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5° Seminário Nacional de Língua e Literatura: Teoria e Ensino Leitura, produção discursiva e multimodalidade MATRIMÔNIOS MACULADOS: CASAMENTOS E INFIDELIDADES NOS ROMANCES DOM CASMURRO, DE MACHADO DE ASSIS E O PERDÃO, DE ANDRADINA DE OLIVEIRA. TAINTED MARRIAGES: UNIONS AND INFIDELITIES IN MACHADO DE ASSIS’S DOM CASMURRO, AND ANDRADINA DE OLIVEIRA’S O PERDÃO Thiago Moreira Aguiar 1 (UFSM) RESUMO A partir do estudo comparativo de O perdão, de Andradina de Oliveira, e Dom Casmurro, de Machado de Assis, este trabalho pretende traçar um perfil mais conciso dos discursos literários de fins do século XIX e início do XX, buscando compreender as diferenças e semelhanças das visões entre a autoria feminina e masculina, na representação de questões históricas dentro do discurso literário, em especial sobre a questão do próprio gênero feminino e sua atuação na seara da esfera social. O aporte teórico vincula-se, principalmente, pelos estudos sobre alteridade na ótica de Michel Foucault, sobretudo no que tange a questão genealógica, e nas diferentes formas de representação do sujeito. Palavras-chave: discurso literário, teoria feminista, adultério. ABSTRACT From the comparative study of Andradina de Oliveira’s O perdão and Machado de Assis’s Dom Casmurro, this paper aims at producing a more concise listing of literary discourses of the late 19th and early 20 th centuries, trying to understand the differences and similarities visions between female and male authors and the representation of historical issues within the literary discourse, particularly when it comes to the issue of women's social roles in the social sphere. The theoretical contribution is linked primarily by studies on alterity (Michel Foucault), especially regarding family relations, and different forms of representation of the subject. Keywords: literary discourse, feminist theory, adultery. 1 INTRODUÇÃO Uma discussão que não é nova e que permanece ainda hoje extremamente apropositada são as contradições existentes nos papéis sociais vivenciados por homens e mulheres, independentemente do momento histórico em que se inserem. Os estudos sobre gênero são vários e diversificados, e também o são as linhas científicas de pesquisa que procuram debater sobre o assunto. Contudo, justamente pela permanência dessas divergências, patenteadas por movimentos feministas que percorrem o século XIX até os 1 Graduado em História pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), e mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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multimodalidade

MATRIMÔNIOS MACULADOS: CASAMENTOS E INFIDELIDADES NOS

ROMANCES DOM CASMURRO, DE MACHADO DE ASSIS E O PERDÃO, DE

ANDRADINA DE OLIVEIRA.

TAINTED MARRIAGES: UNIONS AND INFIDELITIES IN MACHADO DE ASSIS’S

DOM CASMURRO, AND ANDRADINA DE OLIVEIRA’S O PERDÃO

Thiago Moreira Aguiar1(UFSM)

RESUMO

A partir do estudo comparativo de O perdão, de Andradina de Oliveira, e Dom Casmurro, de Machado de Assis,

este trabalho pretende traçar um perfil mais conciso dos discursos literários de fins do século XIX e início do

XX, buscando compreender as diferenças e semelhanças das visões entre a autoria feminina e masculina, na

representação de questões históricas dentro do discurso literário, em especial sobre a questão do próprio gênero

feminino e sua atuação na seara da esfera social. O aporte teórico vincula-se, principalmente, pelos estudos sobre

alteridade na ótica de Michel Foucault, sobretudo no que tange a questão genealógica, e nas diferentes formas de

representação do sujeito.

Palavras-chave: discurso literário, teoria feminista, adultério.

ABSTRACT

From the comparative study of Andradina de Oliveira’s O perdão and Machado de Assis’s Dom Casmurro, this

paper aims at producing a more concise listing of literary discourses of the late 19th and early 20th

centuries,

trying to understand the differences and similarities visions between female and male authors and the

representation of historical issues within the literary discourse, particularly when it comes to the issue of

women's social roles in the social sphere. The theoretical contribution is linked primarily by studies on alterity

(Michel Foucault), especially regarding family relations, and different forms of representation of the subject.

Keywords: literary discourse, feminist theory, adultery.

1 INTRODUÇÃO

Uma discussão que não é nova e que permanece ainda hoje extremamente

apropositada são as contradições existentes nos papéis sociais vivenciados por homens e

mulheres, independentemente do momento histórico em que se inserem. Os estudos sobre

gênero são vários e diversificados, e também o são as linhas científicas de pesquisa que

procuram debater sobre o assunto. Contudo, justamente pela permanência dessas

divergências, patenteadas por movimentos feministas que percorrem o século XIX até os

1 Graduado em História pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), e mestrando em Estudos Literários na

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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dias de hoje2, cada vez mais atuantes, e desigualdades muitas dentro do que se supõe “o

sistema democrático”, a proposta temática de se discutir as assimetrias de poder nas

relações entre homens e mulheres ainda se faz viva e necessária.

Dessa forma, este artigo pretende retomar e analisar uma parte dos discursos que,

durante séculos, relegaram a mulher a um plano secundário nas questões mais

preponderantes da atividade humana. Nesse sentido, pensando a literatura como uma

manifestação que dá voz ao contexto social em que está inserida, o que se pretende

desenvolver aqui é uma breve análise comparativa acerca de duas obras literárias que

oferecem visões distintas sobre a parcialidade masculina em relação à função social da

mulher. Na tentativa de coadjuvar de maneira mais concisa sobre esse conteúdo, os

romances Dom Casmurro (de Joaquim Maria Machado de Assis) e O perdão (de Andradina

América Andrade de Oliveira) podem trazer à tona novas questões para a historiografia

literária brasileira, dando luz principalmente à voz feminina até então eclipsada pela

literatura da época.

Busca-se, paratanto, analisar como se dá a construção da personagem feminina e das

relações familiares na ótica desses dois autores, buscando através da análise e interpretação

do texto literário a partir de uma epistemologia comparatista, tais eram suas vicissitudes e

aproximações, os sentidos atribuídos tinha à participação da mulher na sociedade, e quais

eram suas expectativas (na visão de cada um dos autores). Os discursos que permeiam e que

ajudam a sustentar a manutenção da sociedade patriarcal brasileira de fins do século XIX e

início do século XX estão ligados, com certeza, ao âmbito familiar. Desta maneira, um

comportamento inadequado das mulheres tais como a traição de uma esposa para com seu

cônjuge não se manifesta apenas como uma questão moral da infidelidade, mas se estende

para uma desarticulação completa do papel feminino no seio de um sistema

heteronormativo. Nesse sentido, são muitas as possiblidades de se estabelecer quais eram

as expectativas e os desejos de homens e das mulheres dentro da ideologia matrimonial

patriarcalista, assim como o comportamento feminino na traição e nas infidelidades

sociais, além de como a sociedade reagia às infidelidades femininas.

2 Segundo Constância Lima Duarte (2003), os movimentos feministas tiveram início no Brasil já na primeira

metade dos oitocentos, acompanhando, mesmo que não no mesmo ritmo e intensidade, as transformações que

ocorriam em grande parte da Europa. Dentre os principais motivos e causas a serem defendidas, estão, a

princípio, o direito à leitura e ao trabalho, e neste sentido o jornal exerceu um papel destacado nessa luta pela

emancipação feminina, tendo como proprietárias, muitas vezes, as próprias mulheres.

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Para caracterizar os tipos de relações de poder que poderiam permear os

personagens e, consequentemente, o quotidiano brasileiro desse momento, foi utilizado o

aporte teórico de Michel Foucault. A partir dos estudos do filósofo sobre alteridade e,

sobretudo, no que tange à questão genealógica, pretende-se traçar um perfil que estabeleça

os possíveis limites existentes nos discursos dos personagens, assim como suas

transcendências. Da mesma forma, intentar sobre como eram visualizadas as estruturas

sociais e institucionais, como a do casamento, por exemplo, que também se enquadram

nessas relações de força, torna-se justo pensar nas diferentes formas de representação do

sujeito, indo ao encontro da perspectiva de Michel Pêcheux.

Este estudo faz parte de um projeto de mestrado em fase inicial. A metodologia

deste trabalho se constitui basicamente com pesquisa bibliográfica, fazendo um

levantamento da fortuna crítica dos dois romances, além de uma e análise contrastiva das

obras sob um viés de cunho comparatista, com ferramentas conceituais advindas da teoria

feminista. O artigo apresenta-se estruturado basicamente em três momentos: na primeira

parte consta uma pequena biografia da vida do escritor Machado de Assis com o intuito de

pensar brevemente sobre a profundidade de sua narrativa crítica, além de algumas

observações sobre o seu romance Dom Casmurro; por conseguinte há um curto resumo do

romance O Perdão, de Andradina de Oliveira, no qual já se principia um mapeamento das

semelhanças e das divergências nas duas narrativas, em se tratando da representação das

personagens femininas contidas nas duas obras; por fim, algumas conclusões tiradas a

partir da análise comparatista, contendo ainda proposições para desenvolvimento de

pesquisas futuras.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 O GUME DO MACHADO

No primeiro caso, o bruxo do Cosme Velho personifica o típico cânone literário

concernente à época, onde o lugar da intelectualidade pertencia unicamente ao “gênio”

masculino, excluindo a voz feminina da esfera culta. Dessa forma, a imagem da mulher

que era reproduzida na corrente literária até a virada do século XX, em específico,

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pertencia basicamente aos olhares dos escritores homens, onde frequentemente exerciam

um papel social inferior ao masculino (SANTOS, 2007). Contudo, a carreira de Machado

de Assis é uma contínua quebra de tais paradigmas, indo de encontro aos discursos

literários recorrentes.

Nesse sentido, Machado de Assis possui uma biografia bastante singular e uma

produção de textos carregados de prodigiosos significados e intenções, que abrem

incontáveis caminhos aos quais se podem discorrer interpretações literárias, além de uma

compreensão mais aguçada do período histórico proposto. Isso porque, ao que tudo indica,

no decorrer de sua vida profissional, tanto de escritor como de funcionário público,

Machado de Assis sempre manteve uma preocupação constante com problemas,

principalmente sociais, de sua época. Carioca, nascido em 1839, o autor participou

ativamente de momentos contundentes na história brasileira, presenciando de perto

transformações sociais ocorridas, a exemplo da passagem do Império para o Regime

Republicano. Entretanto, esse empenho nas denúncias sociais não se restringia somente à

tinta de sua pena, como também em sua atuação como chefe da Diretoria da Agricultura,

do Ministério da Agricultura Imperial, solidificou ainda mais seu envolvimento com os

problemas por ele vividos (CHALHOUB, 2005).

Dessa forma, Machado de Assis estava diretamente ligado aos discursos de uma

classe que se perpetuava no poder devido, em muito, à reprodução de suas próprias

artimanhas políticas. Essa convivência com a alta sociedade o fez ver mais de perto e

também de “cima” as teias que iam constituindo as redes de dominação e de reprodução do

sistema patriarcal brasileiro. Por outro lado, em muito devido à sua origem extremamente

humilde e ao fato de ser um mulato autodidata dentro de um regime escravocrata e

preconceituoso, o conhecimento das agruras da pobreza lhe eram deveras familiares. Nesse

sentido, o escritor sabia descrever esses mecanismos de arbítrio como poucos em suas

obras, da mesma forma que as resistências à opressão e as artimanhas dos reprimidos para

concretizarem seus objetivos. Na ótica do escritor Machado de Assis, em relação à tirania

machista, o gênero feminino ganha um destaque bastante singular, principalmente nos

romances da sua “Segunda Fase”, na qual é percebida uma enorme maturidade do

romancista. As mulheres machadianas distanciam-se do idealismo romântico e do

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sentimentalismo; agora são mais astuciosas, egoístas e manipulam o contexto ao seu redor

para chegar ao seu objetivo final (NOVAKOVSKI, 2008).

O clássico Dom Casmurro é uma obra extremamente representativa desse segundo

momento machadiano, no qual a situação vivida por Capitu, narrada em primeira pessoa

através das memórias do Bentinho, torna-se muito fidedigna dentro do contexto agrário e

escravocrata do Império brasileiro. Mulher enigmática, Capitu traz uma história de

contradições e cerceamentos; da mesma forma que apresenta um forte amor por seu

marido, possui também uma capacidade de dissimular imperiosa para driblar as mazelas

impostas pela cultura masculina – ao menos é o que nos afirma peremptoriamente o

narrador do romance. Modelo inveterado de mulher de fins dos oitocentos, que tem a sua

gênese na pobreza, projeta-se desde cedo para a conclusão de um casamento que lhe dê

melhores garantias sociais.

Contudo, o casamento de Capitu apresenta singularidades que tornam infindas as

pesquisas. Tônica da sociedade da época, o matrimônio bem-sucedido era visto pela

burguesia como ponto máximo de status. No caso de Dom Casmurro, algumas das

especificidades começam já no próprio perfil do noivo, que desde a sua infância apresenta

um comportamento submisso e uma postura plácida, superprotegido pela mãe, com poucas

referências da figura paterna, uma carreira projetada para o celibato e que possui uma

“duvidosa” amizade com Escobar, amigo de seminário. Sem conseguir representar os

moldes burgueses de sua época, Bento Santiago apresenta um comportamento psicótico,

não conseguindo representar a figura paterna para com o seu filho e não correspondendo

mais à sua esposa, chegando ao fim por duvidar de sua fidelidade (FREITAS, 2001).

Indo de encontro ao marido, Capitolina Pádua configura uma mulher de fibra, que

não se desdobra. Machado de Assis coloca em evidência a insegurança e a submissão do

narrador em contraste com o perfil reflexivo e estrategista de Capitu, nas palavras do

próprio narrador: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do

que eu era homem” (ASSIS, 1947, p. 342). Nesse sentido, se Capitolina encarnava um

perfil de “verdadeira mulher” em desarmonia com o fraco marido, intui-se, dessa forma,

que possivelmente o relacionamento com Santiago não a satisfazia como “um ser macho”.

Por outro lado, Escobar aparece como uma alternativa, pois é representativa a sua

descrição: um homem habilitado para os negócios (também possuía certa estabilidade

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financeira), com braços fortes e tipo atlético, tendo a natação como seu hobby. Sobre o

jogo desenvolvido sobre a infidelidade na trama, segue:

A imagem superficial de Capitu impede elucubrações mais ousadas, contudo pode-

se inferir que a moça, se traiu, é porque não suportou a posição de dependência

exacerbada, o ciúme desmedido. Bento não era um homem, tornara-se uma criança

carente, demandante de atenção e amor. O filho Ezequiel tornara-se também um

rival na disputa pelas atenções maternas. Morto Escobar, Ezequiel tomava o seu

lugar como representante do adultério materno (FREITAS, 2001, p. 137).

2.2 O CONSOLO DE CASMURRO

Por conseguinte, O perdão, de Andradina de Oliveira, é um romance que

permaneceu periférico dentro da literatura brasileira durante muito tempo, mas que vem

ganhando espaço acadêmico desde as novas perspectivas advindas das décadas de setenta e

oitenta no Brasil. A feminilidade e os estudos de gênero ganharam um status diferenciado

nesse período, existindo uma preocupação maior, principalmente por parte da

historiografia, em analisar as vozes que foram excluídas das principais esferas sociais, a

partir de construções históricas determinadas (MUZART, 1999). A dimensão que é dada

agora para as mulheres escritoras apresenta uma visão que desestabiliza o discurso dos

cânones literários, retirando o protagonismo masculino na descrição das relações sociais

brasileiras. Abre-se dessa forma, novos horizontes para reescrever uma história literária

mais coerente e democrática, da mesma forma que uma renovação da percepção para a

história das leituras, algo que não foge da ambição desse trabalho.

Nesse intuito, a histórica limitação da mulher em escrever seus pontos de vista a

partir da literatura em especial, faz com que seja necessária, cada vez mais, uma análise

intertextual dos romances no que se refere à questão do gênero. Dessa forma, as

congruências existentes nos romances de Machado de Assis e Andradina de Oliveira, aqui

propostos, tornam-se representativos na medida em que partem do mesmo eixo temático: o

adultério. Contudo, ao contrário da protagonista machadiana, Estela provém de uma

família nobre do Rio Grande do Sul, onde o matrimônio é visto apenas como uma

confirmação e manutenção do seu status quo na sociedade. Além disso, em princípio, não

há qualquer tipo de dissimulação por parte dela para conquistar Jorge; tudo se dá dentro

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das normas convencionais e tradicionais da época: a mulher aceita o casamento, vendo-o

como um bom negócio para a família e, assim, agradando ao seu pai.

Entretanto, a partir da chegada de um sobrinho de Jorge, chamado Armando, a

tradicional vida de Estela muda pela forte atração que ambos acabam sentido,

configurando-se em um desejo incondicional. A avidez do querer vai se transformando em

um conflito existencial no qual somente no seu íntimo pode ser percebido. A consciência

de Estela manifesta-se pesada e perturbada com a possibilidade do pecado, pela

probabilidade de exclusão social, pela retaliação do marido e da própria família, não

achando alternativas para resolução do seu dilema dentro daquele contexto social. Percebe-

se uma problematização de alteridade forte na descrição desse quadro histórico romântico.

Enquanto isso, os motivos diagnosticados pelos personagens masculinos em relação

às alterações de comportamento em Estela pairam entre crise de nervos, histeria,

desequilíbrio emocional, irregularidade psicológica etc. Percepções que sempre acabam

relacionadas com a fragilidade e a delicadeza feminina. Contudo, Andradina de Oliveira

parece inverter essa situação de gênero enfezado na medida em que cria a imagem de um

marido complacente, frouxo, que a trata mais como uma mãe do que de uma mulher. De

encontro a esta perspectiva insípida, Armando apresenta características belas e joviais, um

comportamento malandro e atrevido (arquétipo carioca), com um ímpeto conquistador

nato. Entretanto, Estela continua representando uma mulher ambígua, que resiste a esse

campo de forças, preservando o silêncio e o desejo no seu íntimo.

Para tentar compreender a narrativa de Andradina de Oliveira ao descrever um

comportamento tão sofrido e submisso expresso pela personagem, assim como a visão dos

personagens que a rodeiam, foi empreendida uma busca por obras historiográficas que

tratassem do quotidiano feminino no interstício da produção dos dois romances aqui

propostos. Nesse sentido, observou-se que inúmeras mulheres que viviam no mesmo

cenário que o enredo descreve, tinham como destino a reclusão em internatos para o

tratamento psicológico. O motivo basilar evidenciado na grande maioria dos distúrbios

mentais encontrados, como nos estudos de Magali Engel (2009), definiam como

diagnóstico o comportamento em desacordo com as “boas normas de conduta e modos de

agir”. Essas eram normas de como proceder, específicas do âmbito conjugal (haviam

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outras), estabelecidas naquele momento como razão primeira, não só pelas elites da capital

do império, mas também espraiado por boa parte da sociedade brasileira em geral.

O que podemos perceber no romance de Andradina de Oliveira é uma mulher que

se deixa calar diante das imposições sociais e das relações de poder implícitas (ou

explicitas, como no caso dos diagnósticos clínicos ou do próprio contrato do matrimônio

que projeta a noiva sob o jugo do arbítrio do masculino), mas que, ao contrário do que se

pode deduzir, não representa um ser frágil. A imagem que se oferece é uma inversão de

forças, onde o papel social que exerce maior bravura é justamente o feminino, onde só ele

é submetido a suportar as imposições ditatoriais de um sistema injusto até mesmo aos

instintos mais primitivos do ser humano.

Partindo de uma análise comparativa prévia dos dois romances aqui apresentados,

abrimos a possibilidade de estabelecer algumas proposições que merecem um maior

aprofundamento posterior. São elas: 1) Machado de Assis cria uma mulher subversiva e

dominadora a partir do seu potencial conquistador e pela sua capacidade de dissimulação:

Capitu era astuciosa, percebia desde cedo que sua única possibilidade de ascensão social

era através do casamento com Bentinho; 2) já Andradina de Oliveira arquiteta uma mulher

forte que, mesmo em um casamento que poderia ser vislumbrado como ideal para a época,

prefere a fuga e depois a morte, denunciando de forma mais objetiva a condição feminina.

Sob essa ótica, podemos considerar que existem, articulados no romance, alguns

pressupostos da crítica feminista, em que o papel social da mulher é visto agora por uma

leitura mais “crua” dentro da família burguesa, retrato imagético de sucesso. O que se

vislumbra da “penumbra” da História é uma função nova e mais concisa do papel da

mulher inserida nessa realidade social.

Além dessa questão da representação da alteridade no condizente ao gênero,

podemos pensar, também, no perfil do adultério traçado pelos dois romancistas em suas

narrativas. Nesse sentido, não se torna difícil perceber que as mulheres não parecem mais

satisfeitas com o idealismo masculino cristalizado pelos discursos do romantismo,

tratando-as como seres frágeis e assexuados. Algo que permanece, por vezes de forma não

tão implícita, são justamente os desejos sexuais reprimidos e que não se enquadram no

padrão imaculado de uma nobre esposa. Pelo contrário, são personagens que querem um

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comportamento mais lascivo do cônjuge, que não se contentam com o tratamento

contemplativo, e que agora buscam a volúpia da ação fora das núpcias.

Compreendendo a literatura como um ato socialmente simbólico, considera-se que

exista uma capacidade de não só retratar, mas também de projetar uma transformação

social a partir da potencialidade que narrativa traz em seu bojo. No caso aqui explícito, as

formas como são retratadas questões como a moral e a alteridade familiar através dos

mecanismos de linguagem, constituem uma concepção e uma produção realizada não só

pelos escritores, mas também por questões históricas determinadas. Mesmo que não se

tenha a intenção de retratar fidedignamente o que era vivido na época, são obras

processadas subjetivamente e transfiguradas em determinadas narrativas (JAMESON,

1992).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos principais objetivos desse artigo é trabalhar com a temática da alteridade,

tendo como foco especial as possíveis visões que existiam, no século XIX, no quotidiano

de pessoas com posições sociais diferentes, principalmente no âmbito familiar. Nesse

sentido, a abordagem de Foucault (2010)3 obteve destaque pelo “encaixe” de sua teoria,

com a proposta desta pesquisa. Sua argumentação se aporta na tríade “saber, poder e

sujeito”, onde, a partir desses elementos, arquitetar-se-á a identidade de determinado

grupo/indivíduo e, por conseguinte, as diferenças do outro. No caso aqui específico,

diferenças de gênero e de classe social.

Nesse sentido, uma possibilidade de referência que pode ser explorada em Foucault

(2010) são as relações de poder que este acredita estarem impregnadas nas esferas sociais e

culturais da história. Nesta balança entre fracos e fortes, segundo o filósofo, sempre há o

favorecimento de um, em detrimento de outros. Os personagens masculinos descritos por

Machado de Assis e Andradina de Oliveira possuem, ao que é sinalizado em um primeiro

momento, um lado mais favorável nessa balança social. O âmago que se quer chegar está

imerso nesse jogo de poder, pois, a partir dessa abordagem, pode-se analisar em até que

3 A argumentação de Foucault exposta nesse artigo não é explícita do autor, mas embasada nos vários estudos

sobre essa questão no discurso do filósofo, a exemplo de José Tadeu Batista Souza (2010).

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ponto essa balança entre “fracos e fortes” torna-se um fiel entre “homens e mulheres”. Mais

especificamente, compreender em que medida a posição social das diferenças entre gêneros

podem determinar se um tipo de conduta é normal, moral ou patológica. Além disso, ainda

há uma forma distinta que pode ser abordada sobre essa relação de forças. O que podemos

inferir na narrativa de Foucault (2010) é que em qualquer afirmação de interesse está, por

conseguinte, a dimensão da luta e do poder. No caso das relações familiares, podemos nos

questionar se as narrativas dos dois romances representam essa dicotomia entre fracos e

fortes de forma coerente com o contexto social patriarcal, em se tratando de homens e

mulheres.

Por conseguinte, ao encontro da constituição do sujeito e sua luta na balança

representada por Foucault, pode-se estabelecer um entrecruzamento com o pensamento de

Michel Pêrcheux (1998). Para ambos os filósofos, o sujeito se caracteriza a partir de sua

historicidade, criando efeitos de sentido diferentes dependendo do contexto histórico no qual

o mesmo está inserido. De tal maneira que Pêrcheux (1998), a princípio, caracteriza uma

existência objetiva pensando apenas na materialidade do discurso social, estando o sujeito

inevitavelmente interagindo com as representações que se manifestam através desde, por

vezes de maneira opositiva. Dessa forma, torna-se claro na teoria do filósofo que ser agente

nos intercursos do discurso é estar em oposição à liberdade, é estar imerso por formas de

existência estabelecidas ideologicamente e que torna relativo o domínio de si.

Dentro do sistema patriarcal brasileiro em fins do século XIX, início do XX, as

personagens femininas apresentadas aqui desnudam claramente o aprisionamento na qual

estavam submetidas, É percebido, nas duas narrativas, que são poucas são as chances de uma

mulher ascender socialmente sem o intermédio do casamento ou, ainda, se tornar

independente dele depois de concretizado. Nesse sentido, Capitolina Pádua exerce toda a sua

astúcia para a concretização de um casamento que lhe dê um status maior na sociedade e lhe

tire da pobreza, não subvertendo o discurso dominante, mas sim utilizando-o da maneira que

pode para seu próprio beneficio. Enquanto que Estela, a partir do momento em que não vê

alternativas para transpor a ideologia na qual está inserida, resolve combate-la: primeiro pela

própria traição conjugal, depois por fugir com seu amante deixando para trás a família, os

filhos e por fim buscando a redenção na própria morte. Dessa forma, confere-se aqui um

exemplo de conexão com a análise do sentido do sujeito de Michel Pêrcheux (1998), onde

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apesar de os personagens não estarem livres e autônomos em relação aos discursos

patriarcais dominantes, também não são completamente determinados por eles.

Frente a uma crítica literária que prescreveu durante muito tempo a partir de uma

ótica masculina, escritoras femininas que estavam esquecidas neste percurso histórico podem

agora desnudar interpretações distintas do que habitualmente constituíam as leituras dos

grandes cânones da literatura. Através das possibilidades que surgem desse

redimensionamento, torna-se possível não só uma ruptura com valores considerados

absolutos para determinadas épocas, como também retira do silenciamento imposto vozes

que mereciam ser ouvidas e que surgem agora como um contraponto a uma suposta

linearidade social.

Nesse sentido, faz-se necessário a recuperação histórica da literatura repensando a

interpretação do leitor no período de produção dos dois romances assim como no decorrer

do tempo, em uma perspectiva da estética da recepção (ZILBERMAN, 2008).

Considerando a relação dialógica existente entre obra e leitor e a sua variação em

diferentes épocas, é preciso pensar o quanto as narrativas aqui propostas compactuam com

os códigos morais vigentes, a partir de uma história das leituras destas duas obras.

Analisar a fortuna crítica desses discursos pode trazer à tona um perfil do comportamento

da mulher no adultério e suas imbricações sociais, em um contexto marcado pelo

patriarcalismo e o idealismo feminino, como exemplificado, ainda que brevemente, neste

trabalho.

REFERÊNCIAS

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