no momento em que se perfeccionam, parecem que se renunciam ou que se transformam em

    seu contrrio. Assim, reconhecemos no santo todos os impulsos da natureza, e, apesar disso,no os reconhecemos. um erro pensar que ele s os combate, pois a natureza tambm vemde Deus. O santo a sobrenaturaliza. Encontra nela sua origem, destino e sentido. Semdificuldades compreendemos que quem fica preso no interior da natureza no pra de serebaixar, aviltando todas as foras que a natureza deu a sua disposio. O divino e odemonaco so compostos dos mesmos elementos. Uma simples inflexo da liberdade basta atransmutar um no outro. na vida do esprito que a vida da natureza recebe a verdadeirarealizao. No ver que a natureza uma figura desfigur-la, recusar todo valor imanncia, em vez de querer permanecer a, no divisando que ela vem da transcendncia,que ela vai para a transcedncia, e prpria transcedncia que d um acesso furtivo eprecrioque somente a morte pode aperfeioar.

    III. O SANTO INDIFERENTE CONDIO HUMANA

    Revelar-nos a relao entre os dois mundos, i. , entre o material e o espiritual, prprio santidade, ou ainda, mostrar-nos que s h um mundo, mas que esse possui uma face obscurae outra luminosa, e que de tal ordem que podemos deixar-nos seduzir pela sua aparncia com que no cessamos de passar e morrer, ou penetrar at sua essncia, que se nutre dessamesma aparncia e dela revela-nos a verdade e a beleza. O santo est na fronteira dos doismundos. Ele , em meio ao visvel, a testemunha do invisvel que trazemos ao nosso cerne e

    que o visvel esconde ou revela, conforme a direo do olhar. Convm pois que o santo vivaem meio a ns, que se adstrinja a todas as misrias da existncia, que parea at mesmooprimido por elas a fim que todas as grandezas da terra nos paream indiferentes, indicandode maneira notvel que os verdadeiros bens esto alm. Desta feita pensamos amide que nacontrariedade que a vida lhe impe, no sofrimento que recebe ou que se inflige a si, nastorturas ou no martrio, que a santidade manifesta melhor sua essncia. no martrio quecaptamos melhor a pureza da testemunha. Mas h outras formas de testemunho que possuemcarter mais secreto. Nem todos os santos so chamados ao martrio. Mas a imaginao temnecessidade dos grandes exemplos para medir a distncia entre a santidade e o triunfo. Asantidade um grande triunfo espiritual, indiferente a qualquer outro, desprezando-o.

    Ningum escolhe a condio que lhe ser disposta, nem as exigncias que lhe podero impor.A santidade pode estar no trono, onde reconhecemos quase unanimemente que as dificuldadesque encontra so maiores. Ela se esconde sob o hbito do mendigo, onde estamos amide

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    mais inclinados a encontr-la. Ningum sabe se convm mais esforo para escapar aodemnio do orgulho ou ao da inveja. Em verdade, comprazemo-nos em ver o violentocontraste entre a santidade e a condio que lhe imposta: ela nos parece de modo maiscomovente, seja ao pncaro da grandeza humana esquecida e desprezada, seja ao ltimo

    estado da misria humana aceita ou amada. Ser naturalmente invisvel, tal como o mundoespiritual em que ela nos convida a entrar, peculiar santidade. A santidade do mendigo oudo rei no se d a conhecer sob os traos do mendigo ou do rei. Pois inseparvel dumaatitude interior que lhe emprestamos, encontrando em ns um misterioso eco: assim omendigo e o rei semelham-se ao santo desconhecido com que caminhamos todos os dias, semque nenhum sinal no-lo faa reconhecer.O santo pode ser um sbio, um telogo, um fundadorde ordens, mas no por isso que santo, ainda que a santidade encontre expresso em todasas obras que realiza, como encontraria na maneira de governar ou de estender a mo.

    O santo pode ser o homem do povo que parece absorvido das mais simples necessidades, porsua vez solitrio e aberto a todos, e cuja vida exterior parece reduzir-se a alguns hbitos de

    que, por vezes, nos surpreendemos; ou ainda um gesto simples, familar e inesperado, e quecontudo resolve, como se tudo s dele dependesse, uma situao que at ento pareca-nosinextrincvel; ou ainda um sorriso profundo e luminoso que, sem mudar em nada o estado dascoisas, modifica entretanto a atmosfera por que as enxergamos. O santo faz, para ns, da vida,um milagre perptuo, mas que, sem desordenar em nada a ordem natural, revela-se-nos,atravs dessa mesma ordem, por uma como transparncia.