16
16 A BIOGRAFIA E A HISTÓRIA TERESA MARIA MALATIAN UNESP/FRANCA Por que Biografar? A multissecular desconfiança para com este gênero sedutor, afinal, os indivídu- os fazem ou não a história? O gênero apresenta ainda possibilidades, ainda que tenha sido bastante criticado? O Catálogo Brasileiro de Publicações em 1994 registrava um crescimento de 55% das obras sobre o tema em relação a 1987 (Schmidt, 1997, p.1). A biografia como tendência historiográfica O estatuto da biografia em História A biografia nunca esteve ausente das reflexões historiográficas ou das práticas profissionais dos historiadores, mas muitas vezes se fez acompanhar de um mal-estar explícito ou implícito. ARTIGOS

MALATIAN. a Biografia e a História

Embed Size (px)

DESCRIPTION

MALATIAN. a Biografia e a História

Citation preview

Page 1: MALATIAN. a Biografia e a História

16

A BiogrAfiA e A HistóriA

Teresa Maria MalaTian

UnesP/Franca

Por que Biografar?

Amultisseculardesconfiançaparacomestegênerosedutor,afinal,osindivídu-osfazemounãoahistória?Ogêneroapresentaaindapossibilidades,aindaquetenhasidobastantecriticado?OCatálogo Brasileiro de Publicaçõesem1994registravaumcrescimentode55%dasobrassobreotemaemrelaçãoa1987(Schmidt,1997,p.1).

A biografia como tendência historiográfica

O estatuto da biografia em História

Abiografianuncaesteveausentedasreflexõeshistoriográficasoudaspráticasprofissionaisdoshistoriadores,masmuitasvezessefezacompanhardeummal-estarexplícitoouimplícito.AR

TIGO

S

Page 2: MALATIAN. a Biografia e a História

17

Como assinala Momigliano, emProblèmes d´historiographie ancienne et moderne (1983),trata-sedegêneroanti-goqueconservoufronteirasfluídascomo campodo conhecimento histórico. JánaAntigüidade,despertavaadesconfian-çadeautorescomoTucídidesePolíbio,quelheatribuíamoestatutodeterritóriosujeitoàexaltaçãotendenciosadeumin-divíduo, grupo de indivíduos ou causa.EntreabiografiaeaHistóriaháumabis-mo de insegurança e fragilidade diantedo problema da verdade da narrativa,semcontarque àprimeira se reservavao estudo dos fatos e gestos dos indiví-duos,enquantoàsegundacabiaorelatodosacontecimentoscoletivos(Levillain,2003,p.145). Plutarco (45-125) construiu ummodeloao traçarasVidasparalelasnasquais procurava evidenciar as virtudesdoshomensdeação,queagiamdemodocorreto“nointeriordeduascivilizaçõesidealizadas, a daGrécia e adeRoma”,tentando com isso escrever umaHistó-riamoralestruturadaempersonalidadesexemplares(Levillain,2003,p.149).

Sem a pretensão de percorrer demodoenciclopédicoestatrajetória,éim-portantelembrarqueasuspeitaeaam-bigüidadetiveramemSuetônio(75-160)umatentativadeestabelecimentodedis-tinções, coma individualizaçãodabio-grafianadireçãodetorná-lamaisconfi-ável,mediante desmistificação e recusadoelogionaVida dos doze Césares. Desde a Antigüidade greco-ro-mana construíram-se, pois, referênciasimportantes para um gênero que nuncacessoudesercultivado,aindaqueatra-vessandoaltosebaixosnasuaaceitaçãoeviradasemsuaconcepção,comoocor-reucomashagiografiasmedievais. AconstruçãodoindivíduonaIda-de Moderna se fez acompanhar pelostrabalhos modelares de tipo biográfico,como O século de Luís XIV ou Carlos XII da Suécia,dequeseocupouVoltai-re(1694-1778).Oheróifoicolocadoporele no centro da História em trabalhosmodelares. NaprimeirametadedoséculoXIXinspirouCarlyleaservir-sedabiografiaparaquestionaralinearidadetradicional

da história factual. Para dar à Históriavolumeeprofundidade,utilizouoheróicomomeiodeexpressãodofluxocaóticoealeatóriodavidaedoacessoaouniver-sale,comesseintuito,produziuestudosnotáveiscomoA Vida de John Sterling e aBiografiadeCromwell.Oherói indi-vidual,sujeitodeexaltação,foiporCar-lyle encarregadodeexprimir suaépocae, assim, aHistória se tornou o campode afrontamento de personalidades he-róicas,cadaumacomsuafunçãoprofé-tica enquanto encarnaçãodas forças doEspírito, entendidas como religião, “ofatorprincipalnavidadohomem”.En-treeles,oheróidemiurgoseriacapazdedarsentidoàhistóriaeforçarodestino.Emsuaobradereferênciaeexaltaçãodoidealismo,Os heróis e o culto dos heróis,atribuiuaosindivíduosexcepcionaisumpapelnaHistóriadahumanidade,confun-dindo-acomados“grandeshomensquetrabalharamaterra:elesforamoscondu-tores,osmodeladores,ospadrõese,numlargosentido,oscriadoresdetudooqueamassageraldoshomensprocuroufazerouatingir”(Carlyle,[s.d.],p.9).

Page 3: MALATIAN. a Biografia e a História

18

Noscinqüentaanosquesesegui-ram, duas posturas teórico-metodoló-gicas viriam abalar tais convicções: deumlado,adeMicheletquecolocouemprimeiro plano da reflexão histórica osvalores coletivos, expressos pelo povo,deixando aos indivíduos o papel de re-presentantes de paixões coletivas; deoutro,adeMarxquecolocounocentro,naHistória,asclassessociais,reduzindodrasticamenteopapeldosindivíduosnodiscursohistórico,aindaqueseocupassedelepontualmente,comoemO 18 Bru-mário de Luís Bonaparte(Marx,1986). Nãoobstante,TaineeRenanper-correramoséculodonacionalismopreo-cupadoscomaconcepçãodograndeho-memcomoprodutodaraça,domeio,domomento, o homem-partícula, o átomosocialquetributouaoromantismoamu-dança de sentido da biografia: a tensãoentre indivíduo e sociedade privilegiouaprimeiraeabiografiavisavaencontrarnodestinoindividualaforçadocontextogeográfico,cultural,histórico,social. Ainda que os historiadores me-tódicos (Monod, Langlois, Seignobos,

H.Berr) criticassemoshistoriadores ro-mânticos e sua imagem do herói comoexterioràmassahumana,que realizavaosdesígniosdaProvidência,doprogres-so, e da oposição de Durkheim e suadesconfiançaemrelaçãoaosujeitoindi-vidualquantoaseupapelnaHistória,oséculoXIXcontinuoucampofértilparaosestudosbiográficos.Abiografiacons-tituíaumpassatempodehomenscultiva-dos,literaturaprestigiosadeacadêmicos,praticadaporpolíticos,advogados,notá-veiseletradosemgeral,semalcançares-tatutodecientificidade,como,porexem-plo,abiografiadeAlbertdeBroglie. Alémdisso,autoresinserirames-tudos biográficos ao longo de seus es-critosmaisgeneralizantes, comoJaurèsque,aoescreveraHistória da Revolução Francesa, deu primazia às formas so-ciais, mas não desmereceu as persona-lidades individuais e suas relaçõescomos movimentos de fundo, provocadospelascondiçõesdeproduçãoetroca.SuaHistóriapretendiasermaterialistacomoqueriaMarx,líricacomofizeraMicheleteheróicacomopraticaraPlutarco.

Neste esboço historiográfico, osAnnales ocupam uma posição central,pois a esse grupo são atribuídas diver-sasnegações:doindivíduoedapolítica,principalmente.InegávelquedesdeFeb-vreeBloch,ahistóriasetornaterritóriodasmassas,dosgrandemovimentoseco-nômicos e sociais.Noentanto,ogrupofundadordarevistanãoconseguiu–seéqueodesejou–realizarumaviradaan-tibiográfica.Háconsciênciadasdificul-dadesdogênero:Febvreapontouospro-blemas,perigosetentaçõesdabiografiaindividual, mas escreveu, entre outrostextos,Martinho Lutero,um destino,eA religião de Rabelais.Suacontribuiçãoaogêneroconsistiuemesclarecertrajetóriasindividuais rompendo, no entanto, coma concepção de heróis super-homens ecentrandoaanálisenautensilagemmen-talespecíficadeumperíodoedeumgru-podehomens,preparandoassimterrenopara o estudodas chamadasmentalida-des. Em Martinho Lutero, um destino (1994),Febvreexplicitousuaconcepçãodogêneronaperspectivarenovadoraque

Page 4: MALATIAN. a Biografia e a História

19

logoseriaveiculadapelosAnnales HES:trata-sedefatodeumpersonagemexcep-cionalequepoderia implicarumjuízo,seobiógrafoenveredassepelosconflitosreligiosos,masaóticadeFebvrefoiadacompreensãoemexemplarliçãodemé-todo.Suapretensão:

desenharacurvadeumdestinoquefoi simples mas trágico; marcarcomprecisãoospoucospontosver-dadeiramente importantes por quepassou;mostrar como, sob a pres-sãodequecircunstâncias,oseuen-tusiasmoinicialtevedeenfraquecere inflectir o traçado primitivo; porassim,arespeitodeumhomemdeuma singular vitalidade, esse pro-blemadas relações do indivíduo edacoletividade,dainiciativapesso-aledanecessidadesocialqueé,tal-vez,oproblemacapitaldahistória.(Prefácioà1ªedição,1945,p.11)

Aoutilizaroprocedimentobiográ-fico,FebvrecombinouerudiçãoeHistó-ria-problemaparaevidenciarumapostu-raepistemológica:“seoshomensfazemaHistória,sóohistoriadorsabeaHistó-

riaqueelesfazeme,conseqüentemente,éadeles”(Levillain,2003,p.149). Hoje, oitenta anos decorridos,ainda nos debatemos com as mesmasquestões metodológicas: a necessidadedeescolhasnatrajetóriadevida,paraacomposiçãodorelatobiográfico;comoequando iniciá-lo;operíodoa ser traba-lhadocomorelevante...AvidadeLuteronesta biografia desenvolve-se até 1525,quando ocorre o que Febvre denomina“recuosobre si”, “retirada”ou“refúgioemsimesmo”,conformeasdiversastra-duçõespossíveisdapalavrarepli. MarcBlochigualmentesemante-vepróximodogênero,aoestudarFilipeIIeofranco-condado,ondeabriunovoscaminhosparaabiografia,aoseocupardo papel dos indivíduos, ainda que in-seridonoquadrodasestruturasagráriasdasociedadefeudal.EmApologie pour l’Histoire (1997) chegou mesmo a de-fenderopapeldosindivíduosnaHistóriacomo necessário, em L´etrange défaite (1990)refletiusobreopapeldotestemu-nhoefoiumdosprimeirosapreconizaroabandonodaspersonalidadesexcepcio-

naisesuasubstituiçãopelaspersonagenssecundárias,queseriammaisreveladorasdeumaépocaoudeummeio.Inclusive,propôs que os historiadores deveriam,emlugardeseateremaosgrandespen-sadores,freqüentaroschamadosautoresdesegundaordem. Emsuma,nãohouveentreosAn-nalistasdaprimeirageraçãorupturacomogênerobiográfico,mas,sim,umajustedaabordagemaonovocampoteóricoemetodológicoqueseabriaparaatempo-ralidadeampla,oeconômicoeosocial.Abiografiaquedaíresultoucaracterizou-sepelarecusadosexageroslaudatóriosdoséculoXIX e pela busca de adequaçãoa paradigmas historiográficos voltadosparaumaHistóriaobjetiva,asmentalida-des,osatorescoletivosque,noentanto,reservavamumespaçoeumprotagonis-moaossujeitosindividuais. NageraçãodeBraudel,que lide-rouachamadaEscoladosAnnales,apósa Segunda Guerra Mundial, a descon-fiançaemrelaçãoàHistóriadoindivíduofoiocontrapontodaposturaqueprivile-giouasestruturaseatemporalidadelon-

Page 5: MALATIAN. a Biografia e a História

20

ga,aindaqueseuestudosobreomundomediterrâneo comportasse a dimensãoindividualdaatuaçãodeFelipeII,enelaconstituísseumpontointeressante,oes-paçobiográficoreservadonaobraàdu-raçãocurta,aoevento,àHistóriaquesedesenrolaemvelocidademaiorqueadasestruturaseconjunturas. Comosavançosdahistoriografiadebasemarxistaedoestruturalismonauniversidade, o gênero biográfico teveseu espaço após SegundaGuerraMun-dial.AênfasenaHistóriaserialdeChau-nu (1978) só fez aprofundar, nas déca-das de 1960 e 1970, aminimização dapresençadossujeitoscoletivosemfavordosdadosquantitativos.1Foioapogeudadesclassificaçãodabiografia,quenoen-tanto, teimosamente, continuava sendoproduzidapelosqueafrontavamascríti-cas,aomesmotempoemqueumareaçãoveiodosquestionamentosdecorrentesdacrise domarxismo, do estruturalismo edeinovaçõesemdireçãoàrevalorizaçãodoindivíduonaHistória.

Era preciso responder às críticasqueincidiamsobreogêneroemsuaex-cessiva valorização da personalidade eda importância do sujeito individual, operigodofalseamentodasperspectivaseaheroicizaçãodosindivíduos.Bourdieufoiumdosquesemanifestaramnessadi-reção -L’histoire de vie est une de ces notions du sens commun qui sont entrées en contrebande dans l’univers du savant (Bourdieu,1962/1963).

Os “retornos” da História: do indivíduo, do político

e da narrativa

Outra crítica bastante desabona-doraconsistianaacusaçãodeaHistóriadevidapressupornoçõesmaldefinidasdecoerência, continuidadedoeu, iden-tidade.Emresposta,Chartierfoiumdosraros teóricos a lembrar que sociedade,classeementalidade,quetendiamasubs-tituirosindivíduosnaanálise,eramfre-qüentementetratadospelahistoriografia

comoheróisindividuais,comasmesmasilusõesdereconstituiçãoeinteligibilida-delinear(1991). O gênero continuava a ser prati-cado, porém desvestido de glórias uni-versitáriasatéqueareação,nasdécadasde1980e1990,acompanhouofloresci-mentodaHistórianarrativa,davaloriza-ção do indivíduo, que encontrou nova-mente espaço emergindo das estruturase das classes sociais. Bloch, Febvre eMicheletforamrevisitadosembuscadeinspiração.Umdosdirecionamentosfoia História do movimento operário queoriginouodicionáriobiográficoespecífi-codeJeanMaitron(1992),noqualmili-tantesobscurosdividiramaatençãodoshistoriadorescomoscélebres.AHistóriados “de baixo” acompanhou também aondadaHistóriaOral,quesecentrounaconstruçãodetrajetóriasindividuaisnaschamadashistóriasdevida. Os historiadores formados na tra-diçãodosAnnalesenfrentaramogêneroeproduziramobrasdepeso,comoDuby,

1 Grande parte dessas considerações vêm de CANDAR, Gilles. Le statut de la biographie, 2000. Disponível em:www.irmcmaghreb.org.

Page 6: MALATIAN. a Biografia e a História

21

em Guilherme o marechal... (1995) eLeGoff,comoSãoLuís(1996),dequefalareiadiante.Comelesabiografiaga-nhouprestígionahistoriografiauniversi-tária,quepassouavalidarogênero.Emlugardalinearidadefactualdacurtadu-ração centrada na cronologia do tempocurtodavidado indivíduo, a tendênciapassouaseroestabelecimentoderela-ções desta com o contexto econômico,político,social,cultural,noqualseinse-reedesenvolveumavidaequeesclarecetrajetóriasnumcampodepossibilidadesdeescolhasedeexploração,noqualseexerceaaçãoindividual. Amicro-história de Ginzburg,O queijo e os vermes(2002)edeGiovanni,Le pouvoir au village(1989),igualmen-te,favoreceramogênero. Nesseprocesso,Chartierfoitam-bémdecisivoaoapontarasimilitudedosprocedimentos da disciplina histórica aserem observados em qualquer tipo deestudo, sujeito a incertezas, dúvidas einstabilidades(1998). AmenorênfasenaHistóriaquan-titativa e serial, com seus ciclos emo-

vimentos demográficos, o “retorno” dopolíticoreabilitadojuntamentecomodacurta duração do evento e o retorno danarrativa, possibilitaram um novo inte-ressepelaescritadesi,pelavidacotidia-na,dos costumes,doshomens comuns,mastambémparaoindivíduoeseupapelnaHistória,emconfrontocomasocieda-de,quecolocaparaohistoriadordogê-neroaquestãodaliberdadedeescolhas,asrelaçõesentrefenômenoscoletivoseestratégias e comportamentos individu-ais,traduzidosemescolhasquenãosãoinapelavelmentemarcadaspelasocieda-de(Dumont,1983). Emsuma,achamadacrisedospa-radigmasmarcouoconhecimentohistó-riconasúltimasduasdécadas,aoques-tionar o valor analítico de estruturas erelações,modos de produção e históriaserial,recuperandoossujeitosindividu-ais, estudos de caso e amicro-história.Maisdescritivaenarrativaqueanalítica,enfocandoohomemmaisqueascircuns-tâncias, incorporando aportes da litera-tura, a historiografia com seus diversos“retornos”abriunovamenteespaçopara

abiografia(Schmidt,1997). Aforçadoretornodogênerobio-gráficoveiodosquestionamentos sobrecomo distinguir o indivíduo na socie-dade,naqualasanálisesatéentãomaisvalidadasodiluíram.A tentativade re-dução da concepção “hipersocializadado homem”, tal como praticada pelomarxismo e pelo estruturalismo, enve-redou também pela análise psicológicaquefoicentradanasubjetividadedapes-soa(Gay,1999)epelaafirmaçãodesuaautonomianasociedade.Atémesmoasdescobertasdagenéticatêmsidochama-das para explicar os jogos entre indiví-duoesociedade,entreohereditárioeoadquirido,entrepatrimôniogenéticoeavida socialmenteconstruída, a exemplodo que alimentou o chamado casoLis-senko(Levillain,2003,p.168-70).

Escrita de si - fontes para a biografia

Desdeasdécadasde1970e1980,a escrita de si vem alcançando grandepopularidade, abrigada pela literatura,

Page 7: MALATIAN. a Biografia e a História

22

pelamídia,nasciênciashumanasenaspráticas de formação. Autobiografias,diários e correspondências constituemassim um campo imenso de possibili-dades para o historiador em seu intuitode construção de biografias. Resultamdeatividadessolitáriasdeintrospecção,aindaqueaautoriapossaserpartilhadaporsecretários,assessoresoufamiliares.Trata-se,destepontodevista,deescritasdesinasquaisoindivíduoassumeumaposiçãoreflexivaemrelaçãoàsuahistó-riaeaomundonoqualsemovimenta. Na literatura, as obras de cará-ter autobiográfico se publicam em todaparte, colocando ao alcance do públicohistórias de vida em escritos tão diver-soscomoaautobiografialiterária,aau-tobiografiaintelectual,odiárioíntimo,odiário de pesquisa, o diário de escritor,osrelatosdeviagem,acorrespondênciaeasmemórias,emgeral,enunciadosnaprimeirapessoa,emboraporvezesnase-gundaoumesmona terceira,visandoàconstrução de um relato a ser recebidocomoverídicopeloleitor. Na mídia as condições e formas

deescritasdesialcançaramapletora:es-trelasdomundodasartes,dosesportes,personagensdapolítica,intelectuais,semesquecerosanônimos“homenscomuns”,personagensconstruídosalongooucur-toprazo inundamem longos relatosouem curtos fragmentos, jornais, revistas,documentários, reality shows, novelas,TV,rádio,web,nasquaisaexposiçãodavida privada se oferece ao consumodemultidões. Asrazõesdessemovimentopodemser localizadas numa angustiante buscadeelementos identitáriosquedeslocaoreconhecimento de si no conhecimento dooutroquesetornatempofamiliarsemperderadistânciafísica,presentificadospelaatividademidiáticaquepermiteatéoacompanhamentodocotidianoemtem-porealdosquesecolocamdiantedateladaTV. Nas ciências humanas,asaborda-gensdehistóriasdevidacresceramenor-mementedesdequeaEscoladeChicagoelegeuavidadosimigrantescomosigni-ficativaparaacompreensãodasocieda-denorte-americanaelhesdeuapalavra.

Ahistóriadevidaeosdocumentosquea iluminam (cartas, diários íntimos) al-cançamoestatutodeobjetocientíficonoqual a palavra constitui omeio privile-giadodeacessoaatitudeserepresenta-çõesdosujeito(Lewis,1970). Em reação aos modelos teóricostotalizantesdavidasocial,comoomar-xismoeoestruturalismo,eaosmétodosquantitativos,orelatodevidafoiredes-coberto na Europa gerando, nos anos1970,asreflexõespioneirasnaFrançadeDanielBertauxsobreaaproximaçãobio-gráfica.Os trabalhos sociológicosnestavertenteabrigaramamaiorpartedapro-duçãodogêneroealcançaram,nosanos1980,grandeexpansãoereflexõesmeto-dológicassobreoestatutodessahistóriae seu valor como documento confiávelparaoconhecimentoreconhecidocomocientífico. Uma quarta dimensão da escritadesinacontemporaneidadeconsistenasua utilização no campo da formação,uma vez reconhecido seu papel como“arte formadora da existência”, comoafirma Gaston Pineau em Práticas de

Page 8: MALATIAN. a Biografia e a História

23

formação(1996).Logoapropriadopelasteoriasepráticaseducacionais,inclusiveno Brasil, este entendimento vem sen-doutilizadocomoestratégiadereajustepermanente do indivíduo às intensas evelozestransformaçõessociaisdomun-docontemporâneo,demodoapreservarsua própria historicidade e sua posiçãodesujeitohistóricopelaconstanteutili-zaçãodereferentesidentitários. Ocrescimentodogêneroremontaao século XIX, quando preenchia fun-çõesdefinidascomoeducaçãodesi,in-teriorização de normas de convivênciaemdeterminadosmeiossociais,alémdesatisfazeràfomedeintimidadeeprivaci-dadequeacompanhouaimplantaçãodaordemburguesa.Hoje,seosdiáriosínti-moseascartasperderamespaçonavidacotidiana, a busca de histórias de vidaafirmaopredomínioda subjetividade edo individualismo a que corresponde ofracasso do welfare state edos regimessocialistas. O encolhimento do espaçopúblico,afragmentaçãodasubjetividadeemdiversosespaços,abuscaidentitáriaexacerbadaconstituemocontrapontoao

esvaziamentodosprojetoscoletivoseaodesencantamentodomundonasúltimasquatrodécadas. Aredescobertadoindivíduoedostraços de sua trajetória individual temsido cada vez mais valorizadas, comonosrelatossobreoGulageoutrasexpe-riênciasextremasrevisitadas.Ahistóriado“povocomum”igualmentecontribuiuparaareleituradediários,cartasetextosmemorialísticosemsuapossibilidadedecontribuiçãoparaarecuperaçãodospro-tagonismosindividuaisedereleiturasdahistóriasegundodiversasópticas. Do contato com a escrita de si em suasdiversasmodalidades,afloraacons-tataçãodeseresteumterritóriomarcadopelas tensões entre indivíduo e socie-dade,peladificuldadede seestabelecerlimitesentreação individualeaçãoco-letiva,peloquestionamentodaliberdadedeaçãoedopapelimpositivodegrupossociaiseconstruçõescoletivasdacultura(Montagner,2007). Uma possibilidade seria umaabordagemliteráriadasfiliaçõesquecir-cunscrevesseocampohistóricoeformal

dogêneroautobiográfico.Ou,umaabor-dagemantropológicaqueinscrevesseostextosnocontextodesociedadesemen-talidadesnosquaisforamgerados. Essas duas posições sinalizam adiversidade de constituição do objeto,porémambaspodemestarpresentesesecomplementar,paraquesepossaanalisareusufruirdosrelatospelosquaisoindi-víduofaladesiemdeterminadascondi-ções sociais (econômicas, políticas, so-ciais, culturais), e constrói uma relaçãoidentitáriaconsigomesmo,queFoucaultdenominapráticasdesi. Ahistoriografiaapropria-sedetaisabordagenseasreconstituidemodoqueodiscursodesi,consideradonadimen-sãohistórica, relevade cadaépoca, emcadasociedade,asrelaçõesdopúblicoedoprivado,dacoletividadeedoindiví-duo, da singularidade e da pluralidade,do indivíduo consigo mesmo. Importaocupar-sedediscursoscodificadoshisto-ricamente e que são, portanto, portado-resderelaçõesdeforçaedeconsciênciadesi.Trata-sedeterconstantementeempresençaas formascomoo indivíduoe

Page 9: MALATIAN. a Biografia e a História

24

suaidentidadesãopermanentementein-ventadas e reinventadas: discursivas emateriais(suportese técnicasdeescritadapalavra),commediaçõesexteriores(acidade,areligião,opoder),numapráticaqueésempreimplícitaouexplicitamentecoletiva. Ditodeoutraforma,aconstruçãododiscursoquecarregaaconstruçãodesinãopodeserabstraídadasformaçõeshistóricasqueregemavidadoshomensem sociedade e, ao mesmo tempo, domodo como grupos constituempráticasdesi,asquaissetraduzemnasrepresen-taçõesdoeufixadasnosrelatos.Pode-serastreardesdeaAntigüidadetaispráticasque passam pelo mundo greco-romanocomo os relatos militares de Júlio Cé-sar,porexemplo,eprosseguemaolongodosséculospelasconfissõestãocarasaoCristianismo até alcançar sobmúltiplase variadas modalidades o quadro atualdescrito. Do ponto de vista metodológicotrata-sedeconsiderarcomHenriLefèb-vre,emA soma e o resto(1989),aexis-tênciadeumespaço-tempointeriorque

setraduzemmomentosnosquaisoindi-víduoconstróisuaexperiência,aqualoindividualiza,o singularizanumcampoderelações. Éestaperspectivaquepermiteaohistoriadorconsiderarosmomentosvivi-doscomodiretrizesda temáticabiográ-fica, superando a linearidade factual danarrativa,paraprocederaumaoperaçãohistoriográfica de tematização da exis-tênciaindividual,segundoogrupamentodasexperiênciasdoobjetoem tornodecertospontosde ancoragemespecíficosque podem se justapor ou desaparecer,masquemarcamseusernomundo.Istoéparticularmenteconstatávelnomomentodaescritadesi,quandooindivíduoex-perimentaaimersão–deextensãotem-poralvariável–numtrabalhodecriaçãoespecíficoedistanciado,masaomesmotempopróximodeoutrosmomentosna-queleinstanterevisitadosereelaborados,colocandoàluzesseeuconstruídoantesdetudoparasimesmo,buscandoeluci-dar o enigma de sua própria existência(Delory-Momberger,2000,p.11). PeterGay,emO coração desvela-

do,assinalaoespaçosocialmentereser-vadoàescritadesinoséculoXIXnaEu-ropa,quandodiários,cartasememóriasao contarem “realidades interiores” re-produziamexperiênciasindividuais,nasquaisfantasiase“realidades”semesclamnumjogodeocultamento/revelaçãosem-preapresentadocomoumcompromissocomaverdade,cujaenunciaçãoaoleitorconstitui verdadeiro deleite.A partir deumaabordagempsicanalítica,Gaysina-lizaocuidadoa ser tomadopelohisto-riadorcomasposes,astáticasevasivas,aexposiçãoeaproteçãodoeudirigidaaumpúblicoseleto(1999,p.71-177),quemais oculta do que revela o verdadeiro“eu”. Suas constatações foram basea-dasemdocumentosproduzidosduranteachamadaeravitorianaquemuitodife-rem dos hodiernos caminhos de escanca-ramentodavidaprivada,emseusdeta-lhesmais íntimos, pois eram altamentecodificadoscomregrasexplícitasacercado decoro a ser mantido, dos assuntosconsideradostabus,dograudeexpansãodo eu conformeo leitor potencial.Masse o método psicanalítico é de difícil

Page 10: MALATIAN. a Biografia e a História

25

absorção pelo historiador, sua propostametodológica não deixa de ser notável,porabrirumcampodepossibilidadesdeanálisedasmotivaçõessubjetivasnaela-boraçãodaescritadesieque,selevadasemconta,podemcontribuirparaacríticadodocumento retirando-lheumapostu-raingênuaoudesavisadanummomentoemquemaisdoquenuncaseinstalouum“apetitebiográfico”(p.169). Namesmalinha,Artières,emAr-quivaraprópriavida(1998),assinalanaescritadesiapresençade trêselemen-tos:ainjunçãosocial,apráticadearqui-vamentoeaintençãoautobiográfica.Emtodoseles,aintençãodetomardistânciaemrelaçãoasimesmoseimpõenodiá-logoentreonarradoreoleitor,noaludi-dojogodeocultamento/revelação.

Como biografar

Atarefadeconstruçãodebiogra-fias pelo historiador coloca emquestãodirecionamentos a serem observadosdesdeaescolhadopersonagem,emfun-çãodasuaatuaçãooudequalidadesque

possamestabeleceridentificaçõesproje-tivas importantes. Biografar indivíduosvivosounão?Qualograudeexaustãodo“eu”queabiografiacomporta?Comobiografar semcriar “tipos”?Comobio-grafarsemcairnoselogiosoujulgamen-tos? Nãohámuito como eludir a for-manarrativae cronológicaquepermiteoacompanhamentodatrajetóriadoper-sonagemeoestabelecimentode“marcostemporaisentreacontecimentosehistó-ria individual”. Constitui, portanto, ca-racterística da biografia a narrativa quedeve levaremcontao recorte temporalda história de umavida (Abreu, 1998).Talconstataçãonãoimplicaousoexclu-sivodométododiscursivo,factual,cen-tradonaexistênciaindividual. Considerada por muitos historia-dores como uma arte (Oreux, in Dubyetal.,1986),abiografiaexigedopesqui-sador um cuidado que de resto não sedistancia daquele que é devido a qual-quer outro tipo de discurso histórico, equecaracterizaadisciplina histórica: acompreensão, a aproximação do perso-

nagem até a impregnação como pontodesaturação,idealparaquesepossaes-creversobreele,otrabalhocríticosobretestemunhosdiferentesecontraditórios,para que se amplie o enfoque analíticoesepossamalcançartantoaspectosdes-conhecidosdesuavidacomoultrapassarsuaopacidadeparaseuscontemporâneosemaispróximos. Entre histórias de vida individu-aiseprosopografias(notíciasbiográficasindividuaisqueseconfrontamparaquemedianteamostrassepossamestabelecertipos,salientartraçoscomuns),ogênerosemantémpróximoda literatura e, porissomesmo,asolicitaratençãoredobra-dadohistoriador. Da literatura têm sido incorpora-dostécnicaserecursosestilísticoscomoo flashback(Duby,1995),elementosfic-cionais mesclados à informação segu-ramente documentada, incorporação dedetalhes pitorescos e da vida cotidiana,estilocuidado,narrativafluída,numdi-álogocomohipotético leitor, inspiradotambém pelo jornalismo. Nem é de sedesprezarapráticadedeixarfluiracons-

Page 11: MALATIAN. a Biografia e a História

26

ciênciadoescritornacaracterizaçãodopersonagemvisando à produção de umefeitoderealidade(Schmidt,1997).Aoshistoriadores e preservadores da disci-plina histórica, cabe a tarefa de elimi-naramesclaentrebiografiaeromance,de estabelecer referências documentaise empíricas seguras, de preocupar-secomaverdadeouasverdades,pelousode “provavelmente”, “talvez”, “pode-sepresumir”,“acredita-seque”etc.(p.10). Emtodososautores,quevêmfa-zendoreflexõessobreotema,persisteograndeproblemaqueéode“desvendarosmúltiplosfiosqueligamumindivíduoaoseucontexto”,comofoimencionado,seja para revelar dimensões de proble-masdapesquisanãoperceptíveisnosen-foquesmacroscópicos, seja na compro-vaçãoourefutaçãodehipóteses. Ameuver,trata-sedecultivarumgêneroquecomporta,emprimeirolugar,a sedução do historiador pelo persona-gem, por sua vida de alguma maneiraconsideradaexcepcionaledignadeserocentrodeumestudo,porrevelaraspectosainda não abordados pela historiografia

voltadaparaomacro,ouporpermitiravisualizaçãodatensãoentreindivíduoesociedade.Sejapelaabordagemdossen-timentos,doinconsciente,dacultura,davidaprivada,docotidianoou,maisade-quadamente, como “um locus no qualuma incoerente e freqüentemente con-traditória pluralidade de determinaçõesrelacionais interagem”, como afirmouBourdieu em A ilusão biográfica(1976),e que permitem alcançar o sujeito paraalémdeumaconstância,asimesmover-dadeiramenteinatingível,paradarcontadeumsujeitofracionadoemúltiplo, talcomoseapresentaaosolhossensíveisdohistoriador. Esse direcionamento permite quese busquem estabelecer as articulações“entrevidapúblicaevidaprivada,entrecotidianoenão-cotidiano,entreatosra-cionais emotivações irracionais“ (Sch-midt,1997).Eixosanalíticosimportantespodemsertraçadosentãoemfunçãodefamília,estudos,trabalhoemilitância. Persiste ainda, todavia, aquestãoética que, independentemente das ame-açasnoâmbitoda justiça,precisamser

levadas emconta, quandoohistoriadorse apropria damemória do biografado,expondo seus segredos, suas mazelas,suascontradições. Namesmalinhadereflexão,pode-sesituarFrancoFerrarotticujasreflexõesse dirigempara a abordagemestrutura-listadasrelaçõesentreindivíduoesocie-dadenosestudosbiográficos,afirmandoque“umavidaéumapráticaqueseapro-pria das relações sociais (as estruturassociais) as interioriza e as retransformaemestruturaspsicológicasporsuaativi-dade de desestruturação-reestruturação”(Histoire et histoires de vie,1990). Se o enquadramento nos pare-ceexcessivo,ébomsalientarqueoau-tor minimiza a rigidez ao apresentar avida humana como “síntese horizontalde uma estrutura social”,mas recusa odeterminismo mecânico entre história social ehistóriadevida.Atribui ao su-jeito umpapel ativo ao insistir em que“Longede refletir o social, o indivíduose apropria dele, o mediatiza, filtra eretraduzprojetando-oemumaoutradi-mensão(...) , ade sua subjetividade, al-

Page 12: MALATIAN. a Biografia e a História

27

cançandoassimadefiniçãodoindivíduocomosíntese individualizadaeativadeumasociedade(Ferrarotti,1990).Destepontodevista,orelatobiográficodeixadeserumasériedeanedotasparacentrar-senaaçãosocialdoindivíduo,nasuarelaçãocomasociedade,análisequesugereapartirdeancoragensantropoló-gicasesociológicas. Nessaperspectiva,abiografiaseráentendida como uma leitura do social no qual se estabelecem relações entre umindivíduoeotemposócio-histórico,ar-ticulandobiografia e sociedade (Abreu,1998).Estaéaprincipalênfasedaatualreleituradogênerobiográficocujasdire-trizesestãonasobrasdeLejeune,Bour-dieueLeGoff.

Lejeune e o pactoautobiográfico

As reflexões de Lejeune sobre oestatutodaautobiografiacomo texto li-terário passam pela comparação entreeste gênero e a biografia e acabamporserúteisàhistoriografia,namedidaem

queateorialiteráriaéchamadaaintegrarumarelaçãotransdisciplinardaHistória. Aquestãocentralporeleaborda-daconsistenarelaçãoentreoautoreoleitornum“contratodeleitura”tambémdenominado “pacto autobiográfico”.Emanálise bastante sofisticadadas tra-mas presentes na elaboração do relatoautobiográfico, que incluem a relaçãodo narrador consigo mesmo enquantopersonagem,Lejeunechegaaumatipo-logiadogênerobiográficocomo“textoreferencial”que,porsuasexigênciasnocampodadisciplinahistórica,necessitasesubmeteraumaprovadeverificação.Nelaestápresentenãoapenasaverossi-milhança, “efeito do real”, assim comoamaiorancoragempossívelaoreal,quelhe servede referência.Como texto re-ferencialinclui,portanto,uma“definiçãodocamporealvisadoeumenunciadodemodalidadesedograudeverossimilhan-çaqueotextopretende”(1998,p.36). Mas a principal contribuição deLejeuneconsistenoalerta sobrea rela-çãodeidentidadequeseestabeleceentreo autor e o biografado, implícita, inde-

terminadaouexplícitacomonumajustedecontas.Emtodososcasos,emmaioroumenorgrau,oeu se torna o outro.Éesteopactoqueesseestabelecenostex-tosliteráriosdetipoautobiográfico,entreonarradoreopersonagemnarradoequepodesertranspostoparaoterrenodabio-grafia. Na mesma direção, Bourdieu(1996) irá alertar seus leitores sobre asarmadilhasdogênero,comatônicaana-lítica voltada, porém, para as relaçõesentreindivíduoesociedade.

Bourdieu e o habitus

Tomareicomobaseasconsidera-çõesdeBourdieu feitas sobre a “ilusãobiográfica” e apresentadas emActes de la Recherche en Sciences Sociales (1986,p.69-72)erepublicadasem Usos e abu-sos da História Oral, organizada porMarieta de Morais Ferreira e JanaínaAmado (1996). Além disso, o diálogoquecomeleestabeleceuGiovanniLevi,em Les usages de la biographie(1989),publicadotambémnomesmovolume.

Page 13: MALATIAN. a Biografia e a História

28

Onúcleodesuaanáliseresidenateoria da práxis construída em relaçãoaos campos , ou seja, os “domínios es-pecíficosdavidasocial”.Emsuasdiver-sas obras alerta para a inexistência deuma“seqüênciacronológicaelógicadosacontecimentoseocorrênciasdavidadeuma pessoa”, numa linha construtivistaque postula a linearidade progressiva ea causalidade como construçõesa pos-teriori.Desde1968,quandopublicouoMétier de Sociologue, com Passeron eChamboredon, Bourdieu já se ocupavadessetema,quefoipercorrendoaolon-godesuaobraatéchegaraoconceitodeilusão biográfica,aodefenderaidéiadeque o sentido de causalidade e sentidocoerenteéalgoatribuídoàsaçõeshuma-nas.Seosentidoglobaldosujeitoesca-paatémesmoàsuaautopercepção,restaaos analistas recorrer à objetivação dohabitusquedecorredainteriorizaçãodosocial pelo indivíduo, demodo estável,porémsujeitoamodificações. Habitus se torna, então, um con-

ceitoaseroperacionalizadonabiografia,namedidaemquerevelasistemadedis-posições socialmente constituídas que,emseuconstantemovimentoestruturan-te, está na origem e unifica as práticasdos agentes sociais (Economia das tro-cas simbólicas,1998).2 Asmarcasdistintivasestãopresen-tesnonome,nobiológicoenasaçõesdosindivíduos,definindotrajetóriascomunsnoscamposnosquaisseinsere.Suapre-sençacomodiretrizdapesquisapermitesituarosagentessociais–osindivíduos–socialmente,pelatrajetóriadiacrônicanosdiversos campos.Tal procedimentometodológico permite escapar à ilusãobiográficapelaconstruçãodecertostra-çospertinentes,emtermosdeestratégiase injunçõesocorridasemcadacampoequeafetamdiretamenteosindivíduos,osquaissemovimentampelostraçosdoha-bitus,sujeitosarelaçõesdepoder. Se tais colocações de âmbito so-ciológicopermitemumasofisticaçãodapesquisa, requerem do historiador uma

tomadadeposiçãosobreoprotagonismoindividualeograudeautonomiadossu-jeitosindividuais,ousuavulnerabilidadediantedasforçasqueoperamnoscamposnosquaiselessemovem,testemunhodacomplexidadedotrabalhodepesquisa. Recorro aqui a Giovani Levi(1996)queestabeleceuimportantediálo-gocomBourdieuemUsos da biografia eafirmaa“irredutibilidadedosindivídu-osedeseuscomportamentosasistemasnormativosgerais”,emboraaceiteoes-tabelecimento da “superfície social” daaçãodosindivíduos.Aindaassim,háqueatentarparaoselementoscontraditórios,afragmentaçãodostemposedosritmosdavidadosindivíduos,pelosmovimen-tosincessantesderetornos,idasevindasqueocorremnumaredederelaçõesnasquaisosindivíduossedefinem. Leviaproximaateoriasociológi-cadavalorizaçãodaaçãoindividualaoanalisarojogoentreindivíduoegrupo,entrebiografiaecontexto,reconhecendoaexistênciadedeterminaçõesdasquais

2 Para estas considerações sobre Bourdieu, vali-me sobretudo de sua interpretação por Montagner, 2007.

Page 14: MALATIAN. a Biografia e a História

29

oindivíduonãoconseguefugir,masdis-tingueumespaçodeatuaçãoindividual,queéoespaçodaliberdadeequesetra-duzemescolhas,asquais,aoevidencia-remincoerênciaseconflitos,promovemamudançasocial.

Le Goff e a Nova História

Dele veio grande renovação dogênero, com uma reflexão aprofundadadas condições da escrita de um estudobiográfico sobre personagem relevantepara a história da França, por meio daqual buscou compreender questões nãorespondidasparaoséculoXIII.Estetra-balhoconstituiu-senumareflexãosobreafabricaçãosocial,ouseja,ascondiçõesdeformaçãodamemóriacoletiva,sobrealgunsaspectosdopersonagembiografa-do.Alémdisso,abordouaarquiteturadesua construção com as dificuldades, oslimiteseasespecificidades.Oresultadofinaléareconciliaçãodabiografiacoma História que elege o indivíduo comocentro de relações sociais e estabeleceemlugardalinha,aredeeainterfacedos

diversosplanos. Do ponto de vista teórico-meto-dológico,oexpoentedaterceirageraçãodos Annales apontouasdificuldadesdecultivodogêneroaparentementefácilemostroucomoépossívelfugirdeabor-dagens“anacronicamentepsicológicas”,ouqueutilizemcomfacilidadeanoçãode mentalidades ou o recurso ao anedóti-co. Nãofazconcessõesaoafirmarqueos problemas enfrentados na escrita daHistóriasãoosmesmosencontradosnaelaboraçãodeumabiografiacujopercur-socompreendeaproposiçãodeumpro-blema,acríticadasfontes,otratamentonaduraçãolongaosuficienteparacom-portar a dialética da continuidade e damudança,a tônicanaexplicação,odis-tanciamentodohistoriadoremrelaçãoàquestãotratada(São Luis,1999p.14). Nestemagistraltrabalhoencontra-se a tradição historiográfica cujo pontodepartidaestánaconcepçãodeumahis-tóriaglobalequeapartirdaíconsideraoindivíduocomo“sujeitoglobalizante”,emtornodoqualseorganizatodoocam-

podapesquisa”(p.15),aindaquereco-nheçaserutópicaabuscadeumconheci-mentointegraldoindivíduo:lacunasnadocumentação,silêncios,descontinuida-des, incoerências estão sempre presen-tes. Dialogando com a literatura, vênoprocedimentobiográficoanecessida-dedeproduçãode“efeitosdoreal”,queaproximamotrabalhodohistoriadoraodoromancista,poiselessãoobtidospelaescrita,peloestiloepelotrabalhocomasfontes(p.16).Resguarda,assim,ohisto-riadordaspossíveistentações. Os aportes dosAnnales são refi-nados pelo diálogo que estabelece comBourdieu,PasseroneGiovaniLevi:en-dossaateseda“ilusãobiográfica”evaimaislonge,apontandooperigoda“uto-piabiográfica”quenadamaisseriaqueoempenhoemnãodeixarescaparnenhumdetalhe insignificante (p.18). Seguindoos passos deLevi (1996), alerta para aarmadilhada“cronologiaordenada”,da“personalidade coerente e estável, dasaçõesseminérciaedasdecisõessemin-certezas”(p.18),aindamaisemsetratan-

Page 15: MALATIAN. a Biografia e a História

30

dode seubiografado, cujavida se fazrevestirdebrumas. Além da fuga dessa ilusão, fogetambém dos determinismos afirmandoque“São Luísnãovaiimperturbavelmen-teemdireçãoaseudestinodereisanto,nascondiçõesdoséculoXIIIesegundoos modelos dominantes de seu tempo.Ele se constrói a si mesmo e constrói sua épocatantoquantoéconstruídoporela.Eessaconstruçãoéfeitadeacasos,hesi-tações,escolhas”(1999,p.18). Mas omais significativo de suasposiçõesteórico-metodológicasconsistenaconstantebuscadaafirmaçãodaliber-dade individual manifesta nas escolhasrealizadas pelos indivíduos diante depossibilidades.AssimcomoLevi(1996),postula a liberdade de que dispõem osagentes diante de sistemas normativosque também apresentam contradições.Nosinterstícios,asescolhasindividuais(p.19).RecorreaBourdieuemCoisas di-tas(2004),paraafirmarqueoindivíduosóexistenuma redede relações sociaisdiversificadaseestadiversidadelheper-mitetambémdesenvolverseujogo.

Umaúltimaquestão:arelaçãodobiografadocomotempoapresentapers-pectivasprópriasdecronologiaeperio-dização, ao postular a articulação entreo tempo da biografia e os tempos daHistória em seus diferentes ritmos.Re-lembrandoMarcBloch, afirmaque ”oshomenssãomaisfilhosdeseutempodoquedeseuspais”(1997).EencerracomatesedeBorges:“Umhomemnãoestáverdadeiramentemorto senãoquandooúltimohomemqueoconheceuestátam-bémmorto”(p.24-25).

RefeRências

ABREU,AlziraAlvesDe.Dicionário Biográ-fico:aorganizaçãodeumsaber.Caxambu,IIEncontroAnualdaANPOCS,1998.

ARTIÉRES,Phillipe.Arquivaraprópriavida.Estudos Históricos,RiodeJaneiro,CPDOC,n.21,1998.

BLOCH,MARC.L´étrange défaite:temoigna-ge.Paris:Gallimard,1990.__________.Apologiepourl´histoireouMé-tierd´historien.Paris:ArmandColin,1997.

DELORY-MOMBERGER,Christine.Les his-toires de vie.Paris:Anthropos,2000.

BOURDIEU,Pierre.Coisas ditas.SãoPaulo:Brasiliense,2004.__________.O poder simbólico.RiodeJanei-ro:Bertrand-Brasil,2002.__________.As regras da arte.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1996.__________.Actes de la Recherche en Scien-ces Sociales.L´ilusionbiographique,p.60-72,1986.__________.Ailusãobiográfica.In:FERREI-RA,MarietaDeMoraes;AMADO,Janaína(Org.)Usos e abusos da História Oral.RiodeJaneiro:FGV,1976.

__________.Economia das trocas simbólicas.SãoPaulo,Perspectiva,Trad.deSérgioMiceli,1998.

CANDAR,Gilles.Lestatutbiographique.Bul-letin d´information scientifique.Corresponden-ces.IRMC,61,2000.Disponívelem:www.irmcmagreb.org.

CARLYLE,Thomas.Os heróis e o culto dos heróis.SãoPaulo:CulturaModerna,[s.d.].

CHARTIER,Roger.Au bord de la falaise.L´histoireentrecertitudesetinquiétude.Paris:

Page 16: MALATIAN. a Biografia e a História

31

AlbinMichel,1998.

CHAUNU,Pierre.Histoire quantitative, his-toire serielle.Paris:ArmandColin,1978.

DUBY,Georges.GuilhermeMarechalouo melhor cavaleiro do mundo.Trad.deRenatoJanineRibeiro.RiodeJaneiro:Graal,1995.

FEBVRE,Lucien.Martinho Lutero, um desti-no.Lisboa:Ed.ASA,1994.

FERRAROTTI,Franco.Histoire et histoires de vie.Laméthodebiographiquedanslessciencessociales.Paris:LibrairiedesMéri-diens,1983.

FERREIRA,MarietaMoraes;AMADO,Jana-ína(Org.)Usos e abusos da História Oral.RiodeJaneiro:FGV,1996.

GAY,Peter.O coração desvelado.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1999.

GINZBURG,Carlo.O queijo e os vermes.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2002.

LEGOFF,Jacques.São Luís.RiodeJaneiro:Record,1999.

LEFÈBVRE,Henri.A soma e o resto.[S.N.],1989.

LEJEUNE,Philippe.Le pacte autobiographi-que.Paris:Seuil,1975.

LEVI,Giovanni.Usosdabiografia.In:FER-REIRA,MarietadeM.;AMADO,Janaína(Org.)Usos e abusos da História Oral.RiodeJaneiro:FGV,1996.p.167-82.(8.ªed.,2006)._________.Lepouvoirduvillage.Paris:Gallimard,1989.

LEVILLAIN,Philippe.Osprotagonistas:dabiografia.In:RÉMOND,René(Org.)Por uma história política.2.ed.Riodejaneiro:FGV,2003.p.141-84.

LEWIS,Oscar.Os filhos de Sanchez.Lisboa:Moraes,1970.

MAITRON,Jean.Le mouvement anarchiste em France.Paris:Gallimard,1992.

MARX,Karl.O 18 de Brumário de Luis Bona-parte.RiodeJaneiro:Ed.Vitória,1956.

MOMIGLIANO,Arnaldo.Problèmes d´historiographie ancienne et moderne.Paris:Gallimard,1983.

PINEAU,Gaston.Pratiques de formation.Montreal:Andyre,1996.

SCHMIDT,BenitoBisso.Construindobiogra-fias.Estudos Históricos,RiodeJaneiro,n.19,p.3-21,1997._________.Ogênerobiográficonocampodoconhecimentohistórico.Anos 90,PortoAlegre,v.6,p.165-92,1996.