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Marie-Helene Catherine Torres - Traduzir o Brasil Literario

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LIVRO COMPLETO

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  • Traduzir o Brasil Literrio

  • Traduzir o Brasil Literrio

    Paratexto e discurso de acompanhamento

    Volume 1

    Traduo do francs de Marlova Aseff; Eleonora Castelli

  • Reviso da traduo:Marie-Hlne Catherine Torres

    Reviso:Andra Padro; Srgio Meira

    Imagem Capa:Quadro de Martha Maria

    Capa, Projeto Grfico e Diagramao:

    Cludio Jos Girardi

    Impresso:

    Grfica e Editora Copiart

    Rua So Joo, 247 - Morrotes

    Tubaro - Santa Catarina

    [email protected]

    Fone: 48 3626 4481

    T68 Traduzir o Brasil literrio / traduo do francs de Marlova Aseff; Eleonora Castelli; reviso de traduo: Marie-Hlne Catherine Torres . - - Tubaro : Copiart, 2011. 136 p. : il. color. ; 21 cm Contedo: v. 1. Paratexto e discurso de acompanhamento. ISBN 978-85-99554-54-8

    1. Traduo e interpretao. 2. Literatura brasileira. 3. Literatura francesa. I. Torres, Marie-Hlne Catherine. II. Ttulo: Paratexto e discurso de acompanhamento.

    CDD (21. ed.) 418.02

    Ficha Catalogrfica

    Elaborada por: Sibele Meneghel Bittencourt CRB 14/244

  • Sumrio

    Prefcio 11

    A visualizao das tradues 17

    Parte 1

    As marcas naturalizantes nos romances coloniais de Alencar 21

    Da ocultao importao da brasilidade 24

    Desvio e perspectiva no gnero e na coleo 34

    Parte 2

    Discursos etnocntricos na trilogia de Machado de Assis 47

    O implcito colonial em Dom Casmurro 48

  • Do discurso acadmico ao miditico em Quincas Borba 57Ambiguidade do aparato paratextual em Memrias Pstumas de Brs Cubas 65Reedio em trompe-loeil 72O estatuto das tradues 77

    Parte 3

    A cultura do Serto 81

    Ideologia colonial em Os Sertes 82Revelao de uma cultura outra em Grande Serto: Veredas 100

    Mutismo, anexao e etnocentrismo 121

    Bibliografia 129

  • Prefcio

    De Germana Henriques Pereira de Sousa

    A obra que ora apresentamos faz parte de uma pesquisa mais ampla acerca da verbalizao em francs, por meio da traduo, de obras da literatura brasileira, do romantismo ao realismo, e do mo-dernismo literatura contempornea. A pesquisadora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Marie-Hlne Torres, publicou esta pesquisa em primeira mo (2004) na importante edi-tora francesa Artois Presses Universit, da Universidade de Aix-en--Provence, especializada em publicao de obras cujo foco so os es-tudos da traduo, ou como dizem os franceses, a tradutologia.

    Traduzir o Brasil Literrio: paratexto e discurso de acompa-nhamento aprofunda o estudo em torno das trocas culturais entre o Brasil e a Frana veiculadas pela traduo do cnone brasileiro. O objetivo primeiro do estudo de Marie-Hlne Torres mostrar como os textos de acompanhamento autenticam e legitimam a obra no contexto da lngua de chegada, bem como, na contramo desse movimento, podem ser identificadas no gesto tradutrio marcas na-turalizadoras no/e em torno do texto traduzido. A autora tambm analisa as capas, contracapas e capa interna, alm do texto da contra-capa (prire dinsrer ou press release), nomeando esse tipo de estudo de anlise morfolgica.

  • 12 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Os paratextos emolduram a obra traduzida e garantem um espao de visibilidade voz do tradutor, mas no s, os discursos de acompanhamento ancoram a obra no horizonte da crtica literria e definem parmetros que conduziro leitura e recepo do texto traduzido na cultura de chegada.

    Como sabido, a obra traduzida um hbrido cultural. O gesto tradutrio precisa vir legitimado e acompanhado de justifica-tivas que sustentem a sua passagem para uma lngua estranha. Tm elas a funo de ressaltar e, ao mesmo tempo, de aplacar a angstia do leitor diante dessa estranheza. O discurso de acompanhamento amplia e reduz em um s movimento a estraneidade do texto tra-duzido. Da este necessitar de balizas que funcionam como faris para guiar o leitor no especializado, mas tambm o crtico, nesses mares nunca dantes navegados. Apesar da proximidade entre lnguas que tm a mesma origem latina, quais sejam o francs e o portugus do Brasil, v-se na leitura de Traduzir o Brasil Literrio o quo pode ser penosa a passagem de um texto para outro contexto cultural, e no apenas pelas dificuldades inerentes ao trabalho tradutrio, mas pelas sutilezas que encerram em nossa lngua portuguesa a escrita de um Jos de Alencar, de um Machado de Assis, de um Euclides da Cunha ou de um Joo Guimares Rosa. De maneira acurada, como quem estudou a formao da literatura brasileira pelo vis de Antonio Candido, Torres busca nas obras traduzidas desses grandes romancistas e ensastas bra-sileiros as marcas em francs dessa formao, procurando evidenciar os percalos da apresentao dessas obras para o pblico francs e como os tradutores, de diferentes pocas e contextos na histria da recepo crtica francesa, parecem ignorar a relao sistmica entre Alencar e Machado ou entre Euclides da Cunha e Guimares Rosa.

    O leitor pode estar pensando neste exato momento: mas por que o leitor francs teria que perceber aquilo que Candido chama de passagem de tocha entre corredores, metfora que ilustra o movi-mento formativo da literatura brasileira, na verso francesa de nossa literatura? Podemos arriscar, sem medo do engano, que a traduo vai alm da passagem de uma lngua para outra, ela , sobretudo, transferncia cultural, desvelamento e enfrentamento do outro; como afirma Antoine Berman, em a Prova do estrangeiro, a traduo

  • Traduzir o Brasil Literrio | 13

    a relao com o Outro ou no nada. Os estudos das tradues partem de uma contextualizao

    inicial dos romances brasileiros em nosso sistema literrio. A fortuna crtica convocada para fundamentar a anlise das obras no contexto de sua produo feita com base em grandes estudiosos da literatura brasileira, tais como Antonio Candido, Alfredo Bosi, Jos Verssimo, Afrnio Peixoto, Walnice Nogueira Galvo, entre outros. O emba-samento terico para a crtica de traduo igualmente criterioso, partindo de trabalhos anlogos, como aqueles realizados por Jos Lambert, Katrin van Bragt, e de estudos tericos incontornveis para a anlise crtica de traduo no sistema receptor, como aqueles de Gideon Toury, e de Lambert e Hendrik van Gorp. Torres ainda fundamenta suas anlises da obra traduzida no mtodo crtico de Antoine Berman. A definio e descrio dos paratextos feita com base na obra de Genette, Seuils.

    O Brasil literrio em francs mostrado por Marie-Hlne em trs atos decisivos neste primeiro volume daquilo que intenta ser uma srie: 1) As marcas naturalizantes nos romances coloniais de Jos de Alencar; 2) Discursos etnocntricos na trilogia de Machado de Assis; e 3) a Cultura do Serto. interessante acompanhar a verti-calizao das anlises, sobretudo quando a autora, em franca ironia, apesar da origem francesa, ou talvez graas a esta, flagra particulari-dades das tradues de O Guarani e de Iracema, de Jos de Alencar: o escritor cearense seria de origem portuguesa, e O Guarani seria pu-blicado como um romance de aventuras cujo subttulo na traduo francesa Le Fils du Soleil (O Filho do Sol), numa franca aluso aos povos Incas e Maias. Machado de Assis, referncia maior do panteo nacional das letras parece ter origem incerta, brasileira ou portugue-sa, quem sabe?! Torres apresenta o estudo de trs grandes roman-ces machadianos, apresentados como uma trilogia: Dom Casmurro, Quincas Borba e Memrias Pstumas de Brs Cubas. Dom Casmurro na verso francesa apresentado por uma escritora francesa de ori-gem vietnamita, Linda L, que compara Machado a Ea de Queiroz, com quem o bruxo do Cosme Velho partilharia um sentimento de vergonha ligado a seus nascimentos. A pesquisadora ainda procura evidenciar como transplantada para o francs a cultura do Serto.

  • 14 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Mostra que Os Sertes ganharam duas verses, a primeira realizada por Sereth Neu, em 1947, intitulada Les Terres de Canudos [As Ter-ras de Canudos], prefaciada por Afrnio Peixoto; e a outra efetuada por Jorge Coli e Antoine Seel, cujo ttulo Hautes Terres (La guerre de Canudos) [Terras Altas (A guerra de Canudos)], de 1993. Os ttu-los de ambas as verses mostram de imediato o que se quer destacar como referente histrico-cultural: Canudos. Marie-Hlne Torres ressalta ainda, de modo levemente irnico, que na edio de bolso des-ta ltima traduo, publicada em 1997, v-se nas pginas iniciais crti-cas de jornais importantes da Frana, como esta do Le Monde, assinada por Gilles Lapouge: Euclides da Cunha escreveu a Ilada desta Troia de Taipa que fora o vilarejo de Canudos. Segundo a pesquisadora, tra-ta-se de uma naturalizao do texto, uma tentativa de chamar o leitor francs para um universo cultural conhecido. Por fim, mas no menos importante, Torres nos presenteia com uma anlise crtica minuciosa dos aspectos morfolgicos e dos paratextos das tradues francesas de Grande-Serto: Veredas, de Guimares Rosa, das quais basta dizer aqui que so intituladas Diadorim, o que obviamente desvia o foco da nar-rativa de Riobaldo, o narrador-personagem do romance. Vale ressaltar uma ltima curiosidade impagvel: a edio de bolso da editora 10/18, com traduo de Maryvonne Lapouge, apresenta na capa, guisa de um vaqueiro do serto, um gacho de bombachas!

    Para alm das curiosidades que nos remetem aos percalos que fazem parte do trabalho tradutrio, o estudo da visualizao do Brasil e de sua literatura por meio das tradues francesas foi rea-lizado de modo srio e profundo por Marie-Hlne Torres. Como todo trabalho de crtica de traduo realizado em dilogo aberto en-tre as culturas de partida e de chegada, este nos permite perceber, de modo claro, as questes que cercam a visibilidade do Brasil literrio. Se hoje o Brasil um pas reconhecidamente importante na Frana, por seu dinamismo poltico e econmico, sua fora musical e cultu-ral, de modo geral, a nossa literatura, contudo, apesar das inmeras tradues e retradues de grandes obras, continua sendo vertida de modo descuidado, o que impede a descoberta pelos franceses, e pelos falantes e leitores da lngua francesa, do lugar real que deve ocupar a literatura brasileira no polissistema literrio ocidental.

  • A visualizao das tradues

    Sempre fui avesso aos prlogos; em meu conceito, eles fazem obra o mesmo que o pssaro fruta antes de colhida; roubam as primcias do sabor literrio. Por isso me reservo para depois. Jos de Alencar (Iracema, Prlogo primeira edio, maio de 1865)

    A visualizao da literatura brasileira traduzida para o francs diz respeito no somente ao aspecto externo dos livros, aquilo que chamamos de aspecto morfolgico, mas tambm ao discurso de acompanhamento. Entendemos por ndices morfolgicos todas as indicaes que figuram nas capas externas frente e verso e nas ca-pas internas dos livros (pgina de rosto, pginas do falso ttulo etc.) e que trazem detalhes sobre o estatuto das tradues, ou seja, a maneira pela qual elas so percebidas conforme os elementos informativos que apresentam. E por discurso de acompanhamento entendemos que seja qualquer marca paratextual (prefcio, pareceres etc.), o lugar onde frequentemente a ideologia aparece de forma mais clara

    1.

    Para guiar a nossa anlise dos romances traduzidos para o fran-cs, consultamos trabalhos anlogos, como as introdues, os pref-cios e as notas de Jos Lambert nos Contes fantastiques, de Hoffmann, 1 [...] qui est souvent le lieu o lidologie apparat le plus en clair (CHEVREL, 1989, p. 38). As citaes em lnguas estrangeiras so todas tradues nossas, exceto indicaes de referncias outras.

  • 18 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    o estudo de Lambert e Katrin van Bragt em The Vicar of Wakefield, de Goldsmith, em lngua francesa, assim como textos tericos funda-mentais, como os de Gideon Toury, In Search of a Theory of Transla-tion e Descriptive Translation Studies and Beyond, de Lambert & Hen-drik van Gorp em On Describing Translation e o mtodo de anlise de tradues de Antoine Berman, Pour une critique des traductions: John Donne. A partir desses trabalhos, foi definido um esquema preciso que nos permitiu delimitar a visualizao das tradues e, por conseguinte, o estatuto dessas tradues, fundado sobre alguns questionamentos prvios que nos servem de vetor para a anlise:

    Como se apresenta a traduo? O que nos mostra o paratexto?O texto traduzido apresenta-se como uma traduo assumida?

    Verificando se os textos traduzidos apresentam-se ou so per-cebidos na cultura de chegada como sendo a traduo, no caso, de romances, que lhe so logicamente anteriores

    2 (os textos-fonte), ser

    possvel, segundo Lambert; Van Bragt, deduzir algumas indicaes mais precisas sobre o estatuto desses textos na cultura francesa.

    3 Por

    essa tica de pesquisa da visualizao e, portanto, do estatuto das tra-dues, Toury fornece-nos a noo de traduo assumida (assumed translations), ou seja, aquela em que todos os enunciados so apre-sentados ou vistos como estando dentro da cultura-alvo4. Iremos, portanto, empreender um reconhecimento de tudo que est em torno dos textos. Abramos um parntese para explicitar alguns conceitos que norteiam esta anlise. Referimo-nos, de fato, teoria do paratexto, de

    2 All utterances which are presented or regarded as such within the target culture (TOURY, 1980, p. 32-4). 3 [...] dduire quelques indications plus prcises sur le statut de ces textes dans la culture franaise(LAMBERT & VAN BRAGT, 1980, p. 18).4 All utterances which are presented or regarded as such within the target culture (TOURY, 1995, p. 32).Toury diferencia as tradues assumidas das pseudotradues que se fixam como sendo tradues, mas no tm textos correspondentes anteriores. Como, por exemplo, as Lettres Persanes de Montesquieu (apud TOURY, 1995, p. 42) ou Candide de Voltaire (apud HERMANS 1999, p. 50).

  • Traduzir o Brasil Literrio | 19

    Grard Genette, segundo a qual um texto apresenta-se com

    o reforo e o acompanhamento de certo nmero de produes, verbais ou no, como um nome de autor, um ttulo, um prefcio, ilustraes, que nunca sabemos se devemos considerar, mas que, em todo o caso, o cercam e o prolongam, exatamente para apresent-lo.5

    Genette batiza esse acompanhamento de paratexto6, ou seja, a apresentao exterior do livro, o nome do autor, o ttulo, o texto da contracapa, as dedicatrias, as epgrafes, os prefcios e posfcios, os interttulos e, ainda, as notas. Por razes prticas, analisaremos o paratexto em dois tempos: primeiramente, as capas, contracapas, pgina de rosto dos romances traduzidos o que nomeamos de aspectos ou ndices morfolgicos e logo depois, as introdues, advertncias, os prefcios e posfcios, ou seja, o discurso de acom-panhamento. Esta anlise seguir um esquema bastante sistemtico (e por isso desculpamo-nos de antemo com o leitor), mas que visa a uma descrio documentada de maneira a mais completa possvel, apesar de no ser exaustiva. Outros elementos constitutivos do texto como os interttulos, as notas de p de pgina ou ainda os glossrios inseridos no corpo do texto sero analisados, no enquanto paratex-tos, mas como metatextos, o(s) texto(s) dentro do texto.

    Comearemos a anlise da visualizao das tradues pelos romances de Jos de Alencar publicados em francs, pois sua obra O Guarani a primeira do que chamamos de o hipocentro do nosso corpus; em seguida, analisaremos a traduo dos textos de Machado de Assis. No plano cronolgico, preciso dizer que Alencar era con-temporneo de Machado de Assis, sendo apenas dez anos mais velho e com ideologias bem diferentes.

    5 GENETTE, 2010, p. 9.6 Ibid, p. 9.

  • Parte 1

    As marcas naturalizantes nos romances coloniais de Alencar

    O romance colonial e/ou indianista brasileiro deve seu reco-nhecimento ao escritor romntico Jos de Alencar. Segundo as in-formaes deixadas pelo prprio Alencar em texto escrito em 1873, Como e porque sou romancista 1, ele nasceu em 1829 na cidade de Messejana, Cear, no Nordeste brasileiro, numa famlia monarquis-ta seu pai era senador. Tornou-se advogado em 1850 e partiu para exercer a profisso no Rio de Janeiro. Abandonou-a, no entanto, bem cedo para dedicar-se literatura e, assim, trabalhou tambm como cronista em diversos jornais. Interessava-lhe igualmente a filosofia e a histria. Ele tambm lia em francs:

    Gastei oito dias com a Grenardire; porm um ms depois acabei o volume de Balzac; e no resto do ano li o que ento havia de Alexan-dre Dumas e Alfredo de Vigny, alm de muito de Chateaubriand e Victor Hugo.2

    1 ALENCAR, 1990.2 Ibid, p. 39.

  • 22 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Ele tambm disse nessa verdadeira autobiografia intelectual que treinava imitando o estilo de alguns escritores (Byron, Hugo e Lamartine) e assinava seus nomes, e que se apaixonou pelos roman-ces martimos de Scott e de Cooper.

    Tentou tambm, segundo Bosi, ingressar na poltica, sem su-cesso no incio devido s suas ideias retrgradas em matria de escra-vido. Seu desgosto com o progresso o conduziu a uma exacerbao do tropismo baseada no colonialismo e no nativismo, criando um Brasil ideal.3 o romance O Guarani, publicado sob a forma de fo-lhetim, que o tornar clebre no Brasil em 18574. Alis, o mais im-portante compositor da pera Nacional Brasileira, Carlos Gomes, havia ficado to entusiasmado com a leitura do romance5 que fez dele uma pera em quatro atos, Il Guarany, apresentada pela primei-ra vez em 1870, no teatro La Scala, em Milo.

    Alencar foi finalmente eleito deputado em 1861, fato que se repetiu durante muitas legislaturas, e foi Ministro da Justia de 1868 a 1870; depois disso, retirou-se do mundo poltico. Em 1877, viajou Europa para tratar da tuberculose que sofria desde a infncia. Foi em vo, pois veio a morrer ao retornar ao Rio de Janeiro no mesmo ano. Um apanhado bibliogrfico sucinto da sua obra nos permitir situ-lo melhor: O Guarani, 1857 / Lucola, 1862 / Diva, 1864 / Iracema, 1865 / O Gacho, 1870 / Senhora, 1875 / diversas peas de teatro e folhetos polticos.

    Alencar, autor consagrado pelo cnone brasileiro, segundo Bosi, transformou o ndio em mito no imaginrio ps-colonial brasi-leiro: Era, afinal, o nativo por excelncia em face do invasor; o ame-ricano, como se chamava, metonimicamente versus o europeu 6. Mas isso , para Bosi, o inverso do que ocorreu no Brasil, pois o ndio de Alencar estava em ntima comunho com o colonizador. Peri, o ndio protagonista de seu romance O Guarani, diz Bosi, literalmente e vo-

    3 BOSI, 2007a, p. 154.4 O Guarani foi escrito diariamente e publicado sob a forma de folhetim entre fevereiro e abril de 1857 (ALENCAR, 1990, p. 58).5 Il Guarany (Livret), 1994, p. 27-8).6 BOSI, Alfredo. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar (In: ______, 2001, p. 176-193).

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    luntariamente escravo de Ceci, a filha de Dom Antnio, e seu vassalo fiel. No fim do romance, face catstrofe iminente, Dom Antnio ba-tiza o indgena e lhe d seu prprio nome, condio que julga necess-ria para conceder a um ndio o direito e a honra de salvar sua filha da morte qual os ndios Aimors tinham condenado a todos.7

    A converso e a mudana de nome ocorrem igualmente com outra personagem de Alencar, o ndio Poti, do romance Iracema, batizado com o nome de Antnio Felipe Camaro, futuro heri da resistncia contra os holandeses8. Em todas as vezes, esclarece Bosi, ser o senhor colonial que converte e d uma nova identidade reli-giosa e pessoal aos ndios. Iracema apaixona-se por Martin Soares, o colonizador do Cear, e por seu amor rompe com sua nao in-dgena, os Tabajaras, depois de ter violado o segredo da jurema. Da pode-se concluir claramente, sempre segundo Bosi, que a doao de si mesmo incondicional nos ndios Peri e Iracema. Eles oferecem-se de corpo e alma, sacrificando e abandonando suas tribos de origem.

    Mas, para Bosi, paradoxal que O Guarani e Iracema te-nham fundado o romance nacional como o disse Jos Verssimo, em 19169 porque neles h uma interpretao ideolgica do proces-so colonial. Paradoxal, pois o Brasil era independente (1822) avan-ava para a abolio da escravido (1888) e para a Repblica (1889). O que Alencar faz, de fato, diz Bosi, reunir sob a imagem mtica do heri o colonizador, generoso senhor feudal, e o colonizado, sujeito fiel e bom selvagem. De fato, Alencar como ele mesmo conta10 documentou-se nos jornais da poca colonial para escrever O Gua-rani e Iracema. Ele inventa o ndio e cria romanticamente o mito indgena, mito formador da nao brasileira. No entanto, este ndio idealizado no existe seno por meio do colonizador que termina por incorpor-lo. Podemos dizer que a antropofagia colonial, longe de ser criativa no sentido de originar uma nova produo remete ao mesmo, ou seja, ao prprio colonizador.

    7 O Guarani, 4 parte, captulo X.8 O mesmo fenmeno encontrado em outro romance de Alencar, O Sertanejo.9 Captulo 1. 10 ALENCAR, 1990, p. 61.

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    Da ocultao importao da brasilidade

    Existem duas tradues francesas do romance O Guarani: a primeira, datada de 1902, do general L. Xavier de Ricard; e a segunda, datada de 1947, de Vasco de Lacerda11. No mago de um Brasil-Colnia criado imagem da sociedade feudal euro-peia, O Guarani se passa em torno do castelo de Dom Antnio de Mariz e de D. Lauriana. Esse castelo feudal impe-se sobre uma natureza exuberante que submissa aos senhores, contrariamen-te aos mercenrios, insubmissos, que vivem nas dependncias do castelo, assegurando sua defesa em troca de grandes somas de di-nheiro. Dom Antnio de Mariz, um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro, havia jurado fidelidade Coroa Portuguesa. Sua filha Ceclia e ele mesmo representam a sntese colonial-romnti-ca: admiram intensamente Peri, o ndio, e respeitam os selvagens, enquanto D. Lauriana e seu filho Diogo menosprezam Peri, ati-tude que ter uma consequncia fatal ao equilbrio da histria. A ideologia de Alencar aparece, aqui, conservadora e nativista; portugueses e indgenas tinham virtudes feudais comuns, nota-damente, a honra. O jovem Diogo matar uma ndia na floresta e deflagrar assim a vingana dos Aimors, que atacaro a forta-leza. Peri, devotado aos Mariz, possui as qualidades requeridas de senhoril: coragem, abnegao e lealdade. E, no momento da invaso dos Aimors, a famlia de Dom Antnio resiste heroica-mente, fazendo o castelo explodir com todos em seu interior, mas atingindo os invasores. Peri partir com Ceci, batizado e digno de salvar sua dama. As pginas finais mostram o idlio de Ceci e Peri, propiciado pela natureza. , de fato, a natureza que une as raas branca e ndia.

    Somente a primeira traduo, a de L. Xavier de Ricard (LXR), traz uma ilustrao pouco visvel na capa, simbolizando a origem do povo brasileiro.

    11 As duas edies com as quais trabalhamos so fotocpias em preto e branco: a de 1902, publicada em Paris pela J. Tallandier, da Grande Biblioteca da Frana, e a de 1947, publicada pela La Sixaine, da Biblioteca Real da Blgica.

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    Por outro lado, as outras indicaes que caracterizam a obra so bem claras:

    A coleo: Bibliothque des Grandes Aventures O autor: Jos de Alencar O ttulo: Le Fils du Soleil (Les aventuriers ou le Guarani)

    Traduit du portugais par X. de Ricard

    O fato de a obra pertencer Bibliothque des Grandes Aventures indicativo de que se trataria de um romance de aven-tura. Ora, o romance O Guarani, regionalista, indianista ou heroico segundo Antonio Candido 12 , de fato, um romance de fundao, de brasilidade ou indianista 13, um romance sobre a origem do povo brasileiro, fundado sobre um mito mesmo que esse mito seja fabri-cado, do comeo ao fim, sob o jugo do colonizador europeu. Tendo em vista que o Brasil era pouco conhecido na Frana em 1902, como podemos observar no discurso coletivo das enciclopdias francesas 12 CANDIDO, 2009, p. 223.13 BARBOSA, Joo Alexandre. Leitura de Jos de Alencar (In: ALENCAR, 1995).

  • 26 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    da poca, o surgimento da latinidade e as comemoraes em consi-derao a Machado de Assis ocorrero somente em Paris em 1909, o que explicaria o desvio de um romance de formao ser inserido em uma coleo de aventura em sua traduo francesa.

    A nfase colocada na aventura (ainda que, como vimos, o significado do romance diga respeito afirmao de uma lngua bra-sileira e da mistura cultural na formao do povo brasileiro), clara-mente pelo efeito do subttulo, entre parnteses, Les aventuriers ou le Guarani [Os aventureiros ou o Guarani], e do ttulo apelativo Le Fils du Soleil [O Filho do Sol]. Este ttulo poderia induzir o leitor a pensar que o ndio guarani Peri adorava o sol como faziam os Incas no Peru. Os Guaranis no adoravam o sol, mas, por outro lado, procuravam a Terra Prometida. De fato, no decorrer da narrativa, Peri diz que ele mesmo o filho do sol14. Essa pode ser a explicao para esse subttulo nada menos que ambguo para um leitor francs que conhece bem mais os Incas que os Guaranis.

    A capa do romance15, se no fornece nenhum indcio da origem cultural brasileira, indica que se trata de um texto traduzido (Traduit du portugais)16, o que confirma os discursos coletivos enciclopdias, dicionrios, revistas demonstrando que o Brasil era tratado no incio do sculo XX como uma colnia de Portugal. O ttulo, desta vez sem o subttulo, repetido na pgina de rosto. Aqui, portanto, o nome do tradutor chama a ateno, pois est escrito em letras maiores do que o nome do autor brasileiro e centrado ao alto da pgina.

    JOS DE ALENCAR L. XAVIER DE RICARD

    14 Sobretudo no captulo VI, 2 parte.15 Nosso texto fotocopiado no contm contracapa.16 Segundo Yves Chevrel, em seu artigo Les traductions et leur rle dans le systme franais (In: KITTEL, 1988, p. 40), a expresso traduit de indica que o texto pertence a um outro sistema literrio e cultural e deve funcionar como [...] um alerta, convidando o leitor a desconfiar do que vai ler. Mais que desconfiana, preferimos dizer a esse respeito que o leitor informado da origem lingustica e/ou cultural da traduo. Podemos ainda especular sobre o efeito dessa indicao: traduit de atrai pela curiosidade, pelo modo, marketing publicitrio, pelo desejo de evaso ou at pela rejeio do estrangeiro.

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    Essa forma de impresso leva a pensar que o tradutor, L. X. de Ricard, o autor do livro, principalmente se analisarmos a pgi-na anterior (verso da capa), intitulada DU MME AUTEUR [do mesmo autor]. No se trata de Jos de Alencar, mas sim de L. X. de Ricard, enquanto autor. Essa bibliografia deixou-nos perplexos, pois quando de nossas pesquisas sobre o tradutor no encontramos todos os ttulos a ele atribudos. Um deles reteve nossa ateno pela infor-mao nele contida: AUTOUR DE BONAPARTE: (Extraits des Mmoires du Gnral de Ricard) [Ao redor de Bonaparte (Trechos das Memrias do General de Ricard)], publicado pela editora Stock. Ignorvamos que L. X. de Ricard fosse general. Ele o era realmente ou a nota referia-se a algum membro de sua famlia?

    Quanto retraduo de Vasco de Lacerda (1947), observa-mos que ela traz uma capa com informaes reduzidas ao mnimo, pois nela no h nada mais do que o ttulo O Guarany. um ttulo no traduzido, ou seja, o ttulo do original brasileiro. Est, ento, em lngua estrangeira, o que denota o carter importado da obra

    17, e

    grafado com um y. A ltima reforma ortogrfica (anterior tra-duo de Vasco de Lacerda) havia sido unanimemente aprovada pela Academia Brasileira de Letras em 1943 suprimindo as letras K, W e Y da lngua portuguesa o que nos permite supor que o tradutor usou uma edio brasileira anterior:

    O Guarany: romance brasileiro 1857 Rio de Janeiro: Empreza Nacional

    O Guarany: romance brasileiro 1889 Rio de Janeiro: Garnier (6 ed.)

    O Guarany: romance brasileiro 1906 So Paulo: Casa Editora

    O Guarany: romance brasileiro 1915 Rio de Janeiro: A. Azevedo & CostaO Guarany: romance brasileiro 1923 Rio de Janeiro: GarnierO Guarany: romance brasileiro 1928 Rio de Janeiro: Jornal do Brasil

    O Guarany 1940 Rio de Janeiro: Livraria Antunes

    O Guarani: romance brasileiro 1944 So Paulo: MelhoramentosO Guarani 1946 Rio de Janeiro: Livraria AntunesO Guarani 1957 So Paulo: W.M. Jackson

    17 [...] le caractre import de luvre (LAMBERT & VAN BRAGT, 1980, p. 19).

  • 28 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Entre as numerosas edies e reedies de O Guarani que existem no Brasil, levantamos somente uma amostra representa-tiva das mudanas produzidas no ttulo. De fato, at os anos 30, o ttulo do romance era: O Guarany: romance brasileiro. Ressalta-mos que o subttulo genrico18 (segundo o termo de Genette) de-saparece nos anos 40, o que explica que ele no esteja na traduo de Lacerda (VdL) em 1947. Somente na folha de rosto, ficamos sabendo que se trata de um romance de Jos de Alencar, publi-cado pela La Sixaine (sem data) e que : traduit et adapt du portugais par VASCO DE LACERDA [traduzido e adaptado do portugus por VASCO DE LACERDA]. Essa ltima indicao revela que o texto uma traduo da qual somente conhecemos a origem lingustica do romance. Quando o leitor l portugais [portugus], no tem por que fazer a ligao com o Brasil, mas naturalmente com Portugal. Contudo, o mais surpreendente aqui a expresso traduit et adapt [traduzido e adaptado], dois termos, a priori, contraditrios. A adaptao pode ser qualificada de imitao, de reescritura e, segundo Georges L. Bastin,

    A adaptao pode ser entendida como um conjunto de operaes de traduo que resultam em um texto que no aceito como uma traduo, mas , contudo, reconhecido como representando um texto-fonte da mesma extenso.19

    A adaptao no , ento, aceita como sendo uma traduo, ou ainda, como o precisa Bastin, o conceito de adaptao requer reco-nhecimento da traduo como no adaptao. A traduo uma no adaptao, mas a adaptao comporta operaes tradutrias ligadas a um texto-fonte. E esse ltimo ponto de interseo entre tradu-o e adaptao que, finalmente, permite aproximar os dois termos. Nossa anlise textual se debruar, por consequncia, sobre o grau 18 GENETTE, 2010, p. 56.19 Adaptation may be understand as a set of translative operations which result in a text that is not accepted as a translation but is nevertheless recognized as representing a source text of about the same lengh (BAKER, 2008, artigo Adaptation).

  • Traduzir o Brasil Literrio | 29

    de adaptao, ou seja, sobre o grau de antropofagia de traduo por parte do tradutor, sem entrar no debate da infidelidade ou naquele que advoga que tudo adaptao naturalizao, exotizao, trans-criao (Haroldo de Campos).

    A adaptao, na maioria das vezes, sugere rearranjo e modifi-cao, quando se trata de passar de um gnero a outro (romance-te-atro, cinema-romance-literatura para crianas). O fato de encontrar traduo e adaptao juntas traz tona a hiptese de uma traduo bastante livre, as duas noes estando ligadas a um texto-fonte. En-fim, a data de publicao encontra-se na terceira capa: Tous droits rservs 1947. Nenhuma referncia obra original feita, nem na edio traduzida por VdL, nem por LXR.

    Quadros recapitulativos: Capa

    Ttulo Autor Meno do tradutor

    Meno lngua/

    cultura de origem

    Editora Coleo Data da publicao

    Le Fils du Soleil (Les aventuriers ou le Guarani)

    Jos de Alencar X. de Ricard

    Traduit du portugais

    Jules Tal-landier

    Biblio-thque

    des Grandes

    Aventures

    1902

    O Guarany f f f f f 1947

    Pgina de rosto nela aparecem somente elementos comple-mentares capa.

    Autor Meno do tradutorMeno lngua/

    cultura de origem EditoraData da

    publicao

    Jos de Alencar Vasco de Lacerda Traduit et adapt du portugais La Sixaine 1947

    Esses quadros evidenciam:

    O carter importado da obra devido ao ttulo O Guarany (1947);

  • 30 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Ao se observar a capa, possvel verificar que a traduo de 1947 no uma traduo assumida, porque no contm nada alm do ttulo, em lngua estrangeira. Nada indica, ento, que se trata de uma traduo. Ao contrrio, pode-se pensar que um livro escrito em lngua estrangeira; Somente a traduo de 1902 uma traduo assumida desde

    a capa; O estatuto da traduo, no que diz respeito aos elementos

    morfolgicos, ambguo na traduo de 1947, pois indica que o texto traduit et adapt [traduzido e adaptado]; A traduo de 1947 no menciona a primeira traduo, a de

    1902; Nenhuma das tradues faz referncia ao texto-fonte brasileiro;

    Nenhuma das tradues menciona a cultura de origem do texto-fonte.

    possvel observar tambm que o discurso de acompanha-mento das duas tradues francesas de O Guarani resume-se a uma introduo em cada uma das tradues.

    A primeira traduo (1902) traz, de fato, um texto introdu-trio sem ttulo, dedicado A RMY COUZINET, de quatro p-ginas, assinado pelo tradutor L. Xavier de Ricard e datado de 20 de setembro de 1902. Trata-se de uma carta endereada a R. Cou-zinet, visto que comea por Mon cher ami [Meu querido amigo]. As razes que levaram Xavier de Ricard a traduzir esse texto so ali claramente expressas:

    evidente que um povo no deve ignorar nada dos outros, ao me-nos no que diz respeito quilo que essencial conhecer. Mas, se bom deixar-se penetrar pelas influncias exteriores, que se faa com a condio de assimil-las: sua ao no deve chegar a defor-mar nosso esprito e a desvi-lo de sua direo natural. J estamos por demais ameaados de perder essa virtude de ponderao e de equidade que constitui praticamente toda nossa natureza latina. tempo de nos lanarmos para o outro lado para contrabalanar

  • Traduzir o Brasil Literrio | 31

    com a queda na direo da qual estamos nos debruando: e, para isso, precisamos retomar rapidamente nossas fecundas intimidades de antigamente com nossos compatriotas de raa.20

    um preldio de aproximao dos dois pases, Frana e Bra-sil, anunciador de tributos e interesses do primeiro pelo segundo. Mas o objetivo da traduo de X. de Ricard o de interessar-se por outras culturas com a condio de assimil-las. Ele percebe a tradu-o como anexao da cultura do outro, segundo uma viso colonial expressa de forma explcita.

    Ento, nessa carta, Xavier de Ricard exime-se de exaltar os mritos da obra e do autor que ele traduz, acrescentando inclusive que Jos de Alencar, mesmo tendo uma posio bastante honrada na literatura brasileira, no , entretanto, um desses gnios indis-pensveis cuja ausncia causaria uma lacuna na histria intelectual da humanidade. Essa reflexo inscreve-se em um universo de pensa-mento ainda colonial, pois seu autor esquece que com o Romantis-mo que a conscincia nacional e a sociedade brasileira comearam a consolidar-se.

    Em seguida, Xavier de Ricard fala de Alencar como sendo um romancista portugus! Essa confuso digna de suas contradies, tanto assim que ele termina por dizer que Jos de Alencar foi o im-pulsionador de toda uma literatura nacional: Este , creio, um mrito que no podemos contestar e preciso admitir que no desdenhvel.

    Depois de uma biografia sucinta, ele explica o ttulo que deu em francs para o romance O Guarani:

    Devo primeiramente me desculpar por haver adicionado um ttulo

    20 Il est bien vident quun peuple ne doit rien ignorer des autres, au moins de ce quil est essentiel den connatre. Mais, sil est bon de se laisser pntrer aux influences extrieures, cest condition de se les assimiler: il ne faut pas que leur action aille jusqu dformer notre esprit, et le faire dvier de sa direction naturelle. Nous ne sommes dj que trop menacs de perdre cette vertu de pondration et dquit qui est presque tout notre gnie latin. Il est temps de nous prcipiter dun autre ct pour faire contrepoids la chute vers laquelle nous penchons: et pour cela, il faut nous hter de reprendre nos fcondes intimits dautrefois avec nos compatriotes de races.

  • 32 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    ao ttulo original que Alencar tinha dado a seu romance. Acreditei que essa palavra, Guarani, no significa muita coisa aos leitores: eles no esto familiarizados com os ndios da Amrica do Sul do mesmo modo como estiveram com os da Amrica do Norte.21

    Sua explicao clara: preocupado com o leitor, ele criou um ttulo que lhe parecia mais acessvel, mais compreensvel. Se seu ttulo traduzido exerce ento uma funo sedutora, para recuperar a expres-so de Genette, ele no menos naturalizado, voltado cultura de che-gada, a cultura francesa, ocultando assim a brasilidade original.

    X. de Ricard tambm afirma que o romance havia sido tradu-zido em italiano, alemo e ingls. Segundo nossas fontes referenciais, encontramos somente uma traduo de O Guarani anterior a 1902:

    Ttulo Tradutor Lngua Editora Data da publicaoDer Guarany: brasilianischer

    RomanMaximillian

    Emerich AlemoB. Bartett 1876

    No sabemos se X. de Ricard teve acesso traduo alem. Em todo caso, ele no utilizou esse modelo para sua traduo do t-tulo, visto que o ttulo em alemo conserva o subttulo romance brasileiro. Enfim, X. de Ricard faz referncia, no ltimo pargrafo de sua carta, sua concepo de traduo:

    Respeitei escrupulosamente, como deve fazer todo tradutor que no queira merecer a aplicao do adgio italiano, o cenrio do romance, no qual no me permiti interferir nada e menos ainda suprimir tratei o texto com o mesmo respeito.22

    21 Jaurai dabord mexcuser davoir ajout un titre au titre originel quAlencar avait donn son roman. Jaurais craint que ce mot de Guarani ne dit pas grandchose aux lecteurs: ils ne sont pas familiariss avec les Indiens de lAmrique du Sud, comme ils lont t avec ceux de lAmrique du Nord.22 Jai scrupuleusement respect, comme doit le faire tout traducteur qui ne veut pas mriter lapplication de ladage italien, le scnario du roman o je me suis permis de rien intervertir, et encore moins de rien retrancher jai trait le texte avec le mme respect.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 33

    Ele afirma, ento, que tanto na macroestrutura como na mi-croestrutura nada alterou, nada omitiu. Isso nos permite supor que ele no apelou para a no traduo ou que ele no suprimiu oes-trangeiro do texto, como, por exemplo, as referncias indgenas. Ve-remos isso quando da anlise textual. Na segunda parte do pargrafo, que corresponde ao fim da carta, o tradutor se desculpa pela forma como est escrito seu texto em francs:

    No me achei no direito de fazer Alencar falar em outro estilo que no fosse o seu. O Guarani escrito em lngua corrente, um pouco negligenciada, e que ele mesmo se props a ajustar e corrigir. Mas ele sempre hesitou frente a esse trabalho, e reconhecemos que no cabe a seu tradutor faz-lo em seu lugar.23

    Acreditando que o texto mal-escrito (lngua corrente, um pouco negligenciada), o tradutor avisa ao leitor que essa uma falha do texto original. Ele desculpa-se de antemo pelas imperfeies de sua traduo. E, como disse Berman24, o tradutor interioriza o esta-tuto ocultado, reprimido e vergonhoso da atividade. Tais reflexes encerram a anlise dessa carta.

    A introduo da traduo de 1947 bem mais curta (uma p-gina) e est sem assinatura. A nfase divide-se entre a fundao da li-teratura brasileira pelo poeta Gonalves Dias e Alencar. Em seguida, algumas linhas so dedicadas biografia e bibliografia, esclarecen-do que seus ndios so maiores e, sobretudo, mais sofisticados que a natureza.25 Enfim, o autor do texto diz que Alencar desejava criar uma lngua brasileira diferente do portugus e dirige-se diretamente ao leitor francs, em um fim bastante romntico:

    23 Je ne me suis pas cru le droit de faire parler Alencar en un autre style que le sien. Le Guarani est crit dans une langue courante, un peu nglige, et quil se proposait lui-mme de resserrer et de corriger. Mais il a toujours hsit devant ce travail, et on reconnatra quil nappartenait pas son traducteur de le faire sa place.24 BERMAN, 2008, p. 44. 25 Ses indiens sont plus grands et surtout plus raffins que nature.

  • 34 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    O leitor francs pode sorrir, pois ser para reencontrar um prazer: o de se misturar ao jogo brilhante e ardente das paixes, nobreza dos gestos, inspirados pelo cenrio grandioso, vida perigosa das florestas brasileiras.26

    Recapitulando:

    A introduo de 1947 no aborda a traduo de forma al-guma; O tradutor de 1902 admite explicitamente seu conceito de

    traduo etnocntrica (assimilao) e, implicitamente, o estatuto inferior do ato de traduzir.

    Desvio e perspectiva no gnero e na coleo

    Se a obra Iracema, lenda do Cear foi publicada por conta do autor em 1865, preciso dizer que dois anos mais tarde a edio es-tava esgotada.27. Pouco depois de sua publicao, Machado de Assis, eminente homem de letras brasileiro, publicou no Dirio do Rio de Janeiro, em 23 de janeiro de 1866, um artigo intitulado Iracema28. Segundo ele, este poema em prosa causa o efeito de ser primitivo, in-corporando sentimentos ingnuos e linguagem pitoresca. Ele acrescen-ta que essa parece ser uma histria de bardo indgena, contada aos irmos, porta da cabana.29

    De fato, a fundao do Cear, os amores de Iracema e de Mar-tin, o dio entre duas naes adversrias so, segundo Machado de Assis, os principais temas do livro. Ele elabora em seguida um resu-mo da histria. Iracema Tabajara (nao indgena que dominava 26 [...] le lecteur franais peut sourire, ce sera dun plaisir retrouv: celui de se mler au jeu brillant et brlant des passions, cette noblesse des gestes, inspirs par le dcor grandiose, la vie prilleuse des forts brsiliennes.27 ALENCAR, 1990, p. 69.28 CAVALCANTI PROENA, 1979, p. 147-153.29 Ibid.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 35

    o interior, especialmente a Serra da Ibiapaba); entre sua nao e a nao Potiguara (nao indgena que habitava o litoral, do rio Par-naba at o Rio Grande do Norte), existe uma rixa de longa data. Martin, aliado dos Potiguaras, entra no seio dos Tabajaras, onde acolhido; ele estrangeiro, portanto sagrado; vive na cabana de Ara-qum, onde tambm vive sua filha Iracema. Uma noite, ela torna-se sua esposa e quando Martin e Poti partem, Iracema abandona sua tribo e os acompanha.

    Iracema foi um livro inovador, pois estava repleto de termos indgenas com os quais os brasileiros no estavam nem um pouco fa-miliarizados na poca. No entanto, apesar de chocar o pblico em um primeiro contato, a repercusso internacional de seu sucesso deu fru-tos. Foi traduzido pela primeira vez em 1886 na Inglaterra, vinte e um anos aps sua publicao no Brasil. Esse foi, segundo Helosa Barbosa, o primeiro livro de prosa narrativa brasileira traduzido em ingls. 30

    A traduo inglesa de 1886 precede a primeira traduo fran-cesa em praticamente quarenta anos, assim como as demais tradu-es em outras lnguas:

    Tradues de Iracema31 Ttulo Tradutor Lngua Editora Data da publicao

    Irama, the honey-lips: A legend of Brazil Isabel Burton Ingls

    Bickers & Son(London) 1886

    Iracema, ein sage aus den urwald Brasiliens

    Christa von During Alemo Hamburg 1896

    Iracema (A legend of Cear) N. Biddell Ingls

    Imprensa Inglesa(Rio de Janeiro) 1921

    ? Jacob Mureb rabe ? 1921

    Iracema Philas Lebesgue Francs Gedalge 1928

    Iracema (La virgen de los labios de miel)Novela Brasilea

    Felix E. Etchegoyen Espanhol

    Anaconda(Buenos Aires,

    Argentina)1944

    30 BARBOSA, 1994.31 Segundo as referncias da edio crtica brasileira.

  • 36 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Ttulo Tradutor Lngua Editora Data da publicaoIracema (La virgen de

    los labios de miel)Novela Brasilea

    Maria Torres Frias Espanhol

    Ferrari H.(Buenos Aires,

    Argentina)1944

    Iracma Lgende du Cara

    Ines Oseki-Dpr Francs Alinea/UNESCO 1985

    IrasemaInna Tynja-

    nova; Aleksej adrin

    RussoHudoestvennaja

    Literatura (Moscou, URSS)

    1989

    Irasema Tadokoro Kiyokatu JaponsSairysya (Toqui,

    Japo) 1998

    Iracema: A Novel Clifford E. Landers InglsOxford University

    Press 2000

    Iracema Espanhol Obelisco (Barce-lona, Espanha) 2000

    Podemos ressaltar que os ttulos contm subttulos explicati-vos em ingls e em espanhol, mas no em francs. Na capa da tradu-o de Philas Lebesgue (1928)32, o ttulo Iracma. Se por um lado o tradutor optou por um ttulo conciso, acentuando o e para obter a mesma pronncia que em portugus, por outro adicionou Roman Brsilien na pgina de rosto:

    IRACMARoman Brsilien

    Ocorre ento um desvio genrico ao traduzir-se lenda (lgen-de) por romance (roman). A lenda, na histria literria, uma narra-tiva popular tradicional mais ou menos fabulosa, mtica, pertencen-te ao discurso oral. As lendas incluem geralmente personagens reais, como o caso em Iracema: Poti era um heri histrico que se tornou cristo e recebeu o nome de Antnio Felipe Camaro (1580-1648),

    32 Trata-se de uma fotocpia em preto e branco que se encontra na Grande Bibliothque de France.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 37

    segundo as informaes de Machado de Assis33; Martim Soares Mo-reno era um soldado portugus que existiu realmente; Iracema era a irm ficcional de Poti, o que finaliza a caracterizao de lenda.

    Voltando capa, alm do ttulo conciso de Iracma e da ilus-trao extica uma palmeira se projeta, tendo o mar e um veleiro em segundo plano ela nos informa o nome do autor, Jos de Alen-car, e da coleo, Aurore. Segundo Veiga, professor e crtico brasilei-ro, que publicou um livro inteiramente consagrado ao tradutor fran-cs, Philas Lebesgue adaptou sua traduo de Iracema a certo tipo de leitor: O romance Iracema, na traduo de Lebesgue, integrava uma coleo destinada a jovens.34 O que interessante do ponto de vista do texto traduzido o fato de um livro, no incio destinado ao pblico adulto no Brasil, acabar inserido em uma coleo para um pblico jovem, ou mesmo adolescente. A adaptao do livro do qual fala Lebesgue ento devida ao fato de ele ser inserido na cole-o Aurore. Se, como Veiga afirma, Lebesgue adaptou Iracema para a traduo francesa, isso teria consequncias na maneira de traduzir o texto ponto que poder ser amplamente discutido numa anlise textual ulterior. Nas segunda e terceira capas, o editor fornece ainda uma lista de obras publicadas na coleo Aurore:

    COLLECTION AURORENouvelle Collection dOuvrages pouvant tre mis entre toutes les mains

    1. Jean dAgraives. LE CHATEAU DU RELIQUAIRE2. Lily Jean-Javal. MARTHON ET LE PERE PAPYRUS (Mdaille dargent de la Socit dencouragement au Bien) (Indit)3.Sigfrid Siwertz. LES PIRATES DU LAC MELARTraduit du sudois par Vibeke Svane et Marguerite Gay4. Ivan Tourgueneff. RECITS DUN CHASSEURTraduit du russe par HalPerine-Kaminsky5. Prosper Mrime. COLOMBA6. Lily Jean-Javal LA QUENOUILLE DU BONHEUR(Ouvrage couronn par lAcadmie Franaise)7. H. de Balzac. PIERRETTE

    33 Artigo de Machado de Assis, Iracema (In: ALENCAR, 1950, p. 105).34 VEIGA, 1998, p. 85. O romance Iracema, na traduo de Lebesgue, integrava uma coleo destinada aos jovens.

  • 38 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    8.Gabriel Maurire. PEAU DE PECHE (indit)9. Andersen. RIEN QUUN VIOLONEUX (Indit en France)Traduit du danois par Mathilde e Pierre Paraf10.Suzanne Normand. LE BATELIER DE LUTECE11. Jonathan Swift. VOYAGES DE GUILLIVER.12. Jos de Alencar. IRACMAsuivi de JANNA et JOEL, par Xavier MARQUESRomans Brsiliens traduits par PH. Lebesgue et P. M. Gahisto13. Herman Melville. LE CACHALOT BLANC (Moby Dick)Roman amricain traduit par Marguerite Gay14. Lucie Delarue-Mardrus. LAME AUX TROIS VISAGES

    Esses so exatamente os mesmos ttulos, diferentemente apre-sentados, de romances franceses ou de tradues que geralmente fazem parte dos programas escolares. O editor explica que podem ser lidos por todo pblico. Conhecendo o texto original brasileiro, surgiu ento a hiptese de ter havido uma possvel censura a certas passagens, talvez as mais sensuais, na traduo de 1928.

    O nome do tradutor no figura na capa, mas somente na pgi-na de rosto; o texto no assume, de sada, ser uma traduo. Somente o nome do autor deixa supor uma origem estrangeira. O nome do autor repetido, assim como o ttulo e um subttulo genrico, como j vimos. esse subttulo que caracteriza a origem cultural do tex-to, pois no esclarecido de que lngua ele traduzido: traduit par Philas Lebesgue35. O editor pressupe ento que o leitor conhea a lngua falada no Brasil ou que a informao seria suprfula e que suficiente saber que o texto original brasileiro. Enfim, ao p da pgina lemos que o livro publicado pela Gedalge, em Paris: Tous droits de traduction, de reproduction et dadaptation rservs pour tous pays. Copyright Librairie Gedalge, 1928.36 O restante da pgina diz respeito a um pargrafo curto que rene as obras de Phileas Lebes-gue, que retomamos no perfil dos tradutores, reunidos por Marcel Coulomb sob a forma de Pages Choisies, pela editora Champion37.

    35 O livro traz a traduo de dois textos brasileiros de autores diferentes que nele figuram igualmente: Suivi de JANNA ET JOEL, Par Xavier Marqus, Traduit par Ph. Lebesgue et P-M Gahisto.36 Todos direitos de traduo, de reproduo e de adaptao reservados para todos os pases.37 Veiga, autor do livro sobre Philas Lebesgue, no menciona essas Pages Choisies.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 39

    A segunda traduo (1985) apresentada em formato peque-no, constituindo um texto curto (cento e vinte e quatro pginas), sem por isso ser um livro de bolso tem como ttulo Iracma, lgen-de du Cara:

    O ttulo inteiro aparece na capa e est traduzido a partir do modelo brasileiro, Iracema, lenda do Cear. A traduo assumida desde a capa, pois figura a meno Traduit du Portugais (Brsil) par INS OSEKI-DPR. No alto da capa encontra-se o nome do autor, Jos de Alencar, seguido de uma pequena ilustrao colorida, bem menos neutra do que aquela da primeira traduo que a prece-de em quase 60 anos representando uma jovem ndia nua, de perfil, e um pssaro verde e vermelho pousado sobre sua mo em meio a uma natureza extremamente colorida. A descrio da capa completa--se pelo nome da editora, Alinea, de Aix-en-Provence.

    Na contracapa, tem o que Genette chama de press release (prire-dinsrer)38 [texto da contracapa]: so reveladas algumas in-formaes sobre a obra, mas no h qualquer meno a respeito do

    38 GENETTE, 2010, p. 97.

  • 40 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    autor, tradutor ou editor. Trata-se de um pequeno texto cerca de vinte linhas que define Iracema como sendo um romance-poema em prosa, o mais significativo da poesia indianista brasileira e latino--americana. O autor do texto insiste no fato de o romance pertencer no somente ao sistema cultural brasileiro e o aproxima da literatu-ra americana (Iracema considerada como uma obra-prima do ro-mantismo brasileiro e ocupa, depois de mais de um sculo, um lugar preponderante no seio do patrimnio literrio sul-americano) e da literatura francesa (Ao contrrio de Atala de Chateaubriand, Irace-ma no uma donzela passiva). Essa naturalizao distingue-se das reflexes sobre a lngua, exploso de uma lngua nova, transgresso da lngua oficial. Sutilmente, o autor do texto centraliza seu ponto de vista sobre esta lngua de uma grande riqueza potica, subversiva e sensual: o portugus do Brasil.39

    Trata-se de um texto de exaltao que se confirma pela coe-dio do livro: ALINEA/UNESCO, como podemos ler na pgina de rosto. Iracma pertence, assim, coleo UNESCO de Obras Representativas, srie brasileira. Pertencer a essa coleo tem sua im-portncia: 40

    A coleo UNESCO de Obras Representativas tem um papel pri-mordial na salvaguarda dos tesouros da literatura mundial, tradu-zindo em lnguas veiculares as obras-primas da literatura tradicio-nal e contempornea de diferentes pases.

    Segundo essa explicao da UNESCO a respeito da coleo, Iracema seria uma obra-prima da literatura brasileira. Dizemos seria porque isso pressupe que outras obras da literatura brasileira no tra-duzidas pela UNESCO no seriam obras dignas de figurarem nessa

    39 Iracma est considre comme le chef-duvre du romantisme brsilien et occupe depuis plus dun sicle une place prpondrante au sein du patrimoine littraire sud-amricain. Contrairement Atala de Chateaubriand, Iracma nest pas une donzelle passive; explosion dune langue nouvelle; transgression de la langue officielle; langue dune grande richesse potique, subversive et sensuelle: le portugais du Brsil. Todas so passagens da contracapa (parte externa do livro).40 UNESCO:

  • Traduzir o Brasil Literrio | 41

    coleo de traduo. Alm disso, a lngua francesa uma lngua veicu-lar, ou seja, serve de comunicao a grupos de lnguas maternas diferen-tes, sendo uma lngua muito representativa para a divulgao de uma obra por meio de sua traduo. Vale observarmos que essa traduo de Philas Lebesgue foi seguida pela traduo de Ins Oseki-Dpr, o que demonstra claramente o interesse dedicado a esse romance.

    Em seguida, no p da pgina, est a data da traduo UNESCO, 1985, sem nenhuma referncia primeira traduo francesa.

    Os quadros seguintes sintetizam os aspectos morfolgicos das duas tradues de Iracema:

    Capa

    Ttulo Autor Meno do tradutor Editora Coleo Data da publicao

    Iracma Jos de Alencar f f Aurore 1928

    IracmaLgende du Cara

    Jos de Alencar

    Traduit du portugais (Brsil) par Ins

    Oseki-DprAlinea f 1985

    Pginas internasData dapublica-

    oTtulo Meno do Tradutor Coleo

    Lngua/ cultura origem

    Referncia obra

    original

    Meno da data de traduo

    1928IracmaRoman

    Brsilien

    traduit par Philas

    Lebesguef f f

    Copyright par la

    Librairie Gedalge

    1928

    1985 f f

    Collection UNESCO duvres

    Reprsenta-tives

    Srie Brsi-lienne

    f f

    Pour la traduction franaise

    UNESCO

    1985

    Alguns pontos podem ser postos em evidncia segundo nossa anlise:

    A primeira traduo de Iracema no uma traduo assu-

  • 42 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    mida desde a capa; O ttulo da primeira traduo, que figura na pgina de rosto,

    Iracma, roman Brsilien, apresenta um desvio genrico no seu subttulo, porque de lgende du Cara (traduo do subttulo original brasileiro), o tradutor optou por Roman Brsilien; O paratexto evidencia as qualidades do tradutor como escri-

    tor (Ouvrages de Philas Lebesgue); Somente a segunda traduo assume seu estatuto de texto

    traduzido desde a capa; O estatuto de Iracema reconhecido como um texto impor-

    tante da literatura brasileira graas sua retraduo, visto que sua primeira traduo francesa passa da insero em uma co-leo para jovens (1928) a uma coleo da UNESCO que a considera como uma obra-prima (1985) e que a propulsiona na cena internacional; Nenhuma das duas tradues resgata as referncias biblio-

    grficas do texto original brasileiro; A segunda traduo (1985) no faz meno primeira

    (1928).Se examinarmos os discursos de acompanhamento das tra-

    dues francesas de Iracema, constatamos que so escassos, uma vez que a segunda traduo (1985) no tem nenhum prefcio, nem introduo, nem posfcio. A obra apresenta-se por si mesma e pelo texto da contracapa analisado anteriormente. Com relao tradu-o de 1928 de Philas Lebesgue (primeira traduo), verificamos que ela comporta, quanto ao discurso de acompanhamento, uma introduo de seis pginas, intitulada Sur Jos de Alencar, assina-da por Jos Severiano de Rezende. A escolha desse poeta simbolista brasileiro no aleatria porque, por um lado, ele vivia em Paris e, por outro, produzia uma poesia oratria de origem bblica41. Iracema logo situada sob o signo da poesia e do mito da fundao de um povo, o povo brasileiro. Rezende comea por afirmar queo autor de Iracema, Jos de Alencar, um dos nomes mais ilustres, seno o mais 41 BOSI, 2007a, p. 320.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 43

    ilustre da poca, talvez a mais brilhante, apesar de a mais dolorosa do Brasil.42

    Para Rezende, Alencar um poeta que escreve uma lenda, uma pastoral indgena, poema de amor romntico e cavalheiresco, mais cavalheiresco que romntico [pastorale indigne, pome damour romantique et chevaleresque, plus chevaleresque que romantique]. E, questionando-se sobre o gnero literrio ao qual pertence Iracema, cita Baudelaire e Chateaubriand, assim como Milton. Mas afirma no ver nenhum trao de Chateaubriand no indianismo de Alencar. Parece que ele somente cita esses autores para introduzir Alencar no mesmo nvel de notoriedade literria que os escritores franceses.

    Segundo Rezende, o tradutor presta servio divulgao da literatura brasileira. Mas no aprendemos nada sobre a maneira de traduzir de Lebesgue, somente que sua traduo delicada e pode-rosa [dlicate et puissante]. No mximo, ele v ali o Tristo desta Isolda, sem filtro, o Romeu de cor desta branca Julieta [le Tristan de cette Isolde, sans philtre, le Romo basan de cette blanche Juliette]. Se Rezende aproxima comparativamente Iracema de obras da literatu-ra universal, ou melhor, europeia, para universaliz-la a partir da antropofagia natural dos poetas:

    No por acaso que alegorizamos o Brasil na figura forte, serena e bela de um ndio de suas florestas. Alencar foi suficientemente poeta, e grande poeta, para criar, este selvagem transformado em smbolo; pois somente o poeta cria os smbolos e os interpreta. A terra natal deu-lhe o smbolo; ele o devolve, transformado, terra natal.43

    Rezende termina sua introduo com um certo lamento em

    42 Lauteur dIracma, Jos de Alencar, est un des noms les plus illustres, sinon le plus illustre, de lpoque, peut-tre la plus brillante, bien que la plus douloureuse, du Brsil (ALENCAR, 1928).43 Ce nest pas sans raison que lon a allgoris le Brsil dans la figure forte, sereine et belle dun Indien de ses forts. Alencar fut assez pote, et grand pote, pour crer, disons le mot, ce sauvage devenu symbole; car seul le pote cre les symboles et les interprte. La terre natale le lui a fourni; il le rend, transform, la terre natale.

  • 44 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    relao ao Brasil que cr, em geral, que Jos de Alencar um roman-cista de imaginao fcil e encantadora44. E este Brasil que o leu e releu, ainda no o conhece45. Ento, segundo Rezende que ignora que O Guarani foi traduzido para o francs em 1902:

    A Frana vai agora comear a conhec-lo [Alencar] com Iracema, na delicada e poderosa traduo de Philas Lebesgue, que presta as-sim, mais uma vez, um incomparvel servio s letras brasileiras46.

    Rezende valoriza a cultura francesa em detrimento da brasi-leira que, segundo ele, no conhece Alencar.

    Depois da anlise descritiva dos paratextos dos romances de Jos de Alencar traduzidos em francs, cabem, agora, algumas ob-servaes:

    Poder-se-ia esperar que as tradues do comeo do sculo tivessem um estatuto de traduo menos assumido do que aquelas da segunda metade do sculo. No entanto: 1. As tradues de 1902 (O Guarani) e de 1985 (Iracema) assumem plenamente seu estatuto de texto traduzido desde a capa;2. As tradues de 1928 (Iracema) e de 1947 (O Guarani), no apenas no assumem serem tradues desde a capa, mas ainda, parodoxalmente, seus ttulos estrangeiros fixam seu carter importado. Ento, no h, no plano diacrnico, uma evoluo do estatuto das tradues, mas, antes de tudo, uma visualizao inconstante; Nenhuma traduo faz meno traduo francesa que a

    precede (salvo a primeira);

    44 [...] croit gnralement que Jos de Alencar est un romancier dimagination facile et charmante.45 Et ce Brsil, qui la lu et relu, ne le connat pas encore.46 La France va maintenant commencer le [Alencar] connatre par Iracma, dans la dlicate et puissante traduction de Philas Lebesgue, qui rend ainsi, encore une fois, un incomparable service de plus aux lettres brsiliennes.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 45

    Nenhuma traduo faz referncia ao texto-fonte brasileiro; A origem lingustica traduit du portugais est presente em

    50% das tradues (as de O Guarani); a meno traduit du portugais (Brsil) introduzida em 1985; enfim, somente a traduo de 1928 informa a origem cultural do romance pelo subttulo genrico Roman Brasilien; A insero em colees especficas (Grandes Aventures e Au-

    rore) modifica ou desvia (dtourne, segundo o termo de Ca-sanova) o alcance original das obras, limitando assim o perfil de leitores; O estatuto da traduo do texto O Guarany, sendo tradu-

    zido e adaptado, ambguo, justamente porque ele adap-tado; Duas tradues, O Guarany (1947), que traz, portanto, uma

    introduo, e Iracema (1985), sem paratexto, no fazem ne-nhuma referncia traduo propriamente dita. Na introduo da traduo de 1902 de O Guarany, o tradu-

    tor afirma respeitar o texto original e desculpa-se por o texto traduzido ser mal escrito em francs; segundo o tradutor, ele j o no original; o tradutor admite que interiorizou o esta-tuto tradicional de inferioridade do ato de traduzir.

    Na introduo da traduo de Iracma, em 1928, Rezende menciona, de passagem, a traduo de Lebesgue, qualificando-a de delicada e poderosa, um incomparvel servio s letras brasileiras.

  • Parte 2

    Discursos etnocntricos na trilogia de Machado de Assis

    Quando nos referimos aos clssicos da literatura brasileira, o primeiro nome citado sempre Machado de Assis (1839-1908). Ele foi o escritor brasileiro que, em vida, alcanou maior celebridade. Nasceu no Rio de Janeiro na Chcara de Livramento1, propriedade rural na qual seus avs paternos haviam nascido escravos (os avs ma-ternos vieram dos Aores). Seu pai trabalhava como pintor e a me costurava e s vezes ensinava. rfo muito cedo, ficou sob a proteo da proprietria da chcara. Foi fora da escola, com um padre, que ele aprendeu latim e francs.

    Com dezesseis anos, entrou na Imprensa Nacional Brasileira como tipgrafo. Depois, foi contratado para a redao em vrios jor-nais e publicou crnicas, contos, poemas e artigos de crtica literria e teatral. Aos trinta anos, comeou uma carreira burocrtica no Dirio Oficial e, em seguida, na Secretaria da Agricultura. Publicou vrios ro-mances.

    Fervoroso partidrio do abolicionismo, denuncia, satiriza e entusiasma. uma das maiores personalidades da literatura brasilei-ra, o primus inter pares2. A posio do escritor e de suas obras no siste-ma literrio e cultural brasileiro a de um homem de letras, que mor-

    1 Breve apanhado biogrfico feito a partir de: Machado de Assis. Antologia de estudos, 1982.2 Machado de Assis 150 anos, 1988, p. 7.

  • 48 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    reu, quando era presidente da Academia Brasileira de Letras que ele fundou e da qual foi o primeiro presidente , respeitado e canonizado.

    Trs romances de Machado de Assis suscitaro retradues em francs, os trs pertencentes sua trilogia, com dois personagens que rompem com os princpios da invisibilidade e da oniscincia: o narrador-autor-protagonista-anti-heri e o leitor-personagem. Estes trs romances desvelam tringulos amorosos:

    [Brs Cubas/Virglia/Lobo Neves] em Memrias Pstumas de Brs Cubas (1881)

    [Rubio/Sofia/Palha] em Quincas Borba (1892)[Bentinho/Capitu/Escobar] em Dom Casmurro (1900)

    Dois desses romances so interligados, pois a personagem Quincas Borba tambm uma personagem de Memrias Pstumas de Brs Cubas.

    O implcito colonial em Dom Casmurro

    Existem no total cinco tradues e/ou reedies de traduo o que nos cabe determinar tendo como ttulo Dom Casmurro e feitas por dois tradutores diferentes: Francis de Miomandre nas publicaes de 1936, 1956, 1989 e 1997 e Anne-Marie Quint na de 1983. Sinteti-camente, o romance, escrito na primeira pessoa, e tendo como pano de fundo o Rio de Janeiro da metade do sculo XIX, a histria de Benti-nho, jovem prometido vida religiosa por sua me e que se apaixona por sua jovem vizinha, Capitu, que desposar. Toda a trama gira em torno de um eventual adultrio de Capitu e Escobar (amigo de Bentinho). O romance no fornece, entretanto, nenhuma prova decisiva.

    Nas capas das edies de 1936 e 19563 figura claramente o nome do tradutor, Francis de Miomandre, em negrito, precedido

    3 As edies que possumos, a de 1936, publicada pelo Institut International de Coopration Intellectuelle, e a de 1956, publicada pela Albin Michel, so fotocpias obtidas na Faculdade de Letras de Toulouse na Frana. difcil descrev-las com preciso, sobretudo quanto ao formato ou s eventuais ilustraes que no aparecem nas fotocpias.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 49

    pela informao traduit du portugais par na edio de 1956 e tra-duction de na edio 1936. Ou seja, em 1936, no esclarecido de qual lngua ou de qual cultura o romance traduzido. As duas edi-es trazem a meno revues par Ronald de Carvalho

    4. Nada indi-

    ca, primeira vista, que se tratem de tradues de uma obra brasilei-ra, j que nenhuma referncia a esta mencionada, seno o traduit du portugais, que poderia muito bem ser de Portugal ou de outro pas lusfono. Os dois ttulos so idnticos: Dom Casmurro, o que coloca em evidncia sua natureza estrangeira. Quanto s edies de 1989 e de 1997, so publicadas pela editora Albin Michel em for-mato de bolso (podendo, segundo Genette, tanto denotar o carter popular de uma obra como o seu acesso ao panteo dos clssicos5) e igualmente traduzidas por Francis de Miomandre.

    Na capa da edio de 1997 no feita meno ao tradutor ou natureza da traduo do texto, trazendo apenas o ttulo Dom Casmurro e o nome do autor Machado de Assis, nome esse de co-notao estrangeira:

    4 Revistas por Ronald de Carvalho. Ronald de Carvalho (Rio de Janeiro 1893-1935) foi um poeta modernista brasileiro que participou em 1915 da criao de uma revista futurista portuguesa, Orfeu, e publicou, entre outras obras, Toda a Amrica, em 1926.5 GENETTE, 2010, p. 23.

  • 50 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Isso o insere automaticamente no sistema literrio francs; em todo o caso, nada o distingue, e leva o leitor no advertido a pensar que Machado de Assis escreveu Dom Casmurro em francs, a menos que j conhea o autor brasileiro.

    A edio de 1997 no assume primeira vista sua natureza de texto traduzido e somente na folha de rosto que ficamos sa-bendo que se trata de um roman traduit du portugais par Francis de Miomandre. Tambm nela, nada faz aluso sua origem brasi-leira. Essa edio de fato idntica de 1989, que tem um ndice suplementar e pertence coleo Bibliothque Albin Michel, o que no indica absolutamente que se trata de um romance brasi-leiro, muito menos que um texto traduzido. E, como ocorre na edio de 1997, somente ao abrir o livro, na pgina de rosto, que podemos ler roman traduit du portugais par. Enfim, a contracapa da edio de bolso de 1997 composta de um pequeno comentrio crtico e annimo sobre o romance e sobre o estilo de Machado de Assis, sem jamais revelar a origem brasileira do romance. o press release na contracapa que revela algumas indicaes sobre a obra. Em outros termos, segundo Genette, trata-se de Um texto curto (geralmente de meia a uma pgina) que descreve, maneira de resumo ou de qualquer outro meio, e de modo normalmente elogioso, a obra a que se refere.6

    Por outro lado, a contracapa da edio de 1989 resgata, em cerca de quinze linhas, fragmentos do prefcio da edio de 1956, as-sinado pelo tradutor Francis de Miomandre. Nele, l-se que Macha-do de Assis era mestio, pobre e que jamais saiu de sua cidade. Mas qual? Onde? No h indicao sobre a cidade que , de fato, o Rio de Janeiro. O tradutor no faz aluso sua traduo, mas qualifica Dom Casmurro de obra-prima do autor.

    J a edio de 1983, publicada pela editora A. M. Mtaili, apresenta na capa o texto de Dom Casmurro como sendo um ro-mance de J. M. Machado de Assis, traduzido por Anne-Marie Quint para a coleo Bibliothque Brsilienne:

    6 Ibid, p. 97.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 51

    Todos os elementos informativos da capa so preciosos quan-to natureza do texto que, includo em uma coleo como a Biblio-thque Brsilienne, apresenta-se no somente como uma obra tra-duzida, mas tambm adverte o leitor, mesmo que de forma implcita, que o texto correspondente brasileiro. Uma pintura retratando um casal de noivos completa nossa descrio.

    A contracapa apresenta um fragmento do texto da traduo de Anne-Marie Quint, de quinze linhas, extrado do meio do captulo 33, intitulado O penteado. A escolha desse captulo parece ser aleatria, pois no se trata de captulo decisivo quanto suspeita nutrida por Dom Casmurro em relao Capitu e Escobar. Logo aps esse frag-mento, h dois comentrios sobre o autor e a obra: o primeiro uma citao de um escritor renomado tanto na Europa quanto no Brasil

    7,

    Stefan Zweig, e o outro, uma frase de autor annimo que supomos ser o editor. Esses textos fazem elogios ao grande romancista que foi 7 Quando Stefan Zweig chegou ao Brasil, em 1936, convidado pelo governo de Getlio Vargas para passar cerca de dez dias no pas, era considerado o escritor mais traduzido do mundo. Cativado pelo Brasil, ele prometeu ento retornar e escrever um livro sobre o pas. Foi o que fez, pois retornou em 1940 por seis meses nos quais comeou a escrever Brasil, pas do futuro (Brazilien - ein land der Zukunft), que terminaria em New York. Esse livro foi publicado simultaneamente em seis pases: Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, Alemanha, Frana e Brasil. Afrnio Peixoto, no prefcio da edio brasileira, escreveu que jamais nenhuma propaganda interessada, nacional ou estrangeira, falou to bem de nosso pas.

  • 52 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Machado de Assis, como constatamos na frase de Zweig: Em Macha-do de Assis, contista nato, a mistura de humor leve e de um ceticismo deliberado confere a cada romance um charme todo especial.

    Notemos que a escolha de citar Stefan Zweig no deve ser for-tuita, pois ele um escritor apreciado pelos dois sistemas culturais, brasileiro e francs, unidos por esse denominador comum. um car-to de visita nada desprezvel para o romance. Resta-nos acrescentar que a meno da data da traduo no figura na edio de 1936, nem na de 1956, mas sim nas edies de 1983, 1989, e 1997, como pode-mos ver nos quadros recapitulativos que seguem:

    Capa

    Ttulo Autor Meno do tradutor Editora ColeoData da

    publicao

    Dom Casmurro

    Machadode Assis

    Traduo F. de Miomandre

    Inst. Coopr. Intellect. f 1936

    Dom Casmurro

    Machadode Assis

    Traduit du portugais par F. de Miomandre

    Albin Michel f 1956

    Dom Casmurro

    Machadode Assis f Albin Michel

    Bibliothque Albin Michel 1989

    Dom Casmurro

    Machadode Assis f

    Albin Michel (Le Livre de Poche) f 1997

    Dom Casmurro

    Machadode Assis

    Traduit par A.M. Quint Mtaili

    Bibliothque Brasilienne 1983

    Pginas internas Data publ.

    Meno do tradutor

    Meno lngua/cultura de origem

    Meno data da traduo

    Referncia obra original

    1936 f Traduit du portugais f f

    1956 f f 1956 by editions Albin Michel f

    1989 F. de Mio-mandreTraduit du portugais

    Editions Albin Michel 1956 f

    1997 F. de Mio-mandreTraduit du portugais

    Editions Albin Michel 1956 f

    1983 f f Traduo Franaise,

    Editions Mtaili , Paris, 1983

    Ed. originale Brasilienne: Dom

    Casmurro, Rio, 1899

  • Traduzir o Brasil Literrio | 53

    Esses quadros sublinham alguns pontos mais evidentes: As edies de 1989 e 1997 no so assumidas ao observar-

    mos a capa e levam a pensar que Machado de Assis o autor de romance escrito em francs; A edio de 1936, ainda observando-se a capa e a contracapa,

    assume ser uma traduo, sem precisar a origem; Nenhuma dessas edies, salvo uma, refere-se origem cultural

    brasileira, mas sim origem lingustica, traduit du portugais. Tal fato ocorre mesmo no final do sculo XX (1989, 1997); A edio de 1983 a nica a mencionar o original brasileiro

    sem, no entanto, especificar de qual lngua e/ou cultura o romance traduzido. A lacuna d espao deduo; A edio de 1956, mencionando que a traduo de 1956,

    apresenta-se como uma retraduo; A edio de 1983 uma retraduo, feita por outro tradutor;

    no caso, uma tradutora; As edies de 1989 e 1997 so reedies da edio de 1956.

    Examinemos agora o discurso de acompanhamento das tradu-es de Dom Casmurro. A edio de 1997 apresenta uma introduo que, segundo Genette, de fato um prefcio, qualificado, de forma mais modesta, de advertncia ou introduo8, com praticamente duas pginas, redigida por Linda L9. Esse prefcio comea fazendo um pa-ralelo entre o escritor portugus Ea de Queiroz e o escritor brasileiro:

    As letras portuguesas do sculo passado foram dominadas por duas grandes figuras Ea de Queiroz, em Lisboa, e Machado de Assis, no Brasil, separadas pelo estilo, mas cujas obras bebiam em uma mesma fonte: um sentimento de vergonha ligado a seus nascimentos.10

    8 GENETTE, 2010, p. 234. 9 Linda L uma romancista francesa de origem vietnamita que publicou seu primeiro romance, Un si tendre vampire, em 1986; desde ento publicou quase um romance por ano.10 Les lettres portugaises du sicle dernier taient domines par deux grandes figures Ea de Queiroz Lisbonne, Machado de Assis au Brsil que sparait le style, mais dont les uvres puisaient dans une mme source: un sentiment de honte li leur naissance.

  • 54 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    Tais letras portuguesas a que se refere L levam o leitor fran-cs a pensar que a literatura brasileira ainda hoje considerada como parte da literatura portuguesa. Ela procede em seguida a uma anlise da obra, depois de lembrar brevemente quem foi Machado de Assis e o que ele publicou, em sua opinio, de mais importante. Escolher Linda L, romancista de origem estrangeira que, alm de tudo, est inserida no sistema literrio francs, faz presumir que Machado de Assis, tam-bm estrangeiro, pode entrar entrar no sistema literrio francs pela via da traduo. Esta apresentao, feita por uma romancista em pleno sucesso, posiciona Dom Casmurro no crculo de uma literatura sempre contempornea e igualmente prometida ao sucesso.

    Nada dito, no entanto, sobre a traduo. H uma indica-o inscrita em letras pequenas que revela que, de fato, esta edio uma reedio de uma traduo j existente (Editions Albin Michel, 1956). O leitor no sabe naquele momento, e s h uma chance mnima de que venha a saber, que se trata da reedio da mesma tra-duo publicada em 1956

    11, pelo mesmo editor. Alm disso, o pre-

    fcio e a nota do tradutor, cuja ordem est invertida na reedio de 1997, escritos por Francis de Miomandre, so idnticos. Falta somente a curta biografia de Machado de Assis que figura na edi-o de 1956, mas que, em linhas gerais, repetida na introduo de Linda L (1997). Alm da biografia de Machado de Assis, a edio de 1989 apresenta, por um lado, a mesma introduo, um prefcio do tradutor no qual ele faz elogios ao romance brasileiro: De minha parte, no conheo em nenhuma literatura desse sculo XIX, que o sculo do romance, um romance mais perfeito que Dom Casmurro, que , ademais, a obra-prima do autor.12

    E por outro lado, a traduo apresenta a mesma nota do tradu-tor que homenageia quem revisou a edio, ou seja, Ronald de Carva-lho: Essa traduo j estava finalizada quando faleceu acidentalmente

    11 A confrontao da edio de 1956 com aquela de 1997 permite afirmar e confirmar que a ltima uma reedio: mesmo nmero de captulos (148), mesmos ttulos de captulos, mesmo texto (inclusive nas notas de p de pgina). Somente a editorao difere um pouco, provavelmente devido ao formato dos dois livros.12 Pour ma part, je ne connais dans aucune littrature de ce XIXme sicle, qui est pourtant le sicle du roman, un roman plus parfait que Dom Casmurro, qui est dailleurs le chef-duvre de lauteur.

  • Traduzir o Brasil Literrio | 55

    Ronald de Carvalho []; Esse homem ainda to jovem desfrutava de um futuro magnfico. O Brasil perdeu com ele uma fora.13

    No feita nenhuma meno ao processo de traduo por parte do tradutor.

    A composio idntica a de 1956, confirmando, assim, que a edio de 1989 de fato uma reedio da edio de 1956.

    Da primeira traduo de Dom Casmurro, datada de 1936, igualmente atribuda a Francis de Miomandre, sero repetidos, vinte anos depois, na edio de 1956, a nota do tradutor e, parcialmente, o primeiro de dois pargrafos dedicados a uma biografia de Machado de Assis. H em cada uma dessas edies um prefcio: um deles escri-to pelo tradutor retoma o segundo pargrafo da biografia de 1936, que aborda, como vimos, as caractersticas literrias do autor bra-sileiro. O outro prefcio assinado pelo escritor brasileiro Afrnio Peixoto, membro da Academia Brasileira de Letras, que procede da mesma forma, retomando as caractersticas da obra. Ele faz igual-mente referncia traduo, admitindo por meio de metforas que esta ltima inferior ao original:

    O original j uma traduo por si s e, na maioria das vezes, infiel: como reproduzir essa traduo? redestilar um perfume. Que res-ta das flores? Para ser exato, deveria-se dizer: perfume que lembra a violeta, aroma extrado de um aroma de rosa.

    14

    Ele admite tambm que a traduo tem uma funo de divul-gao cultural certeira: A traduo uma homenagem, uma consa-grao. Ela lisonjeia o autor, ela faz conhecer um pas. Ser traduzido

    13 Cette traduction tait termine lorsquest survenue la mort par accident, de Ronald de Carvalho []; Cet homme encore si jeune avait devant lui un avenir magnifique. Le Brsil a perdu en lui une force.14 Loriginal est dj une traduction, en lui-mme, et la plupart du temps infidle: comment reproduire cette traduction? Cest redistiller un parfum. Que reste-t-il des fleurs? Pour tre exact on devrait dire: Parfum qui rappelle la violette, Arme extrait dun arme de rose. PEIXOTO, Afrnio. Prefcio (In: ASSIS, 1936, p. 8).

  • 56 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    em todas as lnguas a glria internacional. Esse prefcio ser suprimido na edio de 1956.Quanto retraduo de 1983, importante ressaltar que ela

    no traz nem nota do tradutor ou do editor, nem prefcio ou introdu-o. Em contrapartida, Anne-Marie Quint, a tradutora, anexa ao final do volume um posfcio, moldado segundo os princpios de um pre-fcio, constando nele uma biografia do autor, um resumo do roman-ce, bem como uma apresentao dos principais personagens de Dom Casmurro, guiando assim o leitor ao lhe explicar por que e como ler o romance. No trata, no entanto, de sua traduo em nenhum momen-to, nem das tradues de Francis de Miomandre, visto que sua nota de tradutor na realidade uma homenagem pstuma ao amigo Ronald de Carvalho, que revisou a traduo, como est indicado na capa do livro. possvel observar que ao longo do sculo XIX nenhum dos tradutores fez qualquer referncia ao conceito de traduo.

    Enfim, nenhuma dessas (re)edies nos remete edio brasi-leira, exceto a de 1983, que na pgina seis informa: Edition originale Brsilienne: Dom Casmurro, Rio, 1899. Esta edio , por conseguin-te, a nica a referir-se existncia de outro texto, assumindo sua exis-tncia, o que, segundo Toury, o ponto de partida da traduo:

    Olhar um texto como uma traduo envolve a bvia concordncia de que h outro texto, em outra cultura/lngua, o qual tem prioridade cronolgica e lgica sobre ele: no somente como um texto assumi-do, precedendo aquele tomado para ser sua traduo, mas tambm presumido que serviu como ponto de partida e base para o ltimo.

    15

    Em suma, das cinco edies francesas de Dom Casmurro, to-das, salvo as duas reedies publicadas pela Albin Michel em for-mato de bolso, assumem ser textos traduzidos, com mais ou menos ndices paratextuais, como acabamos de ver.

    15 Regarding a text as a translation entails the obvious assumption that there is another text, in another culture/language, which has both chronological and logical priority over it: not only has such an assumed text assumedly preceded the one taken to be its translation in time, but it is also presumed to have served as departure point and basis for the latter (TOURY, 1995, p. 33-4).

  • Traduzir o Brasil Literrio | 57

    Quadro recapitulativo dos discursos de acompanhamento:Data da

    publicao Introduo PrefcioNota

    do tradutor Posfcio

    1936 f A. Peixoto FdM f

    1956 f FdM FdM f

    1989 f FdM FdM f Reedio da traduode 1956

    1997 Linda L FdM FdM f Reedio da traduode 1956

    1983 f f f AMQ

    Do discurso acadmico ao miditico em Quincas Borba

    Existem quatro tradues e/ou reedies de tradues de Quincas Borba: trs trazem o ttulo em francs Quincas Borba e a lti-ma edio, a de 1997, difere das demais pois tem como ttulo Le phi-losophe ou le chien, Quincas Borba [O filsofo ou o co, Quincas Borba]. Dois tradutores diferentes traduziram o romance: Alain de Acevedo, em 1955, e Jean-Paul Bruyas, em 1990, 1995 e 1997. As duas ltimas (1995 e 1997), como veremos, so reedies daquela de 1990.

    O romance Quincas Borba, narrado em terceira pessoa, tem como pano de fundo a sociedade burguesa do Segundo Imprio no Bra-sil, contando a histria de Rubio, um professor que herda a fortuna de Quincas Borba, filsofo inventor da Humanitas. Rubio cair na teia de um casal ambicioso, Sofia e Palha. Sofia, alm de tudo, vendo que ele est rico, lhe d algumas (falsas) esperanas, assim que se apercebe que Ru-bio, apaixonado, submerge na loucura. Rubio, anti-heri, ser expulso metodicamente de seu mundo, at morrer louco e pobre.

    Vamos descrever primeiramente o Quincas Borba traduzido por Alain de Acevedo em 195516. Conforme a capa, esta primeira traduo publicada pela editora Nagel, sob a gide da UNESCO na coleo Obras Representativas [uvres Reprsentatives], o que situa

    16 Trata-se de uma fotocpia da obra que se encontra na Universidade de Montpellier, na Frana, em preto e branco e sem ilustrao.

  • 58 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    o romance como vimos em Iracema como obra-prima da literatura brasileira. Ainda na capa encontramos o nome do autor, Machado de Assis, o ttulo do romance seguido de Traduction de A. De Acevedo [traduo de A. de Acevedo] e Introduction de Roger Bastide [Intro-duo de Roger Bastide]. Sabemos ento que se trata de uma traduo, porm ignoramos de que cultura e de que lngua. A meno da intro-duo est escrita com os mesmos caracteres (corpo, fonte e tipo) logo abaixo de Traduo de , o que deixa subentendida a importncia da introduo. A contracapa17, que apresenta uma lista da Srie Ibero--Amricaine (Mxico, Cuba, Uruguai, Argentina, Bolvia) da Coleo Unesco de Obras Representativas, um indcio de que Quincas Borba faz parte dessa srie Ibero-americana, localizando geograficamente (ou continentalmente) a origem do romance. Em seguida, a edio de 1995, publicada pela editora Mtaili, assume imediatamente, desde a capa, ser uma traduction du Portugais [traduo do portugus], espe-cificando, entre parnteses, Brsil. O fato de mencionar o Brasil situa de imediato essa traduo como sendo uma traduo de uma obra inserida no sistema literrio brasileiro, fato apoiado pela meno Bi-bliothque Brsilienne escrita verticalmente na capa:

    17 Genette afirma que o press-release, mesmo impresso na contracapa, tem vocao transitria: pode desaparecer numa reimpresso, numa mudana de coleo, numa passagem para o formato de bolso (GENETTE, 2010, p. 105).

  • Traduzir o Brasil Literrio | 59

    Nela, lemos o ttulo Quincas Borba, o nome do autor Ma-chado de Assis e o do tradutor Jean-Paul Bruyas. H tambm uma pintura de poca do Rio de Janeiro. A contracapa apresenta em uma dzia de linhas um resumo do romance e duas frases sobre a obra: uma de Stefan Zweig, que fala da mistura de humor e do ce-ticismo de Machado, e outra, tirada do jornal Le Monde, que afirma que se trata de um grande autor a ser descoberto. O que nos chama ateno aqui o nome do escritor Zweig, j citado pela traduo de Dom Casmurro. Os editores certamente tiveram as mesmas razes de optar por lanar a obra traduzida pelas palavras de um escritor renomado e conhecido dos franceses; portanto, com credibilidade e digno de confiana. A reputao intelectual do jornal Le Monde tambm refora essa ideia. Na pgina de rosto, encontramos as re-ferncias Edition originale Brsilienne [edio original brasileira] bem como a data da traduo francesa, 1990. No fim do volume, h duas listas de tradues publicadas pela editora Mtaili, uma que pertence Bibliothque Brsilienne, e outra, Bibliothque Hispano-Amricaine.

    Quanto edio de 1997, a nica que se apresenta sob a forma de uma edio de bolso, tambm publicada pela Mtai-li, traz na capa o nome do autor, Machado de Assis, o ttulo, Le philosophe ou le chien Quincas Borba, e o nome da coleo: Suites. O ttulo diferente dos demais, ou seja, ele parafrase-ado, contendo um desenvolvimento explicativo e ampliado em relao aos anteriores (Quincas Borba). Percebe-se que, na capa, o ttulo divide-se em duas partes graas aos recursos tipogrfi-cos utilizados:

  • 60 | Paratexto e discurso de acompanhamento - Volume 1

    De fato, Quincas Borba era no somente o nome do filsofo do qual Rubio herdou a fortuna, o protagonista do romance, mas tam-bm do cachorro do defunto filsofo, co o qual Rubio suspeitava ter recebido o esprito de seu dono. O ttulo desta edio de 1997 revela uma vontade do tradutor e/ou do editor de torn-lo mais explicativo, mais atrativo: quem ento este Quincas Borba? Um filsofo? Um co? O leitor francs precisa, evidentemente, ler o romance para o des-cobrir. Nenhuma meno ao tradutor est presente na capa e Machado de Assis parecer, primeira vista, ser o autor deste romance escrito em francs. Um ltimo dado completa a descrio da capa: desenhada ao fundo, uma palmeira. J que as palmeiras so originrias das regies quentes, tropicais, a ilustrao sugere um romance que transportar o leitor at uma dessas regies. Mas qual? somente examinando a contracapa, a pgina de rosto e anexos que descobriremos os elemen-tos suplementares caracterizando a traduo. Atrs, est especificado que se trata de um romance brasileiro e que foi Traduit du Portugais (Brsil) par Jean-Paul Bruyas [traduzido do portugus (Brasil) por Jean-Paul Bruyas] para a coleo Suite Brsilienne. H tambm o mesmo resumo, desta vez reduzido metade daquele da contracapa da edio de 1995, assim como um texto elogioso sobre o romance na contracapa, oriundo de duas crticas literrias. Uma de autoria de

  • Traduzir o Brasil Literrio | 61

    M. Crpu, do jornal La Croix, e outra de P. Kchichian, do jornal Le Monde. O excerto retirado do Le Monde no causa espanto a priori porque ele reconhecido pelos franceses como um jornal srio e intelectualmente respeitado. Por outro lado, a crtica do La Croix mais surpreendente, no porque no seja um jornal srio e respei-tado, mas porque um jornal especificamente catlico e o romance no em si uma obra de conotao catlica. A razo talvez seja porque, sendo uma traduo de um romance brasileiro, e saben-do que o Brasil um dos pases que concentra o maior nmero de catlicos do mundo, ao focar no pblico catlico, as palavras de M. Crpu, do La Croix, poderiam eventualmente diversificar e au-mentar o nmero de leitores do jornal. Catlicos e intelectuais so assim indiretamente interpelados. Na capa, encontramos as mes-mas indicaes de data de traduo, de referncia obra original, assim como as duas listas do final da obra de 1995. Vejamos uma recapitulao rpida:

    Capa

    Ttulo Autor TradutorLngua/cultura

    de origem

    Edi-tora Coleo

    Data da publicao

    Quincas Borba

    Machadode Assis

    Alain de Acevedo f Nagel

    UNESCO duvres

    Reprsentatives1955

    Quincas Borba

    Machadode Assis

    Jean-PaulBruyas

    Traduit du portugais (Brsil)

    Mtai-li

    Bibliothque Brsilienne 1995

    Le philosophe ou le chien

    Quincas Borba

    Machado de Assis

    Jean-PaulBruyas

    Traduit du portugais (Brsil)

    Mtai-li Suites 1997

    Pginas internasData da

    publicaoLngua/cultura

    de origem Data da traduo Referncia obra original

    1955 f f f

    1995 fTraduction franaise:

    Editions Mtaili, Paris, 1990

    Edition originale brsilienne: Quincas Borba,

    Rio de Janeiro, 1891

    1997 Traduit du Portugais (Brsil)

    Traduction franaise: Editions Mtaili,

    Paris, 1990

    Edition originale brsilienne: Quincas Borba,

    Rio de Janeiro