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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE DIREITO ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA LEGAL DE ABORTO NO BRASIL MARIA LUÍZA GALVÃO DE MEDEIROS Natal - RN

MARI A L UÍ Z A G ALV ÃO DE ME DE I RO S DE AMP L I AÇÃO

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Page 1: MARI A L UÍ Z A G ALV ÃO DE ME DE I RO S DE AMP L I AÇÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

DIREITO

ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE

DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA LEGAL DE

ABORTO NO BRASIL

MARIA LUÍZA GALVÃO DE MEDEIROS

Natal - RN

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MARIA LUÍZA GALVÃO DE MEDEIROS

ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE

DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA DE ABORTO

LEGAL NO BRASIL

Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado naUniversidade Federal do Rio Grande do Norte como requisitobásico para a conclusão do Curso de Direito.

Orientador (a): prof. Ivan Lira de Carvalho

Natal - RN

2021

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro CiênciasSociais Aplicadas - CCSA

Medeiros, Maria Luiza Galvão de.Análise jurídica acerca da viabilidade de

ampliação do sistema de aborto legal no Brasil /Maria Luiza Galvão de Medeiros. - 2021.86f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte, Ciências SociaisAplicadas, Curso de Direito. Natal, RN, 2021.Orientador: Prof. Dr. Ivan Lira de Carvalho.

1. Direitos fundamentais - Monografia. 2. Sistemalegal de aborto - Monografia. 3. Modelos vigentes -Monografia. I. Carvalho, Ivan Lira de. II.Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III.Título.

RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 342.7

Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355

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MARIA LUÍZA GALVÃO DE MEDEIROS

ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE DE AMPLIAÇÃO DOSISTEMA DE ABORTO LEGAL NO BRASIL

Trabalho de Conclusão de Cursoapresentado à Universidade Federal doRio Grande do Norte, como requisito paraa obtenção do título de bacharel emDireito.

Aprovado em: 10 de setembro de 2021.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________Prof. Dr. Ivan Lira de Carvalho

Orientador

________________________________________Profa. Dra. Karoline Lins Câmara Marinho de Souza

Examinadora

________________________________________Profa. Lidianne Araújo de Aleixo Carvalho

Examinadora

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5

Dedico esse trabalho a todas as mulheres que vieram antes de

mim e lutaram por uma realidade mais equitativa. O esforço

delas é imensurável e, devido a isso, sinto o dever de continuar

levantando pautas tão relevantes dentro da vivência feminina.

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RESUMO

Esta pesquisa está direcionada para a análise da garantia constitucional do aborto,

de modo a revelar os danos causados pela criminalização da prática dentro do

território brasileiro. A partir de estudos jurídicos e dos dados coletados por órgãos de

pesquisa e estatística em parceria com o Ministério da Saúde, comprovou-se a

ineficácia na proibição dos abortamentos fora das excludentes de ilicitude, algo que

estimula a prática de abortos clandestino e influencia no número de mortes maternas

anualmente. Diante disso, a pesquisa buscou traçar um panorama geral sobre a

origem da proibição da referida prática e como a mentalidade patriarcal de controle

sob os corpos femininos permanece expresso no escopo legal brasileiro. Os direitos

fundamentais continuam sendo violados para inúmeras pessoas que desejam

interromper suas gravidezes. Neste cenário, medidas foram tomadas para tentar

mudar tal situação, como a apresentação da ADPF 442, todavia, o texto penal ainda

rege o ordenamento jurídico pátrio, impedindo transformações significativas. Isto

significa que a mudança precisa partir do legislativo, como ocorreu nos países

vizinhos Uruguai e Argentina, mediante pressão e luta social por direitos. Ambas as

nações vizinhas demonstraram que um sistema de abortamento legal está apto de

funcionar dentro de uma realidade sociocultural latinoamericana, sendo exemplos a

serem seguidos. Quando o sistema mudar, finalmente, o Estado Democrático de

Direito estará resguardado no Brasil para milhares de pessoas.

Palavras-chave: Direito; Aborto; Descriminalização; Modelos vigentes.

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ABSTRACT

This research is focus at analyzing the constitutional guarantee of abortion, in order

to reveal the damage caused by the criminalization of the practice within Brazilian

territory. Based on legal studies and data collected by research and statistical

agencies in partnership with the Ministry of Health, the ineffectiveness of the

prohibition of abortions outside the exclusions of illegality was proven, something that

encourages the practice of clandestine abortions and influences the number of

maternal deaths annually. Therefore, the research sought to define an overview of

the origin of the prohibition of this practice and how the patriarchal mentality of control

over female bodies remains expressed in the Brazilian legal scope. Fundamental

rights continue to be violated for countless people who want to terminate their

pregnancies. In this scenario, measures were taken to try to change this situation,

such as the presentation of ADPF 442, however, the penal text still governs the

Brazilian legal system, preventing significant changes. This means that change

needs to come from the legislature, as happened in neighboring countries Uruguay

and Argentina, through pressure and social militancy for rights. Both neighboring

nations demonstrated that a legal abortion system is able to function within a Latin

American sociocultural reality, being examples to be followed. When the system

finally changes, the Democratic State of Law will be protected in Brazil for thousands

of people.

Keywords: Law. Abortion; Decriminalization; Current models.

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ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE

DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA DE ABORTO

LEGAL NO BRASIL

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………..10

2. A TEMÁTICA DO ABORTO…………………………………………………...……….10

2.1. CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DA PRÁTICA DO ABORTO………………..10

2.2. DEFINIÇÕES…………………………………………………………………………..20

2.3. TEORIAS RELATIVAS À ORIGEM DA VIDA……………………………………....222.3.1. Teoria Concepcionista………………………………………………………………242.3.2. Teoria Natalista……………………………………………………………………...262.3.3. Teoria do desenvolvimento do sistema nervoso…………………………………27

2.4 RELAÇÃO COM A SAÚDE PÚBLICA……………………………………………….28

3. O ABORTO SEGUNDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO………….34

3.1. ANÁLISE CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS QUE PERPASSAM A PRÁTICADO ABORTO…………………………………………………………………………….….34

3.1.1. Dos direitos fundamentais……………………………………………………..…..34

3.1.1.1. Direito à vida………………………………………………………………….......35

3.1.1.2. Direito à igualdade…………………………………………………………….….37

3.1.1.3. Direito à liberdade e autonomia…………………………………………………39

3.1.1.4. Dignidade da pessoa humana…………………………………………………..41

3.1.1.5. Direito à saúde…………………………………………………………………….43

3.1.1.6. Laicidade do Estado e o princípio da proporcionalidade……………………..44

3.2. DECISÕES FAVORÁVEIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL……………..48

3.3. INVESTIGAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL ACERCA DO ABORTO………….56

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4. MODELOS VIGENTES DE ABORTAMENTO LEGAL……………………………...64

4.1. SISTEMAS EM FUNCIONAMENTO AO REDOR DO MUNDO…………………64

4.2. MODELO URUGUAIO E ARGENTINO…………………………………………….67

4.3.ETAPAS PARA IMPLEMENTAÇÃO DO ABORTAMENTO LEGAL NOCONTEXTO BRASILEIRO………………………………………………………………...72

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………...75

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

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1. INTRODUÇÃO

O interesse pela temática é oriundo do sentimento pessoal de urgência em

relação à defesa dos direitos das mulheres, isto é, de compreender que os avanços

somente acontecerão se houver debate e pressão da sociedade, sendo a pesquisa

acadêmica um exemplo disto. Como também, a participação no grupo de pesquisa e

extensão do meu orientador foi um dos incentivadores, pois estudávamos o assunto

do aborto dentro do viés específico da subnotificação da prática, despertando minha

vontade em explorar mais profundamente a temática.

A descriminalização do aborto é um tópico que encontra muita resistência

para ser discutido, dificultando o avanço de suas proposições. O motivo reside,

principalmente, no significativo conservadorismo de grande parcela da sociedade

brasileira, oriunda de uma herança histórico-social cristã e da desinformação

generalizada. Os dispositivos que tipificam o aborto estão presentes no Código

Penal de 1940, ou seja, anterior ao marco constitucionalizador do ordenamento

jurídico brasileiro, consequentemente, não contemplando mais a evolução jurídica e

social ocorrida ao longo dos anos.

A presente pesquisa apresenta grande relevância social, visto que os direitos

fundamentais das mulheres continuam a ser violados sistematicamente no Brasil,

ferindo os princípios constitucionais, a dignidade da pessoa humana e a liberdade

individual para plena autonomia. Portanto, é necessário analisar as mudanças

jurisprudenciais realizadas recentemente, como a ADPF 442/16, além de elencar as

próximas pautas de reivindicação que deverão ser levantadas dentro da realidade

fática com fins de alcançar uma efetiva transformação. A investigação teórica do

presente trabalho possui o objetivo de apresentar o tema e propor mudanças.

2. A TEMÁTICA DO ABORTO

2.1 CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DA PRÁTICA DO ABORTO

De acordo com estudos antropológicos e historiográficos realizados por

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diversos pesquisadores ao longo dos séculos, sendo uma notória representante a

historiadora austríaca Gerda Lerner, a sexualidade feminina se tornou um dos

principais objetos de controle social desde muito cedo na história da humanidade,

motivado por uma busca essencialmente humana por poder e afirmação de força

dentro de uma necessidade latente de hierarquização social das sociedades

antigas.

Posteriormente, quando a família patriarcal já é o modelo hegemônico de

constituição de laços interpessoais, a divisão sexual com base na biologia dos

corpos humanos se aprimorou com o vislumbre da possibilidade de extensão dos

papéis de gênero pelos homens de forma a beneficiá-los dentro da esfera macro. O

corpo feminino passou a ser submetido a regras ainda mais rígidas de repressão,

acarretando o enraizamento de costumes culturais como a manutenção da

virgindade feminina antes do casamento e a troca comercial entre patriarcas de suas

filhas e os acordos derivados desse cenário.

Além disso, a herança bíblica e cultural hebraica foi fundamental para a

concretização do imaginário patriarcal nas sociedades mesopotâmicas antigas, na

medida em que toda a sua mitologia estava centrada em figuras masculinas

heroicas e na delegação às mulheres ao papel de serviência aos homens. Outra

ideia que foi aprofundada nos escritos hebraicos foi o perigo da sexualidade

feminina, a qual foi apontada como a causa principal da perda da inocência da

humanidade e sua consequente aquisição de mortalidade. Tal ponto foi crucial para

a afirmação do domínio masculino sobre os corpos femininos, pois de certa forma

não eram os homens que estavam argumentando a favor da falta de capacidade

das mulheres decidirem sobre seus próprios destinos, e sim um texto tido como

sagrado que expressava tal ideia, logo, sendo incontestável.

Desta forma, a próxima etapa era a mercantilização do corpo feminino.Isso

porque, Lerner elucida que o instituto da escravidão surgiu com base nos moldes

utilizados para a dominação das mulheres enquanto grupo, de forma que as

estratégias usadas foram muito similares, como a diferenciação de grupos e a

legitimação social, política e em alguns casos até religiosa para a opressão

daqueles tidos como diferentes. Esta categorização social foi idealizada para atingir

os mais variados objetivos, mas que todos eles orbitam em torno de poder.

Assim, a subjugação feminina pós-divisão sexual com base nas diferenças

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biológicas ganhou novos contornos quando o potencial econômico foi constatado

pelo grupo que detinha os privilégios de controle. Os homens, diante da sua

incapacidade reprodutiva, direcionaram sua desvantagem biológica para um

vantagem, de maneira que criaram narrativas variadas para manter as mulheres

resguardadas no espaço privado dos lares domésticos e utilizá-las como

mercadorias de acordos econômicos e políticos entre tribos distintas ou entre

famílias pertencentes ao mesmo coletivo.

A análise do controle sobre os corpos das mulheres se amplia para a questão

do aborto, enquanto esse ato tido como uma afronta às leis humanas e naturais da

maternidade. A pesquisadora supracitada elucida a problemática acerca do aborto

nos tempos primórdios, relatando através de detalhados estudos antropológicos a

precoce existência de leis proibitivas em relação à prática em questão e como o

conteúdo dessas leis servem para elucidar o funcionamento das dinâmicas de sexo

e classe.

Um exemplo que ilustra com eficiência esse cenário é a Lei de Hamurabi, a

qual é considerada um dos códigos mais importantes das sociedades antigas

mesopotâmicas, em seu texto se constata que as punições possuíam diferentes

intensidades de acordo com a classe da vítima, ou seja, a classe do homem, pois a

mulher era considerada como sua propriedade. Um dos exemplos que ilustram o

funcionamento desse código é que se um golpe desferido contra a filha de um

homem da alta classe causar um aborto espontâneo, a punição era de 10 “shekels”,

enquanto a filha de um burguês é de metade desse valor. Todavia, se o resultado for

a morte da mulher grávida, a punição para o primeiro caso é a morte da filha do

agressor, enquanto que se a filha do burguês vier a morrer, a punição é só uma

multa. Constata-se que a lei de talião (olho por olho, dente por dente) que impunha

essa equivalência nas punições era aplicada até para os crimes contra a vida e o

aborto espontâneo.

Por sua vez, a lei assíria conseguiu ampliar as possibilidades em relação às

condutas, agentes e punições. Para ilustrar existia nas normas do povo assírio uma

punição de equivalência para os casos em que o homem causar aborto espontâneo

em uma mulher casada, logo, sua esposa também deveria sofrer um aborto. Um

elemento interessante no código em questão era a previsão de um agravante para a

situação em que a família não tenha um filho menino, tornando a punição para o

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aborto causado por terceiro a morte do agressor. Em contrapartida, se o fruto do

ventre for uma menina e a família já tiver um filho homem, o agressor ainda assim

pagará com uma vida, apesar de não ser necessariamente a sua. Isso reflete o

domínio patriarcal do período em que os homens administram as propriedades e as

mulheres são objetos de troca, revelando o motivo da preferência.

Outrossim, ao se examinar a Lei Hebraica em sua obra “a criação do

patriarcado”,1 Lerner prossegue e constata características mistas presentes nas

diversas Leis Babilônicas, de forma que o princípio regente em todos os compilados

de leis analisados é a equivalência de punições e uma proteção implícita à

propriedade do homem, sendo necessário garantir a gestação de um herdeiro. Um

exemplo específico das normas hebraicas diz respeito ao aborto espontâneo

causado por terceiro no ato de agredir uma mulher, acarretando no estabelecimento

de uma multa pelo marido e este valor sendo imposto por juízes. No caso de

sobrevir a morte da gestante, aplica-se a lei de talião e o agressor deverá morrer.

Desse modo, é notório o caráter político nas legislações das sociedades da

Antiga Mesopotâmia, estando presente no alto grau de reprovabilidade que as

condutas relacionadas ao aborto detinham. Importante notar que o aborto constava

como crime público nesse período, de forma que o soberano deveria ser informado

sobre as principais ocorrências. Neste diapasão, as penas também possuíam uma

natureza pública, enquanto abarcadas como crimes graves, sendo algumas das

punições mais severas executadas no sistema legal médio-assírio o empalamento e

falta de enterro para os responsáveis pelo aborto.

Evidencia-se a expansão gradativa do controle sobre os corpos femininos do

âmbito privado para o público, no sentido de se tornar um assunto de regulação

estatal. Isso porque o soberano simbolizava o chefe da família dentro de um

macrossistema, que é a nação. Assim, o direito paterno de decidir sobre o rumo da

sua família, principalmente no referente às suas filhas e esposas, estava atrelado à

importância da manutenção da ordem social patriarcal.

Desta forma, a prática do aborto estava imbuída de punições bárbaras, tanto

na modalidade de ser realizado por terceiros como no autoinduzido. Este último,

inclusive, era considerado de extrema gravidade, pois seria um ato contra a

1 LERNER, Gerda. A Criação do Patriarcado: História da Opressão das Mulheres pelos Homens. 1.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2019.

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natureza e contra o divino, pois a mulher estaria abdicando das funções atribuídas

pela divindade como sagradas para a correta trajetória feminina no plano terreno.

Além disso, a conduta era lida como uma tentativa da esposa de usurpar o direito do

homem a ter herdeiros, passando a ser equivalente, em magnitude, a traição ou

atentado ao rei.

Gerda Lerner conclui sua explanação e, em seguida, atribui ao poder público

e ao Estado em sua forma embrionária o papel de constituidores dos valores

patriarcais e religiosos, guiando-se pelo viés econômico nesse processo. Logo, o

controle da sexualidade feminina é uma pauta constante dentro do exercício do

poder estatal, estando expresso na edição de leis vigentes no período que serviram

para ratificar os papéis de gênero até então presentes na cultura e moral do período,

além de perpetuar o plano de poder ideal cuja base era a manutenção de privilégios

dos grupo socialmentes dominantes. A classe e o gênero foram dois elementos

fundamentais para a instituição do modelo de organização cívica do período em

questão.

O segundo momento da história da humanidade crucial para a regulação da

sexualidade e reprodução com viés religioso foi a Idade Média. Tal período foi

extenso em termos quantitativos e é considerado por muitos historiadores como

obscuro devido a produção limitada de conhecimento acadêmico, literário e até de

registros históricos. Esse contexto ainda se agrava ao analisar as questões

relacionadas ao feminino, pois a historiografia estava sob poder masculino, sendo as

narrativas escolhidas para serem retratadas aquelas que fortaleciam o patriarcado.

Assim, toda a complexidade das vivências femininas foram relegadas a alguns

escritos, quando não ignoradas completamente.

Dito isso, uma pesquisadora do campo das ciências sociais responsável por

abordar o contexto medieval sob uma perspectiva marxista e feminista foi Silvia

Federici2. Em suas múltiplas obras, com destaque para “calibã e a bruxa”, a

pensadora consegue apresentar a força do caráter econômico e político para as

determinações estratégicas de condutas permitidas e proibidas que passariam a

reger toda um coletivo de pessoas, formando uma passividade reforçada pelo

revestimento divino, logo, inquestionável das imposições. Convém lembrar que a

2 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. 1. ed. São Paulo:Editora Elefante, 2017.

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Igreja Católica era um dos pilares estruturantes da administração feudal e

posteriormente estatal do território europeu, estabelecendo dogmas restritivos que

fundamentavam as dinâmicas sociais diárias, bem como a produção de

conhecimento.

Na Baixa Idade Média a economia feudal estava destruída, gerando uma

instabilidade econômica que se prolongaria por séculos e ditaria os rumos da

Europa Ocidental. Iniciou-se, consequentemente, um processo definido pelo próprio

Karl Marx, em sua obra “O capital”, de “acumulação primitiva”, em que como

resposta à crise de acumulação a classe dominante europeia tentou realizar uma

reestruturação social e econômica, colocando em prática, entre outras medidas,

uma ofensiva global de apropriação de riquezas e expansão de mão-de-obra e

mercado consumidor em diversos territórios espalhados pelo mundo, invadindo e

explorando-os.

A partir do desenvolvimento embrionário das bases de uma economia

capitalista, em que no período em questão ainda era intitulado de mercantilista, as

condições materiais estavam postas para o agravamento da exploração laboral e o

enrijecimento das condutas permitidas socialmente. A Europa desse contexto

pré-capitalista estava enfrentando as consequências da instituição de políticas

voltada à acumulação de capital, como a pauperização das classes trabalhadoras,

afetando a produção agrícola e gerando miséria e fome para grande parcela da

população. Some-se a isso o aparecimento da Peste Negra, entre os anos de 1345

a 1348, a qual gerou uma crise populacional sem precedentes.

Desta forma, Sílvia Federici aponta que é nesse momento específico de caos

generalizado relacionado ao problema da relação entre trabalho, população e

acumulação de riquezas; que o debate e as estratégias políticas acerca de

intenções de implementar uma política populacional e um regime de “biopoder”

ganham relevância no cenário macrossocial. Tal teoria encontra convergência

também com os escritos do sociólogo francês Michel Foucault, em que ele aponta a

crise populacional europeia dos séculos XVI e XVII como o fator determinante para

que a reprodução e o crescimento populacional entrassem na agenda pública como

pauta prioritária estatal. Outrossim, em sua consagrada obra "História da

sexualidade” de 1976, Foucault aponta como imprescindível para o projeto de poder

a utilização da narrativa do controle dos corpos.

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A pensadora supracitada busca expandir a análise feita por Foucault ao

apontar as mulheres como as principais vítimas dessas novas políticas. Diante

desse cenário, o pensador francês explica que o biopoder, enquanto poder exercido

de forma a limitar o exercício pleno da liberdade individual, pode ser convertido em

agenda de poder estatal transformando-se em biopolítica. A partir dessa cooptação

do controle sob o corpo para a dominação das massas, até a vida e morte deixam de

ser apenas fenômenos naturais de transcurso da vida humana para se tornarem

objetos políticos com finalidades que atendam às estruturas hegemônicas da

sociedade, como o capitalismo e patriarcado.

Em decorrência disso, as mulheres acabam se tornando ainda mais

vulneráveis com o estabelecimento do Estado e com a criação de políticas públicas

vinculantes a todos os cidadãos que estão sob a sua égide. Isso porque, o projeto

de poder dos soberanos e posteriormente das entidades estatais foi erguido sob as

bases do já consolidado patriarcado, logo, a submissão feminina era tida como

natural e aceita socialmente. Assim, a objetificação e mercantilização do corpo das

mulheres se encontravam enraizados nos comportamentos e simbologias das

sociedades ocidentais, como o casamento virgem feminino e a posterior dedicação

exclusiva das mulheres aos trabalhos domésticos e cuidados com a prole.

Neste sentido, foi no contexto em questão que ocorreu a intensificação da

“caça às bruxas” e os novos métodos disciplinares do Estado, ambos objetivando a

regulação da procriação e diminuição da autotutela feminina sobre seu próprio

corpo. Logo, a Igreja Católica aparece para fornecer os subsídios narrativos

necessários para legitimar esse controle sobre as mulheres ao demonizar a figura

da “bruxa”, que seria aquela mulher que sacrificava bebês em rituais satânicos ou

viviam isoladas em florestas sem ter filhos, para citar alguns exemplos. Constata-se

a finalidade política de atacar com o moralismo religioso qualquer forma de controle

de natalidade e de sexualidade não procriativa.

Em decorrência das estratégias apontadas, houve a necessidade de utilizar o

aparato estatal para aumento da eficácia repressiva, acarretando na edição de leis

que criminalizam diversas condutas relacionadas à procriação e exercício livre da

sexualidade, como a imposição de severas penas para à contracepção, ao aborto e

ao infanticídio. Em relação ao infanticídio, tornou-se um crime punível com pena de

morte e castigado com rigidez desproporcional, principalmente, quando se observa

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os delitos masculinos e suas penas.

Ao se tratar do aborto, novas formas de vigilância foram instituídas pelo

aparato estatal de maneira a garantir que interrupções de gravidez não fossem

realizadas. Um exemplo que ilustra essa nova tática é um édito francês de 1556 que

obrigavam as mulheres o registro de cada gravidez e em caso de morte do bebê

antes do batismo em parto clandestino a mãe seria sentenciada à pena de morte,

independente de ter dolo ou não. Além disso, o Estado também desenvolveu um

sistema de espionagem com o objetivo de fiscalizar as mães solteiras e privá-las de

qualquer apoio que pudessem levá-las a um aborto. Uma das estratégias para gerar

um temor coletivo foi ameaçar os colaboradores dessas mulheres com processos ou

incentivar uma repulsa social em torno da proximidade com as infratoras.

Nesse sentido, as mulheres tornaram-se as principais rés do sistema jurídico

europeu, entre os séculos XVI e XVII, sendo processadas em larga escala pelos

crimes mencionados, como aborto, infanticídio e bruxaria. É relevante perceber que

as acusações orbitavam em torno de proteger o feto e violações de normas

reprodutivas, como também foi nesse período que a atribuição de responsabilidade

legal às mulheres foi ampliada estrategicamente. Portanto, pela primeira vez, a

figura feminina ingressou massivamente nas cortes da Europa, em nome próprio

como legalmente adultas, sob a acusação de bruxaria e assassinato de crianças.

Outro elemento importante para a restrição da liberdade feminina sobre o seu

próprio corpo foi a marginalização das parteiras na realização majoritária dos partos.

Isso porque o Estado, amparado pela Igreja, não poderia permitir que uma função

tão direta do ato de dar vida às novas crianças pudessem ficar sob responsabilidade

de outras mulheres. Desse modo, as parteiras se tornaram grandes suspeitas de

cumplicidade com as mulheres desviantes das normas, substituindo-as por figuras

médicas masculinas, as quais realizavam o parto ou então deveriam estar presentes

na sala quando esse ocorresse. Tal medida refletia a intenção política de submeter a

procriação às instituições, reduzindo as mulheres ao papel passivo de ter a criação.

Importante ressaltar que foi nesse contexto que surgiu a prática médica de priorizar

a vida do feto em detrimento da mãe, conduta essa que perdurou durantes muitos

anos nas sociedades ocidentais.

A pesquisadora Silvia Federici observa, em seu mencionado livro “Calibã e a

bruxa”, como resultado final da adoção dessas medidas de controle de natalidade e

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repressão da sexualidade feminina a escravização de mulheres à procriação. Isso

porque, segundo seus estudos demonstraram, as mulheres medievais desfrutavam

de uma certa liberdade em fazer uso de métodos contraceptivos e poder decidir

sobre seus partos. Todavia, o útero se torna um território político ao se vislumbrar o

poder que o controle poderia proporcionar, levando ao retrocesso da autotutela

feminina semelhante ao período da Idade Antiga nas sociedades mesopotâmicas.

Portanto, o corpo feminino nesse período foi direcionado ao atendimento das

necessidades do capital (mão-de-obra e mercado consumidor) e aos planos

civilizatórios da Igreja Católica, afastando o ato de procriar do “natural” e feminino e

colocando-o como pauta pública e prioridade máxima do Estado pré-capitalista.

Em seguida, a base paternalista dos Estados Modernos possui como origem

as dinâmicas culturais e morais religiosas de cunho patriarcal, as quais foram

aprimoradas com o decorrer dos séculos acarretando estruturas complexas que

garantem privilégios e oprimem grupos específicos. Dito isso, ao se analisar o

contexto de formação das sociedades latino-americanas, tendo o Brasil como o

objeto de estudo, é notório que a regulação social da sexualidade e reprodução

permeia o imaginário coletivo em decorrência de uma ampla construção de

símbolos, comportamentos e normas que são tidos como permitidos socialmente.

Desse modo, o Estado na América Latina parte de alguns pontos essenciais

para o seu entendimento que já foram apontados como fundantes da diferenciação

de gêneros e da atribuição de seus papéis, como a distinção entre os âmbitos

público e privado, sendo os primeiros destinados aos homens e o segundo às

mulheres. Tal critério de inclusão e exclusão tornou-se um elemento institucional, de

forma que as esferas de poder, simbólico e prático, são idealizadas no masculino. As

consequências dessa ocupação majoritária é a subcidadania feminina e a extrema

hierarquização social com base em gênero, raça e classe.

Segundo a pensadora moderna, Giovanna Zincone, em sua obra “da sudditti

a cittadini”, há elementos muito importantes que podem ser extraídos da dicotomia

moderna do público/privado, em que é gerada uma natureza dual do poder, o qual se

divide em poder político e poder familiar/hierárquico. O primeiro, aponta a autora, é

caracterizado pela equivalência entre as partes, envolvendo negociação de conflitos

e interesses, além do aspecto essencial do reconhecimento recíproco das

capacidades políticas dos participantes em suas mais diversas interações. Em

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contrapartida, a segunda espécie não é dotada de equiparação, acarretando

marcações sociais diferentes para as partes envolvidas, sendo baseado em

concepções naturalistas e hierárquicas de “poder decisório”, no princípio da

autoridade e na ideia de desigualdade natural das capacidades políticas e das

vocações sociais.

Evidencia-se, assim, a força da duplicidade do poder em sua

instrumentalização para fins de organização da regulação social do corpo e sua

sexualidade e reprodução, sendo responsáveis por desenvolver instituições

norteadas por esses valores. Em decorrência do cenário apontado, as dimensões da

vida privada e coletiva foram permeadas ao longo da história por figuras que

materializam a autoridade paterna, sendo elas o pai chefe de família, o patrão, o

senhor, o sacerdote, o coronel e em última instância até o próprio Estado. Por sua

vez, o campo institucional refletia o modelo patriarcal vigente e intensificava-o

através da ocupação quase totalitária de altos cargos de poder e na criação de leis,

as quais, entre outras coisas, limitavam a liberdade feminina em relação a autotutela

de seu corpo, como na criminalização do aborto.

Um dos principais pensadores do século XX a abordar a temática do controle

da sexualidade foi o francês Michael Foucault, em sua consagrada obra "História da

sexualidade”3, na qual ele aponta como imprescindível para o projeto de poder a

utilização da narrativa do controle dos corpos. É ainda mais notório essa relação ao

se analisar o corpo feminino, pois a repressão se estende da sexualidade e alcança

também o elemento da capacidade reprodutiva, gerando, logo, uma complexa

estrutura que funciona com base na massiva submissão feminina.

Desse modo, Foucault inaugura o conceito de “biopoder”, em que ele afirma

que surgiu por volta da metade do século XVIII, objetivando complementar o poder

disciplinar do aparato estatal e conseguir abarcar novas complexidades sociais,

oriundas das transformações nos meios de produção, industrialização, urbanização,

dentre outros processos que marcaram tal período. Diante desse cenário, o

pensador francês explica que o biopoder, enquanto poder exercido de forma a limitar

o exercício pleno da liberdade individual, pode ser convertido em agenda de poder

3 Ver Foucault, Michel (1976), História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. M.T. C.Albuquerque e. J. A G. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1977b.

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20

estatal transformando-se em biopolítica. A partir dessa cooptação do controle sob o

corpo para a dominação das massas, até a vida e morte deixam de ser apenas

fenômenos naturais de transcurso da vida humana para se tornarem objetos

políticos com finalidades que atendam às estruturas hegemônicas da sociedade,

como o capitalismo e patriarcado.

Em decorrência disso, as mulheres acabam se tornando ainda mais

vulneráveis com o estabelecimento do Estado e com a criação de políticas públicas

vinculantes a todos os cidadãos que estão sob a sua égide. Isso porque, o projeto

de poder dos soberanos e posteriormente das entidades estatais foi erguido sob as

bases do já consolidado patriarcado, logo, a submissão feminina era tida como

natural e aceita socialmente. Assim, a objetificação e mercantilização do corpo das

mulheres se encontravam enraizados nos comportamentos e simbologias das

sociedades ocidentais, como o casamento virgem feminino e a posterior dedicação

exclusiva das mulheres aos trabalhos domésticos e cuidados com a prole.

2.2 DEFINIÇÕES

A temática acerca do aborto permite análises múltiplas dentro de áreas do

conhecimento diversas, como a perspectiva legal, médica, social, entre outras.

Diante disso, o debate torna-se complexo e abrangente, existindo grupos

heterogêneos que encontram argumentos distintos para defenderem suas teses com

objetivos políticos particulares. Segundo foi analisado no presente trabalho dentro

do segmento do contexto histórico, a questão do aborto não é uma pauta recente,

logo, as narrativas que serão apresentadas datam de séculos atrás, bem como seus

interlocutores foram apenas se atualizando, mas são movidos por interesses

constantes na história da humanidade.

Dito isso, o primeiro ponto de partida relevante utilizado como parâmetro para

a defesa ou condenação do ato de abortar é a origem da vida humana. Tal

problemática é complexa, envolvendo discussões nas áreas de ciências biológicas,

parâmetros jurídicos e espiritualidade. Assim, a primeira distinção apontada por

estudiosos da ética biológica é a diferenciação entre “ser humano” e “pessoa”, em

que o primeiro é compreendido através de uma perspectiva biológica de

pertencimento à uma determinada espécie, enquanto o segundo é uma abstração

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21

moral e social da espécie inserida no contexto tido por civilizatório, sendo utilizado

como objeto de proteção institucional.

Além disso, ainda dentro da análise da bioética desenvolvido pelo Conselho

Federal de Medicina, existem quatro modalidades de abortamentos realizados

contra a figura do nascituro, ou seja, o ser concebido que se encontra no ventre

materno, sendo eles:

a) Interrupção eugência da gestação (IEG): casos de aborto ocorridos

devido a valores racistas, sexistas, étnicos etc., ou seja, devido a

práticas eugênicas, como, por exemplo, os praticados pela medicina

nazista, período em que mulheres foram obrigadas a interromper a

gravidez por serem judias, ciganas ou negras.

b) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): casos de aborto nos quais a

gestação traz riscos de vida à gestante.

c) Interrupção seletiva da gestação (ISG): casos de aborto em que se

constatam anomalias no feto, como é o exemplo da anencefalia.

d) Interrupção voluntária da gestação (IVG): casos de aborto ocorridos

levando em consideração a vontade própria da gestante ou do casal,

que não desejam levar a gravidez adiante, seja em situação de estupro

ou não.

Outrossim, faz-se relevante apontar a definição apresentada pela

Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo tal órgão, o aborto consiste na

retirada do feto ou embrião, antes que ele adquira vida extrauterina, ou seja, que a

interrupção seja realizada até as 22 (vinte e duas) semanas, em média, quando o

feto pesa em torno de 500 (quinhentas) gramas.

A definição com o revestimento jurídico foi realizada por diversos juristas

renomados, ressaltando-se o fato de que nenhum código de leis brasileiro estipulou

uma conceituação explícita sobre o instituto. Dito isso, cabe selecionar o lecionado

pelo penalista Fernando Capez4:

“Aborto é a interrupção da gravidez, com a consequente destruição

4 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

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do produto. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. Não faz

parte do conceito de aborto a posterior expulsão do feto, pois pode

ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo

organismo materno em virtude de um processo de autólise; ou então

pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração,

de modo que continue no útero materno” (CAPEZ, 2019, p.119).

A partir disso, uma análise clínica5 detalhada foi desenvolvida de modo a

facilitar a compreensão das nuances presentes do ato de abortamento, instituindo

alguns critérios úteis para o pleno entendimento, sendo eles: a) a idade gestacional:

considera-se aborto precoce o ocorrido antes da 12ª semana e aborto tardio entre a

12ª e 20ª semana; b) o peso fetal: é aborto acontece quando o feto pesa menos que

500gramas, considera-se imaturo o feto que pesa entre 500 e 999 gramas, e

prematuro, o que pesa entre 1000e 2500gramas; c) forma: o aborto pode ser

espontâneo, no qual não existe condição precipitante para ensejá-lo, ou

induzido,nos casos em que a gravidez é interrompida por conduta da gestante ou de

terceiros; e d) quadro clínico: podendo o aborto ser apenas ameaça, ou considerado

inevitável, incompleto, completo ou retido/frustrado. (SALOMÃO, 1994, p. 363).

2.3 TEORIAS RELATIVAS À ORIGEM DA VIDA

É nesse cenário de análise do início da vida humana que os debates acerca

da legitimidade ou não do aborto se concentram, gerando argumentos múltiplos

empenhados na defesa da permanência do status proibitivo do aborto ou na

descriminalização do ato dentro de parâmetros específicos.

Convém ressaltar que, de acordo com matéria realizada pela jornalista Karla

Bernardo Montenegro6, o Supremo Tribunal Federal, no ano de 2005, promoveu um

amplo debate público envolvendo vinte e dois especialistas de áreas como genética,

bioquímica, neurociências e biomedicina com o objetivo de aprofundar a discussão

em torno da seguinte pergunta: “Quando se inicia a vida e a partir de que etapa do

6 Matéria intitulada: “Início da Vida” no STF. Publicada no portal Ghente, disponível em:http://www.ghente.org/entrevistas/inicio_da_vida.htm.

5 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara Neme, 1994.

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23

desenvolvimento embrionário o embrião é pessoa humana merecedora da proteção

do Estado?”. A medida em questão foi motivada pela promulgação da Lei de

Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), a qual permite a utilização de células-tronco

embrionárias congeladas diante de circunstâncias específicas, e a posterior

resposta oriunda da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 3510, de maio de

2005) proposta pelo ex-subprocurador-geral da República, Cláudio Fonteles.

Dito isso, a partir dos estudos da embriologia humana, constata-se que a

formação do embrião ocorre após a fecundação, ocorrendo o compartilhamento de

material genético e a posterior constituição do zigoto. Este último se desloca para a

tuba uterina e se adere ao útero, começando a formar uma placenta. Na segunda

semana, a implantação do embrião no útero acontece, permitindo a produção do

hormônio base dos testes de gravidez (hCG),7 enquanto na terceira ocorre a

gastrulação, na quarta, por sua vez, inicia-se o processo de neurulação, ou seja,

formação das estruturas precursoras do sistema nervoso.

Adiantando para a décima sexta semana é que o início das sinapses8 serão

realizadas nos circuitos neurais do feto, sendo um importante feito. Ao seguir para a

vigésima oitava semana, a formação dessas sinapses terá aumentado e o

funcionamento do sistema auditivo estará em processo primitivo de

desenvolvimento. Por fim, na trigésima segunda semana, o feto terá autonomia para

controlar a respiração e temperatura corporal, estando, logo, apto para sobreviver

na vida extrauterina.

Após o resumo simplificado das etapas embrionárias pelas quais passam o

ser humano no início de sua formação dentro do corpo materno até o momento de

expulsão e posterior vida plena extrauterina, há uma viabilidade para a

apresentação das teorias relativas ao início da vida humana. Inclusive, tais debates

permeiam aspectos que extrapolam o biológico e entram em esferas espirituais e

até jurídicas, como a origem da personalidade humana, recaindo na distinção

realizada anteriormente entre ser humano e pessoa.

8 LENT, Roberto. Cem bilhões de neurônios? conceitos fundamentais de neurociência. 2. ed.São Paulo: Atheneu, 2010. p 36. No ponto de encontro dos lábios do sulco neural, quando o tuboestá prestes a se formar, algumas células se destacam e constituem duas lâminas longitudinais,conhecidas como cristas neurais. A placa e, depois, o tubo e as cristas neurais, podem serconsideradas as mais precoces estruturas precursoras do sistema nervoso.

7 MOORE, Keith L; PERSAUD, T.V.N; TORCHIA, Mark G. Embriologia básica. 8. ed. Rio deJaneiro: Elsevier, 2012. p 1. O termo conceito refere-se a todos os produtos da concepção, incluindo oembrião a partir da fecundação e suas membranas.

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2.3.1 Teoria Concepcionista

A teoria concepcionista defende que a origem da vida humana se inicia na

primeira fase do desenvolvimento embrionário, ou seja, a partir da concepção, que é

quando o espermatozóide penetra no ovócito e ambos se fundem, acarretando na

aquisição de identidade genética individual. Em decorrência disso estaria adquirida

também a condição de pessoa e os valores atrelados a esse status.

A vertente em questão detém múltiplos defensores, atravessando o aspecto

religioso com a espiritualidade do ser e alcançando o viés jurídico com a aquisição

de personalidade civil. Quanto à primeira análise, conforme foi abordado ao longo do

presente trabalho, a constante presença da religião na tutela do corpo feminino está

presente desde os primórdios da humanidade, porém ganhou contornos expressivos

durante o período medieval com as imposições morais da Igreja Católica. Nas

sociedades contemporâneas ocidentais ainda é perceptível a força dos argumentos

religiosos acerca da temática, principalmente por estarem respaldados em

instituições poderosas que alicerçam nossas instituições. Assim, no Brasil atual, o

cristianismo norteador de várias igrejas continua realizando mobilizações em massa

sob o argumento de proteger a vida do feto tido como possuidor de uma alma,

fazendo com que seus defensores ataquem as tentativas de descriminalização do

aborto.

Por outro lado, os juristas civilistas em quantidade expressiva, tendo como

uma de suas representantes a pesquisadora Stella Maris Martínez,9 argumentam

que a partir da fecundação surge uma nova vida distinta dos progenitores em

decorrência do zigoto deter patrimônio genético próprio. Tal ponto é fortemente

atrelado ao conceito de potencialidade de desenvolvimento, ou seja, o fato do óvulo

fecundado trazer consigo a “capacidade de realizar seu destino humano”, mediante

o decorrer do seu processo em fases sucessivas posteriores.

O Código Civil brasileiro de 2002 enseja a abertura para as argumentações

apresentadas, tendo em vista que em seu artigo 2º expressa: “a personalidade civil

da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a

concepção, os direitos do nascituro”. Desse modo, reconhece a tese da

personalidade do nascituro a partir da concepção, descartando o nascimento com

vida como o ponto inicial, diferente dos direitos patrimoniais que se pautam na9 MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e Direito Penal. São Paulo : IBCCrim, 1998.

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segunda hipótese. Diante disso, juristas como a renomada civilista Maria Helena

Diniz10 ratifica o posto em lei ao afirmar:

“Entendemos que o início legal da personalidade jurídica é o momento da

penetração do espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher, pois os

direitos da personalidade, como o direito à vida, à integridade física e à saúde,

independem do nascimento com vida. Apenas os direitos patrimoniais, como o de

receber doação ou herança, dependem do nascimento com vida, conforme a

segunda parte do art. 2.º do Código Civil.”

Há o posicionamento no mesmo sentido expresso pelo Pacto de São José da

Costa Rica e a Convenção dos Direitos da Criança11, o qual dispõe: “a existência

das pessoas começa a partir do momento da concepção. De acordo com esse

pensamento, a partir da união dos gametas masculindo e feminino, passa a existir

um novo ser, uma pessoa individualizada e distinta de outro indivíduo.” Em paralelo,

o jurista Fernando Capez complementa sob a perspectiva penalista ao afirmar que o

Código Penal não faz a distinção entre óvulo fecundado, embrião ou feto, logo, o

encerramento da “vida” entre a concepção e o parto fora das possibilidades legais é

crime de aborto.

No entanto, a teoria concepcionista é amplamente criticada, em especial por

argumentos dos estudiosos da embriologia e genética. Isso porque, a presença do

código genético individual não é uma exclusividade do zigoto, pois qualquer célula

humana contém patrimônio genético completo e individualizado de seu portador,

logo, tornando-a similar a todas as demais células do corpo.

Desta forma, o fato da potencialidade do novo ser está amparada no

argumento da união de gametas é algo que desconsidera a imensidade de zigotos

que estão destinados ao fracasso, além de rejeitar que o começo concepcional da

vida é sempre um início abstrato por estar sujeito à múltiplas inferências post factum.

Portanto, com base nessa lógica, seria necessário estender a tutela jurídica do

embrião recém-formado para os demais gametas e suas potencialidades, para citar

um exemplo da falha argumentativa desse discurso mencionado pela professora

11 Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de SanJosé de Costa Rica”), 1969.1 ed. Sage Publications, Inc, 2008.

10 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 9. ed. rev., aum. e atual. de acordo com oCódigo de Ética Médica. São Paulo: Saraiva, 2014.

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26

Minahim em sua obra “Direito penal e biotecnologia”. 12

2.3.2 Teoria Natalista

A teoria natalista define o nascimento com vida como condição necessária

para a aquisição de personalidade jurídica, de modo que anterior ao momento

mencionado o nascituro gozaria apenas de uma mera expectativa de direito.

Cumpre destacar que o “nascimento com vida”, para os adeptos da corrente teórica,

significa o adequado funcionamento do aparelho cardio-respiratório do recém

nascido, independente da forma humana e do tempo mínimo de sobrevida. Explica o

jurista Neves que “para os adeptos dessa teoria, a personalidade civil começa do

nascimento com vida, e isso porque só a pessoa pode ter personalidade, e o

produto da concepção não é a pessoa, é apenas uma parte do corpo da mulher”.

Neste cenário, o jurista Clóvis Beviláqua13 leciona que o Código Civil

Brasileiro adotou parcialmente a Teoria Natalista, em que o nascituro não existe

como pessoa, passando a ser um indivíduo apenas se ocorrer o nascimento com

vida. Expressa o professor: “o legislador civilista teria adotado a Teoria Natalista por

ser mais prática, mas cedeu aos encantos da Concepcionista em inúmeros pontos

do sistema que tratam do nascituro como pessoa”. Assim, se ocorrer o nascimento

sem vida, todos os direitos se extinguem, porém, se viver, mesmo que por segundos,

os direitos ficarão adquiridos e poderão ser transmitidos (posse, direito à herança,

direito à adoção, direito à curatela). Em contrapartida, o bem jurídico da vida do

nascituro é protegido no tipo penal do aborto, considerando o nascituro como pessoa

detentora de direitos.

Os defensores da presente teoria afirmam que, no momento anterior ao

nascimento daquele que ainda é considerado nascituro, o produto do corpo humano

não é entendido como indivíduo e não possui personalidade jurídica. Logo, no vago

espaço entre a concepção e o nascimento há uma expectativa de personalidade, e

com base nesse entendimento, o aborto provocado é punido pelas leis penais e a

legislação civil reserva e a cautela direitos. Percebe-se, então, uma certa

13 BEVILÁQUA, Clóvis. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975.

12 Ver MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais,2005.

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27

compatibilidade com a instauração do regime de abortamento legal. Alguns

representantes dessa escola na doutrina brasileira, dentre outros, são os autores

Sérgio Abdalla Semião, Caio Mário da Silva Pereira, Sílvio Rodrigues, e Humberto

Theodoro Júnior.

Destaca-se a diferença essencial entre a teoria natalista e a teoria da

personalidade condicional, pois ambas somente diferem no fato da primeira defende

que a personalidade civil do homem se inicia com o nascimento com vida, enquanto

a segunda pondera que a personalidade civil do homem é oriunda do nascimento

com vida, todavia, o nascituro teria direitos que estariam sob a dependência de uma

condição suspensiva que, por sua vez, consiste no fato de nascer com vida. Por fim,

é notório que diante das duas teorias aqui apontadas, a legislação brasileira adotou

a teoria natalista.

2.3.3 Teoria do desenvolvimento do sistema nervoso.

A teoria da formação do sistema nervoso encontra-se atrelada ao conceito de

morte extraído do art.3º da Lei 9.434/1997, que disciplina sobre o transplante e

tratamento de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Há a compreensão por

parte de seus defensores de que a inatividade cerebral determina a morte do

indivíduo, posto que a morte encefálica é o marco do período post mortem. Em vista

disso, entende-se a atividade cerebral como o início da vida humana, embora

encontre-se divergências sobre o momento em que tal atividade se estabelece no

desenvolvimento embrionário.

Diante disso, o marco do início da vida seria a partir do desenvolvimento da

organização básica do sistema nervoso central. A não formação do córtex central,

na maior parte das vezes, gera o aborto espontâneo, uma vez que o organismo

materno nega o embrião, como se não o reconhecesse, eliminando-o. Este é o

principal motivo que leva os fetos anencéfalos a não nascerem no tempo normal.

A teoria rudimentar do sistema nervoso defende que a origem da vida

humana acontece na oitava semana, diante da funcionalidade dos aparelhos

cerebrais e nervosos, identificando-se atividade cerebral. Esta atividade deve estar

relacionada à capacidade de consciência, posto que o ser humano é

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28

fundamentalmente consciente, capacidade que o difere dos demais seres vivos,

segundo o principal defensor da corrente, Jacques Monod.

Durante a sexta semana, ocorrem os vestígios de meros impulsos individuais

das células neurais, de modo que na oitava semana a atividade bioelétrica dos

novos neurônios se intensifica. As células neurais se aproximam até se conectarem

umas com as outras a fim de transmitir informação-junção comunicante. Cumpre

destacar, a existência de um vertente que acredita que o abortamento deveria ser

feito até a oitava semana, pois é quando ocorre o aparecimento “das primeiras

estruturas que darão origem ao sistema nervoso central”. Na décima sexta semana,

formam-se os circuitos neurais e acontecem as primeiras sinapses, de natureza

elétrica.

No entanto, é somente na vigésima semana que se constata as ondas

cerebrais, sendo considerada pelos representantes da outra vertente da teoria em

questão como o marco inicial da vida humana. A atividade cerebral do feto permite a

tradução das informações sensoriais, cujas principais características são: o controle

da motricidade, a percepção sensorial, a participação na regulação das funções

orgânicas e dos vasos sanguíneos e a contribuição para manutenção da vigília (sem

necessidade de consciência). Complementa-se, também, ao marco de vinte

semanas o fundamento biológico referente ao “argumento da morte cerebral”,

quando completada a formação do sistema nervoso central nesse período.

Ao analisar os conhecimentos apresentados na teoria do desenvolvimento do

sistema nervoso e considerando a consciência como propriedade evolutiva e

essencial do ser humano, é possível atrelar o abortamento legal reivindicado na

ADPF 442 com a formação do sistema nervoso do feto. Portanto, os defensores da

descriminalização do aborto no Brasil solicitam em diversas ações o tempo limite de

até doze semanas para solicitação da prática do abortamento legal, levando em

consideração a intensificação das atividades neurais do feto, as quais geram uma

espécie de consciência embrionária.

2.4. RELAÇÃO COM A SAÚDE PÚBLICA

O aborto no Brasil está envolto de diversas dificuldades que envolvem a

obtenção da informação e de relatos por parte das mulheres, sendo objeto de forte

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repercussão social. O motivo maior para a repercussão está na relação com

aspectos morais, éticos, legais e religiosos, cuja avaliação depende da singularidade

de cada pessoa. Quando o aborto é induzido por razões médicas, realizado por

profissionais capacitados e em boas condições de higiene, é um procedimento

seguro. Todavia, quando feito de maneira inadequada, geralmente resulta em graves

complicações e inclusive na morte da mulher.

Diante disso, o abortamento é representado como um grave problema de

saúde pública. Considerando apenas o território nacional, a estimativa fornecida

pelo Ministério da Saúde é de que ocorram anualmente mais de um milhão de

abortamentos induzidos, sendo uma das principais causas de morte materna no

país. O MS considera a saúde da mulher prioridade. O documento Política Nacional

de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e diretrizes14, elaborado a partir

de diálogo com diversos setores sociais, reflete o compromisso com a

implementação de ações de saúde que contribuam para garantir os direitos

humanos das mulheres e diminuir a morbimortalidade por causas preveníveis e

evitáveis.

Outrossim, o Ministério da Saúde, em 2009, elaborou uma Cartilha chamada

de “Aborto e Saúde Pública – 20 anos”15, com uma compilação de 20 anos de

estudos a respeito do tema. Os principais objetivos do documento em questão é

destacar a importância da questão para a saúde pública no país, apesar de advertir

sobre a dificuldade de se levantar dados a respeito do aborto, pelo motivo da

dificuldade de obtenção da informação oriunda da criminalização da prática.

No território brasileiro, os dados referentes aos abortos praticados, bem como

às mortes decorrentes de procedimentos clandestinos, são possivelmente

subestimados, haja vista que tais pesquisas englobam dados oficiais e captados

junto à rede pública de saúde, que de forma geral atende pessoas de baixa renda.

Por tratar-se de um crime, torna difícil localizar clínicas clandestinas, bem como

identificar os dados a respeito de procedimentos abortivos praticados nesses locais.

Logo, expõe o Ministério da Saúde na mencionada cartilha:

15 ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Aborto esaúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. 428 p. (Série B. TextosBásicos de Saúde).

14 BRASIL. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, Ministério da Saúde,Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas– Brasília:Ministério da Saúde, 2011.

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30

“O maior desafio para o cálculo da magnitude do aborto no Brasil é a

dificuldade de acesso a dados fidedignos, além do alto número de

mulheres que omitem ter induzido aborto em questionários com

perguntas diretas. Em finais dos anos 1980, foi testada a técnica de

resposta ao azar para estimar a indução do aborto em uma ampla

amostra populacional de mulheres. Por meio da abordagem direta,

encontrou-se a incidência de oito abortos a cada 1.000 mulheres, ao

passo que, com a técnica de resposta ao azar, chegou-se a 42 a

cada 1.000, ou seja, uma incidência cinco vezes superior.” (Aborto e

Saúde Pública – 20 anos. Ministério da Saúde, 2009. Fl. 16).

De acordo com a citada Cartilha, os estudos descritivos adotam como

variáveis: idade, classe social, religião, tempo gestacional, tipo de aborto,

procedimento abortivo, tempo de internação e complicações de saúde. As variáveis

médicas são mais regulares entre as pesquisas, permitindo, por sua vez, uma

melhor comparação e síntese, ao passo que as variáveis sociais, em particular

conjugalidade, educação e inserção no mundo do trabalho, apresentam diferentes

sistemas classificatórios, o que dificulta a síntese.

A Pesquisa Nacional do Aborto16, realizada em 2016, corroborou com a

afirmação de que o aborto é comum entre as mulheres brasileiros, pois das 2.002

mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos entrevistadas pela PNA 2016, 13% (251)

já fez ao menos um aborto. Na faixa etária de 35 a 39 anos, aproximadamente 18%

das mulheres já abortaram. Entre as idades de 38 e 39 anos a taxa sobe a quase

19%. A predição por regressão linear das taxas de aborto pelas idades é de que a

taxa a 40 anos é de cerca de 19%. Por aproximação é possível dizer que, em 2016,

aos 40 anos de idade, quase uma em cada cinco mulheres já fez aborto (1 em cada

5,4).

Outra relevante pesquisa para a tentativa de estimar a dimensão causada

pela criminalização foi a realizada pela OMS, a qual salienta que a situação pode

ser ainda mais alarmante do que se aparenta. O número de abortos pode

16 DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016.Ciência saúde coletiva [online]. 2017, vol.22, n.2, pg. 653-660.

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ultrapassar 1 milhão de mulheres, segundo um estudo publicado em 2013 pelo

braço do órgão na América Latina, a Organização Pan-americana de Saúde.

Segundo o estudo de 2010, feito pela Universidade de Brasília (UnB), tido

como referência pela OMS, e comandado pelos pesquisadores Débora Diniz e

Marcelo Medeiros17, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram,

pelo menos, um aborto na vida. Hoje, no Brasil, existem 37 milhões de mulheres

nessa faixa etária — de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE). Dessa forma, estima-se que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos

um aborto na vida.

De acordo com estudo da UnB, de 201018, o método mais comum é que a

mulher comece o aborto em casa, com medicamentos, e vá para a rede pública

fazer a curetagem:

“O aborto hoje é um problema de saúde pública e deve ser discutido

pelos três poderes. Os custos e as complicações dos abortos ilegais

são enormes. Clinicamente as mulheres podem ter infecções,

contrair doenças que incluem a Aids, ter hemorragias que podem

levar à morte e ter perdas de órgãos internos. E isso vai parar nas

mãos do Estado. As pessoas vão recorrer também ao SUS —

explica Sidnei Ferreira, presidente do Conselho Regional de

Medicina do Rio (Cremerj)”.

Desta forma, algumas poucas mulheres possuem boas condições financeiras

para recorrer a clínicas, com mais higiene e cuidado, diferente das gestantes de

condições socioeconômicas mais vulneráveis. Estas mulheres compõem a maior

parcela da população brasileira e são impelidas a buscar métodos mais perigosos,

resultando no elevado índice de agravo à saúde e alta mortalidade. As medidas para

evitar uma gravidez indesejada no Brasil são insuficientes. Como resultado, várias

mulheres se envolvem em situações de abortos inseguros, os quais, inúmeras

18 Ibid., pg. 654.

17 DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Itinerários e métodos do abortoilegal em cinco capitais brasileiras. Artigo apresentado no Cien Saude Colet, Faculdade de Direito,Universidade de Brasília, 2012.

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vezes, resultam em complicações graves como hemorragias, infecções, perfuração

do útero, esterilidade, podendo levá-las à morte em consequência dessas práticas.

Segundo o PNA 2016, metade das mulheres aborta usando medicamentos,

sendo 48% (115) dos casos válidos. A proporção é a mesma observada em 2010

(48%). Se considerados os 4% (10) de não-resposta ao quesito, a proporção seria

ainda próxima, 46%. O principal medicamento utilizado no Brasil é o Misoprostol,

recomendado pela Organização Mundial da Saúde para a realização de abortos

seguros. Cumpre salientar que, na realidade brasileira, uma expressiva quantidade

de mulheres brasileiras não possuem acesso a tais medicamentos. Alguns desses

métodos, como o preservativo masculino e as pílulas anticoncepcionais, ainda que

distribuídos em postos de saúde, não chegam a todos os cidadãos brasileiros.

Destarte, cerca de metade das mulheres precisou ser internada para finalizar

o aborto: 48% (115) das mulheres foram internadas no último aborto. A proporção

cai para 46% se considerados os 3% (10) de não resposta. Mesmo levando-se em

conta os intervalos de confiança de 2 pontos percentuais, ocorreu uma queda nas

internações entre 2010 (55%) e 2016 (48%). Dois terços (67%, 18) das mulheres

que confirmaram ter abortado em 2015 (27) foram internadas para finalizar o aborto.

Considerando que a morte feminina representa apenas uma fração dos

problemas relacionados ao aborto, os dados referentes à hospitalização decorrentes

do abortamento confirmam sua magnitude, sendo que a curetagem pós-abortamento

representa o terceiro procedimento obstétrico mais realizado nas unidades de

internação da rede pública de serviços de saúde. A problemática acerca das

complicações pós-aborto ou da morbidade relacio-nada ao aborto desdobra-se em

vários outras questões pertinentes à esfera da saúde propriamente dita da mulher, à

possibilidade de atendimento pelos serviços de saúde e à sobrecarga hospitalar e ao

custo das internações.

Neste sentido, os gastos da rede pública de saúde com as consequências do

aborto clandestino são suportados com recursos financeiros públicos, sendo um

valor significante para a destinação da verba do Estado. Com base em dados do

estudo do estudo “Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes

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regiões”e com dados do DataSus, calculou-se um valor médio de quanto os

governos gastam com complicações decorrentes de interrupções da gravidez, a

maioria clandestina. No ano de 2013, foram 205.855 internações decorrentes de

abortos no país — sendo 51.464 espontâneos e 154.391 induzidos (ilegais e legais).

Levando em consideração que o valor médio da diária de uma internação no SUS é

de R$ 413 e que as hospitalizadas passaram apenas um dia sob cuidados médicos,

o governo gastou R$ 63,8 milhões por conta dos abortos induzidos.

Outrossim, em 2013, foram 190.282 curetagens (método de retirada de

placenta ou de endométrio do corpo), a grande maioria de quem quis interromper a

gravidez. Isso teria custado um total de R$ 78,2 milhões, já que, pela tabela do SUS,

cada intervenção custa, em média, R$ 411. No total, chega-se a, no mínimo, R$ 142

milhões. Em entrevista para o Portal O Globo, em 2014, a diretora da Federação

Internacional para o Planejamento Familiar (IPPF), Carmem Barroso19, afirmou que:

"O custo do aborto inseguro para o sistema de saúde é altíssimo, enquanto que se

nós possibilitássemos a essas mulheres a informação de que elas necessitam e o

acesso aos serviços seguros, esses custos baixariam dramaticamente. [...] Só existe

problema de mortalidade materna causada pelo aborto inseguro nos países onde as

leis não permitem a realização dos abortos nas condições médicas adequadas."

(fonte).

Portanto, a rede pública de saúde já arca com os custos oriundos dos abortos

clandestinos, sendo que muitas das mulheres interrompem a gestação em suas

residências, por meio de medicamentos abortivos ou até mesmo métodos mais

invasivos. Tais mulheres, posteriormente, recorrem à rede pública de saúde para os

primeiros socorros em razão das consequências do procedimento realizado em casa

e sem os devidos cuidados.

Constata-se a interrupção da gravidez existe, é fato social de ampla

dimensão e vem sendo realizada, na maioria dos casos, em péssimas condições,

fato que coloca em risco a vida das mulheres. Logo, não atentar para o problema

implícito ao abortamento é continuar a reprisar tragédias vividas isoladamente por

19 CASTRO, Carolina Oliveira; TINOCO, Dandara; ARAÚJO, Vera. O Globo. Tabu nas campanhaseleitorais, aborto é feito por 850 mil mulheres a cada ano. 2014.

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mulheres e que resultam, às vezes, na morte de milhares de mulheres pobres,

negras e jovens, muitas das quais ainda se veem ameaçadas pela denúncia e

punição judicial. Com a possibilidade de reduzir esses impactos, a legalização do

aborto tem sido temática em constante discussão entre movimentos sociais, juristas,

políticos, profissionais e outros setores da sociedade brasileira.

Impedir e criminalizar o aborto implica em vulneração das mulheres e fere os

princípios bioéticos da beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. Se

contrapõe à bioética da proteção, pois desprotege as mulheres que praticam o

aborto clan-destino e em condições inseguras, colocando-as suscetíveis a agravos à

saúde. Adicionalmente, faz-se necessário, no contexto do SUS, que qualquer mulher

tenha seus direitos sexuais e reprodutivos assegurados, bem como que os recursos

empregados para o tratamento das vítimas de aborto clandestino sejam deslocados

para a realização dos abortamentos seguros dentro de um cenário de possível

legalização, sendo uma das principais propostas dos defensores dessa pauta.

Por fim, conforme a pesquisadora Amanda Ribeiro da Costa20, na

perspectiva da saúde pública, a legalização do aborto não pode ser dotada como

medida isolada. Precisa ser acompanhada de políticas amplas e efetivas de saúde

reprodutiva que garantam acesso ao pré-natal, parto, puerpério, assistência à

anticoncepção, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis –inclusive AIDS

– e outras necessidades de mulheres relativas a este campo da saúde.

3. O ABORTO SEGUNDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1. ANÁLISE CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS QUE PERPASSAM A PRÁTICADO ABORTO

3.1.1 Dos direitos fundamentais

20 COSTA, Amanda Ribeiro da. Descriminalização do aborto. 32 fls. Monografia (Graduação).Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce.Governador Valadares, 2011.

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3.1.1.1 Direito à vida

A partir da análise inicial acerca das teorias que permeiam a origem da vida

humana e seus parâmetros, constata-se a necessidade de um aprofundamento no

debate através da abordagem jurídica e suas amplas nuances. Dito isso, cabe

ressaltar que a Constituição Federal de 1988 não abordou de maneira expressa em

seu texto a questão do abortamento, contudo leituras sistemáticas são feitas de

modo a interpretar seu caráter proibitivo ou permissivo a partir da observação dos

princípios constitucionais e direitos fundamentais regentes do ordenamento jurídico

em sua completude. A característica presente nessas duas modalidades de norma

mencionadas é a fundamentalidade formal, ou seja, são dispositivos com “força

jurídica própria da supremacia constitucional”, condição necessária e suficiente ao

status de direito fundamental, segundo o jurista Dimitri Dimoulis. 21

Desta forma, o direito à vida encontra-se na categoria de direitos

fundamentais e está presente no artigo 5º, caput, no capítulo dos Direitos Individuais

e Coletivos do texto constitucional. Importante elucidar que os direitos individuais

são aqueles direcionados à defesa da autonomia pessoal de forma a permitir o

desenvolvimento de suas potencialidades e viabilizar o gozo da liberdade própria

sem interferência excessiva do Estado. Por outro lado, os direitos coletivos

objetivam a proteção ampla da sociedade, possuindo um caráter transindividual,

logo, havendo múltiplos sujeitos-titulares unidos por uma relação jurídica-base.

Cumpre citar o texto referido da Carta Magna de 1988: “Art. 5º Todos são

iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

Desse modo, o direito à vida, entre os demais citados no trecho acima, é

considerado um dos mais fundamentais por ser um pré-requisito lógico para o

exercício dos outros direitos garantidos em seu texto, sendo objeto de uma

autônoma e específica tutela constitucional. Detém, consequentemente, um caráter

inviolável com fins de proteção da integralidade existencial, assim como o direito à

liberdade.

21 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 6. ed. SãoPaulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 53.

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Nesse diapasão, é importante compreender que apesar de inviolável, nenhum

direito fundamental é absoluto, pois é necessário analisar sua relação com outros

direitos equiparadamente protegidos pela Constituição Federal. Dito isso, o feto é um

pessoa em potencial e, assim, não possui personalidade jurídica plena, mas

somente a expectativa de adquirir materialmente seus direitos após o nascimento

com vida. Portanto, realizar uma equiparação entre o feto em seu estágio inicial com

vidas formadas extra-uterinas é desproporcional, no sentido que as vidas

plenamente desenvolvidas já concretizaram a condição jurídica de sujeito de direitos,

logo, encontram-se legitimadas inquestionavelmente dentro do ordenamento jurídico.

Todavia, a proteção constitucional à vida intrauterina é reconhecida, sendo

tida, dentro da teoria adotada pelos defensores da descriminalização, a partir da

décima segunda semana de gestação, período no qual ocorre a intensificação das

atividades neurais do feto, conferindo-lhe a capacidade primária de pensar e sentir

os múltiplos estímulos. Adiante, na vigésima semana, a tutela estatal se intensifica,

pois surgem as ondas cerebrais, acarretando na atividade cerebral do feto

relacionada à tradução das informações sensoriais. Neste período, o nascituro

conquista o status moral de pessoa, dentro dos parâmetros da teoria em questão.

A existência de tal proteção intrauterina é comprovada, contudo, a vida

completamente formada e operante fora do útero materno deve possuir uma

proteção mais efetiva pelo ordenamento jurídico. Isso porque, de acordo com a

análise dos dados concretos coletados pelo Sistema de Informações sobre

Mortalidade (SIM),22 o aborto ainda configura uma importante causa de óbito

materno, embora com tendência de queda, de modo que, entre 2006 e 2015, foram

registrados no Brasil 770 óbitos com causa básica. Entre os 770 óbitos com causa

básica declarada como aborto, apenas 7 (0,9%) óbitos foram devidos a aborto por

razões médicas e legais (O04), 115 (14,9%) foram declarados como abortos

espontâneos (O03), 117 (15,2%) como outros tipos de aborto (O05) e 96 (12,5%)

como falha de tentativa de aborto (O07).

Portanto, apesar de existir situações de priorização da mulher em detrimento

do feto, como a permissão do aborto legal nos casos em que a gestante corre risco

22 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise deSituação em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica do óbito materno. Brasília : Ministério daSaúde, 2009. 84 p. : il. – (Série A. Normas e Manuais Técnicos).

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de vida, a regra geral atua em sentido oposto. Conforme foi exposto no tópico de

matéria penalista, a repressão penal permanece excessivamente rigorosa aos

abortamentos não abarcados nas hipóteses de excludente de ilicitude. Além disso,

devido não haver um sistema legal implantado em território nacional, as redes

públicas de saúde não estão preparadas para lidar adequadamente com as

mulheres que desejam abortar legalmente ou estão no processo de

pós-abortamento, gerando os números relatados acima que ferem diretamente o

pleno direito à vida dessas mulheres. Cabe destacar que os dados são relativos aos

casos registrados, pois muitos ocorrem na clandestinidade.

3.1.1.2. Direito à igualdade

Por sua vez, o direito à igualdade, disposto no caput do artigo 5º do texto

constitucional, é o responsável por garantir que todos os seres humanos sejam

tratados de maneira equitativa e justa, sem que passem por discriminações

prejudiciais ao desempenho de sua plena existência. E, segundo declarou o ministro

do STF, Luís Barroso23, a subordinação de gênero promoveu ao longo dos séculos

desigualdade social e econômica entre homens e mulheres, sendo seus resultados

percebidos até os dias atuais, como através do recebimento de salários inferiores

por mulheres que cumprem as mesmas funções que os homens ou nas constantes

discriminações que sofrem baseadas em estereótipos degradantes. Outra

pré-concepção enraizada socialmente é o desejo feminino pela maternidade.

A discriminação está materializada nos textos legislativos, como na proibição

do aborto, devido afetar desproporcionalmente a realidade de milhares de mulheres

que buscam medidas drásticas para realizarem sua vontade de interrupção da

gravidez. Além de arriscarem suas vidas ao recorrerem a meios clandestinos,

podem sofrer discriminações amplas apenas por buscarem à lei e realizarem o

abortamento legal, por exemplo. Assim, a violação da igualdade entre gêneros é

constante e enraizada no imaginário coletivo brasileiro, na medida em que as

mulheres precisam carregar o ônus por suas decisões sozinhas e posteriormente

lidar com julgamentos vexatórios independente da escolha tomada.

23 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitosfundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Cumpre destacar que inexiste um respeito à igualdade social na mesma

proporção que à individual. Tal igualdade social refere-se ao contexto mais amplo de

análise dos diversos marcadores sociais que permeiam a vivência de um ser

humano inserido no contexto do Estado de Direito Contemporâneo, como a raça e

classe social. Esses dois elementos são responsáveis por transformar

significativamente vivências coletivas, acarretando na soma de mais preconceitos e

dificuldades de acesso aos meios seguros de abortamento e à saúde de qualidade.

Para a população negra no Brasil, as vulnerabilidades estão estruturalmente

vinculadas ao racismo, que atua na sua produção, determinando piores indicadores

sociais e de saúde, os quais refletem nos números mais dramáticos no tocante aos

abortamentos feitos por mulheres negras e pobres. De acordo com a pesquisadora

Emanuelle Góes24, as mulheres pretas em situação de abortamento interromperam

a gravidez mais tardiamente. Destarte, declararam ter enfrentado mais barreiras

institucionais, em especial o tempo de espera por uma vaga ou leito (três vezes

maior do que orelatado pelas brancas), e apresentaram proporções duas vezes

maiores de condições regulares, graves e muito graves comparativamente às

brancas.

Desta forma, a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016) aponta que

as mulheres mais vulneráveis à interrupção de uma gravidez de modo inseguro são

negras, jovens, solteiras, com filhos, de baixa escolaridade e baixa renda. O PNA é

um inquérito domiciliar baseado em uma amostra aleatória representativa da

população total de mulheres alfabetizadas com idade entre 18 e 39 anos no Brasil.

Estudos nacionais sobre a utilização de serviços de saúde sexual e

reprodutiva evidenciam que são as mulheres negras/pardas aquelas mais expostas

a barreiras individuais e institucionais de acesso aos cuidados, desde a iniciativa de

procura pelo serviço até o momento do atendimento. Isto é perceptível no maior

percentual de relato de barreiras individuais enfrentadas na procura pelo primeiro

atendimento pelas mulheres pertencentes ao referido grupo, sendo 32% das

mulheres negras, contra 28% das pardas e 20,3% das brancas, segundo pesquisa

da GravSus-NE, estudo multicêntrico realizado em três capitais do Nordeste

24 GÓES, Emanuele. F. Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectivainterseccional. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em SaúdeColetiva, Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2018.

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brasileiro: Salvador (Bahia), Recife (Pernambuco) e São Luís (Maranhão). O projeto

foi aprovado pelos Comitês de Ética das três universidades e pela Comissão

Nacional de Ética em Pesquisa.

Portanto, a proibição do aborto viola duplamente o direito à igualdade: gênero

e raça atrelada ao fator classe social. A igualdade de gênero somente será

garantida se a mulher tiver a liberdade de realizar a manutenção da gravidez

segundo seus parâmetros individuais. E haverá igualdade social caso as mulheres,

independente da raça ou condição socioeconômica, tenham oportunidades

concretas e respaldo institucional adequado para realizar a interrupção voluntária da

gestação de forma segura e gratuita.

3.1.1.3. Direito à liberdade e autonomia

O direito à liberdade está presente no artigo 5º, juntamente com o direito à

vida e à igualdade, sendo da mesma forma inviolável e fundamental para o exercício

da completude humana com dignidade. Cumpre apontar as duas facetas

interpretativas do conceito de liberdade: subjetiva e objetiva. A primeira refere-se ao

poder de escolha, também conhecido como livre-arbítrio, o qual é desempenhado

através da manifestação da vontade individual frente os múltiplos cenários

cotidianos. Por sua vez, a liberdade negativa é compreendida como a ausência de

obstáculos e imposições externas à pessoa para o exercício livre do ser,

constituindo a liberdade de fazer.

Em relação ao direito em questão, o jurista constitucionalista Dimitri Dimoulis,

em sua obra teoria geral dos direitos fundamentais25, o direito à liberdade está

vinculado à autodeterminação do indivíduo: “[...] é poder de atuação sem deixar de

ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de

alguma coisa, que é a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a

liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o

interesse do agente. Tudo que impede aquela possibilidade de coordenação dos

meios é contrário à liberdade. E aqui, aquele sentido histórico da liberdade se insere

na sua acepção jurídico-política.”

25 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 6. ed. SãoPaulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 233.

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O ministro Luís Roberto Barroso coaduna com o entendimento da autonomia

enquanto expressão mais pura do exercício da liberdade, manifestando que aquela

“expressa a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se autodeterminar, em

conformidade com a representação de certas leis”. Portanto, é a definição individual

das normas internas regente da vida de cada um, de forma que o Estado e demais

agentes públicos e privados devem respeitar seu status negativo, ou seja, devem se

abster de intervenções indevidas e permitir a consolidação da autotutela.

Constata-se a invasiva ação estatal na regulação sobre o corpo feminino através da

tipificação do aborto, privando a mulher de autogerir sua vida e exercer sua

liberdade de escolha.

Em relação à autonomia, apontada como segundo elemento essencial, em

consonância com o discorrido anteriormente, é a capacidade de autodeterminação

individual, a qual permite que julgamentos pessoais sejam realizados e decisões

tomadas livremente. A conduta de proibir o abortamento fora das hipóteses legais

constitui um desrespeito direto aos significantes que permeiam a compreensão da

autotutela ao relegar a mulher ao papel passivo de aceitação da sua condição, como

uma espécie de sub-cidadã não dotada de direitos.

Desse modo, é necessário que o Estado brasileiro garanta a autonomia

feminina em relação ao seu próprio corpo, abarcando, consequentemente, a decisão

de seguir ou não adiante com uma gravidez. A maternidade compulsória é um fato

social dotado de uma crueldade significante para as mulheres ao redor do mundo,

impondo-as à obediência do papel de mãe para que sua existência seja legitimada

perante a coletividade. Os agentes públicos e as instituições desconsideram as

subjetividades de cada uma dessas pessoas, bem como suas complexidades,

regendo-as através de tradições relativas à moralismos religiosos e às normas

jurídicas rígidas com o objetivo de atender interesses políticos, como o controle do

corpo feminino e sua subjugação.

Neste sentido, deve ser assegurado à mulher o poder de escolha, enquanto

exercício da sua liberdade e autonomia, de forma que a maternidade seja resultado

de desejo, e não de obrigação perante o poder público. Conforme o art. 95 da

Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher,26 os

26 VIOTTI, Maria Luíza Ribeiro. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência MundialSobre a Mulher. ONU Mulheres: Pequim, 1995. p. 178.

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indivíduos têm o direito de “decidir livre e responsavelmente o número, a frequência

e o momento para terem seus filhos e de possuir as informações e os meios para

isso, bem como do [...] direito de adotar decisões relativas à reprodução livres de

discriminação, coerção e violência”.

3.1.1.4. Dignidade da pessoa humana

Os direitos fundamentais dispostos anteriormente adquirem força formal e

material na medida em que estão atrelados à compreensão do princípio maior

regente de todo o ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana.

Este fundamento da República Federativa do Brasil está contido no artigo 1º, inciso

III, da Constituição Federal. Dada sua relevância para a efetivação dos demais

direitos, a dignidade encontra-se vinculada à atuação dos poderes estatais e do

conjunto normativo em sua completude. Assim, a aplicação em casos concretos é

essencial, principalmente em contextos em que se verificam desrespeitos à vida, à

integridade física e psíquica, ausência de condições mínimas de existência digna,

limitação da liberdade ou provocação de desigualdade ou em casos de flagrante

desrespeito a direitos fundamentais.

O doutrinador constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet, em seu manual de

Direito Constitucional27, expressa a dificuldade de concretização da dignidade

humana, dado que seu significado é abrangente e permite múltiplas interpretações

abstratas, podendo fragilizar seu âmbito de proteção como norma jurídica

fundamental. Expõe o autor:

“Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade

intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz

merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e

da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos

e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e

qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe

garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,

além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável

nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os

27 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana. Revista Brasileira deDireito Constitucional – RBDC N.09 – Jan/Jun. 2008, p. 377.

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demais seres humanos (SARLET, 2008, p. 63)”.

Dito isso, Luís Roberto Barroso completa defendendo que o princípio da

dignidade deve ser compreendido em conjunto com três elementos essenciais: valor

intrínseco, autonomia e valor social da pessoa humana. Ao tratar da questão

específica do aborto, os dois primeiros adquirem uma maior força, pois

correspondem à dignidade relacionada à natureza do ser, de maneira que cada ser

humano é único e o fim de si mesmo. Assim, as mulheres precisam ser respeitadas

como seres humanos completos e não um meio para atender interesses políticos

emanados das instituições regentes do país. Tais valores estabelecidos socialmente

possuem o condão de revelar o quanto a maternidade compulsória é uma afronta à

dignidade.

Outrossim, há relação entre o valor intrínseco da pessoa humana e o direito

fundamental à igualdade, no sentido do valor equitativo que deve existir entre todos

os seres humanos, além de direito à integridade física, moral ou psíquica relativa à

integridade do ser. Da mesma forma, o direito à integridade é lesado com a

criminalização do aborto, visto que a mulher é coagida a passar por todas as

transformações corporais ocasionadas pelo período gestacional contra sua vontade,

afetando seus princípios e seu psciológico de maneira irreversível.

Por fim, o valor social da pessoa humana também é prejudicado, pois as

mulheres que abortam ficam estigmatizadas socialmente, acarretando no processo

de marginalização. Isto ocorre mais intensificadamente com mulheres pertencentes

a grupos vulneráveis, como as mulheres negras/pardas, pobres e sem

escolarização. Cabe destacar, que o estigma existe por decisão política do Estado

em manter a criminalização e o tabu acerca de uma prática tão comum na realidade

de milhares de mulheres. Este projeto estatal é diametralmente oposto à proteção da

dignidade humana dessas mulheres, havendo um desrespeito constante à norma

regente do ordenamento jurídico brasileiro.

3.1.1.5. Direito à saúde

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43

O jurista Daniel Sarmento,28 em seus escritos acerca da proteção

constitucional às mulheres, aponta a questão do direito à saúde da gestante,

enquanto um dos direitos fundamentais mais importantes por propiciar a

manutenção de bens jurídicos primordiais, como a integridade física e psíquica da

coletividade, e, especialmente das principais vítimas (arts. 6º e 196, CF).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) detém o entendimento de que a

definição de saúde não está limitada à ausência de doenças ou enfermidades,

contemplando a integralidade do bem-estar físico, mental e social do indivíduo.

Desta forma, estabelece como condições mínimas a serem asseguradas pelo

Estado a disponibilidade financeira, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade do

serviço de saúde pública de um país.

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é o principal agente garantidor da

universalidade do direito à saúde. Tal sistema atua em sintonia com o Ministério da

Saúde, de modo que Estados e Municípios compõem a sua estrutura com a

finalidade de promoção da saúde. O SUS tornou-se um dos maiores do mundo ao

integrar ações de promoção da saúde, da prevenção de doenças, do tratamento e a

reabilitação à todas as pessoas, sem qualquer discriminação, universalizando o

acesso e investindo na redução da desigualdade.

No entanto, apesar do seu status de direito constitucional, a efetividade

prática do direito à saúde em relação à mulher que deseja abortar ou aquela que

realiza o abortamento é quase nula. Isso porque, há diversos obstáculos que

inviabilizam o acesso dessas mulheres aos serviços do Sistema Único de Saúde

(SUS), até mesmo para realizar os abortos previstos em lei. A negativa descrita de

profissionais da saúde em realizar os procedimentos, sejam dos abortamentos

legais ou a finalização após o aborto inseguro, é um cenário ainda comum no

território nacional. É chamada de “objeção de consciência”, o que representa um

direito do médico, mas não pode ser um artifício de omissão estatal no quesito de

disponibilização dos profissionais para a realização de algo que é direito garantido

às mulheres.

Constata-se a ausência efetiva do direito à saúde, em especial para a mulher

28 SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: __ CAVALCANTE,Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo:Católicas pelo Direito de Decidir - CDD, 2006, p.111-168.

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que aborta. A consequência desse cenário é o sofrimento das vítimas e a maior

fragilização de sua saúde física e psíquica, levando diversas mulheres a procurarem

procedimentos clandestinos, se automutilarem e sofrerem discriminações

generalizadas. É necessário que haja uma reformulação no sistema de saúde para

que a população não tenha seus direitos e garantias consagrados em leis e na

Constituição Federal lesados.

Portanto, a descriminalização do aborto deve estar acompanhada da

disponibilização dos procedimentos adequados para a efetivação dos abortos pelo

Estado, de forma as mulheres tenham acesso aos meios adequados e com

profissionais capacitados, respeitando seus direitos fundamentais à vida e à saúde.

O aperfeiçoamento do SUS é essencial nesse processo. É importante destacar que

os vultosos gastos atuais, cerca de R$ 486 milhões (segundo pesquisa feita

jornalistas Cláudia Collucci e Flávia Faria, da Folha de SP29), realizados pelo

Governo Federal em processos de curetagens e internações pós-provocações de

aborto por meios clandestinos podem ser deslocados para as propostas de

melhoramento do sistema para o abortamento legal, além de um possível

aparelhamento futuro para os casos que seriam contemplados posteriormente à

descriminalização.

3.1.1.6. Laicidade do Estado e o princípio da proporcionalidade

Um dos pilares estruturantes do Estado Democrático de Direito é a sua laicidade, a

qual se encontra disposta no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal:

“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seusrepresentantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, naforma da lei, a colaboração de interesse público;”

29 COLLUCCI, Cláudia; FARIA, Flávia. Folha de São Paulo. SUS gasta R$ 500 milhões comcomplicações por aborto em uma década: de 2008 a 2017, SUS gastou R$ 486 mi cominternações para esses tratamentos. 2018.

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45

Há um entendimento geral consolidado de que as decisões estatais

relacionadas especialmente ao público serão baseadas em critérios racionais,

desconsiderando dogmas de fé e concepções morais subjacentes oriundos de

qualquer religião existente no território nacional. Contudo, tal princípio da laicidade

precisa ser reforçado constantemente devido o Brasil ser um país de raízes

religiosas cristãs muito expressivas.

Desta forma, signos e significantes propagados pelas mencionadas religiões

possuem uma elevada penetração nas instituições que compõem o Estado,

enquanto reflexo do conjunto cultural majoritário da sociedade brasileira. Roseli

Fischmann em sua obra “Estado Laico, Educação, Tolerância e Cidadania ou

simplesmente não crer”30, expressa sobre o Estado Laico e a sua importância:

“Assim, o caráter laico do Estado, que lhe permite separar-se e

distinguir-se das religiões, oferece à esfera pública e à ordem social

a possibilidade de convivência da diversidade e da pluralidade

humana. Permite, também, a cada um dos seus, individualmente, a

perspectiva da escolha de ser ou não crente, de associar-se ou não

a uma ou outra instituição religiosa. E, decidindo por crer, ou tendo o

apelo para tal, é a laicidade do Estado que garante, a cada um, a

própria possibilidade da liberdade de escolher em que e como crer,

enquanto é plenamente cidadão, em busca e no esforço de

construção da igualdade”.

O conteúdo presente na explanação da pensadora refere-se à liberdade de

crença dos cidadãos (art. 5º, VI, CF), enquanto direito interdependente da laicidade

estatal. É notório o caráter formal laico do Estado Brasileiro, o qual determina a

separação da religião e seus valores sobre os atos governamentais. O fundamento

principal para o composição teórica desse princípio é o próprio respeito à

democracia e seu status de espaço permeado por pluralidade de valores e aberto à

expressão das individualidades sem represálias sociais. Assim, o ente estatal deve

almejar agir com o máximo de respeito a esses ideais que o constituem,

expressando-se de maneira mais neutra e equitativa possíveis em relação às mais

diversas pautas e seus representantes, como forma de respeitar os direitos

30 FISCHMANN, Roseli, “Estado Laico, Educação, Tolerância e Cidadania ou simplesmente não crer”.São Paulo: Factash Editora, 2012, pg 16.

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46

individuais e coletivos declarados pela Carta Magna.

No entanto, em relação à materialidade na aplicação do princípio da laicidade

estatal em determinados casos concretos, há uma discrepância com seu conteúdo

por diversos motivos, sendo a força cultural da religiosidade cristã a principal. É

notório que existe um respeito à liberdade de culto individual, todavia, há símbolos e

discursos religiosos impregnados em grande parte dos espaços públicos estatais.

A questão da criminalização aborto, especificamente, também é um reflexo

do conservadorismo enraizado socialmente, regido por dogmas propagados

massivamente pelas instituições poderosas cristãs. Estas que possuem infiltração

em todas as esferas sociais, não sendo diferente na política, na qual parlamentares

religiosos formulam e/ou impedem, embasados em seu próprio moralismo, o

avanços de pautas urgentes para a sociedade, como o aborto.

Além do esvaziamento da concretude relativa à laicidade, existe um

equiparado desrespeito generalizado ao princípio da proporcionalidade. Este que é

um dos princípios regentes do ordenamento jurídico pátrio, porém que detém

contornos especiais quando aplicado à esfera penal, devido ao rigor das

penalidades dispostas em seu Código. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís

Roberto Barroso, expõe o dever constitucional pertencente à função legislativa, de

modo que a ponderação dos direitos fundamentais deve sempre ocorrer no ato de

tipificação do crime, objetivando garantir a proteção geral dos cidadãos e seus

direitos.

Portanto, o adequado processo de tipificação penal necessita estar em

consonância com os três sub-princípios basilares da proporcionalidade: a)

adequação; b) necessidade; c) proporcionalidade em sentido estrito. A adequação

refere-se à satisfação em atingir o fim desejado na criação da norma, que no caso

do aborto seria proteger a vida do bem jurídico que se pretende tutelar: o feto.

Contudo, constata-se, através da análise de pesquisas realizadas no território

nacional e dos dados empíricos recolhidos, que o aborto continua a ser praticado em

larga escala, sendo a criminalização apenas um instrumento de estigmatização das

vítimas e estímulo à clandestinidade.

Por sua vez, a necessidade corresponde ao critério da imprescindibilidade da

medida adotada, isto é, da existência de possíveis meios alternativos mais eficazes

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47

e seguros para concretizar o fim almejado. Ao tratar do aborto existem múltiplas

medidas alternativas que poderiam ser aplicadas no lugar da criminalização, como

políticas públicas relativas ao fornecimento de aparatos médicos para a adequada

execução do abortamento e suas precauções anteriores e posteriores com uma

equipe multidisciplinar, bem como intensificar a discussão e operar campanhas

acerca do planejamento familiar e educação sexual.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito está relacionada aos danos

causados em virtude da tipificação da conduta. Evidencia-se o significativo impacto

que a criminalização gera aos direitos fundamentais das mulheres, além de acarretar

custos sociais e econômicos para o Estado, restando comprovada a sua ineficácia

social ao ser tratada de maneira tão severa e punitivista pelo ordenamento jurídico.

Dito isso, tratando-se da criminalização do aborto pelo ordenamento jurídico

brasileiro, a proporcionalidade e seus sub-princípios são desrespeitados

continuadamente pelo Estado brasileiro. Isso porque, a tipificação do aborto não

harmoniza com a proteção conferida pela Constituição Federal aos múltiplos direitos

fundamentais pertencentes à mulher nessa situação, como à dignidade humana, à

liberdade e à autonomia, para citar alguns. Desse modo, o aborto ser criminalizado

de forma generalizada através de duras penas, com exceção dos míseros três casos

de exclusão de ilicitude, é um atentado à cidadania das mulheres. A partir do

controle estatal sobre seus corpos, a autotutela feminina se esvazia, levando

consigo a garantia de exercer seus direitos fundamentais sem intervenções

invasivas e desumanizadoras do poder público.

O cenário apresentado não é exclusividade da problemática do aborto, pois

medidas intervencionalistas estão no cerne do Estado Brasileiro com forte teor

paternalista vigente até os dias atuais. A consequência da discricionariedade

apontada é o reflexo dos ocupantes dos poderes públicos em recorrer à esfera

penal para lidar com questões delicadas à sociedade brasileira, sendo uma prática

corriqueira do Legislativo e até mesmo do Judiciário.

Portanto, dentro da sua linha de pensamento, uma decisão adquiriria um

caráter racionalmente aceitável e seguiria as diretrizes da proporcionalidade através

da utilização de argumentos que suportem a atribuição de valores aos parâmetros

de intervenção, assim como daria certeza às premissas fáticas (lei do sopesamento).

Algo não obedecido na decisão de tipificar o aborto sob quase todas as

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48

circunstâncias.

3.2 DECISÕES FAVORÁVEIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A partir da análise do texto constitucional, o Judiciário detém a importante

função de materializar seu conteúdo formal através do enfrentamento dos casos

concretos que lhe são apresentados corriqueiramente. Neste sentido, o Supremo

Tribunal Federal, enquanto o mais alto órgão do Poder Judiciário, é apontado por

inúmeros juristas como o guardião da Constituição Federal. Isso porque, segundo

dispõe o artigo 102 da mencionada Carta Magna, a competência do STF abarca o

julgamento de causas como instância única e de matéria recursal, como os diversos

remédios constitucionais.

Existe um amplo debate envolvendo os limites da competência do Supremo

Tribunal Federal, tendo ganhado novos contornos nos últimos anos a partir da

intervenção do Poder Judiciário em questões delicadas para a sociedade brasileira

de modo geral, como a autorização das uniões homoafetivas ou a ratificação sobre

as decisões de prisão após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

O protagonismo constatado pelo referido Tribunal, apesar das controvérsias,

encontra-se respaldado na autorização constitucional de proteção da estrutura

normativa do ordenamento jurídico, assegurando o respeito concreto aos direitos

consolidados no texto maior. Assim, diante de qualquer negligência dos demais

poderes que possa acarretar consequências danosas para o povo brasileiro, o

Supremo possui a responsabilidade jurídica de intervir e garantir a satisfação das

expectativas constitucionais.

Desse modo, conforme mencionado, o Supremo Tribunal Federal assumiu

determinado controle sobre a operacionalização de políticas públicas ao lidar com

temáticas controversas, porém urgentes por respostas efetivas das autoridades

políticas, como foi o caso do aborto. Esta questão permeia os debates no salão

ministerial, pois foi abordada em diversas ocasiões, obtendo algumas respostas

satisfatórias por parte dos ministros ocupantes do órgão federal.

No entanto, as discussões não progrediram nos espaços legislativos

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49

principalmente por ações coordenadas de grupos religiosos e seus parlamentares

eleitos que impedem a discussão e posterior resolução das pautas trazidas pela

sociedade civil. A omissão do Poder Legislativo e Executivo permanece como regra,

assim como os números alarmantes de vítimas mulheres no território brasileiro.

Logo, as ações perpetradas pelo STF se tornaram imprescindíveis para assegurar

minimamente a concretude da dignidade humana e dos direitos fundamentais das

mulheres no Brasil, cabendo analisar alguns desses avanços a seguir.

Contudo, cabe analisar o caso responsável por evocar a discussão acerca do

aborto de feto anencéfalo: o habeas corpus nº 84025/2003. Este foi impetrado em

defesa da gestante Gabriela Oliveira Cordeiro, que em seu quarto mês de gestação

constatou, por meio de exames, que o feto apresentava uma grave anomalia

cerebral - anencefalia. A anencefalia, segundo médicos especialistas, é a má

formação do cérebro durante o período embrionário, entre o 16º e 26º dia

gestacional, acarretando na ausência total ou parcial do encéfalo e da caixa craniana

do feto. Assim, os médicos atestaram a debilidade no estado emocional da gestante

e prescreveram cuidados especiais.

Com o transcorrer dos meses e mediante múltiplas análises e resistências em

relação ao caso, o nascimento ocorreu em 18 de fevereiro, tendo a criança

sobrevivido apenas sete minutos fora do útero materno. Tal fato foi fundamental para

o julgamento do referido habeas corpus pelo STF, o qual, por decisão unânime,

julgou prejudicada a ação, devido à ocorrência de fato superveniente que a tornou

sem objeto. Todavia, o caso foi de extrema relevância para a discussão mais

profunda da possibilidade de abortamento dos fetos anencéfalos, podendo ser

extraída alguns posicionamentos interessantes pelos ministros no julgamento do

habeas corpus, como foi voto proferido pelo relator do caso, Sr. Ministro Joaquim

Barbosa.

O Ministro Joaquim Barbosa apontou para a situação problemática da

influência passional, moral e religiosa sob a condução das ações pelo Judiciário, o

qual dialogou muito estreitamente com as posturas radicais de grupos

fundamentalistas. Ao analisar os fundamentos jurídicos, o senhor ministro

reconheceu que a discussão ficou centrada nos direitos do nascituro e na aplicação

objetiva da lei penal, negligenciando a complexidade que permeia as garantias

constitucionais dos direitos da mulher e a existência do intrínseco vínculo entre o

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nascituro e a gestante.

Por fim, revelou o constrangimento experienciado pela vítima por ter que

responder criminalmente pela decisão de vedação imposta pelo Superior Tribunal de

Justiça, em virtude de eventual intervenção cirúrgica necessária ao controle da

situação de risco à própria vida da gestante. Convém ressaltar que o próprio tipo

penal do aborto protege o bem tutelado da vida em potencial, algo que

comprovadamente não existirá, sendo contraditório. O caso, ao final, era apenas

uma tentativa política de controle da autodeterminação feminina e imposição da

maternidade, desconsiderando a mulher como detentora de plenos direitos. O

resultado de todas essas discussões foi importante para a consolidação da

conquista seguinte.

Um outro caso concreto marcante foi a Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental (ADPF Nº 54, Distrito Federal). Tal ação ocorreu no período

concomitante ao habeas corpus analisado no tópico anterior, em que o Supremo

Tribunal Federal colocava em plenário da Corte, no dia 11 de abril de 2012, a

matéria sobre o abortamento de fetos anencéfalos. O ministro Marco Aurélio, em seu

voto, definiu a pauta como uma das mais relevantes para o Tribunal, pois o Brasil é

o quarto país no mundo em casos de fetos anencéfalos, ficando atrás apenas do

Chile, México e Paraguai. A incidência verificada durante o período foi de

aproximadamente um a cada mil nascimentos.

Importante destacar que anterior ao julgamento pelo Supremo, a trajetória foi

extensa, tendo sido iniciada no ano de 2004, com a propositura pela Confederação

Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) da ação declaração de

inconstitucionalidade em relação aos arts. 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código

Penal. Tal ação estava direcionada especificamente para os casos de antecipação

terapêutica do parto na hipótese de gravidez de feto anencéfalo, previamente

diagnosticada por exame médico, de forma a não ser considerada como aborto,

assim, não enquadrada no tipo penal.

Mediante a autorização da ADPF em questão, as gestantes não precisariam

de autorização judicial ou qualquer permissão específica do Estado, logo,

assegurando com mais eficácia os preceitos de dignidade da pessoa humana, do

direito à saúde e dos princípios da legalidade, liberdade e autonomia da vontade.

Convém ressaltar que o habeas corpus nº 84.025-6/RJ foi citado, enquanto ação já

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51

transitada em julgado, ressaltando a ausência de instrumento adequado para esse

fim.

Desta forma, após intensos debates, a matéria foi julgada em 2012 pelo

Supremo Tribunal de Federal, o qual julgou procedente a ADPF 54 por maioria de

votos e nos termos do relator, vencidos os ministros Cezar Peluso e Ricardo

Lewandowski. Assim, foi declarada a inconstitucionalidade da interrupção de

gestação de feto anencéfalo como conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128,

incisos I e II, do Código Penal. Um dos fundamentos expostos pelo ministros foi

alegar que o Estado Democrático brasileiro está estabelecido sob a égide do

princípio da laicidade (art. 19, I, CF), consequentemente, seria premissa essencial

para a análise da controvérsia não permitir as influências de orientações morais e

religiosas.

Ademais, a condição da anencefalia é caracterizada pela malformação do

tubo neural, de maneira que há uma ausência parcial do encéfalo e do crânio. Neste

sentido, o feto anencéfalo seria um morto cerebral, com batimento cardíaco e

respiração. Portanto, o tipo penal do aborto não resta constituído, pois inexiste o

bem jurídico tutelado que é a vida em potencial do feto, de acordo com os

estudiosos da matéria. Além disso, o ponto central da discussão é a tutela dos

direitos fundamentais da mulher, sendo desproporcional evocar a potencialidade da

vida do feto com tal condição específica em detrimento da vida plena e formada da

gestante.

Portanto, a partir da decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal acerca da

permissão da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, instaurou-se um novo

marco jurídico importante para o avanço da temática da descriminalização do aborto.

O acolhimento da ADPF 54 expandiu as discussões sobre os limites do abortamento

e, principalmente, sobre o poder de escolha da mulher, bem como a priorização da

sua saúde, algo importante visto que a mortalidade materna ainda é alta no território

brasileiro. Assim, a possibilidade de excludente de ilicitude foi ampliada, estando

anexada ao Código Penal.

Por outro lado, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI Nº 3.510 – Distrito

Federal) foi responsável por suscitar a discussão sobre biossegurança no

ordenamento jurídico brasileiro através da promulgação da Lei nº 11.105/2005 (Lei

de Biossegurança). Isso porque, o seu artigo 5º gerou um intenso debate por

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52

permitir, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias,

obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no

respectivo procedimento.

Os tópicos trouxeram questionamentos sobre a origem da vida e seus

diferentes marcos cronológicos, além do uso do termo “pré-embrião” e a

possibilidade da inexistência de marco inicial, sendo a vida um processo contínuo.

Desta forma, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou improcedente

a ação sob argumento de que a Constituição Federal, tratando-se de direitos e

garantias individuais, protege o indivíduo, enquanto pessoa humana, de modo que a

inviolabilidade do direito à vida é exclusiva de um ser personalizado, nascido com

vida.

Destarte, apontou-se que a Lei 9.434/1997 (Lei dos Transplantes de Órgãos)

dispõe que não há mais vida a partir da morte cerebral, logo, se a atividade cerebral

é pressuposto da vida, o embrião, que não tem cérebro formado, não pode ser

considerado vida humana. Por fim, defendeu-se o direito constitucional do casal de

decidir ter filhos por meios de fertilização in vitro e a falta de dever de utilizar todos

os embriões. Estes que poderão ser extremamente úteis para pesquisas e possíveis

tratamentos futuros.

É notória a decisão do Supremo acerca da matéria da utilização das

células-tronco, pois era uma pauta que precisava ser destrinchada em alguns

aspectos, além da ADI 3510 ter servido para impulsionar o debate sobre os

embriões e a origem da vida, além de trazer novos argumentos favoráveis a

descriminalização do aborto, no quesito de fortalecer as teorias que atrelam vida ao

funcionamento mais completo do organismo do feto, como a teoria das primeiras

atividades cerebrais.

Por fim, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF Nº

442 –Distrito Federal) foi a ação mais diretamente associada à ampliação de um

sistema de abortamento legal no Brasil. Trata-se de arguição de descumprimento de

preceito fundamental, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Partido

Socialismo e Liberdade – PSOL, visando à não recepção parcial dos arts. 124 e 126

do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940). De acordo com o requerente foram

violados diversos preceitos fundamentais, como os princípios da dignidade da

pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos

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fundamentais à inviolabilidade davida, à liberdade, à igualdade, à proibição de

tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar,

previstos nos arts. 1º, I e II, 3º, IV, 5º, caput e I e III, 6º, caput, 196 e 226, § 7º, da

Constituição Federal.

O arguente complementa afirmando, que as razões jurídicas

fundamentadoras da criminalização do aborto pelo Código Penal, em 1940, não

mais se sustentariam diante dos preceitos fundamentais previstos nos mencionados

artigos do texto constitucional. Outrossim, o extenso período de permanência do

aborto como tipo penal no Brasil é circunstância que indica uso do poder coercitivo

do Estado para impedir o pluralismo razoável. Uma consequência evidente do

apontado é a elevação da gravidez à condição de dever, ocasionando prejuízos aos

projetos de vida das mulheres.

A Pesquisa Nacional do Aborto 2016 revelou que, somente no ano de 2015,

503.000 (quinhentas e três mil) mulheres interromperam voluntariamente a gravidez

no Brasil, concluindo que “o aborto é, portanto, um fato da vida reprodutiva das

mulheres brasileiras”. Além disso, afeta “desproporcionalmente mulheres negras e

indígenas, pobres, de baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos,

onde os métodos para a realização de um aborto são mais inseguros do que

aqueles utilizados por mulheres com maior acesso à informação e poder

econômico”, o que resultaria em ofensa ao princípio da não discriminação.

Ao discorrer sobre como a criminalização generalizada do aborto voluntário

violaria os preceitos fundamentais utilizados como parâmetros de controle, o

requerente alega que “afirmar o valor intrínseco do humano no embrião ou feto não

é o mesmo que afirmar o estatuto de pessoa constitucional”. Conclui, logo, que, da

leitura conjunta da Constituição Federal e das decisões dessa Suprema Corte, “o

estatuto de pessoa constitucional inicia-se no nascimento com potência de

sobrevida, mesmo com auxílio de complexas tecnologias biomédicas.” (fl. 35 da

petição inicial).

Portanto, na ponderação entre a dignidade como valor intrínseco pertencente

ao embrião e a dignidade como autonomia consistente na cidadania das mulheres,

deveria prevalecer esta última, não havendo “conflito entre direitos fundamentais,

dada a impossibilidade de se imputar direitos fundamentais ao embrião ou feto.”(fl.

45 da petição inicial).

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Neste sentido, o autor solicita a concessão de medida cautelar “para

suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e andamento de processos ou

efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os artigos

124 e 126 do Código Penal ora questionados a casos de interrupção da gestação

induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez. E que se

reconheça o direito constitucional das mulheres de interromper a gestação, e dos

profissionais de saúde de realizar o procedimento.”(fl. 60 da petição inicial).

No tocante ao mérito, pleiteia que essa Suprema Corte “declare a não

recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de

incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras

12 semanas(...), de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de

interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de

qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos

profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento.”(fl. 61 da petição inicial).

O processo foi despachado pela Ministra Relatora Rosa Weber, que, nos

termos do artigo 5º, § 2º, da Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, solicitou

informações prévias ao Presidente da República, ao Senado Federal e à Câmara

dos Deputados, bem como a oitiva da Advogada-Geral da União e do

Procurador-Geral da República.

Diante da solicitação feita, o Presidente da República defendeu a

constitucionalidade das disposições atacadas, afirmando a existência de um

desacordo moral razoável quando ao aborto, por conseguinte, a decisão sobre sua

descriminalização caberia ao Poder Legislativo, na condição de representante da

coletividade. O Senado Federal, em suma, ressaltou que a legislação

infraconstitucional protegeria os direitos do feto viável (em especial, o artigo 2º da

Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil).

A Câmara dos Deputados, por sua vez, sustentou que as normas

impugnadas encontram-se em vigor há quase oito décadas, o que descaracterizaria

o periculum in mora necessário à concessão da medida cautelar pleiteada. Por fim,

argumentou que a eventual atuação desse Supremo Tribunal Federal no sentido de

descriminalizar a conduta de aborto violaria os princípios da separação de Poderes

e da soberania popular, considerando que “a vontade do legislador deve ser

observada, haja vista que representa a vontade do povo.” (fl. 04 das informações

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55

prestadas).

A ministra Rosa Weber, após ouvir as opiniões acima relatadas e convocar

uma audiência pública (realizada nos dias 3 e 6 de agosto de 2018), chegou à

seguinte conclusão de que a matéria não pertence ao exercício da jurisdição

constitucional que lhe foi atribuída pela Carta Magna, sendo de incumbência do

Poder Legislativo. No entanto, há uma defesa no meio acadêmico acerca da

legitimidade democrática do STF para decidir sobre a problemática da

descriminalização do aborto, baseada, principalmente, em sua função primordial de

guardião máximo da Constituição Federal. Para isso, é de fundamental importância

analisar as lições de Ronald Dworkin. Para o autor, a noção de democracia

albergada por Constituições como a brasileira não é puramente estatística,

procedimental, mas substancial.

Desta forma, na situação de haver possíveis ameaças a tais princípios,

estaria autorizada a competência e legitimidade democrática dos julgadores para

afirmar tais direitos contra a "vontade majoritária". Ao aplicar tais posições

jusfundamentais contra a maioria, a Corte não viola a democracia, antes reafirma-a.

A decisão judicial deve, assim, ter sempre um poder explicativo geral sobre a

estrutura e história constitucional e a prática jurídica da comunidade, mantendo uma

visão singular e coerente de justiça e equidade.

No quesito sobre a decisão judicial sobre descriminalização do aborto,

constata-se a existência de diversos precedentes da Suprema Corte acerca do tema

(HC 84.0257; ADI 3.5108; ADPF 549; HC 124.30610). Das decisões mencionadas é

notório que, de forma coordenada e harmônica, o "povo" enuncia e dá especial

ênfase ao princípio da autodeterminação da mulher em detrimento da vida do feto.

Exige-se, assim, que siga neste caminho, caso, é claro, adotada a integridade

hermenêutica, constrição à atitude interpretativa aventada por Dworkin.

Portanto, a criminalização do aborto ofende o princípio da independência e

integralidade do sistema jurídico, representando uma inconsistência hermenêutica

do ordenamento jurídico pátrio ao impor às mulheres uma concepção moral coletiva

cujos efeitos deletérios são suportados integralmente por elas, e principalmente

pelas menos abastadas economicamente. Decisões com temáticas parecidas foram

erigidas no sentido de defender os direitos fundamentais das mulheres. E várias das

ações mencionadas foram julgadas por existir uma omissão do Poder Legislativo em

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56

tutelar as garantias constitucionais, fazendo com que as violações diárias continuem

acontecendo na realidade fática brasileira.

Dito isso, diante das premissas adotadas, o direito ao aborto seguro e gratuito

erige-se, como indicam os precedentes do STF, em condição para uma democracia

genuína, para a afirmação da mulher enquanto um ser igual e livre membro da

comunidade democrática. Por essa razão, antes de atentar contra a democracia, a

Suprema Corte, caso decida pela não recepção do tipo penal em questão, estará

afirmando-a.

A função de peso e contrapeso atribuída aos três poderes precisa estar em

pleno funcionamento para corrigir possíveis anomalias criadas pelo próprio modelo

do Estado Democrático de Direito. Logo, decisões sobre matérias relevantes devem

acontecer pela instância judicial máxima, tanto para atenuar problemáticas urgentes

violadoras de preceitos fundamentais no país, como para incentivar a ação do poder

primariamente responsável por determinada temática.

3.3 INVESTIGAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL ACERCA DO ABORTO

Ao analisar a linha do tempo das legislações penais acerca do aborto,

percebe-se um aumento da rigidez de punição. O jurista Cezar Roberto Bitencourt31

aponta que o Código Criminal do Império de 1830 não criminalizava o aborto

praticado pela própria gestante (autoaborto), punindo apenas o ato realizado por

terceiro, com ou sem o consentimento da grávida. O Código Penal de 1890, por sua

vez, passou a criminalizar o autoaborto, além de distinguir o crime de aborto caso

houvesse ou não a expulsão do feto, agravando-se com o resultado superveniente

da morte da gestante. E o Código Penal de 1940 ampliou o rol de crimes

relacionado ao aborto e previu algumas poucas excludentes de ilicitude.

Desse modo, o Código Penal de 1940 foi publicado de acordo com a cultura,

costumes e hábitos dominantes na década de 30, ou seja, mais de sessenta anos

atrás. Neste ínterim, não foram apenas os valores da sociedade que se

modificaram, mas principalmente os avanços científicos e tecnológicos, os quais

produziram verdadeira revolução na ciência médica, revelando a dissonância legal

31 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 18. ed. São Paulo:Saraiva, 2018. v.2. p. 389-392.

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com a realidade fática atual. O jurista penalista Fernando Capez32 define o aborto

como sendo:

“a interrupção da gravidez, com a consequente destruição do produto

da concepção. Consiste na eliminação da vida intrauterina, a qual se

dá no início da gravidez. Seguindo o parâmetro delimitado pela

Medicina, o início da gravidez se dá com a fecundação do óvulo pelo

espermatozóide, momento no qual se dá o desenvolvimento do ser

gerado no útero materno até culminar no seu nascimento. Este é o

entendimento que predomina na doutrina, ou seja, a proteção penal

do aborto inicia-se com a fecundação. (CAPEZ, 2018, p. 207).”

Neste sentido, o aborto na legislação penal brasileira foi enquadrado na

classificação de crimes contra a vida, de modo que o bem jurídico tutelado é a vida

do feto e o direito ao nascimento com vida. Logo, é um crime de dano, que necessita

da sua consumação, isto é, a interrupção da gravidez com a expulsão do feto do

útero para sua configuração, sendo criminalizada a forma tentada. O penalista

Bitencourt ressalta que é não propriamente um crime contra a pessoa, pois o

produto da concepção (feto ou embrião) não é uma pessoa, embora tampouco seja

mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, pois tem vida

própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.

Diferente dos outros ramos das ciências, o Código Penal não faz distinção

entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros

meses) ou feto (a partir de 3 meses). Capez esclarece que o motivo para o exposto

é a vontade do legislador em inserir qualquer fase da gravidez dentro da

classificação do delito de aborto, isto é, entre a concepção e o início do parto, pois

após o início do parto poderemos estar diante do delito de infanticídio ou homicídio.

Cumpre apontar a situação interessante do embrião conservado fora do útero

materno, em laboratório, a qual não se encaixa em ambas as hipóteses e ensejou

um debate mais complexo acerca do bem jurídico da vida humana.

O crime do aborto, no Código Penal Atual, está previsto no Título I, Capítulo I,

dos Crimes Contra a Vida, nos artigos 124, 125, 127 e 128 que configuram os

crimes, respectivamente, do autoaborto, aborto provocado por terceiro sem

32 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p.207.

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58

consentimento da gestante, aborto provocado por terceiro com consentimento da

gestante, forma qualificada do aborto e aborto necessário (consideradas exceções à

criminalização do aborto).

O autoaborto e aborto consentido estão previsto no art. 124, caput, in verbis:

“Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque.

Pena - detenção, de um a três anos.” Desse modo, verifica-se a existência de duas

modalidades no mesmo tipo penal, sendo elas: o aborto praticado pela própria

gestante (autoaborto) e aborto consentido para que um teceiro lhe provoque.

A primeira figura é a do autoaborto, tipo penal caracterizado por sua conduta

típica implicar na execução da ação material do crime pela própria gestante,

empregando meios abortivos em si mesma. Devido ser um crime de mão própria, ou

seja, somente a gestante pode ser o sujeito ativo, o tipo em questão admite apenas

a participação, como atividade acessória, quando o partícipe se limita a instigar,

induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o autoaborto como a consentir que

terceiro lhe provoque. Como por exemplo, quando o indivíduo fornece os meios

abortivos para que o aborto seja realizado. Nessa hipótese, responderá pelo delito

do art. 124 do CP a título de partícipe.

Todavia, tal posicionamento não é unânime, existindo jurisprudência no

sentido de que o terceiro, ainda que atue como partícipe, teria a sua conduta

enquadrada no art. 126 do Código Penal (Aborto provocado por terceiro, com o

consentimento da gestante). Por fim, destaca-se a impossibilidade de ocorrer o

concurso de pessoas na modalidade coautoria por ser um crime de mão própria.

A segunda figura é o crime do aborto consentido, em que a mulher apenas

consente na prática abortiva, mas a execução material do crime é realizada por

terceira pessoa. Tal tipo, assim como a modalidade anterior, é um crime de mão

própria, assim, o ato permissivo é personalíssimo e só cabe à mulher, não podendo

haver jamais a coautoria. Dito isso, o tipo penal objeto de análise exige basicamente

dois elementos como parte da conduta típica: consentimento da gestante e a

execução do aborto por terceiro. Este último será enquadrado na modalidade

especial de crime que é para aquele que provoca o aborto com o consentimento da

gestante (CP, art. 126), logo, existindo a previsão de dois crimes na ocorrência do

aborto consentido.

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59

A doutrina especializada evidencia a situação exposta como sendo uma

exceção à teoria monística adotada pelo Código Penal em seu art. 29, de forma que

o diploma penal dispensou o tratamento penal diverso àquele que executa

materialmente a ação provocadora do aborto, cuja sanção penal é mais gravosa

(reclusão, de 1 a 4 anos). Enquanto ao indivíduo que consente que terceiro lhe

provoque, a pena cominada é idêntica ao delito de autoaborto, ou seja, menos grave

(detenção, de 1 a 3 anos). Por fim, constata-se a possibilidade de haver o concurso

de pessoas na modalidade de participação, quando, por exemplo, alguém induz a

gestante a consentir que terceiro lhe provoque o aborto, sendo este último julgado

pelo crime previsto no artigo 126, CP, que é o aborto com o consentimento da

gestante.

O aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante

encontra-se previsto no artigo 125 do Código Penal, in verbis: “Art. 125 - Provocar

aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos”.

Bitencourt destaca que a ausência de consentimento da vítima no emprego dos

meios ou manobras abortivas por terceiro como a elementar negativa do tipo penal

acarretou no agravamento da punição pelo ordenamento.

Diante disso, pode assumir duas formas: sem consentimento real ou

ausência de consentimento presumido (não maior de 14 anos, alienada ou débil

mental ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

- parágrafo único do art. 126, CP). Cabe ressaltar que não há necessidade de que

haja o dissenso expresso da gestante, basta o emprego de meios abortivos por

terceiro sem o seu conhecimento; por exemplo: ministrar doses de substância

abortiva em sua sopa.

Desta forma, Fernando Capez33 classifica o dissentimento em duas categorias

para fins didáticos de compreensão da abrangência relativa à ação expressa no tipo

penal, sendo elas: dissentimento real e presumido. A primeira espécie ocorre

quando o sujeito emprega contra a gestante (cf. 2ª parte do parágrafo único do

art.126): “a) fraude: é o emprego de ardil capaz de induzir a gestante em erro; por

exemplo: médico que, a pretexto de realizar exames de rotina na gestante, realiza

manobras abortivas; b) grave ameaça contra a gestante: é a promessa de um

malgrave, inevitável ou irresistível; por exemplo: marido desempregado que ameaça

33 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019.p. 138.

Page 60: MARI A L UÍ Z A G ALV ÃO DE ME DE I RO S DE AMP L I AÇÃO

60

se matar se a mulher não abortar a criança; c) violência: é o emprego de força física;

por exemplo: homicídio de mulher grávida com conhecimento da gravidez pelo

homicida.

O dissentimento presumido, por outro lado, ocorre de forma não livre e

espontânea, sendo a concordância (se houver) da gestante considerada inválida.

Não é necessário que a obtenção do consentimento seja mediante violência, fraude

ou grave ameaça, bastando haver simulação, ardil ou qualquer outra forma de burlar

a atenção da gestante. Essas são formas de ausência de consentimento real, que

também pode ser presumida, quando estiverem presentes aquelas condições

elencadas no art. 224. Outrossim, a presunção contempla os casos em que a vítima

não é maior de 14 anos, alienada ou débil mental. Há possibilidade de erro por parte

do terceiro quanto ao imaginado consentimento da vítima, dando ensejo ao erro de

tipo e o deslocamento da subsunção penal do terceiro para a norma do art. 126.

O aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante está

previsto no art. 126, do Código Penal, estabelecendo pena de reclusão, de um a

quatro anos, com a ressalva no parágrafo único sobre a aplicação da pena do artigo

anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental,

ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Neste

sentido, o fato contempla a incidência de duas figuras típicas, segundo Capez,34

uma para a consenciente (CP, art.124, 2ª parte) e outra para o provocador (CP, art.

126). No tipo em questão admite-se o concurso de pessoas, na hipótese em que há

o auxílio à conduta do terceiro que provoca o aborto; por exemplo, uma enfermeira

que auxilia o médico em uma clínica de aborto.

O elemento essencial do tipo penal objeto de análise é o consentimento, o

qual precisa ser válido, ou seja, que ela tenha capacidade para consentir. Isto não

significa capacidade civil, e sim a capacidade de expressar a real vontade livre e

desimpedida da gestante durante todo o procedimento. Em contrapartida, o

consentimento inválido corresponde nas hipóteses previstas no parágrafo único, de

modo que o aborto praticado contra a gestante que emitiu consentimento inválido

caracterizará a figura típica do art. 125 do CP (aborto sem o consentimento da

gestante).

O mencionado jurista destaca que a gravidez da vítima menor de 14 anos,

34 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 138.

Page 61: MARI A L UÍ Z A G ALV ÃO DE ME DE I RO S DE AMP L I AÇÃO

61

portadora de enfermidade ou deficiência mental, que não tenha o necessário

discernimento para a prática do ato, ou, que, por qualquer outra causa, não possa

oferecer resistência, será enquadrada no crime de estupro de vulnerável (CP, art.

217-A). Neste cenário, se o aborto é precedido do consentimento de seu

representante legal, o médico estará realizando o aborto legal (art. 128, II),

acobertado por causa excludente da ilicitude35.

O art. 127 do CP prevê as formas majoradas do crime de aborto, quais sejam:

a) ocorrendo lesão grave, a pena é aumentada em um terço; b) ocorrendo morte, a

pena é duplicada. Bitencourt evidencia a imprecisão técnica da “forma qualificada”

do referido tipo penal,36 em que “as qualificadoras constituem verdadeiros tipos

penais — tipos derivados — com novos limites, mínimo e máximo, enquanto as

majorantes, como simples causas modificadoras da pena, somente estabelecem a

sua variação”. As majorantes e minorantes funcionam como modificadoras na

terceira fase do cálculo da pena, algo que não ocorre com as qualificadoras. Assim,

é notório que o legislador equivocou-se ao denominar “forma qualificada” quando na

realidade é majorada.

Este artigo só é aplicado às formas tipificadas nos arts. 125 e 126, ficando

excluídos o autoaborto e o abortoconsentido (art. 124 do CP), na medida em que o

nosso ordenamento jurídico não pune a autolesão nem o ato de matar-se. Destarte,

há a controvérsia doutrinária acerca do enquadramento legal da conduta do

partícipe no crime de autoaborto do qual resultou lesão corporal ou morte da

gestante. Fernando Capez entende que o sujeito deve responder por homicídio

culposo ou lesão corporal culposa, a partir da análise do caso concreto, na

qualidade de autor mediato. Isso porque, a gestante funcionou como instrumento

(longa manus) de sua atuação imprudente, além de responder por participação em

autoaborto em concurso formal.

As majorantes no tipo penal do artigo 127 são exclusivamente preterdolosas,

pois existe umcrime doloso (aborto) ligado ao resultado não objetivado (lesão

corporal de natureza grave ou morte), nem mesmo eventualmente, porém imputável

ao agente a título de culpa (se eram consequências previsíveis do aborto que sequis

36 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 18. ed. São Paulo:Saraiva, 2018. v.2. p. 410-412.

35 Ibid., p. 139 e 140.

Page 62: MARI A L UÍ Z A G ALV ÃO DE ME DE I RO S DE AMP L I AÇÃO

62

realizar e, por conseguinte, evitáveis).

Por fim, cumpre destacar que os legisladores consideraram apenas as lesões

graves como pré-requisito para majorar a pena, de modo que os juristas Nélson

Hungria37 e E. Magalhães Noronha38, entendem que nos casos em que as lesões,

apesar de graves, possam ser consideradas “inerentes” ou “necessárias” para

acausação do aborto, não incidiria esse dispositivo, pois estariam elasabsorvidas

pelo aborto. Logo, a lei visaria as lesões graves extraordinárias, ou seja, não

necessárias à causação do aborto, como, por exemplo, infecções; do contrário, o

crime de aborto seria sempre qualificado.

O aborto legal com sua causas de exclusão de ilicitude estão presentes no

art. 128 do CP, in verbis: “Não se pune o aborto praticado por médico: I — se não há

outro meio de salvar a vida da gestante; II — se a gravidez resulta de estupro e o

aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu

representante legal”. O próprio Código atribui os nomen juris de “aborto necessário”,

ao primeiro, e “aborto no caso de gravidez resultante de estupro”, que doutrina e

jurisprudência encarregaram-se de definir como sentimental, humanitário. Dito isso,

a primeira modalidade prevista no primeiro inciso do art. 128 é o aborto necessário

ou terapêutico, que é aquele realizado quando a gestante estiver correndo perigo de

vida e inexistir outro meio parasalvá-la, constituindo um verdadeiro estado de

necessidade, porém sem a exigência de que o perigo de vida seja atual.

Desta forma, há dois bens jurídicos (a vida do feto e da genitora) postos em

perigo, em que o legislador optou pela preservação de um (vida da genitora) em

detrimento do outro (vida do feto). Para tanto, o médico deverá intervir após o

parecer de dois outros colegas, devendo ser lavrada ata em três vias, sendo uma

enviada ao Conselho Regional de Medicina e outra ao diretor clínico do nosocômio

onde o aborto foi praticado. É dispensável a concordância da gestante ou do

representante legal. Destaca-se a limitada abrangência da excludente, a qual não

abarca outros profissionais da saúde, somente o médico responsável pelo

abortamento.

O aborto sentimental, humanitário ou ético (CP, art. 128, II), por sua vez,

38 NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 21. ed. São Paulo,Saraiva, 1992.

37 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro, Forense, 1942. v. 2.

Page 63: MARI A L UÍ Z A G ALV ÃO DE ME DE I RO S DE AMP L I AÇÃO

63

corresponde ao reconhecimento estatal da agressividade de se impor à vítima de

estupro uma gravidez indesejada com o fruto de um coito vagínico violento, dados

os danos maiores, em especial psicológicos, que isso lhe pode acarreta. A

excludente em exame estende-se ao crime praticado com violência implícita (art.

217-A), pois uma interpretação restritiva, no caso, implicaria criminalizar uma

conduta autorizada, uma espécie de interpretação extensiva contra legem, ou seja,

in malam partem. Cabe apontar que a Lei n. 12.015/2009 passou a considerar como

estupro a prática não só da conjunção carnal, mas também de qualquer outro ato

libidinoso diverso.

A lei não exige autorização judicial, processo judicial ou sentença

condenatória contra o autor do crime de estupro para a prática doaborto sentimental.

Para isso, é suficiente prova idônea do atentado sexual (boletim de ocorrência,

testemunhos colhidos perante autoridade policial, atestado médico relativo às lesões

defensivas sofridas pela mulher e às lesões próprias da submissão forçada à

conjunção carnal).

Tratando-se da situação de gravidez decorrente de estupro de vulnerável,

basta a prova da realização da conjunção carnal. Caso não tenha havido estupro e o

médico induzido em erro realiza o aborto, há erro de tipo, excluindo o dolo, além da

tipicidade da conduta. Se a autora for enfermeira, esta responderá pelo delito, pois a

lei faz referência expressa à qualidade do sujeito que deve ser favorecido: médico.

Todavia, se ela auxilia o médico na realização do aborto humanitário, não há crime,

uma vez que a conduta daquele não constitui fato típico e ilícito.

Além dos exemplos tipificados no Código Penal, existem outras espécies de

aborto, como o natural, acidental, social e eugênico. O natural é a simples

interrupção espontânea da gravidez, enquanto o acidental é aquele que decorre de

traumatismo ou outro acidente. Ambos não constituem crime. O aborto social,

também conhecido como econômico, acontece movido pela futura crise financeira e

social que geraria no seio de uma determinada família, logo, sendo crime.

Por fim, o aborto eugênico é aquele realizado para impedir que a criança

nasça com deformidade ou enfermidade incurável. Não é permitido pela legislação

brasileira e, por isso, configura o crime de aborto. Contudo, mediante prova

irrefutável de que o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida,

consubstanciada em laudos subscritos por juntas médicas, deve ser autorizada a

Page 64: MARI A L UÍ Z A G ALV ÃO DE ME DE I RO S DE AMP L I AÇÃO

64

sua prática. É a situação permitida judicialmente do aborto dos fetos anencéfalos,

decidida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, pelo STF,

no ano de 2012.

Cumpre salientar a existência do projeto de Lei 882/201539 proposto pelo

PSOL, o qual visa permitir que as mulheres recorram a clínicas e hospitais do SUS

para interrupção da gravidez de forma autônoma, até a 12ª semana de gestação. O

projeto também prevê que equipes multidisciplinares formadas por médicos,

psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais devam acompanhar essas mulheres,

com o objetivo de dar a elas dignidade. Todavia, o projeto encontra-se parado no

Congresso Nacional, sem perspectivas de ser discutido e votado no período atual

em que se encontra o Brasil, isto é, no contexto de uma pandemia global e

governado por um presidente e aliados que adotam uma pauta política

essencialmente conservadora de caráter fundamentalista religiosa.

4. MODELOS VIGENTES DE ABORTAMENTO LEGAL

4.1. SISTEMAS EM FUNCIONAMENTO AO REDOR DO MUNDO

No Brasil, apesar de existirem os direitos constitucionalmente reconhecidos

como o direito ao planejamento familiar e à autonomia individual, os artigos penais

que lidam com a temática continuam em vigência no ordenamento jurídico, tratando

este procedimento médico como crime, com poucas exceções. Punível com

detenção de um a três anos para a mulher, e de um a quatro anos para a pessoa

que realizar o procedimento, a legislação brasileira mostra-se retrógrada, sendo

similar a de países como o Afeganistão.

Por outro lado, diversos países, como Estados Unidos, França, África do Sul

e Uruguai, optaram por legalizar do aborto, especialmente nas últimas décadas. Na

Suécia o aborto legal, seguro e gratuito existe desde 1975, demonstrando uma

avanço pioneiro da mentalidade dos direitos das mulheres e o enfrentamento

adequado, enquanto problema de saúde pública. Assim, nos referidos países que

39 SÃO PAULO. Assembleia Legislativa. Projeto de Lei Complementar PLC 882/2015. Altera oDecreto-lei nº 2.848, 07 de dezembro de 1940, que institui o Código Penal no Brasil.

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65

legalizaram o aborto com assistência médica e condições de higiene adequadas, o

principal resultado deste movimento foi a redução da mortalidade materna.

O número de países onde o aborto é considerado uma prática legalizada e as

mulheres que desejam interromper sua gravidez voluntariamente não são presas

por isso são de 66 países. De acordo com a organização não-governamental Centro

pelos Direitos Reprodutivos40 (Center for Reproductive Rights41, em inglês), são mais

de 590 milhões de mulheres em idade reprodutiva que vivem em países que

possuem legislação que permite o aborto perante a solicitação da mulher. A partir

desses dados foi possível classificar em quatro categorias no espectro que vai da

proibição total à legalização.

A primeira espécie é a da proibição total, a qual não existem nenhuma

exceção à prática do aborto. A legislação de 26 países do mundo como o Egito,

Iraque, Nicarágua, Filipinas, Senegal e Cisjordânia, proíbe o aborto sob quaisquer

que sejam as circunstâncias. Segundo a citada pesquisa, o número de mulheres em

idade reprodutiva que vivem em locais onde a interrupção da gravidez é totalmente

proibida por lei, até mesmo quando a vida ou a saúde delas está em risco, é de 90

milhões.

A segunda categoria é aquela a qual pertence o Brasil, que é o aborto

permitido para salvar a vida da mulher. A pesquisa revela o número de 39 países

(com o Brasil) que adotam uma legislação nesse sentido, existindo, logo, uma

estimativa de 359 milhões de mulheres em idade reprodutiva vivendo em locais onde

as leis permitem o aborto apenas quando a vida da mulher está em risco. Medidas

restritivas como essas são adotadas em países do Oriente Médio como o Irã, Líbano

e a Síria. Da Ásia como o Afeganistão e a Indonésia e da África como a Nigéria,

Somália, Sudão e Uganda.

Há uma categoria específica e com pouca adesão que é o aborto relacionado

aos motivos sociais ou econômicos da gestante. Tal espécie está regulamentada em

14 países, como na Finlândia e na Etiópia, e as leis são interpretadas para

permitirem o aborto sob amplas circunstâncias, após uma análise detalhada de

fatores externos. Assim, a legislação costuma levar em consideração motivos sociais

41 Center for Reproductive Rights. The World's Abortion Laws. website: ONG, 2021.

40 RICCI, Larissa; MAC, Aissa; PEREIRA, Maria Irenilda. Portal Estado de Minas Gerais. Conheça asleis sobre o aborto no mundo. Em 67 países, a decisão é da mulher. 2021.

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66

e econômicos, considerando o impacto potencial da gravidez na atual situação da

mulher e também em uma situação futura.

Adiante, a categoria do aborto permitido com o objetivo de preserva a saúde

da mulher está presente na legislação de 56 países. Segundo a Organização

Mundial da Saúde (OMS), os países que permitem o aborto por esse motivo

deveriam interpretar "saúde" como “um estado de completo bem-estar físico, mental

e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Contudo, ocorre que

nem sempre os países interpretam da maneira abrangente com que a OMS instituiu

a diretriz, considerando que a interrupção da gravidez é prevista apenas quando a

saúde física da grávida está em risco, como é o caso de Mônaco e do Zimbábue.

Por último, a classificação tida como o ideal a ser alcançado, que é o

abortamento diante da solicitação da mulher. Este motivo norteia a legislação de 67

países, sendo que a grande maioria deles permite a interrupção da gravidez com até

12 semanas de gestação, como é o caso da Dinamarca, Irlanda, Noruega e Rússia.

Já em países como o Estados Unidos e a Austrália, a legislação que regula a

interrupção da gravidez é definida pelos Estados.

Além dos países mencionados, na França também representa uma pioneira

na pauta da legalização do aborto, pois a conduta em questão deixou de ser crime

no ano de 1975. Dito isso, o abortamento pode ser realizado até a 12ª semana de

gestação, por pedido da mulher, caso a mesma alegue não ter condições sociais ou

econômicas para ser mãe. Além disso, possui as mesmas exceções pátrias, que

são em relação aos casos de risco de morte da mãe ou má formação do feto

(nesses casos, dois médicos precisam certificar a situação). As mulheres que

entram com o pedido são encaminhadas para aconselhamento e precisam passar

por um período de ponderação obrigatório de no mínimo oito dias. Menores de 18

anos, só com autorização dos pais.

Dentro da realidade latino-americana, há o caso do México, que em 1931 foi

o primeiro país a legalizar o aborto em caso de estupro. Assim como nos Estados

Unidos, a legislação é feita de forma regional e varia de estado para estado. Na

Cidade do México, desde 2008, por exemplo, a prática é totalmente legalizada,

sendo a única limitação ser realizada até no máximo a 12ª semana de gestação.

Apesar disso, em 2009, outros estados mexicanos proibiram de forma universal o

aborto.

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67

Segundo a advogada Juliana Alvim, coordenadora da Clínica de Direitos

Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)42, há uma discrepância

entre a legislação vigente no Brasil, se comparado a outros países. Ela aponta que

mesmo em lugares onde a legislação é mais restrita, o aborto é permitido para

proteger a saúde em geral da mulher, e não apenas a vida da gestante.

Desse modo, constata-se um alinhamento brasileiro com países menos

progressistas, de modo que até mesmo várias nações latinas vizinhas, como

Uruguai e Argentina, avançaram significativamente na temática, enquanto o Brasil

permanece parado na década de 40. Apesar de existir o movimento antiaborto

liderado principalmente por grupos religiosos, novas projetos de lei são, a todo

momento, apresentados na Câmara e levantados em centros de discussões

acadêmicos, com medidas visando criar novas perspectivas, alterar a legislação e,

consequentemente, facilitar o acesso das mulheres à interrupção da gravidez

seguro.

4.2. MODELO URUGUAIO E ARGENTINO

É necessário analisar o contexto hitórico uruguaio para entender como o país

se tornou o primeiro território da América do Sul a descriminalizar o aborto,

juntando-se a Cuba e mais dois países na América Latina. A história do Uruguai é

marcada tradicionalmente por uma ativa participação popular, de modo que sua

sociedade sempre se posicionou como protagonista nas decisões políticas do país,

lutando pelas suas reivindicações e participando ativamente em sua democracia.

Em outubro de 2004 passa a ser escrita uma nova história na política

uruguaia com a inédita eleição da Frente Ampla43, a coalizão tinha como tarefa

adotar uma política fiel ao que discursou ao longo de todos os anos enquanto

partido de oposição. O objetivo principal do presidente era retomar o Estado de

Bem-estar, priorizando as reformas na educação, saúde e seguridade social.

A partir da reeleição da Frente Ampla nas eleições de 2009, o novo

43 DUARTE, Rafael. Ascensão e consolidação da frente ampla uruguai: da clandestinidadeàs vias democráticas, da esquerda tradicional ao progressismo. Universidade Federal de SantaCatarina, Florianópolis, 2011.

42 RICCI, Larissa; MAC, Aissa; PEREIRA, Maria Irenilda. Portal Estado de Minas Gerais. Conheça asleis sobre o aborto no mundo. Em 67 países, a decisão é da mulher. 2021.

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68

presidente José “Pepe” Mujica (ao lado de Danilo Astori como seu vice) não

encontrou as dificuldades que seu antecessor teve que enfrentar. No ano de 2008, a

maioria da população uruguaia era a favor da descriminalização do aborto, estando

o dado respaldado na pesquisa pela legalização do aborto de âmbito nacional para

saber a opinião dos uruguaios. De acordo com José Torres44:

“Em 2008, a legalização do aborto no Uruguai foi aprovada pelos

senadores e deputados, fortalecidos pela opinião de pelo menos

63% dos uruguaios, que se manifestaram em pesquisas pela

legalização. Tal processo foi realizado pelo programa Iniciativas

Sanitárias, que implementou no país um programa público de

assistência médica para o aborto. Houve o apoio das centrais

sindicais, um espaço tradicionalmente masculino, porém, o projeto foi

vetado pelo presidente Tabaré Vazquez”. (TORRES, 2011, p. 10).

O legado de Mujica repousa nos diversos avanços nos indicadores sociais,

investimentos em educação e no empenho em concretizar um Estado de bem-estar

social de fato, logo, melhorando a qualidade de vida da população. Logo, a criação

de leis sociais e uma política norteada pelos direitos humanos foi de extrema

relevância para que seu governo alcançasse tais resultados. Entre as medidas

mencionadas está a descriminalização do aborto, em 2012, conhecida como Lei de

Interrupção da Gravidez (Lei 18.987/12).

Tal Lei nº 18.987/12 foi responsável por permitir a realização do procedimento

até a 12ª semana, quando a mulher, então, passará por uma consulta

multidisciplinar no Sistema de Saúde Pública, informando os motivos cabíveis para

tal decisão. Caso opte pela interrupção da gravidez, o fará através dos

medicamentos Misoprostol e Mefiprestona, sendo que ao 10º dia da interrupção,

deverá haver uma consulta com o ginecologista. O Decreto nº 243/2016 corroborou

com a supracitada Lei, e reforçou a autonomia absoluta da paciente nos casos de

aborto, de forma que passou a não ser permitida a interferência por motivos

subjetivos do pessoal da saúde na decisão da mulher.

44 TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto: Legislação Comparada. Vol.2, nº2. RevistaEPOS: Rio de Janeiro, 2011. p. 10.

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69

De acordo com o Ministério de Saúde Pública, após o primeiro ano da

implementação da lei (entre dezembro de 2012 e novembro de 2013) foram

realizados 6.676 abortos no país, uma taxa de 9 abortos a cada 1000 mulheres

(entre 15 e 44 anos). 6% das mulheres desistiram de interromper a gravidez no

período de reflexão obrigatório após a primeira consulta. Segundo relatório da MSU

(2014), a taxa de mortalidade materna por aborto inseguro caiu drasticamente entre

os anos 2000 e 2013.

O Sistema Nacional de Informação Pública (SINAdI) do Ministério da Saúde

Pública (MSP)45 no Uruguai forneceu dados sobre o número de interrupções e

outros dados importantes:

“No ano de 2014, houve 8.500 abortos voluntários, 20% a mais que o

ano de 2013, quando a legislação existente foi aplicada. Estamos

falando de um índice 12/1000 de mulheres entre 15 e 45 anos de

idade, com taxas inferiores às do nível internacional, como nos

países nórdicos. 18% correspondem a crianças com menos de 20

anos de idade. 9% decidiram continuar a gravidez após a consulta

com a equipe interdisciplinar de sua instituição, 30% a mais do que

no primeiro ano de implementação. Os registros mostram que não

existem diferenças substantivas entre afiliados nos sub-setores

público e privado. Enquanto isso, 60% correspondem a Montevidéu e

40% às mulheres do interior do país. Durante esses períodos, não

houve óbitos maternos devido ao aborto no Uruguai”. (MSP, 2015)

No início do século se registrou uma taxa de 29% de mortes maternas

provenientes do aborto inseguro, e, em 2013, esse número caiu para 9%, segundo o

MSU do ano de 2014. Conforme o Ministério de Saúde Pública (2015), no ano de

2014 foram realizados 8500 abortos voluntários, cerca de 20% a mais dos

procedimentos realizados em 2013. Destarte, a relação de abortos/1000 mulheres

ainda continua mais baixa do que a maioria dos países que legalizaram o aborto no

mundo: 12/1000 mulheres. (MSP, 2015)

É notório que a Lei nº 18.987 foi eficiente em sua principal razão de ser

aprovada: diminuir o número de mortes de mulheres pela prática do aborto inseguro.

45 MINISTÉRIO DE SALUD. Interrupción voluntaria de embarazo. Montevidéu, 28 mar. 2015.

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70

Contudo, problemas existem e estão relacionados principalmente a objeção de

consciência concedida aos médicos para realizar o abortamento, algo que dificulta

substancialmente o acesso ao serviço, principalmente no interior do país. Além

disso, especialistas apontam que ainda existe uma forte herança de preconceito

acerca do tema na sociedade, bem como uma falta de interesse governamental em,

no mínimo, atenuar o conservadorismo na opinião pública.

Neste cenário, para a militante da ONG “Mujer y Salud en Uruguay"

(MYSU),46 Azul Cordo (2015), o número de etapas que as mulheres devem “vencer”

para conseguirem realizar o procedimento colocam em xeque o poder e direito de

decisão das mulheres. Todavia, é possível perceber que o aumento no número de

aborto foi inferior à taxa de outros países em que aborto já é legalizado, e menor

ainda do que países que ainda punem severamente a prática. Assim, o Uruguai

segue sendo um exemplo de modelo bem-sucedido dentro da América do Sul,

podendo servir de exemplo para o Brasil devido às similaridades socioeconômicas e

culturais.

No tocante ao contexto da Argentina, esta aprovou no Senado Federal a Lei

nº 27.610, no dia 30 de dezembro de 2020, a qual prevê a legalização do aborto até

14ª semana de gestação, tendo sido a votação de 39 votos a favor, 29 contra e uma

abstenção, de forma que o texto tinha passado duas semanas antes pela Câmara

dos Deputados. Desse modo, a nova legislação encerrou o texto que estava em

vigor desde 1921, que considerava a prática crime, exceto em caso de estupro ou

risco de vida da mãe. A partir dessa nova lei, a Argentina coloca-se na vanguarda

dos direitos sociais na América Latina47, seguindo o exemplo de outros países dessa

região, como Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa (e regiões como a Cidade

do México).

A transformação ocorrida no território argentino somente foi possível

pelo histórico de mobilização social do país, o qual reivindicou por anos, através dos

movimentos sociais e feministas, que mulheres pudessem escolher interromper uma

gravidez com segurança e sem penalizações criminais. Por meio de movimentos

como os Encontros Nacionais de Mulheres, realizados anualmente desde 1986,

47 CENTENERA, Mar; MOLINA, Federico Rivas. El País. Argentina legaliza o aborto e se põe navanguarda dos direitos sociais na América Latina. 2021.

46 Observatorio nacional en género y salud sexual y reproductiva. Mujer y Salud en Uruguay(MSYU). 2015. Disponível em: http://www.mysu.org.uy/que-hacemos/observatorio/.

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71

surgiu a ideia da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e

Gratuito, lançada oficialmente em 2005. Desde o começo, a campanha reúne

associações profissionais, acadêmicas e ativistas para pautar o tema a nível

nacional. Tal união possui mais de 700 organizações, sendo uma das protagonistas

do debate nos últimos 15 anos.

A primeira iniciativa da Campanha Nacional foi elaborar e protocolar, em

2006, um projeto pedindo a legalização do aborto no Congresso Nacional. Contudo,

o texto somente foi apreciado e votado pela Câmara dos Deputados no ano de

2018, durante o governo de Mauricio Macri. Apesar de contrário à legalização, o

presidente preferiu não interferir diretamente no debate, já que o país vivia uma crise

econômica e discutir aborto desviava a atenção dos temas da economia. A pressão

se intensificou com o movimento do lenço verde, o qual virou um símbolo do

movimento da luta pelo aborto legal. Tal mobilização é uma homenagem aos lenços

brancos usados pelas Mães da Praça de Maio, que buscam até hoje filhos e netos

desaparecidos durante a Ditadura Militar.

Neste cenário, em 2020, o contexto social da Argentina parecia finalmente

favorável, pois presidente (Alberto Fernandez) apoiava a legalização do aborto,

houve uma renovação no Congresso, alta participação de mulheres na política e nas

ruas, resultando em uma maior aceitação por parte da sociedade. Assim, o texto foi

aprovado.

De acordo com a legislação argentina, o abortamento está legalmente

consagrado como direito das mulheres, meninas e pessoas com capacidade de

gestação, devendo ser realizado até a 14ª semana de gestação, exceto em caso de

estupro ou se a gestante estiver em perigo. O procedimento só pode ser realizado

em menores de 13 anos caso haja consentimento informado (forma escrita) e com a

presença de um dos pais ou responsável legal. O pedido deve ser atendido no prazo

de dez dias corridos depois da solicitação.

Apesar da recusa dos profissionais de saúde estar prevista no

ordenamento, é obrigação do profissional que encaminhe imediatamente a pessoa

solicitante da interrupção para outro profissional ou centro de saúde que realize o

procedimento. Todavia, a recusa não está autorizada para a gravidez acima de 14

semanas em que a vida e a saúde da gestante estão em risco, devido seu caráter

de urgência. Hospitais privados ou de previdência social que não possuem médicos

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ou estrutura para a realização do procedimento devem encaminhar a gestante para

outra unidade em que o atendimento seja realizado. Os planos de saúde privados e

públicos devem garantir a cobertura do procedimento de interrupção de gravidez de

forma gratuita; além de diagnóstico, medicamentos e terapia de suporte.

Importante destacar que além da Lei nº 27.610/20, que institui o abortamento

legal, houve a implementação da Lei nº 26.150 de Educação Sexual Integral, que

estabelece políticas públicas e educacionais para fortalecer e garantir a saúde

sexual e reprodutiva dos cidadãos. Destarte, o Código Penal foi alterado, passando

a proibir a a realização do aborto em gestantes que não autorizaram o procedimento

(art. 85), o que pode causar de três a dez anos de prisão, com agravante de até 15

anos caso a gestante venha a óbito durante o procedimento. Como também, é crime

a realização do aborto em pessoas com mais de 14 semanas de gestação com pena

de três meses a um ano, a menos que a vida da gestante esteja em risco. Por fim,

será acrescentado ao artigo 86 que o aborto realizado com consentimento da

gestante até a 14ª semana não é crime.

4.3. ETAPAS PARA IMPLEMENTAÇÃO DO ABORTAMENTO LEGAL NA

REALIDADE BRASILEIRA

Há, atualmente, diversos projetos que visam adequar a legislação brasileira

ao atual contexto social, sob o argumento de que a legislação é antiga e sua

aplicação, deficiente. O aborto, ou mais precisamente, a interrupção voluntária da

gravidez, não é permitido no Brasil, somente em casos excepcionais, como por

exemplo quando necessário para salvar a vida da gestante, ou então quando a

gravidez for resultante de estupro, conforme foi intensamente explanado ao longo do

trabalho.

Desse modo, apesar de estar instituído um sistema de abortamento legal

para situações específicas, na prática os números não revelam um adequado

funcionamento do processo legal. A Pesquisa Nacional de Aborto (2016)48 mapeou

48 Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras.Cien Saude Colet, 2012.

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73

os serviços de aborto legal no país e identificou, no período 2013-2015, apenas 37

serviços ativos dos 68 registrados no Ministério da Saúde, assim distribuídos pelas

regiões: 5 no Norte, 11 no Nordeste, 3 no Centro-oeste, 12 no Sudeste e 6 no Sul,

concentrados em capitais e em grandes centros. Todos tinham equipe

multiprofissional, mas não específica para esse atendimento. Documentos como

laudo pericial e alvará judicial foram solicitados por 8 a 14% dos serviços. Os

métodos disponíveis na grande maioria dos serviços eram: medicamentos,

curetagem e aspiração manual intrauterina. De 5.075 demandas, 2.442 abortos

legais foram realizados no país, de 1994-2015.

Além disso, o estudo revelou um obstáculo significativo para a realização

desses abortamentos: a objeção de consciência. O estudo de Diniz et al. mostrou

que 43,5% dos médicos entrevistados não realizariam o aborto por estupro, apenas

10% por motivos religiosos, e os demais sem uma justificativa explícita. O estudo do

pesquisador Wesley Braga de Rocha49, juntamente com outros estudiosos da

Universidade de Brasília, mesclou médicos e outros profissionais de saúde, de

forma que a objeção foi invocada sem base argumentativa por mais da metade dos

participantes, e 16% alegaram motivos religiosos. Nesse mesmo estudo, um terço

dos participantes afirmou que a objeção é um direito do profissional e pode ser

invocada em qualquer ocasião, enquanto outro terço não soube definir o conceito.

Como agravante do contexto apresentado, a Portaria nº 2.282/20 do

Ministério da Saúde, publicada no “Diário Oficial da União”, altera o procedimento

padrão a ser adotado por médicos e profissionais de saúde ao atender mulheres

que queiram abortar após engravidarem de um estupro. A portaria traz novas

exigências, incluindo a oferta para que a gestante veja imagens do feto, em

ultrassonografia, e a submissão da vítima a um extenso questionário sobre o

estupro. Outrossim, nesses casos, também fica "obrigatória a notificação à

autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo

estabelecimento de saúde que acolheram a paciente sobre os indícios ou

confirmação do crime de estupro."

Portanto, constata-se que na realidade brasileira persiste a manutenção de

uma oferta insuficiente de serviços de aborto legal, como as barreiras descritas

49 ROCHA, W. B. et al. Percepção de profissionais da saúde sobre abortamento legal.Universidade de Brasília: Rev Bioét, 2015.

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74

realização de abortos previstos em lei, a qual já bastante restritiva, com exigência de

documentação desnecessária em casos de gravidez resultante de estupro. O

número de abortos realizados é inferior à demanda das mulheres. É inadiável a

expansão e consolidação dos serviços de aborto legal no país, principalmente nos

estados que ainda não dispõem destes serviços, e a redução das barreiras de

acesso ao procedimento ao menos por mulheres que se enquadram em condições

previstas em lei.

Diante disso, a aprovação de uma legislação nova dentro dos parâmetros que

já foram testados em países com uma realidade socioeconômica similar à brasileira

e que forneceram resultados interessantes deve ser realizada. É uma questão de

saúde pública urgente ao Estado brasileiro. Este que precisa, também, fortalecer o

sistema de abortamento legal existente, capacitando melhor seus profissionais para

lidar com as pessoas que desejam interromper a gestação, além de equipar seus

hospitais com os materiais necessários. A aspiração uterina deve ser oferecida

como método de esvaziamento uterino em substituição à curetagem, quando

pertinente. Estágios em serviços de aborto legal devem integrar a formação de

profissionais de saúde.

O déficit de registros sobre o abortamento legal revela o estigma que ainda

existe em relação a uma prática considerada permitida pelo ordenamento brasileiro,

bem como revela o quanto os profissionais de saúde primam em manter suas

crenças e opiniões em primeiro plano, desconsiderando a ética médica. É inadiável

a expansão e consolidação dos serviços de aborto legal no país, principalmente nos

estados que ainda não dispõem destes serviços, e a redução das barreiras de

acesso ao procedimento ao menos por mulheres que se enquadram em condições

previstas em lei. Como também, ampliar o debate sobre os direitos sexuais e

reprodutivos das mulheres e sobre as boas práticas na atenção ao aborto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho analisou o direito ao aborto dentro de múltiplas perspectivas,

em que o primeiro passo foi realizar uma abordagem histórica-social da prática do

aborto, seguido adiante por um estudo jurídico detalhado, de modo a defender a

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75

constitucionalidade do abortamento e proteção dos direitos fundamentais, e, por fim,

houve uma apresentação dos modelos que podem ser adotados no território

brasileiro através de exemplos próximos ao Brasil.

Neste sentido, diversos estudos foram utilizados para embasar os tópicos

levantados na presente monografia, com enfoque em pesquisas redigidas por

estudiosos da área, bem como dados legítimos de órgãos oficiais. Com o objetivo de

ponderar argumentos em defesa à descriminalização do aborto, houve a análise das

particularidades do nascituro, verificando que até a 14ª semana de gestação o feto

não possui o córtex cerebral plenamente desenvolvido, órgão responsável por o

conferir sentimentos e racionalidade. Assim, até este momento da gestação o

abortamento não traria dor ou prejuízo ao concepto, sendo essa a teoria

concepcionista mais adequada ao contexto social de proteção das gestantes e dos

nascituros.

Portanto, constatou-se a ineficácia da política estatal de criminalização, de

forma que o Estado é negligente em relação ao tema, pois proíbe a prática do

abortamento, ao mesmo tempo que não age para a prevenção das gravidezes e não

presta apoio a quem decide levar a gestação adiante sem possuir mínimas

condições de subsistência. Além disso, há uma ampla recusa dos profissionais de

saúde em realizar os abortos legais presvistos no diploma penal vigente. Outrossim,

o sistema de saúde despende uma significativa quantia de dinheiro com o

tratamento do pós-abortamento clandestino que diversas mulheres realizam,

comprovando, assim, a gravidade desse problema de saúde e seus efeitos na

economia estatal. O direcionamento dos referidos recursos poderia ser empregado

dentro do novo sistema.

A conclusão é que a instituição de um sistema de abortamento legal é uma

medida de saúde e proteção para milhares de pessoas que desejam interromper

suas gravidezes, bem como é um meio necessário de assegurar o pleno exercício

dos direitos constitucionalmente garantidos. A legislação Penal de 1941 não está

mais adequada à realidade social do Brasil do século XXI, devendo ser reformulada

após discussões com a sociedade civil e a oitiva de especialistas da área, seguindo

o exemplo dos movimentos sociais argentinos e uruguaios. Ambos os países

vizinhos servem de exemplo para a viabilidade de transformação brasileira, cabendo

apenas intensificar as lutas e despertar a vontade política por mudança.

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