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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA: LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS São Paulo 2010

MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp144422.pdf · romance gira em torno de uma falsa cabeça esculpida pelo italiano Amedeo Modigliani, por

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE

BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA:

LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS

São Paulo

2010

Livros Grátis

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MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE

BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA:

LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa Dr

a Maria Luiza Guarnieri Atik

São Paulo

2010

A345b Albuquerque, Mariana Ferraz de Breve espaço entre cor e sombra: literatura e artes plásticas / Mariana Ferraz de Albuquerque - São Paulo, 2010 76 f. : il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2008. Orientador: Profª.Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik Referências bibliográficas: f. 74-76

1. Literatura comparada. 2. Artes plásticas. 3. Pintura. 4. Literatura. I. Título.

CDD 869.3

MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE

BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA:

LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovada em agosto de 2010.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Profa Dr

a Maria Luiza Guarnieri Atik

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________

Profa Dr

a Aurora Gedra Ruiz Alvarez

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________

Profo Dr. Osvando J. de Morais

Universidade de Sorocaba

AGRADECIMENTOS

Aos meus avôs. Um me deu as cores.

O outro, um coração para vê-las.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar o romance Breve espaço entre cor e sombra, de

Cristovão Tezza, seguindo os preceitos da literatura comparada. A obra transita entre a

literatura e as artes plásticas, tornando-se, portanto, imprescindível conceituar o que é arte,

entender os caminhos que ela vem percorrendo desde os primórdios e destacar algumas

marcas presentes nas obras de artistas da modernidade. Uma vez que o fio condutor do

romance gira em torno de uma falsa cabeça esculpida pelo italiano Amedeo Modigliani, por

meio dos pressupostos teóricos de Walter Benjamin, entender-se-ão questões como a

reprodutibilidade técnica e a reprodutibilidade manual. Sabido que os conceitos de arte

perpassam todo o romance, o presente estudo tem, como fontes de referência, as obras de

Mario Praz, Paulo Menezes, Jorge Coli, Alfredo Bosi e Aguinaldo Gonçalves. Analisar-se-ão

não somente os conceitos de arte, mas, também, as descrições das telas que correspondem aos

―quadros narrativos‖ presentes no romance, quadros estes que transformam as palavras em

imagens.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada; Artes Plásticas; Literatura; Pintura.

ABSTRACT

The present work aims to analyze the novel Breve espaço entre cor e sombra (Brief space

between color and shade) by Cristovão Tezza. The work transits between the literature and the

plastic arts, becoming, therefore, essential to conceptualize what art is, understand the paths

that it has been covering since early times and to highlight some present marks in the

modernity artists‘ artwork. Once the thread of the story revolves around a false head

sculptured by the Italian Amedeo Modigliani, through Walter Benjamin‘s theoretical

assumptions, questions as technical reproduction and manual reproduction will be understood.

Knowing that the concepts of art permeate the whole novel, the present work has, as reference

sources, the works of Mario Praz, Paulo Menezes, Jorge Coli, Alfredo Bosi and Aguinaldo

Gonçalves. It will be analyzed not only the concepts of art, but also, the description of the

paintings that correspond to the ―narrative paintings‖, present in the novel, paintings these that

transform the words into images.

KEYWORDS: Comparative Literature; Plastic arts; Literature; Painting.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1: ―A anunciação‖, de Martini, Simone (1333)....................................................... 14

Ilustração 2: ―Impressão, nascer do sol‖, de Monet, Claude (1872)........................................ 16

Ilustração 3: Foto do pintor Amedeo Modigliani .................................................................... 31

Ilustração 4: ―Cariátide‖, de Modigliani, Amedeo (1913)....................................................... 32

Ilustração 5: ―Cabeça de Pedra‖, de Modigliani, Amedeo (1911-12).................................... 33

Ilustração 6: ―Nu reclinado‖, de Modigliani, Amedeo (1917)................................................ 34

Ilustração 7: ―A primavera‖, Botticelli, Sandro (1478) ...........................................................42

Ilustração 8: ―O almoço na relva‖ – Manet, Edouard (1863)...................................................45

Ilustração 9: Foto do pintor Jackson Pollock ...........................................................................46

Ilustração 10: ―Composição em vermelho, amarelo e azul‖, de Mondrian, Piet (1937-

1942)……................................................................................................................................ 52

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1 – OS CAMINHOS PERCORRIDOS PELA ARTE ..................................13

1.1 O PINTOR E O MERCADO DE ARTE .......................................................................21

1.2 AS FALSIFICAÇÕES E AS MARCAS DAS OBRAS .................................................24

1.3 AMEDEO MODIGLIANI ...............................................................................................31

CAPÍTULO 2 – CRISTOVÃO TEZZA E SUA OBRA: BREVE ESPAÇO ENTRE COR

E SOMBRA ............................................................................................................................. 38

2.1 NARRATIVAS SOBRE TELAS ....................................................................................46

2.1.1 CRIANÇAS..............................................................................................................47

2.1.2 IMMOBILIS SAPIENTIA........................................................................................49

2.1.3 ESTUDO SOBRE MONDRIAN..............................................................................50

2.1.4 RÉQUIEM ..............................................................................................................53

2.2 ESTRUTURA NARRATIVA ..........................................................................................56

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................71

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................74

9

INTRODUÇÃO

“Só a arte pode garantir a

sobrevivência da civilização”

(Cristovão Tezza)

As manifestações artísticas, também entendidas como obras de arte, expressam-se de

diferentes formas. Isso ocorre devido à evolução do homem, que encontra diferentes maneiras

de manifestar, expressar e expor seus pensamentos, ideias, anseios, desejos, descobertas,

medos, percepções e emoções.

A arte ajuda-nos a melhor entender momentos históricos, sociedades e culturas. O

produto estético pode utilizar-se de diferentes meios de expressão, tais como a ficção, a

pintura, a música, a escultura, o teatro, a dança, a fotografia, a arquitetura e o cinema. Além

disso, a arte pode ser fruto da inspiração de um indivíduo ou refletir as aspirações de um

grupo com o qual ele se identifica.

Arte, do latim ars, significa técnica e/ou habilidade. Técnica em produzir, habilidade

para produzir. No entanto, os conceitos sobre arte variam de cultura para cultura. Muitos

objetos, por exemplo, produzidos com finalidade prática por diferentes tribos indígenas

podem ser considerados objetos artísticos em outros contextos culturais.

A escolha do romance Breve espaço entre cor e sombra como foco desta dissertação

deve-se, justamente, ao interesse por esta temática, arte, bem como à admiração por Cristovão

Tezza, autor da referida obra literária. Diante de tantos bons romances, difícil foi escolher um

que fosse significativo; mas a leitura dessa obra, a identificação com sua temática, o debate

acerca da arte e, mais precisamente, a questão do que é autêntico em arte, levou-nos à pronta

decisão.

10

Os estudos de Mario Praz, Paulo Menezes, Alfredo Bosi, Jorge Coli e Aguinaldo

Gonçalves serão utilizados, neste trabalho, como fundamentação teórica, para uma melhor

compreensão dos diferentes conceitos sobre arte.

A partir desse aparato teórico, a dissertação tem, pois, por objetivo, analisar a

mencionada obra de Cristovão Tezza por meio de recortes do romance que explicitem tanto

reflexões sobre a arte, como nomes de pintores e suas marcas características, examinando,

ainda, os dilemas implícitos e/ou explícitos no processo criativo.

Diante dos objetivos propostos, no Capítulo 1, abre-se, efetivamente, a discussão sobre

a arte. Fazendo uso de textos teóricos sobre esse assunto, bem como de ilustrações de algumas

telas, pretendemos fazer um levantamento sobre como a arte se desenvolveu ao longo dos

séculos, fazendo, ainda, uma reflexão sobre conceitos e temáticas abordadas em diferentes

períodos.

Em seguida, a partir da seleção de determinados trechos do romance, faremos um

estudo das marcas peculiares e inerentes às obras de arte e/ou dos artistas. Inclusive, iremos

discutir, mesmo que brevemente, a relação entre o artista e o mercado de arte, bem como a

diferença entre reprodução e falsificação de uma obra de arte, reprodução técnica e

reprodução manual, discussão esta embasada na teoria de Walter Benjamin. Uma vez que a

trama da obra gira em torno da falsificação de uma suposta cabeça esculpida por Amedeo

Modigliani, focaremos nossa atenção na produção artística desse pintor e escultor italiano,

enfatizando as características que levam à identificação de suas obras.

Também no primeiro capítulo, outros artistas plásticos serão mencionados e estudados

à luz das teorias já citadas, já que o campo das artes permeia o texto de Cristovão Tezza.

Além disso, abordaremos os dilemas do processo criativo a partir de discursos reflexivos de

Richard Constantin sobre a arte e dos questionamentos e conflitos pessoais de Tato Simmone.

Veremos, assim, como cada uma dessas personagens define o que é arte.

11

No Capítulo 2, abordaremos, sucintamente, um resumo biográfico com algumas

informações sobre o autor em estudo, Cristovão Tezza, e retomaremos alguns elementos que

se tornaram marcas particulares desse romancista curitibano. Grande parte dos dados obtidos

foi extraída do site oficial do autor, onde há uma coletânea de artigos, entrevistas e textos

críticos sobre a obra completa de Tezza, uma vez que a biografia e a fortuna crítica acerca do

escritor ainda são escassas.

Em seguida, apresentaremos uma síntese do livro Breve espaço entre cor e sombra,

intercalando-a com alguns fragmentos do romance, e esboçaremos o perfil das personagens,

mais relevantes. Também enfocaremos o espaço e o tempo em que se desenvolvem as ações

da trama narrativa, além do que, discutiremos sobre a questão da hibridização no romance, a

qual, segundo Bakhtin (1988, p. 159-161), pode ocorrer, no romance, de diferentes formas:

por meio da estilização, da paródia ou pela introdução de gêneros intercalados – diários,

relatos de viagem, cartas, biografias.

A introdução de gêneros no romance de Tezza que será analisado, mais

especificamente, a inserção da ―epístola‖ e de narrativas sobre telas, será o foco da análise

deste segundo capítulo. Quanto à inserção do discurso epistolar ao longo da trama narrativa, é

importante destacar que cada fragmento da carta da crítica italiana delineia, paulatinamente,

elementos físicos, atitudes e aspectos da sensibilidade do protagonista Tato Simmone.

Já as narrativas sobre telas não se caracterizam como comentários, sendo, na verdade,

uma exposição de episódios imaginários em que as telas foram inspiradas: Crianças,

Immobilis Sapientia, Estudo sobre Mondrian e Réquiem.

Quanto às narrativas oníricas, ou ―quadros narrativos‖, é importante destacar que não

temos a reprodução das telas no corpo do romance, e sim uma narrativa de cunho imagético.

Utilizando-nos dos textos de Aguinaldo Gonçalves e Mario Praz, procuraremos apreender

como se estabelece essa relação entre a linguagem verbal e a linguagem não verbal.

12

O nosso objetivo não é tratar das questões relativas às distinções entre os gêneros

fixadas ao longo da história, mas, sim, analisar como Tezza renova o gênero romanesco

tradicional ao desarticular a lógica da narrativa tradicional pela introdução de gêneros

intercalados, verificando, por conseguinte, em que medida se dá o diálogo com o mundo das

artes plásticas.

Breve espaço entre cor e sombra é uma reflexão sobre a arte da composição, sobre as

relações humanas e a própria vida. É uma viagem pelo mundo das cores, da criatividade. É

enveredar pelo mundo dos pintores, de Pollock a Volpi, de Bruegel a Chirico, de Bacon a

Giacometti. É repensar a arte no universo literário.

13

CAPÍTULO 1 – OS CAMINHOS PERCORRIDOS PELA ARTE

“A pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala”

(Simônides de Céos)

A arte surgiu há cerca de 25 mil anos, quando o homem de Neanderthal evoluiu para o

homem de Cro-Magnon. Essa evolução possibilitou ao homem o aumento de sua inteligência,

fazendo aflorar neles a imaginação e a habilidade de criar imagens esculpidas e pintadas:

―Entre 25.000 a.C. e 1.400 d.C., a história da arte não é uma história de evolução do primitivo

para o sofisticado, nem do simples para o complexo – mas uma história das formas variadas

que a imaginação assumiu na pintura, na escultura e na arquitetura‖ (STRICKLAND, 2003, p.

02).

A arte rupestre é a primeira forma de expressão artística da história da humanidade.

Fazendo uso, principalmente, da terra vermelha e do carvão, o ancestral humano retratava

símbolos de animais, bisões, veados, cavalos, bois, mamutes e pessoas, com o intuito de

controlar a força da natureza. Os símbolos desenhados eram imbuídos de significações

sobrenaturais e poderes mágicos:

As imagens para os antigos tinham um papel fundamental na luta contra o tempo. Os

animais gravados nas cavernas davam a quem os desenhava a capacidade mágica de sua

posse e controle. Ligadas ao ritual, as imagens presentificavam um ser em uma relação

direta com os homens. O desenvolvimento temporal das sociedades vai marcar a separação

gradativa das artes plásticas de sua função mágica. Na Idade Média, sua utilização pela

Igreja fazia com que o temor pelos castigos dos pecados e os ensinamentos de Deus fossem

transmitidos mais pelas imagens do que aprendidos pelas falas. Sua emancipação dos

rituais vai acelerando os momentos de sua exposição. A imagem sagrada que antes era para

ser vista apenas pelo sacerdote e pelos espíritos, vai perdendo espaço para a imagem que

tem como objetivo primordial ser vista por todos (MENEZES, 1997, p. 39).

A arte perde a conotação mística que tinha anteriormente, porque a capacidade

intelectual do homem se desenvolve, possibilitando-lhe, assim, um grande aumento de

criatividade, não apenas no âmbito das artes. A partir do momento em que se processam

14

mudanças no ser humano, nasce a civilização ocidental e é, primeiramente, por meio dos

gregos e romanos que a arte vem a tornar-se uma forma de humanismo.

Já no período denominado Idade Média, que se estende do século V ao XV, a Igreja

Católica assume o poder de controlar toda e qualquer produção cultural e científica. Assim,

como seu objetivo era propagar o cristianismo, grande parte das obras artísticas apresentava

um cunho religioso. Um exemplo disso é que, como muitos homens não sabiam ler, a

utilização das imagens propiciava que os ensinamentos da Bíblia fossem repassados mais

rapidamente.

Segundo Strickland (2003, p. 24), a arte tornou-se serva da Igreja: os nus foram

proibidos, as imagens de corpos vestidos não retratavam a real anatomia corpórea e a pintura

servia apenas para conduzir o homem à

salvação e à vida eterna. Além disso, a

pintura servia para retratar determinadas

passagens do Evangelho. A tela de Martini,

por exemplo, representa o momento em

que, de acordo com o evangelho de Lucas,

o Arcanjo Gabriel anuncia à Virgem Maria

que ela fora a escolhida para ser a mãe de

Jesus Cristo. A Anunciação, assim como

tantas outras telas, foi feita sob

encomenda, para ornamentar a Catedral de

Siena, o que demonstra que a Igreja Católica era suficientemente rica para pagar os trabalhos

dos artistas.

O Renascimento, por sua vez, foi o período que emergiu após a Idade Média, tendo

início na Itália e se estendendo pelo resto da Europa. Essa transição ocorreu porque os

Ilustração 1:

“A anunciação” – Martini, Simone (1333)

Têmpera sobre madeira

184x210cm

Galeria Uffizi (Florença, Itália)

15

renascentistas viram, nas tradições greco-romanas, um modelo de perfeição que lhes

proporcionaram compreender e dominar a anatomia humana para, consequentemente,

reproduzir, com realismo, as formas da natureza. Essa informação, associada à descoberta de

novos continentes e ao poder de contestação da Reforma Protestante frente à Igreja Católica,

(STRICKLAND, 2003, p. 32) demonstra que a ideia de Deus como Ser Supremo foi

substituída pela ideia de que o ser humano é esse ser supremo.

A separação entre Igreja, Estado e sociedade civil deu aos homens, pela primeira vez, a

capacidade de ver o outro como um igual e, portanto, a todos como indivíduos e cidadãos.

As sociedades passaram a se questionar sobre o seu passado e futuro, a tematizar sua

temporalidade e historicidade, buscando compreender as razões de sua história e as

possibilidades de sua alteridade. Ideias, perspectivas e propostas seculares que permeavam

a constituição e a fruição de obras artísticas começaram a ser questionadas, ainda que

vagarosamente (MENEZES, 1997, p. 21).

Uma contribuição importante para a pintura na época da Renascença diz respeito à

descoberta da perspectiva, cuja ilusão de profundidade em uma superfície plana possibilitava

retratar a realidade de modo mais natural.

É, no entanto, apenas por meio da invenção da fotografia, que transformações

ocorreram na pintura, principalmente no que diz respeito à representação. De acordo com

Menezes (ibidem, p. 35), no início, surgiram algumas reações contra a fotografia, pois as

imagens causavam estranheza e desorganização nos esquemas pelos quais as pessoas

decifravam as representações. No entanto, são irrefutáveis seus benefícios à pintura:

Sua capacidade de criar o duplo quase perfeito é sem dúvida a contribuição mais importante

para as artes plásticas em termos de percepção visual. Isso acabou por liberar a pintura

definitivamente de quaisquer pressupostos realistas e, com ele, da máxima de Millet: Le

beau c’est le vrai. Libertou a pintura do fantasma platônico de ser eternamente imitação das

aparências: ―A câmara transformou o naturalismo direto em lugar-comum‖ (idem, ibidem,

p. 45).

A influência da fotografia e a captação de movimentos rápidos fizeram, portanto,

surgir o período pós-renascentista, conhecido como Impressionismo. Desse modo, se, na

Idade Média e no Renascimento, as imagens expressavam, respectivamente, a visão de Deus e

16

a visão da natureza, no Impressionismo, elas representavam o espírito do homem, ou melhor,

suas sensações e seus símbolos (MENEZES, 1997, p. 46). O nome desse movimento,

deflagrado no século XIX, deriva de uma tela de Claude Monet, Impressão, nascer do sol, de

onde podemos destacar as seguintes características da pintura impressionista: o gosto pela

natureza morta, as variações das cores como decorrência do efeito da luz e as pinceladas

rápidas e curtas.

Em 1874, durante uma exposição

realizada no Salão dos Recusados, Louis

Leroy, crítico de arte, inspirado nessa tela

de Monet, chamou pejorativamente de

impressionistas todos os demais pintores

que seguiam a mesma linha de pintura de

Monet – alcunha que esses mesmos

pintores acabaram adotando para si.1

Segundo Menezes (ibidem, p. 48),

o Impressionismo surgiu como movimento em 1874, data da primeira exposição do grupo,

mas as manifestações de rejeição dos críticos e do público já haviam começado em 1863. A

Academia Francesa era quem decidia o que deveria ser considerado bom ou não em pintura.

Muitas das obras recusadas tiveram a chance de ser julgadas pelo público durante uma

exposição realizada no famoso Salão dos Recusados, que ficava ao lado do salão oficial, e o

público preferia concordar com a opinião renomada da crítica que ia contra aqueles pintores.

Estavam no Salão dos Recusados: Manet, Pissarro, Jongkind, Whistler, Renoir, Monet,

Degas, Cézanne, entre outros.

1 Sobre esse assunto, ver ―O lago das ninfeias‖ (Claude Monet). Bravo! 100 obras essenciais da pintura

mundial. São Paulo, n. 7, p. 26-27, out. 2008.

Ilustração 2:

“Impressão, nascer do sol” – Monet, Claude (1872)

Óleo sobre tela

48x63cm

Museu Marmottan (Paris, França)

17

O impressionismo, conforme já mencionamos, surge de fato em 1874, quando um

grupo de pintores se reúne para pintar ao ar livre. Devido às recusas do salão oficial, esses

artistas decidem fazer uma exposição conjunta que será, definitivamente, o marco do

nascimento do impressionismo. Foram, ao todo, oito exposições que, nem sempre, contaram

com a presença de todos os membros do grupo, pois, algumas vezes, eles conseguiram que

seus trabalhos fossem aceitos para participar do salão oficial.

Cada vez mais, o público visitava a exposição dos recusados, transformando-a em um

dos mais concorridos eventos parisienses. O Salão dos Recusados tornou-se, posteriormente,

conhecido como Salão dos Independentes. No fim da década de 80, o movimento

impressionista foi bem aceito pelo público e pela crítica em geral e, na década de 90, os

artistas conseguiram atingir o sucesso comercial. Aos poucos, porém, ocorreu a dispersão do

grupo.

O advento da fotografia e a proposta do impressionismo revolucionaram a pintura,

dando início às novas tendências de arte do século XX:

O século XX constitui um grande desafio para a compreensão daquilo que se designa arte.

Após séculos e séculos de relativa estabilidade, explode, de repente, uma séria de

movimentos artísticos, com as mais variadas propostas, fato que costuma desorientar o

observador incauto. Começando por suaves modificações no decorrer do século XIX,

assistiremos, na virada do novo século, a transformações bruscas e radicais. Essas

mudanças vão colocar em questão, de maneira definitiva, a própria natureza da arte

(MENEZES, 1997, p. 15).

As palavras de Menezes são reforçadas pelas de Praz (1982, p. 187), que versa sobre

as mudanças ocasionadas pela chegada da fotografia:

Enquanto na primeira parte do século XIX os pintores estavam encharcados de literatura, e

os escritores tentavam emular os pintores, o impacto do Impressionismo fez com que a

Pintura não mais fosse buscar inspiração à Literatura, e sim à fotografia. A Pintura levou

avante a sugestão e entregou-se a uma série de experimentos que foram adotados pelas

outras Artes. Podemos talvez dizer que quando a Arquitetura era um guia, comportava-se

como uma virgem sábia, ao passo que a Pintura, nos últimos cem anos, tem-se mostrado

uma virgem louca, a julgar pelo atual estado das Artes.

18

A arte no século XX concedeu o livre arbítrio aos pintores quanto à escolha da

temática e quanto à liberdade de expressão; além disso, libertou a pintura de qualquer regra e

formas já consolidadas pela tradição.

Soma-se a esse momento de nova visão da arte o aparecimento das Vanguardas

Europeias. São elas: o Futurismo, o Dadaísmo, o Cubismo, o Surrealismo e o Expressionismo.

Como bem assinala Gilberto Mendonça Teles (1972, p. 10-11):

De um modo geral, todos esses movimentos estavam sob o signo da desorganização do

universo artístico de sua época. A diferença é que uns, como o futurismo e o dadaísmo,

queriam a destruição do passado e a negação total dos valores estéticos presentes; e outros,

como o expressionismo e o cubismo viam na destruição a possibilidade de construção de

uma nova ordem superior. No fundo eram, portanto, tendências organizadoras de uma nova

estrutura estética e social.

Por outro lado, como afirma Menezes (1997, p. 264), é necessário que acompanhemos

mais de perto o processo de transmutação do objeto de arte. Se, no século XIX, a pintura era a

janela para o mundo, após o fim do espaço cúbico, a pintura é apenas uma pintura. Com as

colagens cubistas, o que antes era objeto passa a ser processo. A nova arte preocupa-se com o

processo, e não com o objeto final, processo este que implica na passagem da arte ao

figurativo e ao abstrato.

Com o passar dos anos, o campo das artes foi se modernizando, pois acompanhava as

mudanças históricas, tais como o avanço da tecnologia e o processo de industrialização. É por

intermédio das obras de Marcel Duchamp, pintor e escultor francês, que a modernidade

finalmente se instaura nas artes plásticas. Ainda de acordo com as afirmações de Menezes

(ibidem, p. 265):

Ao enviar sua Fonte (urinol) para uma exposição, Duchamp acabou provocando a ruptura

definitiva que marca, a nosso ver, a entrada de uma nova época, a nossa modernidade

visual. Esse ato, aparentemente desconexo, é pleno de significados. [...] Após essa ―obra‖, o

que está em jogo não é mais nem a obra, nem o processo artístico. É o próprio ato. E, se a

arte é um ato, nada mais pode definir o que é arte.

19

Seguindo o caminho do precursor Duchamp, emergiu o pop art – arte pop –

movimento de arte contemporânea centralizado nos Estados Unidos, sobretudo em Nova

York, em forma de crítica à sociedade capitalista-consumista. Roy Fox Lichtenstein, Andy

Warhol, Claes Oldenburg e James Rosenquist foram os nomes que surgiram como destaque

desse período.

Como assinalamos anteriormente, em Breve espaço entre cor e sombra, os

comentários da personagem Richard Constantin sobre a arte em geral e sobre os artistas

perpassam todo o romance. Ao analisar um quadro de Tato Simmone, ele tece,

concomitantemente, as seguintes considerações sobre arte contemporânea americana:

Os americanos são bons nisso, é verdade, mas na segunda olhada o quadro já parece uma

propaganda antiga da Ford, apropriado para uma exposição de cartazes. Os americanos

parecem dizer: Olhe, mãe, como eu sei pintar bem! Eu também sei fazer! Lichtenstein se

salva, é claro, mas ele não se entrega, só comenta; aliás, esse pessoal, Oldenburg, Warhol,

toda a pintura pop de uma piada só é o realismo socialista dos Estados Unidos, uma chatice

cheia de mensagens edificantes mal-disfarçadas (TEZZA, 1998, p. 28).

Do ponto de vista histórico, podemos dizer que o caminho percorrido pela arte é

conhecido, mas, diante das muitas mudanças e transformações, torna-se extremamente difícil,

senão impossível, conseguir conceituá-la:

Se perguntarmos hoje a um homem de cultura mediana o que ele entende por arte, é

provável que na sua resposta apareçam imagens de grandes clássicos da Renascença, um

Leonardo da Vinci, um Rafael, um Michelangelo: arte lembra-lhe objetos consagrados pelo

tempo, e que se destinam a provocar sentimentos vários e, entre estes, um, difícil de

precisar: o sentimento do belo (BOSI, 2008, p. 07).

Assim sendo, é mais simples conceituar arte por meio de exemplos, ou mais

especificamente, citando nomes de obras e/ou autores, do que chegar a uma definição comum.

Definir o que é arte é um processo árduo, porque a ideia de arte não é só um fenômeno social,

mas, também, cultural e histórico:

Ora, é importante ter em mente que a ideia de arte não é própria a todas as culturas e que a

nossa possui uma maneira muito específica de concebê-la. Quando nos referimos à arte

africana, quando dizemos arte Ekoi, Batshioko ou Wobé, remetemos a esculturas, máscaras

20

realizadas por tribos africanas na Nigéria, Angola ou da Costa do Marfim: isto é,

selecionamos algumas manifestações materiais dessas tribos e damos a elas uma

denominação desconhecida dos homens que a produziram. Esses objetos culturais não são

para os Ekoi, Batshioko, Wobé, objetos de arte. Para eles, não teria sentido conservá-los em

museu, rastrear constantes estilísticas ou compor análises formais, como nós fazemos,

porque são instrumentos de culto, de rituais, de magia, de encantação. Para elas não são

arte. Para nós, sim (COLI, 2006, p. 66).

Dessa forma, pode-se perceber que o conceito de arte é bastante amplo, diferindo de

uma cultura para outra: o que para nós é arte, para os outros pode ser um mero objeto de

trabalho de uso diário. É relevante observar também a questão histórica: o que hoje é

considerado uma obra de arte, poderia não o ter sido no passado e vice-versa, devido a

questões de conflitos estéticos, incongruências de estilos e atribuição ou não de valores às

obras.

Retomando o que foi apontado sobre o movimento impressionista, Cézanne, por

exemplo, foi o único pintor daquele grupo que teve suas obras recusadas em todas as vezes

que tentou participar do Salão Anual de Paris. Coli (ibidem, p. 20) acrescenta que o valor de

Cézanne foi tardiamente reconhecido, não por falta de talento, mas por um conflito existente

entre os critérios estabelecidos e a obra que ele produzia.

O Salão de Paris, durante algumas décadas, era quem declarava o que era ou não

considerado arte, sendo os impressionistas os responsáveis por romper com os paradigmas até

então reconhecidos e impostos pelos membros dessa instituição. Atualmente, quem define o

que é arte é a crítica, assim como os museus e os historiadores:

A crítica, portanto, tem o poder não só de atribuir o estatuto de arte a um objeto, mas de o

classificar numa ordem de excelências, segundo critérios próprios. Existe mesmo uma

noção em nossa cultura que designa a posição máxima de uma obra de arte nessa ordem: o

conceito de obra-prima (idem, ibidem, p. 15).

É a crítica, pois, que institui se um objeto é ou não arte, atribuindo-lhe, pois, um valor.

Nem sempre existe uma unanimidade dentre os membros da crítica, mas o consenso geral é

suficiente para reconhecer e tachar uma obra como arte.

21

1.1 – O PINTOR E O MERCADO DE ARTE

Falar de arte implica falar do artista. E mais do que isso, falar da relação do artista

com o mundo comercial. Indubitavelmente, durante o processo de criação, o pintor precisa

pensar em alguns aspectos: focar no seu estilo, dando o seu toque pessoal à obra, ter

originalidade, não obstante projetar o lucro sob a venda da peça.

O crescimento do mercado artístico acompanhou o processo histórico das artes

plásticas. O comércio de artes, a princípio, era financiado pela Igreja, passando,

posteriormente, a nobreza e a burguesia a encomendar trabalhos de artistas para decorar o

interior de suas residências. Nos tempos atuais, o artista é um profissional liberal que

depende, fundamentalmente para sobreviver, de sua produção individual e do mercado.

Nascer pintor ou ser um pintor é mais uma questão intrínseca do que uma escolha. No

romance, a titulação, assim como a aparente inutilidade da arte, são vistas, aos olhos do

marchand Constantin, da seguinte maneira:

Ninguém pede para você pintar, como ninguém pede que você escreva; o mundo quer é

advogados, médicos, engenheiros, porteiros, empregadas domésticas, encanadores. Na

esmagadora maioria das vezes um eletricista é mais útil que Shakespeare. Portanto, essa é a

primeira regra, principalmente nestas décadas liberais: não vá reclamar ao governo a sua

fatia se alguma coisa não deu certo; prefira o diabo, que não tem nada a ver com a

eternidade, esse assunto chatíssimo, mas entende tudo de vaidade, que é a face mais visível

da arte (TEZZA, 1998, p. 25).

Uma vez que a arte não é um produto de consumo qualquer, fez-se necessário, no

decorrer dos anos, entrar em cena uma pessoa que intermediasse o produto até o consumidor,

e assim surgiu o mediador, também conhecido como intermediário. São esses os responsáveis

pelo comércio das artes.

Muitas vezes conhecido na figura do marchand – palavra francesa que designa o

agenciador de obras de arte –, o comerciante de arte tem a função de divulgar a obra do artista

e de levá-la da mão do artista até a mão certa (os possíveis compradores). O aval do

22

marchand é, ou deveria ser, o atestado garantido de qualidade, autenticidade e segurança na

procedência. A valorização e o reconhecimento do pintor, escultor ou de qualquer que seja

sua ocupação artística, surgem nesse encontro de mãos propiciado pelo comerciante de arte.

Na avassaladora maioria dos casos, a destreza do mediador torna-o capacitado a

descobrir verdadeiros achados, ―perdidos‖ pelo tempo ou ―esquecidos‖ sob a poeira de um

quartinho qualquer. Ele possui o domínio de reconhecer e assim triplicar, senão quadriplicar

ou mais, o valor de uma dada obra e revelá-la ao público. Na obra de Cristovão Tezza, o

próprio marchand Constantin se encarrega do julgamento de sua profissão:

— Outras telas estão só de passagem. Afinal, eu sou essa figura odiada no mundo inteiro, o

intermediário. Mas tenho muitas preciosidades, é verdade. Esse pequeno quadro, por

exemplo – [...] – este é de Rouault, Georges Rouault. Comprei em Malta (na verdade,

troquei, mas isso é uma outra história) do próprio Kennedy Toomey, o romancista [...], que

por sua vez havia comprado a preço de banana do famoso Keynes, o economista. Uma

longa história, e engraçada! (TEZZA, 1998, p. 241).

O valor de uma obra de arte depende, exclusivamente, da oscilação do mercado, sendo

relevante levar em consideração o peso do que fora antes consagrado. Quem há de negar, nos

dias atuais, o valor de um Picasso, de um Giacometti, de um Braque? Sobre isso, ainda o

mesmo Constantin coloca:

Quem, por exemplo – e os olhos dele corriam atrás de um exemplo, até acharem A fuga,

mais sombrio ainda na sombra do ateliê – quem compraria esse quadro para pendurar na

sala? Na história tem sido assim: quem compraria um Munch antes que ele fosse um

Munch? É como trazer a mais completa desesperança para dentro de casa. O inferno fica

bem na Igreja, protegido diretamente pela mão de Deus, aquele pé-direito de quarenta

metros, aquelas costas largas, aquelas ressurreições todas, todos os dias (idem, ibidem, p.

168).

Mas, retirando o peso atribuído ao nome do pintor e focando na questão econômica,

questiona-se:

[...] qual o valor correto de uma obra de arte? Adam Smith, o pai do liberalismo econômico,

dizia que ganhar dinheiro com a arte é submeter o talento à ―prostituição pública‖, e por

isso o artista merece ser regiamente pago. Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista,

achava que toda obra de arte é superfaturada porque está a serviço do desejo dos ricos fúteis

de serem invejados. Francis Pacheco, o pintor espanhol que ensinou Diego Velázquez a

pintar, escreveu um tratado dizendo que o custo de produção de uma obra de arte decorre

―do gênio e da perfeição da forma‖ (PETRY, 2010, p. 56).

23

Nem sempre o valor artístico corresponde ao valor projetado pelo mercado. Nem

sempre o valor atribuído em um determinado período condiz com o atribuído no período

seguinte, como, por exemplo, ocorreu no caso dos impressionistas.

Em Breve espaço entre cor e sombra, a ambição de um jovem pintor em se tornar

grande, que é coibido pelo estranhamento de ter escolhido sua profissão sob os olhos alheios,

que é julgado incessantemente por um mentor, Aníbal, e cujo talento fora inibido pelo

dinheiro provido de sua mãe, tumultua sua cabeça. No extrato abaixo, o protagonista sintetiza

essa surpresa da sociedade mediante a inusitada carreira exercida por ele:

A estranheza dele diante do meu avental colorido. Ele sempre faz a mesma pergunta – vai

pintar, e não vai trabalhar. Na cabeça dele, é inconcebível que alguém viva de pintar

quadros (ou, pior ainda, a pintar quadros). Ainda mais quadros como os meus, que não têm

pé nem cabeça, ou, quando os têm, estão no lugar errado, uma confusão descosturada de

imagens. Às vezes ele me visita de passagem no ateliê, como quem dá uma chegada rápida

no zoológico. Eu sempre me sinto mal, invadido, mas não há o que fazer. Às vezes são as

crianças mais pobres da vizinhança, que se amontoam na janela dos fundos, aos uivos e

gritos, para desaparecerem em seguida atrás do muro (TEZZA, 1998, p. 65).

Anos antes, Marc Chagall, pintor e gravurista judeu, sofrera com a mesma estranheza.

As pessoas não entediam nem o que era ser pintor, nem a finalidade de ser pintor. O próprio

Chagall questionava-se sobre sua difícil opção (apud WALTHER, 2006, p. 7):

Teria de encontrar uma profissão diferente, uma ocupação que não me obrigasse a

abandonar o céu e as estrelas e que me permitisse encontrar a finalidade da minha própria

vida. Sim, isso era, precisamente, o que eu procurava. Todavia, na minha terra natal, ainda

nunca ninguém, antes de mim, tinha pronunciado as palavras: <Arte, artista>. <O que é isso

de uma artista?>, perguntava eu.

Face ao exposto, a obra de arte e o mercado, quando harmonizados, representam

grande valia a ambas as partes, principalmente ao legado herdado pela humanidade. O

produto artístico é, sim, único porque:

[...] seja engenhoso ou nobre ou belo ou douto ou original ou sincero ou idealístico ou útil

ou educativo – pois pode incorporar qualquer uma dessas qualidades – [...] é o único objeto

material do universo dotado de harmonia interna. Todos os outros objetos foram afeiçoados

a partir de fora, e quando se lhes retira o molde, desmoronam. A obra de arte mantém-se

por si própria, como nada mais se mantém. Realiza algo que tem sido amiúde prometido

24

pela sociedade, mas sempre de maneira enganosa. A Atenas da antiguidade ficou em ruínas

– mas a Antígona subsiste. A Roma da Renascença deu em confusão – mas o teto da Capela

Sistina foi pintado. Jaime I acabou em palpos de aranha – mas houve Macbeth. Luís XIV

também – mas houve Fedra (PRAZ, 1982, p. 01).

1.2 – AS FALSIFICAÇÕES E AS MARCAS DAS OBRAS

Com o desenvolvimento do mercado no âmbito artístico, surgiu o problema da

veracidade das obras de arte. Como detectar se a autoria de uma determinada obra é, de fato,

de quem a assinou? A problemática em relação às questões da reprodutibilidade técnica,

reprodutibilidade manual e autenticidade são temas recorrentes desde muito antes da

contemporaneidade que acompanham o processo histórico desde a Idade Média.

A questão da falsificação de uma obra de arte é também um tema constante no

romance de Tezza. Vejamos, pois, um diálogo entre o protagonista Tato e Ariadne, filha do

colecionador Richard Constantin:

— Lindo, não? Mas isso é só uma cópia. O original está em Roma. [...]

— Muito bonito. Nenhuma diferença, parece, entre o original e a cópia.

— Nenhuma. E mais uma vez – de novo a palma branca no meu braço – a literatura se

antecipou. O livro pode ser reproduzido aos milhões, mas o texto é sempre infalsificável. Já

nas artes plásticas... Veja – e ela pôs a mão de novo no corpo de Giacometti – é lindo, mas

é uma cópia, o que muda tudo. O meu pai não é um colecionador muito criterioso nesse

aspecto. O meu pai parece meio burro, às vezes (TEZZA, 1998, p. 211).

Segundo Walter Benjamin (1994, p. 166-167), ―em sua essência, a obra de arte sempre

foi reprodutível‖. O que os homens faziam sempre foi imitado por outros homens ―para a

difusão das obras‖, e por terceiros interessados tão-somente no lucro. Em contraponto, a

reprodução técnica das obras de arte trata-se de um processo novo que vem se desenvolvendo

ao longo da história. Foi através da xilogravura que o ―desenho tornou-se pela primeira vez

tecnicamente reprodutível‖, antes mesmo que a imprensa reproduzisse tecnicamente a palavra

escrita. A litografia, procedimento cujo escrito ou desenho é reproduzido por meio de uma

matriz de pedra ou de metal, ―permitiu às artes gráficas colocar no mercado suas produções

25

não somente em massa, como já acontecia antes, mas, também, sob a forma de criações

novas‖. Foi assim que as artes gráficas começaram a poder ilustrar a vida cotidiana e a situar-

se no mesmo nível da imprensa. A litografia ainda estava no seu início, quando foi

ultrapassada pela fotografia. Dessa forma, os olhos tornaram-se mais importantes que as

mãos, acelerando o processo de reprodução das imagens.

Quanto à autenticidade da obra de arte, Walter Benjamin (1994, p. 168) ressalta que,

mesmo diante da reprodução mais perfeita, um elemento encontra-se ausente: ―o aqui e agora

da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra‖. É justamente nessa

existência única que se desdobra a história da obra, que compreende as transformações ―que

ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física‖. A obra original só pode ser

investigada por análises químicas e/ou físicas; já a análise da reprodução deve partir do lugar

onde se encontra o original. É ―o aqui e agora do original‖ que define sua autenticidade e que

mantêm o objeto ―sempre igual e idêntico a si mesmo‖. A reprodução manual é geralmente

considerada uma falsificação, já a reprodução técnica não. A reprodução técnica, além de ter

maior autonomia que a reprodução manual, pode aproximar o indivíduo da obra.

A autenticidade da obra é, de acordo com Benjamin (ibidem, p. 168), a quintessência,

o mais puro e essencial, a origem, desde sua duração material até seu testemunho histórico;

com o desaparecimento deste, desaparece também o peso tradicional, a autoridade da

reprodução que, por ser técnica, substitui a existência única da obra por uma existência serial.

É importante ter em mente que o homem pós-moderno vive em um mundo globalizado

que está em permanente estado de mudança, tendo a mídia como a instituição que rege a

ordem e dita as regras. Uma marca característica desse mundo globalizado é a maneira ampla

e generalizada de a cultura ser difundida, o que, consequentemente, torna comum a

reprodução das obras de arte. O afã de trazer para mais perto as obras de arte, de torná-la

acessível à massa, ao público comum, encontrou, na reprodução técnica, essa acessibilidade:

26

Fazer as coisas ―ficarem mais próximas‖ é uma preocupação tão apaixonada das massas

modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua

reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão

perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução (BENJAMIN,

1994, p. 170).

Todo artista, seja ele pintor, escultor, escritor, compositor, está sujeito a falsificações

de impostores que se fazem passar por eles, copiando-lhes o estilo e replicando suas marcas.

Nos dias de hoje, as falsificações parecem ser tão sofisticadas, que fica cada vez mais fácil

enganar os olhos dos especialistas e, por conseguinte, cada vez mais difícil comprovar a

autenticidade da autoria. De acordo com Coli (2006, p. 84):

As falsificações possuem um grande fascínio. A habilidade em enganar, o poder do

ilusionismo, a perícia na imitação, fazem do falsário um personagem maroto, capaz de

prodígios desabituais, capaz de rir nas barbas dos especialistas e que merece, de certo

modo, nosso respeito cúmplice.

Ironicamente, a habilidade do falsificador torna-o também um artista, apesar de este

estar cometendo um ato ilícito. A cópia bem feita é capaz de enganar a perícia e de atestar a

autoria, atribuindo autenticidade ao simulacro. Aliás, convém ressaltar que reprodução difere

de falsificação. Considere-se que o termo ―falsificação‖ aqui utilizado abrange a questão do

ilícito, do ilegal, da cópia perfeita que pode confundir os peritos em relação à autenticidade da

obra. É o que atesta o caso da lendária história dos seis quadros de Vermeer, pintados pelo

holandês Van Meergeren:

No começo, não se quis acreditar. Peritos, críticos, especialistas, conservadores, todos eram

unânimes em afirmar a autenticidade dos quadros, dizendo que Van Meergeren, premido

pela situação, tentava uma saída menos comprometedora. Mas Van Meergeren, na prisão,

pede telas e tintas. E na prisão produz um Vermeer espantosamente ―autêntico‖ (idem,

ibidem, p. 85).

Van Meergeren pintou algumas telas, utilizando as características próprias do pintor

Jan Vermeer, para fazer se passar por este, prática esta que acabou por enganar os críticos,

que atestaram a autenticidade das obras. A falsificação só foi comprovada após o próprio

falsificador ter provado diante do júri o que fizera.

27

Em Breve espaço entre cor e sombra, novamente a questão da falsificação vem à tona.

Ariadne, em seu diálogo com Tato, faz uma alusão ao episódio do falso Vermeer:

— É por isso que a literatura é mais bonita, mais intensa, mais exigente. Na literatura, o

lixo é imediatamente reconhecível. Não há como confundir Sidney Sheldon com

Shakespeare. Já uma sopa Campbell‘s, com um catálogo competente e olhado de um certo

jeito, parece Botticelli. São mil exemplos: um falso Vermeer correu mundo até que o

próprio falsário se denunciou; uma estátua forjada de Modigliani, aliás horrorosa, enganou

os melhores críticos da Itália. Agora, experimente falsificar Cervantes! (TEZZA, 1998, p.

208).

No caso das obras de arte, tanto as falsificações, quanto os erros de atribuição de

autorias são casos de estudo no presente momento do mundo artístico. Preocupados com a

originalidade das obras, museus, críticos de arte e especialistas, com o auxílio de cientistas,

procuram saídas tecnológicas para desmascarar eventuais alterações nas obras de arte:

falsificação da obra, falsificação de autoria ou transformações decorrentes da ação do tempo.

São ações como essas – submeter as obras do acervo à análise dos especialistas – que

o museu de Londres (National Gallery) está fazendo, para checar sua autenticidade:

O departamento científico do museu, fundado em 1934 e atualmente na vanguarda na

análise dos materiais e técnicas da pintura, desenvolveu uma câmara de raios

infravermelhos com um sensor móvel, batizada de Osiris, que permite um estudo em

profundidade dos quadros na busca de detalhes que corroborem ou desmintam determinada

autoria ou datação. Os raios X, o infravermelhos, a microscopia eletrônica, a espectrometria

de massas e outras técnicas ―não invasoras‖ proporcionam aos especialistas informações

valiosíssimas sobre os pigmentos, lacas e demais materiais utilizados, assim como sobre as

práticas dos pintores e a transformação que as obras de arte sofrem inevitavelmente com a

passagem do tempo (RÁBAGO, 2010).2

Não fosse isso o bastante, há outro fator decisivo nos estudos desmistificadores das

falsificações que é a questão concernente ao tempo. Praz (1982, p. 33) afirma que não são

apenas os processos modernos com seus raios-X, ensaios químicos e lâmpadas de quartzo que

são capazes de detectar a idade dos materiais das obras de arte, apesar de serem estas grandes

2 RÁBAGO, Joaquín. Museu de Londres dedica exposição a falsificações e erros de atribuição. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u721697.shtml>. Acesso em 19 abr. 2010.

28

invenções. Há um fator muito mais simples e infalível que é a interpretação do autor, ou seja,

o ponto de vista do autor naquele momento específico. Como destaca Praz (1982, p. 32):

Toda estimativa estética representa o encontro de duas sensibilidades, a sensibilidade do

autor da obra e a do intérprete. Aquilo a que chamamos interpretação é, por outras palavras,

o resultado da filtragem da expressão de outrem pela nossa própria personalidade. [...].

Pelo fato de a interpretação de uma obra de arte consistir de dois elementos, o original

propiciado pelo artista do passado e o outro que lhe é acrescentado pelo intérprete ulterior,

tem-se de esperar até que este último elemento pertença também ao passado a fim de poder

vê-lo aflorar, como aconteceria com um palimpsesto ou um manuscrito escrito com tinta

simpática.

E, a seguir, o crítico acrescenta (ibidem, p. 34): ―Ora, o imitador de uma obra de arte

cristaliza a interpretação e o gosto da época que está trabalhando. Com o passar dos anos, o

segundo dos dois elementos a que fiz referência é salientado e exposto‖.

Quanto ao falsificador, Mario Praz (ibidem, p. 35) salienta que a sua técnica pode

atingir a perfeição na arte de imitar um determinado artista, entretanto:

[...] mesmo que consiga produzir um quadro que não seja simples montagem de

pormenores copiados desta ou daquela velha tela, mas uma recriação dentro daquilo que ele

considera o espírito do artista remoto – pois bem, mesmo supondo tudo isso, haverá sempre

um elemento a traí-lo: sua própria idéia de beleza, isto é, o seu gosto, o qual trará

fatalmente a marca da época do falsificador.

Podemos afirmar que um olhar rápido detecta traços do pintor. Um olhar atento,

contudo, detecta marcas identitárias da obra. Já um olhar sobre a biografia do pintor pode

revelar outros traços característicos, permitindo ao especialista descobrir outras marcas

implícitas no conjunto da obra. Portanto, cabe ao especialista um trabalho meticuloso no

exame das técnicas e do estilo do artista para conferir veracidade a um determinado produto

estético.

As marcas identitárias são traços peculiares que permeiam a obra de um determinado

artista. As manchas de cor de Claude Monet, o senso dramático de Giotto, os ―Méxicos‖ de

Diego Rivera, a delicadeza de Renoir, o onirismo de Dalí, o dourado de Klimt, a variedade

representativa de Goya, as cores de Khalo, as figuras rotundas de Botero, os pontos e linhas

29

de Miró, os ícones de Warhol, o fundo obscuro de Caravaggio são exemplos de como as

marcas revelam a identidade do artista. Dessa maneira, ao deparar-se com a pintura e a

estatuária de Modigliani, é quase impossível ao especialista não reconhecer a autoria dessas

criações.

No romance de Tezza (1998, p. 176), o próprio protagonista afirma ser impossível não

reconhecer uma obra de Modigliani: ―Estou acompanhando, mãe. Pela sua descrição, é

impossível confundir essa cabeça com qualquer outra. Estou vendo na minha frente a cabeça

de Modigliani‖. Por seus traços estilísticos, Tato identifica a cabeça esculpida, que está à sua

frente, como sendo uma obra de Modigliani. Não sendo, pois, um perito, Tato atesta

erroneamente que a cópia é verdadeira.

A amiga italiana de Tato, que era uma crítica de arte, também atestou que a cabeça de

Modigliani era verdadeira. Inconformada diante de seu equívoco, mesmo sabendo que,

anteriormente, o renomado crítico de arte, Carlo Argan, também cometera erro similar, ela

desabafa:

Como eu pude cair em tão ridícula armadilha? Isso depois do vexame nacional de 82,

quando até Argan, o nosso grande Argan (e ele é mesmo grande, merecidamente),

reconheceu aqueles arremedos do Fosso Reale de Livorno como legítimos Modigliani.

Bem, a minha cabeça era infinitamente melhor (se bem que eu devia desconfiar daqueles

ombros falsos, puramente de apoio) (idem, ibidem, p. 165).

Por sua vez, Isaura, mãe de Tato e marchand em Nova York, a quem, posteriormente,

a escultura acabou sendo destinada, também confirma que a tal cabeça era de autoria do

artista Modigliani. De forma detalhada, ressaltando as marcas do artista, Isaura descreve a

cabeça de pedra para que o filho a recupere:

Eu quero que você descubra onde ele guarda uma estátua de Modigliani. Uma cabeça de

pedra. Uma linda cabeça de 1913, com linhas geométricas típicas da estatuária negra, mas

afiliada como um bronze de Brancusi. É uma peça pequena, de meio metro de altura. Tem o

mesmo pescoço da pintura de Modigliani, longo, mas absolutamente vertical, sem aquela

típica inclinação de Madonna dos quadros dele. [...] A face, a face é como uma lança, e a

ponta está no queixo. Uma forma limpa e econômica. Um nariz comprido se divide, bem no

30

alto, em dois olhos cegos e simétricos. A testa praticamente cai para trás, onde os cabelos se

avolumam, de maneira um pouco tosca, talvez inacabados. [...] E para não restar dúvida,

tem um outro detalhe, também inconfundível – continuou minha mãe. — Na parte de trás

há alguns sinais cabalísticos, uma lua minguante e uma estrela de David. Basta correr o

dedo que você sente as marcas (TEZZA, 1998, p. 175).

Apesar das duas mulheres terem atestado veracidade, o marchand Constantin sabia

que a cabeça de Modigliani era falsa e adquiriu-a mesmo assim, como nos comprovam as

palavras de sua filha Ariadne:

— E a cabeça é uma réplica, então? Até que é bonitinha.

— Não é uma réplica. Não existe outra igual. É simplesmente falsa. O engraçado é que o

meu pai sabia que era falsa, quando trouxe de Nova York. Vai entender o velho! Você se dá

bem com o teu pai? (idem, ibidem, p. 253).

Ainda que o leitor dessa narrativa não saiba quem foi Modigliani, poderia alegar que a

cabeça, devido às características destacadas nessa descrição, pertence a esse pintor, pois

muitas de suas cabeças apresentam essas marcas especificadas por Isaura. Aliás, essa

discussão entre as personagens acerca das marcas identitárias de pintores e escritores é

recorrente no romance de Tezza, mas é a voz do marchand Richard Constantin, a quem,

posteriormente, a peça de Modigliani acaba sendo destinada, que sempre se impõe em relação

às outras personagens-críticos. Podemos depreender do fragmento abaixo transcrito, qual é o

seu critério de avaliação crítica:

— Não se surpreenda; as obras de arte também obedecem às leis do DNA. Um pedaço

contém potencialmente todo o resto. – Ele parou, segurando meu ombro e olhando para o

alto, numa sequência programada de gestos que eu começava a entender como a senha de

alguma revelação descoberta naquele momento: — Eu acho que isso acontece com todas as

artes. Na literatura, por exemplo. Kafka tinha o costume de não acabar os livros; não

precisava. A parte contém previamente o todo. Já Dostoiévski, esse não tinha a menos

ideia, pela manhã, do que escreveria à tarde – e no entanto, também nele o DNA é visível

em cada linha (idem, ibidem, p. 19).

Isto é, o DNA, ou melhor, os traços e as marcas, depois de identificadas, tornam-se

perceptíveis em toda a obra do artista. O estilo leva à identificação do pintor. Praz (1982, p.

25) salienta que, assim como acontece com a arte, quando a escrita cursiva é ensinada, ela

sofre influências características do estilo da época em vigor, mas a personalidade de quem a

31

escreve, caso seja pertinente, não deixa de transparecer. Artistas menores revelam, com mais

clareza, os elementos comuns a uma época, entretanto qualquer artista, por mais original que

seja, deixa de refletir seus traços. Assim como, na caligrafia, fala-se de ductus, ou mão, ou

estilo de escrever, na caligrafia e em toda forma de criação artística, fala-se em uma

expressão, algo espremido ou tirado do indivíduo.

Portanto, não importa a época e/ou as diferentes expressões artísticas, o estilo, as

marcas dos artistas são intrínsecas e vêm à tona em suas obras, mesmo que

inconscientemente.

1.3 – AMEDEO MODIGLIANI

Amedeo Clemente Modigliani nasceu em

1884 na Itália e morreu no ano de 1920 em Paris,

cidade onde viveu. Pintor, escultor, quarto filho

de uma família judaica e integrado à vida

intelectual parisiense, Modigliani conseguiu criar

um traço próprio e marcante para suas obras.

Tanto seus retratos e nus, quanto sua

própria história de vida, tornaram-se fonte de

inspiração para que vários escritores consagrados

criassem seus romances, peças de teatro e filmes. E Cristovão Tezza foi um que fez uso dessa

imagem mitológica que permeia o nome e as obras de Modigliani para construir seu romance

Breve espaço entre cor e sombra.

Ilustração 3:

Foto do pintor Amedeo Modigliani

32

Tanto a pintura, como as esculturas de Modigliani possuem traços em comum. Uma

das marcas mais características diz respeito ao pescoço alongado das representações da figura

humana. As esculturas parecem ser rostos retirados de quadros, desenhados e redesenhados

em pedra. Aliás, as esculturas de Modigliani foram extremamente úteis para sua pintura, pois

foi por meio delas que o pintor italiano alcançou as formas, a linearidade e a abstração que

constituem sua linguagem pictórica. Modigliani, à parte as cabeças de pedra, também se

interessava por outro grupo de obras. Ele chegou a recorrer à Antiguidade, desenhando

cariátides3, para desenvolver seu estilo, que se configura por formas arredondadas e linhas

fluidas.

Já as esculturas possuem duas fortes

influências, uma da arte africana e cambojana,

principalmente no desenho dos olhos, e a outra das

esculturas de Brancusi. Segundo afirma Krystof

(2007, p. 28):

É, no entanto, surpreendente que logo desde o

início este principiante tenha sido capaz de conferir

uma unidade estilística às suas peças escultóricas.

Cada cabeça pode ser imediatamente identificada

como tendo sido cinzelada por Modigliani.

A semelhança das obras futuras de

Modigliani com as do escultor romeno Constantin

Brancusi ocorre no momento em que o protagonista,

Tato, põe as mãos na escultura e afirma:

3 Suporte arquitetônico, originário da Grécia antiga, que se apresentava, segundo Houaiss (2001), quase sempre,

a forma de uma estátua feminina, cuja função era sustentar um entablamento.

Ilustração 4:

“Cariátide” – Modigliani, Amedeo (1913)

Lápis e aquarela

33,5x27,3cm

33

Apalpo a testa curta que nasce de olhos orientais

levemente riscados na pedra, testa onde há

ranhuras de mechas que numa súbita queda para

trás formam um volume bruto e áspero de

cabelos, mas também acolhedor às palmas que

apalpam com a delicadeza dos cegos. E dali

minhas mãos descem pelo longo pescoço de uma

simplicidade completa, uma perfeita vertical; a

escultura, simétrica, não tem ainda aquela ligeira

inclinação fora de prumo dos pássaros de

Brancusi, que serão uma das marcas da pintura de

Modigliani. (TEZZA, 1998, p. 252).

Outros traços marcantes da obra

de Modigliani dizem respeito ao fato de

suas figuras longilíneas apresentarem

pescoços bastante longos e rostos com

olhos, bocas e narizes bem definidos,

mas sem detalhes minuciosos. Há também a presença de linhas pretas, bem demarcadas, com

um sombreado escuro percorrendo o entorno dos corpos. Essas são as marcas de Amedeo

Modigliani e que ainda podem ser ilustradas pelo discurso de Tato, quando ele se refere ao

perfil de uma das personagens (―a vampira‖): ―Ela espichou o pescoço – de Modigliani,

pensei, admirando aquele desenho com o olho que me restava [...]‖ (idem, ibidem, p. 127).

Quanto à temática das telas de Modigliani, Floriano Martins (2000) destaca que o

pintor ―tinha uma exacerbada preocupação com o humano, e buscava sua expressão

justamente onde melhor poderia encontrá-la: no olhar, nos rostos, nos retratos [...]‖, para, em

seguida, acrescentar: ―Não pintava nus, e sim pessoas despidas de suas máscaras sociais. O nu

propiciava uma revelação do corpo, tão ocultado quanto o sentimento. Modigliani captava

com exímia facilidade a expressão ulterior de cada modelo seu, tendo retratado alguns várias

vezes‖4.

4 MARTINS, Floriano. Amedeo Modigliani: dolorosos direitos da beleza. 2000. Disponível em:

<www.revista.agulha.nom.br/ag2modigliani.htm>. Acesso em: 26 abr. 2010.

Ilustração 5:

“Cabeça de Pedra” – Modigliani, Amedeo (1911-12)

Calcário 71,1x16,5x23,5cm

Philadelphia Museum of Art (Filadélfia, Estados Unidos)

34

Quanto à sua paleta, predominam, sobretudo, as cores marrom, amarelo, vermelho, laranja e

azul. Krystof (2007, p. 69), por sua vez, destaca outros aspectos da pintura de Modigliani:

A simplificação e a abstração são os principais

instrumentos criativos de Modigliani. À parte alguns

breves apontamentos sobre o espaço que rodeia o

modelo – o esboço de um sofá, de uma almofada ou

de um lençol de linho branco – não há nada que

desvie o olhar dos corpos jovens e róseos. A

economia de utilização da cor (normalmente, o

característico tom adamascado da carne do nu

contrasta apenas com um ou dois outros tons) ilustra

a intensa concentração nas exigências formais. As

formas estilizadas do corpo feminino dispõem, assim,

de todo o espaço de que necessitam para a sua plena

revelação. As figuras femininas expõem-se de tal

modo ao espectador, chegando por vezes a assumir

uma postura tal, que se tem a sensação de que se

projectam para fora da tela. Por vezes, os olhos muito

abertos parecem olhá-lo frontalmente, e outras, têm

os olhos fechados como se estivessem adormecidas.

Modigliani não é o único artista a ser retratado em Breve espaço entre cor e sombra;

outros cinquenta e oito nomes de pintores e/ou escultores, tais como Paul Cézanne, Gustave

Doré, Claude Monet, Rafael Sanzio, Sol Lewitt, Pierre-Auguste Renoir, Constantin Brancusi

são mencionados ao longo da narrativa.

Por meio do discurso das personagens, o leitor depara-se, muitas vezes, não só com os

nomes de pintores consagrados, mas, também, com aspectos relativos ao processo criativo,

estilos e temáticas.

Richard Constantin, em diferentes momentos da narrativa, aparece como um crítico

mordaz. Para ele, o artista ―não tem escrúpulos‖, e sim ―caráter‖, que é aquilo que transparece

naquilo que ele realiza ou cria. Os artistas não têm amigos: ―eles são um impulso brutalmente

narcisista que, para nascer, pisa no que está ao seu lado‖ (TEZZA, 1998, p. 22). Para

Constantin, ―A vaidade é a face mais visível da arte‖ e também mais visível a alguns artistas,

que, graças a seu talento ou ao destino, foram reconhecidos:

Ilustração 6:

“Nu reclinado” – Modigliani, Amedeo (1917)

Óleo sobre tela

60x92cm

Coleção de Gianni Mattili (Milão, Itália)

35

Picasso, com alguma pequena variação de azares do destino, restaria como um dos mais

ridículos e hilariantes ―modernos‖, mais um personagem do imenso anedotário cubista, ao

lado de Juan Gris e Torres Campalans. Van Gogh, esse errado clássico, seria unicamente

personagem da ciência médica do fim do século XIX, incluído e tipificado como um

exemplo cristalino de demências. Sem talento, a história dos grandes pintores seria uma

sucessão de puxa-sacos, calhordas, ladrões, estupradores, loucos varridos, vagabundos,

presunçosos, monstros de egoísmo e covardia, lambendo a sola, de quatro, do primeiro rei,

príncipe ou papa que aparecesse pela frente. Não muito diferente do resto das pessoas, é

verdade – mas é que eles, os artistas, em algum momento de suas vidas entraram na fila da

eternidade, às vezes forçando espaço com o ombro, a cotoveladas. O preço é alto, para

quem tem a dimensão da grandeza; para quem não tem, bem, daí é tudo pequeno mesmo e

nada faz diferença (TEZZA, 1998, p. 26).

Em outro momento, Constantin revela a Tato que adquiriu de seu mestre Aníbal uma

tela de sua autoria. E embora o crítico elogie a concepção do quadro, imediatamente ressalta

que ―a sua realização é falha‖, destacando alguns aspectos:

O menino voando é um pasticho; depois de Chagall, ninguém mais consegue voar com

naturalidade. – Aqui ele de novo olhou para os céus, a senha de alguma descoberta. –

Tiepolo! Tiepolo também sabia voar. Mas naquele tempo era mais fácil, eles acreditavam

em anjos. Voltando ao teu quadro: cada criança ali tem uma marca registrada, do Botero

(aquela menininha gordinha) ao Picasso (o garoto de duas cabeças); mas o que poderia ser

uma citação, digamos, elegante, se transformou numa colagem preguiçosa, numa

brincadeira pretensiosa. O quadro perde o rumo; você não teve técnica para sustentar o

projeto (idem, ibidem, p. 29).

A crítica inesperada de Constantin surpreende Tato que se sente fascinado pelas

palavras do crítico. O único pensamento que lhe ocorre é que Constantin iria se desmentir em

seu próximo quadro.

Ainda sob os efeitos das palavras proferidas pelo marchand, Tato, ao chegar à sua

casa, recebe a notícia de que ela fora arrombada e, mesmo diante dessa invasão surpresa, põe-

se diante de seus bicos de pena, que ―forram a parede‖, e tece uma reflexão íntima sobre quem

ele é e como ele enxerga a si mesmo enquanto pintor:

Sou fundamentalmente um desenhista. O mundo para mim é um emaranhado infinito de

linhas, são elas que definem os objetos, os seres as ideias, mais do que qualquer outra coisa.

Mais do que a cor, por exemplo. Mais do que o volume. Há uma matemática no desenho; o

traço é a realização mais completa da abstração, não da abstração pura, que não existe (para

que ela existisse – e eu começava a contestar meu mestre antes mesmo de me tornar seu

discípulo – teríamos de imaginar um ser sem memória, sem passado, sem futuro e sem

paredes, um sopro transparente pousando nada sobre coisa nenhuma; é muita ausência

ocupando a mesma falta de espaço), mas das ideias que fazemos das coisas, porque,

simplificando um pouco (ou abstraindo), as coisas são a ideia que fazemos delas – mas, a

essa altura, sinto o desespero e o desejo escapista de desenhar (pintar, que, para mim, é o

36

mais complexo desenho do mundo). [...] há uma falha no meu caráter que, me deixando

sempre sozinho, até à custa da morte, como hoje, me impede o prazer da solidão (exceto no

momento exato da pintura, daí meu amor pelos quadros intermináveis, que se arrastam

meses a fio, que nunca estão prontos, e que mesmo depois de prontos, como meu único

presente ao Aníbal, continuam se transformando). E minha frieza, que se confunde às vezes

com bonomia, parece que mais se enrijece ao longo do tempo, e no entanto talvez eu seja

uma pessoa que... (TEZZA, 1998, p. 41).

Nesse extrato, é possível perceber dois aspectos interessantes sobre o protagonista. O

primeiro é que, após a perda do seu ex-mentor, ele transpõe imediatamente em Constantin a

figura de um novo mestre, pois Tato, ao longo do romance, não somente enfatiza a

importância de ter um mestre em sua vida, como também destaca o fato de não conseguir

viver sem um mestre: ―jamais consegui viver sem um mestre, sem alguém que me aponte um

caminho e me diga quem sou. Alguém que me desenhe um corredor para eu atravessar, ou um

muro para eu pular‖ (idem, ibidem, p.67).

Após ser nomeado mestre, Constantin reafirma a Tato que este é ―fundamentalmente

um desenhista‖:

— Belo traço. Você é descendente direto dos pintores desenhistas, por assim dizer; aqueles

para quem a linha é a fronteira da cor, de Boticcelli a Modigliani, por exemplo. É a minha

especial predileção, embora na minha posição eu nunca deva falar nesses termos... – e ele

sorriu; havia sempre alguma coisa simpática na pose de Mr. Richard, como quem brinca

com a própria importância (idem, ibidem, p. 154).

O segundo aspecto é o motivo pelo qual, talvez, Tato não consiga terminar suas telas.

Na verdade, seu sentimento de posse é tão exacerbado por elas, que ele prefere não acabá-las,

não precisando, assim, se desfazer delas. Percebe-se, neste fragmento, as consequências

oriundas de seu ―amor pelos quadros‖: ―Eu pagaria dez vezes isso para recuperar meu quadro.

Acho que nunca vou ser um grande artista. Detesto me desfazer dos meus trabalhos (idem,

ibidem, p. 27).

Através desses extratos retirados do romance Breve espaço entre cor e sombra, bem

como por meio de textos teóricos, pôde-se compreender os caminhos percorridos pela arte

desde seu princípio, ou melhor, foi possível compreender sua história de cerca de 25 mil anos.

37

Esse percurso, por seu turno, proporcionou que se acompanhassem as mudanças no mundo da

arte ocasionadas pelo tempo, pelo desenvolvimento histórico e social da humanidade.

A industrialização e a modernidade trouxeram a fotografia, que mudou os conceitos

previamente delineados pela arte, fazendo com que a chegada do século XX se instaurasse

como o período das quebras de formas e regras solidificadas.

Observamos a sintonia, ou a falta desta, entre o pintor e o mercado de arte,

acompanhamos também questões que preocupam os especialistas em artes até o presente

momento, como, por exemplo, o caso das falsificações das obras de arte. É de suma

importância conhecer e identificar as marcas dos artistas, para facilitar, ou melhor, para dar

mais propriedade a teses levantadas quando se tratam de falsificações.

Uma vez que o romance em estudo gira em torno de uma cabeça supostamente

esculpida por Amedeo Modigliani, fez-se preciso conhecê-lo um pouco mais a fundo. Dito

que sua escultura e sua pintura apresentam traços bastante característicos, a identificação de

suas obras é, portanto, imediata.

Além das obras do italiano Modigliani serem mencionadas no romance, outros nomes

de pintores e /ou escultores estão presentes na trama narrativa, possibilitando-nos apreender o

diálogo contínuo entre a pintura e o texto literário. O paralelo entre a literatura e as questões

concernentes às artes plásticas foi abordado nos diálogos e nas reflexões que compõem Breve

espaço entre cor e sombra, de Tezza.

Agora, faz-se necessário, no próximo capítulo, detalhar aspectos mais estruturais do

autor e da narrativa, levando-se sempre em consideração a comparação entre a linguagem

verbal e a linguagem não verbal que permeiam a obra.

38

CAPÍTULO 2 – CRISTOVÃO TEZZA E SUA OBRA:

BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA

“Você quer fazer pintura? Antes de tudo, terá de cortar sua

língua, porque sua decisão lhe tira o direito

de se exprimir senão com os seus pincéis”

(Henri Matisse)

Cristovão Tezza nasceu em Lages, Santa Catarina, e vive atualmente em Curitiba.

Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e professor universitário da

Universidade Federal do Paraná, seu nome é referência na literatura brasileira contemporânea.

Tezza possui um número respeitável de obras publicadas, tais como romances, contos,

crônicas e textos críticos. Entre suas obras ficcionais de destaque estão: Uma noite em

Curitiba (1995), A suavidade do vento (2003), O fotógrafo (2004), O filho eterno (2007),

Trapo (2007), O fantasma da infância (2007) e Breve espaço entre cor e sombra. Este último

romance, que compõe o corpus deste trabalho, corresponde a seu 11° livro, escrito em 1998,

publicado pela editora Rocco e vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional

do Rio de Janeiro na categoria romance.

Breve espaço entre cor e sombra retoma elementos que se tornaram marcas do autor,

tais como a solidão e a timidez das personagens principais, bem como a predileção por

narrativas urbanas, ambientadas, mais precisamente, em Curitiba. Aliás, as referências a essa

cidade – ruas, praças, parques e pontos turísticos – permeiam o romance do início ao fim:

[...] você só não vai ser o maior pintor do mundo se você não quiser. Ahahaha! Bem, pelo

menos do Brasil. Ou do Paraná. Quem sabe de Curitiba. Isso: o maior pintor de Curitiba.

Na pior das hipóteses você pode ser o maior pintor do seu bairro. Ou da rua Mateus Leme,

que é comprida. Você pode ser o maior pintor do pedaço (TEZZA, 1998, p. 136).

39

Segundo Tezza (apud XAVIER, s/d)5, utilizar Curitiba como espaço geográfico e

nomear suas ruas e lugares, transmite segurança, naturalidade e realidade. O leitor pode não

conhecer a Rua Mateus Leme, mas sente que o autor está falando de uma rua concreta.

— Eu levo você em casa. Onde você mora?

— Mateus Leme, perto do Shopping. Mas eu posso... (TEZZA, 1998, p. 28).

Quanto à solidão e à timidez das personagens, pode-se afirmar que Curitiba instiga-

lhes a solidão, o que é visível ao longo de sua obra: assim acontece com o poeta Trapo, do

romance homônimo, com o professor e escritor Matôzo de A suavidade do vento, com o

professor Rennon de Uma noite em Curitiba e com o pintor Eduardo Simmone em Breve

espaço entre cor e sombra (SÁ, 1998)6. Tezza retrata seus protagonistas com perfil

introspectivo, pois acredita que o curitibano, ou o fato de viver em Curitiba, incita a solidão:

Curitiba é uma cidade que não tem carnaval, o que acho ótimo (risos)! Aí já diferencia

bastante de todo o resto do Brasil. É uma cidade extremamente organizada. As pessoas têm

espírito de organização muito germânico. É também uma cidade bastante solitária. As

pessoas são mais frias e as relações são muito mais profundas. Aqui se tem poucos amigos,

mas que são para a vida inteira. É um tipo diferente de cidade e que literariamente acho

ótimo. Como não se tem nada pra fazer, vou escrever meus livros. É uma cidade que chama

pra dentro de casa (SANTOS, 2003)7.

A cidade de Curitiba não é o único fator que aflora os sentimentos de solidão e timidez

retratados pelas personagens de Tezza. O autor, por se tratar de um escritor contemporâneo,

evidencia marcas do seu tempo, da contemporaneidade, em suas obras. Ambos os sentimentos

ditos acima são inerentes ao sujeito pós-moderno: a solidão, sentimento atemporal na história

da humanidade, e a timidez podem ser confundidas com a questão do isolamento social. Ou

seja, o homem contemporâneo, em sua maioria, vive em grandes centros urbanos, diante de

5 XAVIER, Valêncio. A vampira de Curitiba. s/d. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/entrevistas/p_980405.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 6 SÁ, Sérgio de. Breve espaço entre sombra e fama. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_jun.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 7 SANTOS, Márcio Renato dos. Curitiba está inteira no que escrevo. 2003. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/entrevistas/p_030903.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.

40

um sistema de capitalismo exacerbado, o que o faz se isolar. Desse modo, mesmo diante de

milhões de pessoas, o sujeito tende a ficar só, a sentir-se só.

[...] O grande desafio é viver sozinho; viver com os outros não é desafio nenhum. O difícil

é viver sozinho. A maior liberdade possível é a capacidade de solidão. Eu sempre quis viver

sozinho. Eu acho que vivo sozinho (TEZZA, 1998, p. 65).

Ela está certa: não tenho lógica. Talvez eu devesse explicar o que eu nem entendo: é que

sou tímido, Dora. E um tímido que quer aparecer. Esses são os piores, os tímidos que usam

gravata-borboleta. [...] De qualquer forma, não daríamos certo. Nem minha mãe aguentou

viver comigo (idem, ibidem, p. 75).

Evitar vínculos, não sentir a necessidade de criar laços talvez seja uma desculpa ou um

modo de proteção, uma barreira que o protagonista criou para isolar-se do mundo para

impedir que venha sofrer eventuais decepções. Quiçá pelo seu histórico familiar e pela

conturbada relação com seu ex-mestre, para Tato é mais fácil viver sozinho do que arriscar os

pormenores de uma vida compartilhada:

A Débora era loura ou morena? Esqueci completamente, de acordo com a regra: jamais

repetir uma mulher dos classificados. Não crie vínculos. Aliás, outro dos conselhos da

minha mãe que segui à risca: Não crie vínculos profundos com ninguém, meu filho; com

ninguém. Não vale a pena. Nunca vale a pena. Você não precisa de ninguém (idem,

ibidem, p. 172).

O ponto de partida do autor, para elaborar Breve espaço entre cor e sombra, foi criar

uma história que tinha como foco, uma escultura, cuja autoria fora atribuída a Modigliani.

Tezza decidiu pesquisar mais sobre o pintor italiano. Viajou, então, para Livorno, na Itália,

cidade natal de Modigliani, descobrindo, afinal, que o que tinha imaginado acontecera de fato.

Em 1984, enquanto a prefeitura local dragava um fosso (Fosso Reale) em busca de cabeças de

pedra que tivessem sido jogadas por Modigliani, anos antes, alguns estudantes souberam

dessa busca lendária e esculpiram algumas cabeças, jogando-as ao fosso. Em entrevista para a

Folha do Paraná, Tezza (apud LEITE, 1998)8 afirma:

8 LEITE, Zeca Corrêa. No espaço estreito das relações humanas. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr_folhapr.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.

41

Tem uma cabeça de pedra de Modigliani que atravessa o livro todo. Ela sai de Roma, vai

para Nova York e vem parar em Curitiba. Há muitos anos li numa biografia de Modigliani

que quando jovem teria jogado no Fosso Reale, em Livorno, na Itália, umas estátuas de

pedra que ele não teria gostado. E foi para Paris. Isso ficou como uma espécie de lenda nas

artes plásticas. Por muitos anos alimentei a ideia de fazer uma dessas cabeças aparecer em

Curitiba. Aí, no começo do ano passado, fui à Itália especificamente para pesquisar a

matéria do livro e descobri coisas curiosíssimas. Por exemplo, Modigliani nunca jogou

cabeças de pedra no fosso. Foram estudantes que jogaram as peças falsas. Na Itália

transformou-se em comoção nacional a discussão sobre aquelas cabeças, porque grandes

críticos de arte disseram que eram verdadeiras.

As pesquisas sobre arte foram além da obra de Modigliani. Desde jovem, Tezza é

apaixonado por artes plásticas. No ano de 1997, quando começou a esboçar o romance Breve

espaço entre cor e sombra, intensificou suas leituras sobre pintura e fez, inclusive, um curso

teórico e prático sobre esse assunto. Na sua juventude, também se dedicou ao estudo da

pintura por influência de seu mestre, o diretor de teatro Wilson Rio Apa:

Tezza tornou-se um copista esforçado – e até hoje tem, na sala de seu apartamento, uma

cópia de Figura Decorativa sobre Fundo Ornamental, do francês Henri Matisse, obra

guardada no Museu de Arte Moderna de Paris, onde Tezza a viu pela primeira vez, em

1975. Ele copiou a tela de Matisse, quando tinha apenas 18 anos de idade, e deu-a de

presente à mãe [...]. Jamais teve, porém, a veleidade de torna-se pintor. A experiência como

copista, contudo, deixou marcas interessantes em sua literatura (CASTELLO, 1998)9.

Os estudos sobre pintura, especialmente a experiência como copista, profissão que

requer habilidade para reproduzir obras de outros artistas, sejam elas livros, desenhos,

pinturas e/ou esculturas, deixaram marcas na literatura de Tezza, conforme o próprio

romancista aponta: ―Meus livros são muito imagísticos. Eu escrevo o que vejo, e vejo as cenas

quando as escrevo‖ (apud idem, ibidem)10

.

A influência do copismo e a seleção cuidadosa das palavras tornam o texto de Tezza

bastante ilustrativo. O uso frequente das cores e formas, as descrições minuciosas e o

comparativo feito com as escolas e obras de arte elucidam ainda mais as cenas descritas. É

9 CASTELLO, José. Tezza discute utilidade da arte em romance denso. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_ago.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 10

Idem, ibidem. Disponível em: <http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_ago.htm>.

Acesso em: 17 out. 2009.

42

possível visualizar, com exatidão, os detalhes que foram observados ou imaginados pelo

protagonista:

Fixei meus olhos agora secos – e já distantes do universo soturno daquela manhã, já

impacientes, querendo fugir de uma vez por todas, querendo recomeçar – fixei na menina

que havia lançado a flor ao meu amigo Marsotti. Toda de preto – uma saia longa que quase

chegava ao dorso dos pés que, lado a lado, surgiam de um par de sapatos simples também

pretos – percebi que ela fixava os olhos em mim, aquele tipo de investigação de alguém que

está desesperadamente tentando se lembrar quem você é; ela está prestes a cumprimentar

uma pessoa que já viu muitas vezes, e, sem nenhuma explicação, o nome escapa,

fulminante como um gato amarelo sumindo da vista para nunca mais. Esse era o olhar dela,

investigante, talvez surpreso, de uma intensidade tão curiosa que ela nem se dava conta de

que fitar alguém assim não convém, ainda mais quando... – mas ela se deu conta, súbito

acordada, e voltou os olhos para o caixão num golpe envergonhado de cabeça, ao mesmo

tempo em que o rubor – essa cor antiga – cobria-lhe as duas maçãs do rosto com a

prontidão de uma sensitiva. Ela cruzou as mãos na cintura, sem mover os pés, e inclinou

levemente a cabeça, como uma figura angelical da Renascença (TEZZA, 1998, p. 11).

Caso o leitor, por ventura, seja conhecedor das artes plásticas, é possível que ele

associe alguns trechos da narrativa de Tezza com obras de arte preexistentes. O fragmento

acima, por exemplo, remete-nos a uma tela renascentista. O movimento e a leveza corpórea

que o protagonista descreve, nas duas últimas linhas, são semelhantes aos movimentos da

imagem captada por Botticelli:

Ilustração 7

“A Primavera” – Botticelli, Sandro (1478) Têmpera sobre madeira

205x315cm

Galeria Uffizi (Florença, Itália)

Segundo Aguinaldo Gonçalves (1989, p. 177), os estudos comparativos entre a

Literatura e as Artes Plásticas são inúmeros e deveras complexos.

43

Ao longo da História da Arte, sempre existiram trabalhos de pintores ou de poetas que se

realizaram com ―inspiração‖ ou a partir da captação de temas ou de motivos formais

extraídos da arte vizinha e produzindo efeitos expressivos, muitas vezes, de alto valor

artístico. O fenômeno que não é menos merecedor do interesse crítico da Estética

Comparada reside nos casos das ―ilustrações‖ das mais variadas naturezas, tanto naquele

[...] em que um artista plástico ilustra o texto literário, quanto [...] em que o escritor é

também pintor e compõe sua obra a partir da associação dos dois códigos.

A questão das analogias entre pintura e poesia tem origem na Antiguidade, sendo

retomada no Renascimento; ―daí toma feições variadas, quer sob o ponto de vista criador,

quer sob o ponto de vista teórico, ao longo de toda a história moderna da literatura e da arte‖

(GONÇALVES, 1989, p. 177). Ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII, as abordagens

comparativas entre literatura e artes plásticas foram extremamente polêmicas, porém ―o

assunto manteve-se em aparente trégua durante o século XIX e foi retomado no século XX,

com intensidade espantosa‖ (idem, ibidem, p. 177).

Entretanto, constata-se que todos os estudos que objetivaram estabelecer as relações

entre as duas artes – seja indicando o grau de plasticidade existente no poema, seja indicando

a existência de elementos poéticos na pintura – ocorreram dentro das variadas interpretações

da Poética de Aristóteles, dos conceitos de mímesis que nortearam o pensamento clássico.

Duas outras ideias atuaram como forças impulsionadoras: uma da Antiguidade Clássica, que

consiste na máxima de Simônides: ―a pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala‖. A

outra, extraída da Arte poética de Horácio, acarretou em forçosas aproximações entre a poesia

e as artes visuais. Interpretada da maneira que melhor convinha aos críticos, ut pictura poesis

tornou-se um emblema e conduziu diversas polêmicas naquele período (idem, ibidem, p. 179).

Aguinaldo Gonçalves (1994, p. 27), em seu Laokoon Revisitado, acrescenta:

Ut pictura poesis, interpretada da maneira que melhor convinha às ideias dos críticos,

tornou-se um emblema e conduziu várias polêmicas naquele período. A teoria contida nesta

frase operou em direções complementares entre as artes da pintura e poesia, no sentido de

uma influência literária sobre a pintura e uma apreciação da pintura em termos literários.

Como o dominante desse período era o processo imitativo, acreditava-se que os modelos

para as duas artes deveriam ser encontrados nos clássicos, e assim sugeriam os temas

históricos e heroicos que envolviam a natureza humana, ideal ou heroica. A apreciação das

obras se baseava nesses elementos temáticos, além do rigor formal de imitação que deveria

44

respeitar, o mais possível, as várias técnicas utilizadas pela arte clássica. Do final do século

XVII até a realização da Crítica do Juízo, de Kant, isto é, num período de cem anos,

desencadeou-se um verdadeiro movimento de teorização sobre o processo de criação e

sobre a natureza da obra de arte.

Como podemos depreender, a aproximação entre as artes visuais e verbais não deve

limitar-se ao tema; é preciso buscar as constituições básicas, pois cada uma delas, literatura e

pintura, possui estruturas internas distintas, embora, muitas vezes os elementos compositivos

de uma arte possam corresponder aos de uma outra arte. Como afirma Étienne Souriau (1983)

em A correspondência das artes: elementos de estética comparada, o parentesco entre as

artes é evidente, pois os artistas, independentemente do modo de expressão, são levitas de um

mesmo templo.

Há vários momentos onde é possível correlacionar a descrição imagística do

protagonista com imagens visuais ou quadros. Podemos tomar, como exemplo, o momento do

enterro de Aníbal, momento este em que Tato conhece o marchand Richard Constantin,

descrevendo-o mentalmente.

O homem da voz – da minha altura, de uma elegância convencional coberta por uma bela

capa preta meio que solta sobre os ombros, faltando-lhe talvez apenas a cartola e a

bengala para habitar o parque de Manet – fez um ―não‖ agastado de cabeça, não perca

tempo com bobagens, eu estou falando de pintura, da essência da arte, e enquanto a mão

esquerda ajeitava a capa sobre o ombro, a direita coçava a barba grisalha, curta e bem

cuidada (TEZZA, 1998, p. 12, grifo nosso).

Utilizando o próprio Manet, mencionado no extrato, podemos recorrer a uma de suas

telas para ilustrar, com forma e cores, as palavras de Tato. Para descrever Constantin, o

protagonista compara-o a figuras masculinas, ressaltando o vestuário e o gestual. Tal

descrição poderia nos remeter à tela ―O almoço na relva‖, de Manet.

45

Ilustração 8

“O almoço na relva” – Manet, Edouard (1863)

Óleo sobre tela

208x264cm

Museu de Orsay (Paris, França)

Como assinalamos anteriormente, são citados, ao longo da narrativa, inúmeros artistas

plásticos, com objetivos diversos: conceituação de arte; comparação entre estilos semelhantes

ou dessemelhantes; procedimentos técnicos ou cotação das obras no mercado. Uma cena que

merece destaque se refere a quando o narrador Tato relembra as palavras de seu antigo

mestre, Aníbal Marsotti:

É impossível alguém pintar assim. E ainda usa avental, cuja frente de fundo branco passa a

ser, depois de algum tempo, um projeto-obra de Pollock. Uma pena que você lave o

avental. Você devia guardar, um por dia, para uma exposição bombástica. E o Biba,

cheirando pó no vidro desta mesma mesa do ateliê, passava a criar títulos para a minha

exposição. Intervenções proletárias: o avental e o girassol. De Giotto a Pollock: uma

leitura pragmática. Sangue, suor e tinta. [...] Aventuras, aventais, aventosas de Tato

Simmone: a íris do dia-a-dia. Nas mãos de Constantin [...] você assombrava a bienal com

[...] seus aventais (TEZZA, 1998, p. 66-67).

A menção ao pintor expressionista abstrato Jackson Pollock permite-nos apreender

que os respingos de tinta no avental branco de Tato tinham, para o antigo mestre, um maior

valor comercial nas mãos de um bom marchand do que as telas sempre inacabadas do seu

discípulo.

46

Ilustração 9:

Foto do pintor Jackson Pollock

2.1 – NARRATIVAS SOBRE TELAS

Como assinalamos anteriormente, a trama narrativa é intercalada pelas narrativas

sobre telas, as quais se configuram como exposições de episódios imaginários nos quais as

telas de Tato Simmone foram inspiradas.

Segundo Tezza, em entrevista para Ferraz (1998)11

: ―O único modo de eu apresentar

os quadros de Tato ao leitor, sem usar a fotografia ou a descrição pura e simples, seria

transformá-los em sintaxe pelos sinais de pontuação, porque na verdade só há frases nominais,

sempre as mesmas duas ou três‖.

Os quadros são, por ordem de aparecimento na obra, os seguintes: Crianças (TEZZA,

1998, p. 31-34); Immobilis Sapientia (p. 93-98); Estudo sobre Mondrian (p. 128-129) e,

finalmente, Réquiem (p. 178-179):

Breve espaço entre cor e sombra abre ainda espaço para a inserção de outras linguagens,

que se manifestam em quatro trechos intitulados como os quadros de Tato Simmone. O

primeiro deles — ―Crianças‖ — surge logo após a verborragia teórica de Constantin e bem

pode ser uma resposta pelo avesso. Porém, mais correto talvez seja atribuir-lhe a função de

11

FERRAZ, Heitor. Vidas paralelas. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.

47

presentifica [sic] a obra pictórica de Tato, ao mesmo tempo em que tematiza a

impossibilidade de transpor a contento uma linguagem artística para outra (BERNARDI,

1998)12

.

Os ―quadros narrativos‖ em momento algum são mostrados ao leitor que, por seu

turno, conhece as obras de Tato mediante as diferentes técnicas narrativas utilizadas pelo

próprio pintor, Tato Simmone. São relatos oníricos, não havendo um narrador onisciente, nem

um observador olhando de fora, descrevendo a tela; o que há é o quadro, em si, contando sua

história. A figura desenhada/retratada na tela ganha vida e descreve não apenas o que está ao

seu redor, mas, também, a história, as ações, as personagens, a movimentação que permeia a

tela.

2.1.1 – CRIANÇAS

Crianças trata-se de um óleo sobre tela que mede 1,74 m por 0,81 m. Essa enorme tela

fora presenteada a Aníbal Marsotti por Tato, mas, conforme indicado, podemos apreender, no

subtítulo da página 31 do romance, que hoje ela pertence ao acervo de Richard Constantin.

Tato, que, até então, não desconfiara que o amigo pudesse cometer tamanha infidelidade,

descobre que o ex-mestre não só vendera o quadro a Constantin, como tirara a sua dedicatória.

— Comprei do Aníbal.

Senti o frio da traição do amigo morto, que continuava a me agredir. Talvez

Constantin estivesse mentindo. Talvez ele me confundisse com alguém, o que seria uma

graça – nenhuma precipitação.

— Mas que quadro? O senhor quer dizer um desenho? Às vezes...

— Não. Uma tela mesmo. Crianças. Um óleo imenso de quase dois metros (TEZZA,

1998, p. 22).

[...] — É que, afinal, a dedicatória foi escrita a óleo, na face da tela, e ocupa um palmo do

canto esquerdo. Era um presente absolutamente pessoal. Toda a concepção de tela nasceu

de uma longa conversa nossa [...] (idem, ibidem, p. 27).

12

BERNARDI, Rosse Marye. O espaço do suspense: uma leitura de Breve espaço entre cor e sombra, romance

de Cristovão Tezza. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_jul_revletras.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.

48

Como o nome da tela já indica, há, nessa narrativa, a presença constante de crianças e

de elementos do imaginário infantil (balão, trenzinhos, cambalhotas, toco de lápis, velinhas...)

do início ao fim. O nome Crianças está relacionado intrinsecamente ao enredo ou ao tema do

quadro.

Isso: crianças! Muitas crianças tagarelando, pequenos vultos escondidos, duendes,

fantasminhas, recortes de carne e vento.

[...]

[...] Vi uma criança fingindo-se de tonta: ficava de pé simulando muita dificuldade. De

tempos em tempos, sentava-se e girava as pernas como ponteiros de relógio, e batia palmas

(TEZZA, 1998, p. 31).

A narrativa assemelha-se a uma história infantil fantástica; há uma criança voando e

dando piruetas no ar, há outra cujos dedos são velas de soprar. Além disso, a narrativa não é

apenas uma descrição estática do momento captado pelo artista, havendo, pois, movimento,

diálogos, como se o quadro tomasse vida, se movesse e contasse sua própria história. A

narrativa é, certamente, tão bem articulada, que se pode visualizar a tela mesmo sem vê-la.

Passou cuidadosamente a mão no meu rosto, como quem recolhe uma flor exótica, e disse:

— Ele espeta.

— Mentiroso!

— Deixa eu ver! (idem, ibidem, p. 32).

Constantin, com exceção do ex-mestre falecido, é um dos únicos que conhece a tela de

Tato e que, consequentemente, revela, com propriedade, suas impressões acerca de Crianças:

[...] Você tem um mundo próprio, mas ainda não tem linguagem. A pincelada, quando

acerta, brilha: o carro esmagado no centro da tela é brilhante, uma figura de mestre; eu sei o

quanto é difícil botar um automóvel num quadro. Um carro é um objeto desengonçado,

horroroso, sem saída, e os grandes artistas tendem a ignorá-lo. Você conhece algum

automóvel pintado por Picasso? [...] Pois bem: o teu carro esmagado é ótimo, ele de certa

forma dá a dimensão do quadro e é o eixo espacial, impossível não olhar para ele, tudo

converge para ele, no truque das velhas e boas linhas da perspectiva antiga. Mas você é um

pintor preguiçoso, Tato; você pintou o carro e ficou com preguiça de fazer o resto (idem,

ibidem, p. 28).

— Mas o desenho é mesmo fundamental! Percebe-se no teu quadro das crianças esse

predomínio da linha, o gosto pela nitidez. Mas, é claro, você ainda parecia um tanto sem

rumo. Chegar à própria linguagem é um caminho comprido (idem, ibidem, p. 155).

49

O discurso do marchand aponta elementos intrínsecos, características do estilo de Tato

enquanto pintor, fazendo uso de um vocabulário que pertence ao mundo das artes para dar

maior credibilidade às suas impressões. Ele também relaciona, exemplifica a técnica e as

ideias de Tato com as de outros pintores renomados.

2.1.2 – IMMOBILIS SAPIENTIA

O título dessa segunda tela chama a atenção, primeiramente, por ser escrita em latim:

Immobilis Sapientia significa ―sabedoria imóvel‖. Trata-se de um políptico13

inacabado,

conforme indica a descrição, um óleo sobre tela de 47 cm por 90 cm, cada peça, que faz parte

da coleção particular do pintor. Por estar inacabado, ou ao invés de haver quatro, há três telas.

A narrativa, assim como o número de telas, está dividida em três partes, todas também

escritas em latim: Principium et ordo (Começo e ordem); Immobilis Sapientia (Sabedoria

Imóvel); Ipsius circuli / principium et fins / universum musica est (mesmo círculo / começo e

fim / música é universo).

O nome do quadro coincide também como o momento em que o pintor está

atravessando, uma crise de imaginação, de criatividade que já dura um ano e que não lhe

permite terminar o políptico: ―Eu estava, de fato, vivendo uma crise renitente de imaginação,

pintando o mesmo quadro há quase um ano, sob o título sugestivo de Immobilis Sapientia.

Mas menti, porque eu não posso sofrer crise de imaginação‖ (TEZZA, 1998, p. 18).

O personagem-narrador, ao se transportar de uma tela à outra, depara-se com uma

porta, em que estava escrito o nome da tela. Ele avança em direção à porta, abre-a e entra na

tela seguinte. O mesmo fato ocorre três vezes: ―Afinal encontrei uma porta, onde li a

inscrição: Immobilis Sapientia. Consegui virar uma chave enorme com as duas mãos,

empurrei a porta e entrei‖ (idem, ibidem, p. 95).

13

Conjunto de quatro ou mais quadros independentes entre si, mas subordinados a um só tema, segundo Houaiss

(2001).

50

O personagem-narrador percorre as três telas como se caminhasse de uma à outra, o

que nos leva a acreditar que ele está não apenas descrevendo o que vê retratado em cada tela,

como também está vendo o que está pintado em cada uma delas. Pela descrição, o local em

que ele se encontra, assemelha-se ao espaço de uma época remota, talvez a Grécia Antiga,

devido a características expostas na narrativa, tais como: colunas, esculturas/estátuas cegas,

roupas brancas, palcos de pedra.

Como não poderia deixar de ser, na visita em que Constantin faz ao ateliê de Tato, ao

se deparar com Immobilis Sapientia, o marchand exprime, mais uma vez, suas impressões

referentes à obra que agora está diante dele:

Não contaminar a lembrança de Richard Constantin olhando atentamente Immobilis

Sapientia e dizendo: Você cortejou o kitsch de uma forma irresponsável e no entanto não

chegou nele. Essa tela é um absurdo completo, mas não tem excessos. O menino parece um

anjo de Rafael; a paisagem é chiaresca; as inscrições em latim (— Você sabe latim? –

Não, era o Marsotti que sabia; ele foi seminarista.) estão ótimas, sobre esse perfeito

mármore rachado; você também tem muita técnica, e isso é um perigo, tão cedo assim,

porque estimula a soberba. É uma pintura desenraizada, que em cada linha parece

imitação de alguma coisa, mas a coisa imitada não está imediatamente visível. Você

compreende? É como se o mundo real não afetasse você. Você está fugindo; em qualquer

outra arte, talvez, isso seria inaceitável; na pintura, não. E este quadro aqui, está

inacabado? – e ele puxou Réquiem para a luz (TEZZA, 1998, p. 167).

2.1.3 – ESTUDO SOBRE MONDRIAN

O terceiro ―quadro narrativo‖, cujo nome faz uma referência ao pintor Mondrian, é o

mais distinto dos três outros quadros de Tato. Estudo sobre Mondrian é um acrílico sobre

madeira, mede 36 cm por 41,5 cm e faz parte da coleção particular do pintor: ―[...] recolhi um

pequeno quadro, um velho estudo de cores em tinta acrílica, uma imitação de Mondrian de

três anos antes‖ (idem, ibidem, p. 151).

Como o próprio título indica, o conteúdo da narrativa é uma referência à obra de Piet

Mondrian. O texto é a repetição da oposição entre a cor branca e a linha negra com uma única

menção à cor vermelha; tal oposição nos remete ao título do romance: cor/sombra.

51

Percebe-se, ao longo dessa narrativa, que o pintor faz uso de cores que são marcas da

pintura do modernista holandês: o branco, o preto e o vermelho. A narrativa constrói-se por

meio da repetição dessas cores, sendo-lhe acrescentados, ainda, os artigos definidos ―a‖ e/ou

―o‖ e os substantivos ―linha‖, ―reta‖ e ―cor‖. A repetição é tão exaustiva que, ao longo de sete

parágrafos, uma única palavra/frase é repetida inúmeras vezes, respectivamente, na ordem ―a

cor branca – a linha reta negra – a cor branca – a linha reta negra‖, como podemos observar

no sétimo e último parágrafo: ―A cor branca, a cor branca, a cor branca, a cor branca, a cor

branca, a cor branca, a cor branca (a cor branca), a cor branca: a cor branca. A cor: branca. A

cor branca – a cor branca. A cor branca‖ (TEZZA, 1998, p. 129).

Tal qual o nome da tela de Tato indica e a técnica narrativa por ele utilizada para

descrevê-la, a obra de Mondrian, em sua fase mais conhecida, é caracterizada pela repetição

de linhas e cores, dessa forma: uma tela branca com linhas horizontais e verticais pretas,

formando quadrados e/ou retângulos, sendo alguns desses preenchidos por cores primárias

como o azul, o vermelho e o amarelo.

Para Mondrian, as linhas verticais representavam vitalidade e as horizontais, tranquilidade.

O ponto de cruzamento de duas linhas era o ponto de ―equilíbrio dinâmico‖. Em seus

quadros, típicos de seu estilo, o pintor se restringiu às linhas negras formando retângulos.

Ele usava apenas as cores primárias – vermelho, azul e amarelo – e três não-cores: branco,

preto e cinza. Calculando cuidadosamente a colocação desses elementos, Mondrian fazia

um contraponto de ritmos para conseguir um ―equilíbrio de opostos desiguais, mas

equivalentes‖. Embora a grade dos quadros pareça similar, cada uma delas é precisa e

diferentemente calibrada (STRICKLAND, 2003, p. 145).

Sobre as cores, a tela Estudo sobre Mondrian e o processo criativo de Tato, ―o agora

mestre Constantin‖, quando no ateliê do pintor, lança a sua análise:

— Você tem razão, Tato. Nada é mais camaleônico, por assim dizer, que a cor. – E depois

de concentrar os olhos alguns segundos no meu exercício, como se aguardasse a mudança

de tom sob a nova luz, ele me devolveu a pequena tela, parece que satisfeito com o

resultado. — Só por esse Mondrian fake, vejo que você de fato entende a pintura como uma

construção puramente mental (TEZZA, 1998, p. 151).

52

Em seu romance A suavidade do vento (2003), Tezza demonstra, mais uma vez, sua

afinidade com as artes plásticas, referindo-se a Mondrian para enfatizar seu tão conhecido

estilo, marcado pela identidade visual peculiar e pelo traço único.

Havia nuvens no céu, mas hoje o que interessava era só o verde e este estava bem-

comportado. Percebeu que não era exatamente uma linha reta que separava o azul do verde.

Havia pequeníssimas farpas invadindo o território alheio, de baixo para cima (verde), de

cima para baixo (azul). Poderia ignorá-las. Mas daí...

Lembrou-se num estalo de um pintor que pitava aquilo: Mondrian. Correu para um

caixote de livros, atropelando monstros que se metiam entre as pernas, atrás da pequena

enciclopédia. MONDRIAN, Piet. Pulou datas e informações irrelevantes. Seu estilo

rigorosamente geométrico tinha por princípio os ângulos retos e a utilização das três cores

primárias: azul, amarelo e vermelho. Por azar a enciclopédia não trazia nenhuma

ilustração. Isso não ajudava muito (TEZZA, 2003, p. 145-146).

Ilustração 10

“Composição em vermelho, amarelo e azul” (1837-42)

Óleo sobre tela

72,5x69cm

Galeria Tate (Londres, Inglaterra)

A dicotomia presente no título da obra de Tezza, Breve espaço entre cor e sombra,

representada pela cor e pela sombra, dialoga com a tela Estudo sobre Mondrian, como bem

assinala Lacerda:

Neste, chamado ―Estudo sobre Mondrian‖, num lance de prosa experimental, ou concreta,

ou o que outro nome se queira dar, Tezza repete infinitamente a oposição entre a cor branca

e a linha negra. A oposição fundamental do livro, entre razão e sentimento, e que no título

53

vem expressa por meio da cor e da sombra, aqui e no tocante aos retratos da italiana, surge

na oposição entre a linha e a cor (LACERDA, 1998)14

.

Entende-se que essa dicotomia entre cor e sombra, razão e sentimento, está presente na

obra de Tezza em questão, de diferentes maneiras e em diferentes momentos: nas idas e

vindas do tempo passado, com a presença do falecido mestre atormentando a vida presente de

Tato, em forma de flashbacks; nas atitudes do protagonista tentando ser racional, como quanto

à questão de não se apegar a terceiros; na carta emocional da italiana.

2.1.4 – RÉQUIEM

O quarto e último ―quadro narrativo‖ do romance é o óleo sobre tela intitulado

Réquiem, que mede 90 cm por 45 cm. A tela encontra-se inacabada, possui detalhes

restaurados sobre madeira e faz parte da coleção particular de Tato:

Resolvi pintar, prosseguir meu inacabável Réquiem, uma viagem sem volta e quase que só

azul e verde, uma cor fria e outra quente, numa imagem praticamente sem linhas, o que

contraria tudo que sei fazer, mas eu insisto. Minha vantagem é esta: não tenho a mínima

pressa. Réquiem é, também, uma espécie de birra: quando minha mãe viu a primeira

tentativa, há mais de um ano, torceu a cara instantaneamente: Um lixo. Jogue isso fora

(TEZZA, 1998, p. 56).

Réquiem, segundo significado denotativo da palavra, indica: uma prece, uma oração

religiosa para os mortos. Tal qual o seu significado, essa última obra apresenta um homem

que, sofrendo, aparenta estar apenas aguardando a extrema unção.

De cunho depressivo, a narrativa é composta por frases curtas, o que coincide com o

ritmo curto da respiração do narrador da tela, talvez ocasionada pela falta de força devido à

declaração: ―Sou doente. Respiro com dificuldade‖, reiterada algumas linhas abaixo: ―Eu sou

doente‖ (idem, ibidem, p. 178).

14

LACERDA, Rodrigo. A cabeça esculpida. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr_folha1104.htm>. Acesso em: 29 mar. 2010.

54

Assim como a doença desconhecida pelos leitores, a solidão desse homem à beira da

morte só não é total porque há a presença de sua mãe ―de cabeça enorme‖, com a qual o

narrador da tela afirma ter sonhado. Em seu sonho, a mãe era um ―polvo rosado muito

grande‖ (TEZZA, 1998, p. 178). O sonho parece ter ocorrido tão-somente devido aos delírios

febris do moribundo.

Em outro momento da narrativa, Tato Simmone confirma o teor depressivo da tela

Réquiem:

O que pintar? Dois quadros em andamento e um projeto, este já com a tela montada e

algumas linhas em carvão. Réquiem me dá um certo medo: é a coisa mais depressiva que eu

já tentei pintar na vida. Aníbal nunca parou um minuto para contemplá-lo. Milhões de

pessoas já pintaram isso aí melhor que você. É como pintar a Santa Ceia. Até o Dali se

fodeu. Já a série de esboços de Immobilis Sapientia interessou-o mais. Parece um

casamento entre De Chirico e o Abaporu, um teorema tropical. Pode resultar num

pasticho, parecido com incêndios na floresta que vendem na rua, mas pode dar também

alguma coisa antropofágica. Afinal ele cedia, invejoso: Mas você é detalhista, e tem

paciência oriental, vai ficar bonito. E como eu nunca acreditei: Sem brincadeira. Sério.

Dessa vez é verdade (idem, ibidem, p. 67).

A reflexão do pintor vem enxertada com os comentários críticos de Marsotti, cujo

olhar negativista sobre o Réquiem e o Immobilis Sapientia pintados por Tato faz-lhe redobrar

as atenções sobre o tipo de mestre que poderia ser Marsotti. Mais adiante, abordaremos, com

mais detalhes, a análise de Marsotti enquanto mestre.

Logo no início, a narrativa de Réquiem apresenta uma certa coerência. É possível

compreender o fio narrativo, mas, poucas linhas depois, perde-se o nexo e as frases parecem

não mais fazer sentido, parecendo meras frases soltas. Esse ―quadro narrativo‖ é o único em

que, de fato, não se pode visualizar o que está pintado na tela. A imaginação corre solta e não

direciona o leitor a uma imagem específica que foi capturada pelo pintor. Todavia, conforme

a filha do marchand afirma, em uma das partes finais do romance, em um diálogo travado

com Tato sobre arte, a pintura não precisa, necessariamente, fazer sentido. Ou seja:

— Pela exigência. A literatura precisa ser verossímil, as coisas têm de ter pé e cabeça. A

pintura, não. Na pintura, você pode botar chifre em cabeça de cavalo, que fica bonito. Pode

botar o cavalo com chifre em cima de um banquinho de três pernas, feitas de vidro. E

55

equilibrar o banquinho no nariz comprido de um mágico com cinco cabeças, sendo cada

uma delas uma carta de baralho. O mágico pode estar sentado no telhado de uma choupana,

que repousa numa nuvem, que chove canivete – e ela ria, fascinada pela própria sequência

de imagens (TEZZA, 1998, p. 208).

Em acréscimo a isto, concluímos com as palavras de Leonardo da Vinci, que a

inverossimilhança na arte é aceita e permitida porque:

[...] o pintor é senhor de todas as coisas que podem ocorrer ao pensamento do homem, por

essa razão se ele tiver o desejo de ver belezas que o encantam, ele é senhor para criá-las, e

se quiser ver coisas monstruosas que aterrorizam ou que sejam risíveis ou realmente dignas

de piedade, ele é senhor e criador. E se quiser criar paisagens e desertos, lugares

sombreados ou frescos nas épocas quentes, ele os representa; e assim também lugares

quentes nas épocas frias. Se quiser vales, ele os simula; se quiser dos altos cumes dos

montes descobrir grandes planícies e se quiser depois delas ver o horizonte do mar, ele é

senhor deles; e também da mesma forma se dos baixos vales quiser ver os altos montes ou

dos altos montes os baixos vales e as praias. E de fato tudo que existe no universo em

essência, presença ou imaginação, ele os tem primeiro na mente, e então nas mãos, e estas

têm tanta excelência que, num dado momento, geram uma harmonia de proporções que o

olhar abarca como a própria realidade (da VINCI apud LICHTENSTEIN, 2004, p. 47).

O diálogo entre Ariadne e Tato Simmone é, sem dúvidas, um dos momentos mais

instigantes do romance, muito próximo ao seu final. Mais comumente chamada de Adne, ela é

uma das quatro filhas de Constantin e dona Sara; ela é considerada pela mãe, ―uma gênia em

línguas, fala inglês, francês, espanhol, italiano, aprende tudo. Mas não entende nada de

pintura. Não tem paciência, para desgosto do Constantin‖ (TEZZA, 1998, p. 192). Ariadne

recebe a incumbência de ciceronear Tato, mostrando a casa, as obras pertencentes à família.

E, assim, nesse percurso, a pedido do pai, ela indicará onde está a cabeça de Modigliani.

Ariadne, em suas posições, tende a refutar o que fora dito por seu pai, pelo ―prazer

gratuito, quase biológico, de dizer o contrário‖ (idem, ibidem, p. 208). Apesar de,

aparentemente, não dominar muito o assunto sobre as artes plásticas, o que poderia ser

confirmado pelas palavras da mãe acima citadas, Adne apresenta coerência em suas

colocações, chegando mesmo a impressionar Tato. Ela alega que a convivência com o pai

aflorou os seus conhecimentos artísticos:

— Para quem não entende nada de pintura, segundo a tua mãe, o que você diz...

Ela riu, faceira:

56

— Ora, Tato! A pintura é o único assunto do meu pai! Pintura e dinheiro! Eu estou só

repetindo o que ouço, não se impressione tanto – e ela deu a sua risada saborosa (TEZZA,

1998, p. 208).

A filha do marchand estimula a discussão com o pintor quando coloca que ―ler é

melhor do que ver‖. Tato rebate dizendo que ―ler é ver‖ e Ariadne complementa sua frase

primeira, contestando a resposta de Tato, quando diz que ―os cegos leem um livro, mas não

veem um quadro‖ (idem, ibidem, p. 206). Esse seu ponto de vista nos direciona ao aforismo,

anteriormente tratado, ―a pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala‖.

Coincidentemente, segundo à mitologia grega, Ariadne, filha do rei Minos, rei de

Creta, foi responsável por salvar Teseu do labirinto, entregando-lhe um novelo. À medida

que o fio se desenrolava, o caminho de volta ia sendo indicado. Assim como a da mitologia, a

Ariadne do romance de Tezza conduz Tato para que o mesmo alcance o seu objetivo.

A certeza de Tato, durante o percurso, é revelada pela frase: ―eu sei que Ariadne me

levará até ela, quadro a quadro‖ (idem, ibidem, p. 197), o que se consumou no momento do

grande e esperado encontro entre Tato e a cabeça de Modigliani, enfim:

Um espaço curto; uma torre justa – e afinal Ariadne encontrou o interruptor da luz, atrás da

porta que ela fechou atrás de nós. De algum lugar veio uma luz vaga e amarela. E ali estava

a cabeça de Modigliani. Sem pompa, colocada torta, ao acaso, sobre uma cômoda velha,

como quem largasse um objeto, apressado, porque tem algo mais importante a fazer (idem,

ibidem, p. 251).

2.2 – ESTRUTURA NARRATIVA

Tezza também foi leitor voraz de romances policiais, mas o que o instigava não era o

fato de escrever uma intriga policial, e sim manter a tensão na narrativa. No romance em

questão, Tezza mantêm a tensão constante e o ritmo de suspense por meio da intercalação das

tramas narrativas. O suspense no romance está presente desde o início da narrativa por meio

de pequenas pistas – muitas enganosas – intercaladas com a história da cabeça falsa do

57

italiano Modigliani. A tensão intensifica-se ainda mais a partir da última parte da trama,

quando as histórias intercaladas se entrecruzam.

O paralelismo de narrativas é também mais uma marca da obra de Tezza; seus

romances são reconhecidos pela alternância de capítulos, ou seja, por duas histórias paralelas

que acabam por encontrar-se. Em algumas de suas obras, esse entrecruzar de narrativas é

construído pela técnica epistolar. Entende-se por gênero epistolar, segundo o dicionário de

Carlos Ceia15

:

Composição datada e escrita por um indivíduo ou em nome de um grupo com o objectivo

de ser recebida por um destinatário. O termo tem uso antigo e constitui modo literário

importante a partir do conjunto de textos do Novo Testamento que ficaram conhecidos por

epístolas. Neste sentido, distingue-se uma epístola de uma carta comum, pois não se destina

à simples comunicação de factos de natureza pessoal ou familiar, aproximando-se mais da

crónica histórica que procura relatar acontecimentos do passado. A utilização do termo

alarga-se, depois, a todo o tipo de correspondência privada ou oficial, literária ou filosófica,

religiosa ou política, pelo que a partir desta generalização se torna difícil estabelecer com

rigor a diferença entre uma epístola e uma carta.

Para Bakhtin (1988, p. 159-161), a hibridização decorre tanto da introdução de

gêneros intercalados, tais como diários, relatos de viagens, cartas, biografias, como da

estilização ou da paródia. E, na trama narrativa em análise, a inserção da epístola e de

narrativas sobre telas caracteriza o hibridismo.

Conforme posto, em Breve espaço entre cor e sombra, há duas narrativas distintas: a

de Eduardo Simmone, vulgo Tato, e a de uma mulher italiana, narrativa esta que pode ser lida

por meio de uma carta destinada ao protagonista. Assim sendo:

No contraponto do discurso de Tato com sua ideologia da angústia e solidão, temos a carta

da italiana, igualmente verossímil e consistente em termos ideológicos. Seu longo e

pungente discurso epistolar, intercalando a narrativa do pintor – um servindo ao outro (pela

própria inserção) como elemento do suspense. Os dois discursos diferem tanto sintática

quanto ideologicamente, enfatizando oposições que se marcam pelos do homem e da

mulher, pela geração, pela distância temporal e espacial e por diferentes sistemas de

valores. No entanto, estas oposições concretizadas em dois pontos de vista sobre o mundo

15

CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. 2005. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/>.

Acesso em: 17 mar. 2010.

58

acabam por se iluminar mutuamente, um possibilitando a melhor compreensão do outro

(BERNARDI, 1998)16

.

O discurso de Tato, essencialmente de voz masculina, é repleto de reflexões sobre a

inutilidade da arte e as confusas relações familiares e sociais, especialmente o relacionamento

com a mãe e com seu ex-mentor, Aníbal. Em contraponto, o discurso da italiana, marcado

pela voz feminina e europeia, vai, pouco a pouco, revelando traços da personalidade de Tato:

É curioso e extremamente poético o jogo que se estabelece entre eles. Nas palavras da

italiana, o perfil de Tato vai ficando cada vez mais nítido e rico em detalhes. Ao contrário,

nos desenhos que Tato lhe enviara, as linhas vão se esmaecendo e, no final, a italiana pouco

se reconhecesse (FERREIRA, 1998)17

.

A italiana, uma crítica de arte de 40 anos, em seu discurso confessional, expõe sua

visão feminina de mundo, sua fragilidade, medos e anseios; seu discurso é construído

mediante desenhos-carta que Tato lhe enviara ao longo de um ano de correspondências. Seu

discurso epistolar abrange sessenta e uma páginas de um total de duzentas e sessenta e seis

que compõe o romance integral. A epístola é dividida em nove partes, cortando a narrativa de

Tato em iguais nove momentos.

Ela inicia a carta avisando, de antemão, que a sua intenção é falar sobre sua vida:

―Tato, meu querido: Esta é a última carta que escrevo a você e não quero deixar nenhuma

lacuna. Você sabe tão pouco de mim (na verdade, não sabe nada), e isso me incomoda‖

(TEZZA, 1998, p. 44). E ainda, em diversos trechos, enfatiza o escopo dessa carta: ―Eu estava

(acostume-se: vou falar muito de mim mesma nessa carta; eu preciso falar tudo, e como eu

não acredito em psicanálise e não tenho exatamente intimidade com mais ninguém, escolhi

você para me ouvir, uma primeira e última vez)‖ (idem, ibidem, p. 47).

16

BERNARDI, Rosse Marye. O espaço do suspense: uma leitura de Breve espaço entre cor e sombra, romance

de Cristovão Tezza. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_jul_revletras.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 17

FERREIRA, José Guilherme R. Tezza expõe dilemas da representação. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr_tardesp.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.

59

Nas últimas linhas, na despedida final da carta, a italiana, por fim, sente-se ―esvaziada

como num fim de chuva‖ (TEZZA, 1998, p. 237), por tanto ter falado e desabafado sobre si

mesma. Em reforço ao desabafo desesperado dessa mulher de 40 anos, a personagem Tato

Simmone vai sendo construída, pouco a pouco, por meio de sua voz, da voz epistolar, e das

vozes de outras personagens:

O personagem Tato não se caracteriza por um caráter ou por um espaço social definido e é

articulado narrativamente pelo discurso do outro. Sua imagem é delineada por vozes

circundantes que não o determinam como um pintor medíocre nem como um gênio

sufocado pelo mestre, mas pelas suas dificuldades de enfrentamento da realidade

(MORAES, 2001, p. 122)18

.

Breve espaço entre cor e sombra gira em torno da falsa cabeça de Modigliani e tem,

por intenção, trabalhar a temática no terreno das artes plásticas. A escultura de Modigliani,

uma cabeça de pedra, viaja de Roma a Nova York, de Nova York ao Brasil, e no Brasil, mais

precisamente em Curitiba, ela termina sua saga.

Tanto Isaura, mãe de Tato, quanto a amiga italiana atribuíram autenticidade à cabeça

de Modigliani. Ambas alegaram que a cabeça era verdadeira, fazendo, assim, a peça

escultórica chegar às mãos e ao acervo de Richard Constantin. A Tato ficou a incumbência de

recuperar a peça supostamente falsa, salvando, assim, a reputação da mãe e da amiga italiana.

Em um dos flashbacks do romance, Tato relembra o diálogo que teve com a mãe,

quando esta lhe pede que roube a cabeça de Modigliani, devolvendo, pois, sua teoria do

porquê da aproximação de Constantin e do porquê do marchand ter comprado uma cabeça

falsa; mas é claro que isso não passa de suposições, pois a intenção verdadeira não é exposta

na narrativa:

Comecei imediatamente a desenvolver uma teoria conspiratória: Richard Constantin sabe

que eu sou filho de dona Isaura, e se aproximou de mim com a intenção de me fazer parte

18

MORAES, Taiza Mara Rauen. Plurilinguismo em: Breve espaço entre cor e sombra de Cristovão Tezza. 2001.

Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/download/219/217>. Acesso em: 29 abr.

2010.

60

da chantagem, de algum modo que eu não conseguia descobrir. Mas por que a senhora não

devolveu o dinheiro e pegou a maldita cabeça de volta? Ele não quer o dinheiro que ele

pagou. Ele quer muito mais que isso. Ele quer uma indenização, a forma mais sofisticada de

extorsão – e num processo em um tribunal americano, não brasileiro. Bem, mas a senhora

sabia que a cabeça era falsa? É claro que não! Como você pode pensar uma coisa dessas

da sua mãe? Há o testemunho de Torres Capalans, citado por Max Aub! Além disso, depois

do vexame mundial de Livorno, com aquelas cabeças falsas e horríveis jogadas por

brincalhões no fosso da cidade para corresponder à lenda de que Modigliani teria

arremessado esculturas na água ao se definir pela pintura, quem iria se aventurar a falsificá-

lo novamente? Bem, talvez justamente por isso. É um álibi e tanto. Mas é uma bela cabeça!

É um trabalho de gênio! Veja e comprove! Há diferença? (TEZZA, 1998, p. 197).

A cabeça detém um simbolismo um tanto quanto interessante. Além de ser uma cabeça

sem corpo, mesmo assim ela se desloca de um lugar a outro, de uma mão à outra, e representa

um símbolo de poder dentro do romance. O poder de rotular de falsário a pessoa que a passou

adiante e de conferir a quem a possui a faculdade de revelar a identidade de quem a vendeu,

destruindo-lhe, dessa maneira, a reputação.

A italiana, por sua vez, lança suas angústias, quando, em alguns momentos, tece, na

carta destinada a Tato, comentários sobre a felicidade que sentiu quando seu ex-marido,

Domenico, vendeu a cabeça e o embaraço que isso lhe acarretou posteriormente, visto ela ter

tomado consciência de que havia repassado uma cabeça falsa. Esses dois momentos revelados

pela italiana são ilustrados pelas seguintes passagens:

Ele estava muito feliz pela cabeça de Modigliani que eu passei adiante (TEZZA, 1998, p.

107).

Tinha vendido, muito bem vendido aliás, três álbuns de fotografias do século passado, e

mais uma partitura original de Puccini. Um bom dinheiro para um longo tempo. E mais

aquela maldita cabeça de pedra do meu marido – do ex-marido, faz dois dias que não somos

mais nada, nem nunca fomos casados mesmo, para um francês intermediário, que aceitou

Modigliani sem perguntar muito, porque (os olhos dele diziam) já tinha um comprador, um

comprador que perguntaria menos ainda. (Essa foi, digamos, a parte insegura: eu nunca

gostei daquela cabeça; no mínimo Domenico deveria ter dito a verdade para mim, antes de

fazê-la queimar na minha mão.) (idem, ibidem, p. 83).

[...] emprestar o meu prestígio para vender uma cabeça falsa de Modigliani no mercado de

Nova York, talvez ambas as vergonhas, e a vergonha é o mais corrosivo, destruidor, mortal

dos sentimentos (idem, ibidem, p. 236).

Para Chevalier (2008, p. 151), a cabeça simboliza o ardor do princípio ativo e abrange

a autoridade de governar e instruir. No mundo Celta, a cabeça é objeto de várias práticas e

61

crenças, sendo seu costume principal a guerra, em que os gauleses cortavam a cabeça de seus

inimigos vencidos para levarem-na, triunfalmente, consigo. A cabeça simbolizava, dessa

forma, a força e o valor do guerreiro adversário, sendo incorporada pelo vencedor.

Em Breve espaço entre cor e sombra, pode-se aplicar esse simbolismo da cabeça ao

―vencedor‖, nesse caso, Richard Constantin. Ele é quem carrega a cabeça triunfalmente, a

qual, apesar de se tratar de uma cabeça teoricamente esculpida por Modigliani, representa

também a cabeça de suas ―rivais‖ que a repassaram, acarretando, assim, a morte delas, ou

melhor, o suicídio profissional delas.

Mas é Tato quem, por fim, consegue capturar a cabeça de Modigliani e, como quem

segura um grande prêmio, momentos depois da vitória, desabafa: ―Soltei o cinto de segurança,

estiquei minhas pernas o quanto pude e fechei o olho bom, pensando no meu troféu: a falsa

cabeça de Modigliani‖ (TEZZA, 1998, p. 264).

O romance inicia-se com o enterro de Aníbal Marsotti, o Biba, ―um dos mais refinados

coloristas do país‖ (idem, ibidem, p. 08), que era pintor e ex-mestre do protagonista Eduardo

Simmone, o Tato, que tem 28 anos e que mora sozinho em uma casa-ateliê, em Curitiba: ―Um

ateliê de 250 m². Como se não bastasse, um apartamento, dos antigos, de 184 m², num

segundo e último andar, sem síndico e sem vizinho‖ (idem, ibidem, p. 36). Apesar de ser

pintor, Tato nunca fez uma exposição. Vendeu um único quadro – à sua própria mãe, que o

esqueceu, ou melhor, que ―deixou a compra para trás, cheia de pó no ateliê do filho‖ (idem,

ibidem, p. 15). Aliás, ele é sustentado por ela, que é uma marchand residente em Nova York.

Mesmo morto, as lembranças de Biba, as lembranças das palavras de Biba,

acompanham Tato na trajetória do romance. Ele, o tutor, aparece de forma rude, severa e com

duras críticas sobre o trabalho de Tato, tanto que, antes de seu falecimento, o discípulo afasta-

se dele por não o aguentar mais:

Eu me afastei porque eu estava cansado de ser espancado pela sua língua. Que eu seria

sempre um nada. Que a minha pintura era suja e descritiva, de um figurativismo rastaquera.

62

Que na melhor das hipóteses a minha obra serviria como mural de presidiário. Que eu devia

esquecer tudo e começar tudo de novo. (Agora, quem sabe ele tenha razão?) Que eu estava

descobrindo as vantagens da roda. Mas o pior de tudo: eu não tenho desculpa, porque sou

rico. De artista pobre, perdoa-se tudo, principalmente a mediocridade. Mas, aos ricos, o

Reino da Justiça. [...] Foda-se Tato Simmone. Você nunca vai ser um verdadeiro artista. Eu

falo isso para o seu bem (TEZZA, 1998, p. 08).

Mesmo se afastando em ―legítima defesa‖, Tato reconhece o valor e o que seu ex-

mestre representou em sua carreira como pintor, demonstrando gratidão e respeito à sua

figura: ―Tudo que eu sei de pintura (e talvez até o fato de eu levar a pintura a sério – o meu

Destino, para ser grandiloquente, o fato de que eu não posso mais parar de pintar até a morte,

e essa condenação soa como um soluço para Aníbal, o último), tudo eu devo a ele‖ (idem,

ibidem, p. 09).

As críticas de Aníbal aparentam, algumas vezes, ser construtivas, como se fossem

tentativas de fazer deslanchar o crescimento profissional de Tato, mas, em outros momentos,

parecem destrutivas, invejosas e ciumentas. Mas, assim como é de interesse do marchand,

Aníbal, enquanto mestre, procura também, de alguma forma, obter qualquer lucro em cima de

Tato:

Lembrei dos meses e meses de sessão de desenho sob orientação de Aníbal, que rasgava um

atrás do outro, com uma fúria de diretor de teatro na véspera da grande estréia, que jamais

haveria: Um lixo! Você nunca vai aprender a desenhar! Olhe esse braço! Tudo bem que ele

seja três vezes maior que o outro, desde que se equilibre; mas esse arrasta o quadro pela

ribanceira. Uma merda. O olho de quem vê cai para a direita como uma pedra. Ponha

alguma coisa do outro lado. Do outro lado havia uma carreira de cocaína, mas só depois

que eu terminasse quinze desenhos. Me dê esse aqui. Esse está bom. Eu vendo pra você.

Meio a meio. Tudo bem? (idem, ibidem, p. 102).

É no enterro do ex-mestre que entra em cena a figura enigmática de Richard

Constantin, ―um senhor de uns cinquenta, sessenta anos. Conservadão. Magro. Elegante‖

(idem, ibidem, p. 174), que tanto pode ser um marchand e um colecionador erudito de grande

sabedoria artística, quanto um vigarista. Constantin aproxima-se de Tato com intuito ainda

desconhecido, sendo, por meio da voz do protagonista que se conhece um pouco dessa figura:

63

— Um marchand que conheci no enterro do Biba. Tem um carro japonês, que ele dirige

mal, e sabe tudo sobre pintura. Um mestre. Melhor ainda: conhece meus quadros. Pelo

menos um deles (TEZZA, 1998, p. 39).

Constantin, eis o nome! O quase lendário Richard Constantin (mas ele já não tinha

desaparecido?), uma mistura de marchand e de pirata que há algum tempo habitou o

imaginário magro das artes plásticas da cidade, é como a visita de uma velha senhora que

há de nos redimir a todos: nas conversas de bar, tanto seria o falsificador que passou três,

quatro, às vezes nove anos numa cadeia de Paris por traficar Picassos que ele mesmo

pintava, quanto o Midas capaz de transformar um pintor de paredes num assombro de

bienal, em geral com vida curta porém lucrativa – para ele (idem, ibidem, p. 14).

Richard Constantin, além de ser colecionador de artes e de possuir um vasto acervo

pessoal, aparenta querer agenciar o jovem pintor, afinal, essa é a intenção de qualquer

marchand, descobrir novos talentos, obter participação nos lucros e construir, assim, um

nome. O protagonista, ao perceber a intenção da aproximação de Constantin, revela: ―Ele

finalmente sorriu, um sorriso discreto – aquilo era um enterro – mas generoso e reconfortante;

transformou-se em mãos estendidas, quase num abraço comovido, como quem encontra,

afinal, o seu bem mais precioso: um grande artista‖ (idem, ibidem, p. 14).

A preocupação de Constantin com o pupilo, excluindo o interesse pelo valor comercial

de suas telas, difere da de Aníbal Marsotti, sendo ambas percebidas por meio de seus

respectivos discursos. Enquanto o segundo teme a insignificância do artista, a mediocridade

do pintor, o primeiro visa tão-somente o lucro com as obras de arte. A respeito disso,

acrescenta-se:

Ao diálogo direto subjaz uma intenção pragmática, o marchand diferentemente do professor

não se interessava pelo processo mas pelo produto acabado e pelos resultados comerciais de

futuras transações no mercado de arte. Constantin representa uma voz inserida no contexto

da indústria cultural diferentemente de Marsotti que avaliava a obra de arte a partir de

processos individuais (MORAES, 2001, p. 125)19

.

19

MORAES, Taiza Mara Rauen. Plurilinguismo em: Breve espaço entre cor e sombra de Cristovão Tezza. 2001.

Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/download/219/217>. Acesso em: 29 abr.

2010.

64

Os diálogos revelam o profissionalismo comercial e persuasivo de Constantin contra a

sensibilidade artística de Marsotti. Percebe-se, pela voz do marchand, suas impressões sobre

o falecido mestre, cuja prática artística supera a teoria:

Nunca conheci alguém tão incapaz de falar sobre pintura quanto ele. Era um intuitivo em

estado bruto. De um lado, isso ajuda bastante um pintor, a ignorância, o gosto pela magia

negra, pelos horóscopos, por todo esse lixo medieval que sobrevive per omnia secula

seculorum. Quem apenas vê, aceita qualquer coisa: mundo é uma imagem. Mas, por outro

lado, isso limita, porque o intuitivo não consegue pensar. Você, que conheceu o Aníbal de

perto, sabe disso. Um bloco imóvel de pedra. Nenhum lampejo maior de inteligência.

Quando só pinta, é suportável; às vezes, bom; quem sabe, muito bom, aqui e ali (TEZZA,

1998, p. 20).

Tato também reconhece, no falecido mestre, o grande artista que fora, mas cuja

decadência o fez se entregar às drogas e, por conseguinte, arruinar sua carreira e sua vida:

―Ele foi um grande artista. Nos últimos anos não fez mais nada que prestasse. Começou a

produzir em série uma imitação kitsch dele mesmo, vagabunda e baratíssima, para conseguir

dinheiro fácil e comprar cocaína. Lixo em cima de lixo‖ (idem, ibidem, p. 111).

Não obstante, através de outras vozes – as quais conhecem a reputação de Constantin

enquanto marchand e enquanto pessoa física, caso este da vampira –, adjetiva-se a

personalidade dele: ―Esse sujeito é um ladrão, falsificador de quadros, contrabandista, um

estelionatário processado em quatro países; e só veio para em Curitiba para se esconder. –

Abaixou a voz, a última carta: — E é chantagista. Tome cuidado‖ (idem, ibidem, p. 115).

Para além disso, é Ariadne, uma das filhas de Constantin, quem o descreve enquanto

colecionador e quem, ao comentar sobre o acervo que o mesmo possui, leva-nos a perceber

que tipo de profissional ele é: ―— Meu pai gosta de revezar os quadros da sala. Mas, é claro,

os melhores, ou os verdadeiros – e ela riu, divertindo-se com a brincadeira – ele prefere

deixar mais tempo aqui. Esse Monet nunca desceu. O falso Modigliani faz tempo que não vai

para a sala, não sei por quê‖ (idem, ibidem, p. 252).

65

Ainda no enterro, entra em cena a figura da vampira, que é amiga de Aníbal e cujo

nome não é revelado. A partir desse encontro, ela tenta tornar-se também amiga de Tato. E

agora é Constantin quem revela a Tato suas impressões sobre a tal vampira, alertando-o:

Há um mês estava pendurada no pescoço do Aníbal (desculpe-me falar desse modo, mas é

verdade), sugando até a última gota do sangue e do talento dele. Agora que ele morreu, ela

está momentaneamente sem ar. É visível o desconforto dela, a inanição. Você percebeu?

Trata-se de uma vampira. Ela agora vai se jogar em você com todas as unhas. Mas nem sei

por que estou falando disso. É claro que você já percebeu o que ela quer (TEZZA, 1998, p.

17).

Apesar da coincidência do codinome remeter diretamente a outro escritor, o também

coincidentemente curitibano, Dalton Trevisan, Tezza faz uso da palavra vampira no sentido

figurativo da palavra, o que extingue qualquer vínculo com o contista Trevisan. É válido

ressaltar que essa reminiscência é devida ao fato de Trevisan, além de ter publicado um livro

de contos intitulado O Vampiro de Curitiba (1965), ter também recebido o codinome de ―O

vampiro de Curitiba‖ por sua personalidade retraída e sua vida reclusa, sendo, pois, avesso a

entrevistas e aparições públicas. Dessa forma, o fato de o nome vampiresco aparecer na obra é

apenas uma coincidência, e não uma referência a Dalton Trevisan. A vampira de Tezza é uma

mulher que se aproveita, que suga o sangue das vítimas, metaforicamente falando.

É justamente a ―vítima‖ Tato Simmone quem brinca com o nome e com o significado

da palavra atribuído à personagem da vampira: ―[...] uma vampira interessada em me ver, só

para sugar até a última gota do meu sangue‖ (idem, ibidem, p. 23).

Por meio dessas personagens e de mais uma amiga de Tato, a fiel e gorda Dora, que

está sempre presente na vida do amigo, e também por meio de alguns telefonemas

inoportunos do pai, o romance vai sendo articulado. Tato descreve essas personagens,

respectivamente, da seguinte maneira:

Ela (Dora) é quase alguém da família para mim, o que é ao mesmo tempo confortável (uma

boa família está sempre à mão, em caso de desespero) e incômodo (por melhor que seja, a

família é uma condenação até o último degrau, no término dos tempos — ela é mais durável

que a mais duradoura das obras de arte) (idem, ibidem, p. 38).

66

Meu pai só não está na cadeia porque minha mãe – que levou um tiro bêbado na coxa, na

última discussão – preferiu deixá-lo solto, mas sem nada. Afinal, o dinheiro sempre foi dela

mesmo. Um acordo que ele aceitou por ser um homem substancialmente bom: tamanha

culpa, tentativa de homicídio, merecia essa pena severa, a pior de todas, a miséria, que ele

aceitou batendo no peito a sua dor e largando a bebida por quarenta dias (TEZZA, 1998, p.

60).

A ação concentra-se nos poucos dias que sucedem o velório. São exatamente três dias.

Do enterro que ocorre na quinta-feira a uma festa que acontece no sábado. No ínterim da

narrativa, na sexta-feira, Tato convida Constantin a visitar sua casa-ateliê para este analisar

seus quadros. O protagonista é quem enfatiza as datas e externa as expectativas criadas em

torno de cada uma delas: ―— Mas é disso mesmo. Um tapa-olho. De pirata. Amanhã tenho

um encontro com um marchand muito importante que pode salvar minha vida e eu não quero

aparecer com um olho roxo. Sábado tenho uma festa que não posso perder‖ (idem, ibidem, p.

133). Em outro trecho, essa mesma questão também pode ser observada:

Acertamos às duas da tarde, quando o ateliê está no seu ponto ótimo de luz, se o dia estiver

claro. [...] Não só ao mestre de amanhã, mas também à vampira de hoje, que, em me

sugando o sangue, haverá de frestar minhas telas mais secretas; também ela recomeça hoje,

uma quinta-feira luminosa que Deus resolve passar a limpo um pequeno trecho de sua obra

– suprime Biba com uma pincelada e nos dedica, aos que restaram, alguma atenção quase

entusiasmada (idem, ibidem, p. 78).

É durante a festa, a qual ocorrerá na residência de Richard Constantin, que o pintor

poderá não apenas apreciar a coleção do marchand, como também realizar a tarefa que sua

mãe lhe solicitara, isto é, sair de lá, escondido, com a suposta cabeça de Modigliani em mãos.

Leia-se: furtar a cabeça de Modigliani. Com esse convite, Constantin assina sua sentença, ou

melhor, a sentença da cabeça: ―— Não se esqueça de sábado à noite! Espero você!‖ (idem,

ibidem, p. 35)

Para isso, Tato pede a ajuda de sua nova amiga, a vampira, que, mesmo sem entender

direito o propósito do roubo, decide ajudá-lo. Os dois vão juntos à festa e Tato explica-lhe

como pôr o plano em prática:

67

— Eu quero roubar uma cabeça de Modigliani, uma estátua de pedra, da casa do

Constantin. Eu nem sei se ela está de fato aí. Preciso descobrir. Minha ideia é trazer a

cabeça para cá, daqui levar até o muro e jogar naquele terreno. Levar a cabeça pela entrada

da frente é impossível. Por aqui é difícil, mas com sorte dá. Se eu consigo passar pela

cozinha, por exemplo. Em seguida, vamos de carro até a outra rua, eu desço, atravesso o

terreno, pego a estátua, e nós fugimos. Que tal? (TEZZA, 1998, p. 220).

A narrativa dura poucos dias, mas, ao mesmo tempo, a carta que a italiana escreve

relembra um dia inteiro vivenciado por eles, um ano atrás, ou seja, o dia em que ambos se

conheceram no Museu Metropolitan em Nova York. Apesar de ter se tratado de um único dia,

percebemos, por meio da narrativa da italiana, que esse dia lhe deixou marcas profundas,

marcas que ela tem carregado durante doze meses. A quantidade de detalhes que a italiana

relembra, desse primeiro e único encontro, mostra a importância que esse dia teve em sua

vida:

Não leve a mal esse meu jeito de dizer as coisas. Como essa é a minha última carta, eu não

quero deixar nada para trás, nem para depois. E você nem pode imaginar como eu tenho a

memória saturada de você, cada pedaço dela. A impressão que eu tenho é que eu não fiz

outra coisa nesses dozes meses (e sete dias) senão recompor e restaurar, peça por peça, o

mosaico do nosso encontro. Eu sei de tudo sobre ele. Fiz até um mapa, seguindo nossos

passos. Calculei distâncias. Fiz um cronograma do tempo e do espaço, baseando-me em três

referências: a hora em que você chegou (9:21h) – eu conferi no exato momento em que

você descia do táxi, porque o Metropolitan só abre às 9:30h e havia mais gente esperando –

e a hora da quitação do hotel, que tenho impressa comigo, e a despedida no aeroporto, com

aquela hora oficial e assustadora piscando atropelada em toda parte. Sei o momento em que

estivemos mais próximos: no abraço de despedida, o momento em que, afinal

decididamente, você me apertou além do razoável, mas por quatro segundos apenas, e o

momento em que estivemos mais longe (no hotel, quando você ficou na fila do check out

guardando meu lugar no meio daquela horda de turistas enquanto eu corria ao 12° andar do

hotel para pegar minha bagagem antes que eu perdesse o avião, o que, lembrando bem,

chegou a ser meu não tão secreto desejo (idem, ibidem, p. 45).

Os detalhamentos não se ativeram apenas às lembranças pontuais daquelas horas no

museu, conforme reitera a italiana: ―Há muito mais para contar, nessa catarse epistolar‖

(idem, ibidem, p. 143). Nas sessenta e uma páginas – que aparecem alternadas, iniciando na

de número quarenta e quatro e findando na de número duzentos e trinta e sete –, os atributos

físicos e aspectos da personalidade do protagonista ressaltam, transparecendo o ponto de vista

da italiana.

68

Ela o delineia como um homem ―sério‖, ―infinitamente triste‖ e ―silencioso mesmo

nas cartas‖. Ela diz que o mesmo possui ―autodomínio‖, é ―organizado‖, ―gentil‖, ―distante‖ e

de ―prometedora leveza‖; que fisicamente falando, ele tem ―a curva da testa e o nariz reto, um

pouco maior do que seria o padrão convencional‖, ―dedos tão longos‖, ―o olhar do tipo que

não se cansa, vivo e delicado, contínuo e renovante‖, ―uma pessoa povoada‖, ―uma espécie

delicada de ausência‖ (TEZZA, 1998, p. 45-86 ).

E ainda complementa, mostrando a sensibilidade do pintor, de forma mais poética,

moldando-o como ―uma delicada peça de porcelana na minha memória – toco você com

cuidado, com o cuidado (e a força) com que segurei teu braço para que você não caísse‖

(idem, ibidem, p. 223), ―alguém do ramo das artes, das belas artes‖ (idem, ibidem, p. 71), um

sujeito que ―mais parece um pintor que conta histórias que um pintor que pinta quadros‖

(idem, ibidem, p. 45).

Sobre mais ―parecer um pintor que conta histórias‖, o que é devido aos ―quadros

narrativos‖ presentes no romance, acrescenta Moraes (2010, p. 123)20

: ―Tato Simmone é

avaliado pela voz da italiana em sua carta ‗como um pintor que conta histórias‘ posição

confirmada pelo leitor, pois as narrativas de seus quadros, também estão intercaladas no

romance‖.

Inconteste é a afirmação de que o pintor é também um narrador. Diferentemente do

escritor, o pintor:

[...] deve saber narrar com o pincel. [...], pintar consiste em transpor uma sequência

narrativa, e portanto temporal, para o espaço de visibilidade que é a do quadro; em

descobrir os meios de representar fielmente uma história respeitando um certo número de

exigências próprias à composição pictórica (LICHTENSTEIN, 2005, p. 13).

Apesar de seus meios de expressão serem diferentes, o pintor e o poeta:

20

MORAES, Taiza Mara Rauen. Plurilinguismo em: Breve espaço entre cor e sombra de Cristovão Tezza. 2001.

Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/download/219/217>. Acesso em: 29 abr.

2010.

69

[...] têm em comum um gosto e uma mensagem [...], o pintor usa desenho, cor e forma,

juntamente com as percepções de prado, céu, casa ou catedral, para dar forma ao deleite e

ao mistério que estão no próprio centro de nossa experiência terrestre. O poeta narra

ocorrências de energia e movimento, vinculando entre si as forças naturais dentro e fora do

homem, e exprime a solene quietude existente no coração das coisas (PRAZ, 1982, p. 60-

61).

Em resposta às cartas enviadas pela italiana, Tato envia-lhe desenhos, retratos, cujos

traços vão esfacelando com o passar do tempo. São desenhos do rosto da italiana sob o olhar

do pintor, treze ou quatorze ―fotogramas que se movem não no espaço, mas no avesso do

tempo: a fotografia que, de tanto sol, vai se apagando até a completa ausência de memória‖

(TEZZA, 1998, p. 69).

Dessa forma, por conhecer o traçado de Tato, a italiana julga-o como:

[...] um grande desenhista. Eu me senti inteira no teu primeiro desenho, o que veio com a

primeira carta, aquela meia dúzia de linhas nervosas e exatas em papel grain canson em

que a força da sugestão se somava ao detalhe absolutamente preciso dos olhos, dos lábios,

da ideia da sombra, da curva limpa da minha testa e acima de tudo da intrigante expressão

de quem quer saber quem você é, afinal – eu estava completa no teu traço, feita naquela

mesma madrugada, com o bilhete em torno, as palavras escritas como que prolongando o

desenho, o mesmo bico-de-pena, educadas, corretas e distantes – uma cópia a limpo de

você mesmo, me chamando de ―amiga‖ e encerrando (desculpe) com aquele horrível ―best

wishes from‖ de algum cartão comprado às dúzias. Mas eu não me importei com esse

detalhe. Tudo isso circundado por uma maravilhosa moldura com flores e folhas, traços de

uma paciência bordada noite adentro de que, tão leves, não se percebe o trabalho, como as

ondas de um mar japonês (idem, ibidem, p. 69).

E complementa:

Eu sei que você é um desenhista magnífico e delicado, e que se eu não tomar alguma

providência eu vou perder os teus traços – os teus traços sobre mim, cada vez mais

sintéticos e mais perfeitos, mas cujo destino é, afinal, a página totalmente em branco (idem,

ibidem, p. 144).

Certamente a curiosidade do leitor é aguçada pela não exposição dos quadros de Tato.

Apesar das críticas e das ponderações feitas ao longo de Breve espaço entre cor e sombra, o

leitor não pode avaliar pessoalmente o pintor, tendo que contentar-se com as narrativas do

mesmo. ―É engraçado: as pessoas não costumam entrar na casa dos outros sem convite, mas

vão logo dizendo, sem cerimônia, o que pensam do quadro que você pintou, como se você

70

fosse um pavilhão público, um corredor de hospital, um banco de ônibus, um guichê‖

(TEZZA, 1998, p. 123).

Apesar de conhecê-lo, em decorrência de seu perfil traçado e ilustrado pelas vozes das

demais personagens, compactuar com a opinião de Aníbal Marsotti, de Richard Constantin ou

de quem quer que seja sobre a qualidade e valia das obras de Tato Simmone é praticamente

impossível.

71

CONSIDERAÇÕES FINAIS

"A pintura não foi feita para enfeitar paredes. A pintura é uma arma, é a defesa

contra o inimigo"

(Pablo Picasso)

Sinuoso foi o caminho percorrido pela história da arte. A cada parada, a bagagem

torna-se mais extensa e mais pesada. As experiências adquiridas pelo trajeto, por vezes

deixam cicatrizes na arte. Os momentos vivenciados jamais foram apagados, quando muito

documentados em registros.

Desde o princípio, a evolução da arte acompanhou pari passu a evolução da

humanidade, levando em consideração os aspectos religiosos, sociais, culturais e econômicos.

A arte e o homem caminham lado a lado.

Em sua narrativa, o autor de Breve espaço entre cor e sombra, propõe uma reflexão

sobre diversos aspectos circundantes à temática das artes plásticas. Permeados de elementos

condizentes ao mundo, principalmente, dos pintores e dos escultores, Tezza nos leva a uma

viagem pelas cores, pincéis, formas, bronzes, macetas e ponteiros. Temos então a junção da

literatura e das artes plásticas em um mesmo romance.

A história da arte, o pintor, o mercado de arte, as falsificações, as reproduções e as

marcas intrínsecas condizentes a cada artista são os temas abordados no Capítulo 1. Esses

temas são também motivos de interesse e, por conseguinte, motivos de estudo até os dias

atuais.

Falar de arte, julgar, criticar, avaliar uma obra é uma tarefa difícil, pois requer além de

conhecimento teórico, propriedade e reconhecimento público. Essa função cabe aos críticos,

estudiosos de arte, especialistas e, em alguns casos, aos marchands.

72

Dessa forma, para analisarmos a obra em estudo, foi preciso utilizar textos teóricos, de

artes e literatura, fragmentos do romance e algumas telas, esculturas e fotografias para

ilustrarmos com mais precisão as ideias difundidas por Cristovão Tezza.

Breve espaço entre cor e sombra não se trata apenas de uma narrativa em que se tenta

descobrir a verdade sobre uma cabeça esculpida por Amedeo Modigliani. Breve espaço entre

cor e sombra não se trata apenas dos três dias vivenciados pelo pintor Tato Simmone. Breve

espaço entre cor e sombra é uma instigante discussão sobre a arte, mostrando-nos como ela e

a literatura dialogam entre si.

O poeta expressa-se fazendo uso de seu lápis, o pintor, de seu pincel. O poeta dá vida

às palavras, o pintor, às cores. Apesar da distinção do meio, ambos, de uma forma ou de outra,

comunicam-se, expressando seus sentimentos e ideias por meio de palavras e/ou de imagens,

por meio da linguagem verbal e da não verbal.

Acontece que, nesse romance em específico, deparamo-nos com um pintor que,

genialmente, ao invés de nos mostrar suas telas, narra-as para nós, o que chamamos de

―quadros narrativos‖. Como não há uma imagem precisa, pontual, cabe então ao leitor

interpretar, imaginar e lançar uma avaliação pessoal acerca das obras. As telas constroem-se

na cabeça dos leitores, podendo variar, de acordo com a leitura e a imaginação de cada um.

Dessa forma, voltamos ao tão conhecido axioma: ut pictura poesis.

Os estudos condizentes as relações de proximidade e distanciamento entre a literatura

e a pintura e/ou a escultura ressoam tempos longínquos, mas, no entanto, são temas

recorrentes da atualidade. Além disso, a riqueza da temática permite que esse estudo seja

passível de um aprofundamento futuro. Finalizando com as palavras de Vicente do Rego

Monteiro (apud AYALA, 2003, p. 59-65) ―[...] creio que pintar é uma linguagem, um meio de

comunicação tão velho como o mundo. / Tenho um grande respeito pelo espaço. O espaço

73

para o artista é como o oceano para o marinheiro. Pode ser vida e morte. / É preciso viver,

pintar e ter paciência. Só acredito no poeta que morre pela sua poesia‖.

74

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo:

HUCITEC, 1988.

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cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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sombra, romance de Cristovão Tezza. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_jul_revletras.htm>. Acesso

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BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 7. ed. São Paulo: Ática, 2008.

CASTELLO, José. Tezza discute utilidade da arte em romance denso. 1998. Disponível em:

<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_ago.htm>. Acesso em: 17 out.

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<http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/>. Acesso em: 17 mar. 2010.

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