Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO A TRÁGICA MÍMICA DE OTELO ...travessiasinterativas.com.br/_notes/vol14/Travessias-Interativas-n... · Travessias Interativas, vol. 14, 2017/2 Luiz

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    Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO

    A TRGICA MMICA DE OTELO

    THE TRAGIC MIMICRY OF OTHELLO

    Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO 1

    Resumo: O presente artigo apresenta uma anlise do drama Otelo, o mouro de Veneza, de William

    Shakespeare, tendo como referncia noes da crtica ps-colonial. A anlise empreendida busca

    traar em Otelo, atravs do conceito de mmica elaborado por Homi K. Bhabha, uma ilustrao,

    de peculiar violncia, dessa repetio/identificao diferenciada da subjetividade colonizada

    diante de seu modelo civilizacional.

    Palavras-Chave: Literatura. William Shakespeare. Estudos Culturais. Crtica Ps-Colonial.

    Abstract: This article presents an analysis of William Shakespeare's drama Othello, the Moor of Venice. This study is structured according to the assumptions of postcolonial criticism. The analysis aims to trace in Othello, through the concept of mimicry elaborated by Homi K. Bhabha,

    an illustration, of peculiar violence, of this differentiated repetition/identification of the colonized

    subjectivity before his civilizational "model".

    Keywords: Literature. Shakespeare. Cultural Studies. Postcolonial Criticism.

    Otelo, o mouro de Veneza, tragdia escrita por William Shakespeare,

    aproximadamente em 1603, , ao lado de A Tempestade,2 um dos dramas shakespearianos

    mais abordados pelos estudos ps-coloniais. Embora sua trama se atenha ao trgico cime

    do general Otelo e o ardil que o desperta, elaborado de modo majestoso pelo

    maquiavelicamente cativante alferes Iago, outras temticas podem ser depreendidas na

    leitura da obra, como questionamentos pertinentes ao incio das relaes coloniais na

    Inglaterra elisabetana3 e, principalmente, como veremos, a questo da constituio da

    identidade do sujeito colonizado.

    Deste modo, buscaremos desenvolver nosso argumento em duas etapas.

    Primeiramente, faremos, por meio de um rpido esboo de contextualizao da crtica

    1 Doutorando em Teoria e Histria Literria - Departamento de Teoria e Histria Literria, Instituto de

    Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas SP, Brasil, email:

    [email protected]; pesquisador-bolsista CNPq.

    2 Cito, a ttulo informativo, como referncia para a problematizao de algumas destas abordagens, o

    artigo de Fernando Rodrigues (UFRJ), A tempestade e a questo colonial, publicado na Revista Viso

    Cadernos de Esttica Aplicada n 5, de 2008.

    3 Ainda que o enredo da obra se contextualize nas guerras da Serenssima Repblica de Veneza contra os

    turcos, a questo do domnio colonial e a reflexo sobre as novas condies identitrias se relacionam

    diretamente com questes sociais pertinentes ao colonialismo do emergente Imprio Britnico.

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    ps-colonial, uma exposio do conceito proposto pelo terico indiano Homi K. Bhabha,

    o qual denomina de mmica do sujeito colonizado. Buscaremos evidenciar a violncia

    identificada por Bhabha na ambivalncia de tal mmica atravs da tentativa de

    sistematizar o processo pelo qual a identidade perifrica tende a se automutilar em nome

    de uma identificao com o sujeito colonizador, o que implica a supresso de parte de

    seus caracteres mais marcantes.

    Num segundo momento partiremos para uma exposio conclusiva da

    argumentao, atravs de uma sucinta e rpida leitura de Otelo com vista a ilustrar esta

    violncia autoinfligida que se coaduna ao gesto mmico do sujeito colonizado. Para tal,

    nos focaremos em duas passagens decisivas e de alta dramaticidade da pea de

    Shakespeare. A primeira passagem, a saber, a quarta cena do ato terceiro, quando Otelo,

    instigado por Iago, conta a Desdmona a histria sobre a origem do leno que dela fora

    roubado e que servir de prova para o suposto adultrio. A segunda passagem, onde

    podemos vislumbrar de forma explcita a violncia embutida nesta mmica, qual Otelo

    sujeito pelos preceitos da poltica na qual est enredado, se encontra na cena final da

    tragdia. Trata-se do gesto, de extrema violncia lrica, pelo qual Otelo tira a prpria vida.

    I

    Em artigo que versa sobre a identidade no enfoque do ps-colonialismo e a

    literatura, o pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande, Jos Lus Fornos, traa

    um pequeno esboo da corrente epistemolgica da crtica ps-colonial, apontando como

    obra de seminal referncia o livro Orientalismo (1990), de Edward Said:

    Nela, Said interroga o modo como a narrativa ocidental, mais

    especificamente a europeia, representou e continua representando o

    Oriente. Por meio de exemplos, o estudioso palestino destaca a

    representao binria que dividiu o mundo em Ns, o europeu, o

    ocidental, o civilizado, o colonizador, e o Outro, o no-europeu, o

    oriental, o brbaro, o colonizado. Segundo a avaliao de Srgio

    Costa, os estudos ps-coloniais no constituem propriamente uma

    matriz terica nica. Trata-se, segundo o autor, de uma variedade de

    contribuies com orientaes distintas, mas que apresentam como

    caracterstica comum o esforo de esboar, pelo mtodo da

    desconstruo dos essencialismos, uma referncia epistemolgica

    crtica s concepes dominantes da modernidade. (FORNOS, 2013,

    p. 116, grifo nosso).

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    Tendo como pressuposto que leituras conservadoras ainda norteiam

    predominantemente as interpretaes cannicas (dentre as quais, as leituras da obra

    shakespeariana), a crtica ps-colonial, ao problematizar o processo histrico da

    colonizao ocidental busca efetuar leituras desconstrutoras de variados textos de

    contextualizao colonialista, ressaltando as representaes da subjetividade, com

    destaque para os processos de construo da identidade do sujeito colonizado. Trata-se,

    assim, de uma abordagem crtica que no se circunscreve aos estudos literrios, fazendo

    uso de suportes interdisciplinares para tal problematizao. , portanto, dentro deste

    paradigma crtico que a abordagem aqui proposta se enquadra.

    *

    Figurando entre os tericos mais influentes dos atuais Estudos Culturais, o

    estudioso do ps-colonialismo, Homi K. Bhabha, trata em seu livro O local da cultura,

    no captulo Da mmica e do homem: a ambivalncia do discurso colonial, sobre a

    ambivalncia presente na representao da identidade do sujeito dentro do discurso

    colonial, apontando, atravs de uma aproximao com esse conceito marxista-

    psicanaltico (se que assim podemos denominar), para a complexa fuso entre atrao e

    repulsa que se coaduna na relao entre colonizador e colonizado.

    Bhabha argumenta que h uma relao de cumplicidade e resistncia da parte do

    colonizado; que por sua vez, encontra uma resposta dbia, de explorao e proteo, por

    parte do colonizador. O que o discurso colonial busca induzir o sujeito colonizado

    submisso, de modo que este passe a desejar reproduzir os hbitos e valores do

    dominador. Segundo o autor, isto se d atravs de uma mmica da colonizao, mas uma

    mmica que caminha paralelamente zombaria. Entretanto, Bhabha aponta para o fato

    de que a resposta do sujeito colonizado ao discurso colonizador, em sua performance

    imitativa, se d, como dissemos, de modo ambivalente, atravs de uma representao que

    tende a distorcer e obscurecer os motivos de seu modelo. Tentaremos ilustrar, sob essa

    perspectiva, o mecanismo ambguo e violento pelo qual a identidade de Otelo

    performatizada atravs de identificaes contraditrias.

    II

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    Embora venhamos a nos ater a dois momentos especficos do drama, vale antes

    retraar sucintamente a trama em questo para que nos apercebamos do ponto nevrlgico

    que constitui a colocao poltica do mouro Otelo.4

    Otelo um general em Veneza. Honrado e valoroso guerreiro, respeitado pelo

    potentado veneziano, apesar de sua origem e sua cor negra5, devido sua coragem e ao

    seu imenso talento como estrategista. Tem, acima de tudo, a confiana do rico senador

    Brabncio, cuja casa frequentava para entreter o nobre com as exticas histrias de suas

    campanhas. Em sua tropa, possui dois homens por quem possui imenso apreo, Cassio e

    Iago. No incio da pea, ficamos sabendo que Cssio acabara de ser promovido por Otelo

    para ser seu tenente, de modo que seu alferes Iago, que aspirava ao cargo, tendo inclusive

    pedido para alguns dos nobres venezianos a intercesso em sua causa, ento tomado por

    imensa inveja, a qual lhe desperta o desejo de vingana que ser responsvel por toda a

    trama da pea.

    Iago, sabendo ento que Otelo se encontrava s escondidas com Desdmona, a

    bela e desejada filha do senador Brabncio, inicia seu plano com a ajuda de Rodrigo,

    nobre pretendente da belssima Desdmona. Juntos, na noite em que o general se casava

    com sua dama, tambm s escondidas do senador, se dirigem casa do mesmo para

    acord-lo com a notcia. No entanto, apesar do dio que tomara o senador devido traio

    de sua filha (traio, segundo a moral vigente, tanto a seu pai, quanto sua prpria

    natureza), fazendo-o acusar o mouro de usar feitios para tomar o corao de Desdmona

    e intervindo junto ao doge da cidade para que o mouro fosse condenado morte, uma

    notcia imprevista faz do general uma necessidade urgente para a poltica veneziana, de

    4 Vale lembrar que, apesar do termo mouro fazer referncia a mauritanos, mauros ou sarracenos,

    considerados os povos oriundos do Norte da frica, praticantes do Islo, aos tempos da escrita do drama

    de Shakespeare o termo era empregado, de maneira generalizante, para fazer referncia a negros,

    indiferente de etnias.

    5 Neste ponto, vlido notarmos que a estima manifestada por Otelo em si extraordinria. Em sua

    dissertao de mestrado, Otelo, o mouro de Veneza, de Shakespeare: Crtica e traduo literria (2007),

    onde empreende uma nova traduo da tragdia, o pesquisador Eneias Farias Tavares esboa um

    subcaptulo inteiro sobre as opinies preconceituosas dos ingleses da poca para com os mouros. Atravs

    de exemplos retirados de cartas da prpria Rainha Elizabeth, o estudioso aponta para o consenso, de

    ento, de que a crescente populao moura, decorrente dos intercmbios coloniais, configurava-se como

    preocupao para a aristocracia tradicional, que ento via sua cultura sob uma espcie de ameaa

    constante.

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    modo que o potentado da cidade ir ento, por prejuzo de Brabncio, que vir a falecer

    de desgosto pouco tempo depois, permitir o casamento entre os dois jovens amantes.

    Na noite do casamento, Otelo obrigado a partir para uma guerra em Chipre,

    diante de que Desdmona pede permisso para acompanh-lo. Em Chipre, a vingana de

    Iago se inicia: o alferes embebeda Cssio, colocando-o num duelo que ir trazer por

    consequncia a destituio de seu cargo de tenente. Em seguida, Iago recomenda a Cssio

    que pea esposa do general que interceda em sua causa, enquanto ardilosamente planta

    um cime terrvel em Otelo, que o levar, num gesto de loucura, a estrangular sua amada.

    III

    Voltando ao incio da trama, interessante notar que Iago e Rodrigo vo despertar

    Brabncio logo aps a cerimnia de npcias de Otelo. Deste modo, a ao narrativa, ao

    se passar durante a noite, reflete simbolicamente a alterao do curso natural das coisas.

    Exposta a trama da pea, vejamos atravs de alguns exemplos que a condio de

    alteridade e ameaa, que Otelo representa para a moral veneziana, exposta j desde o

    incio nas palavras de Iago, quando este busca incitar o dio de Brabncio: Agora

    mesmo, neste momento, neste momento mesmo, um velho bode negro est cobrindo

    vossa ovelha branca. De p! De p! Despertai ao som de um sino os cidados que esto

    roncando, ou, caso contrrio, o diabo vai fazer de vs um av (SHAKESPEARE, 1981,

    p. 334 grifo meu).6

    Ao longo de toda pea veremos a referncia a atributos de animalidade e

    licenciosidade serem utilizados para descrever a alteridade da cor negra, o que nos leva

    mais uma vez ao texto de Bhabha: A pele negra se divide sob o olhar racista, deslocada

    em signos de bestialidade, de genitlia, do grotesco, que revelam o mito fbico do corpo

    branco inteiro, no-diferenciado (BHABHA, 1998, p. 138); Porque vimos prestar-vos

    6 Even now, now, very now, an old black ram

    Is topping your white ewe. Arise, arise;

    Awake the snorting citizens with the bell,

    Or else the devil will make a grandsire of you:

    Arise, I say (SHAKESPEARE, 2005, p.9).

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    um servio e pensais que somos rufies, deixareis que vossa filha seja coberta por um

    cavalo da Barbria? Estais querendo ter netos que relincharo em vosso rosto! Acabareis

    tendo corcis como primos e ginetes como parentes (SHAKESPEARE, 1981, p. 335

    grifo nosso);7 tambm nas palavras de Rodrigo, que bem refletem o olhar ao qual o mouro

    estava condenado diante a moral e poltica veneziana:

    Mas dizei-me, por favor, se com vosso beneplcito e com vosso mais

    prudente consentimento (como comeo a acreditar) que vossa bela

    filha, nesta hora imprpria, em noite to escura, sem melhor nem pior

    escolta do que a de um patife de aluguel, um gondoleiro, haja ido

    entregar-se aos abraos de um mouro lascivo... [...] Vossa filha, se no

    a autorizastes, continuo dizendo, tornou-se culpada de grave falta,

    sacrificando seu dever, sua beleza, seu engenho e sua fortuna a um

    estrangeiro vagabundo e nmade, sem ptria e sem lar.

    (SHAKESPEARE, 1981, p. 335 grifo nosso).8

    7 [] Because we come to

    do you service and you think we are ruffians, youll

    have your daughter covered with a Barbary horse;

    youll have your nephews neigh to you; youll have

    coursers for cousins and gennets for germans (SHAKESPEARE, 2005, p.11).

    8 [] But, I beseech you,

    Ift be your pleasure and most wise consent,

    As partly I find it is, that your fair daughter,

    At this odd-even and dull watch o the night,

    Transported, with no worse nor better guard

    But with a knave of common hire, a gondolier,

    To the gross clasps of a lascivious Moor

    []

    Your daughter, if you have not given her leave,

    I say again, hath made a gross revolt;

    Tying her duty, beauty, wit and fortunes

    In an extravagant and wheeling stranger

    Of here and every where. [] (SHAKESPEARE, 2005, pp. 11, 13).

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    Introduzida a condio marginal de nossa personagem, veremos ento, que mesmo

    Brabncio, que muito apreo tinha pelo mouro, recebendo-o constantemente em sua casa,

    no ser capaz de aceitar a escolha da filha. Buscando ento a condenao do mouro por

    ter enfeitiado o corao de Desdmona:

    tu, ladro odioso! Onde escondeste minha filha? Infernal como s,

    sem dvida a encantaste com efeito, apelo para toda criatura de senso:

    se no estivesse ela encadeada em correntes de magia, ser que uma

    donzela to terna, to bela, to feliz, to contrria ao casamento que

    rejeitava os apaixonados mais suntuosos e mais bem frisados do pas,

    teria, algum dia, com risco de ser objeto do desprezo geral, fugido da

    tutela paterna para ir refugiar-se no seio denegrido de um ser como tu,

    feito para inspirar medo e no deleite? Que o mundo seja minha

    testemunha, se no de toda a evidncia que agiste sobre ela com

    feitios odiosos, que abusaste de sua delicada juventude por meio

    de drogas ou de minerais que debilitam a sensibilidade.

    (SHAKESPEARE, 1981, p. 340 grifo nosso).9

    9 O thou foul thief, where hast thou

    stowd my daughter?

    Damnd as thou art, thou hast enchanted her;

    For Ill refer me to all things of sense,

    If she in chains of magic were not bound,

    Whether a maid so tender, fair and happy,

    So opposite to marriage that she shunned

    The wealthy curled darlings of our nation,

    Would ever have, to incur a general mock,

    Run from her guardage to the sooty bosom

    Of such a thing as thou, to fear, not to delight.

    Judge me the world, if tis not gross in sense

    That thou hast practiced on her with foul charms,

    Abused her delicate youth with drugs or minerals

    That weaken motion [...] (SHAKESPEARE, 2005, p. 19).

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    As mesmas acusaes sero repetidas perante o doge de Veneza, que, entretanto,

    devido urgncia da guerra de Chipre, necessita ainda dos servios do general, motivo

    pelo qual abenoa, a despeito das acusaes de Brabncio, o matrimnio e consente que

    Desdmona acompanhe Otelo em sua campanha. Afinal de contas, isto faz de Otelo uma

    das verses autorizadas da alteridade (BHABHA, 1998, p. 133-134).

    Vale ainda transcrever algumas palavras de Brabncio, que ao lado de outros

    exemplos que tiraremos das falas de Iago, se encarregam de lembrar Otelo, durante toda

    a trama, a incoerncia da escolha de Desdmona, ilustrando aquilo que Bhabha descreve

    como os objetos inapropriados que revelam o lugar de interdio do sujeito colonizado.

    Diz ele: Mostraria um juzo mutilado e muito imperfeito, quem declarasse que a

    perfeio possa errar a tal ponto contra todas as regras da natureza. (SHAKESPEARE,

    1981, p. 344).10

    Faamos notar ainda, que as acusaes de feitiaria feitas por Brabncio sero

    tomadas como parte da mmica de Otelo, num prximo momento da trama, quando este

    ento se armar daquilo que foi acusado para causar temor em sua esposa. Antes, porm,

    recolhamos dois exemplos das falas de Iago, que j em Chipre, ao envenenar a mente de

    Otelo, despertando nele um cime terrvel para com Desdmona e Cssio, tambm

    revelar a fora do acordo de alteridade que busca lembrar Otelo de seu devido lugar.

    O primeiro exemplo a fala que tenta lembrar Otelo que, tendo Desdmona j

    enganado seu pai, poderia vir tambm a engan-lo: Muito bem: tirai, ento, vossa

    concluso. Aquela que, to jovem, pode representar papel semelhante e manter os olhos

    do pai to tapados e to fechados como um carvalho que ele chegou a acreditar que

    houvesse magia... (SHAKESPEARE, 1981, p. 386).11 Neste exemplo, me parece

    razovel voltarmo-nos novamente para as palavras de Bhabha, tentando estabelecer uma

    10 It is a judgment maimd and most imperfect

    That will confess perfection so could err

    Against all rules of nature. [...] (SHAKESPEARE, 2005, p.27).

    11 Why, go to then;

    She that, so young, could give out such a seeming,

    To seal her fathers eyes up close as oak

    He thought twas witchcraft [...] (SHAKESPEARE, 2005, p. 105).

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    relao com a questo da autoridade, sempre implicada na performance da mmica. Diz

    ele:

    a visibilidade da mmica sempre produzida no lugar da interdio.

    uma forma de discurso colonial que proferido inter dicta: um discurso

    na encruzilhada entre o que conhecido e permitido e o que, embora

    conhecido, deve ser mantido oculto, um discurso proferido nas

    entrelinhas e, como tal, tanto contra as regras quanto dentro delas. A

    questo da representao da diferena , portanto, sempre tambm um

    problema de autoridade. (BHABHA, 1998, p. 135).

    J vimos qual o local de interdio de Otelo, faixa ultrapassada com o matrimnio com

    Desdmona, j que uma tal unio implicaria a mistura tnica, a contaminao de uma

    assim suposta pureza racial.

    No segundo exemplo temos Iago mostrando que Desdmona, ao se casar com ele,

    teria agido realmente contra a natureza. O que nos surpreende, entretanto, que Otelo

    toma como certas as palavras do alferes, o que nos mostra que tem seu lugar social da

    alteridade to entranhado, a ponto de ter internalizado a violncia discursiva para consigo

    mesmo.

    Sim, eis a coisa. Assim (permiti esta ousadia), tendo recusado tantos

    partidos que apareciam e que possuam todas as afinidades de

    ptria, de raa e de estirpe, para os quais vemos que tendem todas

    as coisas da natureza, hum!, isto denota um gosto bem corrupto, uma

    grosseira desarmonia de inclinaes, de pensamentos contra a

    natureza... Mas perdoai-me. No estou diretamente referindo-me a ela,

    embora possa temer que sua alma, voltando a inclinaes mais

    normais, chegue a comparar-vos com pessoas de seu pas e acabe,

    talvez, por sentir-se arrependida. (SHAKESPEARE, 1981, p. 387

    grifo nosso).12

    12 Ay, theres the point: asto be bold with you

    Not to affect many proposd matches

    Of her own clime, complexion, and degree,

    Whereto we see in all things nature tends

    Foh! one may smell in such a will most rank,

    Foul disproportion, thoughts unnatural.

    But pardon me; I do not in position

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    Aqui, voltamo-nos para um dos momentos nos quais a mmica trgica de Otelo se

    far mais evidente. Trata-se justamente da cena em que, instigado pelo ardil de Iago, Otelo

    ir questionar Desdmona sobre o leno que lhe dera e que fora roubado pela sua aia,

    esposa de Iago. No intuito de atemorizar sua companheira, para dela alcanar a confisso

    de adultrio, Otelo reveste a histria do objeto, vinculando-o histria de sua prpria

    famlia (e origem), de fabulosos caracteres de mistrio e magia os mesmos atributos

    pelos quais fora acusado, no incio da tragdia, pelo pai de Desdmona:

    Lamentvel! Esse leno foi dado minha me por uma egpcia... Era

    uma feiticeira que quase podia ler os pensamentos das pessoas. Ela lhe

    disse que, enquanto minha me conservasse o leno, teria o dom de

    agradar e submeter inteiramente meu pai a seu amor; mas, se ela o

    perdesse ou desse de presente, os olhos de meu pai se afastariam dela

    com desgosto e sua alma se lanaria a caa de novos amores. Ao morrer,

    entregou-se o leno e recomendou-me que, quando o destino me unisse

    a uma esposa, eu o desse a ela. Foi o que fiz. Assim, tende cuidado; que

    ele seja para vs to ternamente apreciado quanto vossos preciosos

    olhos. Perd-lo ou d-lo seria desgraa que nada teria de semelhante!

    (SHAKESPEARE, 1981, p. 397).13

    Distinctly speak of her; though I may fear

    Her will, recoiling to her better judgment,

    May fall to match you with her country forms

    And happily repent" (SHAKESPEARE, 2005, p. 107).

    13 That is a fault.

    That handkerchief

    Did an Egyptian to my mother give;

    She was a charmer, and could almost read

    The thoughts of people: she told her, while she kept it,

    Twould make her amiable and subdue my father

    Entirely to her love, but if she lost it

    Or made gift of it, my fathers eye

    Should hold her loathed and his spirits should hunt

    After new fancies. She, dying, gave it me;

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    Isto, ainda que, na segunda cena do quinto ato, Otelo vir a desmentir tal

    excntrica origem do artefato, mudando sua histria:

    uma pena! Mas, no obstante, Iago sabe que cometeu ela mil vezes

    com Cssio o ato vergonhoso. O prprio Cssio confessou; e ela

    recompensou seus trabalhos amorosos com aquele testemunho e

    recordao de amor que primeiro lhe dei. Eu o vi nas mos dele. Era

    um leno, recordao antiga que meu pai dera a minha me.

    (SHAKESPEARE, 1981, p. 437 grifo nosso).14

    Chegamos ento, ao momento mais trgico na mmica de Otelo, onde encerrarei

    esta minha proposta de percurso. Em seu discurso final, abatido pela culpa e pelo

    ressentimento de ter-se deixado levar pela artimanha de Iago, Otelo clama ainda a seus

    pares, que no se esqueam de sua identificao para com eles. Num gesto que retrata seu

    derradeiro discurso, Otelo lembra, aos que esto a lhe prender, o modo pelo qual, num

    campo de batalha, ele degolara um turco (um co circunciso) que vira bater num

    veneziano. Aqui Otelo toma como outro, aquele que assim como ele, teve a sua

    identidade condenada marginalidade mmica do interesse poltico.

    And bid me, when my fate would have me wive,

    To give it her. I did so: and take heed ont;

    Make it a darling like your precious eye;

    To loset or givet away were such perdition

    As nothing else could match (SHAKESPEARE, 2005, pp. 123, 125).

    14 Tis pitiful; but yet Iago knows

    That she with Cassio hath the act of shame

    A thousand times committed; Cassio confessd it:

    And she did gratify his amorous works

    With that recognizance and pledge of love

    Which I first gave her; I saw it in his hand:

    It was a handkerchief, an antique token

    My father gave my mother (SHAKESPEARE, 2005, p. 201).

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    Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO

    Ao extirpar a prpria vida, Otelo revela as ltimas consequncias da ambivalncia

    mmica que conforma a identidade do sujeito colonizado se aqui no tratamos da

    questo colonial, a condio de alteridade perante os interesses polticos mercantis dos

    brancos de Veneza no deixam os mouros em posio to distinta das subjetividades s

    quais Bhabha se refere. Pois, embora necessrio aos objetivos da metrpole que o tomara

    como lder e estrategista, ao longo da tragdia encontramos ndices frequentes do discurso

    que se encarrega de lembrar Otelo que ele no um deles. Nas acusaes do pai de

    Desdmona, nas insinuaes de Iago sobre a animalidade da donzela em escolher como

    esposo algum que no como ela, nos prprios delrios de inferioridade que levam o

    general a questionar a autenticidade do amor de sua esposa e, muito claramente, nos dois

    episdios tratados com mais ateno.

    Otelo incapaz de enxergar suas prprias virtudes, to evidentes e preciosas para

    Desdmona, a ponto de faz-la enfrentar, em nome de sua paixo, a hierarquia

    secularizada de Veneza. O encargo poltico do general assim se revela em toda a

    ambiguidade. Apesar de lhe dar alguns direitos em troca de sua vassalagem, o mouro no

    pode esquecer-se de seu verdadeiro lugar na manuteno da ordem natural das coisas

    quase o mesmo, mas no exatamente (BHABHA, 1998, p. 131). Para Otelo, seu valor

    advm antes do espao ao qual conseguiu integrar-se dentro da poltica veneziana, do que

    de seus atos enquanto significativos aos seus prprios desejos. A mmica de Otelo to

    intensa, que mesmo quando resolve matar-se, o far ento encenando seu papel de

    guerreiro veneziano: tal sociedade deve se lembrar dele enquanto aquele que agia em

    nome dela, e no, devido a sua prpria origem, como o outro, condenado pela natureza a

    uma animalidade inferior, como a do animal de duas costas, os bodes excitados, os

    macacos ardentes, os lbricos lobos, segundo insinuaes de Iago, ou o prprio turco,

    mpio co circunciso ao qual apunhalara por ter insultado o estado. Este sim, um outro,

    lembra-lhes Otelo, nos ilustrando o processo exposto por Bhabha pelo qual o olhar de

    vigilncia retorna como o olhar deslocador do disciplinado, em que o observador se torna

    o observado e a representao parcial rearticula toda a noo de identidade e a aliena da

    essncia. (BHABHA, 1998, p. 134), afinal, como afirma em outro momento, o eu na

    posio de domnio , naquele mesmo momento, o lugar de sua ausncia, sua re-

    apresentao. (BHABHA, 1998, p. 80).

    Eis o desfecho trgico da confuso psquica advinda da mmica imposta ao nosso

    mouro, com toda a sua violenta ambiguidade em relevo. No se trata assim, de um

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    Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO

    suicdio, numa leitura singela do termo, posto que no simplesmente Otelo, aquele que

    tira a prpria vida mas sim um outro, entranhado em si prprio, como um vigilante

    de sua condio inferior, que ao lembrar-lhe dos limites ultrapassados por seus atos,

    empunha a lmina que far cessar em seu peito o sopro da vida.

    Sem a pretenso de formular juzos definitivos, a anlise empreendida em nosso

    estudo sugere novas vias de enfoque sociocultural no drama abordado, como a relao

    entre concepes de virtude e um suposto essencialismo tnico, alm de ilustrar processos

    da constituio da identidade nisto que nos estudos culturais veio a se denominar como

    discursos dos entre-lugares da subjetividade colonizada.

    Referncias

    BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Trad. M. vila, E. L. de L. Reis; G. Gonalves.

    Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

    COSTA, Srgio. Dois Atlnticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo

    Horizonte: UFMG, 2006.

    FORNOS, Jos Lus. Ps-colonialismo e literatura: notas sobre a identidade na narrativa

    de Lus Cardoso. Antares: Letras e Humanidades, v. 5, n. 10, p. 115-133, 2013.

    RODRIGUES, Fernando. A tempestade e a questo colonial. Viso: Cadernos de esttica

    aplicada, v. II, n. 5, p. 54-65, 2008.

    SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. Trad. Toms Rosa

    Bueno. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.

    SHAKESPEARE, William. Otelo, o mouro de Veneza. Trad. F. Carlos de Almeida Cunha

    Medeiros; Oscar Mendes. So Paulo: Abril Cultural, 1981.

    ______. Othello : the Moor of Venice / by William Shakespeare; with related readings.

    Minnesota: EMC/Paradigm Publishing, 2005.

    TAVARES, Enias Farias. Otelo o mouro de Veneza, de Shakespeare: crtica e

    traduo literria. Santa Maria: UFSM, 2007. Dissertao de Mestrado Programa de

    Ps-Graduao em Letras, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio

    Grande do Sul.

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