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Livro: Mccayres Digitalização: Marina Revisão: Marisa

Michael j. Fox - um otimista incorrigível

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Page 1: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Livro: Mccayres

Digitalização: Marina

Revisão: Marisa

Page 2: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ISBN 978-85-7665-477-3

9788576654773

"Sheila". Copyright © 1962 Sony/ATV Music Publishing LLC. Todos os

direitos administrados por Sony/ ATV Music Publishing LLC, 8 Music Square West,

Nashville, TN 37203. Todos os direitos reservados. Reproduzido com permissão.

"Glory days", de Bruce Springsteen. Copyright © 1984 Bruce Springsteen

(ASCAP). Reproduzido com permissão. Todos os direitos reservados.

"Magic Bus" reproduzida com a permissão de Pete Townshend.

Copyright © 2009 Michael J. Fox

Todos os direitos reservados

TÍTULO ORIGINAL Always looking up : the adventures of an incurable optimist

PREPARAÇÃO Adriane Gozzo

REVISÃO Bel Ribeiro

DIAGRAMAÇÃO S4 Editorial

CAPA adaptada a partir do projeto gráfico original de Phil Rose

FOTO DA CAPA Mark Seliger

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara

Brasileira do Livro, SP Brasil)

Fox, Michael J.

Um otimista incorrigível / Michael J. Fox ; tradução Cassius Medauar.

- São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2009.

Título original: Always looking up: the adventures ofan incurable optimist.

ISBN 978-85-7665-477-3

1. Atores - Canadá - Autobiografia 2. Atores - Estados Unidos -Autobiografia

3. Doença de Parkinson - Pacientes - Biografia 4. Fox, Michael J., 1961-1. Título.

09-09440 CDD-790,4302

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Estados Unidos: Atores:

Autobiografia 790.4302

2009

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA.

Avenida Francisco Matarazzo, 1500 - 3a andar - conj. 32B

Edifício New York

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Page 3: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Para Tracy, Sam, Aquinnah, Schuyler e Esmé.

E para Karen.

Com amor.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

PARTE UM

TRABALHO

PARTE DOIS

POLITICA

PARTE TRÊS

PARTE QUATRO

FAMILIA

EPILOGO

AGRADECMENTOS

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Page 4: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

INTRODUÇÃO

Nas primeiras páginas de Lucky man*, descrevo uma manhã na

Flórida há dezenove anos, quando acordei com uma bela ressaca e meu

dedo mindinho tremendo. Nos anos seguintes, minha vida passou por

grandes mudanças. Na maioria das manhãs, por exemplo acordo e meu

dedo mindinho está totalmente imóvel; o problema é o restante do meu

corpo, que treme de forma incontrolável. Tecnicamente; meu corpo só fica

em paz

___*Um homem de sorte, primeiro livro de Michael J. Fox no qual descreve sobre

os estágios iniciais de sua doença, ainda inédito no Brasil (N.T.)

por completo quando minha mente está em repouso total - ou seja,

dormindo. Atividade cerebral baixa significa menos neurônios queimando

ou, no meu caso, pulando. Quando estou acordando, antes de a minha

consciência acordar e saber o que está acontecendo, meu corpo já recebeu

insistentes instruções neurais para que se mova, se torça e contorça. E

qualquer chance de voltar a dormir já era.

Nesta manhã, Tracy já se levantou, está preparando o café da

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manhã e aprontando as crianças para a escola. Tateio o criado-mudo à

procura de um frasco de plástico, engulo dois comprimidos e sigo

rapidamente para a primeira de uma série de atividades que, mesmo sendo

automáticas, demandam grande determinação. Levanto as pernas e as levo

até o lado da cama. No instante em que meus pés encostam no chão, os dois

começam a lutar. A distonia, uma doença complementar ao Parkinson, faz

meus pés doerem e se curvarem para dentro, pressionando meus tornozelos

contra o chão e fazendo as solas dos meus pés se encontrarem, como se

estivesse juntando as mãos em uma prece. Arrasto meu pé direito até a

ponta do tapete e pego com os dedos meu mocassim de couro. Forço o pé

para dentro dele e repito o processo com o esquerdo. Então, com cuidado,

me levanto. Confortados pela firmeza do couro, meus pés começam a se

comportar. Os espasmos pararam, mas as dores ainda vão durar uns vinte

minutos.

Primeira parada: banheiro. Vou poupar você dos detalhes iniciais da

minha visita. Digo apenas que, para quem tem Parkinson, é essencial deixar

o assento da privada levantado. Pegar a pasta dental não é nada comparado

ao esforço feito para coordenar o trabalho das duas mãos, uma segurando a

escova e a outra tentando colocar uma linha de pasta nas cerdas. Agora,

minha mão direita já está levantada e fazendo movimentos circulares com

meu punho, perfeito para o que farei em seguida. Minha mão esquerda guia

a direita até a boca e, quando a parte de trás da escova toca a gengiva atrás

do lábio superior, eu a solto. É como soltar o elástico de um estilingue e,

comparando, é tão poderoso quanto a melhor escova elétrica que existe no

mercado. Contudo, não há o botão "desligar". Então preciso parar meu

braço direito com a mão esquerda, forçando-o para baixo até a pia e

desarmando-o da escova, como se faz com alguém com uma faca em um

filme. Em geral, consigo saber se estou em um bom dia para fazer a barba

ou não, e, nesta manhã, como na maioria delas, decido que é cedo demais

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para arriscar uma carnificina. Resolvo passar apenas o barbeador elétrico

rapidinho. E viva Miami Vice!

Um banco no chuveiro dá uma força aos meus pés, e a água batendo

constantemente em minhas costas tem efeito terapêutico, mas, se ficar mui-

to tempo sentado aqui, posso não me levantar mais. Vestir-me já é mais

fácil, graças aos comprimidos, que começam a fazer efeito. Evito roupas

com muitos botões ou cordões, porém sou viciado em Levi’s 501, o que me

faz ser uma vítima da moda no estrito senso da palavra. Em vez de me

pentear de verdade, ergo os dedos tremulantes até a cabeça, passo a mão no

cabelo e torço para ter ficado bom. Viro-me devagar (minhas pernas ainda

não ganharam confiança hoje) e sigo em frente para ver minha família.

Na saída do meu quarto para o corredor, há um grande espelho

antigo com moldura de madeira. Não consigo evitar dar uma olhadela em

mim mesmo enquanto passo por ele. Virando-me totalmente para o

espelho, considero o que estou vendo. Essa versão refletida de mim,

molhada, tremendo, enrugada, embaraçada e um pouco curvada seria

alarmante, não fosse pela expressão de satisfação estampada em meu rosto.

Eu me faria a pergunta óbvia, "do que você está rindo?", mas já sei a

resposta: "a partir de agora o dia só melhora".

***

How to lese your brain without losingyour mind [Como perder seu

cérebro sem perder sua mente] era o título original das memórias que es-

crevi há oito anos. Na segunda ou terceira página do primeiro rascunho,

referi-me a mim mesmo como sendo um "homem de sorte". Depois de

algumas edições, eu sempre voltava a essas três palavras e, no fim, elas

acabaram dando um jeito de chegar à capa do livro. Combinavam com a

capa, e combinam até hoje.

Já o título deste novo livro* tem mais de um significado. Primeiro -

vamos falar disso de uma vez -, é uma piada de baixinho. Tendo pouco

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menos de 1,65 metro, a maior parte da minha interação com o mundo e

com as pessoas nele requereram que eu inclinasse um pouco a cabeça para

trás e olhasse para cima. Mas isso não é um manifesto sobre as dificuldades

dos menos favorecidos em termos de altura. Sinceramente, minha altura, ou

a falta dela, nunca me incomodou muito. Apesar de que não há dúvidas de

que contribuiu para o meu engrandecimento mental. Sempre saí na frente

por ser subestimado, e me aproveitei disso. E este é mais o espírito do

título: fazer alusão a uma perspectiva emocional, psicológica, intelectual e

espiritual que me serviu durante a vida e talvez tenha me salvado ao me

ajudar a viver a vida com Parkinson. Não que eu não sinta a grande dor da

perda. Força física, espontaneidade, balanço, destreza manual, liberdade de

fazer o trabalho que eu quiser, na hora em que e como quiser, e a confiança

de que sempre estarei presente quando minha família precisar de mim - se

todas essas coisas não se perderam por completo com o Parkinson, foram

pelo menos comprometidas de maneira drástica.

Os últimos dez anos da minha vida, que são o grande assunto deste

livro, começaram com uma grande perda: minha aposentadoria da série

Spin City. Tive de me esforçar para me adaptar a uma nova dinâmica, à

mudança das minhas personalidades pública e privada. Eu era Mike, o ator,

e depois Mike, o ator com Parkinson. E agora seria apenas Mike com DP?

A Doença de Parkinson tinha consumido minha carreira e, em certo

sentido, se tornado minha carreira. Mas onde tudo isso me deixava? Tinha

de construir uma nova vida quando ainda era muito feliz com a vida antiga.

Fui abençoado com uma carreira de vinte e cinco anos em um trabalho que

amava.

____

*O autor de refere ao titulo original, Alwais Looking up, “Sempre olhando pra cima”, que além de ser uma mensagem de otimismo, que no caso foi traduzida por Um otimista incorrigível, é uma bvrincadeira que se faz com as pessoas de baixa estatura

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Tinha uma esposa brilhante, linda, engraçada, que me apoiava

totalmente, e uma família em expansão de filhos irrepreensíveis. Se eu

tinha de abrir mão de parte disso tudo, como poderia me proteger para não

perder tudo?

A resposta tinha muito pouco a ver com "proteção" e tudo com

perspectiva. A única opção que eu não tinha era ter ou não ter Parkinson.

Todo o restante eu podia resolver. Podia me concentrar na perda e investir

em quaisquer medidas reparadoras que meu ego conseguisse criar. E podia

me apoiar na minha velha conhecida dos anos 1990, a negação. Ou então

podia simplesmente seguir em frente com minha vida e ver se os buracos

nela começariam a se preencher sozinhos. Nos últimos dez anos, isto

aconteceu mesmo, e das maneiras mais incríveis.

O que você vai ler a seguir são as memórias desta última década.

Mas, diferentemente de Lucky man, o livro é temático, e não cronológico.

Trabalho, Política, Fé e Família. Esses são os pilares da minha existência. E

a base da minha vida.

Juntos, formam uma proteção contra a destruição causada pela

Doença de Parkinson. Minha identidade tem tudo a ver cora minha

habilidade de me expressar, de mostrar minha criatividade e meu valor

produtivo (trabalho), de defender meus direitos e os de qualquer comu-

nidade da qual eu faça parte e, portanto, seja responsável (política), de ter

liberdade de procurar um propósito espiritual (fé) e poder explorar os laços

complexos que tenho com as pessoas que mais amo (família), sem os quais

eu já teria sucumbido há tempos diante das forças do lado negro.

Mesmo não sendo uma narrativa estrita, este Livro descreve uma

jornada de autoconhecimento e reinvenção. A história é um testamento das

coisas que me trouxeram até aqui e que deram sentido a todas as áreas da

minha vida.

Para tudo que a doença tomou de mim, algo de grande valor me

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Foi dado — às VEZES , foi apenas algo que me fez ir em uma nova

direção que jamais teria trilhado em outra situação. Claro que tudo isso

pode parecer um passo para a frente e dois para trás, mas depois de um

tempo com Parkinson aprendi que o que importa é fazer com que aquele

passo à frente valha a pena; sempre mirando as estrelas.

PARTE UM

TRABALHO

Into the great wide open*

Em vários sentidos, a vida diária é mais difícil agora que quando

Lucky man foi publicado. Eu pensava que estava em mau estado em 2000,

quando resolvi sair de Spin City. O peso de ter duas responsabilidades,

produzir e atuar em uns cem episódios durante quatro anos, me deixou

acabado. A cirurgia no cérebro feita dois anos antes reduziu os tremores

que eu tinha no lado esquerdo, mas não resolveu nada no direito nem nas

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pernas. Os medicamentos travavam uma batalha diária contra um inimigo

em mudança constante. As diferenças de quando estava com e sem

remédio, a transição de um estado para outro, em condições ideais, são

como uma conversa civilizada, mas isso se deteriorou em discussões

beligerantes e conversas paralelas. Em uma fútil tentativa de estar no modo

"ligado" nos momentos--chave, ou seja, quando estava atuando, tentava

fazer a parte da produção com o mínimo possível de levodopa (ou L-Dopa;

a dopamina sintética que os pacientes de Parkinson usam para controlar os

sintomas) no corpo, porque assim, quando tivesse de atuar, poderia

aumentar a dose e ficar parado diante das câmeras. Raramente, talvez

nunca, acertei a conta. E errando a dose — principalmente ao tomar muita

levodopa -, acabei tendo uma torrente de discinesias, movimentos

involuntários anormais que afetam, acima de tudo, as extremidades, o

tronco ou a mandíbula, como ondulações, tremores, balanços e pulinhos. A

ironia disso ê que eu praticamente não percebia nada até assistir à filmagem

na sala de edição.

_______*”Dentro da Imensidão”, música famosa da banda de rock norte-americana

Tom Petty and the Heartreakrs (N.T)

Tendo decidido na metade da quarta temporada que minha condição

física não me deixaria fazer uma quinta, comecei a pensar que talvez nem

conseguisse fazer os treze episódios que ainda faltavam. Meu regime diário

de medicamentos (que, por sinal, não tinham nenhum efeito psicotrópico,

nada de barato) afetava meus padrões de voz e às vezes fazia com que eu

falasse enrolado ou hesitasse antes de falar, uma droga quando se está

tentando fazer algo engraçado. E em relação à comédia física, na verdade,

eu só tentava evitar uma tragédia.

Mesmo todo mundo - elenco, equipe de produção e audiência -

sabendo que eu tinha Parkinson, eu ainda estava tentando interpretar ura

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personagem que não tinha a doença. Qualquer que fosse a complexidade

cômica ou dramática de uma cena, meu maior desafio era sempre atuar

como se eu não tivesse Parkinson. E, mesmo tendo continuado a usar os

mesmos truques que me serviram tão bem durante anos - segurar algo para

controlar o tremor das mãos, encostar em paredes, mesas e outros atores,

girar em uma cadeira ou sentar atrás de uma mesa para esconder os

movimentos incontroláveis das pernas e dos pés -, o avanço dos sintomas

começou a me forçar a aumentar meu repertório. Descobri que, por curtos

períodos de tempo, podia dirigir toda a energia ondulante do corpo para

uma extremidade particular - mão, perna ou pé. Então, ao organizar uma

cena, eu me colocava (e o restante do elenco também) em uma posição que

escondesse bem a parte do corpo na qual estivesse confinada a energia do

Parkinson. Como disse, é o mesmo tipo de coisa que fiz durante anos, e

pensei que, se explicasse para as pessoas por que estava fazendo aquilo,

todo o processo ficaria bem mais fácil.

Mas não ficou. A coisa continuou dura. As pessoas só passaram a

ter uma idéia de por que era tão duro. Meu amigo Michael Boatman fazia o

papel de Carter Heywood, um dos assistentes do prefeito. Ura dia, estáva-

mos ensaiando uma cena na qual nós dois devíamos passar pela porta do

escritório do prefeito . Um dia, estávamos ensaiando uma cena na qual nós

dois simultaneamente e em direções opostas. Roteiros nas mãos,

começamos a cena, mas, quando ambos chegamos na porta, em vez de

passar por Michel, congelei exatamente na frente dele.

__ Você tem de se mexer - eu disse, mais por impulso que por

querer dizer isto.

Michael é um dos caras mais legais do planeta, porém ficou confuso

e perplexo com o que falei.

- O quê? - ele disse.

- Você tem de se mexer. Não posso me mexer até que você se

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mova. Ele acabou atendendo ao meu pedido e, depois do ensaio, tentei ex-

plicar o que tinha acontecido.

As vezes, quando meu cérebro pede para o corpo fazer tarefas sim-

ples que envolvem algum grau de julgamento referente a relações de es-

paço, a mensagem acaba se perdendo no meio do caminho. É necessário

algum estímulo externo, como o movimento de algum obstáculo ou,

curiosamente, a introdução de um, para eu conseguir me mover para a

frente. Alguns parkinsonianos que param repentinamente ao andar con-

seguem continuar quando uma régua é colocada na frente dos pés deles e

eles são forçados a pisar nela. Claro que Michael aceitou minha explicação

e até riu comigo por causa da estranheza da situação.

Com o passar dos dias, das semanas, dos meses e dos anos, várias

situações que necessitavam do mesmo tipo de explicação surgiram e se

tornaram uma responsabilidade muito cansativa. As diferenças ao estilo o

Médico e o Monstro entre os remédios estarem funcionando ou não

confundiam as pessoas - e com razão. As pessoas à minha volta tinham

dificuldade de entender e separar o enérgico e expressivo Mike Flaherty

que viam diante das câmeras do confuso e mascarado Mike Fox que en-

contravam quando tinham de resolver seus problemas por trás das câmeras.

Minha parceira na produção, Nelle Fortenberry, lembra de muitas ocasiões

em que chefes de departamento ou outros membros do elenco ou da equipe

entravam em seu escritório, fechavam a porta e imploravam para que ela

dissesse por que eu estava bravo com eles.

-O que o faz pensar que Le está bravo com você?

- Acabei de passar por ele no corredor e ele não sorriu, não acenou,

e nem mesmo diminuiu o passo.

Nelle sempre repetia que um dos sintomas do Parkinson é a

escassez de movimentos faciais - a máscara de Parkinson. Além disso, uma

coisa simples como virar a cabeça e fazer um cumprimento é fisicamente

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impossível. Assim que começo a caminhar, a quantidade de energia re-

querida para parar e depois começar de novo é dez vezes maior que para

uma pessoa com o cérebro normal.

Longe do set de filmagens, Nelle é a pessoa com a qual eu mais in-

teragia no dia a dia, com os produtores executivos Bill Lawrence e David

Rosenthal e nosso diretor Andy CadifF. Era quando eu punha meu chapéu

de produtor e discutíamos sobre orçamento, tramas futuras, rascunhos de

roteiros, propostas de design para o cenário, questões de pós--produção,

problemas com o elenco e a equipe e todas as minúcias que aparecem ao

fazer um novo episódio da série a cada sete dias. Acredite se quiser, mas

pode ser bem divertido. Todavia, também pode ser fatigante. Os problemas

aparecem como pipoca; enquanto vamos resolvendo os que estão na tigela

à nossa frente, parece que temos uma grande panela do lado de fora do

escritório constantemente fazendo mais pipocas.

Às vezes eu ria quando Nelle explicava os desafios do dia. Eu a

lembrava de que, por maiores que fossem, não seriam meu maior desafio. E

não era uma reclamação, mas apenas uma nova perspectiva adquirida por

causa da minha condição.

Se pudesse voltar no tempo e falar comigo em 2000, em relação à

batalha diária travada contra o Parkinson, eu diria:

- Você ainda não viu nada!

Na verdade, com a experiência que adquiri desde lá, agora sei que

ficaria muito pior antes de ficar... bem, pior ainda. Mesmo assim, com o

que aprendi em todo esse tempo sobre controlar o estresse por meio de

programações criativas e a nova geração de remédios que está bem

próxima, provavelmente teria conseguido fazer umas boas sete temporadas.

Não estou querendo dizer que era o que gostaria de ter feito. Minha decisão

de deixar Spin Ciy foi a coisa certa a fazer na hora certa.

Naquela época, tomar a decisão de como comprometer meu tempo

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e minha energia se transformou em como eu me sentia em oposição ao que

pensava em relação às coisas. E com certeza a decisão de deixar a série, na

primavera de 2000 (nos Estados Unidos), foi toda "sentimento".

A decisão ocorreu no final da tarde do último dia do ano de 1999.

Estava com minha família mergulhando nas límpidas águas de St. John, nas

Ilhas Virgens americanas. Visitávamos essa praia havia anos e nunca

tínhamos visto uma tartaruga marinha. Quando por fim encontrei uma

deslizando pela água dentro da barreira de corais, nadei lentamente por trás

dela, mantendo uma distância respeitosa. Quando saí da água, chutei as

nadadeiras para longe, andei até onde Tracy secava as crianças, peguei uma

toalha e comuniquei que ia me aposentar da série. Talvez tenha sido por

estar exausto até os ossos de lutar com os sintomas todos os dias apenas

para fazer meu trabalho, ou talvez tenha sido somente a sublime

indiferença daquela tartaruga, mas houve um clique em mim e, dependendo

de como eu o aceitasse, uma luz estaria acendendo ou apagando em mim.

Se a descuidada natureza do meu anúncio assustou Tracy, ela disfarçou

bem. Era o momento de ela desabafar, se quisesse. Ela poderia ter rido

como se fosse uma piada sem graça ou fingir que ignorava o que disse,

oferecendo-me tacitamente a chance de reconsiderar. Ou ainda poderia ter

dito: "Você ficou louco?". Afinal, o que eu estava propondo de forma tão

casual traria grandes mudanças em nossa vida e também na das crianças. E

nem mencionei a tartaruga, com medo de ela achar que só a estava

consultando para pedir uma segunda opinião. Todos os momentos difíceis

do nosso casamento ocorreram quando um de nós - tá bom, eu - resolveu

agir de maneira unilateral. Para encurtar a história, ela poderia ter tido

várias reações diferentes. Mas o que Tracy fez foi me olhar nos olhos e

dizer uma só palavra: "Certo", e me dar um abraço molhado e cheio de

areia.

Nos últimos dias de férias não falamos sobre o assunto. Se eu

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estivesse esperando que ela me demovesse da idéia, isso não iria acontecer.

Mas a ruptura seria assim tão simples tão clara? Essa foi uma

decisão de momento; com certeza foi uma das mais importantes da minha

vida, e aconteceu abruptamente.

E, sim, seria, em certo sentido. Não duvidei nem uma vez, desde

meu encontro com a tartaruga, de ter feito a escolha certa, da coisa certa a

fazer na hora certa. Mas não foi fácil. Não foi difícil tomar essa decisão,

mas era uma decisão bem difícil de ser posta em prática. Como em

qualquer grande mudança, ou quando escolhemos um novo caminho e

esquecemos o antigo, vão haver conseqüências. Estávamos na noite do

último dia do ano, próximos do Ano-Novo, perto de um novo milênio, e eu

tinha decidido deixar para trás tudo que havia conquistado, buscado e

acumulado ao longo dos últimos vinte anos. Eu sabia que não estava

deixando apenas a série - estaria deixando de lado minha carreira de ator.

Enquanto sempre tive dificuldade de me ver como um astro, orgulhava--me

de ser um artista. Entendi que, embora sair oficialmente de Spin City não

significasse abandonar minha carreira, não poderia abandonar esse

compromisso, essa agenda e as condições de trabalho e esperar conseguir

outro papel principal na TV ou no cinema. Era o fim. Eu estava tirando o

fio da tomada. Adeus. Até mais.

John Gielgud, reverenciado por décadas atuando nos palcos

ingleses e famoso por ser o mordomo de Dudley Moore em Arthur, o

Milionário, certa vez descreveu o trabalho de sua vida desta forma: "Atuar

é meio vergonha, meio glória. Vergonha em exibir a si mesmo; glória

quando consegue esquecer de si mesmo". Quando eu tinha 16 anos e estava

embarcando na carreira, podia fazer essa relação. Arrisquei-me em outras

áreas, durante um tempo vislumbrei um futuro como escritor, ator de

comerciais ou talvez músico, mas foi atuar que pareceu para mim a coisa

mais natural do mundo. Em uma idade em que a maioria das pessoas

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impossível de ser amada, encontrei algo que me parecia fácil e natural

fazer. Eu podia ser qualquer um, qualquer coisa, de qualquer tamanho ou

forma, e me transportar para qualquer tempo ou lugar. E, se fizesse direito,

ainda haveria o bônus de receber a aprovação das pessoas que eu seria

pressionado a agradar se a situação fosse outra. Alguns papéis nas peças da

escola, pequenos filmes locais e na TV me encorajaram a testar meu

potencial, e logo fui percebendo que minha maior limitação era geográfica.

Eu precisava ir aonde o trabalho estava.

Ser ator deu-me uma vida além daquela que eu poderia imaginar - e

olha que tenho uma imaginação fervilhante. Aos 18 anos, minhas aspira-

ções me levaram a Los Angeles. Passei por audições humilhantes e sem

sentido e por rejeições rotineiras, com recompensas ocasionais, como um

pequeno papel na TV ou um comercial em rede nacional que pagavam meu

aluguel e mantinham meu espírito aceso. Então veio o sucesso e, com ele,

uma nova confiança em minha vida artística e a coragem de tentar coisas

novas - algumas com resultados positivos, outras nem tanto, mas nunca

com arrependimento.

Atuar era uma ocupação que exigia que eu fosse tanto observador

quanto participante do mundo. Durante todos os anos de comédia, sempre

me apoiei em uma habilidade intuitiva de achar graça em quase todos os

tipos de situação. Sempre há um "lado engraçado”. A paleta do ator é a

totalidade da experiência humana. Uma carreira tão longa e ocupada como

a minha me permitiu ter empatia e uma conexão com as pessoas de forma

que outras profissões não conseguiriam. E claro que tinha também os

benefícios mais tangíveis, como viagens, boa situação financeira e boa

vontade acima de qualquer merecimento. Talvez o maior presente de todos

tenha vindo graças a uma escolha fortuita de elenco: conhecer Tracy nas

gravações de Caras e Caretas.*

___

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*Family Ties, no original (N.T.)

Não fiz faculdade nem mesmo acabei o colegial. Ser ator era a

única carreira que eu conhecia e, agora, graças ao conselho de uma

tartaruga, estava pronto para abandonar tudo tão facilmente quanto secar a

água das minhas costas queimadas de sol?

No fundo eu sabia que meu grande amor pelo trabalho - aquele ar-

repio que passava pela minha espinha quando uma piada bem escrita era

encenada certinha e aceita pela público - ainda estava lá. Um conforto

conseguido a duras penas, desenvolvido após muitos anos de atuações. Não

indolência, mas uma confiança racional de que, independente da emoção,

da intenção ou da atitude que eu tivesse de tomar, essa flecha estaria na

minha aljava quando eu a procurasse. Quando era um jovem ator, às vezes

podia esconder minha insegurança em determinada cena usando um

movimento ágil e puramente físico: Alex Keaton colocando as mãos nos

bolsos e pulando para trás do balcão da cozinha; Marty McFly andando

agachado, fazendo piruetas e deslizando bastante ao cantar Johnny B.

Goode; Brantley Foster fazendo a pose do Hulk no elevador, usando

apenas samba-canção; ou mesmo Mike Flaherty tirando as calças em pleno

ar enquanto girava por cima da cama e de sua namorada, que o esperava.

Sempre pude contar com o físico. A triste ironia é que, quando senti que

possuía o controle total das dimensões emocionais e intelectuais da minha

identidade performática, não podia mais contar com meu corpo para apoiá-

la. Não quero, como ator, fazer escolhas baseadas em incapacidades em vez

de em habilidades.

Apesar de não poder afirmar que tenho memórias lúcidas daquela

noite, tenho certeza de que passei o Ano-Novo de 1979, meu primeiro

como jovem ator na Califórnia, bebendo até cair e fazendo promessas

loucas sobre tudo que ia conseguir nas décadas seguintes. Agora, vinte anos

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Page 18: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

depois, aproveitando um Ano-Novo calmo e sóbrio com minha família e

refletindo a respeito de tudo que aquele jovem tinha conseguido realizar,

preparava-me para entrar em um futuro incerto.

ESTÚDIO D, CHELSEA PIERS

17 DE MARÇO DE 2000

Para uma série de televisão, em especial as comédias, atingir cem

episódios representa uma importante conquista. Tradicionalmente, a marca

dos cem é o mínimo exigido para um programa obter sucesso com a venda

dos direitos para emissoras independentes e para o exterior.* Ao entrar na

nossa quarta temporada e tendo programados vinte e dois episódios para

ela, esperávamos terminá-la chegando aos noventa e seis programas

gravados.

Nosso acordo de venda de direitos já estava fechado, então não era

crucial que fizéssemos mais quatro programas e chegássemos a cem. Mas,

mesmo estando em paz com minha decisão de deixar o programa, fiquei

obcecado em atingir aquele marco. E isso poderia significar adicionar mais

um mês de produção, porém, não tínhamos nem tempo nem dinheiro.

Então, em vez de facilitar as coisas e deixar o programa tranqüilamente,

criei um esquema logístico duro que às vezes fazia com que gravássemos

um programa e meio por semana e que nos permitia bancar seis episódios

em quatro semanas. O plano era fazer um final especial de uma hora,

editado como dois episódios por causa da venda dos direitos. Ele foi

filmado em duas semanas, a maior parte no estúdio e sem platéia, além de

um dia filmando em Washington, D.C. Depois, esse material foi editado,

organizado e exibido no nosso final de temporada, ao vivo de Nova York,

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com platéia e intercalado com cenas feitas na hora.

Tenho certeza de que foi um período difícil para o elenco e a equipe

técnica, apesar de já sabermos no último mês e meio da temporada que

minha saída não seria o fim de Spin City, mas apenas uma transição. O

programa continuaria. Charlie Sheen tinha aceitado ser o novo assistente do

prefeito, e a produção se mudaria para Los Angeles, onde Charlie e Gary

Goldberg, o cocriador do programa, moravam. (Gary iria reassumir o cargo

de produtor-executivo.)

___*É o que os norte-americanos chamam de syndication. (N. T.)

Claro que essa seria a temporada final para a equipe de Nova York. Para o

público, porém, não seria um adeus ao show, mas apenas para o

personagem Mike Flaherty.

O episódio final foi complicado de ser criado e executado porque a

trama era recheada de realidade. Mike Flaherty, por razões injustas, era

forçado a deixar prematuramente o trabalho que amava. E posso dizer que

todos os outros atores da série estavam tão preocupados comigo quanto

seus personagens estavam com Mike. Era tudo um grande (e o mesmo)

problema. E então era isso. Tinha mesmo acabado.

As perspectivas fictícias de Mike Flaherty eram melhores que as

minhas. Provavelmente ele trabalharia de novo. Mas eu trabalharia? Dificil-

mente. Pelo menos não dessa forma, gravando semana sim, semana não,

diante de uma platéia ao vivo.

Trabalhei com David Rosenthal, Bill Lawrence e o restante dos es-

critores para garantir que Mike tivesse pelo menos uma cena substancial

com cada um dos personagens fixos da série. Isto era para dar ao público a

sensação de que todos os relacionamentos que ele tivera haviam sido bem

resolvidos e também para que eu pudesse dividir o palco com cada um

daqueles artistas talentosos, dos quais vim a gostar muito nos quatro anos

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Page 20: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

em que trabalhamos juntos. A coisa toda foi carregada de emoção; a carga

logística que havíamos criado só tinha agravado a exaustão, que era a razão

inicial que me fizera sair do programa. Fora dos palcos, meus planos de

deixar a série criaram uma onda de apoio e carinho comparável a dois anos

antes, quando eu havia anunciado que tinha a Doença de Parkinson. Houve

um enorme interesse da mídia nos meus últimos dias de mandato, com

repórteres aparecendo no estúdio e acompanhando nossa preparação para

meu último programa. Todos - elenco, equipe técnica, escritores e equipe

de produção - estavam, ao mesmo tempo, dando o máximo e meio

perdidos. Mas agarravam-se a algo que parecia estar fugindo de mim. Esse

episódio final marcava um momento de virada na minha vida, um abalo

tectônico. Eu olhei em volta, entendi o que havia sido colocado em

movimento e o que aconteceria em seguida e disse:

- Puta merda! O que foi que eu fiz?

Eu tinha navegado em águas estreitas e rasas demais para poder vi-

rar o barco. Não é como se estivesse totalmente por fora do que estava

acontecendo; fui dominado pela emoção como todos os outros. E também

me sentia culpado, sabendo que, ao escolher mudar a direção da minha

vida, havia tirado tantos outros de seus cursos naturais. Eu esperava que

não fosse algo irreversível, mas com certeza havia sido inesperado. Ou

talvez não tenha sido tão inesperado assim. Todos podiam ver minha

batalha fatigante. E o último esforço para fechar tudo de maneira correta, a

pressão para atingirmos a marca dos cem episódios, o sacrifício físico de

produzir e atuar simultaneamente apenas reforçaram que eu tinha tomado

uma decisão sábia. Todavia, a necessidade de eu conseguir essas últimas

risadas e desmaiar depois de cruzar a linha de chegada sobrepuseram-se a

qualquer pensamento a respeito do que eu enfrentaria ao cruzar aquela

linha invisível. Naquele momento, o que me manteve seguindo em frente

foi a necessidade de parar.

19

Page 21: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Mesmo que eu não tenha aparecido dizendo "Puta merda!", disse

por procuração. Para podermos fazer com que Mike Flaherty saísse do

emprego na Prefeitura (e eu saísse de Spin City), precisávamos criar o

momento certo para ele, e essa saída honrosa me deu certa perspectiva.

O conceito era o seguinte: apesar de ser inocente e de não ter feito

nada errado, o prefeito acaba envolvido em um escândalo e a prefeitura é

ligada ao crime organizado. Não vendo outro jeito de tirar o chefe dessa

enrascada, Mike decide assumir a culpa de tudo e resolve pedir demissão

do cargo. Os colegas de trabalho ficam chocados e ele também, fica aba-

lado, mas tem certeza de que esta é a coisa certa a fazer. Então ele começa

a costurar as pontas soltas de um trabalho que o definia. Depois de seu

último dia no emprego, já em casa e com a namorada e colega de trabalho

Caitlin, Mike expressa sua ansiedade. Que diabos vai fazer agora?

CAITLIN ESTÁ COLOCANDO A COMIDA NA MESA - JANTAR

PARA DOIS. MICHAEL ENTRA.

Caitlin

Oi.

Michael

Ei, você não apareceu no bar.

Caitlin

As coisas estavam meio confusas no escritório.

Michael

É, ouvi dizer que perderam um cara bem importante hoje..

Caitlin

Ele era só um rostinho bonito.

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Page 22: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Sempre senti que Heather Locklear é subestimada como atriz,

provavelmente porque é muito natural e faz tudo sem esforço diante das

câmeras. E uma grande prova da sua habilidade ocorreu bem na minha

frente, enquanto trabalhávamos juntos no tal último episódio. Caitlin podia

ser uma rocha, mas Heather estava mal, chorando antes e depois de cada

cena. Ela foi ótima naquela semana, como já havia sido durante toda a

temporada. Afinal de contas, ela havia entrado para me ajudar quando o

trabalho começou a ficar pesado demais, e fez um trabalho espetacular,

assim como Carlin estava fazendo com o futuro ex-assessor do prefeito.

Mas a situação que fechava a semana era, na verdade, sobre mim e

Tracy, um reconhecimento de quão me sinto fortalecido por ela acreditar

em mim, na vida e na família que construímos juntos. Às vezes só tenho a

coragem das convicções dela, do seu apoio incondicional e da sua

segurança, quase como se eu devesse confiar sempre no meu coração, na

minha coragem e no amor dela. E, relembrando não apenas um momento

da nossa história recente juntos, as palavras e as emoções evocaram

lembranças de outros tempos, quando eu oferecia minhas dúvidas e medos

à minha esposa - a bebida, as crises da carreira, o Parkinson - e ela nunca

me julgava, apenas os dividia comigo. Quando tudo parecia perdido,

contava com Tracy para me ajudar a achar o caminho - ou, melhor que isso,

ficar ao meu lado até que algo novo aparecesse. E às vezes isso demorava.

MICHAEL SENTA-SE À MESA. PELA PRIMEIRA VEZ EM

MUITO TEMPO, ELE RESPIRA FUNDO.

Michael

Quer saber? Estou bem. Vou dar a volta por cima, não

vou?

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Page 23: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Caitlin

Claro que vai, Mike.

Michael

Não é o fim, né?

Caitlin

Ainda está muito longe do fim.

Michael

Mas é estranho. Desde que me lembro, sempre tinha algum

lugar para ir todas as manhãs. 0 que vou fazer amanhã, quando o

despertador começar a tocar?

Caitlin

Vou deixar o despertador desligado.

Na noite do programa, o lugar ficou lotado. A imprensa estava lá, e

muita gente do estúdio e da rede de TV também; minha família tinha vindo

de Vancouver; todos os produtores e roteiristas que haviam trabalhado no

programa nos últimos quatro anos apareceram para se despedir. E, mesmo

tendo muitos convidados especiais, muitos ingressos foram reservados para

as pessoas comuns, aqueles leais espectadores que sempre vinham ver

nosso programa desde que fora criado. E claro que Tracy passou a maior

parte da noite nos bastidores, vendo o programa pelos monitores ao lado de

Gary, os dois chorando enquanto assistiam ao episódio e a esse capítulo de

nossa vida chegarem ao final.

No fim da noite, corri para juntar o elenco para o cumprimento ao

público que planejamos para ser incluído como parte do episódio. Eu usava

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Page 24: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

a jaqueta esportiva favorita de Mike Flaherty, da Universidade de l ;ordham,

e abracei cada membro do elenco e acenei minha despedida. Ao fundo

tocava Glory days, música que Bruce Springsteen gentilmente nos deu

permissão para usar. Foi uma escolha sentimental, mas também era para ser

irônica. O tempo passa e deixa você sem nada, cavalheiro; sobram apenas

histórias chatas dos dias de glória. Claro que meus dias de glória ainda não

tinham acabado. Eu ainda teria muitas histórias para contar.

Depois do programa, reunimo-nos em um restaurante próximo que

já tínhamos reservado para aquela noite. Dançamos e festejamos, rimos até

a barriga doer e fizemos nossas despedidas. Naquela noite, quando Tracy e

eu fomos para casa, deixei o despertador desligado.

Mexido, não batido

Quando fui diagnosticado com a doença, em 1991, estava

determinado a absorver o impacto, esquecer todo o medo, a confusão e as

dúvidas e ficar agradecido por ter um pequeno grupo de amigos e a família

me apoiando. Eu entendia que os sintomas indicavam um progresso lento

da doença, e isso me deu o tempo e a privacidade de que precisava para

processar a situação. Da mesma forma, quando anunciei o que estava acon-

tecendo, em 1998, após sete anos medindo o tamanho e o peso do fardo que

estava carregando, o que eu queria, em grande parte, era aliviar um pouco

esse fardo. Apesar de estar nervoso em relação a como as pessoas reagiriam

quando contasse a verdade, estava muito mais preocupado em como

reagiriam se eu continuasse a esconder a situação.

Sendo brutalmente honesto, na maior parte daquele tempo eu era a

única pessoa com Parkinson do mundo. Claro que digo isso no sentido

abstrato da coisa. Acabei ficando sensível em perceber pessoas à minha

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Page 25: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

volta que tinham sintomas da Doença de Parkinson, mas enquanto elas não

se identificassem comigo eu também não tinha pressa nenhuma de me

identificar com elas. Minha situação me permitia, senão uma negação

completa, pelo menos certo isolamento. Mas isso iria mudar.

Não saí do meu isolamento, e pronto. Ir a público foi uma decisão

difícil, e eu tinha muitas desconfianças. Minha experiência subjetiva era

agora um fato objetivo no mundo selvagem. Não pertencia mais apenas a

mim - apesar de eu logo aprender que nunca tinha pertencido apenas a mim

desde o início. Mais de um milhão de outros norte-americanos e suas

famílias estavam passando pelo mesmo que eu - alguns abertamente, outros

em segredo, com medo de ser incompreendidos e marginalizados. Eu

representava algo para eles e, tendo ou não planejado isso, agora também

os representava na mente das pessoas.

Eu reconhecia que tinha uma responsabilidade com essa nova co-

munidade e ao mesmo tempo a oportunidade de fazer algo positivo.

Podia me relacionar com os pacientes que me escreviam, em

especial os que estavam on-line, nas salas de bate-papo sobre Parkinson.

Em geral, eu fazia isso usando um pseudônimo, mas era sempre estranho

quando as pessoas me perguntavam o que eu achava de mim. Uma das

maiores revelações que tive foi que, apesar de termos o mesmo fardo,

nossas experiências podiam ser muito diferentes umas das outras. A

Doença de Parkinson pode se apresentar de muitas formas - e, por alguma

razão, cada um tem uma versão diferente. Uma terapia com medicamentos

ou uma cirurgia que funcionem para um podem não dar certo para outro.

Nossas reações - emocionais, psicológicas e físicas - variam muito, e isto

com certeza afeta nossa habilidade de reagir.

Minha interação com a grande população de portadores da Doença

de Parkinson levou-me a ver que tinha sorte, e isso me deu certo consolo.

Por alguma razão, eu tinha sido poupado da tortura da depressão. Não

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Page 26: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

quero dizer com isso que não tenha tido momentos de tristeza, medo ou

ansiedade acerca de minha condição, além de ter precisado passar por cima

do sentimento de negação para reconhecer tudo isso. Mas a depressão

clínica é um sintoma comum enfrentado por 40% dos pacientes com DP.

Igual à demência, ela pode estar presente desde o início, pode aparecer ao

longo do tempo ou de uma hora para outra nos últimos estágios da doença.

E, como eu disse, apesar dos altos e baixos já esperados em uma vida com

Parkinson, não tenho de lutar com o desequilíbrio químico que ativa uma

depressão severa.

Nunca saí de uma sala de bate-papo daquelas sem me sentir ura cara

de sorte. Minha família, minha relativa juventude, minha situação

financeira e também minha posição como homem público deram-me

tremenda vantagem para lidar com a doença. Apesar de o Parkinson ter

impacto direto em minha habilidade de fazer meu trabalho, eu era, para

todos os efeitos, meu próprio chefe. Então, para mim, decidir contar ou não

sobre minha doença não envolvia nenhum grande risco. O anonimato da

internet também me permitiu ver o impacto que minha revelação teve sobre

outros pacientes, suas famílias e as pessoas com as quais interagiam todos

os dias. E tenho certeza de que o efeito teria sido o mesmo com várias

outras pessoas conhecidas, mas o fato de alguém com a habilidade de atrair

tanto interesse público jogar uma luz no problema da categoria significou

mais do que eu poderia imaginar. Certo, pensei, e agora, o que faço com

isso?

Alguns meses depois do meu anúncio, comecei a me integrar na co-

munidade de pacientes com Parkinson e a me familiarizar com as diversas

organizações e fundações que haviam me procurado. Convidei alguns re-

presentantes a irem ao meu apartamento para discutirmos seus programas e

estudar como eu poderia me encaixar nos planos deles. Apesar de eles

serem muito profissionais, dedicados e comprometidos, eu ainda estava

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Page 27: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

procurando algo com foco mais agressivo em relação a pesquisas que

descobrissem uma cura. Em uma dessas ocasiões, um grupo chamado

Parkinson's Action Network (PAN), liderado por Joan Samuelson, uma

paciente jovem em estágio inicial e advogada ativista, tocou nessas ques-

tões logo de cara, falando também da disparidade dos financiamentos fe-

derais para as pesquisas com Parkinson em relação a outras doenças.

O Subcomitê de Verbas do Senado para Trabalho, Saúde e Serviços

Sociais tinha marcado uma audiência em Washington para algumas

semanas depois, e Joan apresentou seu caso dizendo que meu testemunho

poderia atrair atenção para a questão e fazer com que o Congresso nos

apoiasse. Vendo uma chance de fazer a diferença, aceitei dar meu

depoimento.

O que agora é um fato público e divulgado era pouco conhecido na

época: sou viciado em política. Quando era pré-adolescente, fui inspirado

pelo primeiro-ministro canadense Pierre Trudeau e assombrado pelo

presidente Richard Nixon. Virei adolescente e fui voluntário do Partido

Liberal da Colúmbia Britânica nas eleições locais, distribuindo propaganda

do meu candidato e redistribuindo as do adversário no lixo atrás da loja de

bebidas. (Mas não adiantou; meu favorito dançou na eleição.)

Ao longo dos anos, acompanhei a política com avidez e sempre ten-

tei me manter informado sobre os políticos e as políticas públicas. Todavia,

como deixei o Canadá quando fiz 18 anos, não tive moradia fixa em

nenhum lugar durante anos, e porque não tinha virado cidadão norte-

americano até o ano 2000 nunca tinha votado em nenhuma eleição. E, sem

ter meu próprio voto, não me sentia no direito de influenciar o voto dos

outros.

No entanto, na época da audiência do Senado, eu já estava com tudo

encaminhado para me tornar cidadão norte-americano. Minha papelada já

estava sendo processada, e com isso eu tinha a consciência limpa para

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Page 28: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

defender meu caso. Eu não era especialista em como andavam as pesquisas

científicas na área. Falaria sobre o efeito que a doença tem sobre os norte-

americanos, dividiria nossas esperanças e dificuldades, reivindicar nossos

direitos e expressaria nossas expectativas. Escrever meu testemunho ao

Congresso foi provavelmente meu primeiro esforço concentrado em

comunicar o que tinha vivido nos últimos oito anos. Não queria que as

pessoas saíssem do meu depoimento resmungando "Coitadinho dele!". Na

verdade, esperava que pensassem “Acho que podemos ajudar".

O otimismo que levei comigo nas audiências e a certeza de que

qualquer situação, com as circunstâncias certas, pode melhorar foram

validados pelo testemunho do Dr. Gerald Fischbach, diretor do Instituto

Nacional de Problemas Neurológicos e Derrames (parte do National

Institute of Health*). Ele afirmou que, com um bom investimento em

pesquisas, os cientistas poderiam descobrir a cura para a Doença de

Parkinson entre cinco e dez anos. Se uma das câmeras estivesse me fil-

mando em dose, tenho certeza de que teria sido uma das melhores per-

formances de surpresa da minha carreira. Esperava que ele mostrasse

confiança e lançasse um desafio para que outros pesquisadores o seguissem

e o Congresso os apoiasse da melhor maneira possível, mas não estava

preparado para ter uma idéia certa de tempo. O testemunho dele me deu

energia. Era algo manejável. Recebi o recado de que uma cura era possível,

e precisava agir de acordo com essa informação.

__*Trata-se da Agência nacional de Saúde dos Estados Unidos. (N.T.)

Comecei a perceber que eu era ridiculamente desqualificado para

contribuir com esses esforços de maneira substancial. Não tinha MBA nem

Ph.D., apesar de alguns anos antes ter conseguido meu GED.* Mas meu

otimismo havia se cristalizado em uma esperança definitiva. E ao longo do

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Page 29: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ano seguinte a esperança virou a inspiração para uma fundação privada,

que poderia estimular a comunidade dos pacientes e criar uma estrutura de

arrecadação significativa de dinheiro, identificar cientistas sub financiados

e providenciar o suporte de que eles precisavam o mais rápido possível.

O irônico é que para fazer o trabalho da minha vida tive de me apo-

sentar do meu emprego do dia a dia.

__*É o equivalente ao ensino médio (N.T.)

Férias permanentes

PEYPIN D'AIGUES, PROVENCE, FRANÇA

JULHO DE 2000

Em um estacionamento de cascalho na vila provençal de Peypin

d'Aigues encontro uma árvore lisa e observo com a mesma fascinação

respeitosa algo tão atemporal quanto a tartaruga que vi na costa de St. John

no inverno anterior: dois senhores idosos franceses usando roupas brancas

amassadas e jogando uma partida de boules.**Parece mais uma dança que

um jogo, além de a conversa deles ter certa qualidade musical gutural.

Depois de uma pequena discussão, aparentemente ocorrida por causa do

ponto exato de lançamento das bolas, os senhores deram alguns passos até

um banco de madeira, pegaram duas taças de vinho e, no tempo que cada

um levou para dar um gole, já tinham se esquecido da briga. Tomei um

belo gole da garrafa de água que tinha trazido desde o aeroporto de

Marselha. Sam tinha ficado nos Estados Unidos (ele não queria perder o

acampamento de verão) e nossas gêmeas, Schuyler e Aquinnah, então com

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Page 30: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

5 anos, estavam dormindo no carro. Tracy tinha entrado na imobiliária para

se encontrar com nosso contato, enquanto nosso amigo Iwa pagava o

motorista de táxi que nos guiara até ali, a apenas um quilômetro da

propriedade que tínhamos alugado pelas duas semanas seguintes. O agent

de biens immobüiers nos levaria o restante do caminho.

__**Jogo tradicionalíssimo na França e no Brasil, aqui conhecido como bocha. (N.T.)

Tinha sido uma longa viagem e eu não fazia idéia do que esperar do

lugar. Mas, quando estávamos chegando à propriedade, minhas preocu-

pações desapareceram. Depois de uma última curva, pudemos ter uma

visão ampla do que nos esperava: espalhando-se pelo terreno e aumentando

enquanto nos aproximávamos estava um telhado colonial de cor creme,

feito de telhas de barro, grandes torres e um moinho flutuando em um mar

de lavanda. Não podia ter pedido por um lugar melhor para refletir sobre as

transformações ocorridas na primeira metade do ano e ponderar sobre as

possibilidades da segunda metade.

Meus últimos meses como Mike Flaherty foram emocionais, exaus-

tivos e agridoces. Mas, exceto por minhas preocupações com o elenco e a

equipe técnica, cujos trabalhos seriam afetados, pelo menos no curto prazo,

eu não tinha arrependimentos. Também não tinha nenhum plano real. A

caminhada até o último episódio coincidiu com um desejo rudimentar de

criar algo como uma fundação (apesar de não ter idéia do que isso

significava). O amor, apoio e encorajamento que recebia de amigos, da

família e de incontáveis pessoas mundo afora estavam, me impulsionando

durante essa transição. Ocorreu-me que esse poderia ser o momento certo

para uma autobiografia. O resultado, pensei, seria uma oportunidade de

reflexão e perspectiva, ao mesmo tempo que me daria o ensejo de mostrar

minha gratidão a tudo que aconteceu em minha vida - de bom e de mau. E

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Page 31: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

também pensei que, se o livro desse dinheiro, eu poderia doá-lo às

pesquisas sobre Parkinson.

Para ser sincero, minha vida antes da viagem à França era composta

de páginas em branco, iguais às do livro que eu pretendia escrever. Após

esse período de descanso, viria o restante da minha vida, que, por enquanto,

era formado de tempo e espaços ainda não dedicados a nada. Eu não estava

tirando férias. Estava embarcando em uma odisséia que, sem dúvida

nenhuma, duraria muito mais que essas duas semanas longe de Nova York.

Para minha família, estávamos de férias; para mim, era uma invocação. Eu

esperava um sinal ou presságio - e estava disposto a pagar em francos.

Porém, eu mal sabia que, nessa quinzena na França, seria visitado por uma

musa, no exato sentido homérico da coisa, que tomaria a forma de um

corredor solitário descendo do topo de uma montanha - ou algo parecido

com isso.

Provence era um sonho. O momento e a paisagem inspiraram-me a

parar e apreciar quão abençoada era minha vida. Afinal, lá estava eu, o

moleque que veio do Canadá, passando duas semanas com a família em

uma propriedade francesa que existia havia séculos.

Fotos da família dos proprietários, a maioria dos filhos pequenos,

cobriam as paredes da casa. Genevieve, cozinheira e empregada, muito

simpática e graciosa, mas que não falava uma palavra em inglês, apontava

com orgulho os retratos das meninas e exclamava: "Princesse! Princesse!".

Tomamos isso como uma simples expressão de afeto dela pelas crianças,

até notarmos fotos de pessoas muito elegantes em cenários de realeza,

roupas de cama de linho com brasões elaborados e, finalmente,

encontrarmos um documento personalizado identificando o dono da

propriedade como o herdeiro do trono de um principado européia. Não

conseguia parar de rir. Tínhamos furado uma bela fila.

Enquanto as crianças se esbaldavam na piscina gelada, Jean-Luc,

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Page 32: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

marido de Genevieve, era meu guia em caminhadas diárias pelas redonde-

zas. Super naturalista, ele sempre andava olhando para o céu, procurando

as muitas jovens águias nascidas naquela primavera.

- Michel! - ele exclamava, apontando para o horizonte ou acima de

sua cabeça. - Regarde, regarde! Aigle, aigle!

Eu dava uma olhadela rápida, mas não sem certa trepidação. Na pri-

meira de nossas caminhadas, Jean-Luc alertou-me de que, além das águias,

a fauna local também tinha grande população de porcos selvagens - os

javalis - ou, como diria Jean-Luc, cochons sauvages. E um presunto peludo

e malvado de cem quilos que, sem aviso, pode atacar saindo de um arbusto

e eviscerar você com as longas presas. E nem precisam ter um motivo.

- Sim, já vi a águia, Jean-Luc... Não, não preciso de um binóculo,

merci.

Já Tracy descobriu uma coleção de bicicletas em um galpão atrás da

casa. Jean-Luc cuidava delas e disse que podíamos usá-las. Minha mulher

sempre foi uma entusiasta do ciclismo e ficou animada com a possibilidade

de pedalar para cima e para baixo pelos vales e cidadezinhas dos arredores

de nossa casa de campo. Ela até me convenceu a ir com ela, mas depois de

duas ou três subidas cruéis ser eviscerado por um javali não me pareceu

uma idéia tão má assim.

O pouco de TV que vimos desde que chegamos a Provence incluía

a cobertura da espetacular Volta da França. O evento anual e de maior tra-

dição esportiva do país vinha rodando pelas montanhas e cidadezinhas do

interior, e os heróicos atletas, em especial o norte-americano Lance

Armstrong, tinham inspirado Tracy. Eu também acompanhava o progresso

de Lance, mas por razões diferentes.

Em um dos nossos últimos dias em Provence, descobrimos que o

trecho seguinte da Volta da França passava por uma cidadezinha próxima

chamada Pertuis. Acordamos cedo, comemos uma baguete com queijo

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Page 33: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

delicioso no café da manhã no terraço e partimos para a cidadezinha.

Depois de mais ou menos uma hora esperando os ciclistas, durante

a qual nos embriagamos com o ambiente e as cores do local e deixamos as

crianças tomarem um sorvete atrás do outro de um vendedor próximo, um

burburinho começou a surgir na multidão. Podíamos sentir o chão sob

nossos pés começar a vibrar. Os espectadores espremiam-se para conseguir

uma vista melhor. Pelo que eu tinha visto desses eventos na televisão,

sempre pareceu que a multidão se aventurava perto demais dos ciclistas, e

me surpreendia não haver muitos acidentes por causa disso. Tracy e eu

pegamos uma gêmea cada uma pela mão e as seguramos firme enquanto o

pelotão passava zunindo por nós. Era difícil distinguir uma bicicleta da

outra; juntas, elas se tornavam um grande borrão metálico. O arco-íris de

cores das camisetas das equipes e o cromo brilhante das bicicletas atraíam

as pessoas como um grande ímã. Pensávamos que aquele dia em Pertuis

havia sido o melhor encontro pessoal que poderíamos ter com a Volta da

França. Mas não sabíamos o que nos esperava em Paris.

PARIS, FRANÇA -SÁBADO, 22 DE JULHO DE 2000

Apesar de um período particular e repugnante em sua história,

quando serviu de quartel-general para os nazistas durante a ocupação na

Segunda Guerra Mundial, amamos o Hotel de Crillon. As grandes janelas

do nosso quarto, que iam do chão ao teto, tinham vista para a Place de La

Concorde, oferecendo uma clara visão do Jardin des Tuileries, do Musée de

l'Orangerie e, do outro lado do Sena, do Palais Bourbon.

Pouco depois de nos registrarmos, liguei para nosso amigo Philippe

de Boeuf, o gerente do hotel. Perguntei-lhe porque havia uma bandeira do

Texas tremulando acima do hotel, coisa que reparei Logo que chegamos.

- É para Lance Armstrong - ele respondeu com. seu sotaque à. Ia

Charles Boyer. - Ele está na cidade por causa da Volta da França. Amanhã

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Page 34: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

é a última etapa, e o Crillon é a casa dele quando está em Paris.

Além de termos um grande apreço pelas conquistas que levaram

Lance a ser o maior ciclista competitivo da história, Tracy e eu também

fomos inspirados, como tantos outros no mundo todo, pela coragem e

perseverança dele em superar o desafio de um câncer de testículo, que

ameaçava não apenas sua carreira, mas também sua vida. Ele se tornou um

herói para muitas pessoas com câncer. Fiquei especialmente impressionado

pela força dele em enfrentar a própria provação e ainda reconhecer a

situação enfrentada pelos outros. A Fundação Lance Armstrong, mesmo

sendo relativamente nova, já conseguia cumprir a missão à qual se

propunha: "Inspirar e capacitar quem sofre com o câncer e seus familiares

sob o mote A união faz a força, o conhecimento traz poder e atitude é

tudo"'.

Eu considerava Lance e Christopher Reeve modelos a seguir para o

que eu queria realizar. Os dois eram homens que tinham enfrentado de-

safios que os havia transformado. Cada um deles pegou o problema e o

transformou em algo positivo. Eu não precisava deixar a doença me definir

- eu mesmo tinha de me definir. E talvez, no processo, conseguisse algo

melhor para mim e para todos os outros na mesma situação.

- Engraçado você mencionar a bandeira - continuou Philippe. - A

mulher de Lance, Kristin, viu você e sua família no saguão e gostaria de

convidá-los para uma recepção que teremos aqui no hotel hoje à tarde.

Não precisei pensar no assunto nem perguntar nada a Tracy.

Antes de desligar o telefone, ainda tinha um pedido a fazer a

Philippe. Um dia ou dois antes de sairmos de Provence, recebemos um

telefonema dos Estados Unidos informando que cada um de nós havia sido

indicado ao Emmy - eu pela última temporada de Spin City e Tracy pela

participação especial em um episódio de Law e Order SUV. Enquanto ela

estava no quarto das gêmeas ajudando-as a desfazer as malas, perguntei a

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Page 35: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Philippe se o chef do hotel poderia fazer um bolo com a forma de um

Emmy. Claro que precisei explicar que porcaria era um Emmy e com o que

ele se parecia. Mas tarde; menos por causa dos meus poderes descritivos e

mais pela capacidade artística e culinária do chef, o bolo de chocolate em

forma de Emmy mostrou-se incrivelmente acurado e delicioso.

Tão estranho quanto ver a bandeira do Texas sobre o Hotel de

Crillon foi estar em uma sala cheia de gente, em Paris, falando com sotaque

texano. Levou um tempo para eu me acostumar. Pelo menos duas pessoas

estavam conversando em francês - Tracy e a esposa de Lance, Kristin.

Tracy sempre fantasiou morar na França, imergindo na língua e na cultura

daquele país. E eu não achava a idéia ruim; não me importaria em morar

em Provence por um mês ou por quanto tempo precisasse para aprender a

dizer a seguinte frase em francês:

- Fui atacado por um javali. Ajude-me a encontrar meu baço!

Enquanto isso, Schuyler e Aquinnah estavam provando minha te-

oria de que, quando em uma sala cheia de adultos, crianças são instinti-

vamente atraídas para qualquer ser humano menor que elas; neste caso,

Luke, o filho de 1 ano de Lance e Kristin, foi o alvo delas.

Eu tinha tido uma surpresa boa ao encontrar um velho amigo no

meio dos texanos - Robin Williams. Ciclista fanático, rodando centenas de

quilômetros por semana nas ruas próximas à baía de São Francisco, Robin

tinha uma parceria de admiração mútua de longa data com Lance. Eles

sempre pedalavam, e Robin até trouxe uma de suas bicicletas a Paris para

poder treinar com Lance.

Lance fez uma aparição rápida. Nem poderia ser diferente; afinal,

ele ainda estava competindo. Nunca encontrei um ser humano tão em

forma - seu físico era tão bom que poderia cortar um papel. Suas famosas

belas feições, com olhos brilhantes e acolhedores, não exprimiam a fadiga

intensa que ele com certeza sentia, tendo chegado à última etapa de um dos

34

Page 36: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

enduros mais cansativos do mundo. Eu lhe disse que desde nossa chegada à

França estivemos acompanhando seu progresso, mas tinha de pedir

desculpas, pois não iríamos ver o final da corrida - nossa volta a Nova York

seria no Concorde do domingo de manhã. Lance logo nos convenceu a

mudar nossos planos, não só nos convidando para ficar e ver a corrida com

a família dele da tribuna principal na Champs-Elysées como também para

participar da festa da vitória no domingo à noite, no Musée d'Orsay.

Por sorte, nosso agente de viagem conseguiu reservar passagens

para nós no vôo da segunda-feira. Durante um tempo, parecia que teríamos

de ficar até terça-feira. Tudo bem, pensamos, mesmo se não desse para ir

na segunda, pegar o Concorde da terça não seria a pior coisa do mundo. Na

verdade, do jeito que as coisas aconteceram, talvez tivesse sido a pior coisa

do mundo. Mas voltarei a esse assunto mais tarde.

PARIS, FRANÇA - DOMINGO, 23 DE JULHO DE 2000

Manhãs de verão ensolaradas em Paris são sempre um presente,

mas, nesse contexto, esse dia foi excepcional. O lugar no palanque

principal da Champs-Elysées reservado para a família de Lance ficava a

apenas alguns passos da Place de Ia Concorde. Estávamos posicionados

bem ao lado da linha de chegada, perto o bastante da ação para sentir um

friozinho pelo vento criado pelo pelotão de ciclistas que passava rugindo

por nós a cada volta. E naturalmente um coro de apoio partia do nosso

grupo quando a camisa amarela de Lance passava por nós. Mas então

parecia que toda Paris estava torcendo por aquele norte-americano

fenomenal. E, como se o borrão barulhento dos competidores passando por

nós não fosse suficiente, ainda éramos entretidos pelos comentários

histéricos de Robin Williams e de seu lendário amigo Eric Idle, do Monty

Python.

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Robin Williams está sempre ligado, metralhando rapidamente qual-

quer um que tenha sorte de estar ao alcance de sua voz ou até mesmo de

seu campo de visão. E você nem precisa "entendê-lo" para achá-lo

absurdamente hilário. As gêmeas, que tinham 5 anos, eram entretidas por

um "gigante" menino de 10 anos, que elas descreviam como engraçado e

assustador. Robin, fã fanático do ciclismo, estava especialmente excitado

por estar tão perto da ação ou, como descreveu a experiência mais tarde ao

The New Yorker, "bem no meio da grande mishpocha... ela lhe dá uma

chute no coração” E depois ficou ainda melhor.

Pouco antes de o pelotão passar zunindo para a penúltima volta da

corrida, Robin, Eric e eu recebemos uma daquelas chances únicas na vida.

Se queríamos ir no carro oficial da Renault quando ele fosse liderar os

ciclistas até a última volta pela Champs-Elysées? É provável que eu tenha

dito "Oui", ou talvez tenha sido "Oiieebbaa!", mas de qualquer forma

minha resposta foi afirmativa.

Sempre que sou abençoado com uma oportunidade como essa, meu

sentimento de gratidão me lembra de quantas oportunidades extraordinárias

tive na vida. Joguei hóquei com Bobby Orr no gelo do Boston Garden;

sentei-me ao lado da princesa Diana na estréia real londrina de De volta

para o futuro; toquei guitarra no palco, em ocasiões separadas e não muito

bem, com Bruce Springsteen, Elvis Costelo, Sting, Eltonjohn, Billy Joel,

James Taylor, Levon Helm, John Mayer e Aerosmith; também jantei na

Casa Branca e sentei-me ao lado de Nancy Pelosi, no escritório dela, nos

minutos que antecederam sua aparição como a primeira mulher da Câmara

dos Representantes dos Estados Unidos a presidir o State of the Union

Address. Tenho certeza de que há muitos outros momentos Forrest Gump

que estou esquecendo. Não digo isso para me gabar; apenas são evidências

de quão ridiculamente sortudo tenho sido em ter a vida que tenho. O que eu

ia fazer em seguida servia muito bem de metáfora da vida que tinha levado

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e vivido até agora.

Além de ser uma das pessoas mais amáveis e divertidas que

conheço, Robin Williams também é (não estou sendo indiscreto; ele é até

famoso por isso) uma das mais suadas. Ele é um daqueles caras que é tão

peludo que, quando damos uns tapinhas nas costas dele, parece que

estamos afofando um edredom - e, se for um dia quente, um edredom

molhado. Segundos depois de entrarmos no carro da Renault, a temperatura

lá dentro subiu bastante, pois o ambiente absorveu o calor extra que

emanava de Robin Williams. Mas logo o carro andou, aumentou a ve-

locidade, e a brisa secou o suor de nossa testa e pescoço enquanto nos

posicionávamos para ver toda a ação.

Já é bem legal quando essa trovejante horda de homens e máquinas

passa voando por você, ali parado, a uma distância não tão segura ao lado

da pista, mas testemunhá-los vindo de frente para você, em velocidade

total, protegido por uma distância flutuante fora de seu controle, é uma

adrenalina pura. Era fácil distinguir Lance e os colegas de equipe dos ou-

tros competidores. Lance, é claro, usava a camiseta amarela de líder, mas

eu estava tão chocado e impressionado com o fato de ele e os companheiros

pedalarem e beberem ao mesmo tempo, não de suas garrafas de água, mas

de taças de cristal com champanhe. Lance explicou mais tarde que, na

última volta, a equipe vencedora dá champanhe aos adversários em sinal de

respeito, adicionando meio sem convicção que eles bebem de mentirinha.

Lance e sua equipe (U.S. Postal Team) chegaram ao último dia com

a vitória assegurada. Quando falei com ele no dia anterior, ele sabia que sua

segunda vitória consecutiva na Volta da França estava ãans le sac, mas

acrescentou:

- A última etapa também vale. Pode parecer bem cerimonial, mas,

se estiver liderando com sete minutos de vantagem e cair a trinta metros da

linha de chegada e não conseguir terminar a prova, você perdeu.

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De onde Robin, Eric e eu estávamos sentados - e ninguém mais ti-

nha lugares tão bons -, podíamos ver que nem um balde de champanhe

poderia evitar que ele cruzasse a linha de chegada, nem que conseguisse a

vitória. E, só para constar, a visão da frente do carro também era bem

impressionante. O Renault acelerando em uma Champs-Elysées com-

pletamente vazia, ladeada por grandes massas de parisienses delirando,

deixou-nos sem palavras - bem, quase sem palavras. Durante um trecho da

nossa rota, quando nos aproximávamos de uma das marcas registradas mais

icônicas de Paris, Robin soltou a seguinte pérola:

- Desde Hitler, ninguém teve uma vista como esta do Arco do

Triunfo. Até hoje, todas as vezes que me encontro com Robin ou Eric, a

primeira coisa que dizemos é "Sempre teremos Paris". Por mais longa que

seja minha lista de Alice no país do espelho, tenho certeza de que, dadas a

vida e a carreira de meus companheiros, a lista deles deve ser maior e mais

sensacional. Mas nenhum de nós estava passado demais a ponto de não ter

outras aventuras. Esse dia foi especial, "como estar do lado de fora do está-

dio dos Yankees e por sorte encontrar Joe DiMaggio", segundo Robin.

Ao sair do carro e me juntar à família Armstrong (e com a minha,

inclusive com uma visivelmente enciumada Tracy) para a entrega dos

prêmios, pensei em voz alta, perguntando com quem teria de falar para que

todos dessem mais uma volta e eu pudesse tirar fotos dessa vez.

Naquela noite, no hotel, enquanto Tracy e eu nos vestíamos para ir

à festa da vitória no Musée d'Orsay, Schuyler me perguntou sobre o livro

que eu pretendia escrever.

- É sobre o quê?

Boa pergunta.

- Bem, acho que é sobre mim - comecei.

- Mas sobre o que de você? - Aquinnah perguntou. - Sobre você ser

pai?

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- Ah, é sobre você ser um "Pai que Treme" - Schuyler disse.

- Isso! - respondi, impressionado com sua percepção.

Aquinnah queria saber mais.

- Mas um Pai que Treme fazendo o quê? Andando de bicicleta?

Tracy, caindo na risada, olhou para mim querendo saber até onde eu iria

com aquilo.

- Sim, é isso mesmo - respondi. - Papai que Treme andando de bi-

cicleta, ou algo assim.

Mais tarde, quando chegamos ao Musée d'Otsay, a antiga estação

ferroviária e atual museu de arte estava banhada em um brilho de conto de

fadas. Mesmo na era da eletricidade, a noite de Paris parece iluminada

apenas por luzes a gás, manchas repletas de luminosidade, um milhão de

velas tremeluzindo de dentro de grandes jarros de vidro redondos. A

princípio, o museu parecia um lugar estranho para aquela festa; afinal,

teríamos atletas e esportistas que tinham acabado de ganhar a Copa do

Mundo das corridas de bicicleta. E não só ganharam, mas detonaram os

adversários. Não quero dizer que estivesse esperando um barril de chope ou

algo assim, porém aquilo me parecia refinado demais. Nos Estados Unidos,

imagino o time todo no Score, jogando champanhe barata nas dançarinas,

em vez do que ocorre na França, onde se comem canapés tomando

champanhe Cristal, com o belo quadro Whistler’s Mother de fundo. Essa

comemoração aumentou minha impressão de como os franceses vêem os

esportes de maneira diferente de nós. Obviamente eles não estão imunes à

mácula dos excessos comerciais, às grandes trapaças e aos egos inflados na

mesma proporção do salário, mas, mesmo que celebrem algum atleta, a

maior deferência que têm é com o esporte em si. Apesar de Lance e sua

equipe já terem vencido lá, e de ainda vencerem muitas outras vezes nos

anos seguintes, a elegância daquela noite mostrava com clareza que a

vitória na Volta da França era um momento a ser saboreado.

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Tracy e eu passamos boa parte da noite com a mãe de Lance, Linda.

Quando você pergunta a Lance de onde vem seu otimismo, a resposta é

sempre sobre a mãe:

- Não tínhamos o dinheiro ou as oportunidades que outros tinham.

Mas ela nunca reclamou. E, se eu reclamava de algo, minha mãe sempre

dizia: 'Amanhã será um novo dia. Otimismo sempre foi um estilo de vida

para nós.

A festa incluiu um grande número de pacientes com câncer, alguns

sobreviventes, outros ainda lutando contra a doença. Aprendi que a

presença deles era uma constante em eventos como aquele. Lance me

explicou:

- Este tem sido um grande fator de motivação para minha carreira.

Ver pessoas na mesma situação, que entendem que estou correndo não só

para ganhar uma corrida de bicicletas, mas por um monte de outras razões

também.

Tracy e eu ficamos muito tocados com a generosidade que ele mos-

trou ao dividir conosco aquela disposição. Um homem capaz de feitos

quase sobre-humanos era mais admirável ainda por causa da vulnerabili-

dade e da vontade de que isso fosse parte tanto de sua identidade quanto de

sua força.

Mais tarde, antes de voltarmos ao Crillon, Tracy e eu procuramos

Lance para agradecer-lhe não só por ter nos convencido a ficar e ver a

corrida, mas também por nos convidar para a comemoração. Eu tinha

muitas perguntas a respeito de pessoas que conheci aquela noite, em

especial sobre aquelas que tinham ligação com a Fundação dele. Como

Lance juntara essa fábrica de apoios? Quanto disso teve a participação

direta dele, de sua liderança? E como fizera para implantar e manter uma

cultura na Fundação que fosse tão fiel ao seu espírito de coragem, espe-

rança e realização? Fizemos planos de nos encontrar outra vez depois do

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verão, em Nova York, para podermos aprender mais sobre o trabalho dele

na Fundação.

Minha miniodisseia gaulesa - muito melhor que a versão épica,

porque pude levar a família junto - parecia ter servido a um propósito maior

que ser apenas duas semanas de descanso e recreação. Minha invocação

tinha sido respondida. Lance havia descido das montanhas com o que bem

poderia ser um mapa parcial para a próxima perna da minha jornada.

AEROPORTO CHARLES DE GAULLE, PARIS, FRANÇA

24 DE JULHO DE 2000

Não há experiência igual a voar em um Concorde. É ridiculamente

caro e, logo que se está a bordo, você percebe que o preço não é especial

para ter mais espaço para as pernas, a cabeça ou o corpo. Os lugares são tão

luxuosos quanto possível, dadas as restrições decorrentes do formato

tubular, como se fosse uma flecha. Claro que o grande atrativo e a razão do

preço alto são o tempo que se economiza com ele - de Paris a Nova York

em três horas. Alguns anos antes, acordei um dia em Londres, tomei o café

da manhã, peguei o Concorde para Nova York, de lá peguei um vôo da

American Airlines para Los Angeles e já estava filmando Caras e Caretas

no estúdio à uma da tarde. Mesmo com a diferença de fuso horário, ainda é

um bom exemplo do milagre que é o Concorde.

Pelo menos a área de espera do aeroporto Charles de Gaulle tinha

bastante espaço para nos espalharmos. Naquela segunda-feira de manhã,

após a Volta da França, minha família estava se aproveitando de cada

espaço oferecido. As gêmeas corriam freneticamente, o que aos 5 anos é

quase a descrição do trabalho delas. Nosso amigo Iwa ficava de olho nas

crianças e checava novamente com a atendente se nossas bagagens haviam

sido processadas de forma correta. Eu estava ocupado conversando com

Tracy, e ela estava ocupada preocupando-se com o avião - não que alguém

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Page 43: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

tenha notado, mas sei quando ela está perturbada assim como ela percebe

quando estou falando abobrinha. Desde que a conheço, Tracy já melhorou

muito era relação ao medo de voar. O que foi bom, pois no começo de

nossa família viajávamos constantemente, a trabalho e também por

diversão. Talvez pareça meio insensato e frágil viajar uma distância tão

longa em tão pouco tempo, mas tinha algo em relação ao Concorde que

deixava Tracy nervosa. E hoje não era diferente. Eu estava fazendo o

máximo possível para ser paciente. Voar nunca havia me incomodado, mas

no Concorde eu me sentia particularmente seguro, em especial no

Concorde da Air France. Não que tivesse alguma evidência que embasasse

minha sensação. Apenas me parecia que os franceses tinham uma operação

muito eficiente, por isso naturalmente deviam manter as aeronaves sempre

em ordem. Contei essa teoria a Tracy, mas ela não ficou impressionada. Em

um último esforço, recomendei um Valium.

- Ah, claro - ela disse -, faz sentido.

- Eu prometo então, Tracy - eu disse, dando-lhe um copo-d'água

para tomar o comprimido -, que, se isto lhe dá tanto medo assim, esta será a

última vez que voaremos em um Concorde.

A viagem foi tranqüila, sem nenhum susto, e, como previsto, durou

aproximadamente três horas entre a decolagem e o pouso no aeroporto

JFK. Mais ou menos no mesmo horário no dia seguinte, terça-feira, 25 de

julho, sentei em meu escritório em Manhattan com a televisão ligada e

comecei a separar a correspondência que se havia acumulado no tempo em

que ficamos fora. Uma chamada na tela da TV anunciava uma notícia de

última hora. Quando apareceram as imagens, o que quer que eu estivesse

segurando caiu no chão. O vídeo, tão gráfico, tão assustador, foi a única

informação sensorial que consegui processar. Eu estava surdo para o som

que acompanhava as imagens. O Concorde da Air France, ao tentar pousar

ou abortar uma decolagem - eu não conseguia discernir -, despencou no

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chão, desintegrando-se em um redemoinho de chamas vermelhas e fumaça

preta. O vídeo foi passado novamente, e desta vez prestei atenção aos

detalhes.

- Aproximadamente às cinco da tarde, horário local, um Concorde

com destino a Nova York explodiu em uma bola de fogo logo depois de

decolar, matando 113 pessoas.

Às vezes, quando se está sozinho, vários minutos se passam até que

você perceba que está chorando.

CIDADE DE NOVA YORK - SETEMBRO DE 2000

Lance cumpriu a promessa e, ao chegar setembro, encontramo-nos

no escritório da minha produtora em Nova York para discutir a criação de

uma fundação. Acompanhando Lance estavam Howard Chalmers, presi-

dente da Fundação Lance Armstrong, e Jeffrey Garvey, diretor. Conheci os

dois em Paris. Lance relembrou que, em 1997, sentou à mesa de um

restaurante mexicano com alguns amigos e sócios e começou a sonhar com

o que sua Fundação poderia realizar. Admiravelmente, Lance estava

começando algo que talvez não chegasse a ver concluído. Naquela época,

seu câncer de testículo havia se espalhado para o abdômen, os pulmões e o

cérebro, e os tratamentos não garantiam que iria se recuperar ou até mesmo

sobreviver. Agora, em 2000, com a doença em remissão, ele tinha duas

camisetas amarelas da Volta da França no armário e arrecadado milhões

para os esforços contra o câncer.

Lance dera à Fundação mais que um nome e uma cara. Ele a imbuiu

com sua atitude e paixão pela vitória.

- Olha, não é como se a gente recebesse boas notícias todos os dias

durante nossa luta. Mas continuamos nela, motivados, e sempre pensamos

que podemos fazer a diferença.

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Page 45: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Além do básico - os aspectos do negócio no dia a dia ao se gerir

uma empresa 501(c)(3)* -, Lance explicou o que significava ter seu nome

na porta da Fundação, esboçando as maneiras pelas quais seu perfil pôde

influenciar aqueles que sua Fundação queria ajudar. Também falamos dos

estigmas ligados ao Parkinson e ao câncer e de quão importante foi para as

pessoas que puderam e conseguiram falar a respeito disso.

- Eu era jovem e tinha câncer de testículo. Você pode imaginar

quantas abobrinhas as pessoas falaram sobre isso. E ainda falam até hoje.

Eu não ligo. Não deixo esse tipo de coisa me afetar.

Eu já estava motivado, mas Lance deu um jeito de me deixar ainda

mais aceso.

Pensando de forma prática, perguntei-lhe qual era o ingrediente es-

sencial para uma Fundação bem-sucedida.

- Depende das pessoas que estarão ao seu lado - ele disse. - Você

não tem como fazer isso sozinho.

______*501© é o código dado pelo governo dos Estados Unidos a organizações sem

fins lucrativos, e o número que vem a seguir as separa por ramos de atividade (N.T.)

Estranhamente familiar

Em junho de 1989, alguns dias depois do nascimento de Sam, meus

pais vieram lá do Canadá para conhecê-lo. Talvez meu pai soubesse que

seria uma das poucas chances que teria de embalar o neto em seus braços

de urso - em janeiro ele se foi -, porque não queria soltar o menino. Minha

mãe teve de arrancar o nenê dele.

Estávamos sentados na beira da piscina em uma manhã e minha

mãe fazia Sam dormir em seu colo, sob o sol da Califórnia, quando fez a

seguinte previsão:

-Alguns dos melhores amigos que vocês terão na vida serão feitos

através de seus filhos: pais e mães dos amigos deles, pais da escola deles.

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Vocês vão ver. Foi assim para mim e Bill. É uma das muitas dádivas de ter

filhos.

À medida que Sam foi crescendo, ele nos apresentou, de uma

maneira ou de outra, a muitos novos amigos, vários dos quais estão entre

nossos mais chegados atualmente. Quando as gêmeas Aquinnah e Schuyler

nasceram, nosso círculo de amizades cresceu muito. Eu já aceitara fazia

tempo a previsão de minha mãe como a mais pura forma de sabedoria,

mas mesmo ela não poderia ter previsto o fenômeno que encontrei quando

as garotas foram para a pré-escola.

Depois das primeiras vezes que me encontrei com Curtis Schenker,

meu desejo não era convidá-lo para fazer parte de nosso círculo de

amizades, mas pedir uma medida cautelar contra ele.

Durante a vida, estabeleci algumas metas grandiosas para mim

mesmo. Em cada caso e em vários níveis, minha busca pelo objetivo

desejado foi cheia de ambição, esperança, arrogância e imaturidade juvenil

(e, as vezes, não tão mais juvenil). Cada insucesso eu considerava uma

falha minha, mas cada vitória era dividida. Sempre posso citar uma Lista de

pessoas que tiveram algo a ver com coisas que deram certo. Foi assim com

minha carreira - Gary Goldberg, Bob Zemeckis, Steven Spielberg, os atores

com quem trabalhei e, claro, o público que me manteve no negócio - e

também com minha família - Tracv. Tracv e Tracv Por outro lado, é

impossível imaginar como a história da Fundação teria se desenrolado se

não fossem as contribuições precoces, constantes e irrepreensivelmente

otimistas de um coordenador de um fundo de investimento que nunca havia

tido contato prévio com a Doença de Parkinson.

Desde o momento em que a vimos, amamos a filha de Curtis

Schenker, Ally. Ela era uma máquina de sorrisos muito esperta e adorável,

e seu temperamento, interesses e aparência física eram tão similares aos das

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nossas filhas que Tracy e eu a apelidamos de "A terceira gêmea". As três

eram super unidas. Carolyn, mulher de Curtis e mãe de Ally, parecia ser a

antítese do clichê que são as mães socialites que moram no Upper East

Side. Seu humor gracioso, o senso de perspectiva e a natureza doce logo

atraíram Tracy, e a amizade delas cresceu e tornou-se muito mais que só

aqueles papos na hora de deixar e pegar as crianças na escola.

Enquanto isso, Ally tinha se tornado a amiguinha fixa que ia em

casa sempre depois do colégio e nos finais de semana, e falei com Carolyn

nas poucas vezes em que dei uma escapada da agenda de Spin City e fiz o

trabalho de "leva e traz". E estive em algumas visitas dos pais à escola, em

excursões da classe e em jantares improvisados antes de associar Carolyn

ou Ally a esse raivo de olhos selvagens chamado Curtis. Eu sabia que ele

era o pai de uma das crianças, mas podia jurar que estava me seguindo.

Empoleirado em uma dessas pequenas cadeiras vermelhas da pré-escola,

mexendo nos pedacinhos que haviam no meu suco de maçã, viro-me e lá

está ele ao meu lado, em uma pequena cadeira também. Eu sempre sentia

que ele tinha começado a falar um ou dois minutos antes de eu prestar

atenção e continuado por pelo menos mais dois depois de eu já ter perdido

minha atenção.

E então teve a figuração. E foi onde ele me ganhou. Era a festa

anual de arrecadação de fundos da pré-escola 92nd Street Y, que pediu aos

pais e amigos que doassem produtos de alto valor, serviços e experiências

para serem leiloados. Figurações - papéis pequenos em filmes ou séries

sem nenhuma fala - são itens muito valorizados nesses leilões. Não sei se

fico

chocado ou acho engraçado que nova-iorquinos bem de vida, sofisticados e

bem resolvidos cheguem a doar milhares de dólares pelo privilégio de

passar o dia como figurante ou, na nossa linguagem, um "artista periférico".

Esse é o nono círculo do inferno da indústria do entretenimento, porém

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com lanche grátis. Mas tudo bem. Se servisse para arrecadar dinheiro para

uma boa causa, eu sempre estava disposto a oferecer uma vaga em Spin

City. Foi o que fiz. E adivinha quem comprou o papel?

Chamei minha mulher ao meu camarim em nosso estúdio em

Chelsea Piers.

- Tracy, você não vai acreditar em quem está aqui - sussurrei com

urgência. Muitas paredes finas e uns cem metros separavam-me de qual-

quer um que pudesse ouvir o papo, mas minha voz baixa tinha mais a ver

com falta de ar que discrição. - Acabei de ir ao ensaio de gravação e o ruivo

louco lá da Y está no estúdio.

- É Curtis Schenker - Tracy disse. - O pai de Ally. Lembra-se de

minha amiga Carolyn?

- Curtis. Certo. Curtis, o louco.

- Ele não é louco - Tracy disse, contrariada. - Ele só é amigável.

Você vai gostar dele. E inteligente, engraçado e muito generoso. Você não

vai acreditar em quanto ele deu de lance para estar aqui hoje. Seja legal

com ele.

De volta ao estúdio, estávamos arrumando o fundo de cena, ou seja,

a posição das pessoas que não falam nada e preenchem o fundo dos

programas que assistimos. Determinado a ser um bom anfitrião, apesar de

minhas desconfianças, coloquei um sorriso no rosto e fui até o sortudo

vencedor do papel.

- Curtis - eu disse -, esta cena abre com uma câmera em

movimento-me filmando. Ela vem me acompanhando, vai indo para trás

enquanto desço pelo corredor e dou a volta na mesa, e me deixa na porta do

escritório. Vamos garantir para que você fique enquadrado todo esse

tempo, participando assim da cena.

Achei interessante ele estar se esforçando bastante - e não se cansar

de jeito nenhum. Na verdade, ele até possuía certo charme. Coloquei-o na

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frente e bem centralizado na cena de abertura do episódio durante quarenta

segundos de filmagem ininterruptos. E ele fez um bom trabalho - ficou

relaxado, natural, não se moveu e não ficou olhando direto para a câmera.

Quando o encontrei em outro dia, disse que ele iria amar o episódio.

Ele ligou para uns dez amigos e falou para eles assistirem. Todavia, quando

fomos fazer a edição final do episódio, tínhamos oito minutos sobrando.

Algo precisava ser feito. E esse algo acabou sendo a cena de abertura, e,

com isso, a parte em que Curtis aparecia. Eu já tinha ouvido histórias

verídicas sobre pessoas que haviam pago muito dinheiro em um leilão para

participar de um filme ou de uma série, mas porque tinham sido cortadas

entraram com um processo na justiça. Por sorte, Curtis não fez isso. Além

de aceitar minhas explicações e desculpas com muita calma e senso de

humor, ele disse que doaria o dinheiro para a Y de qualquer forma. E que

adorara o dia, de qualquer forma. Curtis, no final das contas, não era um

louco que me perseguia, mas um cara bem legal.

Aparentemente, nós dois não tínhamos muita coisa em comum, a

não ser a idade. Curtis era produto do sistema privado de ensino de Nova

York, graduou-se pela Penn, foi bem em Wall Street e então criou um

fundo de investimentos de muito sucesso, e isso antes dos 30 anos. Já eu,

passei por várias escolas públicas canadenses, larguei os estudos no ensino

médio e me dei bem interpretando um cara que queria trabalhar em Wall

Street e mexer com fundos de investimentos. Mas logo as coisas em

comum foram aparecendo. Nós dois éramos pessoas que adorariam ser

estrelas do rock e que podiam identificar quaiquer músicas antes que o

rádio mostrasse na telinha o nome delas. Nós dois não merecíamos de jeito

nenhum as mulheres maravilhosas que conseguimos convencer a se casar

conosco. E nós dois éramos otimistas incuráveis.

CIDADE DE NOVA YORK • 31 DE MAIO DE 2000

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Em maio de 2000, Curtis e Carolyn convidaram Tracy e eu para o

baile e leilão Robin Hood, em Nova York. Esse evento anual definia um

"quem é quem" na comunidade financeira da cidade. Gerentes de fundos de

investimentos, investidores de ações, investidores de capitais de risco,

banqueiros, diretores de empresas, investidores de imóveis e de todos os

outros tipos de investimentos. O evento reunia em uma sala, em uma só

noite, os pesos pesados pesadíssimos de Wall Street. E também eram

convidadas celebridades do esporte e do showbiz, como Gwyneth Paltrow e

o técnico de basquete Pat Riley. Robin Williams era o mestre de

cerimônias, e a música ficou por conta do The Who. Com boa parte da

fortuna privada mundial em apenas um salão, os titãs de Wall Street eram

as grandes estrelas. Não dava para lançar um milionário sem acertar um

bilionário. Tenho certeza de que, com a crise econômica atual, muitos

gostariam de fazer isso. Como todos sabemos agora, algumas dessas

supernovas iriam, não num futuro muito distante, espatifar-se na terra.

Mas não resta nenhuma dúvida quanto à generosidade daquela noite

(e, além do que você vai ver, independentemente do que pense da co-

munidade financeira, posso atestar que a generosidade deles é contínua,

com senso de responsabilidade social). Os beneficiários da muito bem

nomeada Fundação Robin Hood incluíam uma grande variedade de grupos

e agências privadas que ajudavam os mais necessitados da cidade. Tracy e

eu ficamos assombrados com os números que ouvimos durante o leilão -

mais de 1 milhão de dólares em um dos itens mais disputados, algo como

um pacote de viagem em classe executiva para o Egito, com direito a

descer o Nilo em um iate privativo. Ao escrever sobre esta noite em Lucky

man, mencionei os riscos de ser um paciente com Parkinson em um leilão

como este. Um espasmo de braço na hora errada acabaria com o dinheiro

da faculdade das crianças, Então, para me garantir, sentei em cima das

mãos e tentei evitar movimentos bruscos.

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Havia algo diferente no ar filantrópico naquela noite. Não era ape-

nas um patrocínio, era uma participação; não apenas caridade, mas um

investimento futuro. No dias que se seguiram, Curtis e eu discutimos a

possibilidade de criar em Nova York um fundo de arrecadação para as

pesquisas com Parkinson. Curtis tinha certeza de que, quando fosse o

momento certo, ele poderia falar com amigos e associados e ter uma boa

margem de sucesso.

Nossa srta. Brooks

Quase inconscientemente, fui pegando os conselhos de Lance,

juntando as partes e montando uma máquina capaz de organizar, processar

e converter esperança em uma resposta para o Parkinson. O que eu mais

precisava era de um parceiro, um diretor executivo que pudesse imple-

mentar minha visão.

- Encontre alguém de Wall Street - foi o conselho de Curtis. - O

modelo de negócio que você procura é inovador, agressivo e empresarial;

um bom começo.

Contatamos uma empresa de RH que encontrava executivos e era

especializada no setor de organizações sem fins lucrativos.

- Mas não procurem apenas candidatos de organizações filantrópi-

cas tradicionais - instruímos. - Procurem no setor privado.

Eles pensaram que éramos malucos. Como iríamos tirar um exe-

cutivo de seu salário milionário de Wall Street? No início de outubro,

minha parceira de Spin City, Nelle Fortenberry, e alguns amigos da co-

munidade advocatícia do Parkinson tinham reduzido a lista de muitas

dezenas de candidatos a apenas três finalistas.

Quando as portas da sala de conferência se abriram, Debi Brooks

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Page 52: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

entrou a passos largos para a entrevista, com ar bem confiante, como se

soubesse que tinha o que precisávamos, mas era amável e humilde o

bastante para nos dar o tempo de que necessitássemos para descobrir isto

por nós mesmos. Ela nos atraiu de imediato. E logo ficou claro que seu

maior recurso era a mente, com o coração ficando bem perto, em segundo

lugar - precisamente a combinação requerida para capitanear uma

organização sem fins lucrativos e competitiva. Virei-me para Nelle e

perguntei:

- Quando você pretendia me falar dela?

Tendo sido vice-presidente do banco Goldman Sachs, Debi não via

minha afirmação de que era possível encontrar uma cura para o Parkinson

como o simples desejo de alguém aflito pela doença. Eu já podia ver,

durante aqueles primeiros minutos de um relacionamento que se tornaria

um dos mais duradouros da minha vida, que, para Debi, otimismo e

pragmatismo não eram como óleo e água. Enquanto os outros candidatos

também eram muito qualificados e com certeza teriam trazido seus talentos

únicos para nossa missão, era óbvio que Debi era um "gol de placa"'. No

final desse dia, ela recebeu nossa oferta de trabalho e aceitou; três dias

depois estava no escritório - e saímos de lá.

REUNIÃO DE PLANEJAMENTO DA FUNDAÇÃO MJF

CIDADE DE NOVA YORK • 23 DE OUTUBRO DE 2000

Tão cedo quanto dei as boas-vindas a Debi, também expliquei o que

me levaria a demiti-la.

- A última coisa que quero é que eu e você cheguemos ao ponto de

discutir a respeito de nosso vigésimo evento anual de arrecadação de

fundos. Na verdade, se isso acontecer, você será demitida.

Ela riu, mas eu sabia que Debi entendia a urgência da situação.

Nossa meta era simplesmente conseguir que fôssemos esquecidos. E foi

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mais ou menos isso que disse para um grupo de apoiadores que se reuniram

na sede da Dreamworks em Nova York:

- Quero que me ajudem a me aposentar desse negócio.

Sentados em volta da mesa estavam CEOs, empresários e donos de

companhias enormes - titãs do mais alto nível. E lá estava eu, pedindo a

eles que me ajudassem a montar um negócio que não era feito para durar:

- Se encontrarmos uma cura para o Parkinson, nosso trabalho estará

completo.

Poderia ter sido uma cena do filme O segredo do meu sucesso ou

um dos sonhos melados de Alex Keaton - o jovem executivo falando com

os subordinados em sala de reuniões chique. E, na realidade, em minha

vida até ali, eu só tinha usado terno e gravata em meus personagens - Alex

P. Keaton, Mike Flaherty ou algum outro jovem sonhador. Nunca fizera

esse esforço por executivos do estúdio ou em entrevistas para a mídia. Mas

ali estava eu, de terno azul, gravata vermelha e camisa azul.

Explicando melhor o tema "criando um negócio feito para acabar",

que foi minha abertura, contei que o que queria era construir uma

organização fundamentalmente diferente de todas as que já existiam.

- Não estamos criando um banco - falei. - Quando entrar dinheiro,

ele sairá imediatamente.

E Debi completou assim:

- Não estamos criando um fundo. Estamos dispostos a gastar cada

centavo do que arrecadarmos.

Essa filosofia envolvia riscos, coisa que a maioria das organizações

filantrópicas também experimentava. Para mim, risco é igual oportunidade.

Quase todos naquela sala tinham uma relação diária com o risco. Além de

gerentes de fundos e outras pessoas do meio econômico, também havia

executivos de publicações e da indústria do entretenimento - e todos

entendiam que não há como vencer se você não apostar. Ou, como Debi

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colocou:

- Não estamos aqui para fazer o básico, mas tudo o que for necessá-

rio para achar a cura do Parkinson.

Agora sei como Ray Kinsella, de Campo dos sonhos, se sentiu

quando entrou no campo de beisebol que construíra em seu milharal, em

Iowa, e encontrou Shoeless Joe e o time de 1919 do White Sox fazendo

aquecimento. Como Ray, eu também tinha ouvido uma voz interior que

dizia: "Se você construir, eles virão".

Eu sabia que não precisava chegar para esse grupo e perguntar:

- Podemos construir?

Em vez disso, eu perguntaria:

- Como construiremos isso?

Em duas semanas, a Fundação Michael J. Fox para pesquisas de

Parkin-son recebeu seu certificado oficial de criação e nosso número de

identidade provisório como empresa 501(c)(3). Havia menos de um ano eu

tinha abandonado minha carreira de ator sem saber ainda para onde ia. E

agora estava começando uma nova carreira, com uma direção bem

definida.

Subindo a bordo

CIDADE DE NOVA YORK • 13 DE NOVEMBRO DE 2000

Dois colegas de fundos de investimentos de Curtis, John Griíiin e

Glenn Dubin, que esperávamos recrutar para nossa diretoria,

recomendaram um "evento" - ao estilo de Wall Street - para apresentarmos

nossa recém--criada empresa a possíveis apoiadores. Curtis e Carolyn

ofereceram-se para fazer a reunião no seu apartamento na Park Avenue e

fizeram uma lista de amigos e associados. Muito ricas e generosas, essas

pessoas eram abordadas todos os dias por gente com uma história para

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Page 55: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

contar e uma sacolinha pedindo ajuda. Não vou a muitas festas e, como a

maioria das pessoas, sinto-me desconfortável em pedir algo a alguém, mas

Curtis me disse para eu não me preocupar.

- Provavelmente vamos precisar das duas mãos de tanta ajuda que

devemos receber. Mas não faria mal nenhum convidar algumas pessoas do

meio artístico - ele sugeriu.

Então chamei alguns amigos de Nova York que já tinham demons-

trado seu amor por nós: Alan e Arlene Alda, Kevin Kline e Phoebe Cates,

Billy Baldwin, Amy Irving e Diane Sawyer.

Curtis passou a primeira hora da festa apresentando-me aos convi-

dados e, enquanto andávamos entre potenciais "fazedores de diferença", ele

inclinava-se e sussurrava para mim um breve e detalhado currículo da

pessoa. Com a reunião marcada para as 18h30, alguns convidados vieram

direto do trabalho e estavam contentes em tirar as gravatas Prada, tomar um

aperitivo e bater um papo sobre uma doença neurodegenerativa. Ah, e

comer enroladinhos de salsicha.

Em se tratando desse tipo de festas, eu já tinha percebido fazia

tempo que não ligava muito para os assuntos sem importância. Mas esta

noite, no meio dessa turma, como eu não iria me divertir com conversas

como esta:

Encostei no batente de uma porta, embalando minha Coca Diet,

quando um cavalheiro usando um blazer escuro e calça jeans veio cami-

nhando do outro lado da sala.

- Deixe-me lhe perguntar uma coisa - ele disse. - Quanto vocês

acham que vão arrecadar este ano?

- Bem, estamos imaginando uns 6 milhões de dólares - chutei. Era

um número bem otimista, mas que já havia sido discutido entre nós.

- Seis milhões? - um sorriso formou-se no rosto do homem que fora

apresentado por Curtis como Stevie. - Aposto que minha mulher, Alex, e eu

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Page 56: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

podemos arrecadar este valor em uma noite.

E o que aconteceu foi que Steven Cohen, bilionário de fundos de in-

vestimentos e lendário colecionador de arte (um pequeno passeio pela casa

de Alex e Steven é como visitar de uma só vez o Tate, o Met, o MoMA e o

Guggenheim - e isto apenas na sala de estar), manteve a palavra. Ele foi um

dos primeiros membros da nossa diretoria, e era tão empolgado pela ciência

que ia às nossas reuniões acompanhado de um especialista em biologia.

A parte de negócios da nossa festa começou com uma explanação

básica feita pelo Dr. Bill Langston, fundador e CEO do Instituto Parkinson

e nosso novo conselheiro científico chefe. Um discurso científico sobre as

causas e os efeitos da morte das células na substantia nigra é um jeito

estranho de começar uma festa na Park Avenue, mas Dr. Bill fez uma

apresentação atraente.

Quando chegou a hora de eu falar com a platéia, Alan Alda me

apresentou. Bom amigo há anos, Alan não é apenas engraçado - é

inteligente, incrivelmente bem informado em assuntos científicos e sincero

na animação com as perspectivas de pesquisa. Para poder sentir melhor a

sala e ver todas as pessoas, subi na lareira de mármore. Meu plano era me

ater ao assunto em pauta e não falar de política, mas estávamos em

novembro de 2000, uma semana depois da eleição presidencial, e ainda não

sabíamos quem seria o próximo presidente: George W Bush ou Al Gore. E

o resultado teria enorme impacto nas pesquisas científicas.

Comecei minha exposição com uma piada idiota sobre pedaços de

papel não arrancados e então passei aos negócios: financiamento privado

para pesquisas de Parkinson e o que poderíamos fazer para ajudar o

otimismo científico em relação a ser possível alcançar uma potencial cura.

Enfatizando que, em se tratando de cura, não falávamos em "se", mas em

"quando", pedi o apoio de todos. Eu não estava interessado em apenas uma

versão filantrópica usual do tipo "faça um cheque e torça por nós"; queria

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um investimento em um novo tipo de empreendimento - promessa de uma

ação rápida, responsabilidade, inovação e resultado positivo do qual eles

poderiam se dizer responsáveis também.

Além de vários CEOs de nosso primeiro encontro de planejamento

e de muitos colegas meus da televisão, mais dez pessoas que foram à festa

se juntaram ao nosso conselho diretor. Todos seriam instrumentos no

trabalho que teríamos pela frente. Debi logo começou a reunir uma equipe

para a Fundação, e, em duas semanas, o conselho aprovou o orçamento da

nossa primeira aplicação em pesquisas científicas.

Dos resultados das vendas de Lucky man e de algumas doações

generosas, separamos 1 milhão de dólares para essa iniciativa inaugural

em

pesquisas. As inscrições para pesquisadores interessados iam até 1º de

fevereiro de 2001, um incrível prazo de seis semanas se comparado ao

NIH,* que levava até um ano revisando os pedidos. Por isso apelidamos

nossa primeira doação à pesquisa como "O Atalho". Debi Brooks e Dr.

Langston pareciam um pouco ousados ao preverem que teríamos em torno

de cinqüenta inscrições, mas, quando o prazo acabou, tínhamos recebido

duzentas inscrições de pesquisadores baseados em vinte países: o valor

total com tantos pedidos passava de 20 milhões de dólares.

Havia mais cientistas que dinheiro, mas estávamos oficialmente no

jogo.

___

* NIH: national Institute of Health (Instituto Nacional de Saude).(N.T.)

Rope-a-Doparnine:**

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Page 58: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

"Gostaria que as pessoas amassem tanto as outras pessoas

quanto me amam. Seria um mundo bem melhor."

- MUHAMMAD ALI

Tinha me esquecido completamente da música Black superman, de

Johnny Wakelin, com seu ritmo de reggae e balanço monótono, antes do

padrão rap e hip-hop. Mas ouvindo de novo em pequenos fones de ouvido

que nem existiam quando a música foi gravada acabei me lembrando do

passado. Tendo vivido a infância nos anos 1960 e 1970, eu sabia que tinha

dividido a terra com gigantes. Alguns eram figuras importantes na política

ou na sociedade - John F. Kennedy, Martin Luther King e Robert F.

Kennedy. Outros eram ícones culturais como Elvis, os Beatles, Dylan e os

Rolling Stones. Também havia heróis do mundo esportivo e, sendo um

canadense rato de gelo, a maioria dos meus jogava hóquei: Gordie Howe,

Bobby Hull e o melhor dos melhores antes de qualquer um ouvir falar de

Wayne Gretzky, Bobby Orr. Todavia, durante minha vida, uma figura

impactava todas essas realidades - o homem mais famoso do planeta.

Atleta, ativista, advogado - alguns diriam que era artista; para outros,

anarquista -, ele havia sido um menino afro-americano nascido no

Kentucky que, ao ter a bicicleta roubada por outro menino, ficou louco de

raiva e passou a treinar boxe. Ele seguiria em frente mudando o esporte,

mudando sua religião e seu nome, e, ao mudar a cabeça de muitas pessoas

em relação à guerra, mudou o mundo. Quando ele se declarou "O Maior",

não afirmou se era maior de todos os boxeadores, atletas ou bundas-moles.

Ele não ligava. Apenas forneceu parte da frase; decidir o restante era

problema seu. Ele disse apenas "O Maior de Todos os Tempos". E eu

concordava com ele.

___

* O titulo deste capítulo faz trocadilho com Rope a Dope, estilo de lutar boxe

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inventado por Muhamad Ali que consiste em deixar o adversário bater bastante, ficar

cansado e assim vencê-lo, e Dopamina, substância neurotransmissora do corpo humano

associada à Doença de Parkinson. (N.T.)

ARIZONA BILTMORE, PHOENIX 18 DE MARÇO DE 2001

Eu vinha escutando Black superman em um novo MP3 que

pertencia a Howard Bingham, o fotógrafo pessoal de Muhammad Ali

durante mais de quarenta anos. Em qualquer lugar que o campeão vá, lá

está Howard, documentando o momento em filme ou apenas melhorando o

clima com uma de suas tiradas pronunciada com sua gagueíra controlada e

distinta. Sentado à mesa com Howard em uma suíte de hotel no Arizona,

podia ver Ali sentado no sofá, com sua silhueta contra a claridade da janela.

E não conseguia acreditar naquilo.

Ele estava na cidade por causa da "Noite da Luta", evento anual que

levantava fundos para o Centro de Parkinson Muhammad Ali, e

esperávamos em meu quarto a chegada de Debi e de um voluntário do

Centro Ali, que nos levaria à sala de conferências do hotel, onde faríamos

juntos um anúncio da Fundação Michael J. Fox. Já naquela época, oito anos

atrás, era. difícil para Muhammad manter uma conversa longa. Mas ele era

esperto, sedutor, e um brilho em seus olhos fazia você rir de algo que não

tinha dito.

E havia aquele truque de mágica - mostrava uma mão vazia, então

fechava o punho, uma mexida com a outra mão e abracadabra: um lenço

que não estava ali aparecia do nada. No pouco tempo em que fiquei com

ele naquele dia, Ali me entreteve com esse truque de prestidigitação uma

dúzia de vezes. Se na quarta ou quinta vez você não perceber que ele usa

um dedão de mentira e esconde o lenço dentro, ele mesmo conta o segredo.

A mulher de Ali, Lonnie, me explicou depois:

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Page 60: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- No final, ele sempre acaba contando para as pessoas como faz. Ali

não gosta de enganar ninguém.

Como em toda sua vida, ele dá um jeito de transformar toda essa

repetição em algo como várias reinvenções. De alguma forma, é diferente a

cada vez que ele apresenta, e você se sente um privilegiado por poder ser

sua platéia.

Alguém bateu à nossa porta. Bingham pegou as câmeras e tirou al-

gumas fotos enquanto Ali e eu saíamos do prédio e entravamos em um

carrinho de golfe. O motorista ainda nem tinha ligado o motor quando as

pessoas no estacionamento começaram a reparar que o gigante pesa-dão,

que estava perto o bastante para fazer sombra em seus sapatos de golfe, era

Muhammad Ali. Enquanto nosso carro ia embora, podíamos ouvir pregos

batendo no asfalto repetidamente enquanto as pessoas corriam atrás de nós.

Cruzamos uma área mais cheia de gente, e ficou claro que o campeão

estava entre eles. Ura sorriso de reconhecimento aparecia de face a face.

Não sei como as pessoas tinham tido tempo de reagir e contar à pessoa ao

lado. Todos simplesmente sabiam - era o inconsciente coletivo trabalhando.

E então fomos tragados. Mas não me senti ameaçado em nenhum

momento. Além de ser uma grande manifestação de amor, também não

tinha absolutamente nada a ver comigo.

Em companhia de Muhammad Ali, você não era apenas um anôni-

mo - era invisível; mas eu não ligaria para isso, pois estava presenciando

algo extraordinário.

Graças ao YouTube, posso voltar oito anos atrás e assistir ao vídeo

que Muhammad e eu gravamos naquele dia. Artisticamente feito em preto e

branco e também em cores com uma câmera portátil, o tom foi

descontraído, sociável e até mesmo (e deve ter sido a primeira vez em um

comercial de TV sobre uma doença neurodegenerativa) engraçado.

Michael

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Page 61: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Eu tenho 1,65 metro e peso 58 quilos. Ele tem 1,88

metro e pesa 115 quilos. Podemos parecer um pouco

diferentes. Mas na verdade somos bem parecidos. Nós

dois somos determinados. Nós dois somos teimosos. E nós

dois temos Parkinson. Tem um monte de gente por aí na

mesma situação e elas precisam de sua ajuda. Então ligue

para o número abaixo e entre no nosso ringue. Juntos,

podemos vencer essa luta.

0 VÍDEO CORTA PARA UMA TELA COM AS

INFORMAÇÕES DE CONTATO DA FUNDAÇÃO, QUE

TAMBÉM SÃO OUVIDAS NA VOZ DE MEREDITH

BAXTER (minha mãe na série Caras & Caretas) . E

CORTA NOVAMENTE PARA MIM E MUHAMMAD, LADO

A LADO.

Muhammad

1,65 metro? Bem que você gostaria de ter tudo isso.

Ao assistir ao vídeo na internet, Nelle entrou em minha sala para

vê-lo comigo. Ela se lembrava do dia, era óbvio, porque ajudara a criar o

conceito e produzir a campanha publicitária com nossos amigos da

McCann-Erickson.

- Uau! - ela disse, logo após Muhammad ter dito sua fala. - Ele não

fala tão claro assim há muito tempo.

- E faz muito tempo que não fico assim sem tremer diante de uma

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Page 62: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

câmera - completei. E nenhum de nós está ficando mais jovem, então a luta

continua.

FILADÉLFIA • 2 DE AGOSTO DE 2000

Alguns meses depois do lançamento da Fundação, tivemos duas

adições importantes ao nosso conselho. A primeira foi Donna Shalala,

reitora da Universidade de Miami e antiga secretária de Saúde do governo

Clinton. Apesar de não ter nenhuma ligação pessoal com Parkinson, Donna

tinha muito conhecimento em várias das questões que iríamos enfrentar

sendo uma fundação voltada para as ciências.

A segunda a se alistar também era mulher e igualmente formidável.

Lonnie Ali aceitar participar do nosso conselho causou grande excitação.

Independentemente da atenção que eu trouxe à Doença de Parkinson,

Muhammad Ali era de longe o paciente mais famoso do mundo - o Papa

João Paulo II vinha em seguida, Billy Graham era o terceiro e eu, no má-

ximo, ficava em um distante quarto lugar. Claro que ficamos contentes com

o endosso que o comprometimento de Lonnie representava. Valorizávamos

a compreensão que ela possuía da doença e sua experiência como

companheira de um paciente - alguém que tinha especial sensibilidade ao

impacto que a DP pode ter na família e a urgência que precisávamos ter em

procurar uma cura.

A primeira vez que falei com Ali foi em 1998:

- Muhammad ficou chocado quando você fez o anúncio público -

Lonnie me disse. - Ele não acreditava que você tivesse tido tamanha

coragem. Lonnie estava com ele quando ambos viram meu anúncio. -Dava

para ver pela expressão que ele estava pensando: Uau!

Ali me ligou e deixou um recado, mas fiquei tão agitado e nervoso

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Page 63: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

com a perspectiva de falar com um dos meus heróis de verdade que levei

alguns dias para reunir coragem e ligar para a fazenda dele em Michigan.

Para garantir privacidade e tranqüilidade em relação a qualquer interrupção

de algum dos meus três (naquela época) barulhentos filhos, usei o telefone

do banheiro. Foi uma conversa rápida. Balbuciei algo sobre estar honrado

em ter a oportunidade de falar com ele. A princípio, sua única resposta foi

respirar e algumas tentativas de vocalizar algo. Fechando os olhos, não era

difícil visualizar uma imagem de Ali do outro lado da linha. Então ouvi um

sussurro falho, mas firme:

- É uma pena que você tenha isso, mas com nós dois juntos nesta

luta agora vamos vencer.

Quase dois anos se passaram antes que nos encontrássemos cara a

cara, ou, como Ali diria, cara a peito. Em agosto de 2000, viajei para a Fi-

ladélfia para a Convenção Nacional Republicana, pois estava preocupado

com a posição do candidato George W Bush em relação ao financiamento

federal a pesquisas científicas, em especial ao uso de células-tronco

embrionárias. Já com planos em andamento para participar da Convenção

Democrata em Los Angeles, vimos a Filadélfia como uma chance de tentar

convencer não só os mais conservadores, que poderiam atrapalhar nosso

progresso, mas também o substancial número de republicanos, como Arlen

Specter, Orrin Hatch e John McCain, que apoiavam nossa causa. Andrew

Card, chefe da campanha de Bush que logo seria o chefe de pessoal dele,

concordou com um encontro, da mesma forma que alguns outros

legisladores conservadores. Levando-se tudo em conta, isso foi apenas

como colocar o dedo na correnteza política. Nos anos seguintes, eu entraria

nela até o pescoço.

A garantia de conseguir atenção em uma convenção política é igual

a dar uma festa - quanto maior, mais espalhafatosa e cheia de pessoas

importantes, melhor. Kenneth Cole e a Revista George copatrocinaram um

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Page 64: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

evento em homenagem à Fundação Michael J. Fox, que, para todos os

efeitos, foi a festa das festas daquela semana. Apesar de celebridades de

direita serem raras, elas estavam bem representadas aquela noite, em

especial por Arnold Schwarzenegger, antigo Exterminador do Futuro e

futuro governador da Califórnia.

Tendo um estilo meio progressivo em nossas políticas, nosso grupo,

incluindo Tracy, sentia-se um pouco como um pato no deserto. Mas es-

távamos prontos para aproveitar a noite - qualquer que fosse a política na

festa, festejar era apolítico. O que eu mais esperava naquela noite era a

aparição de um convidado especial.

E ele quase não conseguiu ir. Tempestades de verão atravessavam o

Meio-Oeste e atingiam partes da costa Leste, fazendo com que Muhammad

e seu grupo tivessem de alterar seus vôos em cima da hora. Ficamos

esperando no hotel por informações de que ele estaria vindo, enquanto do

outro lado de Rittenhouse Square a festa já havia começado. Querendo ter

um ou dois minutos de sossego antes de irmos para a festa, conformamo-

nos era chegar atrasados. Quando os Ali chegaram, passaram em nosso

quarto para dar um "oi". Minha lembrança mais forte não é do nosso aperto

de mão ou de um abraço, mas da descida de elevador até o saguão, quando

aquele gigante simpático fez surgir um lenço vermelho de cetim de uma

mão fechada e cheia de ar.

Como já disse, precisei de quatro ou cinco performances daquela

em nosso próximo encontro para entender "como" ele fazia o truque, mas

imediatamente senti o "porquê". Aqueles punhos enormes não tinham mais

o poder de derrubar um George Foreman no auge, mas ainda eram capazes

de um truque manual simples. O rosto que outrora transmitia uma gama de

emoções, de olhos arregalados, boca meio aberta admirando a própria

"beleza", a máscara de um bravo guerreiro, agora estava congelada e sem

nenhum sentimento, a não ser por uma ocasional e sutil piscadela que

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sinalizava o final do truque de mágica. E aquela voz que um dia cantou e

gritou, oferecendo tanto poesia quanto protesto, agora estava silenciosa,

mas conseguia ainda sussurrar:

-Mais uma vez. Observe com atenção.

- Eu ainda sou mágico - era o que parecia que Ali estava querendo

dizer. - Não preste atenção às cortinas em frente do homem. Ainda estou

aqui. E ainda sou o Maior do mundo.

Quando me encontro com pessoas que têm Parkinson, raramente

tenho conhecimento de quem eram ou do que faziam antes do diagnóstico.

Relaciono-me com elas sobre termos as mesmas dificuldades no aqui e

agora e em nosso otimismo em relação a um futuro melhor. Não sei quanto

perderam ou como foram as mudanças que marcaram o processo de

desenvolvimento do Parkinson nelas - mas elas, é claro, sabem das minhas

mudanças. As pessoas sabiam bem quem eu era antes de ter DP e de

saberem que eu tinha. E o que achavam disso seria tão subjetivo quanto o

que eu achava. Logo que anunciei que tinha DP, lembro-me de ter ficado

incomodado com o fato de as pessoas pensarem em alugar meus filmes

antigos e assistirem às reprises de Spin City para observar os efeitos

cumulativos da doença em mim, e tenho certeza de que muita gente fez

isso.

Quando vejo vídeos antigos de meu novo amigo lutando, dançando

e fazendo palhaçadas, sinto-me triste e irritado por ele. E imaginava se ele

sentia o mesmo. Será que era difícil para ele ver uma versão jovem,

saudável e forte de Ali? Quando falei sobre isso com Lonnie, ela riu.

- As melhores tardes de Muhammad são quando ele assiste a si

mesmo, pode acreditar - ela afirmou. - Ele impressiona até a si mesmo.

Quando assiste a uma velha luta ou entrevista, ele diz: "Eu era louco,

não?". E agradece a Deus por sua vida ter sido filmada, pois assim pode

revê-la. Ele adora. E fica feliz de isso existir.

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Page 66: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Às vezes, quando estou mudando os canais, sou emboscado por

uma imagem jovem e saudável de mim. Em geral, apenas sigo mudando de

canal, não pensando nisso mais do que pensaria sobre um comercial Mas,

algumas vezes, tenho de confessar, paro e ponho o controle remoto na

mesinha por um minuto ou dois - e às vezes mais que isso.

PARTE DOIS

POLITICA

“Não desista, não perca a esperança,

Não se venda”

-CHRISTOPHER REEVE

“ Até mesmo um pequeno cão pode fazer xixi em um grande prédio

-JIM HIGHTOWER

Faça o que eu faço, mas não faça o que eu digo

COLUMBUS, OHIO • 30 DE OUTUBRO DE

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Page 67: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

2006

Se é segunda-feira, devo estar em Iowa. Não, espere, Iowa é só hoje

à tarde; se é segunda de manhã, devo estar em Ohio. Uma sensação

estranha me invade quando penso que estou retornando a um lugar em que

nunca estive - Columbus, a cidade natal do ficcional Alex P. Keaton.

Nosso voo foi arranjado pelo ávido e bem organizado grupo do

congressista Sherrod Brown, que estava em campanha para que o

republicano Mike DeWine conseguisse uma cadeira no Senado. Um sujeito

grande, agradável, com cara de ex-policial e membro do comitê de boas-

vindas apresentou-se como nosso motorista e mostrou a minivan alugada

como prova. Durante a última semana, apertei a mão de muitos voluntários

simpáticos em campanhas para o Senado, a Câmara e o governo por todo

país e troquei histórias com eles; por isso, já cheguei predisposto a gostar

da equipe de Sherrod por aproximação. Com menos pessoal que o

necessário e mais trabalho do que pode dar conta, uma equipe leal lutará

sem descanso pelo candidato, por acreditar que ele representa um futuro

promissor - e que tenha chance de vencer. Os que acreditam de verdade me

parecem trabalhar mais horas e se esforçar muito mais em uma campanha

do que em seus trabalhos ou carreiras. Estou convencido de que voluntários

de equipes de campanha são um paradigma para a atual teoria encampada e

abraçada pelas caríssimas consultorias corporativas, na qual o otimismo é

uma forca multiplicadora . Logo nosso motorista e ex-policial nos deixa no

campus da Universidade Estadual de Ohio às 10h47, bem a tempo do nosso

evento que vai começar as llhl5. Provavelmente vou precisar de cada um

dos 1.680 segundos que temos livres.

O clima de Ohio é o mesmo de Nova York neste mês de outubro,

um calor fora de época; um complemento perfeito para uma nova série de

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Page 68: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

tremores que estou tentando subjugar antes da maratona em Brown. Esse

suadouro e os tremores podem confirmar as impressões que as pessoas têm

de mim como um político novato e ingênuo, mas não causa nenhuma

reação no passageiro ao meu lado no carro. John Rogers não está ignorando

meus sintomas de Parkinson; ele apenas já está acostumado a eles. A

primeira vez que encontrei esse "resolvedor" de casos políticos de DC ele

já tinha uma longa e memorável carreira defendendo a luta contra o

Parkinson, ocupação dedicada ao pai e à avó que perderam a luta contra a

doença. Com 40 e poucos anos, John é cauteloso, mas entusiasmado, com

um senso perfeito do momento certo de cada coisa e um tipo de inteligência

que o mantém acordado à noite. Cabelo ruivo bem aparado, cavanhaque

recente, óculos, um celular RAZR colado ao ouvido e a mão livre

pressionando a outra formam sua acolhedora face "não conheço você da

escola?". Fechando seu Motorola, ele se vira e abre um sorriso

tranqüilizador. John Rogers é o guia de nossa jornada pelo labirinto.

- Certo, cara, arranjei um esquema legal aqui em Columbus. David

Gregory da NBC vai fazer uma matéria para o The Today Show. Ele e a

equipe vão nos encontrar no estacionamento. Sei que combinamos uma

entrevista formal depois do evento, mas ele também quer bater um papo

enquanto vocês caminham até o auditório. Assim que você chegar aos

bastidores, ele para e você terá tempo de se preparar.

Conversar enquanto caminhamos? Não sei se consigo fazer nem

uma nem outra coisa decentemente, e as duas ao mesmo tempo podem

provocar um colapso sináptico. Gotas de suor caem sobre o discurso que

finjo decorar, mas que na verdade está apenas chacoalhando preso nas

minhas mãos. Os comprimidos ainda não fizeram efeito. Faço um apelo ao

ex-policial:

- Podemos dar mais umas duas voltas no quarteirão, no campus? Ou

no Estado, talvez?

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Page 69: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Depois de mais cinco minutos rodando pela Universidade, fica evi-

dente que uma vida melhor não será alcançada pela química nos próximos

minutos, e é melhor eu levar logo meu corpo trêmulo ao compromisso.

Ao mandar David Gregory, o correspondente principal da NBC

para a Casa Branca, a Ohio para fazer esta matéria, o The Today Show

acrescentava seu peso editorial e aumentava nossa afirmação na mídia de

que nossa campanha para eleger candidatos a favor das células-tronco era

uma grande notícia política, e não apenas algo da área de entretenimento. A

grande imprensa é responsável e vem moderando imparcialmente essa

inesperada discussão nacional. É importante, já tinha passado da hora e

agora estava presente não só em noticiários e debates políticos, mas

também nas casas, nos bares, nos escritórios, nas fábricas e até mesmo nas

arquibancadas dos jogos de futebol das crianças. As celebridades podem ter

sido as responsáveis por atrair a atenção das câmeras e dos repórteres,

porém, o que continuou nos carregando para além da mera curiosidade

passageira, para usar o termo político, foi nossa habilidade de manter a

mensagem atual. Sabemos que o contexto é complexo e que carrega

considerações cuidadosas, mas, do nosso ponto de vista, o direito à

esperança é simples.

***

David Gregory é um homem alto - não gigante, apenas alto. Eu sou

um cara baixo, e nem preciso falar em baixinho para mostrar o contraste,

pois vocês me conhecem. No entanto, mesmo sem o tal contraste, David

Gregory é desnecessariamente alto. E isto acaba com o nosso "conversar

enquanto caminhamos". Para conseguir nos enquadrar ao mesmo tempo

enquanto andamos, o câmera tem de ficar uns dez passos à nossa frente,

arrastando um perigoso monte de cabos, apenas esperando alguém tropeçar

ou enroscar o tornozelo neles. E, quanto à conversa, não sei como o

operador de áudio pode gravar nosso som com a mesma qualidade sem

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Page 70: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

acertar o microfone na cabeça de Gregory. Há um velho ditado em

Hollywood que diz: "Um ator baixinho sobe em uma caixa, mas um astro

baixinho faz todos os outros atuarem em um buraco". Contudo, não havia

tempo para cavar buracos, porque havia outros problemas além da

diferença de altura. O fato é que meu passo parkinsoniano e toda minha

marcha deselegante são piores ainda para o horário nobre. A levodopa que

tomei ainda precisava atravessar a barreira sangüínea do meu cérebro,

então eu caminhava arrastando os pés, rígido, braços retos para baixo e

meio balançando. É como se uma corda amarrada em minha cabeça me

puxasse a uma velocidade fora do meu controle. Às vezes, parecia que eu

estava tentando evitar um tropeço, mas sem o mínimo de bom-senso e sem

usar os braços para melhorar o equilíbrio. Os neurologistas chamam essa

desordem de movimento causada pelo Parkinson de bradicinesia. Os

sintomas também fazem com que seja difícil levantar os olhos, que não

piscam, ou dar uma olhada periférica no meu interlocutor. E, com o rosto

semicongelado sob a máscara de Parkinson, responder de forma audível,

articulada ou com qualquer modulação é um desafio. Nada disso tem a ver

com David Gregory, mas ele não ia morrer se tivesse relaxado um pouco.

Odeio misturar jornalismo com entrevistas. Quanto a misturar política com

Parkinson, se vou ficar resmungando e reclamando, tenho de fazer do meu

jeito.

No Today da manhã seguinte, a voz de Gregory falava em off.

- E segunda de manhã, Columbus, Ohio, segunda semana do fogo

cruzado político de Michel J. Fox.

Não concordo com o "fogo cruzado" - do meu ponto de vista, todos

os tiros parecem ir em apenas uma direção, e, além disso, "fogo cruzado"

implicaria eu ser pego vagando meio perdido e sem convite no meio da luta

de outras pessoas. No debate sobre as células-tronco, algumas pessoas do

outro lado, em especial aquelas que se posicionam mais politicamente que

69

Page 71: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

por causa de uma consistente preocupação ética bem demonstrada,

adorariam que a gente sumisse. Éramos intrusos esquerdistas roubando

tempo de TV espaço nos jornais e a fugaz atenção do público durante todos

os momentos decisivos da campanha.

Nos bastidores da faculdade de Direito, sou apresentado ao congres-

sista Sherrod Brown e à sua mulher, Connie Schultz, a colunista ganhadora

do prêmio Pulitzer. Mal tínhamos trocado cumprimentos quando Gregory

apareceu fazendo perguntas - um lembrete de que ele não fora indicado ao

Emmy à toa. Brown, sem se abalar com a intromissão em nosso momento

de privacidade, repetiu o que tinha acabado de me falar: que trabalharia

duro no Senado para ajudar a corrigir a atual política governamental, não

apenas em relação às células-tronco embrionárias, mas em todos os campos

de estudos científicos. Já eu estava feliz de conseguir ficar de pé e

conversar. Mais algumas perguntas e era a hora de começar.

Educadamente, alguns assessores arrancam o candidato de lá; a sala se

esvazia, e sou levado ao andar do auditório.

O programa está em andamento. Brown e a esposa sentam-se em

uma fileira com dignitários, médicos, pesquisadores, pacientes e advo-

gados. Também estão presentes várias crianças em idade escolar e seus

pais. Um desses garotos, Tanner Barton, de 11 anos, é convidado a falar em

um pódio que ele mal alcança. Com encantadora presença de espírito, ele

começa a descrever a dolorosa rotina de um diabético: as agulhas, o

isolamento dos outros garotos, as horas na diálise e o estigma de ser

diferente.

Pesquisadores do diabetes estão trabalhando com células-tronco

para desenvolver uma fonte alternativa de células beta (que produzem

insulina). O objetivo é transformar células-tronco embrionárias em células

pancreáticas reais e funcionais e um dia poder transplantai essas células nos

pacientes. Muito tempo e energia preciosos têm sido desperdiçados com

70

Page 72: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

manobras e desviando-se das restrições de procedimentos impostas pelo

governo a essas pesquisas promissoras.

Tanner não entra no mérito científico; apenas conta como é sua vida

com a doença e como espera ficar melhor um dia. Imagino que Tanner não

tenha muitas oportunidades de falar sobre sua condição, muito menos para

um auditório lotado, diante de microfones e câmeras de TV E ele está

aproveitando ao máximo a oportunidade. Quando põe tudo para fora, fica

claro que é um moleque durão, mas também é fácil ver sua hesitação por

baixo das bravatas pueris.

Agora, não me engano quanto ao contexto no qual isso tudo está

acontecendo. Sherrod Brown é um candidato democrata concorrendo a uma

cadeira no Senado ocupada pelos republicanos no campo de batalha do

Estado de Ohio durante os últimos dias antes da eleição. Não estamos em

um terreno neutro de maneira alguma. Não há um debate de verdade hoje

aqui em Columbus. Mas acho que é um ponto positivo poder ver a men-

sagem de Tanner, ou mesmo a minha, em meio a uma discussão estrita-

mente partidária ou política. Esta é uma questão delicada, as preocupações

cora a ética levantadas pelos opositores das pesquisas com células-tronco

são pertinentes e, falando por mim, profundamente respeitadas. Tenho

conhecimento de que meus pontos de vista são subjetivos. Tenho uma re-

lação com esta discussão que leva muitos a dizerem, com justiça, que isto

me desqualifica a considerar os argumentos dos dois lados da discussão de

maneira igual. Você mesmo pode ter pensado bastante no assunto e

chegado à conclusão de que a pesquisa com células-troco embrionárias é

errada e que, pelo menos, não é algo que você gostaria que seu governo

apoiasse. Tão frustrados quanto nós, pacientes, estamos com os impedi-

mentos das pesquisas criados por George W Bush, estão vocês, que acham

que nós simplesmente não entendemos o que querem, que não vemos o

quadro geral da discussão. Pensando assim, podemos nos simpatizar uns

71

Page 73: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

com os outros, mesmo sem concordarmos uns com os outros. Foi por isso

que trouxe para o cenário político minhas preocupações e esperanças de

que este trabalho produza tratamentos e curas, não para envergonhar ou

ridicularizar aqueles que discordam de mim, nem para usar a vantagem de

ser uma celebridade para calar a voz das outras pessoas. A oposição é

sincera. O que queremos é conversar. A única maneira de o governo

expressar os desejos e as necessidades dos norte-americanos é se os

cidadãos falarem e se envolverem. Por mais que eu queira falar dos meus

pontos de vista, dos meus desejos e das minhas necessidades, sei que é

crucial que opiniões diferentes tenham a mesma oportunidade de serem

ouvidas.

As pesquisas indicavam, entretanto, que aqueles que se opunham

eram a minoria. E, da perspectiva política, o que vale são os números, c,

quando digo números, quero dizer votos, é claro. Por que, então, me

perguntam as pessoas, se a maioria dos norte-americanos é a favor de

pesquisas com células-tronco financiadas pelo governo federal, não temos

os números necessários para conseguirmos isto? Boa pergunta. O que

parece ser matemática básica é, na verdade, um exercício complicado de

matemática eleitoral. Cada voto representa grande variedade de crenças,

preocupações éticas, reclamações, medos, desejos e necessidades, segundo

a ordem de importância pessoal de cada eleitor. O cálculo que o candidato

e seus estrategistas têm de fazer é descobrir que questões cada cidadão,

sendo parte de uma matriz maior, está disposto a abandonar ou deixar de

lado até a próxima eleição e, em contrapartida, que combinação mágica o

inspiraria a comparecer às urnas e votar no candidato desejado. Vamos

supor que o cidadão A é um liberal moderado, a favor das pesquisas com

células-tronco, que, em uma lista de dez coisas importantes, coloca este

assunto em oitavo lugar. Já o cidadão B é um conservador religioso,

contrário às pesquisas com células-tronco, e PROvavelmente põe este

72

Page 74: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

assunto em terceiro lugar em sua lista de prioridades. Em uma competição

apertada, uma pesquisa imparcial e cautelosa, sem nenhuma ligação com

um dos lados, faz as contas e conclui por um medo da perspectiva de

clonagem. E isto não ajuda nenhum dos lados.

Mas essa é a manipulação sutil que temos em jogo. E opor-se a isso

quer dizer que temos de pegar nossa mensagem e nossos números e leva-

los à esfera política. Precisamos ter uma margem de votos à prova de veto

nas duas Casas para conseguir aprovar o Ato de Aumento de Pesquisas

com Células-Tronco. E não há nada de secreto em relação ao nosso

objetivo: alcançar eleitores que associem de forma positiva a ciência e as

pesquisas com possíveis curas de doenças e contrastar essa disposição com

o histórico dos candidatos locais. Também examinamos como a postura dos

candidatos em relação às células-tronco se encaixa em suas posições e

preocupações éticas. É especialmente relevante saber se o candidato se

opõe à destruição de embriões, mas é a favor da fertilização in vitro. Esse

tipo de fertilização cria um excedente de embriões que são descartados em

números muito maiores que aqueles que são e serão usados em pesquisas.

Muitos de nossos amigos são pais de belas crianças que, sem a fertilização

in vitro, não existiriam - e não tenho nenhum problema com isso. Mas

favorecer um e esquecer o outro é fundamentalmente inconsistente ou

obviamente injusto.

Uma eleição equilibrada entre um candidato a favor e outro contra

as pesquisas com células-tronco é nossa melhor oportunidade para lembrar

as pessoas de que não estamos falando de coisas abstratas. Esta questão as

afeta da mesma forma que outros cem milhões de norte-americanos, para

os quais é uma questão de vida ou morte. Não estamos dizendo, de maneira

alguma, que os que estão do outro lado da questão tenham menos

compaixão, empatia ou preocupação por aqueles que estão doentes ou

sofrendo. Sei que muitos dos que se opõem às pesquisas com células-

73

Page 75: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

tronco embrionárias acham sinceramente que têm a verdadeira posição

compassiva. Já os políticos, no entanto, ao explorarem a pesquisa médica

como uma questão polêmica, põem o futuro em risco. Por isso vim a

Columbus esta manhã, vou a Iowa à tarde, amanhã estarei em Maryland e

durante a semana também estarei na Virgínia, em Wisconsin e no Arizona.

Uma doença incurável é um problema apartidário que precisará de uma

solução bipartidária. O desejo de aliviar o sofrimento e salvar vidas não

toca nossa fidelidade partidária ou ideológica, mas sim nosso lado

humanitário.

Os aplausos ao final do discurso do jovem Tanner seguem até ele

chegar a seu assento, quando o pai o recebe com um abraço apertado. Um

pai não pode blindar o filho contra a dor ou uma doença; pode apenas amá-

lo, como claramente acontece com o pai de Tanner, e lutar o máximo

possível em favor dele. Pensar que esse garoto de 11 anos, seu pai ou

qualquer um dos outros pacientes aqui presentes e suas famílias estão sendo

manipulados ou manipulando alguém é um absurdo. Nenhuma palavra dita

por Tanner aqui hoje foi passada a ele ou programada. Mas as palavras a

seguir, para não haver confusão, são minhas: Tanner quer que a tirania do

diabetes juvenil acabe durante a vida dele. É isso aí, garoto. Sic semper

tyrannus!

Em um pequeno corredor, na verdade um pequeno lance de escadas

perto do palco, espero minha vez. Infelizmente minha falta de movimento

me deixa meio saltitante. Pode ser o estresse da viagem e do tempo com a

imprensa, mas meus "desligados" - ou seja, os períodos de tempo nos quais

os remédios não fazem efeito - estão durando tanto que preciso dar um jeito

me entupindo de medicamentos. Isto leva a uma discinesia total. É uma

falta de controle de movimentos, mas com a escolha de balançar para os

lados, para cima e para baixo e na diagonal, como na discinesia, ou tremer,

arrastar-me e murmurar as palavras em voz baixa e desarticulada por causa

74

Page 76: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

da bradicinesia. Balançar é, por incrível que pareça, a opção mais

confortável, mas ganha das outras opções por um fio de cabelo.

Agrupados comigo nas escadas estão vários membros e voluntários

da equipe de campanha Brown, jornalistas e minha humilde equipe de

conselheiros e assessores -John Rogers, é claro, mais Tricia Brooks e Alan

McCleod, da equipe dele, e minha assistente, Jackie Hamada. Instruções de

última hora e pequenos pedaços de informações são sussurrados em meus

ouvidos e passam direto, perdendo-se no espaço. Meus instintos

performáticos assumem o controle e minha atenção volta-se paia o público.

Olhando as divisórias ao redor, acho um espaço com boa vista.

Uma energia palpável percorre todo o auditório, evidente nos cartazes que

ondulavam: "RETIREM AS CÉLULAS-TROCO", "QUEREMOS NOSSA

CURA", FAÇAM A ESCOLHA PRÓ-VIDA", e para dar certo humor,

imagino, "MJF PARA PRESIDENTE". Eu continuava paralisado e um

pouco confuso com o que via. E então fazia sentido - alguma coisa

diferenciava este grupo dos outros em outras campanhas às quais eu tinha

ido. Havia muitas pessoas de todas as idades e etnias em cadeiras de rodas,

os mais novos provavelmente vítimas de lesão medular. Alguns vieram

com andadores ou bengalas. Meus colegas com Parkinson também

compareceram em bom número. Não tenho problema para reconhecê-los,

não só pelos tremores, mas também pela mesma postura levemente

inclinada para a frente e com os ombros meio caídos, à qual eu também

havia me rendido neste momento. Pessoas idosas sentavam-se próximas de

familiares e dos acompanhantes que tomavam conta delas e tinham o olhar

perdido adiante, com os olhos vazios, peculiar a quem tem Alzheimer.

Ainda estou tentando montar um quadro geral, algo que me pareça familiar,

e levo ainda alguns segundos para finalmente descobrir. Meu Deus, é um

encontro de despertar religioso. Depois que faço a associação, ela fica na

cabeça. Não consigo fazê-la sumir. Em minha vida, na parte recente dela,

75

Page 77: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

fui a muitos encontros desses, e as únicas coisas que faltam aqui são carri-

nhos cheios de muletas descartadas e um pelotão de recepcionistas com

transmissores sem fio, separando os aflitos em filas para serem atendidos

no palco. Não é o que ocorre aqui, é claro. Mas de que maneira aquele

grupo é diferente deste? Reunindo-se no auditório de uma universidade de

Ohio ou em uma super igreja em Houston, o desejo das pessoas não é de

melhora, de se livrar da doença, de se curar? A resposta reside numa

mistura de fé e esperança, entre procurar a mudança fazendo um pedido a

Deus ou procurá-la exercendo seu direito político.

Seguro dois papéis bem diferentes nas mãos, que, neste momento,

não estão tremendo. Um deles é meu discurso, que agora mais parece um

teste de Rorschach com os borrões do meu suor, ficando totalmente inútil, a

menos que o ponto principal de meus comentários seja: "Dama pelada com

uma serra elétrica". Já pelo lado bom, tenho um pedaço de papel que me foi

entregue por uma garotinha chamada Jessi. É uma pintura de aquarela, com

vários retratos dos heróis dela: a professora, o médico, os pais e algo bem

parecido comigo. Ela diz que o desenho acompanha um abraço, e, enquanto

me abaixo para receber o outro presente, Jackie pega o desenho para ele

ficar seguro. Em breve, ele será enquadrado e colocado no meu escritório.

Quando finalmente sou chamado ao palco, a platéia explode - aplausos,

gritos, assovios e acenos. Após respirar, fecho os olhos por um segundo.

Como cheguei até aqui''.

O movimento de Christopher

Em outra vida, anterior aos nossos respectivos problemas de saúde,

Christopher e eu éramos astros de cinema. E, como todas as pessoas

inteligentes de Hollywood, morávamos em Nova York. Encontravamo-nos

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Page 78: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

em eventos, estréias e em uma festa ou outra. Na primavera de 1993, Tracy

e eu dividimos uma mesa com Chris e Dana na abertura do Planet

Hollywood em Londres. Recém-casados, eles eram um casal esperto, en-

graçado, gracioso e absurdamente bonito. Tracy comentou comigo depois

quanto eles eram amáveis e incrivelmente enamorados um pelo outro, e

concordei, anotando a pequena dica de demonstrar mais meus sentimentos

à minha noiva. Dois anos depois, quando Chris ficou tetraplégico ao cair de

seu cavalo em um evento de equitaçâo, ficamos angustiados e incrédulos.

Como isso podia ter acontecido com Chris, um cavaleiro experiente, que

fazia algo que amava e que já fizera milhares de vezes? Um ser humano

como ele - homem bom e decente, pai, marido – sofrer uma calamidade

aleatória que mudaria por completo sua vida parecia validar o temor que

sentíamos quando uma esposa tem de dirigir para casa bem tarde, em uma

noite chuvosa, ou uma criança que demora a se levantar após um tombo no

parquinho.

Quatro semanas depois de Chris ter sofrido o acidente, parecia que

a imprensa e o público não se cansariam nunca das alusões ao papel dele

como Superman e da "amarga ironia" de tudo que havia acontecido.

Contudo, enquanto tantos se preocupavam com o assunto "super-herói

sofrendo uma tragédia na vida real", alguns anteciparam o verdadeiro herói

em carne e osso que Christopher Reeve se tornaria. Ele definia herói como

"uma pessoa comum que encontra forças para resistir e perseverar". Apesar

da humildade de Chris, alguns idealizaram seu heroísmo como algo

predeterminado, e não podiam ser dissuadidos pelos argumentos "mais

simples". Pessoas bem-intencionadas, esforçando-se para achar sentido nas

coisas sem sentido, asseguraram a Chris que o acidente havia ocorrido por

uma razão maior, o que apenas acrescia mais um fardo à sua condição

física, emocional e financeira - o peso da religião.

Michael Manganiello, incansável advogado das células-tronco, que

77

Page 79: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

trabalhara com isso por muitos anos e era um conselheiro bem próximo de

Chris e Dana, lembra-se do casal refutando a idéia de a tetraplegia dele

servir a um bem maior.

- Não, é só uma droga. Isso não ocorre com alguém por uma razão

maior. Às vezes coisas ruins acontecem, mas é como você lida com elas o

que realmente importa.

Apesar de não ter problema nenhum em falar o que pensava, mes-

mo com a ajuda imperfeita do respirador, Chris sabia que sua declaração

mais importante seria sem palavras.

- Chris queria sair de sua cadeira e Dana queria que Chris saísse da

cadeira dele - conta Mike. A dedicação àquela eventualidade era a seguir a

vida deles, atrás apenas da dedicação de um com o outro e à família. -

Chris se tornou um símbolo para as pessoas com lesões na coluna e outras

deficiências, e Dana se tornou um símbolo para acompanhantes no mundo

todo. A vida ainda pode ser boa. Tudo depende de como você enfrenta os

desafios.

Chris e Dana nos deram uma demonstração de coragem, alegria,

amor e esperança eterna.

Às vezes as pessoas ficam surpresas ao saber que não nos conhecía-

mos tão bem assim. Houve alguns telefonemas entre minha revelação e a

morte de Chris, meia dúzia ou mais, a maioria relacionada a trabalho.

Nunca chegamos a ter ura bate-papo fora disso. Quando a pessoa do outro

lado da linha não consegue respirar sem a ajuda de algo mecânico, não

espero por conversa fiada. Apesar disso, falamos de hóquei - meu amado

esporte de infância. O filho dele, Will, jogava, enquanto o meu, Sam, nunca

gostou. Eu vivia a emoção de ser um pai orgulhoso do filho que joga

hóquei através de Chris, que não perdia um jogo. A meta comum de nossas

fundações era o pretexto usual para nossas conversas. Como muito mais a

aprender com Chris do que ele comigo, eu tinha a tendência de ficar na

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Page 80: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

minha enquanto ele falava em linhas gerais sobre como influenciar

opiniões políticas ou calcular a taxa de confiabilidade desse senador ou

daquela deputada. Lembro-me de como me esforçava para não interrompê-

lo, apesar de acabar fazendo isso de qualquer forma. Chris era tão

articulado e cuidadoso ao escolher as palavras, juntando meticulosamente

séries de pensamentos com um ritmo interessante e no momento certo, que

imagino que fosse algo só dele. Então ele fazia uma pausa, e eu aproveitava

e respondia, e ouvia o ofegante sibilar do respirador dele reciclando, e a

voz surda e hesitante de Chris continuando de onde tinha parado. Isso

funcionava uma ou duas vezes em cada telefonema. Eu ficava

envergonhado, mas, se o incomodava, Chris era educado demais para falar

algo (ou talvez tenha falado e eu o interrompi). Acabei aprendendo com o

tempo a internalizar os momentos nos quais o oxigênio era forçado para

dentro e para fora da laringe de Chris. Era o que o mantinha vivo, mas ele

não estava respirando - estava recebendo ar de maneira ativa. Tendo

responsabilidade sobre a vida e a morte e com todo o investimento

emocional de um relógio digital, o respirador dava a Chris o sopro da vida.

Mas a parte de Chris na história podia ser tudo, menos mecânica. Ele dava

vida ao sopro - o oxigênio, um simples gás que ele transformava em

palavras, idéias e esperança. O último e o próximo não eram importantes.

Este era. Para cada novo sopro, Chris tinha a paciência e o espírito de olhar

para as coisas do dia a dia que ele não poderia mais fazer e ver a si mesmo

fazendo as coisas que ainda não tinham sido feitas.

Um paradoxo acontecia em todos os telefonemas - eu sempre estava

em meu escritório, um homem com distúrbios de movimento tentando tirar

o controle das minhas extremidades do abraço da Doença de Parkinson,

enquanto Chris, na casa dele, estava sentado em uma imobilidade forçada.

A realidade é que o silêncio de Chris me assustava muito. No Parkinson,

não importa quão diabólica seja a dança, inexoravelmente você será levado

79

Page 81: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ao silêncio. Sempre que tive o privilégio de passar um tempo no mesmo

lugar que Chris, pensei em falar com ele sobre o silêncio, sobre como isso

deve ser solitário, mas nunca encontrei o momento certo. Marcamos uma

aparição conjunta no Congresso para o inverno de 2000, mantendo nossa

promessa de termos mais tempo juntos que no passado, mas uma doença o

forçou a cancelar a viagem. Na ausência dele, solicitaram-me que lesse o

discurso enviado por Chris pedindo menos restrições às pesquisas

científicas.

Um jeito de comparar o que aconteceu com Chris e o que estava

acontecendo em minha vida é a analogia de um impacto repentino de uma

locomotiva com alguém que está amarrado nos trilhos, sentindo a vibração

do trem que se aproxima, sem conseguir medir a que distância ele se

encontra. Pelo fato de a lesão de Chris ter acontecido de uma vez, instanta-

neamente, ele só pode reagir às coisas que não pode desfazer, enquanto eu

lenho tempo de ver com antecedência as coisas que não poderei evitar.

Contudo, deixando aparências e caprichos dos momentos certos de

lado, Chris se perguntava não "O que aconteceu?", mas "O que fazer

agora?".

- Antes de uma tragédia, não nos imaginamos carregando os pesa-

dos fardos que podem aparecer num momento de dificuldade. Então,

quando esse momento chega, percebemos de repente que temos recursos

em nós que nem imaginávamos que existissem - ele me disse.

Não percebi de repente, mas com uma confiança crescente comecei

a desenterrar esses recursos. Percebi que o importante era evitar o pânico, e

não poderia achar um exemplo melhor que a graça sublime sob uma

impiedosa pressão de Christopher Reeve.

A eleição presidencial de 2004 seria a última que Chris Reeve veria

na vida, e, infelizmente, ele nem conseguiu vê-la até o final (não que fosse

ficar feliz com o resultado). No dia 10 de outubro de 2004, 34 dias antes da

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Page 82: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

eleição, Chris sucumbiu a um ataque cardíaco. Alguns dias depois, sentei-

me ao lado de Teresa Heinz Kerry, no Arizona, enquanto assistíamos ao

debate entre seu marido e George Bush. Quando a imprensa me pediu,

depois do debate, para comentar a respeito da morte de Chris e sobre o

efeito disso na defesa das células-tronco, acabei sendo tomado pela emoção

e, após murmurar uma resposta mecânica, pedi licença e saí. Chris passou a

melhor - e a pior - fase de sua vida sendo um exemplo de como defender

algo em uma democracia. Ouvi que ele recebeu pressões para não se

envolver na eleição de 2004. Quando perguntei a Mike Manganiello sobre

isso, ele me disse:

- Chris ficou preocupado que pacientes e pesquisadores sofressem

se ele se envolvesse na eleição. A Fundação Christopher Reeve recebia

bastante ajuda federal, além de haver uma legislação com o nome de Chris.

Se ele tomasse partido, tudo isso estaria em risco. No fim, ele sentiu que

não poderia. Quando Chris morreu, em outubro, Dana me disse: "Preciso

fazer campanha para Kerry". Então, a levamos para Ohio e Dana fez um

discurso que ficou indelével mente gravado em mim. Foi um daqueles

momentos. Chris sempre dizia: "Sou apenas um cara; sou a voz dessas

pessoas, mas elas estão por aí e carregam a mensagem".

Apesar de ninguém ainda saber naquela época, essa também foi a

última campanha de Dana. Mesmo sem ser fumante, ela foi diagnosticada

com câncer de pulmão no verão de 2005. Ao lutar contra aquelas restrições

que Chris vinha enfrentando, ela deu um presente sincero ao marido e a

todos aqueles que poderiam encontrar nas pesquisas com células-tronco o

caminho para uma vida mais longa e mais saudável. A morte de Chris foi

dura, e a de Dana também. Tão súbitas e tão injustas. Mas eles nos

inspiraram a seguir em frente.

Em quem você confia?81

Page 83: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Com algumas poucas exceções, todo mundo gosta de ser amado. E

isso é mais real ainda com atores. Mesmo aqueles que achamos que não são

do tipo que se gosta, que nas telas e fora delas parecem ser pessoas som-

brias e inacessíveis, no mínimo eles têm a qualidade de seu trabalho para

recomendá-los - "Ele é um idiota, mas adoro vê-lo no filme tal".

Quando Sally Field balbuciou "Você gosta de mim... agora, você

gosta de mim", ao receber o Oscar de melhor atriz em 1984 por Um lugar

no coração, sua sincera expressão de surpresa pela aprovação da Academia

inspirou reações da imprensa que foram de uma brincadeira saudável a

acusações de típico narcisismo hollywoodiano. A maior parte do público

concordou com Sally - exceto talvez pela parte do "agora"; eles gostavam

dela antes, continuaram gostando e ainda gostavam. Talvez tenham ficado

um pouco confusos com o fato de uma atriz tão popular e no ápice da

carreira ainda ter dúvidas. Mas os atores na platéia - e eu me incluo aí -

entenderam sua manifestação de alívio em relação a ter feito tantos

sacrifícios, esforços e perseverado até ser recompensada com um tesouro

muito maior que uma estatueta de ouro ou um monte de propostas de

trabalho que receberia - o prêmio era o tapinha nas costas.

O público aprendeu a confiar que Sally Field sempre faria perfor-

mances atraentes e cheias de nuances quando a câmera a filmasse, e que

não seria uma grande idiota quando não estivesse filmando. Isso está

diretamente ligado com a mesma confiança que as pessoas têm na gra-

ciosamente madura Sally Field, quando ela faz propaganda de um me-

dicamento para osteoporose. Para a indústria da propaganda, que está

sempre à procura de homens e mulheres que sejam seus porta-vozes, a

chave para ter uma celebridade que fale com sua audiência é a qualidade da

confiança que as pessoas depositam nela - e também a quantidade. Sim,

82

Page 84: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

confiança agora é quantificável.

Desde os primeiros dias do rádio e da televisão, companhias como

Nielsen e Arbitron têm medido o tamanho e a queda demográfica das

audiências. Algo chamado "classificação-Q" combina o reconhecimento do

nome de uma celebridade particular ou de alguma figura pública com a

reação emocional evocada por aquele nome - favorável ou desfavorável -,

estabelecendo, assim, um ranking. Todavia, há pouco tempo, pesquisadores

de marketing elevaram esse sistema a outro nível, ao adicionar uma meta

específica para determinar não só quanto gostamos de uma celebridade,

mas - e isto é mais importante para os anunciantes -quanto confiamos nela.

Claro que a relevância e a exatidão desses dados ainda são algo dis-

cutível, porém a lista completa, chamada de "índice David Brown" (DBI

em inglês), pode ser acessada pelos anunciantes por vinte mil dólares

anuais. Esse valor, pensando em termos de orçamentos de marketing, é

quase um trocado. Tendo sido vazado ou algo plantado, o DBI virou notícia

em vários veículos de imprensa e, em fevereiro de 2006, a revista New York

publicou parte da lista. Um amigo me mandou por fax a reportagem e

circulou o quarto nome que vinha depois de Tom Hanks, Oprah e Bill

Cosby, e logo antes de Michael Jordan -era o meu.

Não vou mentir para você (pode acreditar) - esta foi uma bela e

inesperada confirmação, com certeza muito melhor que ficar entre os cinco

primeiros de uma lista dos "Maiores Bundas-Moles de Todos os Tempos".

Durante mais de duas décadas beneficiei-me de todas as formas possíveis

da enorme boa vontade de milhões de pessoas desconhecidas. No decorrer

de uma longa carreira, às vezes suas bilheterias são boas, às vezes não; já

fiquei no topo das paradas e também já fiquei lá embaixo. Mas, desde a

primeira temporada de Caras & Caretas, as pessoas "gostavam de mim",

como Sally sempre gosta de lembrar. Eu nunca havia considerado o salto

de "gostar" para "confiar", ou até mesmo "respeitar". Fora um "olá", um

83

Page 85: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

aperto de mão ou um “Adorei O Garoto do Futuro", o que mais as pessoas

pensassem de mim não era da minha conta. Contudo, como evidenciado

pelo DBI e com o apetite dos anunciantes por informação, para alguns isso

era um negócio. Qualquer executivo inteligente vai lhe dizer que negócios

e política não se misturam.

Vamos olhar a lista novamente. Tom Hanks, um cara genuinamente

legal, conhecido por seus papéis de homens comuns e muitas vezes

patrióticos - nenhuma controvérsia. Oprah, de forma estudada, evita

envolver-se em assuntos políticos, até seu recente apoio a Barack Obama

(suspeito de que isso a tenha feito cair algumas posições). Bill Cosby, para

muitos norte-americanos, personifica o conforto e a força de um núcleo

familiar. Michael Jordan, quando pressionado a respeito da anunciada dis-

tância de ações políticas ou declarações, respondeu apenas:

- Os republicanos também compram tênis.

Quanto a mim, suponho que o DBI poderia ter sido uma dica para

que eu usasse essa confiança em favor de alguma companhia de pasta

dental ou fabricante de sopas, mas não fiz isso. Apenas dei risada e colo-

quei a lista na pilha de papéis.

Entretanto, seis meses depois, coloquei aquela confiança à prova, e

meu "gostamento" em risco, ao me tornar um dos maiores defensores da

liberdade aos cientista e ás pesquisas com células-tronco. Muitas pessoas

que estiveram ao meu lado durante vários anos continuaram lá e passaram a

vocalizar também suas posições, mas houve igualmente um grande número

que passou a não mais gostar tanto de mim. Não fiz nenhum esforço para

medir quantos, e não, não olhei a lista do ano seguinte - tem aí 20 mil

dólares sobrando? Afinal, o motivo pelo qual as pessoas concordavam

comigo ou confiavam em mim não tinha nada a ver com o fato de eu

cultivar isso ou de ter pensado em criar essas coisas se elas não existissem.

Eu era um feliz resíduo de ser honesto comigo mesmo.

84

Page 86: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Apesar da minha onipresença vinda de aparecer interminavelmente

em reprises de televisão e aluguéis de DVDs, agora penso em mim mais

como pai, marido, ativista e cidadão que como celebridade. E, para meu

grande prazer e satisfação, o sucesso rápido e a ótima reputação da Fun-

dação Michael J. Fox têm mais a ver com o talento e a dedicação da equipe

que com o nome famoso na porta.

Estranhamente, penso em minhas atividades políticas em favor das

pesquisas com células-troco como algo mais pessoal que público. Vi uma

necessidade e procurei tratar dela da maneira mais efetiva possível, usando

quaisquer meios legítimos possíveis. O que estava em jogo era importante

demais para eu me preocupar se dez, cem, mil ou mesmo um milhão de

pessoas iriam gostar menos de mim se eu me envolvesse. Não que eu fosse

tão corajoso a ponto de fazer tudo isso sem ter um bom exemplo a seguir.

Quando Chris e Dana se foram, senti que não era uma responsabi-

lidade pequena, mas um grande privilégio continuar o trabalho deles da

melhor maneira possível. Há uma frase de Chris que carrego comigo até

hoje:

- Ou você fica no lado raso da piscina, ou vai nadar no oceano.

Tentei molhar o pé, entrar no rasinho, andar na água, algumas

braçadas e, enfim, talvez inconscientemente seguindo o conselho de Chris,

encontrei-me no meio de águas profundas e agitadas. O engraçado é que

Chris não mencionou os tubarões.

Vineyard 2001: atirando para matar

MARTHA'S VINEYARD, MASSACHUSETTS

VERÃO DE 2001

Meu filho, Sam, tinha acabado de se juntar a nós em Martha's

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Page 87: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Vineyard, vindo de um acampamento. Ele era nosso repositor oficial de

munição, recolocando com confiança uma generosa mistura de nitrato de

potássio, enxofre e uma amálgama de carbono no orifício menor do

canhão, que estava apontado indiscriminadamente para o terreno de trás

que podia ser visto da alta varanda em que estávamos. Abaixando-se para

acender o pavio estava o especialista em fogo e antigo diretor de

comunicações de Clinton, George Stephanopoulos, que acendeu um fósforo

com os dedos e levou a chama até a mecha (tá bom, inventei a parte de

acender com os dedos). Sam e George abriram sorrisos que só posso

descrever como inquietantes.

Bater em retirada parecia a coisa mais prudente afazer – e me

oferecer para pegar bebidas geladas me daria cobertura -, mas por um

vago senso de obrigação paternal eu disse:

- Cuidado, gente, a brincadeira é divertida até que alguém perca

uma mão. Antes que eu pudesse completar a frase com a hilária piada que

depois disso não seria mais uma brincadeira, mas ainda seria divertido,

um alto barulho de trovão saiu do canhão, ecoando pelas dunas até chegar

à praia. Um pequeno fio de fumaça preta também saiu, mas a brisa logo

cuidou dela. Uma rápida conferida para ver se todos estavam com as mãos

ocorreu antes de os quatro aplaudirem o sucesso da empreitada. A verdade

é que o canhão era apenas uma pequena réplica, uma arma de destruição

mínima. Não havia nenhum projétil envolvido. No caso de o tiro sair pela

culatra, o máximo que podia acontecer era alguém perder um dedo.

Se você que está lendo isto for pai, provavelmente está se

perguntando:

- Por que Mike não ajudou Sam a acender o pavio? (Trêmulo

demais.)

Se você for um garoto e estiver lendo isto, o que è algo bacana,

deve estar se perguntando:

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Page 88: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Onde compro um canhão desses? (De um pirata.)

Se for uma mãe, provavelmente está gritando:

- Você deixou eles brincarem com a porcaria de um canhão?! (...

Que canhão?)

Mas, se for um viciado em política, está pensando:

- Espere aí, George Stephanopoulos? (Voltarei a esta parte num

instante.)

- Pai - Sam começou a perguntar, usando a lateral do tênis Nike

para varrer o excesso de pólvora da varanda -, se a gente explodisse

mesmo as mãos, poderíamos usar as células-tronco para fazer mãos novas

crescerem no lugar?

Olhando de relance para mim, George sorriu. Ele também queria

ouvir a resposta que eu daria.

Neste final de semana de julho, George Stephanopoulos tinha vindo

a Martha's Vineyard fazer uma entrevista comigo para o programa sobre

política This Week with Sam Donaldson and Cokie Roberts, que passava

aos domingos pela manhã. A ABC não tinha substituído os dois lendários

jornalistas, por isso George ainda fazia o trabalho de campo. Tracy e eu

conhecíamos George havia muito tempo, bem antes de eu fazer o papel de

um clone dele no filme Meu querido presidente, por isso o convencemos a

não ficar em um hotel e ser nosso convidado por uma noite. Fizemos a

entrevista naquele dia de manhã e aquela localidade ganhou de longe de

qualquer estúdio, com um lindo céu azul e o belo cartão-postal que é a

marina de Edgartown ao fundo. George veio para discutir células-tronco, o

que criou uma curiosa união de colocações e assuntos importantes. O

futuro das pesquisas dependia da iminente decisão de política do presidente

Bush. Com o perfil político da nova administração ainda incipiente e

enigmático, as perguntas de George eram a respeito de expectativas e

conjecturas. O presidente poderia liberar as restrições ou mostrar um

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Page 89: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

surpreendente suporte à causa, mas proibir tudo também era algo possível.

É difícil lembrar de um tempo no qual a guerra, as razões da guerra e os

rumores de uma nova guerra não dominavam as manchetes. Mas, naquele

verão de 2001, o último antes do 11 de Setembro, "Gary Condit, tubarões e

células-tronco" eram as obsessões da mídia.

Durante os dois anos anteriores ao anúncio da política de 2001, as

atenções estavam voltadas para as células-tronco, não tanto pelo público

em geral ou pela mídia, mas de todos que de um jeito ou de outro tinham

alguma relação com a ciência. Especialistas tinham sido encontrados,

sessões do Congresso tinham sido convocadas e acontecido, comitês de

busca e exame de dados tinham achado e examinado os dados, todos

esforçando-se para desenrolar as premissas da controvérsia e reconciliar a

teoria com sua aplicação prática. Mas, em geral, tudo parecia ter um ar de

atraso deliberado. Era uma ciência emergente, e muito do trabalho prático

laboratorial só se tornaria realmente prático no início do século XXI, então,

enquanto Clinton era a favor das pesquisas com células-tronco

embrionárias, todos pareciam estar esperando a era Clinton acabar para ver

o que o "cara novo" pensava. Aqueles de nós vivendo ou morrendo de

doenças ou condições atualmente incuráveis, sabiam que nossa posição não

poderia ser a de esperar o tempo que fosse preciso. Um paciente de

Parkinson e ativista, Jim Kordy, é conhecido em Capitol Hill por carregar

uma enorme ampulheta nas reuniões e nos gabinetes dos comitês, virá-la e,

enquanto a areia cai, reclamar atenção à Doença de Parkinson e à

evanescente natureza do tempo.

Falei sobre esse ritmo compreensivelmente lento das discussões

parlamentares em setembro de 2000, quando, com Mary Tyler Moore, o

último manifesto de Jennifer Estess de seu Projeto ELA (a atriz Gina

Gershon leu a declaração de Jennifer em voz alta) e outros, testemunhei

perante o subcomitê de verbas para produção, saúde e educação do Senado.

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Page 90: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Após ler os comentários de Chris Reeve, usei o privilegiado espaço de

tempo reservado a mim para um pequeno desabafo:

- Durante dois anos, vocês tiveram um desfile de testemunhas -

cientistas, eticistas, teólogos de todas as correntes e algumas celebridades

discutindo todas as nuances da pesquisa com células-tronco. Vocês deram

tempo a todos os lados da questão, incluindo os poucos, mas muito ativos

opositores. No entanto, a consistente e inescapável conclusão é que essa

pesquisa tem potencial para eliminar doenças - salvando literalmente

milhões de vidas. Então, mesmo aplaudindo a eficácia de vocês, não posso

deixar de dizer, respeitosamente, "Basta".

Menos de uma semana antes da eleição de 2000, o New York Times

publicou um editorial escrito por mim, descrevendo a frustração e as

promessas associadas às pesquisas com células-tronco. Eu lembrava o en-

tão governador do Texas, George W. Bush, e os eleitores que poderiam lhe

dar a vitória, da oportunidade que ele teria de introduzir uma política

histórica em relação às células-tronco. Durante toda a campanha, seus

assessores o aconselharam a não tocar nesta questão por ser algo muito

polêmico. Nós, os pacientes, defendemos com insistência que ele saísse de

cima do muro e declarasse sua posição. Fui mais político era minha

mensagem ao futuro presidente eleito. Veja uma parte:

Uma eleição crucial para as pesquisas médicas - NewYork Times -

1Q de novembro de 2000

O sr. Bush é favorável ao banimento das pesquisas com células--

tronco, diz um assessor, "por causa de sua visão provida".

Mas as pesquisas com células-tronco não têm nada a ver com o

aborto... são usadas células indiferenciadas extraídas de embriões com

poucos dias de vida - embriões estes produzidos em fertilizações in vitro...

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Page 91: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Atualmente, mais de cem mil embriões estão congelados e estocados. A

maioria desses microscópicos pedacinhos de células estão destinados a ser

destruídos - acabando com qualquer chance de vida...

O apoio à pesquisa com células-tronco não vem só de democratas

pró-escolha como Al Gore, mas também de republicanos que concluíram

que, nas palavras do ex-senador Bob Dole, apoiai este tipo de pesquisa é

"ter posição pró-vida".

... Esperamos que entre hoje e a próxima terça-feira o sr. Bush

explique a nós, os que têm doenças debilitantes - e a todos os outros -, por

que é mais pró-vida jogar células-tronco fora que usá-las para salvar vidas.

O candidato Bush acabou virando presidente Bush. Enquanto

George Stephanopoulos e eu estávamos conduzindo nossa entrevista em

Martha's Vineyard, o novo presidente e seus assessores estavam decidindo

sobre a política dessa administração em relação às células-tronco.

Estávamos procurando sinais de qual seria e, mesmo não encontrando

nenhum, ainda mantínhamos a esperança.

RANCHO BUSH/A CASA BRANCA DO OESTE

CRAWFORD, TEXAS • 9 DE AGOSTO DE 2001

Falando de Crawford, no Texas, o presidente, no primeiro grande

anúncio de políticas de sua administração, começou a falar do que ele

chamou de "uma questão difícil e complexa... uma das mais profundas

desta época": as pesquisas com células-tronco embrionárias. Em muitos

sentidos foi ura grande discurso, feito numa linguagem habilidosa para

agradar aos dois lados. Ele fez referência ao "Criador", aos "riscos morais"

e às "ramificações éticas", acrescentando:

- Tomei esta decisão com muito cuidado, e rezo para que seja a

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Page 92: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

certa.

O toque espiritual foi uma mensagem à sua conservadora base

cristã, mostrando que não a havia abandonado.

Os norte-americanos a favor das células-tronco, os milhões de pes-

soas lutando contra doenças incuráveis (tenho certeza de que aí estavam

incluídos muitos evangélicos e cristãos conservadores, cujas preces os

levaram a abraçar a promissora pesquisa de células-tronco embrionárias)

também ouviram uma mensagem bem-vinda: o presidente permitiria que as

pesquisas continuassem. Apesar de serem aparentemente boas notícias

alguns elementos- chave da nova política eram preocupantes, e faziam

acender a luz amarela, se é que não acendiam a luz vermelha. Uma delas

restringia todos os pesquisadores a utilizar apenas sessenta colônias

autorreplicantes preexistentes de células-tronco, conhecidas como

"linhagens celulares". Nossa pesquisa tinha um número bem menor de

linhagens celulares viáveis: menos de vinte, talvez por volta de treze. Mas

sessenta era a última estimativa que o NIH havia passado ao presidente.

Nenhuma pesquisa financiada pelo governo utilizaria novas linhagens

celulares, nem nenhuma pesquisa com novas linhagens celulares, mesmo

que não recebesse verbas do governo, poderia ocorrer em uma instituição

ou instalação que recebesse um dólar que fosse por qualquer razão. Isto é

um "nem" muito grande. Significava que, se um pesquisador de células-

tronco ainda não tivesse sido desencorajado o suficiente para desistir de sua

pesquisa e quisesse manter laços com uma instituição com financiamento

federal, teria de arranjar uma nova equipe e um local de trabalho fora de lá.

Outra preocupação vital com essas linhagens celulares que já existiam era

quanto à pureza. Algumas, se não a maioria, estavam contaminadas por

proteínas não humanas. Essas proteínas, em geral células de ratos,

tornavam certas linhagens inúteis para o desenvolvimento de terapias que

poderiam ser utilizadas em pacientes humanos.

91

Page 93: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

E de acordo com o que o presidente estava descrevendo ainda havia

algumas armadilhas no caminho das curas. Uma delas era como lidar com a

patente privada de linhagens celulares. Sabíamos que isto comprometeria

um progresso rápido, pois laboratórios particulares e grandes corporações

eram reticentes em dividir descobertas com pesquisadores externos. Em

uma conversa telefônica com o secretário da Saúde e Recursos Humanos,

Tommy Thompson, um dia depois do discurso, eu disse que estávamos

contentes com o fato de c» presidente reconhecer que as pesquisas com

células-tronco eram promissoras, mas que havia perguntas muito

importantes sem resposta. O secretário, que sabíamos ser um proponente da

pesquisa (desde então, ele Lançou sua candidatura .a presidência e adotou

uma posição contrária às células-tronco... Tommy anda fazendo contas),

disse que o NIH lhe reportara que existiam, na verdade, sessenta e nove

linhagens disponíveis no mundo. E, em relação às patentes, assegurou que,

mesmo não havendo ainda um acordo formal, eles confiavam que

corporações e grupos privados iriam colaborar. O secretário Thompson

reconheceu que algumas questões sobre taxas e pagamentos a linhagens

celulares privadas ainda estavam em aberto. Temíamos que o efeito da

condição das linhagens celulares fosse limitar a quantidade e a qualidade

das células disponíveis e reduzir as perspectivas.

Eu estava desapontado, mas ainda pensava: Melhor que nada;

vamos esperar para ver.

Talvez a política tenha sido tão bem bolada, tão habilmente condu-

zida por George W. Bush, que o plano era nos fazer pensar que os dois

lados estavam cedendo um pouco, quando, na verdade, a intenção era que a

ciência levasse o maior tombo.

Nos quatro anos seguintes, não havia muita gente se preocupando

com células-tronco, exceto aqueles de nós cuja vida dependia delas. A

questão até apareceu durante a eleição presidencial de 2004. Fiz um

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Page 94: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

comercial para Kerry, que não atraiu muita atenção. Pode ter sido porque

também fiz um para o senador republicano Arlen Specter, ou mais

provavelmente porque os eleitores só pensavam nas células terroristas do

Al Qaeda, e não nas células-tronco embrionárias. Dana Reeve fez um

discurso bravo e desafiador em Ohio, em nome do falecido marido. Houve

uma vitória significativa na Califórnia: a Proposição 71, uma iniciativa para

criar o Instituto de Medicina Regenerativa da Califórnia, aprovada com

59% de votos, que garantia um investimento de 3 bilhões de dólares às

pesquisas com células-tronco embrionárias no Estado. Nacionalmente,

legislações foram levadas ao Congresso, tentando alterar a política para as

células-tronco, adicionando novas linhagens celulares, infelizmente sem

sucesso.

Levando-se tudo em conta, as restrições de 2001, como uma cáp-

sula de veneno, levaram as pesquisas a uma paralisia virtual. As fundações

privadas fizeram o possível. A Fundação Michael J. Fox liderou a

promoção das pesquisas com células-tronco relacionadas à Doença de

Parkinson. Financiamos uma pesquisa avançada usando todos os tipos de

células-tronco. Nossa meta era determinar qual delas tinha o maior

potencial de resultados com o Parkinson. Os resultados foram claros; em

muitos dos experimentos, as células-tronco embrionárias mostraram-se as

mais promissoras, pois eram manipuladas muito mais facilmente para se

tornar os neurônios produtores de dopamina necessários para reparar o

cérebro.

Mesmo com nossos avanços, o congelamento imposto pela política

restritiva de Bush significava que os experimentos críticos que deveriam

vir a seguir não poderiam ser feitos. O próximo grande obstáculo era

grande demais para ser superado por uma única fundação.

***

93

Page 95: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Nosso pequeno chalé de madeira em Martha's Vineyard é

abençoado com uma vista limpa do farol de Gay Head. Toda noite, seu

vagaroso giro, a cada meia-volta, pinta a casa e o morro com um caloroso

facho de luz. Do anoitecer em diante, vários vagalumes voam pelo jardim

como a metáfora do primeiro presidente Bush: "Mil pontos de Luz". O

farol completa outra volta de trinta segundos, c uma onda brilhante

esconde a luz dos insetos. Mil vagalumes não geram luz suficiente para ler

um mapa. Um farol - mais poderoso e confiável - dá uma sensação de

caminho e esperança. Da mesma forma, eles iluminam e apagam, então o

caminho a seguir é escolher na claridade e confiar na escuridão.

Admito que nunca passei muito tempo no oeste do Texas, mas,

dada .a quantidade e variedade de arbustos que o presidente limpa nas

férias, meu palpite é de que ele tem muitos vagalumes em seu rancho - e

nenhum farol.

Vineyard 2006: O dia da marmota*

MARTHA'S VINEYARD • VERÃO DE 2006

Joguei a sacola térmica cheia de embalagens de sanduíche, potes

vazios, garrafas de água e latas de refrigerante na cozinha e dei dois

passos arrastados até onde estava o telefone. Apertei o botão play da

secretária eletrônica. A alegre voz robótica informou que eu tinha cinco

mensagens. Um pequeno olhar por cima do ombro queimado de sol me fez

estremecer ao notar minha flagrante falta de etiqueta pós-praia ao entrar

na casa. Da porta até o lugar em que eu estava, o caminho que fiz estava

vivamente demonstrado por pegadas de areia.

Bipe. "Aqui é do escritório do senador Reid. Queremos falar com

Michael.J. Fox. Por favor, ligue para nós quando puder."

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Page 96: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Tracy ainda estava lá fora, provavelmente tirando a areia dos

pezinhos de nossa filha caçula, Esmé.

Bipe. "Fala, cara, é John Rogers. O senador Reid vai te ligar. Você

sabe do que se trata."

... Tracy provavelmente ia me perguntar se precisava tirar a areia

dos meus pezinhos também.

Bipe. "É do escritório do senador Reid novamente. Por favor,

avise-nos qual o melhor horário para falarmos com você."

Bipe. "Mike, aqui é Tom Harkin. A votação está chegando e... bem,

acho que o Harry Reid vai te ligar."

Faltava uma mensagem...

Bipe. "Tracy, é a jennifer. Não se preocupe com o salmão. Clark

vai comprar no Larsen's. E faremos o prato com coentro."

... Excelente!

Louco para destruir todas as evidências da minha transgressão, fui

até apia, peguei um pano de prato, joguei-o em cima da pegada de areia

mais próxima, botei o pé em cima e comecei a "varrer". Então o telefone

tocou. Eu poderia não ter atendido, mas isto teria feito Tracy entrar

correndo para atendê-lo.

Peguei logo o telefone.

-Alô?

- Alô. É Michael. J. Fox? O senador Reid quer falar com você.

Ouvi o barulho da porta de tela se abrir. Era Tracy.

- Ah, Mike, olhe para este chão!

Com o telefone no ouvido, virei totalmente envergonhado para a

janela.

- Ahn... Pode pedir para o senador aguardar um segundo? Preciso

limpar meus pés.

__

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Page 97: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

* Referência ao filme O Feitiço do tempo, que se fosse traduzido literalmente

se chamaria O dia da Marmota. (N.T.)

John Rogers tinha razão. Eu sabia por que o senador Reid estava

me ligando, e o senador Harkin, meus amigos da CAMR (Coalizão para o

Avanço das Pesquisas Médicas) e do PAN. A Lei do Aumento das

Pesquisas com Células-Tronco, também conhecida como H.R. 810, um

projeto de lei bi-partidário apresentado ao Congresso em fevereiro de 2005

pelos deputados Mike Castle (republicano de Delaware) e Diana Degette

(democrata do Colorado), aprovado por 238 a 194 votos em maio de 2006.

O Senado provavelmente votaria sua versão do projeto nos próximos dias.

Enquanto ainda precisava falar pessoalmente com o senador Reid, os outros

telefonemas eram para pedir que eu fizesse propaganda na mídia apoiando

o projeto, e eu esperava que ele fizesse o mesmo. Eu não tinha nenhum

problema com o H.R. 810; era uma lei excelente, exatamente o que

precisávamos. No entanto, a grande questão era que o projeto passaria

facilmente, mas precisaríamos ganhar com uma margem de dois terços. E,

mesmo com um encorajador número de votos de republicanos, não

conseguiríamos cruzar aquela linha. Com isso, tão certo como uma garota

de Vineyard cagaria em seu carro novo e limpo, o presidente vetaria a lei.

Eu estava tomado pela enfadonha sensação dejá vu. Foi em

Vineyard, em 2001, que discuti uma política emergêncial para as células-

tronco com George Stephanopoulos. Agora estava no mesmo lugar, cinco

anos depois, falando outra vez de células-tronco com um senador dos

Estados Unidos. Quando o presidente revelou suas diretrizes em 2001, eu

havia saído algum tempo de Martha's Vineyard para uns dias de trabalho

em Los Angeles, da mesma forma que aconteceria agora em 2006, no dia

em que a lei seria aprovada e o presidente nos decepcionaria novamente.

Eu não estava procurando novas responsabilidades para preencher

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Page 98: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

meu tempo. Apesar de não gerenciar as operações do dia a dia, estava

totalmente envolvido no trabalho mais amplo da Fundação Michael J. Fox,

que naquele momento se tornara a segunda maior financiadora de pesquisas

da DP do mundo, atrás apenas do governo federal. Éramos implacáveis em

procurar possíveis novos avanços e soluções, incluindo pesquisas que

envolviam células-tronco, mas não excluindo as demais.

Queria enterrar minha cabeça na areia nas próximas seis semanas

do verão, porém, antes precisava lavar a areia dos pés e atender à ligação

de um senador.

- Michael - começou o senador Reid -, não nos conhecemos muito

bem, mas precisamos de sua ajuda nessa questão.

Lisonjeado que ele pensasse assim de mim, ainda estava em dúvida.

O senador então delineou a situação com o H.R. 810, qual era a expectativa

de votos e os quase 100% de chance de o presidente vetar.

- Precisamos que você apareça - ele continuou. - As pessoas espe-

ram ouvir sua opinião. Se pudesse fazer uma coletiva de imprensa e al-

gumas entrevistas, uns programas de TV esse tipo de coisa, seria muito

bom para nós.

Pela segunda vez, em dez minutos, estremeci.

- Bem, pense a respeito. Só quero dizer que você estaria nos

fazendo um enorme favor.

Ah, ele usou a palavra com F. Para um político, favores são como

leite materno. Agradeci-lhe e disse que iria considerar o assunto e que

ligaria de volta em breve.

Continuo achando que, quando tratada como uma questão isolada, a

maioria dos norte-americanos seria a favor de reformar a política dessa

administração em relação às células-tronco. Baseio-me parcialmente nas

recepções calorosas - ou pelo menos abertas - ao diálogo que em geral re-

cebo quando advogo em favor da questão. Mas a experiência me ensinou

97

Page 99: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

que a Presidência dos Estados Unidos é mesmo, como falado sempre, a

cadeira de maior poder do mundo. E, se George W Bush estava determi-

nado a impedir o H.R. 810, comecei a aceitar que não havia muito o que

fazer a respeito. O presidente tinha claramente fechado a questão sobre esse

assunto, e o público, mesmo concordando comigo, não tinha como

demandar uma mudança de política. Minha participação no debate do

assunto atrairia atenção, mas não influenciaria muito no final. Parecia-me

que o máximo que poderíamos fazer era esperar que passassem logo os

anos que faltavam para o fim do segundo mandato dele e torcer para uma

liderança mais esclarecida ganhar. Aquele 2006 era um ano de eleições

parlamentares, e eu não havia pensado nisso... ainda.

Tentei entrar em contato com o senador Reid algumas vezes, mas

nos desencontramos. Mal sabia eu que, como resultado das eleições par-

lamentares, a próxima vez que viesse a falar com o então líder da minoria

do Senado, o senador Reid, ele já seria o líder da maioria.

PRAIA DE MANHATTAN, CALIFÓRNIA

19 DE JULHO DE 2006

Se a perspectiva de passar parte do verão lutando contra a

administração Bush provocou uma reação de "acho que já fiz isso antes",

minha volta a outra arena pareceu exótica e finita de forma bem atraente.

Desde minha aposentadoria de Spin City, eu havia feito alguns pequenos

papéis, incluindo uma participação especial no meu próprio programa,

agora de Charlie Sheen. Então, em 2004, Bill Lawrence, cocriador de Spin.

City e um dos produtores comigo (e também com Gary Goldberg, pediu-me

para atuar em um arco de dois episódios em sua nova série cômica para a

NBC, a surrealmente engraçada Scrubs, e eu topei. Fazendo o papel de um

brilhante cirurgião que lutava todos os dias com seu severo transtorno

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Page 100: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

obsessivo-compulsivo, pude simular sintomas para o personagem que

mascaravam os meus. A experiência não foi nem um pouco fácil, e, apesar

de esse trabalho em Scrubs me lembrar de tudo que eu amava em relação a

ser ator, também me lembrou do porquê me afastei. A filmagem foi adiada

em uma ou duas ocasiões, apenas por alguns minutos, por causa de

sintomas que não respondiam à medicação no tempo certo para filmar.

Algumas escolhas que eu fazia ao atuar, emocionais e físicas, eram

prejudicadas por uma teimosa recusa do meu cérebro e do corpo em

colaborar. Não havia mais tantas flechas à minha disposição, mas ainda o

suficiente para acertar o alvo na maioria das vezes; sob as circunstâncias

certas, percebi que conseguia ter uma boa performance.

Mais ou menos um ano depois, quando David Kelley, o produtor de

Justiça sem limites, me ligou para saber se eu estaria interessado em par-

ticipar de um arco de três episódios; li o roteiro e dei sinal verde. Gravei os

primeiros episódios em outubro de 2005 e, após serem exibidos e bem

recebidos, me comprometi a participar de mais dois no verão seguinte. Meu

plano era ficar cerca de uma semana em Los Angeles, em julho de 2006,

para filmar, na mesma época em que o presidente deveria vetar a Lei do

Aumento das Pesquisas com Células-Tronco. Isso criou em mim o clássico

conflito da velha e da nova identidade - a carreira de ator que eu não havia

abandonado por completo e o papel de advogado que eu não havia

abraçado por completo, também.

Ocupado com as filmagens de Justiça sem limites quando a CNN

passou ao vivo a cerimônia do veto, pensei que poderia dar uma olhada

durante a maquiagem, entre uma cena e outra. "Cabelo e Maquiagem" é

algo muito importante e comum a todos os filmes e séries. É o primeiro

lugar ao qual você vai de manhã e a última parada no fim, com algumas

outras passadas no meio. A fofoca rola solta com muito café; reclamações

encontram ouvidos simpáticos a elas; atores que não têm cenas juntos

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Page 101: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

batem papo; e a TV está sempre ligada. Bill Shatner, Candice Bergen e

Julie Bowen, entre outros, sentavam e giravam as cadeiras de barbeiro da

sala, claramente concentrando-se bastante no trabalho de serem arrumados.

Sentei em uma cadeira vazia e perguntei se podia mudar de canal. Como

ninguém disse nada, peguei o controle remoto e coloquei no canal que

retransmitia a ABC. A história continuava depois da primeira parte do

programa e um comercial. A imagem inicial mostrava o presidente, um

homem de meia-idade que era uma ilha no meio de um mar de crianças

pequenas, Gulliver em Lilliput. Uma dúzia ou mais de crianças - bebês

pequenos, outras de uns 3 anos e umas maiorzinhas também - corriam em

volta, agarravam, escalavam e passavam por baixo do presidente. Elas

agarravam as mangas do terno dele, brincavam com sua gravata, e uma ou

duas agitavam-se e choravam no colo dos pais. Esses adoráveis jovens

cidadãos eram os convidados de honra da Casa Branca na cerimônia do

veto. "Bebês flocos de neve" é o nome dado às crianças que nascem de

embriões congelados que os pais doaram para adoção. Todo ano, dezenas

de milhares de embriões sobram de fertilizações in vitro. Lembre-se de que,

apesar de a palavra "embrião" parecer algo bem desenvolvido, estamos

falando de formações de dez dias, com duas, quatro ou oito células. Eles

são criados fora de um útero e os que não são implantados na mulher ficam

armazenados criogenicamente, e eventualmente descartados. Para o casal

ou a pessoa que não pode ter filhos, adotar um embrião dessas sobras é algo

maravilhoso, sem dúvida nenhuma. Mas a lógica sugeic, e as pesquisas

comprovam, que, mesmo que tivéssemos taxas recordes deste tipo de

adoção, elas só cobririam uma pequena fração do número de embriões

produzidos, ainda sobrando milhares de células com potencial para salvar

bilhões de vidas. Crianças felizes ficam muito bem na TV, porém,

apresentar a adoção como resposta ao rotineiro descarte de embriões in

vitro é manipulação. O que eles queriam dizer era: Se você é a favor de

100

Page 102: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

pesquisas com células-tronco embrionárias, é contra bebês flocos de neve.

Uma questão que em geral fica esquecida na discussão sobre as

células-tronco embrionárias é o quase consenso em relação ao básico da

coisa. Concordamos com as diretrizes éticas; somos contra fazendas de

embriões, somos contra a clonagem de humanos e somos enfaticamente a

favor dos bebês flocos de neve. Nossa única discordância é o fato de nos

opormos à destruição de embriões congelados que poderiam ser usados em

pesquisas para salvar vidas.

Pesquisas que utilizam células derivadas de fontes menos

controversas, como células-tronco do cordão umbilical ou de adultos,

mostram-se promissoras, mas ainda precisam alcançar a versatilidade das

células-tronco embrionárias. Uma das estratégias mais recentes e excitantes

procura usar células da pele que são alteradas para virar células-tronco

embrionárias (ou, pelo menos, parecerem-se com elas). Se isso tiver

sucesso, essas novas células-tronco poderão ser uma fonte ilimitada de

células, com a habilidade de gerar qualquer tipo de tecido substituto e sem

toda a controvérsia supracitada. O problema é que não sabemos ainda se as

novas estratégias poderão substituir o uso das células-tronco embrionárias,

e, por enquanto, temos de manter todas as nossas opções andando e apoiar

as pesquisas com todos os tipos de células.

Corta para o presidente fazendo seus comentários formais:

- Parto do princípio de que temos de usar a tecnologia em nosso

favor, sem nos tornarmos escravos dela, garantindo que a ciência sirva à

causa da humanidade. Se conseguimos achar os caminhos certos para o

avanço da pesquisa médica ética, também temos de estar dispostos, quando

necessário, a rejeitar os caminhos errados.

No mundo imparcial, essa era a hora de cortar para a cena das ge-

ladeiras de embriões sendo abertas, com aquela névoa saindo delas, e o

conteúdo sendo jogado fora. O presidente conclui:

101

Page 103: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Por essa razão, tenho de vetar essa lei.

Agora, a cena principal: o presidente segurando a caneta do veto.

Ao derrubar o H.R. 810, a Lei do Aumento das Pesquisas com Células--

Tronco, George Walker Bush exercia o primeiro veto de sua acidentada

administração.

Eu estava sentado no final de um grande retângulo de espelhos, tão

perto da TV, que só conseguia ver fragmentos de reflexos das outras pes-

soas assistindo, mas consegui ouvir bem o que pensavam. Os comentários

finais do presidente induziram uma onda de vaias e assovios. Mesmo sendo

um ator convidado para apenas alguns episódios, fiz novos amigos aqui,

que sabiam o que isso significava para mim. (A pergunta era: será que eu

sabia o que isso significava?) Uma esponja de maquiagem cheia de base

passou voando pela minha cabeça e bateu na tela da TV, sujando a testa do

presidente. Como para defender o presidente, a imagem mudou para les

três mignons Enfants de Neige.

De volta ao âncora:

- Em um depoimento gravado antes do veto presidencial, o ator e

ativista Michael J. Fox falou sobre células-tronco e o provável veto do

presidente Bush à lei:

Acho frustrante que o presidente Bush use seu primeiro veto

para se opor a esta pesquisa. Parece-me uma vergonha. Respeito

aqueles que se opõem a esta pesquisa, mas eles são a minoria, e acho

que fazer a escolha de proteger milhões de células que serão

destruídas de qualquer jeito em vez de proteger milhões de pessoas

ainda vivas deste país é algo difícil de aceitar.

Mesmo considerando pouco eficiente minha luta através da mídia,

ela atingiu a pessoa que precisava acordar e sentir o cheiro do veto - eu

mesmo. A perturbação que senti, os olhos semicerrados, o rosto vermelho e

a boca com um gosto amargo eram sintomas - mas não do Parkinson. Eu

102

Page 104: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

estava possesso da vida. Havia algo diferente nesse último revés, quase

uma alegria no tom imparcial e na conduta do presidente. E o desfile de

bebês flocos de neve foi uma clara tentativa de enganar as pessoas, uma

falsa escolha - como se a cura de Tanner Barton e um embrião ser adotado

fossem coisas excludentes, só uma delas possível.

As pessoas querem isto de verdade, consideraram o assunto,

rezaram por ele e pensaram nele, e acho que você deve confiar no

povo norte-americano, nos nossos cientistas, nas nossas instituições e

nos nossos laboratórios, que vão fazer a coisa certa e liderar o

caminho nesta questão.

A Casa Branca é pequena demais para abrigar os cem milhões de

pessoas cujos destinos estão ligados àquela assinatura. Apesar de não haver

convites para todos, elas mereciam um reconhecimento. Para as pessoas

que sofriam de Alzheimer, Parkinson, Huntington, ELA,* Escle-rose

Múltipla ou Diabetes juvenil, a tinta daquele veto representava o sangue da

vida. Para outros, o veto prolongava a incerteza. Em algum lugar do país,

uma mãe solteira vive todos os dias com medo de que ela, a filhinha e a

mãe com um recém-descoberto Alzheimer estejam presas em um ciclo de

predisposição genética que talvez nunca seja quebrado. O salva-vidas de 17

anos que foi surfar em Long Island e quebrou o pescoço não estava lá

testemunhando seu sonho de andar e surfar de novo ser posto em espera

pela falta de visão presidencial. Essas realidades são bem mais duras de

olhar que os bebês flocos de neve, mas são muito mais relevantes.

Precisamos de uma liderança que nos incentive a seguir em frente.

__________

* Esclerose Lateral Amiotropica. (N.T.)

103

Page 105: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

George W Bush sempre sustentou que suas decisões são tomadas

com base na fé e guiadas pela preocupação ética. E seu espírito de

moralidade o levou, em 2001, a falar corajosamente da promissora pesquisa

de células-tronco embrionárias e a permitir que seguissem, depois retardou

o processo nos anos seguintes ao restringir o número de linhagens celulares

e então, em 2006, vetou qualquer chance de resgate da pesquisa durante sua

administração. Mas será que alguma vez ele pensou de verdade na questão?

Em vinte anos de fertilização in vitro, ele nunca explicitou publicamente

nenhuma preocupação, mas mesmo assim promoveu a adoção de embriões

excedentes, como se tivesse dado de cara com o problema e achado a solu-

ção no mesmo dia. Não entendo como ele passa de algo tão inconsistente

para o campo moral elevado de onde discursa afirmando que um punhado

de células criadas fora de um útero, menores do que isto (.), descartadas

inutilmente, têm mais valor que sua filha, seu filho, sua esposa, sua mãe,

seu pai, seu irmão, sua irmã, seus primos, seus avós - ou você.

Fomos abençoados com recursos, inteligência, espírito e energia

para superar esse tipo de problema e estamos todos preparados para isto...

desde quando os norte-americanos esperam que os outros resolvam as

coisas por eles?

Tenho certeza de que as pesquisas com células-tronco têm as

respostas para os mistérios da medicina. No início dos anos 1960, ninguém

poderia afirmar que o homem pisaria na superfície da Lua uma década

depois. Como Chris Reeve diria:

- O presidente Kennedy baseou suas expectativas em conhecimento

científico e aonde essa ciência poderia nos levar.

A Nasa conseguiu fazer o que era considerado apenas ficção cientí-

fica poucos anos antes, em parte pela "disposição de não ficai presa ao

lugar-comum". Nossa expectativa de aonde as células-tronco podem nos

levar vem do conhecimento coletivo dos pesquisadores médicos e cientistas

104

Page 106: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

mais brilhantes da nação. Com base nesse conhecimento científico, a

esperança é dividida pela maioria dos cidadãos norte-americanos e en-

dossada pelas duas Casas do Congresso. Mas o lugar-comum finalmente

nos alcançou. Ninguém do nosso lado iria gastar dois minutos de tempo na

TV para falar de nossas esperanças e frustrações.

Contudo, se eu conseguisse fazer isto e, por qualquer razão que

fosse, conseguisse um pouco de atenção, então era isto o que eu iria fazer

com todo prazer.

O caminho certo para a campanha

eleitoralNOVA YORK • SETEMBRO / OUTUBRO DE 2006

O quartel-general da campanha ficava no meu escritório no Upper

East Side, mas no térreo. Apesar de estar no mesmo prédio, não podia ser

acessado diretamente dele. Eu precisava me vestir, descer e dar

aproximadamente cem passos para fora da entrada do prédio,

contornando a esquina até a porta na rua lateral. Ela havia sido a porta de

um consultório, mas nunca soube consultório de quê. Aparentemente, os

pacientes não precisavam de tratamentos freqüentes porque, nos sete anos

desde que o doutor fechou as portas, apenas algumas pessoas apareceram

batendo à minha porta, sem saber que ele não estava mais lá. E nunca

pareceram muito surpresas ao me ver, fato que pode ser meio revelador.

Foi Debi Brooks, a talentosa vice-presidente da Goldman Sachs e

cofundadora da Fundação Fox, quem sugeriu John Rogers para a missão

que teríamos nessa campanha. Visionária e estrategista incomparável, com

seu jeito próprio, o foco de Debi nos últimos anos havia sido revolucionar a

105

Page 107: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ligação entre ciência e filantropia. Tendo construído algo extraordinário na

Fundação, ela era compreensivelmente protetora. Nossa organização não

recebe nenhum financiamento federal, por isso não tínhamos os conflitos

que Cris teve de enfrentar na eleição de 2004. Mas ela tomou a precaução

de a Fundação não atuar como intermediária ou facilitadora de nenhuma

campanha de empresas, pois corríamos o risco de perder nossa isenção de

impostos. Mais que isto, para nossos colaboradores, apoiar nosso trabalho

não deveria significar apoiar uma agenda política com a qual eles podiam

não concordar. A Fundação serve para promover e financiar avanços nas

pesquisas sobre Parkinson - esta é sua primeira e única função. A parte

política tinha de ser feita no meu tempo livre, com meu próprio dinheiro e

usando meu nome.

Mandei cartas aos membros da diretoria e aos colaboradores expli-

cando minhas intenções e pedindo que as entendessem e tolerassem. Um

dos nossos colaboradores mais generosos, dono de uma famosa rede de

restaurantes familiares, bem conhecido pelo apoio aos republicanos, dis-

parou ura míssil cheio de desaforos, acusando meus esforços antiliberais

com o máximo de adjetivos baixos possíveis. Quase não cheguei ao seu

sincero e caloroso final, no qual dizia que estava brincando e prometia con-

tinuar nos apoiando, apesar dos milhões de dólares que já havia doado.

Mantendo contatos telefônicos em agosto, John e eu estávamos

contrariados e motivados pelo veto presidencial, e animados em ajudar a ter

uma mudança política após muito tempo. Até agora, meus esforços em

advogar a favor das pesquisas com células-tronco tinham sido relativos e

defensivos por natureza; um candidato ou coalizão entravam em contato

comigo ou eu respondia às perguntas da imprensa em vez de me juntar a

eles com idéias e perguntas próprias. Com o amparo de John e sua equipe,

iríamos mudar o antigo modus operandi pela raiz. Eu seria proativo,

entrando de cabeça no discurso político - indo para o ataque.

106

Page 108: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Entrando em meu escritório de Manhattan no dia 14 de setembro,

John encontrou-me bem orientado em relação ao quadro da eleição par-

lamentar de 2006. As próximas duas horas foram dedicadas a definir o que

pretendíamos fazer nas semanas seguintes. Em linhas gerais, o que

queríamos era mudar o balanço do poder, não de repubLicanos para de-

mocratas, mas de anticélulas-tronco para pró-céluLas-tronco. A maioria

do Congresso já estava do nosso lado, mas precisávamos garantir uma

margem de dois terços, que fosse à prova de veto. Para evitar confundir e,

com isso, diminuir o impacto de nossa mensagem, decidimos por uma

operação de assunto único. A guerra do Iraque, o Katrina, os escândalos do

Congresso, educação, imigração e economia eram assuntos que

deixaríamos para os outros. Evitaríamos a "política usual" e, em vez de

dividir os eleitores com "várias questões", pretendíamos unir as pessoas em

relação à promissora pesquisa de células-tronco.

E como poderíamos ajudar a fazer essa mudança? Acharíamos lu-

gares onde um candidato anticélulas-tronco concorresse contra um pró-

células-tronco. E não importava o partido deles; bastava que discordassem

do assunto. No entanto, nosso levantamento não mostrou nenhum

republicano pró-células-tronco concorrendo com um democrata anticélulas-

tronco. Eu havia apoiado, nas primárias de 2004, o republicano Arlen

Specter, quando sua postura pró foi atacada, e continuava disposto a apoiar

qualquer um, a menos que ele ou ela também propusesse a invasão do

Canadá ou outro assunto indefensável como este.

Concordamos em nos envolver apenas onde a corrida eleitoral esti-

vesse apertada, onde nos quisessem e onde pudéssemos fazer diferença de

forma positiva.

Nessa eleição, todos os cargos estavam concorrendo, menos o de

presidente. Prefeitos, governadores, vereadores, deputados estaduais e

federais e senadores. Após estudarmos tudo, finalmente decidimos qual

107

Page 109: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

seriam nossos alvos. Comprometemo-nos com algumas disputas funda-

mentais para o Congresso, e pelo menos uma, apertada (e simbólica), para

governador nos interessou, mas intuitivamente gravitamos para a eleição do

Senado. É verdade que esta eleição tem visibilidade maior, porém a

experiência mostra que, em geral, os democratas não se dão bem nesta

disputa, apesar de o time de candidatos impressionar até mesmo os

republicanos. Claire McCaskill do Missouri, Ben Cardin de Maryland e Jim

Webb da Virgínia eram pessoas talentosas e realizadas de diferentes

profissões, legítimos apoiadores da pesquisa com células-tronco e em dia

com as críticas à atual política governamental.

Nessas disputas para o Senado, uma em particular nos empolgava:

Claire McCaskill desafiando Jim Talent pela cadeira do Missouri. As célu-

las-tronco tinham se tornado um assunto polêmico no Missouri, porque o

Estado conta com uma divisão bem igualitária de conservadores religiosos

e urbanistas progressistas. E lá também seria votado um projeto para as

células-tronco similar à Proposição 71, aprovada na Califórnia em 2004.

Mas a do Missouri era mais controversa, pois liberava a transferência

nuclear de células somáticas (clonagem terapêutica).

A corrida pelo governo do Wisconsin também apresentava ótima

cha-ce de fazermos uma diferença bem tangível. Eu havia me encontrado

com Jim Doyle tanto em Nova York quanto em Wisconsin.

Tremendamente orgulhoso de ser o estado líder no desenvolvimento de

células-tronco, o governador Doyle elogiava, de modo justificável, suas

universidades, seus laboratórios, suas instituições e cientistas pioneiros

como James Thomson, creditado como o pai da pesquisa com células-

tronco nos Estados Unidos. O oponente do governador Doyle, Mark Green,

queria nada menos que o banimento completo da ciência. Ao Lado dele, em

uma manhã de novembro, em um comício em Milwaukee, o governador

aLertou os eleitores:

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Page 110: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Se vocês elegerem meu oponente, daqui a quatro anos estaremos

dizendo "O que fizemos?" e sem muito o que responder à pergunta "O que

faremos agora?". A questão estará resolvida, o navio já terá partido e não

haverá mais dessas pesquisas científicas fundamentais em Wisconsin.

John rascunhou uma lista de Estados e a passou para mim do outro

lado da mesa, como um advogado escrevendo sugestões para o acordo: NJ,

OH, MO, VA, MD, MI, WI, RJ, MN e MT. Aqueles cujos critérios eram

iguais aos nossos rapidamente agradeciam nossa ajuda. Por exemplo,

Richard Martin, chefe de campanha de Claire McCaskill no Missouri, ligou

logo para expressar seu entusiasmo, vendo nosso envoLvimento como algo

que combinaria perfeitamente como que precisavam. Eles estavam "cabeça

a cabeça” com o senador Talent, e a pesquisa com células-tronco emergia

como um dos grandes temas da disputa. Como essa era uma das maiores

disputas do país, estávamos muito ansiosos para ajudar.

McCaskill nos deus nossa primeira chance de testarmos na prática o

que eu poderia ou não fazer. Nada de entrevistas coletivas, e pela razão

mais simples: minhas imprevisíveis janelas de discurso articulado e co-

ordenação motora. Nada de debates também. Anúncios na TV podiam

funcionar (não tínhamos idéia) e eventos com tempo moderado de discurso

dariam certo, igualmente. Concordamos ainda com apoio via. press r-lease

quando não desse para aparecer na base eleitoral de um candidato.

O dia 5 de outubro de 2006 marcou nossos primeiros passos em

uma campanha, e prometemos manter sempre o alto nível. Olhando para

trás, manter o nível evoca uma imagem de Wile E. Coyote (que queria

pegar o Papa-Léguas) correndo por curvas fechadas no alto da montanha e,

ao fazer uma delas rápido demais, encontra-se improvavelmente suspenso

em pleno ar, com o precipício abaixo, mexendo as pernas freneticamente,

até que, conformado com seu destino, para de mexê-las, acena um tchau e

cai em direção ao deserto lá embaixo. Todas as vezes o vemos caindo e

109

Page 111: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

formando um cogumelo de poeira ao bater no chão, mas ele sempre

sobrevive. Eu tinha uma aventura parecida me esperando.

Cheguei em St. Louis com antecedência. A corrida já havia

começado e não dava mais para voltar. As apostas eram apenas de vitória,

sem outra opção, nas próximas semanas. E, naquela noite, com certeza, o

St. Louis Cardinals venceria o San Diego pela segunda vez seguida, mas

eram necessárias quatro vitórias para eliminar os padres e chegar à grande

final. No comitê da McCaskill, a paixão pelas chances de sua candidata

eram tão altas quanto pelos Red Birds.

Da mesma forma que em Columbus, o calor fora de época

ameaçava me derrubar. Comecei a dar entrevistas no aeroporto mesmo,

com minha camisa molhada de suor e colando no corpo - primeiro o

repórter de um jornal local, depois um programa de notícias e então outro

jornal. Apesar de cansado, irritado e trêmulo, o tom foi cordial nas três

entrevistas, e os jornalistas eram preparados e informados, o que refletia a

importância das células-tronco na política do Missouri. Terminado "meu

batismo" com a imprensa local, sequei-me e coloquei uma camisa limpa

que minha assistente, Jackie "Radar" Hamada, inteligentemente trouxera

para qualquer eventualidade. De lá fomos para um restaurante, para um

evento cuja finalidade era arrecadar fundos para a campanha de McCaskill.

Passei a ter uma nova percepção do termo "política de bastidores" à

medida que meu meteórico circuito político, começando por St. Louis,

requereu esperas e reuniões em vários "bastidores" pelo país. Foi nesse

"bastidor" em St. Louis, uma enorme adega do restaurante, que me

encontrei com a candidata McCaskill e seu marido, Joe. Ex-deputada

estadual, promotora pública de Jackson County e auditora do Estado, Claire

transparecia .aquela grande confiança e inteligência que esses cargos

exigem, balanceadas 11 mi uma afabilidade e humor necessários para

sobreviver na política. E ela também era versada e falava fluentemente a

110

Page 112: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

língua das "células-tronco".

Acompanhei Claire a uma sala maior, onde encontramos e cumpri-

mentamos apoiadores, e então ela me levou a outra sala maior ainda para o

evento propriamente dito. Após uma curta mas graciosa

apresentação,Claire me chamou ao palco. Sentia-me confortável e

engajado, apesar de as câmeras capturarem meus sintomas.

Sabe o que acontece comigo atualmente? Não é sempre que percebo

que estou tremendo; preciso que alguém me fale (então, se eu estiver

derramando café no seu terno, me diga). Claire explicou quão promissora

era a pesquisa com células-tronco e seu comprometimento em lutar por ela,

independente de isto ter repercussões negativas no âmbito político. Dava

para ver que tínhamos aliados verdadeiros por aí. Esse foi meu primeiro

evento e eu não tinha um discurso pronto ou mensagens já desenvolvidas.

Mas giravam em minha mente dois axiomas políticos já testados: "O que

acontece no Missouri acontece no país" e Toda política é local", este último

do evangelho segundo Tip 0’Nell Arriscando-me a cometer um sacrilégio,

peguei e aperfeiçoei a máxima de Tip:

Especificamente nesse caso, nessa eleição, nesse Estado e

nessa questão, a política não é local. O que se faz aqui no Missouri

tem impacto no país inteiro, em mim, na minha mulher e nos meus

quatro filhos, e em todos os norte-americanos que têm ou amam

alguém que tem uma doença ou condição incurável. É isso que me

traz ao Missouri. Parece-me certo dizer que, no dia da eleição, se

você se preocupa com o futuro, mostre a mim, mostre ao país,

mostre ao mundo.

Meu primeiro discurso político terminou comigo olhando para

Claire à espera de um aceno de aprovação, mas, em vez disso, fui premiado

com um grande abraço de urso.

-John disse que talvez você faça um comercial para nós.

111

Page 113: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- É claro - respondi.

Indo para a saída, virei-me e acenei para a platéia. Depois, saí pela

porta em direção à luz que se apagava do final de tarde em St. Louis. O

calor não estava diminuindo, infelizmente, e eu não tinha mais camisas.

Ad hom-i-nem* (hom-nem')Adj. Apelar para a consideração pessoal em vez da lógica ou da

razão

Alguns dias antes dos comerciais de campanha que fiz para Claire

Mc-Caskill, os de Ben Cardin e Jim Doyle foram ao ar, cada um deles

tendo sido enviado a John Rogers para que me repassasse e eu pudesse

revisá-los e aprová-los. Ao vê-los na minha caixa de e-mails, hesitei antes

de baixá-los e liguei para John no seu escritório em Milwaukee, no

Wisconsin.

________

* Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, diferentemente da explicação

oferecida pelo autor, “ad hominem”, refere-se a argumentos em que se usa as próprias palavras

do adversário para contestá-lo (N.T.)

- O que você achou? - perguntei. - Assistiu a todos eles?

- Ficaram ótimos, cara! - ele respondeu. - Todo mundo adorou.

Richard Martin, da campanha de McCaskill, disse que é o comercial mais

extraordinário que já viu. E a aceitação das pesquisas de opinião está

fervendo.

Extraordinário? Os comerciais eram profissionais e bem filmados,

com roteiros compactos e fatos concretos, mas pessoalmente não achei que

tivessem ficado extraordinários. Se o nome e as roupas dos envolvidos

fossem mudados e algumas rugas retiradas, esses comerciais seriam, em

112

Page 114: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

essência, idênticos aos que gravei em 2004 para Specter e Kerry. O que era

diferente agora? A mensagem e o pedido de ajuda talvez fossem mais

urgentes dois anos depois. Abri rapidamente os arquivos para ver como

havia ficado a edição final. Será que tinham posto efeitos especiais?

Após assisti-los algumas vezes, percebi que eu era o efeito especial.

Steven Spielberg, que conhece bem efeitos especiais e também a mim, de-

clarou mais tarde à revista Time que "os anúncios equacionaram a guerra

dos conservadores contra a ciência, com sua terrível conseqüência hu-

mana". Em outras palavras, não era só o que eu estava falando, mas o que

meu corpo, mãos, pernas, pés e olhos faziam enquanto eu falava.

Acostumei-me tanto com a doença, que consigo direcionar a maior parte do

meu foco, fora a Fundação, a promoção das pesquisas e a manutenção

diária do meu corpo e mente, em viver, e não na doença. Meus tremores e

discinesias, fluidos e sempre mudando, estão tão integrados no meu dia a

dia que seria impossível pegar apenas um momento e descrevê-lo como

sendo meu estado ou o estado de todos os pacientes de Parkinson. Contudo,

quando se filma um anúncio de trinta segundos, é isto o que você consegue:

trinta segundos de doença. Apenas capturando-se cada segundo de cada

hora durante trinta dias seria possível ter um quadro mais preciso. Algumas

pessoas me perguntam como me sinto, e costumo responder que me sinto

bem, mas que as coisas mudam de um segundo para outro, como o clima na

Nova Inglaterra. E outras, como se capturando um momento em uma jarra,

por assim dizer, a examinam com intensidade, colocam-na perto da luz, dão

umas boas chacoalhadas nela, mas, definitivamente, não fazem nenhum

furinho na tampa para que o ar possa entrar.

HOTEL WALDORF ASTORIA, NOVA YORK

18 DE OUTUBRO DE 2006

113

Page 115: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Uma grande reclamação das campanhas é a dificuldade em

arrecadar dinheiro, mas, no dia em que fizemos os comerciais de

McCaskill, Cardin e Doyle, vi como é fácil gastar. Para ser justo, conseguir

tempo de estúdio em Manhattan é raro, e o preço é cobrado de acordo com

isto; todavia, para o que queríamos, alugar uma das suítes mais caras do

Waldorf Astoria não pode ser descrito como algo mais econômico. Acresça

a isto o custo da equipe técnica, três diretores, o valor do tempo na TV -

não havia como sair barato. No entanto, fazendo uma retrospectiva, dá para

dizer que eles receberam muito em troca do que gastaram.

Vinda de Vancouver para me visitar em Nova York, minha mãe me

acompanhou ao Waldorf. Ela tem 70 e poucos anos e eu 40 e poucos, mas

naquele dia despertou seu alarme materno, um eco de um jogo de hóquei

no Canadá 35 anos atrás, quando ela, então com 40 e poucos anos, assistiu

ao filho de 10 anos ser ajudado a sair do gelo meio tonto e sangrando de

um corte no rosto. Hoje ela estava assistindo ao mesmo menino, que virou

um homem, esforçando-se para ficar parado sentado na cadeira.

- Os pais deveriam conseguir resolver os problemas dos filhos - ela

me disse. - Sei que você não é mais criança, mas é meu filhinho e não

posso ajudá-lo. Quando você deu a idéia de sentar sobre as mãos, eu sabia

que não ia funcionar.

E de fato não havia nada que ela pudesse fazer.

Se você já tentou jogar "tiro ao alvo" estando bêbado, já

experimentou uma frustração semelhante á tentativa do]e controlar

sintomas avançados de Parkinson. Mesmo com uma estratégia bem

planejada e ritmo perfeito, a chance é de 50% de acerto. Ou pior: dá para

acertar e errar ao mesmo tempo.

Viramos à esquerda na Park Avenue e logo depois entramos à

direita no estacionamento do Waldorf. Saí do carro e no instante em que

pisei na calçada meus remédios começaram a fazer efeito. Sorri. Acertei em

114

Page 116: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

cheio - parecia um relógio suíço. Tinha acertado meu "alvo"; os tremores e

a rigidez estariam neutralizados por uma ou duas horas, mas um jorro de

discinesia logo atingiria meu cérebro e corpo. Uma explicação médica sim-

ples, como "overdose de remédio", na verdade pode ser uma designação

incorreta. Uma quantidade indeterminada de dopamina está sempre pre-

sente no sangue e no cérebro, mesmo nos pacientes de Parkinson. Tomar a

dose prescrita no tempo certo não é garantia contra os efeitos colaterais.

Passo o restante da filmagem sob o controle dos efeitos colaterais da levo-

dopa: a dança e os espasmos da discinesia.

Antes de ter Parkinson, eu achava que os tremores eram o traço

característico essencial da doença, quando, na verdade, é a escassez de

movimento causada pela diminuição da produção do neurotransmissor

dopamina pelo cérebro. A bradicinesia, com o rápido embaralhamento do

andar, o descontrole da força, a falta de qualquer balanço nos braços e a

limitação total de movimentos, é a manifestação desta escassez. Podemos

comparar a dopamina ao óleo de motor - imprescindível para um

funcionamento perfeito. A diminuição dele faz com que o motor comece a

falhar e depois pare. Como eu que, sem a dopamina, me torno um cara sem

movimento.

Cada paciente exibe a própria e única combinação de sintomas. Mas

a maioria tem uma coisa em comum. Com o tempo, a levodopa perde a

eficácia; os pacientes aumentam a dosagem até que uma discinesia in-

controlável os força a aceitar que ela não é mais útil. Nos dezoito anos

desde que fui diagnosticado, mantive-me tão responsável em relação à

droga que nunca precisei aumentar a dosagem. Mesmo assim, a discinesia

tornou-se constante.

O dilema tem dois pontos de vista diferentes: o farmacêutico e o

filosófico. No ponto em que estamos, o filosófico pode chegar a uma

resposta melhor. Aqui vai o problema: escolha seu veneno ou, mais pre-

115

Page 117: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

cisamente, escolha sua cinesia: bradicinesia ou discinesia. Você poder ser

uma dessas duas pessoas, ambas sentadas em uma cadeira no meio de uma

sala. A distância até a porta é de uns quinze passos. Para um paciente de

Parkinson não medicado, que tem de lidar com a bradicinesia, movendo-se

para a frente em linha reta, desde que consiga levantar da cadeira, ele

deverá dar uns cinqüenta passos meio mancos, indecisos e arrastados, e

levará certo tempo para chegar à saída. Uma vez lá, provavelmente não

conseguirá fazer o quase impossível movimento do pulso para girar a

maçaneta. O outro, um paciente com discinesia profunda, também deverá

dar uns cinqüenta passos, mas nem uma arma de choque o faria andar em

linha reta. Seus passos são rápidos, selvagens e circulares, com um

dramático balanço de um lado para o outro, corrigido com um ocasional

passo para trás (pense no "Ministério das Caminhadas Bobas" do Monty

Pyndion. Essa jornada pode levar o paciente discinético aos dois cantos da

sala e a encostar em todas as paredes antes de chegar à porta; ele baterá

algumas vezes na maçaneta até conseguir segurá-la e abrir a porta. Sem a

opção "nenhuma das anteriores", qual dos dois dilemas você preferiria

enfrentar?

Nós, pacientes de Parkinson, a não ser por aqueles momentos cada

vez mais ilusórios de "ligado", quando os remédios funcionam e os sin-

tomas ficam controlados, podemos ser as duas pessoas descritas, alterando

nossa realidade várias vezes ao dia. Mas, se tiver de escolher, prefiro a

discinesia. Alguns passos falsos infelizes, batendo e cortando minhas

pernas nas cadeiras, a cabeça rolando como uma bola em um barco - é um

preço baixo a pagar por conseguir chegar à porta e abri-la, com a esperança

renovada pelo que pode haver do outro Lado dela. Tendo dado uma tarefa à

minha mente, pouco me importa que tipo de dança tenho

De fazer primeiro.Fico feliz de apenas poder andar, falar;sentar e

ficar em pé, apesar de fazê-lo com meu outro corpo britânico que tem disci-

116

Page 118: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

nesia. Em geral, como fiz naquele dia no Waldorf, esqueço-me do fardo

que carrego e mostro-o ao mundo. Também aprendi a ter recursos e a fazer

ajustes.

Numa situação como a da gravação de um comercial, onde só pre-

ciso me sentar e ler as palavras de um teleprompter, uma boa cadeira é

fundamental. Cadeiras de escritório giratórias e com rodinhas são um

perigo - seria necessária uma câmera móvel para conseguir me filmar

enquanto giro pela sala. Meus tremores e balanços fariam uma daquelas

cadeiras de diretor, de madeira e lona, ranger loucamente. Uma cadeira sem

braços não conseguiria me conter - eventualmente eu espirraria para um

dos lados, saindo do enquadramento e caindo no chão. Um banquinho nem

pode entrar na conta, e aqueles bancos giratórios de bar têm grande

potencial para o suicídio. Preciso de uma boa cadeira de madeira sólida,

daquelas de sala de jantar, como tive no Waldorf, com pernas firmes e

braços com boa pegada. O assento, do que é feito e que forma tem, não

interessa. Nos espasmos da discinesia, a energia do meu corpo não fica

contida na cadeira; ela vai para minhas cinco extremidades -pés, mãos e

cabeça. As mãos não descansam nos braços da cadeira, só são reguladas

por eles, enquanto os pés ficam enroscados na parte de trás das pernas da

cadeira, ancorando minhas canelas e tornozelos que, se não tivessem ossos,

se enrolariam como as víboras de um caduceu. Com esses controles,

praticamente não consigo ficar sentado. Mexo-me como um marinheiro no

barco, isto se não me mexer para compensar o balanço da minha cabeça. Só

há uma saída para isto tudo. Sentar sobre as mãos controla o excesso de

movimentos da cabeça (e é isto o que ofereço ao câmera e, sem que eu

saiba, faz com que minha mãe saía da sala).

Mais uma vez, esses ajustes são inconscientes. Não penso muito em

como os outros vêem os sintomas; já tenho muito com. que me preocupar.

Todavia, sempre que tenho tempo, explico o que acontece comigo às

117

Page 119: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

crianças, que são curiosas e muito sinceras. Conversei uma vez com uma

garotinha da pré-escola de Esmé que interrompeu nosso papo no meio de

uma frase e exclamou com honesta indignação:

- Dá pra parar de ficar se mexendo?

Depois que consegui parar de rir, prometi a ela que tentaria.

Nossa Fundação patrocinou um torneio de pôquer idealizado por

um membro de nossa diretoria, David Einhorn, que ficou em 17a lugar no

Campeonato Mundial de Pôquer em Las Vegas (e doou o prêmio de 660

mil dólares para a Fundação). Nosso pequeno torneio em Nova York teve

240 jogadores. Fui melhor do que esperava - terminei em 30a lugar -, e

credito meu inesperado sucesso à dificuldade dos meus oponentes "lerem"

meus movimentos. Meu corpo inteiro era um grande blefe. Eu piscava ou

arregalava os olhos, ondulava e acenava a cabeça, tendo um par de ases ou

não tendo nada.

Algumas noites depois, porém, minha discinesia inspirou uma con-

fusão não tão boa. Tracy e eu estávamos comendo sushi no centro. Ba-

lançando e tremendo num nível que comer era impossível e bater na mesa

era inevitável, disse a Tracy que esperaria lá fora.

- Termine sua comida e peça para embrulhar a minha para viagem -

sugeri.

Dramaticamente discinético, andava para a frente e para trás sob

uma garoa há uns vinte metros à esquerda da porta do restaurante. Andando

com dificuldade, um braço cruzando o peito para segurar o outro e a cabeça

acenando como um rabino em oração, parava a cada trinta segundos mais

ou menos e me encostava em um muro de tijolos grafitado. Os poucos que

passavam me olhavam desconfortavelmente e apertavam o passo. Eu

também não estava nem um pouco confortável, nem ficava olhando muito,

mas, mesmo depois que eles passavam, eu me sentia observado. Um

desajeitado giro de cabeça confirmou minha impressão quando vi um rapaz

118

Page 120: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

encostado em uma porta do outro lado da rua, olhando para mim

ostensivamente e nem um pouco preocupado. Olhei o relógio pela nona ou

décima vez e pensei nas minhas opções.

Juntar-me a Tracy estava fora de questão; meus sintomas estavam

muito fortes e o restaurante era pequeno demais para que eu passasse entre

as mesas organizadas de acordo com o feng shui e dissesse a Tracy que

estava indo para casa. Raramente levo comigo um celular, por isso não

dava para ligar para ela, até porque, com a discinesia, provavelmente eu

ligaria para Kuala Lumpur. O cara da porta, sentindo que eu ia embora,

resolveu agir. Ele atravessou a rua, parou bem perto de mim e continuou a

me encarar. Encarei-o de volta, mas com a cabeça chacoalhando.

- Está esperando alguém? - ele perguntou com a voz que parecia

um sussurro e os olhos meio perdidos nas órbitas. - Com quem você se

encontra aqui normalmente? - continuou. Ele cerrou os olhos, mordeu o

lábio e foi direto aos negócios. - Você quer comprar? - perguntou.

Todos os episódios de The wire que já assisti passaram pela minha

cabeça e então entendi. Por causa dos meus movimentos erráticos e olhar

para todos os lados, ele imaginou que eu era um viciado querendo comprar

drogas. Momentaneamente espantado e sem resposta, por fim consegui dar

uma testada pelos garotos e aprovada pelas mães:

- Vai se foder!

- Ei! - ele respondeu, levantando as mãos em um gesto pedindo

calma. - Tá tudo bem, não sou policial.

Eu já tinha uma resposta pronta:

- Ah... tá bom... então vai se foder!

Depois de vê-lo indo embora, finalmente voltei ao restaurante e en-

contrei Tracy pagando a conta. Disse a ela que, se por acaso quisesse um

aperitivo de heroína, eu sabia onde conseguir.

119

Page 121: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

CHICAGO • ILLINOIS -24 DE OUTUBRO DE 2006

Escolher investir tempo, energia e identificar-se com o processo

político é uma expressão de esperança. Se algo em nossa experiência

pessoal nos informou ou inspirou a acreditar que uma direção ou resultado

é melhor que outro, não só por questões individuais, mas para a sociedade

como um todo, colocamos aquela crença em ação através de ativismo,

defesa, apoio financeiro a um candidato, concorrendo a um mandato ou

simplesmente votando. Por esta razão a experiência política norte-

americana pode ser vista como um otimismo coletivo. A unanimidade é

rara, naturalmente, pois pessoas racionais (e outras nem tanto) são feitas

para discordar umas das outras. Acredite em mim, as coisas ficam meio

intensas quando se sacam as espadas e tudo que você tem na mão é uma

enxada.

A primeira vez que senti o peso das espadas foi quando Jackie e eu

tínhamos acabado de chegar em Chicago no voo da manhã, vindo de Nova

York. Pretendíamos ir direto para um comício e fazer uma aparição para

ajudar à major Tammy Duckworth, uma democrata que esperava ganhar a

cadeira de Henry Hyde no sempre conservador sexto distrito congressional

do subúrbio de Chicago. O plano era dormir de terça para quarta lá, ir a um

evento que não tinha nada a ver com política, um almoço de um doador em

prol da Fundação Michael J. Fox, e retornar a Nova York no final da tarde.

Como combinado, encontramo-nos com John Rogers, Kelly Boyle e Alan

McLeod. Durante nossos cumprimentos e apertos de mão, os três pareciam

malabaristas multimídia respondendo a uma ca-cofonia de apitos, sons e

tremores vindos de seus celulares, BlackBerrys e outros Smartphones.

Agora que estávamos fora do avião, Jackie tinha ligado o celular dela

também e, na mesma hora, ele começou a clamar por atenção. Pela cara de

todos, o tom urgente de seus sussurros e perguntas, e o fluxo furioso de

envio de mensagens de texto, era claro que alguma merda grande tinha

120

Page 122: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

acontecido.

Encontramo-nos com uma pessoa da campanha de Duckworth, que

nos levou até a uma minivan alugada. Caminhando rapidamente pelo

estacionamento, John inteirou-me da situação. Os conservadores tinham

feito uma resposta aos nossos comerciais, em especial ao da campanha de

McCaskill. Tínhamos antecipado que isso aconteceria, mas não ima-

ginávamos aue o ataque seria liderado pelo pitbull Rush Limbaugh. A

maior parte de seus programas dos últimos dias tinha sido dedicada não

tanto a ridicularizar os méritos do comercial ou falar das complexidades

éticas das pesquisas com células-tronco, mas focar em mim, falando as

piores coisas possíveis - e, pelo visto, sem parar. Até aquele momento, eu

não tinha a menor idéia disso - prefiro as rádios que tocam rock clássico e a

NPR.* Ele estava falando disso desde o primeiro comercial de McCaskill

que interrompera o primeiro jogo da final de beisebol, quando com certeza

estava se divertindo com o time de sua cidade, o Cardinals, vencendo o

Detroit Tigers. O argumento principal das reclamações dele, John e sua

equipe me contaram, era de que eu era um hipócrita, exagerando, atuando e

criando sintomas para provocar simpatia e pena no coração e na mente dos

eleitores.

- Mas em que diabo de situação você me colocou, John? -

resmunguei.

- Vamos esperar para ver aonde a coisa vai - ele respondeu.

Jogamos os restos de café morno do Starbucks fora quando chega-

mos ao estacionamento do hotel. Tínhamos uma manhã cheia pela frente.

Eu não conseguia pensar em ninguém mais apropriada que a major

Duckworth para passar aquela manhã, tendo em vista ter descoberto que

estava no meio de uma grande batalha. E, afinal, Tammy estava habituada a

grandes batalhas. Aqui estava ela, novata na política, uma democrata com

culhão de competir pela cadeira de Henxy Hyde no mais conservador

121

Page 123: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

subúrbio de Chicago.

_____

*Rádio Pública Nacional.(N.T.)

Menos de dois anos antes, a major Duckworth, de 38 anos, piloto da

Guarda Nacional, perdeu as duas pernas no Iraque, quando o helicóptero

Black Hawk que ela copilotava foi atingido por uma granada e caiu. Ela

acordou dez dias depois no Centro Médico do Exército Walter Reed, em

Washington, DC, e em agosto de 2005 decidiu concorrer ao Congiesso.

Com poucas chances em um distrito tradicionalmente republicano, aqui

estava ela, há menos de duas semanas da eleição, inesperadamente numa

disputa equilibrada com o oponente republicano Peter Roskam.

Antes de me encontrar com Tammy e a caminho da campanha, dei

as entrevistas de sempre para a imprensa local, uma para um jornal e outra

para a televisão. Minha equipe tinha me mudado do carro para uma sala no

hotel, onde iriam me preparar para as entrevistas. Em circunstâncias

normais, isso envolveria eu me inteirar das últimas novidades das pesquisas

e dos argumentos dos últimos debates pró e contra. Mas agora havia um

novo elemento em discussão. Como responder ao Rush?

- Vamos repassar isso mais uma vez. Ele disse que fiz o quê? -

perguntei.

- Que ou você fingiu os sintomas, ou não tomou os remédios de

propósito para filmar o comercial, pois assim os sintomas ficariam exa-

gerados -John respondeu.

- Espere aí, vamos voltar um pouco - retruquei. - Ele falou algo

sobre células-tronco, sobre os méritos das pesquisas ou sobre alguma

inverdade no que falamos no comercial?

- Disse basicamente apenas que você era uma fraude - Kelly res-

pondeu.

122

Page 124: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Percebi o canto de sua boca levantando de leve quando ela falou.

Ela está mesmo sorrindo?

- Ah - Alan interveio -, ele também disse que você ofendeu os elei-

tores do Missouri pronunciando Missoura em vez de Missouri.

Então sorri, e comecei a rir enquanto respondia:

- Você só pode estar brincando.

Um assistente de Duckworth bateu à porta. A repórter local da NBC

estava pronta para a entrevista em outra sala do hotel.

Em meu papel de defensor das questões relacionadas ao Parkinson,

tenho a responsabilidade principal de educar e informar, promovendo o

entendimento a respeito do que passamos como indivíduos e como

comunidade. Pela primeira vez, pelo menos que me lembre, minha

mensagem estava sendo contestada por alguém com tanta visibilidade e tal-

vez mais voz que eu, e, para piorar, ele estava ativa e entusiasticamente

disseminando a desinformação e promovendo a ignorância.

- Não temos certeza de que ela vai falar disso na entrevista -John

falou enquanto eu punha o terno e ela instintivamente arrumava minha

gravata.

- E se ela falar? - perguntei. Quero dizer, esse negócio era muito ab-

surdo. Decidi que a verdade era a melhor resposta. Eu não tinha ouvido

nem lido o que ele falara exatamente e não estava em posição de responder.

Enquanto ia sendo conduzido para a entrevista, dei uma checada em minha

condição física. Eu estava me sentindo muito bem esta manhã. Os

medicamentos tinham funcionado bem; meus passos estavam calmos, mi-

nhas mãos estavam firmes e, até agora, não tinha tido discinesia. Ótimo. Ou

será que não?

Eu sabia que simplesmente chamar as alegações de Limbaugh de

loucura seria perigoso. Se ele fosse louco, então era, perdoem-me a ex-

pressão, louco como uma raposa. Era a clássica provocação "quando você

123

Page 125: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

parou de bater em sua esposa" baseada não numa acusação, mas na

presunção de que algo sinistro tinha acontecido. Suas violentas críticas

tinham armado várias armadilhas para mim, e eu cairia nelas se não fosse

cuidadoso. A primeira estava logo à minha frente.

Como eu disse, estava me sentindo muito bem esta manhã. A meta

é sempre ficar o mais confortáveL possível, especialmente em público. Mas

será que agora eu não poderia ficar bem demais, tranqüilo demais -sem

sintomas demais? Eu não ia entrar em um círculo vicioso de merda, criando

sintomas para provar que não estava criando sintomas.

Acontece que os dois repórteres com quem falei não estavam intei-

rados por completo dos ataques de Rush, então quase não falaram, do

assunto diretamente, apenas de passagem e de forma indireta.

Aquela manhã recebi uma grande injeção de ânimo, quando final-

mente me encontrei com a major Tammy Duckworth, momentos antes do

comício. Seu sorriso acolhedor e sua natureza amável logo me deixaram à

vontade. Rapidamente estávamos trocando anedotas sobre nossas

respectivas experiências como políticos novatos em uma eleição. Ela foi a

primeira a falar da atenção que a direita conservadora estava dando a mim;

tendo ouvido Limbaugh no rádio, ela disse que "não podia acreditar

naquilo", apesar de também ter recebido acusações parecidas. Após

sabermos da saúde um do outro, ela me mostrou as próteses que usava em

cada perna, admitindo com um sorriso que agora era mais alta que eu,

graças às novas próteses.

Eu havia lido o material de campanha com a biografia da major

Duckworth e estava familiarizado com sua história. Assim, encontrar-me

com ela só poderia ser mesmo uma grande fonte de inspiração. Seu exem-

plo - transformar uma circunstância trágica numa oportunidade para servir -

põe em xeque o caráter dos detratores que a acusavam de usar sua

deficiência para despertar simpatia. Tenho pena de quem comete o erro de

124

Page 126: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ter pena de Tammy Duckworth. Ela é genuína. É óbvio que sua força é seu

espírito positivo. Ao olhá-la nos olhos, fica claro que ela acredita no que

está fazendo e que tem certeza de que - um otimismo informado -, se tiver a

oportunidade, vai mudar as coisas de maneira positiva, não só para os

veteranos com deficiências, de quem ela tirou a inspiração para concorrer,

mas para as pessoas da sua região, de seu país e do mundo.

Antes do acidente, ela não era uma pessoa "super otimista", afirma.

- Sou muito mais otimista agora que antes.

Ela conta que o tratamento nos campos de batalha avançou tanto

nos últimos dez anos que:

- Eu não teria sobrevivido se tivesse me ferido na primeira Guerra

do Golfo.

Infelizmente, a habilidade em tratar vítimas nos campos de batalha

não está no mesmo nível da nossa capacidade de cuidar delas quando vol-

tam ao país para se tratar e se reabilitar. Hospitais militares, associações de

veteranos e todo o sistema, já considerado por muitos terrivelmente

impessoal e ineficiente, está agora largado e quase a ponto de quebrar.

Tammy descobriu isso nos dias, nas semanas e nos meses que passou no

hospital sendo tratada dos terríveis ferimentos.

- Quando estava em Walter Reed, comecei a defender outros

pacientes, pois eu era a amputada de maior patente por lá durante bom

tempo

- ela me contou. - Então, sempre que precisavam de alguém para

falar pelos pacientes, eles me mandavam. Comecei conversando sobre a

burocracia existente e sobre como precisávamos nos livrar dela.

Testemunhei no Senado e na Câmara e, durante o processo, fui

transformada num ser politicamente ativo, mesmo sem nunca tê-lo sido

antes. O exército colocou-me nessa posição de ajudar outros pacientes e

então comecei a ligar para o escritório do senador Durbin dizendo: "Olha,

125

Page 127: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

temos um problema aqui ou um problema ali. Preciso de ajuda". Foi no

final do verão que o senador Durbin me ligou e disse que, se eu estava tão

chateada com o fato de as coisas não estarem andando, deveria me

candidatar. Em seguida, me sugeriu o distrito de Henry Hyde.

O comício estava sendo realizado no maior salão de festas do hotel,

que já estava lotado e repleto de sons de conversas e risos quando entra-

mos, com estilo. A major seguiu para o palanque em meio aos desejos de

boa sorte de apoiadores. Era difícil entender o que cada um dizia, mas é

suficiente dizer que ouvi bastante o nome "Ruslí", em geral acompanhado

de um palavrão ou dois. A imprensa estava acomodada em um lado

- havia umas doze càmeras de TV e o dobro ou o triplo disto de

fotógrafos. Mantive meu discurso curto, cora o foco em Tammy e nas

pesquisas com células-tronco. E, da mesma forma que nas duas entrevistas

que dera mais cedo, não mencionei Rush Limbaugh de modo específico. E,

na verdade, daquele ponto em diante, não disse mais o nome dele em

nenhum evento público, até o final da campanha eleitoral Eu não podia

deixar de apreciar o rosnado de aprovação quando fiz referência a "um

conservador sem compaixão" que falou contra os nossos esforços. Era uma

boa frase, por isso continuei usando-a nas duas semanas seguintes.

Fui para um hotel no centro naquela tarde; eu tinha um almoço no

dia seguinte com alguns colaboradores da Fundação Fox da região de

Chicago. A parte política da minha viagem estava cumprida. Mas claro que

minha mente continuava totalmente ocupada com a política.

Não há dúvida de que eu estava no limite. Estando quase de todo

aposentado nos últimos anos, fazia algum tempo que não recebia uma

crítica negativa, e acho que nunca recebera uma tão pessoal em toda vida.

Não era discordância, desaprovação ou mesmo desagrado. Isso era nojo e

ódio, o mesmo tipo de dura reprovação que vi receberem as pessoas que

nos últimos anos falaram contra a política do governo, apesar de seus

126

Page 128: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

comentários terem sido sobre a guerra e as ações do governo que levaram a

ela. Eu estava sendo difamado pelos caipiras desinformados defensores de

Bush.

Isso era novo para mim, e então percebi que sempre tinha gostado

do fato de as pessoas gostarem de mim. É estranho ver que um

representante da sociedade, com voz ativa e ligação com o poder, tem

trabalhado para gerar uma antipatia a você e está incitando suas bases a

deixá-lo de lado e também a ameaça que você representa. Será que eu ainda

faria os comerciais se tivesse uma idéia da ameaça que eles representariam

para minha reputação?

Com certeza. O que estava em jogo para mim como paciente e de-

fensor da causa era muito mais importante. Minhas opções eram o básico

"bater ou correr", e eu não pretendia correr, mas estava ansioso e um pouco

incerto ainda sobre como responder.

Meu plano imediato era pedir comida e bebida no serviço de quarto

e assistir a um jogo de beisebol. Enquanto esperava a hora do jantar para

dar prosseguimento ao plano, peguei compulsivamente coisas do frigobar,

fazendo um belo rombo em minha conta. Nada de bebidas alcoólicas, claro

- após passar quinze anos sóbrio, seria preciso mais que uma brisa de ar

quente vinda de Rush Limbaugh para me tirar dos trilhos. Mas acabei

pegando outras coisas: dois sacos de amendoins pela bagatela de oito dóla-

res cada, umas balas gelatinosas de limão cobertas com açúcar cristalizado

e alguns quadradinhos salgados com bolinhas de wasabi de um saquinho

todo escrito em japonês, a não ser pela palavra "SALGADINHO".

Houve também alguns telefonemas. A mídia sensacionalista, sen-

tindo o sangue na água, estava rodeando e esperando que alguém os

alimentasse com notícias. John me ligou para bolarmos uma declaração.

Respondi que ainda não tinha certeza.

- Vamos fazer o seguinte, camarada. Falarei em seu nome hoje e

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Page 129: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

direi algo bem genérico, mas pontual. Expressarei choque e grande desa-

pontamento pela ignorância das declarações e reafirmarei seu compromisso

de continuar falando em favor das células-tronco.

Estava bom para mim.

O telefone tocou de novo. Era minha mãe. Ela nem perguntou quem

estava falando; em vez disso, já foi logo perguntando:

- Tá tudo bem com você?

Algumas pessoas perguntam isto de um jeito, com aquela certeza na

voz de que você não está bem, que faz com que a gente examine nossas

extremidades e coloque a mão na testa para ter certeza de que estamos bem

antes de dar a resposta afirmativa.

- Mas que homem mais idiota! Estou tão brava que nem estou ra-

ciocinando direito.

- Está tudo bem, mãe.

- Ele é um ignorante. E não tem idéia do que está falando.

- É por isso que está tudo bem. Nenhuma pessoa séria pode levá-lo

a sério.

Enquanto conversávamos, ficou claro para mim que o que tinha dei-

xado minha mãe mais brava fora o instinto maternal normal de defender o

filho, sua lembrança do dia da gravação, de como havia ficado abalada de

me ver lutando contra a discenesia.

- Eu nem sabia que você ouvia o programa dele.

- E não ouço - ela disse, - Mas outras pessoas ouvem e me telefona-

ram. Então o vi imitando você na TV e fiquei louca de raiva.

U- Viu ele fazendo o quê? - perguntei. Ainda não tinha ouvido falar

dessa parte.

- Ele o estava imitando e tirando sarro de você. Ondulando, chacoa-

lhando e contorcendo-se no palco.

Jesus! Hunter S. Thompson estava certo. Quando as coisas ficam

128

Page 130: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

estranhas, o estranho definitivamente vira profissional.

Meu próximo telefonema foi com Tracy e durou tempo suficiente

para colocar minha cabeça no lugar. Sensível, ela não estava tão brava

quanto minha mãe, nem perplexa como eu ainda parecia estar.

- Parabéns! - ela disse. - Você conseguiu a atenção deles.

Tracy, como sempre faz, havia descoberto o ponto central da coisa.

Eu tinha conseguido a atenção não só de Rush Limbaugh e seus seguidores,

mas também de toda a mídia e público em geral que viram as reclamações

dele. A atenção criava a oportunidade de educar. Eu precisava pensar um

pouco mais em como capitalizar melhor essa oportunidade. Enquanto isso,

a declaração de John em meu nome era o primeiro passo na direção certa.

- É uma afirmação vergonhosa. É espantosamente triste que pessoas

que não entendem a Doença de Parkinson se sintam compelidas a fazer

esses comentários. Qualquer um que entenda a doença sabe que é por causa

dos medicamentos que um paciente acaba sofrendo de discinesia.

Na manhã seguinte, eu tinha um tempo livre antes do meu último

compromisso em Chicago - o almoço da Fundação para apoiadores locais e

pesquisadores. As palavras cruzadas do New York Times pareciam uma boa

distração, por isso abri a seção "Artes e Lazer". Procurando o tradicional

jogo de palavras em preto e branco, meus olhos passaram pela coluna de

Alessandra Stanley, a crítica de televisão do Times. Sua crítica ao nosso

comercial tinha o seguinte título: "Fazendo das células-tronco um assunto

pessoal e político", e era racional e criteriosa. Mesmo após ler apenas o

primeiro parágrafo, eu percebia inteiramente as emoções que havíamos

despertado nos dois lados da questão, de Richard Martin e suas pesquisas, e

de Limbaugh e seus seguidores.

As cenas são tão perturbadoras - e apreensivas - quanto as de um

vídeo de reféns no Iraque. Em um blazer azul e uma esnobe camiseta

Oxford, o ator Michael J. Fox pede calmamente aos telespectadores que

129

Page 131: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

apoiem as pesquisas cora células-tronco votando em vários candidatos

democratas em Maryland, no Missouri, e em Wisconsin, enquanto seu

corpo ondula para a frente e para trás incontrolavelmente, como um

marinheiro jogado de um lado para o outro por uma grande tempestade.

Em resumo, o sr. Fox mostrando os efeitos da Doença de Parkinson

em si mesmo transformou-se em um dos comerciais políticos mais fortes e

falados dos últimos anos.

Fiquei boquiaberto quando finalmente peguei o vídeo do programa

de Limbaugh antes de ir embora de Chicago. Ele mexia os braços e sacudia

os dedos ao mesmo tempo que balançava o corpo, rotacionando os ombros

e ondulando a cabeça.

[Michael J. Fox] está exagerando os efeitos da doença. Ele se mexe

para todos os lados e chacoalha, e isso é só uma atuação... isso é uma falta

de vergonha de Michael J. Fox. Ou ele não tomou seus remédios, ou está

representando.

Se a intenção dele era só me imitar e tirar um sarro do que chamou

de performance "sem-vergonha", acabou indo muito além de algo pessoal -

fez a caricatura de milhares de pacientes de Parkinson com os quais me

encontrei e trabalhei ao longo dos anos. Vi aquilo como uma afronta a eles

e suas famílias, e me senti na obrigação de defendê-los.

Previsivelmente, minha recepção no almoço da Fundação foi

calorosa e em tom de apoio. Até aquele momento, meu foco havia sido

apenas as denúncias feitas por Limbaugh e à direita em reLação ao

comercial e aos motivos por trás do meu envolvimento neles, mas agora eu

estava tendo uma visão do outro lado da coisa. As pessoas a favor das

pesquisas e a comunidade dos pacientes estavam chocadas e enojadas com

aquele ataque político. No avião de volta para casa e nos dois aeroportos,

descobri que as pessoas que me apoiavam iam muito além das que se

interessavam por Parkinson ou células-tronco. Na hora do check-in, na

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Page 132: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

verificação de segurança e na esteira de bagagens, as pessoas

aproximavam-se sempre com palavras de apoio. A mensagem consistente

que eu recebia era de que devia lutar contra aquilo. Apesar de apreciar o

sentimento, estava tomando cuidado para não me deixar levar e lutar a

batalha errada. Minha luta não era contra o conservador apresentador de

um programa de rádio, cuja intenção, entre outras coisas, era distrair a mim

e às pessoas da nossa mensagem, mas contra aqueles que estavam no poder

e lutavam obstinadamente para impedir o progresso das pesquisas

científicas que poderiam melhorar a vida de milhões.

Limbaugh não estava sozinho em suas objeções aos comerciais e à

minha participação neles. Previsivelmente, os representantes dos candi-

datos cujas posições anticélulas-tronco eram combatidas por meu anúncio

entraram na discussão; porém, eles não tinham como contornar os

indiscutíveis efeitos devastadores de uma doença catastrófica. A ironia é

que a única solução para isto era a pesquisa à qual eles se opunham tão

fortemente.

Durante as poucas horas da volta de Chicago para Nova York a

controvérsia apenas se intensificou. Parece que Limbaugh estava sentindo a

força da reação ao que tinha feito. Sua alegação de que eu tinha forjado os

sintomas para manipular os eleitores foi efetivamente contestada pela

explicação de John sobre discinesia. Primeiro, Limbaugh lembrara que no

meu primeiro livro contei que havia decidido não tomar meus remédios

quando fui fazer meu primeiro testemunho diante do Congresso para que os

legisladores pudessem ver os efeitos da doença na totalidade, sem ate-

nuantes. Ele brandiu este detalhe como se tivesse descoberto a América,

mas sua lógica era falha. Como Stanley explicava em seu artigo no Times,

"Se o sr. Fox não tomou mesmo seus remédios para fazer o comercial,

como sugere o sr. Limbaugh, isso não é considerado fraude: mascarar a

extensão da destruição da doença é, sim, uma ilusão; revelá-la, não".

131

Page 133: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Fazendo uma pequena correção, Limbaugh admitiu:

- Humildemente e com grandeza de coração, posso estar errado e

vou me desculpar com Michael J. Fox se errei em caracterizar como atua-

ção seu comportamento nos comerciais.

Surpreendentemente, talvez beneficiado por ninguém esperar nada

dele, isso foi visto por todos como um pedido de desculpas, ou pelo menos

o mais perto que ele poderia chegar de algo assim.

Seu próximo míssil foi, na minha opinião, lançado para atacar em

dois níveis diferentes. Já tendo deixado claro que eu era ator, e, portanto,

um tipo de ilusionista, ele agora fazia a próxima conexão lógica. Se o fato

de eu ser ator não significava necessariamente que estivesse fingindo os

siintomas, daria para apostar que eu era um liberal e, com isso, só podia ser

democrata. E então declarou:

- Michael J. Fox está deixando sua doença ser explorada e usa isto

para arrecadar dinheiro para os políticos democratas.

Amigos e associados de todos os setores da minha vida -

profissional, pessoal e médica - foram rápidos em corrigi-lo em todos os

aspectos, em todos e bom som e de forma convincente. Mais que isso,

membros da empresa fizeram piadas com as falhas que existiam nas suas

acusações. Keith Olberrmann, no MSNBC,* "divertiu-se" respondendo à

parte do privilégio aOS democratas, apontando o fato de eu já ter apoiado e

feito campanha para republicanos a favor de células-tronco em anos

anteriores.

Decidi que o que precisava fazer, mais que qualquer outra coisa, era

agarrar a oportunidade que se apresentava e usar bem os holofotes que

tinham sido direcionados para mim até a eleição, O único contra-ataque

aceitável a toda essa negatividade era fazer coisas positivas.

____

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Page 134: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

*MSNBC: Canal a cabo de noticias 24 horas (disponível nbos Estados Unidos e

Canadá) e Wbsite da Microsoft (MSN) e da NBC (rede de rádio e TVdos Estados Unidos).

Tarde da noite, no dia em que voltei de Chicago, Tracy encontrou--

me parado em frente à geladeira, com a porta aberta, encarando

perdidamente um pote de maionese, coisas que homens em geral não

fazem. Percebendo que eu não estava procurando por nada, apenas

preenchendo o momento com alguma atividade corriqueira, ela fechou a

geladeira gentilmente e me abraçou.

- Você deve estar exausto - ela disse.

- Sim, acho que sim - respondi. - Mas sinto-me verdadeiramente

calmo, sabe? Toda essa história, os comerciais, Limbaugh, células-tronco,

as eleições... Parece a tempestade perfeita. E estou no centro dela, no olho

do furacão, e sinto-me estranhamente calmo.

- Eu sei. E isso é ótimo - ela disse. - Acho que ê a primeira vez,

desde que conheço você, que não está preocupado por deixar alguém bravo.

Você é sempre muito diplomático. Mas, em relação a isso, você tem uma

grande convicção e não liga de verdade para o que os outros pensam, em

especial Rush Limbaugh.

- Eu ligo para o que você pensa - respondi.

- Penso que você precisa ir dormir. Bem pensado.

***

Minha condição física chamou a atenção para o custo humano

quando se falha em conseguir avanços nas pesquisas científicas, assim

como as lesões de Tammy Duckworth apontavam para o preço que alguns

pagavam pela nossa decisão de ir à guerra. Mesmo sendo bem articulados

em expressar nossas posições, é a parte muda de nossa mensagem, sobre a

qual não temos controle, que é irrefutável e, portanto, extremamente

133

Page 135: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

frustrante aos nossos críticos. Não quer lembrar as pessoas quão terrível é a

guerra? Basta não deixar a imprensa mostrar as imagens dos caixões

enrolados em bandeiras chegando do Iraque e caracterizar qualquer

comentário crítico sobre a guerra como falta de patriotismo

Levou bastante tempo para que eu superasse a idéia de que meus

sintomas e desafios físicos eram ofensivos a mim, mas nunca cheguei a

pensar de verdade na perspectiva de eles serem ofensivos às outras pessoas.

Como processar isso?

Em um artigo recente no New York Times intitulado "Claramente,

francamente, Imperturbavelmente com deficiência", Mireya Navaro

defendeu que "a imagem pública das pessoas com deficiência", que, "em

geral, eram mostradas como heróicas ou trágicas", está mudando. En-

trevistado para a matéria, o ator e duplamente amputado Robert David Hall,

que faz o papel de médico-legista na série CSI, declara: 'Antiga mente se

você tivesse alguma deficiência e fizesse TV, sempre era tocada uma

música suave de piano ao fundo". Gosto particularmente desta observação

porque ela mostra o que acontece mesmo lá dentro, o que as pessoas acham

que têm de fazer quando apresentam histórias de indivíduos com

deficiências. É mais ou menos a mesma coisa que os guinchos de violinos

na cena do chuveiro de Psicose - eles arrancam do nosso pensamento a

reação ao que estamos assistindo e a direcionam para nossas emoções. A

música certa colocada de fundo em uma cena de um cão feio/, pode nos

convencer de que estamos vendo um filhote. É desumanizaador,

marginalizador e fácil ver porque, como a srta. Navaro põe em um texto,

pessoas como Robert David Hall precisam reclamar. Se a sociedade é

encorajada a ver você de certa maneira, você vai aparecer com uma música

tema que não escolheu e provavelmente não adequada ao seu ponto de

vista. É algo que você precisa superar a cada batalha e em fatia experiência.

Porque um segmento da população é responsável não NÓ p< M como ele se

134

Page 136: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

sente, mas também por como você se sente em relaçãoo aos sentimentos

dele.

O artigo do Times citava também Kaylee Haddad, uma amputada

que estava em uma piscina comunitária do seu bairro, quando uma mãe nr

aproximou e pediu que ela colocasse as próteses de pernas de volta porque

estava "assustando a minha filha". A única explicação, ou talvez desculpa,

para a grosseria dessa mãe é o medo. Sem vontade ou sem saber como

explicar as deficiências para a filha, ela reage à srta. Haddad como se esta

fosse uma transgressora. Mesmo assim, parece ridículo se imaginarmos

uma mãe chegando a uma outra mulher normal na piscina e pedindo-lhe

para cobrir uma perna com a toalha porque ela está "assustando" sua filha

amputada.

NOVA YORK –

26 DE OUTUBRO DE 2006

Querendo que eu respondesse a Rush Limbaugh, de preferência no

ar, no programa dele, pedidos vinham de programas de entrevistas de rádio

- liberais e conservadores - e do que parecia ser milhares de programas de

notícias de TVs a cabo. Dois nomes que se destacavam entre possíveis

entrevistadores eram os de Katie Couric e George Stephano-poulos. Já falei

de George a você, e, além de ter sido entrevistado muitas vezes por Katie

quando ela fazia o The Today Show, moramos no mesmo bairro e sempre

nos encontramos quando levamos nossos filhos ao ponto do ônibus escolar

de manhã. Não os caracterizaria como amigos chegados, mas eu sabia que

ambos seriam inteligentes e justos, além de bem informados sobre

pesquisas com células-tronco.

Tenho idade suficiente para me lembrar de Walter Cronkite, o

homem mais confiável dos Estados Unidos (ele também tem ótima

reputação no Canadá), por isso pisar no estúdio do CBS Evening News no

135

Page 137: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

centro de Manhattan me deu mais simpatia ainda pela história e tradição da

instituição. Ouvi a voz de Katie, virei-me e lá estava ela, vindo me dar as

boas-vindas. Eu podia sentir o grande peso que estava sendo colocado

nessa pequena, mas determinada, transmissão. Eu entendia que era a notícia

mais quente do dia, e que por isso teria um bom espaço, porém, o que Katie

e seus produtores propuseram era extraordinário: os primeiros sete minutos

e os últimos seis minutos do programa. E, apesar de termos uma ligação

pessoal, eu estava preparado, pois se ela precisasse ser dura comigo, ela

seria.

E, confirmando o que acabei de falar, nos segundos antes de come-

çar as filmagens - com o diretor fazendo a contagem regressiva -, Katie

aproximou-se de mim e sussurrou:

- Agora preciso me esquecer de quanto gosto de você.

Após os comentários iniciais para a câmera, ela se virou para mim,

educada e profissionalmente, e perguntou:

- Como vai você?

Vamos ver. Eu já estava suando; minha assistente, Jackie,

convenceu--me a usar paletó esportivo sobre uma malha azul de caxemira

que estava por cima de uma camiseta. Meu respeito pelo senso de moda das

mulheres em minha vida, começando pela minha mãe, que deixava as

roupas no pé da minha cama, preveniram-me de protestar por estarmos no

meio de uma onda de calor. Agora, sob as luzes do estúdio, estética

tornava-se menos importante que absorvência. Tremendo

incontrolavelmente, tentei em vão estabelecer uma posição e manter uma

atitude física única e consistente, como um portão balançando com o vento,

esperando alguém passar-lhe o trinco. Em parte por desejo meu e em parte

pela própria inciativa, meu braço direito, em um movimento

semicontrolado, tentou segurar e conter minha perna esquerda cruzada por

cima do joelho direito. E eu sabia que, se minha mão não ficasse lá

136

Page 138: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

policiando a perna, um espasmo violento poderia levar a um chute no

queixo de Katie. Se essas coisas a distraíam, ela não demonstrou. Eu

também estava ocupado com algo que chamo de ""tremor central do corpo"

- algo como se alguém tivesse me dado um soco e atravessasse meu

estômago, me segurasse e levantasse pela espinha e depois me

chacoalhasse como se eu fosse uma bandeira.

- Estou bem, obrigado.

Katie começou perguntando dos sintomas, dando-me a chance de

corrigir as idéias erradas e de me dirigir aos obstinadamente ignorantes.

Levou quatro perguntas até Katie falar de um LImbaugh e suas alegações

de fraude. Ela fez o papel de advogado do diabo, apesar de usar uma versão

mais leve em respeito ao sentimento das pessoas, falando do ataque de

Limbaugh em termos mais razoáveis.

- Você poderia ter esperado um pouco antes de gravar o comercial,

quando estivesse com menos discinesia, por exemplo?

Minha resposta foi imediata.

- Bem, não há como saber quando isso aconteceria... Não é tão sim-

ples assim.

Vi isto como uma oportunidade de sair correta e necessariamente do

lado pessoal da coisa - isto não era só sobre mim.

Este é o motivo de fazermos isso. Não só as pessoas com Parkinson.

As pessoas com lesões da coluna também. As que têm um tempo mais

curto por serem portadoras de ELA, as crianças que nasceram com diabetes

juvenil. O que quero dizer é: potencialmente, pode haver respostas para

essas pessoas. Não estamos interessados em nos exibir e aos nossos

sintomas, pedindo compaixão ou algo assim. Estamos apenas determinados

a fazer com que a ciência siga em frente. Já faz um bom tempo. Nossa

situação não nos permite sentar e esperar.

Mudamos de assunto para explicar sobre a doença e, mais

137

Page 139: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

importante, sobre por que escolhi esse momento para falar. Fora o fato de

essa ser a primeira de muitas entrevistas de primeira linha que eu iria

conceder nas duas semanas seguintes, duas coisas em relação ao CBS

Evening News destacaram-se para mim. Foi a primeira e única vez, na

campanha e depois dela, que falei literalmente o nome de Rush Limbaugh.

(Acredito que a frase tenha sido: "Não dou a mínima para as desculpas de

Rush Limbaugh. E a segunda foi algo que Katie fez mais tarde, quando os

remédios fizeram efeito e os tremores mudaram para a espasmódica dis-

cinesia. Durante os contorcionismos de explicar um ponto de vista, meu

braço esquerdo soltou o microfone da lapela do terno. Sem nenhum pro-

blema, quase sem interrupção da conversa e nenhum olhar, ela se abaixou e

recolocou o microfone. Nenhum de nós comentou o assunto, mas foi um

gesto tão empático e automático, longe de algo por pena ou por defesa, uma

simples gentileza que me permitiu continuar com dignidade e explicar meu

ponto de vista, que era muito mais importante que a superficialidade da

minha condição física.

Eu sabia da ligação familiar que Katie tinha com a Doença de

Parkinson - seu pai era um portador. Ela falou sobre isso da mesma forma

que também comentou sobre seu apoio à Fundação no final da entrevista.

Mesmo assim, seria difícil para algum telespectador normal julgar que a

entrevista não tinha sido mais que honesta. Contudo, uma coisa ficou clara,

tendo ela conseguido ou não se esquecer de quanto gostava de mim - com

aquele simples ato de consideração, ela deixou claro quanto amava o pai.

NOVA YORK –

27 DE OUTUBRO DE 2006

138

Page 140: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

O impacto da entrevista feita por Katie Couric foi imediato e

poderoso. Minhas caixas de mensagens, de voz e de texto ficaram cheias.

Não foi surpresa que as comunidades de defesa dos pacientes de Parkinson

tenham apoiado e ficado gratas pelo tom equilibrado de nossa resposta.

Não se parecendo com uma defesa, nem atirando de volta com uma retórica

inflamada, tínhamos mantido o nível, uma abordagem do tipo resistência

pacífica. Inclusive Meg Ryan, uma velha amiga de Tr acy, ligou e

perguntou em tom de piada:

- Como é ser casada com Gandra?

Sou eu mesmo, Mahatma J. Gandhi.

Muita gente assistiu ao CBS Evening Show, e a audiência desse dia

registrou um salto significativo (um artigo recente de uma revista de Nova

York falando da carreira de Katie como âncora de notícias cita nosso

programa com um de seus pontos altos de audiência e de qualidade

editorial). Pessoalmente, senti grande alívio.

Com certeza eu não estava na minha melhor condição física - para

ser .sincero, eu estava uma merda. Mas uma merda diferente da que

apareceu nos comerciais de campanha, e, mais importante ainda, eu estava

pouco me lixando se minha aparência estava uma merda. Admiti a Katie:

- Não é legal ver quando fico mal... mas já vivi muitos anos com as

pessoas me achando bonito e as adolescentes pendurando fotos minhas nas

paredes. Já passei dessa fase.

Assistindo ao programa gravado, fui confrontado pelo preço físico

que estava pagando por meus esforços e pela certeza de que estava fazendo

uma boa troca. O espaço que Katie me deu para que eu pudesse defender

nossa posição de forma apaixonada, mas também de maneira calma e

diplomática, provocou grande contraste com a beligerância daqueles que

estavam tentando confundir a questão. Serviu para mudarmos o tom da

coisa.

139

Page 141: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

No fim da tarde daquele dia, John, eu e nossa comitiva seguimos

para os estúdios da ABC em Manhattan, para a próxima parada em nossa

agenda de aparições. George Stephanopoulos veio de sua base em

Washington, certamente tendo desejado que eu ainda estivesse em

Vineyard. Como eu imaginava, George queria abordar muito mais o ângulo

político da questão que o pessoal. Enquanto passava pelos rituais da

maquiagem nos bastidores, batia um papo com George sobre política e

família. Fisicamente, sendo sincero, eu tinha perdido qualquer pretensão de

tentar controlar ou calibrar os sintomas, e fui para a frente das cârneras

sentindo-me leve, que era o mais próximo do confortável que eu conseguia

chegar.

George começou com as fanfarronices do sr. Limbaugh. Ainda me

sentindo solto pela jovialidade da conversa dos bastidores, fui direto para a

ridicularizarão da premissa de Limbaugh:

- Quando ouvi a resposta dele, disse algo como: "Quê? Tá

brincando, né?". Foi algo do tipo: "Não, isso não é possível".

- Mas sua mãe ficou brava - George contrapôs.

Respondi que sim e fiz alusão a quão bravas as mães irlandesas po-

dem ser.

- As mães gregas também - ele completou.

A maior parte do que se seguiu foi um bate-papo político, detalhan-

do posições de campanha, métodos e táticas. Mas outra referência a

Limbaugh me levou de volta a um tema que eu já havia tocado antes e que

se tornou parte importante da minha mensagem nos dias seguintes - a fé

intrínseca que temos em nós mesmos, como norte-americanos, de fazer a

coisa certa. Também falei de quão irônico era o fato de que, às vezes, as

pessoas que mais acreditavam nas possibilidades para o futuro também

eram as que tinham maior motivo para dúvidas.

- Vou ter de falar mais uma vez de Rush Limbaugh - alertou

140

Page 142: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

George. - Uma das coisas que ele diz é que, ao falar sobre todas essas

curas, você está dando falsas esperanças às pessoas, e isto é algo cruel.

- O que é mais cruel? - perguntei. - Não ter esperança ou tê-la? E

não se trata de uma falsa esperança; trata-se de uma esperança informada.

Dois passos à frente e um passo atrás, entende? É um processo. E como

este país foi construído. E o que fazemos. Todavia, parece-me que nos

últimos oito, dez anos, simplesmente paramos. Perdemos nossa curiosidade

e ambição. E a esperança, bem, a esperança é... -Meu entusiasmo tinha me

carregado a uma referência patriótica que faria Emma Lazarus se revirar no

caixão. - ... Não quero parecer muito sentimental em relação a isso, mas

não é o que nos mostra aquela pessoa na baía com seu jeito? - Fiz um

movimento entusiasmado com o braço, fingindo carregar uma tocha

imaginária em alusão à Estátua da Liberdade, e então concluí: -

Caracterizar a esperança como uma doença ou uma falha de caráter é, para

mim, ir contra o que caracteriza nosso país.

Mesmo enquanto a entrevista ia chegando ao fim, Rush Limbaugh

ainda aparecia no retrovisor. Ele havia nos dado um bom empurrão e

estávamos prontos para pegar essa estrada. Vamos ser sinceros aqui: esse

episódio todo, mesmo tendo sido bem desagradável, também foi um

presente, da mesma maneira que descrevi o Parkínson como um presente

também. Você sofre o baque inicial, mas aproveita a oportunidade que se

apresenta depois.

- A noção de esconder as coisas... é isso o que dá nos nervos. Sentir

a necessidade de esconder seus sintomas é a chave para entender o que os

pacientes de todas as doenças, em especial de Parkinson, têm de enfrentar.

Temos de esconder e esconder... Não deixe ninguém ver, não deixe que

pensem que está bêbado, não deixe que pensem que você é incapaz, que é

instável, que não tem firmeza, que é inválido, que não tem valor. Mascare

tudo. Esconda tudo. Disfarce... Mas temos de levar outras coisas em conta.

141

Page 143: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Levamos muito a sério nossas responsabilidades como cidadãos, nosso

senso de ética e, mais uma vez, nossa espiritualidade e nossa participação

no governo. Levamos isso tudo muito a sério. E isso tudo não pode ser

descartado apenas porque temos um problema que nos leva a determinado

caminho de ativismo.

Para finalizar, George perguntou:

- E você estará em campanha na semana que vem?

- Sim - respondi. - Estarei por aí.

Vox Populi

CIDADE DE NOVA YORK • DIA DA ELEIÇÃO

7 DE NOVEMBRO DE 2006

Eu adoro votar, e não só no amplo sentido de exercer minha

participação como representante da democracia, mas porque gosto

mesmo. Nos poucos anos desde que me naturalizei, o simples ato de votar

transformou-se num ritual de afirmação pessoal.

Acordo mais ou menos uma hora antes do início da votação,

deixando bastante tempo para que minha medicação faça efeito. As

crianças, já sentadas em volta da mesa e arrumadas para a escola, ainda

estão meio sonolentas. Tracy faz as vezes de chefe de cozinha, enquanto eu,

com aquele barulho de páginas virando, vasculho o Times, o Post, o News

e o USA. Today atrás de alguma notícia de última hora que possa mudar

algo nas disputas mais importantes. Discutir política com as crianças é

possível de vez em quando. Mas, de manhã, cedo assim, elas não vão se

lembrar de nada - apesar de perceberem as dicas de Tracy e tirarem um

sarro do meu entusiasmo em praticamente correr para a porta e sair em

uma fria manhã de novembro. E elas tinham razão em me lembrar de que

142

Page 144: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

eu não tinha pressa; no caminho para a escola delas, passamos pela

igreja, que é nosso local de votação, e elas sabem que pela manhã não

existem filas nem montes de pessoas. Mas elas não entendem que não é por

isso que fico entusiasmado.

Satisfeito com meu progresso lento e firme, caminho os quatro

quarteirões até meu local de votação com as mãos enfiadas nos bobos

quentes do meu casaco. A aglomeração da manhã ainda não começou. O

tráfego ainda está bom. As únicas coisas se movendo com algum

entusiasmo são as folhas amarelas e vermelhas, empurradas através da

avenida pelo vento e dançando na calçada à minha frente.

Surpreendentemente, não sou o primeiro a chegar ao meu local de votação

esta manhã. Quando subi as escadas da igreja, um casal de vizinhos, já

tendo votado, ofereceu sorrisos a mim e depois chamou táxis para ir para

o trabalho. Lá dentro, fiquei novamente sozinho, a não ser, è claro, pelos

voluntários que trabalham na eleição. A princípio, eles parecem meio

amuados, porém, quando olham bem e me reconhecem, oferecem-me

sorrisos e abraços e brigam para ver quem vai me levar ã cabine de

votação e me explicar sobre como funciona a coisa. Imagino que não é

todo mundo que recebe esse tipo de tratamento, mas seria legal se fosse

assim.

E gosto até das antigas máquinas de votar usadas na nossa seção.

Meus remédios já fizeram, efeito completo a essa hora, mas minhas mãos

tremem o suficiente para que a escolha dos candidates seja algo a. fazer

com cuidado, e puxara altiva nca final significa que meu pé tem de esta na

posição correta para balancear o corpo.

E então acaba.Joguei minha pedrinha no oceano e esperava que,

ao longo do dia milhões de outras pessoas também jogassem as delas.

Nenhum de nós sabe qual pedrinha gera a. crista da onda, mas cada um

acha, com razão, que pode ser a sua; é um ato de fé.

143

Page 145: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

No dia 19 de julho de 2006, assisti, em um trailer de maquiagem

em Los Angeles, ao presidente Bush vetar o H.R. 810. O projeto de lei,

criado para amenizar as restrições introduzidas pelo presidente cinco anos

antes, tinha sido aprovado nas duas Casas legislativas, a Câmara e o

Senado. O veto afetou meu futuro de longo prazo e minha disposição

imediata. Desapontado e frustrado, fiz as contas básicas; se tudo se resumia

a números e faltavam alguns votos no Congresso para atingir uma maioria

que fizesse com que o veto não fosse possível, nós, a comunidade dos

pacientes, poderíamos levar nosso caso ao povo norte-americano. E foi o

que fizemos.

Eu me envolvera em dezenove campanhas para deputados ou sena-

dores e agora, 111 dias depois, na minha casa em Nova York, ia descobrir o

resultado dos meus esforços.

Mesmo sem o componente político, a temperatura em nossa casa,

nessa época do ano, é sempre muito alta. Primeiro temos o Dia das Bruxas,

depois do qual minha energia é aumentada artificialmente pelo monte de

doces que meus filhos ganham e que comemos. Com a escola já bombando,

a quantidade de lições de casa das crianças está no nível máximo. O

aniversário de Esmé é no dia 3 de novembro, e, este ano, ela anunciou que,

para entrar no clima do tema da festa, será Peter Pan e vai aprender a voar.

E esta semana é também a que a Fundação Michael J. Fox faz tradi-

cionalmente seu evento anual de arrecadação de fundos em Nova York -o

chamamos de "Aconteceu uma Coisa Engraçada no Caminho da Cura do

Parkinson". Uma das maiores tarefas da nossa equipe é conseguir en-

tretenimento de primeira. Não sei se isso pode ser atribuído diretamente ao

fato de eu ter feito campanha naquele ano, mas Sheryl Crow, que além de

ser ativa politicamente ainda é, como Claire McCaskill e Rush Limbaugh,

nativa do Missouri, voluntariou-se com entusiasmo para se apresentar, do

mesmo jeito que fizeram Elvis Costello, Axl Rose e Denis Leary.

144

Page 146: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

O dia da eleição foi estranhamente anticlimático. O que quer que

acontecesse, sentia-me bem com o que tinha feito e com o porquê de tê-lo

feito. Recebi muitos convites para participar de festas e celebrações de

vitória em Nova York e em muitas outras cidades e Estados nos quais

fizera campanha nas últimas semanas. Mas eu estava cansado e muito feliz

de estar em casa na companhia da minha família, com a qual tinha passado

pouco tempo junto ultimamente.

John me ligou ao longo do dia com novas informações de várias

praças. As coisas pareciam bem para a maioria dos candidatos que tínha-

mos apoiado. Algumas eram surpresas bem agradáveis. Na Virgínia, por

exemplo, Jim Webb parecia que ia ser mais que mero incômodo. Para

outros, no entanto, as previsões não eram tão boas. Tammy Duckworth,

apesar de chegar mais perto de ganhar do que todos poderiam esperar,

provavelmente ficaria no quase.

Naquela noite, depois do jantar, as meninas estavam ocupadas com

a lição de casa e de vez em quando vinham me pedir ajuda. Estavam mais

felizes por eu estar em casa que curiosas a respeito de eu não ter estado lá

tanto nos últimos tempos. Sam via algumas prévias comigo e Tracy. Ele me

surpreendeu com o tanto que sabia sobre a questão das células-tronco e

sobre as maquinações políticas que fizeram com que eu me envolvesse

nisso. Sem eu saber, ele e os amigos vinham prestando atenção e discutindo

acerca de toda controvérsia com Limbaugh. Todavia, mais que a extensão

do conhecimento dele, eu estava especialmente impressionado com sua

imparcialidade. Ele não estava na defensiva nem me protegendo; era

apenas inteligente e engraçado. Ele nos dava exemplos do que esse disse ou

do que aquele outro falara, explicava por que eram hipócritas e,

implicitamente, quanto ficava, orgulhoso de mim por irritá-los.

Conforme as votações foram, se encerrando na Costa Leste, ficou

ii,iro que esta havia sido uma boa noite para os democratas em geral C

145

Page 147: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

também para os candidatos a favor das células-tronco. Por volta de

23h30, Sam e Tracy foram dormir. Ele tinha escola de manhã cedo e Tracy,

é claro, tinha de acordar cedo para acordar Sam.

Fiquei sozinho na sala, no escuro, a não ser pelo brilho leve da tela

da TV, com uma abóbora de plástico como companheira, da qual eu retira-

va vez ou outra uma bala ou um doce. Se tinha achado a maior parte do dia

anticlimática, as últimas horas foram recheadas de suspense. E tudo se

resumia a uma disputa para o Senado. O vencedor representaria que os

democratas teriam a maioria ou, se o candidato republicano ganhasse, que o

número de cadeiras seria igual e o vice-presidente Dick Cheney teria o voto

de minerva quando as votações terminassem empatadas. Era algo histórico.

Era a eleição da cadeira do Senado do Missouri. E era a vitória de

Claire McCaskill, a primeira candidata para a qual fiz campanha e para

quem gravei o comercial que gerara tanta controvérsia e incitara a dis-

cussão nacional em relação às células-tronco, que nós, da comunidade dos

pacientes, tanto queríamos que ocorresse. Ela estava atrás o dia todo, mas

com margem tão pequena que não dava para afirmar nada. As entradas ao

vivo da TV no seu comitê de campanha mostravam seus apoia-dores e

voluntários entusiasmados e otimistas mesmo assim; e, sentado em meu

sofá em Nova York, eu entendia o porquê. McCaskill tinha ido mal na parte

rural do Missouri - o que já era esperado -, porém, os últimos locais a

serem divulgados seriam Kansas City e St. Louis. E, quando finalmente

saíram, colocaram-na na liderança.

Peguei o controle remoto, desliguei a TV, recostei-me no sofá e fe-

chei os olhos. Quando acordei de manhã, exatamente na mesma posição,

tenho quase certeza de que tinha um sorriso na cara.

146

Page 148: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

PARTE TRÊS

Hell hath no fury*

Todos os anos, durante parte do verão, minha família aluga uma

casa no subúrbio de Long Island, mais ou menos a um quilômetro da praia.

É nessa época que as crianças estão em acampamentos ou envolvidas em

alguma atividade. No final de uma manhã, Tracy tinha ido andar de

bicicleta e eu estava descansando na varanda, lendo. Ao ouvir o barulho de

passos nos cascalhos da entrada, levantei o olhar e vi um jovem casal, ela

num vestido simples e sóbrio e ele usando terno e gravata, caminhando em

direção à casa. Encontrei-me com eles na entrada da varanda, já sabendo, é

claro, que eram Testemunhas de Jeová. Eles se apresentaram como tais e

me entregaram um livreto.

147

Page 149: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

___

* Numa tradução livre, a expressão significa: “Não existe ódio maior que o de uma

mulher mal-amada.” (N.T.)

De acordo com práticas familiares e costumes da maioria das pes-

soas que conheci durante a vida, meu próximo movimento seria dizer "Não,

obrigado", e fechar a porta educadamente, mas de maneira firme. Duas

coisas evitaram que eu fizesse isto. Primeiro, simplesmente porque já

estávamos lá fora e eu não tinha uma porta para bater na cara deles, mesmo

que quisesse fazê-lo. Segundo, porque eu estava curioso. Que tipo de

mensagem pode ser tão poderosa a ponto de compelir essas pessoas a usar

suas roupas de igreja em um dia quente de agosto e andar a pé de casa em

casa, sem ser convidadas, falando com gente que não quer saber delas e

passar uma mensagem que ninguém quer ouvir:' O que faz isso ser tão

importante para elas? Essas pessoas são guiadas pela esperança,pela fé,

pelo medo por mim ou por elas mesmas? Fiquei tão surpreso quanto elas

quando as convidei a se sentar na varanda. Elas tiveram uns quinze minutos

para contar sua história.

E o que se seguiu foi o papo de sempre, aquele em que não havia

como eu tentar fazer o casal mudar de idéia. Mas houve um momento

interessante, quando o marido, após trocar alguns olhares com a esposa,

perguntou um pouco nervoso se eu era Michael J. Fox. Confirmei que era e

tive de perguntar como dois seguidores dessa fé em particular poderiam me

reconhecer da televisão ou dos filmes se, pelo que eu sabia, esses

passatempos eram proibidos? Não tendo respostas à minha pergunta, eles

mudaram o rumo da conversa da sua transgressão para a minha salvação.

Você pode entender que minha disposição em ouvi-los era uma expressão

da minha fé, de meu instinto de que é sempre bom dar algo se eu tiver

como. Gosto de pensar que sou aberto a outras pessoas, que não tenho

148

Page 150: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

medo de novas idéias. Seria muito difícil que naqueles poucos minutos na

varanda eu pudesse ser coagido a entregar minha alma, por isso não havia

nenhum problema em eu dispensar alguns minutos do meu tempo a eles.

Essa era uma oportunidade de ouvir o ponto de vista deles, não de defender

o meu. Tudo que precisei fazer foi sentar e escutar.

Ouvir pessoas exporem crenças diferentes das minhas é algo infor-

mativo, não ameaçador, porque a única coisa que pode mudar minha visão

de mundo é uma verdade inegável, e, ao contrário do que Jack Nicholson

diz em Questão de honra, "eu consigo suportar a verdade".

Nas semanas seguintes, várias vezes quando eu voltava para casa da

academia, da quadra de tênis ou da praia, Tracy me dizia que meus amigos

tinham passado por lá ou eu achava sinais de que tinham estado lá - pan-

fletos novos na varanda.

Ao participar das eleições, como fizera no outono anterior, eu havia

pedido às pessoas que me deixassem entrar em suas varandas durante um

ou dois minutos e que escutassem o que eu tinha a dizer. Eu usava um

paletó e uma camisa, falava polidamente e era sincero em minha promessa

de respeitar o ponto de vista delas. Muitos me permitiram esse privilégio.

Alguns me viram como invasor e soltaram os cachorros em mim, rangeram

os dentes e latiram alto o suficiente para afogar o som da minha mensagem,

afastar-me, ou as duas coisas. Fiquei gratificado e inspirado pelo fato de

tantos norte-americanos terem se sentado e ouvido o que eu tinha a dizer,

descobrindo alguma verdade naquilo.

Se ouvir é uma expressão de otimismo, pode-se dizer que os

resultados da eleição de 2006 demonstraram uma crescente maré de

otimismo no país e talvez nossa crescente fé no próximo. Sempre

considerei a fé um aspecto ou uma faceta do otimismo, e algo semelhante a

um primo, ou talvez até sinônimo, de esperança. Uma discussão da fé como

religião já é mais assustadora. Não fiz ou mantive amigos ao oferecer

149

Page 151: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

minhas opiniões e atitudes em relação à religião. Não sou teólogo,

seminarista, nem estudante do divino. Não tenho argumentos para as

pessoas que vêem nas religiões organizadas um modelo de vida ou uma

obrigatoriedade de como viver a vida de acordo com crenças

preestabelecidas. Dê espaço às pessoas para que elas, nas leis de uma

sociedade civilizada, acreditem ou não no que quiserem.

Tive muitas experiências religiosas ao longo dos anos - boas, más e

médias -, com vários tipos de dogmas e denominações, mas nunca fui um

discípulo obediente e constante de alguma fé com "F" maiúsculo. Correndo

o risco de parecer new-age demais, considero-me uma pessoa espiritual.

Abençoado demais para ser agnóstico, acabei aderindo a um código de

ética pregado pelas doutrinas básicas das maiores disciplinas monoteístas:

"Faça aos outros o que gostaria que os outros fizessem a você", "Não

julgue se não quiser ser julgado", e mais tuna meia dúzia de Mandamentos.

"O oposto do medo é a fé é um ditado que ouvi muito quando parei

de beber. O sentido é de que o medo paralisa ou talvez nos faça regredir,

fazendo com que você dê um passo atrás na defensiva, enquanto a fé

inspira progressos. Fico imaginando porque o medo é tão proeminente em

nossas discussões e práticas da fé. Falamos em temer a Deus como uma

coisa boa - e ser temente a Deus como um estado desejável. Sei que não

sou o primeiro a dizer isto, e pessoas mais inteligentes já fizeram exames

mais profundos sobre o assunto e expressaram-se de forma mais eloqüente,

mas isto não faz sentido para mim. Vai contra nossa essência e, acho,

confunde medo com respeito. Como forma de motivar as pessoas, cultivar

o medo é mais fácil que investir tempo e esforço necessários para

engendrar o respeito. Respeito requer grande conhecimento, e, pela minha

experiência, quanto mais conhecimento tem, menos medo você sente.

No ano entre ser diagnosticado com Parkinson e parar de beber, eu

considerava ficar totalmente sóbrio, mas temia a vida sem o compreensivo

150

Page 152: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

amortecedor do álcool. O que acabei percebendo depois de uma sobriedade

disciplinada é que meu medo nada tinha a ver com o álcool ou com a falta

dele. Tinha a ver com minha falta de autoconhecimento. Assim que fui

adquirindo um conhecimento mais íntimo de mim mesmo, por que fiz as

coisas que fiz, quais eram meus ressentimentos e como poderia me dirigir a

eles, meu medo começou a diminuir.

O mesmo vale para o Parkinson. A época que mais temi a doença

foi quando menos entendia dela - nos primeiros dias, meses e anos após o

diagnóstico. Pode parecer estranho dizer isto, mas tive de aprender a

respeitar a Doença de Parkinson. Em vez de ser reativo, comecei a ser

proativo, lendo todos os materiais disponíveis sobre o assunto,

encontrando-me com médicos, cirurgiões, pesquisadores e, finalmente,

após vários anos de medo prolongado, com colegas pacientes e membros

de nossa comunidade. Respeitar, entretanto, não quer dizer tolerar. E só se

pode derrotar um inimigo que se respeita e conhece plenamente, em todos

os sentidos.

Entender que Parkinson é um processo neurológico, mesmo sendo

destrutivo, despersonaliza a coisa e a faz ser menos sinistra. Da mesma

forma, ficar sóbrio e estar na companhia de outras pessoas com o mesmo

problema, pessoas das quais eu gostava e pelas quais tinha muita

consideração, deixava claro que o alcoolismo era mais uma falha moral que

uma doença física. Então, mesmo que minhas experiências com o álcool e

o Parkinson tenham, de muitas maneiras, me levado a enxergar a vida de

forma mais espiritual, não troquei meu temor do Parkinson por temer a

Deus. Em vez disso, meu respeito pela Doença de Parkinson transformou-

se em respeito por um poder superior.

Quando eu ainda estava crescendo, o que me confundia na religião

em relação ao fogo do inferno, o enxofre e as variações do diabo era que o

mal parecia ficar com todo o respeito, enquanto Deus ficava com a parte do

151

Page 153: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

temor. Quando era criança, em Vancouver, mal podia esperar pela última

semana de agosto, quando íamos à Pacific National Exhibition, uma grande

feira estadual. Havia vários brinquedos, bolos e algodão--doce e exibições

agrícolas e de trocas. E por toda a feira havia atrações e apresentações para

promover vários grupos sociais e de serviços, incluindo organizações

religiosas. Quando eu tinha 8 ou 9 anos, uma igreja evangélica estacionou

um ônibus escolar reformado, pintado com cores vivas, ao estilo do da

Família Dó-Ré-Mi. Ao lado, montaram alguns brinquedos e colocaram uns

bancos para que os pais se sentassem enquanto os filhos se divertiam. De

modo inevitável, a maioria das crianças achava o caminho das escadinhas

do ônibus e entrava. Lá dentro, uma aula sobre a Bíblia acontecia

continuamente. O interior do veículo, em vez dos bancos normais, tinha

cadeiras pequenas, as paredes e janelas cobertas com papéis com temas

religiosos e educacionais, parecendo, assim, uma sala de aula em miniatura.

Quando subi as escadas e entrei, senti um cheiro meio sulfuroso. Um

homem do outro lado do veículo aproximou-se de um grande cinzeiro de

baquelite. Falando às três ou quatro crianças que |.'i estavam lá, ele acendeu

um palito de fósforo e deixou a cabeça virada para baixo, fazendo com que

a chama consumisse todo o palito. Com a i mira mão pairando pertinho do

fogo, ele disse:

Não quero chegar mais perto disso, senão vou me queimar. E isso

me machucaria, não?

A jovem audiência concordou nervosamente.

- Agora imaginem milhares desses queimando cada parte do seu

corpo, cada centímetro da sua pele. Vocês gritariam de dor. Bem, crianças,

é assim que é o inferno. E dura por toda a eternidade. Mas a boa notícia é

que...

Não fiquei lá para ouvir a boa notícia.

Basicamente, toda aquela produção pareceu uma coisa sem sentido

152

Page 154: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

para mim. Já tinha ouvido meus pais, professores e técnicos de hóquei

explicarem as coisas de maneira efetiva, ensinarem-me lições e valores sem

ter de me amedrontar tanto. Minha curiosidade foi mais a respeito de saber

por que um adulto perderia tempo e energia assustando crianças com uma

caixa de fósforos. Por que não falar apenas de quão maravilhoso era o

paraíso? Pensando agora, a resposta é óbvia. Para uma criança de 9 anos, o

paraíso era do lado de fora daquele Ônibus Bíblico - a distância de alguns

passos que levava aos brinquedos, ao barulho, ao mistério e ao crepúsculo

de um dia de verão. Além da feira, havia muitas outras interações com o

paraíso - acampamentos, jogos de hóquei ou até mesmo se inclinar durante

a aula para sentir o perfume do xampu da garota sentada à sua frente.

Nunca me ocorreu que esses prazeres fossem recompensas por eu ter sido

um bom menino, da mesma forma que não pensei que teria de reestruturar

minha vida para evitar uma eternidade sendo queimado e transformado em

churrasco.

Se isso parece petulante, presunçoso ou desrespeitoso, não era mi-

nha intenção. É óbvio que há uma grande sabedoria, beleza e relevância

nos ensinamentos teológicos milenares encontrados pelo mundo todo. A

questão que estou levantando é: por que esses grandes temas e opiniões

extremas não encontram ressonância em mim? Nunca engoli o conceito.

Talvez eu seja parte de uma pequena minoria, mas não acho que seja o

caso.

Enquanto assistia à TV numa noite do último verão, vi um homem

que, até pouco tempo vivia daquele jeito - igualando

a fé ao temor. Pregador poderoso, com uma congregação com

milhares de pessoas, o bispo Carlton D. Pearson descrevia ao entrevistador

do programa 20/20 da ABC uma epifania que mudara a vida dele.

Aconteceu enquanto ele assistia a uma reportagem sobre a terrível situação

dos refugiados de Ruanda.

153

Page 155: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Lembro-me de pensar que eles deviam ser muçulmanos, pois Deus

não deixaria aquilo acontecer com cristãos - ele disse. - Foi quando falei

em voz alta: "Deus, como pode, como você pode ser chamado de Deus

amoroso e Deus da vida e deixar que sofram desse jeito, e depois deixar

que vão para o inferno?". Então ouvi uma voz dentro de mim dizer: "Você

não está vendo que eles já estão no inferno?".

Ele internalizou essas palavras como uma mensagem de amor e

inclusão em rejeição aos julgamentos e às condenações. O inferno não

existe.

Para mim, assistindo ao programa da minha sala de estar, isso não

era uma "grande novidade". Nunca vi a vida como uma prova na qual você

ganha pontos suficientes para passar a eternidade nas nuvens, ao lado

direito de Deus, ou deméritos bastantes que o amaldiçoem a uma

eternidade como ator de um filme escrito por D ante e dirigido por

Hieronymus Bosch. Nunca vislumbrei um Deus tão chato que precisasse

brincar conosco como se fôssemos ratos em um labirinto para poder se

divertir.

Mas para o bispo Pearson, considerando as ramificações pessoais,

políticas e espirituais de alguém na posição dele, um soldado de Deus e

salvador de almas, o diabo sempre fora parte proeminente de sua retórica e

formara a visão religiosa que ele tinha do mundo.

- Eu esperava diabos, esperava demônios, via-os em todos os luga-

res... Isso era grande parte da minha vida - ele disse ao This American Life,

da NPR. - O diabo era tão presente e grande quanto Deus. Ele dominava a

maioria das pessoas e no final iria ficar com boa parte delas. Os demônios

estavam em todos os lugares, nas igrejas e escolas, tudo era do diaibo.

Então, se você acredita na coisa, vivera essa coisa.

Eu estava vidrado enquanto ele contava ao 20/20 as conseqüências

de dividir sua epifania com a congregação de sua igreja, a Higher Dimen-

154

Page 156: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

sions. Os líderes da igreja e a comunidade evangélica de sua cidade natal,

Tulsa, em Oklahoma, e também do restante do país, condenaram-no por

sua blasfêmia. A retórica e a punição deles parecia algo das escrituras.

- O corpo de Cristo deve ignorá-lo a partir de agora. Não o apóiem,

não o reconheçam, não compareçam aos seus eventos e não dignifiquem a

posição dele com seu tempo e energia. E, quando necessário, protejam os

desavisados das pregações dele - decretou o presidente da Associação

Nacional dos Evangélicos, Ted Haggard.

O mesmo Ted Haggard, obstinado oponente do casamento gay, ad-

mitiu em novembro de 2006 que recebera uma massagem de um homem de

Denver, que declarou outrora ter havido um negócio de sexo pago entre os

dois por mais de três anos. Haggard também admitiu ter comprado

metanfetamina graças às conexões do mesmo homem. E ele foi perdoado

pela maioria das mesmas pessoas que endossaram o pedido de Haggard

para que renunciassem ao bispo Pearson. James Dobson, fundador do

Focus on the Family, disse sobre Haggard:

- Ele continuará sendo meu amigo mesmo se as piores alegações se

mostrarem verdadeiras.

Os perdões e as preces deles podem ter salvado Haggard do inferno,

mas Carlton Pearson diria que Haggard já estava vivendo no inferno por

causa de sua hipocrisia, homofobia e humilhação.

Por outro lado, o bispo Pearson perdeu sua igreja e também o

respeito e o apoio das pessoas que havia conhecido, servido e adorado

durante a vida. Não era como uma vertiginosa queda em desgraça; era um

salto para a desgraça ou para a graça divina.

Para mim, os avisos de Haggard eram razões suficientes: eu tinha

de me encontrar com o bispo Pearson. Superficialmente, parecia não haver

conexão entre nós. Não poderíamos ser pessoas mais diferentes. Ele é

negro: eu sou mais branco que um pão de forma. Ele é evangélico e vive

155

Page 157: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

no Cinturão Bíblico, região dos Estados Unidos onde a prática

fervorosa da religião protestante evangélica faz parte da cultura local; eu

sou um protestante relapso que freqüenta uma sinagoga de judaísmo

reformista (ou progressista) em Nova York. Contudo, da mesma forma que

me identifico com FDR pela declaração "a única coisa que devemos temer

é o próprio medo", fiquei impressionado com a coragem do bispo Pearson

em atacar o medo. Só posso ler a respeito de Franklin Roosevelt, mas com

um pouco de esforço e alguns (imagino que inesperados) telefonemas,

poderia marcar um encontro com o bispo.

TULSA, OKLAHOMA • DEZEMBRO DE 2007

Depois de seis horas e meia em dois vôos turbulentos e uma

conexão em Dallas, minha assistente, Asher Spiller, e eu finalmente

chegamos a Oklahoma, onde se sente mesmo que o vento está varrendo seu

avião para baixo. Eram 19 horas no horário de Tuba, e, carregando

apenas bagagem de mão, rapidamente localizamos nosso motorista. Era

uma bela moça segurando uma placa com o nome de viagem que eu estava

usando, um nome bobo que não tinha como ela associar com o rosto

conhecido que aparecia de repente diante dela. Nós dois parecíamos estar

imaginando que diabos eu estava fazendo em Tulsa?

Nessa parte da minha jornada, eu poderia me descrever como uma

Dorothy ao contrário, deixando OZ/Manhattan, viajando durante a

tempestade e caindo na paisagem plana e monocromática das planícies

norte-americanas. Não estou aqui para ver o mágico, mas a pessoa que

teve a oportunidade e a audácia de fechar as cortinas.

Demos entrada no Doubletree Inn, deixamos nossas malas nos

quartos e fomos até o restaurante do hotel. O Warren Duck Club Grill, da

156

Page 158: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

mesma forma que o pouco que vimos de Tulsa na última hora desde que

chegamos, estava quase vazio. Asher e eu fomos levados a uma mesa

redonda da outro lado do salão. Apertando minha mão com uma pegada

firme, o bispo Carllon me puxou para um aluno. Esse gesto de

familiaridade não pareceu estranho, tendo em vistaque nós dois, por

razões óbvias, sabíamos bastante um do outro, mais do que a maioria das

pessoas que se encontram pela primeira vez.

Negro na casa dos 50 anos e em forma, o bispo não era alto - tinha

alguns centímetros a mais que eu -, mas era uma figura marcante. Vestia-

se todo de preto com a camisa aberta no colarinho, usava óculos de

armação preta retangular e estilosa e tinha um bigode muito bem feito,

contornando os cantos de seu sorriso e terminando em um fino

cavanhaque. Ele é meio James Brown e meio Johnny Cash, não só no

aspecto físico, mas no espiritual também - algo indo do I feel good para

Ring of fire. Nas duas ou três horas seguintes, a conversa é reveladora e o

bispo conta a história a qual tive de atravessar metade do país para ouvir

em primeira mão.

Mesmo sabendo que o bispo Pearson é um pregador veterano, uma

personalidade televisiva e, de várias maneiras, um artista, é incrível como

ele compartilha sua história comigo sem esforço e candidamente. Afinal,

sou um estranho com um motivo vago. Pergunto a ele do efeito em sua

formação ao crescer num lar onde Deus e o Diabo eram tão vivos e pre-

sentes quanto qualquer membro da família. Do jeito que ele contou, na sua

família, ou você encontrava Deus e se afastava do Diabo, ou o contrário, e,

se perdesse a noção de que caminho estava seguindo, alguém ficaria feliz

em lembrá-lo. E não se aplicava apenas ao aqui e agora, servia para a

eternidade também.

Ele contou que, quando perguntava à tia viúva sobre o tio, homem

sem fé e pecador incorrigível, era normal usar a seguinte frase:

157

Page 159: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Tia, há quanto tempo tio T. D. está no inferno?

Essa tia, que Carlton descrevia como muito temente a Deus e fre-

qüentadora assídua da igreja, não só aceitava que o marido residia no

inferno como também achava que, apesar de toda sua devoção, estava

fadada a se juntar a ele lá. Negar a existência do inferno não era só o oposto

de tudo em que Carlton tinha acreditado até aquele ponto, mas também sua

admissão de culpa por promover um mito danoso às inúmeras pessoas para

as quais ele pregara.

Há um anseio na voz do bispo, com um sentimento de perda. En-

quanto fala, ele mexe o guardanapo pelo tampo da mesa. Tudo é um

prelúdio que se encaixa para o que vem a seguir - uma visita guiada ao seu

reino perdido.

Talvez eu seja paranóico, mas, enquanto esperamos o manobrista

com o carro do pastor, uma mulher sentada na recepção do hotel me encara

com um olhar negro e distante, quebrado apenas por alguns segundos para

que ela possa oferecer o mesmo olhar ao bispo. Tenho certeza de que é

minha imaginação, porém é um daqueles casos de "Se pensa nisso, você

sente isso", e que me dá um pequeno entendimento de como é ser um

recipiente de animosidades silenciosas e borbulhantes. E, como meu

anfitrião me lembraria mais tarde, ele podia ser um herege local, mas por

causa das minhas posições em relação às pesquisas com células-tronco eu

também era malvisto por muitos dessa região - um pouco mais exótico,

porém, ainda assim, um infiel perigoso.

Sentei-me no banco de passageiros e saímos para um trânsito leve.

Dominando a vista de Tulsa está o prédio de 88 andares chamado CityPlex

Towers. Originalmente batizado de r Cidade da Fé", o grande arranha--

céu foi encomendado por Oral Roberts no final dos anos L970, com a

instrução de que fosse como uma visão de Jesus de trezentos metros de

altura. A especificação de Jesus era para que tivesse pelo menos uns trinta

158

Page 160: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

centímetros a mais que a BOK Tower, a construção mais alta de Tulsa

naquela época. Os visitantes da cidade acharam a edificação um ótimo

ponto de referência, e, como estamos particularmente interessados em

explorar o impacto que as pregações de Oral Roberts tiveram sobre a

cidade e essas pessoas, o CityPlex serve de estrela-guia para a constelação

de posses e propriedades de Roberts. As ligações do bispo com o idoso

pastor e seu império são profundas e complexas, e, apesar de todo tempo

gasto e serviços, as declarações dele por uma teologia mais moderna

levaram-no a ser excomungado do ministério de Oral Roberts.

Sei que o grande mundo evangélico é formado por dúzias de feudos

individuais, grandes e pequenos. Sendo grande especialista nos mistérios e

histórias de várias comunidades carismáticas, o bispo apimenta seu papo

com referências a pregadores e convertidos famosos. No jantar da noite

anterior, no café da manhã e agora no carro, ele expressava surpresa por eu

conhecer personalidades como Benny Hinn, Paul e Jan Crouch e Carman,

um tipo de Tom Jones gospel. Sinceramente, isso me assustava também.

Rex Humbard, Kathryn Kuhlman, Oral Roberts, Billy Graham, Er-

nest Angley, Jerry Falwell, Jim e Tammy - percebi que esse momento com

o bispo é a conseqüência lógica de uma vida de fascinação por pregadores e

pregações. Acho que desde cedo em minha vida houve uma procura por

afirmação divina. Mas hoje entendo que, na verdade, eu gostava era do

show, daquele brilho e exagero teatral e de toda aquela enorme ironia não

intencional.

Passando os canais da TV a cabo, inconscientemente diminuo o rit-

mo ao passar do 372 ao 379. E o que chamo de grupo gospel, canais

dedicados apenas a passar a mensagem evangélica. O próximo toque no

controle remoto pode revelar qualquer coisa, de um fervoroso solista

apresentando uma bela e dolorosa versão de um hino que você se lembra

vagamente da infância à Luta livre por Jesus, durante a qual lutadores

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Page 161: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

entretêm um ginásio lotado de adolescentes, batendo um no outro com

cadeiras, em nome do Senhor.

Há pouco tempo, dediquei uma hora inteira de insônia a um progra-

ma que apresentava comediantes renascidos em Cristo, cada um revezando-

se em apresentações de cinco minutos. Eles pareciam ser de duas escolas

diferentes: o cara que sempre foi religioso, o palhaço das aulas bíblicas

dominicais, disparando frases engraçadas como "Não, Barrabás, não

consigo ver sua casa daqui!", e havia os três ou quatro caras engraçados,

que tinham vivido a vida normalmente, na qual encontrar Jesus não fora

algo natural c talvez nem voluntário. Dolorosamente familiarizados

com os dois extremos, eles sabiam bem onde ficavam e quão perto

poderiam levar os fiéis desses extremos. Sendo um exemplo da velha

equação "dor + tempo = comédia", o humor deles aventurava-se no lado

negro tão conhecido pelas próprias batalhas contra vícios em drogas e

álcool, provocando risadas baseadas no medo. Eu sentia que o medo da

audiência não era uma reação ao risco de uma vida de pecados, mas mais

um medo daquela parte dentro deles que dizia: "Ei, isso parece divertido!".

Sendo um adolescente consumidor de cerveja, eu adorava que meu

quarto ficasse no porão, permitindo-me chegar a qualquer hora, sem nin-

guém saber. Em muitas noites de sábado eu dormia (ou desmaiava) com

minha pequena TV preto e branco com orelhas de coelho ligada. Acordei

muitos domingos com imagens de sonhos religiosos - sobre Jesus ou viajar

para a África para distribuir bíblias aos aldeões pobres. Ouvia hinos em

meus sonhos e pessoas pregando e falando em vários idiomas. Demorou

um pouco para minha mente adolescente perceber que, independente do

que aquele canal passasse de madrugada, às 8 horas eles passavam o The

700 Club. Por osmose, eu incorporava imagens e palavras da televisão no

que quer que meu subconsciente estivesse processando e criando no

momento.

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Page 162: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Enquanto crescia, acabei formando vários grupos diferentes de ami-

gos, cada um pertencente a uma diferente órbita social. No oitavo ano do

ensino fundamental, fiquei amigo de um garoto chamado Russell. Ele to-

cava bateria, e eu, guitarra. Nossa dupla pré-White Stripes foi a primeira

banda na qual toquei na minha juventude. Sendo batistas estritos e devotos,

os pais de Russell, suas duas irmãs e o irmão acolheram-me na sua casa

como se eu fosse da família e, como extensão natural, da. igreja deles.

Refeições feitas na casa de Russell significavam orações de agradecimento

sinceras e entusiasmadas; viagens longas de carro significavam, que

iríamos cantar muitos hinos religiosos; e ficar por lá alguns dias no verão

significava, em geral, ir a um acampamento religioso. Eu não me importava

nem um pouco com isso. Eram sempre coisas alegres e enaltecedoras. E

não sei se era o tipo de fé que eles tinham ou apenas uma exceção quando

eu estava junto, mas o inferno e o paraíso quase não apareciam nas

conversas. Havia uma beleza elegante e comovente na dedicação deles a

Deus. Em um feriado de primavera viajei com Russ para a fazenda de seus

avós na Colúmbia Britânica. Na ainda escura manhã de domingo, uma

caravana familiar a pé e com quadriciclos motorizados dirigiu-se a um dos

morros mais altos da propriedade, levantou uma cruz de madeira feita à

mão e fez uma missa de Páscoa enquanto o sol nascia.

Mas tínhamos muito tempo para brincar também. Russ tinha uma

casa espetacular na árvore, no quintal, que ficava a dois minutos de bici-

cleta do condomínio de apartamentos onde cresci. E aparentemente não

houve nenhum conflito religioso para Russ quando levei uma Playboy, de

onde recortamos fotos para colocar nas paredes. Tínhamos um terceiro

parceiro de crimes na casa da árvore, um garoto que chamarei de

Lawrence. Até onde sei, Lawrence não tinha interesse nem tomava parte do

lado religioso da vida de Russell. Era um garoto engraçado, mas tem-

peramental. Dava muitas risadas quando as coisas eram divertidas, mas

161

Page 163: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

quando, por exemplo, tínhamos de limpar, consertar o telhado ou fazer

alguma outra responsabilidade que demandava trabalho, ele dava um jeito

de arranjar uma briga e pedia demissão do nosso clube. Nós apenas

dávamos de ombros.

Nós três já havíamos começado a nos separar no nono ano, quando

ouvimos a trágica notícia numa segunda-feira de manhã. Após uma briga

com os pais no final de semana, porque eles não deixaram que ele fosse a

um show de rock, Lawrence subiu para o quarto, amarrou um cinto na parte

mais alta e se enforcou. Na época, eu não era maduro o bastante para reco-

nhecer, mas aquela tragédia significou o fim da minha infância.

Fui mais algumas vezes com Russ e a família dele à igreja, mas

nada que ouvi nos sermões ou grupos de jovens me pareceu relevante. Eu

não tinha raiva, ressentimento ou desilusão com a religião. Ainda penso no

mundo de Russ e de sua família - apenas era a hora de eu seguir em frente.

Russ cresceu fiel à sua fé. Continuou tocando, tornou-se um tipo de

cantor missionário, fazendo performances gospel e folk-rock em igrejas

pelo Canadá. Casou-se com uma mulher que tinha a mesma paixão por

Jesus que ele, criou belos filhos e, botando todos eles em um trailer, passou

dois anos viajando pelo continente. Era um incrível teste a devoção deles

para comprovar que a família poderia trilhar o estilo de vida livre e sem

vínculos - escola em casa, falta de privacidade e nem sempre ter boas

recepções.

Por respeito ao comprometimento dele e também pela gratidão nos-

tálgica por todo amor e carinho que sua família teve comigo durante anos,

fui aberto e receptivo quando Russ me ligou um dia e pediu ajuda para seu

trabalho de missionário. Mandei-lhe um cheque, mas especifiquei que seria

em nome dele, e não em nome de sua igreja. Eu não iria financiar uma

igreja da qual eu não conhecia as políticas e práticas, mas me sentia

confortável em ajudar Russ e sua família a fazer o que quer que os deixasse

162

Page 164: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

felizes. Alguns anos depois, ajudei-os novamente, quando ele, a família e

um grupo de amigos foram fazer um trabalho humanitário em Ruanda,

depois do devastador enfrentamento das tribos por lá. E quando Russ e o

irmão passaram por Nova York deixei que dormissem no sofá-cama do

meu escritório. Nunca falei com Russ diretamente sobre isso, mas fiquei

chateado quando, logo após eu começar a me envolver na campanha pelo

aumento das pesquisas com células-tronco, ele me mandou uma carta

dizendo que a boa notícia era que eu iria me curar do Parkinson um dia,

porém, ele advertia, seria puramente por razões sobrenaturais, não

científicas. Em outras palavras, eu devia largar a política e começar a rezar.

Ele me lembrava de que durante uma festa de Ano-Novo, de 1972 para

1973, no porão de nosso amigo Rusty, eu havia aceitado Cristo como meu

salvador. Eu não me lembrava direito disso. Lembro-me de que tinha

interesse profundo e espiritual na irmã mais velha de Rusty, Karen, que

estava crescendo muito rápido. Ela era uma religiosa renascida e estava

muito interessada em sua cruzada para conseguir almas do nono ano para

Cristo. De qualquer forma, acho que, ao longo dos anos, isso importou

muito mais para Russ que para mim. Acabei guardando meu talão de

cheques.

Quando contei essa história ao bispo Pearson, em Tulsa, ele a ouviu

com alguns acenos de cabeça pontuais, mas quando mencionei a repreensão

de Russ em relação a preterir Deus em favor da ciência o aceno cresceu e

foi seguido por um sorriso de entendimento.

- Você precisa entender de onde seu amigo Russ vem. Ele tem re-

zado por você e realizado missas para você durante muito tempo. Com tudo

que tem no coração e na alma, ele acredita que o que está dizendo é o certo

- a luz nos olhos do pastor alterou-se levemente, e o que se seguiu foi

claramente o que ele pensava sobre o que significaria para uma pessoa

conseguir me convencer a desistir da minha posição e abraçar o ponto de

163

Page 165: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

vista evangélico. - Você seria uma grande vitória de Jesus. E, para a igreja

de Russ e sua congregação, você seria uma adição importantíssima aos

quadros deles. Você dizer que estava errado, que percebeu que as células-

tronco estavam apenas matando bebês e que sabia que apenas Jesus poderia

curar as doenças do mundo seria algo grandioso. Você participaria do The

100 Club com Pat Robertson e a CBN (Rede de Televisão Cristã). Não

subestime o impacto que você teria e a atenção que ele receberia se

conseguisse levá-lo para casa.

Não estou atribuindo nenhum desses motivos a Russ, apesar de ser

o mundo de Carlton e de ele conhecê-lo intimamente, tanto a parte es-

piritual quanto a do entretenimento. Ele claramente sente falta da vida

anterior e da grande audiência que atingia. E entendi ainda mais o que ele

tinha sacrificado ao falar a verdade que enxergara. Mesmo agora, Carlton

ainda mantém um escritório em um prédio do centro, cheio de ornamentos

e superlotado de móveis, com certeza parte de uma coleção maior deixada

para trás com seus dias de ícone na Higher Dimensions. File não conseguiu

explicar por que ainda não foi embora de Tulsa e sempre usa as palavras

"nós" ou "nossas" quando fala da igreja ou de sua comunidade, incluindo, e

não restringindo, Oral Roberts e sua congregação, que o tinham dispensado

tão completamente.

Não era uma questão de uma porta se fechando e outra se abrindo.

Carlton Pearson vê todas as portas abertas, com toda sua experiência dis-

ponível a ele e, por causa de suas pregações, aos outros também. Esse é o

paralelo mais óbvio que posso traçar entre minha experiência e a dele. Eu

não tinha idéia do que o futuro me reservava quando saí da minha zona de

conforto, que era minha carreira na televisão. Com certeza não tinha

imaginado que criaria uma Fundação que teria grande impacto não só na

minha vida, mas na vida de incontáveis pessoas com as quais

provavelmente eu nunca me encontraria. O que me levou a essa escolha

164

Page 166: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

pode ter sido Deus ou pode ter sido apenas uma decisão prática que surgiu

da necessidade de fazer alguma coisa positiva. O propósito que desejamos

encontrar na vida, como a cura que se procura, não vai cair do céu. Acho

que Carlton está passando por um processo similar. É necessário ter fé para

se arriscar e rejeitar os laços com o temor. Acredito que nosso desígnio é

algo pelo qual cada um de nós é responsável; não é apenas atribuído

divinamente.

Enquanto meu tempo com o pastor ia terminando - nos últimos dois

dias passamos vinte e quatro horas juntos -, tento apontar o que exatamente

levarei comigo deste lugar. Fiquei contente de ter vindo aqui. Minha

experiência em Tulsa mostrou-me que às vezes o mundo é tão simples

quanto eu o vejo ou quanto desejo sempre que seja. E às vezes é mais

complicado do que qualquer um pode compreendei.

Minhas conversas com Carlton abriram cadeados, relembrando-me

de fatos e memórias de sentimentos e experiências religiosas havia muito

esquecidos. Durante minha vida, coloquei-me inúmeras vezes, querendo ou

não, em posição de renascimento espiritual. É possível que, de alguma

forma, este tenha sido meu propósito vindo aqui, mas não acho que seja

isso. No entanto, também não estava numa missão de desacreditar nada. É

bem mais complexo que isso. Infinitamente mais simples. O bispo, com

toda sua eloqüência em testemunhar e de ter o fardo divino de angariar

almas para Cristo, não tentou ganhar a minha. Acho que nossa conexão

teve menos a ver com fé e mais cora um otimismo básico que nos levou a

trilhar os caminhos que escolhemos e que cresceu e se fortaleceu com o

tempo e a distância que percorremos.

Quando tive os primeiros sintomas de DP estava com 29 anos e

vivia a vida, como já descrevi antes, numa bolha insular. O espaço nela au-

mentava com cada sucesso e se contraía a cada fracasso. Mas na época eu

estava num ótimo momento profissional e pessoal, tinha acabado de me

165

Page 167: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

casar e acabara de nascer nosso filho primeiro filho, Sam. Por isso a bolha

estava bem grande. E, enquanto ia crescendo, é claro que a membrana em

volta dela ia ficando mais fina e esticada. Eu tinha medo do que aconteceria

se e quando ela finalmente se rompesse. Uma explosão representava o pior

cenário de todos; um vazamento vagaroso era melhor. Meu erro foi achar

que as duas opções eram coisas excludentes.

Em 1991, descobri a verdade sobre os tiques e tremores quase

imperceptíveis e as dorzinhas que sentia havia um ano. E não era por

exagero nos exercícios nem por estresse de trabalho ou emocional, mas os

sintomas de uma doença debilitante e progressiva da qual não se sabia a

causa e, pior, para a qual não havia cura. O mundo como eu o conhecia

mudou no instante em que o médico pronunciou meu diagnóstico. Como

ator, estou acostumado a processar as opiniões que as outras pessoas têm de

mim - do auditório, do público e da crítica. Você pega a opinião, raciona-

liza-a e depois a devolve àqueles que as oferecem como projeções à sua

realidade. Mas é raro alguém apresentar a você uma grande e imutável

verdade a seu respeito - algo tão surpreendente e inesperado que você não

pode nem se dar ao luxo de negar.

Fazemos tantas coisas para nos proteger da verdade, porém, o que

aprendi com ela e de onde tirei forças e conforto, especialmente nos

últimos dezessete anos, é que a verdade nos protege de nós mesmos. Isso

se, é claro, conseguirmos conhecê-la e acreditar nela. Como epígrafe após a

primeira página de Lucky man, incluí uma frase de Henry David Thoreau

que achei particularmente apropriada: "Sempre que nos preocupamos em

acumular riquezas para nós mesmos ou para nossa posteridade, em

constituir uma família ou um Estado, ou mesmo em adquirir fama,

tornamo-nos mortais. Todavia, quando procuramos lidar com a verdade,

tornamo-nos imortais e não precisamos temer mudanças ou acidentes".

Não quero dizer com isso que a grande verdade era o Parkinson

166

Page 168: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

especificamente, mas que existem realidades que ocorrem na vida e sobre

as quais não tenho controle ou influência, realidades que não posso

negociar, com as quais não posso usar artimanhas nem encantar.

Você poderia argumentar que a verdade do bispo era subjetiva e

que a minha era baseada num fato científico. Mas não dá para questionar a

convicção dele. Do mesmo modo que tive de fazer ajustes e tomar atitudes

que essa nova verdade demandava de mim, ele também precisou fazê-lo.

Na primeira noite em Oklahoma, Carlton comentou sobre minha coragem

ao lidar com o Parkinson e sobre meu comprometimento com a defesa dos

direitos dos pacientes.

- A diferença é - expliquei - que não escolhi ter Parkinson. Con-

cordo que, se pegasse a situação e tudo que vem com ela apenas para

advogar em defesa de outros doentes, aí tudo bem, seria algo historica-

mente heróico, mas estou apenas dançando conforme a música. Você

decidiu fazer isso. Poderia ter guardado suas dúvidas e preocupações para

si mesmo e continuar fazendo seu trabalho, mas entrou nisso de olhos bem

abertos.

Talvez naquele primeiro dia, quando parou em frente à sua congre-

gação e refutou a existência do inferno, ele não tenha antecipado a reação e

sua queda. Todavia, acredito nele quando diz que não tinha outra escolha a

não ser dizer a verdade que havia enxergado e que, provavelmente, aquela

era a coisa mais importante que faria na vida. E também acredito quando

ele diz que não se arrepende de nada, apesar do sofrimento e da dor no

coração que isso lhe trouxe e à sua família. Claro que aqui, em seu

escritório, cercado pelos vestígios de seu império perdido, ele ainda parece

um pouco chocado. Conheço bem a sensação.

Não interessa se você usa um alfinete, como o bispo fez, ou se

estouram sua bolha, a verdade sairá dela e vai levá-lo a lugares que, de

outra forma, você não iria.

167

Page 169: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Tikkun Olam

Nosso filho, Sam, nasceu no Hospital Cedars Sinai, em Los

Angeles, no dia 30 de maio de 1989. Ele era enorme. Então, tanto para ele

quanto para Tracy o parto foi vigoroso e extenuante, mas ainda bem que

não foi dramático. Pudemos ficar com ele no quarto por quase todas as

vinte e quatro horas que passamos no hospital. Ninguém descansou. Nosso

filho, como descobrimos, era um chorão. Ele passou aquelas primeiras

horas acertando os sons agudos que seriam sua forma exclusiva de co-

municação nos seis meses seguintes de eólicas.

Compreensivelmente, Tracy queria dormir. E eu tentava ser

prestativo, apesar de que um pai de primeira viagem com 27 anos normal-

mente é inútil nessa situação. Servindo de intermediário entre Tracy e a

administração do hospital, eu consultava as enfermeiras sobre como cuidar

do bebê, respondia aos telefonemas de amigos e familiares que queriam

saber como Tracy e o bebê estavam, quando iríamos para casa, quando

poderiam nos visitar e, acima e tudo, que nome daríamos a ele. No meio da

mala feita às pressas, entre um livro de Lamaze e um pacote de

salgadinhos, estava a lista de nomes que fizemos e compilamos durante

semanas. Havia alguns clássicos do fim dos anos 1980 (embaraçosos

demais para eu repetir), mas o nome "Sam" não estava lá. Concordamos em

esperar doze horas antes de decidir o nome. Depois de botar todo mundo

para fora do quarto, Tracy e eu estudamos com cuidado aquele

pequeno pedaço serpente ante de criança com pés e mãos enormes

que estava ali deitado.

- Ele parece um motorista de caminhão - ela disse.

- Sim, é igual a um caminhoneiro que conheço, o Sam.

- Sam. Bom nome - ela disse.

Foi tão fácil. É assim que funciona?, pensei. É assim que nossos

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Page 170: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

pais chegam ao nome ao qual você estará preso pelo resto da vida?

- Espere um pouco - Tracy disse. - Sam Fox?

- Isso. Sam Fox - respondi. Eu estava decidido.

De repente, Tracy começou a rir incontrolavelmente.

- Sam Fox - ela repetiu, ainda rindo. - Isso é tão... tão judeu.

- Agora gosto ainda mais - falei.

Tracy vem de família judia e, mesmo eu não tendo me convertido,

nós nos casamos sob um chuppah. Desde os dez anos de minha chegada a

Los Angeles, em 1979, e esse momento no hospital com minha esposa e

meu filho recém-nascido, eu havia imergido alegremente na comunidade e

na cultura do judaísmo reformista norte-americano. Meus amigos, meus

sócios e agora minha família eram, na maior parte, judeus. Aprendi que

meu sobrenome, "Fox", comum na área de Lancastershire, de onde meu

avô, da Igreja Inglesa, emigrou para o Canadá na virada do século, também

era uma comum "britanização" de vários judeus Ashkenazi do Leste

Europeu. O nome Sam Fox era atraente para mim porque, mesmo eu não

sendo judeu, meu filho, nascido de mãe judia, era judeu por direito de

nascença e por definição. Por isso o nome funcionou em vários níveis.

Sam, é claro, não tinha ciência de nada disso - seu nome, sua reli-

gião, o tamanho de seus pés e mãos. Mas, em breve, ele descobriria de

forma dolorosa a relevância de tudo isso, por causa da relação imediata

dessas coisas com outro membro de seu corpo. A médica visitou nosso

quarto para discutir sobre a circuncisão. Ela era judia e, apesar de expressar

seu respeito por qualquer que fosse nossa posição em relação ao

procedimento, não havia dúvida sobre o que ela achara que deveria ser

feito. Tracy tinha dúvidas, ou talvez fosse um grande receio mesmo, que

não tinha nada a ver com religião ou judaísmo. Apesar de sua família não

ser particularmente vigilante, ela não tinha nenhum problema em se

identificar como judia. Todavia, como mulher norte-americana progressiva

169

Page 171: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

e esclarecida, criada nos anos 1970, ela tinha como reflexo aversão a

submeter o filho a algo que pode ser descrito como um ritual de mutilação.

Para mim era tudo muito claro, e me surpreendi comigo mesmo ao expor

meu ponto de vista de maneira calma e com muita clareza.

- Entendo o que está dizendo, querida, e não estou dizendo que te-

mos de fazer isso e todo o show envolvido. Mas você é judia, por isso ele é

judeu. Ele é parte da cultura e de uma herança que nem posso fingir en-

tender ou apreciar por completo. Então vou dizer o que acho: se a médica

fizer isso agora, aqui no hospital, irei à sala com os dois e segurarei Sam.

Quando a doutora estiver ocupada com o bisturi, vou olhar nos olhos dele e

Sam terá com quem chorar e gritar. Porém, se daqui a treze anos, ele

decidir que quer fazer um bar mitzvah e ainda não for circuncidado, você é

quem vai ficar na sala com ele enquanto estarei em Las Vegas.

Hoje, entendo que as pessoas tenham opiniões fortes a respeito dis-

so, mas em minha primeira grande decisão como pai senti que o certo era

conectar Sam a uma longa tradição cultural diferente da minha. Então,

peguei meu filho com certa dureza de movimentos pré-Parkinson e falei

amorosamente com ele enquanto a doutora fazia o serviço. Sem dúvida

doeu muito mais nele que em mim. Treze anos depois, minha mãe, meus

irmãos e irmãs, anglo-irlandeses protestantes da costa oeste do Canadá,

voaram a Nova York e sentaram-se numa sinagoga pela primeira vez na

vida e assistiram orgulhosos enquanto Sam era recebido no mundo adulto.

Foi Sam quem veio falar conosco quando tinha 9 anos e pediu para

ir para uma escola hebraica. Ele aprendera com os amigos que tinha de co-

meçar seu treinamento religioso agora se quisesse fazer o bar rmitzvah dali

a quatro anos. Naturalmente, Tracy compreendia melhor a situação que eu

e, após várias visitas a sinagogas em Nova York, ela gostou do que ouviu a

respeito da Central. Apesar de nunca termos estado nela, fizemos planos

naquele verão de passar a freqüentá-la quando voltássemos das férias.

170

Page 172: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Em uma sexta-feira à tarde, dia 28 de agosto, liguei a TV de nossa

casa alugada em Long Island e a primeira imagem que apareceu na tela foi

a gravação feita de um helicóptero de um terrível inferno que parecia

acontecer no centro de Manhattan. Era difícil ouvir a reportagem por causa

do barulho das hélices, mas duas palavras soaram claramente: Sinagoga

Central.

- Tracy! - gritei em direção à cozinha, que era onde ela estava

dando comida para as meninas. - Qual é o nome da sinagoga à qual

acabamos de nos filiar?

- Central - ela respondeu.

- Acho que ela pegou fogo.

O prédio vinha sendo todo reformado, e o fogo foi causado pelo

maçarico de um trabalhador que instalava um novo sistema de ar-con-

dicionado. Por sorte ninguém ficou ferido, mas pelo que fiquei sabendo por

intermédio dos jornais e de minhas próprias pesquisas as perdas foram

enormes. Construído em 1872, o prédio era uma marca registrada e

considerado por muitos uma das igrejas mais belas do mundo. Apesar de

precisar de um esforço maciço e de milhões de dólares, o rabino Peter

Rubinstein prometeu aos tristes e chocados fiéis que se reuniram na manhã

seguinte para verificar os danos e reconstruir a sinagoga:

- Temos trabalho a fazer, então devemos começar.

Há uma expressão hebraica - na verdade eu a entendo mais como

um princípio do judaísmo -, tikkun olam (tuhk-OON-oh-LAH-m), que pode

ser traduzida como "consertando o mundo". Isto foi explicado a mim pela

primeira vez pelo rabino Josh Davidson, jovem protegido do rabino

Rubinstein, que ajudou a preparar Sam para o bar tnitzvak.

A conversa ocorreu no início de setembro de 2001. Era um bom

momento para a comunidade da Sinagoga Central. A longa reforma após o

incêndio estava quase concluída e o santuário prestes a ser reaberto. Sam

171

Page 173: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

era uma das crianças escolhidas para trabalhar com pincéis e tintas, adicio-

nando os toques finais no extenso trabalho ornamental que havia em quase

todas as paredes e cantos do interior do prédio. Claro que o rabino

Rubinstein iria conduzir os serviços de celebração da reabertura do prédio,

mas o rabino Davidson já estava preparando os trabalhos da semana

seguinte. Ele queria falar sobre células-tronco e por isso me telefonou para

ter mais informações sobre o assunto. Eu me preparara para ficar na

defensiva. Num tempo em que o perfil dessa nova pesquisa ainda estava

surgindo, parecia-me que qualquer autoridade religiosa que fosse abordar o

assunto teria posição negativa. Mas Josh foi agradável, e suas perguntas

vieram de uma curiosidade honesta e de uma empatia por aqueles que

poderiam ter a vida melhorada ou salva. A tradição judaica, ele me

explicou, sempre encorajou os avanços científicos e médicos. Nesse

contexto, a pesquisa com células-tronco, longe de ser destrutiva ou má, é a

incorporação do mitzvah da cura. Todos temos a responsabilidade de fazer

o que pudermos pelos que vivem conosco, por aqueles que amamos e por

aqueles que nunca encontramos. Foi quando ouvi pela primeira vez sobre o

tíkkun olam.

Josh assegurou-me que, quaisquer que fossem meus esforços

naquela área, ele e a sinagoga me apoiariam totalmente. Agradeci a ele e

disse que não via a hora de fazer parte da congregação e de ouvir o que

tinha a dizer sobre o assunto. Entre o telefonema e o sermão, estava a terça-

feira, 11 de setembro. A noção de reparar o mundo tomou uma dimensão

mais urgente e dramática. Por um tempo, o rabino Davidson colocou de

lado seu sermão sobre células-tronco.

CHELSEA PIERS, NOVA YORK • 18 DE MAIO DE 2002

Entre os oradores agendados para brindar a Sam na celebração de

172

Page 174: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

seu bar mitzvah estavam meu irmão e tio de Sam, Steve, e o irmão de

Tracy, Michael. E quem não estava na lista? Eu. Mas por mim tudo bem.

Em várias ocasiões que levaram ao bar mitzvah pude dizer a Sam quanto

me orgulhava dele, então, quando ele pediu especificamente que eu não

discursasse, fiquei feliz de ser liberado desta responsabilidade, sem me

sentir privado da oportunidade. Sem eu saber, pelo menos até chegar ao

salão que alugamos, Sam tinha mudado de idéia e agora queria que eu

dissesse algumas palavras. Eu não tinha nada preparado e, mesmo que

tivesse, agora tinha um problema de tempo até os remédios fazerem efeito.

Com o gosto ácido do pânico surgindo na garganta, puxei Tracy de lado.

Sam tinha ido até ela e pedido que me convencesse a discursar.

- Ele vai falar, querido - ela assegurou a Sam -, mas você precisa

pedir a ele pessoalmente.

Elogiei-a pela bela lição que tinha dado a ele à minha custa.

- Conte uma história do Sam - ela falou. - Conte as história da

bicicleta.

Sam nunca foi o tipo de garoto de "bater bola com o pai no quintal".

Todas as minhas tentativas, nos primeiros seis ou sete anos de vida dele, de

fazer com que se interessasse por atividades esportivas, incluindo as que eu

adorava quando criança, como basquete, hóquei e beisebol, foram polida

mas firmemente refutadas. Sam tinha suas razões para isso, e muitas delas

faziam todo sentido. Quando ele tinha 6 anos, fomos até Chelsea Piers, pois

eu pretendia inscrevê-lo na escolinha de futebol. Encontramo-nos com o

jovem, super prestativo e impetuoso técnico voluntário, que nos explicou

que havia dois tipos de programas: um focado nos fundamentos básicos e

que tinha poucos jogos competitivos entre times e, é claro, o programa de

verdade - uma liga de competição com tabelas de jogos entre os times

estabelecidos. Era óbvio para mim que Sam não iria querer nenhum dos

dois programas. Mas ele era um ótimo garoto, então talvez pudesse fazer

173

Page 175: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

isso pelo pai.

Após pequena pausa, na qual posso ter inserido um silencioso "se

tenho mesmo de fazer um", ele disse que preferia o programa de funda-

mentos básicos.

Fiquei um pouco desapontado, mas tentei não demonstrar.

- Muito bom, Sam. Mas, e a outra que é mais competitiva? Ele

balançou a cabeça.

- Não rola. Tem brigas demais - disse.

Ele tinha um bom argumento e, sabendo que Sam também não

morria de amores pelo outro programa, não forcei a barra. Fomos embora

sem fazer nenhuma inscrição. Até porque não era como se ele fosse uma

criança sedentária. Ele amava correr por aí, pular e fazer bagunça, fazendo

zigue-zagues nas árvores quando íamos caçar insetos, e tinha aprendido a

nadar bem cedo em qualquer lugar com água - piscina, lagoa ou mar. Ainda

assim, não parecia ter muita confiança na área das atividades esportivas.

Tendo crescido praticando vários tipos de esportes, pude presenciar

vários pais que forçavam os filhos a jogar, projetando neles as próprias

ambições não cumpridas de se tornarem superatletas. E eles nunca jogariam

o suficiente ou bem o bastante para ganhar o bastante. Sam não queria fazer

esportes, e Tracy e eu decidimos que tudo bem. No entanto, tivemos um

pequeno desentendimento nessa área.

Quando Sam tinha 7 anos e ainda se recusava a aprender a andar de

bicicleta, tive de ser firme. Falei a Tracy que ela precisava ensinar a ele. 12

o trabalho dos pais. É como se fosse uma lei ou algo assim. E acho que os

filhos tiram sua licença de pai se você quebrar essa lei. Independentemente

de quanto Sam resistisse, eu tinha decidido que seria paciente, mas também

persistente. Naquele verão, formulei um plano para utilizar as duas

semanas que iríamos passar em nossa fazenda em Vermont para colocar

Sam sobre duas rodas.

174

Page 176: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

A aversão de Sam a qualquer tipo de locomoção que não fosse

andar, correr ou nadar, com a recusa em montar no que quer que fosse, a

não ser em meus ombros ou às vezes em um pônei alugado, era tanta, a

ponto de ele nunca ter abraçado a tecnologia de um triciclo - muito menos

as rodinhas de unia bicicleta.

- Melhor assim - decidi. - Podemos ir direto ao assunto.

O início do nosso caminho que levava ao celeiro passava por uma

parte plana de cascalho grande o suficiente para um menino de bicicleta

pegar um pouco de velocidade e andar por uma distância razoável. Apro-

ximei-me de Sam, que já estava de capacete e sentado na bicicleta, segurei

a parte de trás do selim com a mão direita e o guidão com a esquerda.

Quando estava em posição, ele começou a pedalar firmemente para a

frente. Assim que eu já estava trotando em uma velocidade suficiente para

criar equilíbrio, perguntei a Sam se podia largar. O grito que ele deu em

resposta foi frenético, enérgico e completamente ininteligível, mas entendi

a essência dele: "NEM FODENDO!".

O problema era que, Sam explicou-me mais tarde entre lágrimas de

frustração, o cascalho era muito solto e esparso, por isso ele sentia que a

bicicleta iria escorregar de lado a qualquer momento. Imaginei que sua

análise era um passo positivo e mostrava o desejo de seguir tentando.

- Sabe o que podemos fazer? - perguntei. - O estacionamento do

prédio dos bombeiros voluntários está sempre vazio e tem aquele chão

pavimentado, liso e sem ondulações. Por que não colocamos a bicicleta no

porta-malas e descemos até lá?

- Tá bom - ele respondeu. Mas, assim que falou, seu rosto mostrou

que queria fazer qualquer outra coisa, menos isso.

Após alguns minutos de descida até o Corpo de Bombeiros South

Woodstock, ficou claro que as novas condições não eram melhores. Apesar

de a superfície ser mais lisa, também era mais dura, e a perspectiva de cair

175

Page 177: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ou voar por cima do guidão era muito mais aterrorizadora para Sam. Decidi

então que, de algum jeito, em algum lugar, acharíamos o piso perfeito para

que ele aprendesse a andar de bicicleta. Mas hoje não ia dar certo. Senti-me

mal por Sam. E me senti mal por mim.

Talvez sentindo a oportunidade de colocai um fim nesse

"probleminha", pelo menos por aquele dia, e talvez para nos fazer sentir um

pouco melhor, Sam deu uma sugestão:

- Por que não vamos tomar um sorvete?

- É uma ótima idéia - respondi.

Depois de colocar a bicicleta na parte de trás da picape e de prender

Sam em sua cadeirinha, cruzamos uma ponte, pegamos a esquerda na Rota

4 e logo chegamos à sorveteria que parecia saída dos anos 1950 (a não ser

pelos preços).

Sentados numa mesa de piquenique grudenta, Sam sugou as duas

bolas de sorvete de chocolate pelo buraco que mordeu na parte de baixo da

casquinha, enquanto eu empurrava os pedaços do meu frapê com o canudo.

Nenhum de nós sequer mencionou a palavra "bicicleta" e, após uns quinze

minutos, voltamos à picape e começamos a voltar para casa. No caminho

para a ponte, passamos por uma escola, ou, melhor dizendo, pelos campos

dela, incluindo um recém-aparado, mas vazio, campo de beisebol. Antes de

entender por completo o porquê, já estava saindo da estrada, indo até o

final do estacionamento da escola e estacionando. O plano estava pronto

assim que coloquei Sam e sua bicicleta no campo, no lugar do rebatedor,

com a frente apontada para a primeira base. O caminho para as bases era

ideal - sólido o bastante para que as rodas não derrapassem, mas não duro o

suficiente para amedrontar meu filho; se caísse, ele provavelmente apenas

ralaria os joelhos. Sam foi se sentindo confortável e, após algumas corridas

até a primeira base comigo segurando a bicicleta, estava pronto para tentar

sozinho, pelo menos uma parte.

176

Page 178: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Certo - eu disse. - Começarei com você e depois correrei até a

primeira base para pegá-lo quando chegar lá.

Fiquei impressionado com o que ele conseguiu realizar, pensando

que, naquela manhã, aquilo parecia impossível. E foi relativamente fácil

convencê-lo a fazer a curva da primeira e ir para a segunda base, onde eu

estaria e o pararia gentilmente como fizera antes. Quinze minutos depois

ele estava pronto para fazer três curvas e marcar um home run. Após

quarenta e cinco minutos no campo, eu estava sentado no lugar do

arremessador, aproveitando minha alegria imensa, enquanto Sam, o Baby

Ruth das bicicletas, dava voltas e mais voltas no campo.

Confiante de que ele não precisava mais de mim, fui andando até

uma lata de lixo que havia do outro lado da cerca próxima da terceira base.

Quando me virei, depois de jogar meu copinho no lixo, esperava sentir o

deslocamento de ar causado por um moleque de 7 anos voando em sua

bicicleta. Mas Sam não estava em nenhuma das bases - pelo menos eu não

o via. Comecei a procurar melhor e então o vi. Animado com sua evolução

e por razões que apenas ele pode saber, Sam sentiu-se entusiasmado o

suficiente para não virar à esquerda na primeira base e pedalar reto pelo

restante do campo. Manobrar uma bicicleta na grama é mais difícil, mas

com as pernas pedalando como pistões ele havia progredido. De repente,

ocorreu-me que eu tinha conseguido ensiná-lo a andar de bicicleta, mas

tinha faltado uma lição: como parar. Saí correndo, esperando que

conseguisse chegar até ele antes que entrasse em pânico ao ter o mesmo

pensamento. Eu já estava perto, uns dois metros atrás dele, quando

aconteceu. Talvez tenha passado num buraco, o pé tenha escapado do pedal

ou apenas tenha perdido a concentração, mas ele capotou bonito.

Levantando-o rapidamente para diminuir o impacto do tombo, fiquei

surpreso ao ver que ele não estava chorando. Na verdade, ele ria como uma

hiena. E estava até meio impaciente.

177

Page 179: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Me põe de volta na bicicleta e me dá um empurrão, pai - ele disse.

Fiz isso. E ele foi embora. Às vezes, reduzia a velocidade o

suficiente para que eu o alcançasse, mas não estava mais seguindo meu

cuidadoso plano geométrico. Estava achando o próprio caminho.

Essa foi a história que contei no bar mitzvah de Sam. Quando olhei

para o rosto dos familiares e dos amigos no salão, percebi que não preci-

saria mais atrasar a sobremesa explicando o simbolismo da coisa.

Obviamente o bar mitzvah foi muito importante para Sam, mas fi-

quei surpreso pelo profundo impacto que teve em mim. Minha adolescência

não teve nenhum ritual parecido, uma passagem formal da infância para as

responsabilidades da vida adulta. Isso pode soar meio duro, mas, para mim

e meus amigos de infância, 13 anos não era uma idade na qual alguém

fizesse uma festança para nós, dando-nos as boas-vindas à vida adulta.

Espinhudos, fedidos, cabeludos, inseguros com as palavras e

desengonçados, respondíamos às sugestões, algumas tácitas, algumas

explícitas, naquela época em que jogávamos na defesa. Apenas

deslizávamos e passávamos por isso; depois passávamos pelo ensino

médio; se tivéssemos sorte, arranjaríamos um trabalho; e, se fôssemos

muito sortudos, arranjaríamos um trabalho no governo.

A cultura judaica, eu começava a entender, colocava uma estrutura

e um ritual em volta dessa transição, instruindo essas formas de vida emer-

gentes a reconhecer e aceitar suas responsabilidades consigo mesmo, com

suas famílias e com os outros. Elas são aclamadas e celebradas bem quando

estão mais suscetíveis a se sentir indesejadas e incompreendidas.

Pessoalmente, nem isso consegui, pelo menos não nessa ordem. Al-

guns meses antes do meu aniversário de 18 anos, já tendo desistido da

escola, com meu pai como motorista médio, mas esforçado, fui para o sul,

de Vancouver até a Califórnia, para encontrar um agente e tentar uma

carreira. Não foi um bar mitzvah, porém aquela longa viagem pela

178

Page 180: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Interestadual 5 foi o mais próximo que cheguei de experimentar um ritual

de passagem para a vida adulta. Ansioso e pensando no futuro, ainda sem

ter desenvolvido aquela pequena parte do cérebro que existe para

identificar e evitar riscos, eu não via isso como uma rejeição do passado,

mas como um salto para o futuro. Todavia, é irônico que eu precisasse ser

guiado por um adulto, ao menos essa última vez, não para me dar boas-

vindas a uma comunidade, mas para me levar de uma para outra. Não

sabendo que diabos eu estava procurando, pelo menos meu pai sabia que eu

não encontraria em casa.

Não sei se percebi totalmente logo de cara, mas muitos dos amigos

que fiz ao chegar em Los Angeles e ao me jogar de cabeça na indústria do

entretenimento eram judeus - meus agentes, técnicos, muitos dos diretores,

produtores e também atores com os quais trabalhei. Parece engraçado hoje,

mas com quase 18 anos, acabando de sair do oeste canadense com sua

grande classe trabalhadora anglo-saxônica, além de grande representação

de Hong-Kong e da índia (antigas colônias britânicas), qualquer conceito

que eu tivesse de judaísmo era baseado no Velho Testamento e nas piadas

autodepreciativas feitas no Tonight Show. Acho que um ano depois

comecei a entender as coisas: sou o único cara que tem planos para o dia

25 de dezembro.

Famílias acolheram-me para refeições e festas, e lembro-me delas

com muita ternura e bom humor. Isso tinha pouco a ver com religião, como

fui percebendo. Não podia falar da vida espiritual dos meus novos amigos,

mas, para mim, tinha tudo a ver com cultura. Minha experiência com Russ

e a família dele, cuja cultura e religião (apesar de mais efervescente) eram

essencialmente as minhas também, parecia-me muito mais exótica que a

cultura judaica, na qual eu estava começando, com muita rapidez, a me

sentir em casa.

O produtor e diretor Gary Marshall falou-me sobre sua teoria para

179

Page 181: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

meu sucesso em comédias:

- Você tem um tempo de resposta judeu - ele disse - e um goyishe

punim.

Isto quer dizer que consigo fazer piada ao estilo que tem raízes no

teatro iídiche, mas pareço o típico 'jovem vizinho". Alex Keaton, garoto

branco e protestante do Meio-Oeste nos anos 1980, foi basicamente a

criação de vários roteiristas de comédia judeus, liderados por Gary Gold-

berg, produto da vizinhança judaica do Brooklyn. O ritmo das conversas, a

ênfase em consoantes de percussão como Ps e Ks, responder a perguntas

com respostas invertidas, que, na verdade, eram outras perguntas, como

"Chateado? Por que eu estaria chateado?" - essas são as características de

comédias televisivas com raízes na tradição do humor judaico. Esse tipo de

comédia e os comediantes qiae me foram apresentados pela televisão, de

Phil Silvers a Milton Berle, a Mel Biooks, a Jerry Seinfeld, eram judeus na

maioria, e suas experiências acabaram formando a minha, quer eu

percebesse ou não. Minha afinidade com essa tradição da comédia judaica

era apenas a interação profissional de uma grande conexão que encontrei,

utilizando-a em várias áreas da minha vida.

Em 1985, numa entrevista à revista People, fui perguntado se

pretendia me casar um dia.

- Ah, sim, com certeza - respondi. - Vou me casar com uma garota

judia.

Quando o repórter me perguntou por que, respondi algo como:

- Porque não precisarei tomar nenhuma decisão e ainda poderei co-

mer comida chinesa aos domingos.

Acertei quase 100% - às vezes comemos comida indiana.

É justo dizer que sou um judeu honorário. Casei-me com uma ga-

rota judia, criamos nossos filhos de acordo com a cultura judaica e, mais

importante, segundo a fé judaica - nossos três primeiros filhos tiveram bar

180

Page 182: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

e bat mitzvah. Em fevereiro agora, na quinta-feira antes de Aquinnah e

Schuyler serem chamadas ao bema, Tracy e eu levamos as meninas à

sinagoga para uma última checada nos procedimentos e para que tivessem a

chance de dar mais uma lida em seus discursos preparados sobre as partes

da Tora.

O rabino Peter Rubinstein é um homem compacto e enérgico, na

casa dos 50 anos, que poderia ser irmão gêmeo do técnico de basquete

Mike Krzyzewski. Além da incrível semelhança física, o rabino Rubinstein

e o técnico K compartilham o mesmo jeito dinâmico de liderar e sempre

conquistaram muito respeito e lealdade. O rabino nos explicou o que

deveríamos fazer - acender velas, as preces a fazer em hebraico e, para

minha sorte, em inglês. Mostrou-nos como manejar a Tora ao passarmos o

livro sagrado de um membro a outro da família, de geração para geração.

Observações foram feitas às meninas em relação às suas leituras, em geral

elogios, com gentis lembranças de olhar para a frente às vezes c lazer

contato visual com as pessoas da congregação. Todavia, mais fortes e

ressonantes foram as palavras que ele disse antes de deixarmos o santuário.

Ele lembrou às meninas que elas estavam se tornando parte de uma

linhagem incrível, uma tradição que resistira a séculos de opressão e

perseguição. Senti um misto de orgulho e humildade pelo meu papel de tê-

las trazido a esse lugar. Era evidente no rosto delas a percepção de que a

maior parte do que era bom nas suas vidas - família, liberdade e segurança -

estava conectado com a longa história de resistência, e sua declaração

pública de participação nisso já tinha trazido conseqüências complicadas no

passado.

Ao mesmo tempo, eu não achava que ao sancionar essa

identificação dos meus filhos com a religião e a cultura da mãe deles

significava que eu estivesse rejeitando a minha. E, em relação a tradições

religiosas, eu já não tinha nenhuma mesmo. Eu era um anglicano, do

181

Page 183: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

mesmo jeito que minha mãe, meu pai e seus familiares, que eram membros

e freqüentavam a Igreja Inglesa. Contudo, em minha infância e

adolescência, fora as aulas dominicais na igreja e algumas missas

ocasionais de Natal e Páscoa, não éramos pessoas muito religiosas.

Culturalmente - é aqui que a coisa fica interessante para mim -, nos-

sos costumes e tradições, apesar de serem diferentes do judaísmo de várias

maneiras, pareciam ser regidos por uma ética similar. Minha família e meus

amigos eram boas pessoas. Prezavam a honestidade, a fidelidade, a

integridade, a família e o trabalho duro. Fizeram sacrifícios por seus países

em épocas de guerra e de paz. Eram muito mais agradecidos ao que tinham

do que tristes pelo que não tinham, e relaciono isso a quanto a tradição

religiosa de Tracy e da sua família era inclusiva, propensa a aceitar e a

enfatizar a importância da curiosidade intelectual e espiritual.

Um dos meus sobrinhos, Isaac, na época com 7 anos, certa vez me

surpreendeu com a seguinte pergunta:

- Não entendo. Você é judeu ou é natalino?

Meu próprio filho, quando era ainda mais novo, voltou um dia da

pré-escola com alguns biscoitos que ele e os colegas tinham feito naquele

dia - dourados, amanteigados, com um pedacinho de fruta cristalizada no

meio. Ele me disse que eram biscoitos Hamantashen para o Purim.

- Haman... tasheri? - perguntei.

- Isso - ele respondeu. - Eles têm o formato de um cara mau chama-

do Hamans hat... e para o Purim... sabe?

- Na verdade não - tive de admitir. - Não sei.

- Ah, é mesmo - ele se lembrou, quase se desculpando. - Você não é

judeu.

Quando penso em papos como esse, lembro-me de que meu mundo

está tão imerso na cultura e tradição judaica que mesmo as pessoas mais

próximas de mim se esquecem de que não nasci assim.

182

Page 184: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

SINAGOGA CENTRAL, NOVA YORK SETEMBRO DE 2007

Em setembro de 2007, enquanto eu pastoreava minha família para

dentro do santuário da Sinagoga Central para o serviço religioso de Rosh

Hashanah, o rabino Rubinstein estava parado próximo do bema conver-

sando com um grupo de pessoas. Ao notar minha presença, ele acenou--me

amigavelmente e começou a se dirigir até mim. Tracy e as crianças tinham

acabado de passar por mim e estavam pegando os últimos lugares na quarta

fila, quando o rabino se aproximou e me cumprimentou com um abraço

apertado e um sorriso acolhedor.

- Falarei de você no sermão de hoje - ele me informou. - Não usan-

do seu nome, claro - ele me assegurou. - Será uma referência indireta, mas

tenho certeza de que vai perceber.

Isso me deixou um pouco nervoso. Rosh Hashanah é o Ano-Novo

judaico, o dia para refletir sobre erros do ano anterior e fazer resoluções

para o próximo. Acho que uma das chaves para minha felicidade é que

sempre tento pegar meus erros e transgressões o mais rápido possível

depois ile terem acontecido, minimizando assim o período de reflexão.

Será que o rabino iria me repreender por algo? E, pior que isso, será

que ele iria fazer isso na frente da congregação inteira?

Após uma breve introdução falando da sobrevivência do judaísmo,

o tema central da mensagem de Rosh Hashanah emergiu: o casamento entre

religiões, claro que entre alguém nascido na religião judaica e outro não.

- Quero deixar clara minha posição em relação a este assunto - ele

disse. - Não há dúvida. Recomendo com veemência que judeus se casem

com judeus.

Ooops.

- A comunidade judaica parece ter um futuro mais certo quando

judeus se casam entre si - ele embasou isso com algumas estatísticas, entre

183

Page 185: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

as quais uma se destacou: - A chance de um casamento acabar em divórcio

é duas vezes maior em casais mistos que entre judeus.

Eu não caracterizaria seu tom de voz como duro ou estridente,

apenas firme. Mas aí ele pegou um desvio e começou a falar da "im-

portância do amor" e da realidade na qual "todos queremos que nossos

filhos cresçam em ambientes multirraciais, multiétnicos e multirreligiosos".

Então, "dizer a eles que não queremos que se casem com pessoas que não

sejam judias" é algo paradoxal. O rabino começou a descrever uma

situação familiar hipotética e incrível entre um casal inter-religioso, suas

atitudes e formações e os pensamentos por trás das decisões acerca de suas

convicções religiosas. Ele era muito perceptivo e incrivelmente

compreensivo. O que ouvi falou diretamente â minha experiência e re-

forçou os sentimentos positivos que eu tinha sobre inclusão e empatia,

grandes qualidades do movimento reformista judaico.

Quando se aproximava das conclusões, o rabino Rubinstein olhou

para a congregação, fez uma breve pausa e disse:

- Alguns de vocês são casados com pessoas não judias... e estão

criando os filhos como judeus. Seu marido ou sua esposa está ao seu lado

quando os filhos recebem nomes hebraicos e quando se tornam bdr/bat

mitzvah. Vocês os trouxeram para sua família. Vocês nos honram e nós

lhes devolvemos essa honra. Como disse no início, sou obsessivamente

apaixonado pela sobrevivência do judaísmo. Acredito que nosso futuro será

prolongado se nos aproximarmos de nossos maridos ou esposas não judeus

e se adotarmos aqueles que escolhem se juntar a nós.

Decidi tomar sua última consideração como a referência a mim (e

tenho certeza de que muitos outros fizeram o mesmo aquele dia).

- Vamos ser gratos por aqueles que escolheram ser parte de nosso

destino e de nossa família. Vamos deixar nossas portas abertas a todos

aqueles que escolherem entrar e vamos abrir nossos braços bem abertos

184

Page 186: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

para abraçar os não judeus, aqueles que estão sentados entre nós hoje. Eles

são preciosos, são corajosos e são nossos, pois são parte de nosso futuro e

do nosso destino. Então vamos, todos juntos, com eles, ser fortes... com a

ajuda de Deus. Amém.

Irmãos e irmãs

Acredito que há uma força maior que rege o universo, e sei com

certeza que não sou eu. Mas ainda não encontrei uma religião ou culto

completamente consistente com o jeito que meu coração e minha mente

processam esse entendimento. Não que eu seja avesso a aceitar teologias.

Todas as pessoas com as quais conversei - o bispo Carlton Pearson, Russ e

sua família maravilhosa, o rabino Rubinstein - se apoiavam em sua fé para

ter força, sabedoria e compasso ético. Suas convicções são genuínas e

sinceras, e tenho grande respeito pelo modo como a vida deles expressa

essas convicções. Minhas próprias experiências levaram-me a crer que a

vida é uma dádiva. Reconhecer essa verdade e manter a humildade me

fazem apreciar o fato de eu ser parte de algo grande e infinito.

O Parkinson e o álcool destruíram qualquer ilusão que eu pudesse

ter acerca de estar no controle da coisa. Acabei aceitando que qualquer

doença ou condição fora do meu controle é um poder maior que eu. Para

sobreviver a essa energia destruidora, preciso procurar por um poder ainda

maior. Para meu propósito, não preciso defini-lo, nem que alguém o defina

para mim - apenas preciso aceitar sua existência. Ele é evidente no amor de

Tracy e sua inesgotável amizade. O dentinho faltando no sorriso de Esmé, a

graça de Aquinnah, a coragem de Schuyler e a curiosidade intrépida de

Sam. É tanta coisa para saborear, para ser agradecido. E, como não sei para

qual endereço devo mandar toda minha gratidão, tento colocá-la em tudo

que faço.

Chris Reeve analisou de forma sábia a diferença entre otimismo e

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Page 187: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

esperança. Diferentemente do otimismo, ele disse, "Esperança é o produto

do conhecimento e a projeção de para onde esse conhecimento pode nos

levar". Se o otimismo é uma expectativa de alegria e sorte de que as coisas

vão sair como quero e de que tudo vai dar certo, e se a esperança é o

otimismo com informação, fatos convertendo desejo em possibilidade,

então a fé é o terceiro pé desse banquinho. A fé me diz que não estou

sozinho. Como meus anos de Parkinson me ensinaram, se uma das pernas

do banco faltar, cairei de bunda no chão. Quando vou para a cama à noite,

sou otimista ao pensar que não acordarei com o telefone tocando para me

dar más notícias. Quando o telefone toca mesmo assim, tenho esperança de

que seja engano. E, quando não ê engano e quem ligou tem as piores

notícias possíveis a dar, é a hora de a fé cuidar disso. No dia 5 de novembro

de 2007, o telefone tocou às 5h45 e Tracy o atendeu no segundo toque.

Após uma rápida conversa, ela me acordou com três palavras:

- É o Steve.

Em qualquer hora decente do dia ou da noite, uma das pessoas com

as quais mais gosto de falar é com meu irmão mais velho. Steve é um

grande amigo, um modelo de marido, de pai, de como ser filho de nossa

mãe e um grande irmão para mim e minhas irmãs. E é ainda muito in-

teligente e totalmente engraçado - uma mistura de Bill Murray e Steven

Wright. Ele mora num subúrbio de Vancouver, não muito longe do restante

de nossa família (exceto pela nossa irmã, Kelly, atriz de teatro que mora em

Toronto), e não o vejo tanto quanto gostaria. Tracy sempre ralha comigo

por minha relutância em passar mais de um minuto ou dois com alguém ao

telefone. Mas a exceção é Steve. Trocamos histórias de nossos filhos,

contamos piadas e fazemos planos para futuros encontros, às vezes ficamos

falando merda por até uma hora. Todavia, quando o telefone toca entre

meia-noite e seis da manhã, a última voz que quero ouvir do outro lado da

linha é a de Steve. Se alguma coisa deu muito errado lá na Costa Oeste e eu

186

Page 188: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

precise ser avisado, é meu irmão mais velho, Steve, quem fará esse

telefonema.

Não gosto nem de ver essas palavras impressas numa página, mas

minha primeira preocupação foi com minha mãe. Ela tem 78 anos agora,

uma saúde de ferro, um humor típico e sensacional, e tenho certeza de que

ela vai viver mais que todos nós, mas é para onde sua mente vai quando o

telefone toca de madrugada.

Há dezoito anos meu pai morreu subitamente. Tracy, eu e Sam, en-

tão com seis meses de vida, vivíamos na Califórnia, e foi Steve, claro,

quem ligou para nos avisar que meu pai havia sido levado às pressas para o

hospital e que tinha poucas chances de sobreviver. Mal dava para ouvi-lo

entre lágrimas e soluços; era uma tarefa horrível, mas ele era o único que

poderia fazê-la.

Quase dezoito anos depois, em Nova York, com Tracy na minha

cola, fui tateando do quarto ao escritório para atender o telefone. Foi tão

duro quanto eu achava que seria, por isso tinha preferido ouvir de pé.

- Mike? - perguntou a cansada mas conhecida voz que estava a

5.149 quilômetros de distância.

- Pode falar Steve. O que aconteceu? É a mamãe?

- Não - ele respondeu. - É a Karen.

Karen é a mais velha das minhas três irmãs. Onze anos mais velha

que eu, ela já havia saído de casa e começado sua família quando eu ainda

tinha 8 anos. E cansei de vê-la, o marido Ed e seus dois filhos, Jamie e Ri-

chard, durante a minha juventude. Obviamente nosso contato

diminuiu quando me mudei para a Califórnia aos 18 anos. Apesar de nossa

vida ter mudado de forma drástica, nossa conexão se manteve forte. Karen,

ou K. C, que era como a chamávamos (seu nome do meio era Charlotte),

teve um casamento difícil e acabou se divorciando do marido, que mais

tarde morreu ao ser atropelado por um carro quando atravessava uma rua

187

Page 189: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

em Vancouver. Morando nos Estados Unidos, eu tinha minha própria famí-

lia e gozava de um estilo de vida muito diferente daquele que tivemos em

nossa juventude meio militar. O que nos ligava acima dos laços familiares

normais era uma tenacidade parecida, pois cada um de nós tinha

personalidades enormes em corpos bem pequenos. K. C. e eu éramos as

menores crianças da família - ela mal tinha 1,30 metro. Era imperativo,

pelo nosso físico, que sempre estivéssemos olhando para cima, e isto

também pode descrever nossa atitude em relação à vida. Crescer (ou não

crescer tanto) num mundo de bundas e cotovelos fará de você alguém

resistente ou tímido, e Karen não era nem um pouco tímida. Seu tempe-

ramento era lendário. Quem quer que tenha dito "não é o tamanho do

cachorro na briga que interessa, mas o tamanho da briga no cachorro" deve

ter se encontrado com minha pequena grande irmã. Ela raramente mordia,

porém, a única coisa mais alta que seu latido era sua risada.

Minha irmã era durona e estava pronta para o que desse e viesse,

mas sua grande batalha ocorria dentro do corpo. Karen era epilética.

Ataques repentinos a derrubavam no chão, em geral duas ou três vezes por

semana. O problema progrediu a ponto de ela não poder mais dirigir sem

informar aonde ia, isto para que os lugares mais perigosos ou suas

companhias não fizessem com que uma situação ruim ficasse ainda pior.

Quando fui diagnosticado com Parkinson, nossa ligação se fortaleceu;

tornamo-nos o Clube do Cérebro Podre. E, mesmo na confusão dos dias

seguintes à minha descoberta, nosso trabalho de equipe me deu muito

conforto. Empatia é sempre melhor que simpatia, em especial quando vem

da família.

Em 1993, a epilepsia começou a destruir o espírito de Karen tam-

bém. O grande número de remédios que ela precisava tomar para evitar os

ataques acabaram com sua enorme alegria de viver. Apesar de o Parkinson

demandar sacrifícios e requerer que eu tome uma porção de remédios, a

188

Page 190: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

situação dela estava crescendo de forma desesperada, acima de qualquer

coisa com a qual eu pudesse comparar. Quando ela me ligou para contar

que fora aceita para uma cirurgia cerebral não convencional e arriscada,

para remover internamente a parte do cérebro que causava os ataques,

fiquei em dúvida. Contudo, quaisquer que fossem minhas preocupações,

elas foram encobertas pelo inconfundível senso de esperança de minha

irmã de que essa cirurgia pudesse ser a resposta às suas preces. Minha irmã

mais nova, Kelly, mais tarde me contou como foi a conversa que teve com

Karen quando falaram do seu novo plano.

- Tem certeza de que quer fazer isso? - Kelly perguntou. - E se pio-

rar as coisas?

- Não dá pra ficar pior que isso - K. C. respondeu.

- Ainda assim, o mal conhecido não é melhor que o mal que você

não conhece?

Típica de Karen, sua resposta foi elegante e direto ao ponto.

- Você não conhece o meu mal.

A cirurgia acabou sendo um grande sucesso, e nos quinze anos se-

guintes Karen, livre dos remédios e ataques, voltou a ser a mesma garota

engraçada, dura e irrepreensível. Não tenho certeza de que aceitaria fazer

uma operação do cérebro alguns anos depois, não fosse pela grande força

que K.C. mostrou ao deixar seu cérebro ser operado. Ela se casou

novamente com um cara um pouco mais velho (tá bom, ele tinha quase a

idade da minha mãe), um escocês que usava kilt chamado Gordy que tinha

uma risada parecida com a dela e a mesma paixão pelo golfe. Além do

apartamento que dividiam no subúrbio de Vancouver, eles brincavam de

casinha nos finais de semana num parque de trailers na cidade de Birch

Bay, em Washington, do lado norte-americano da fronteira. Ninguém mais

merecia tanto uma felicidade daquelas.

Apenas alguns dias antes do telefonema de Steve, Karen havia co-

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Page 191: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

memorado seu aniversário de 57 anos. Como fazia com todas as minhas

irmãs, eu tinha um ritual com Karen de mandar flores todo dia 27 de ou-

tubro e sempre esperava ansioso o telefonema de agradecimento que ele

inspirava. Estando fora no final de semana quando as flores chegaram, ela

só me retornou no dia 29. Nosso papo foi mais curto que o normal, mas ela

me agradeceu efusivamente e rimos juntos uma ou duas vezes. Lembro-me

bem de ter dito "Eu te amo" antes de desligar. Menos de uma semana

depois, eu estava parado no mesmo lugar e falando com Steve no mesmo

telefone.

- Eles voltaram de Birch Bay - Steve começou a me contar. - Gordy

disse que Karen foi à varanda para fumar um cigarro, depois voltou e

passou por ele a caminho do banheiro dizendo que não estava se sentindo

bem. Poucos segundos depois, ele ouviu um baque, foi ver o que havia

acontecido e encontrou Karen inconsciente no chão. Hemorragia grande no

cérebro. Ela não acordou desde então.

Afundei na cadeira do escritório.

- Onde ela está agora?

- No hospital - ele respondeu. - E os médicos acham que ela não vai

acordar mais.

Muita coisa aconteceu nas doze horas ou mais que levaram para eu

comprar uma passagem e atravessar os Estados Unidos para me juntar à

minha mãe, aos meus irmãos, a Gordy, Richard e Jamie no hospital que

ficava em Surrey, e nada de bom. Karen dependia completamente do

respirador para permanecer viva. Seu cérebro, segundo os exames, tinha

morrido; isto queria dizer que podia sobreviver apenas com a máquina

respirando por ela e sem nenhuma chance real de recuperar atividade

cerebral suficiente para viver mais que num estado vegetativo.

Toquei sua mão e beijei seu rosto, procurando por um. pequeno si-

nal - um tremer do olho, uma mudança do peso do corpo, um dedo se

190

Page 192: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

mexendo, qualquer coisa. Mas uma olhada ao redor, no rosto de minha

família, mostrou-me que todos já haviam aceitado o que eu estava come-

çando a entender. K. C. já tinha partido. Mesmo assim, ficamos lá mais

algumas horas, até concordarmos que deveríamos ir todos para casa des-

cansar um pouco. Os médicos prometeram fazer outra bateria de testes pela

manhã e conversar conosco a respeito das opções que Karen teria.

Minha repentina partida de Nova York e a incerteza do que encon-

traria fizeram com que eu deixasse Tracy e as crianças em casa. Sentia

muita falta do conforto de Tracy e do consolo que ela poderia dar não só a

mim, mas também à família da qual ela se tornara parte muito importante.

Dormir não era uma possibilidade, então passei a noite olhando o relógio,

decidindo que cinco da manhã - oito na Costa Leste - seria um bom horário

para ligar para Tracy e contar os detalhes tristes.

Quando nos falamos, ela perguntou se eu queria que ela fosse, e me

vi, pela primeira vez, falando em voz alta o que meu coração sabia que era

a verdade:

- Acho que até você chegar aqui ela já terá partido. Vamos todos

nos encontrar no hospital para falar com os médicos. Tenho quase certeza

de que vão recomendar que a deixemos partir.

O que eu poderia ter dito, mas não disse, é que era melhor esperar

os planos para o funeral serem feitos.

O resultado já era certo, o médico nos assegurou, porém a decisão

de como proceder era nossa. Reunimo-nos numa pequena sala de espera

adjacente à UTI onde Karen passara a noite. Muitas famílias enfrentam

momentos como esses, e não posso imaginar como cada um chega à

conclusão do que é melhor para si mesmo e para as pessoas que ama. Não

consigo nem recontar com exatidão como chegamos à nossa decisão. Sei

que meu irmão lembrou bem que a vida de Karen nos últimos quinze anos,

depois da cirurgia e sem ataques, havia sido uma conquista tão grande para

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Page 193: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ela que a perspectiva da vida que os médicos haviam descrito com certeza

não seria a escolha que Karen faria. No fim, acabou sendo um papo entre

Gordy e minha mãe. Foi curto, e os dois concordaram. Iríamos deixar que

desligassem o respirador e passaríamos o dia nos despedindo. Alguns

minutos depois de o médico aceitar e concordar com nossa decisão, ele

voltou acompanhado de uma moça bem-apessoada, na faixa dos 40 anos,

que se apresentou como a capela do hospital. Ela apertou as mãos de todos

nós, oferecendo sinceras condolências. Não tínhamos pedido um clérigo e

ficamos sem saber o que fazer diante da presença dela. Mas minha mãe

pareceu mais confortada em saber que Deus estaria representado nessa

triste situação, mesmo que fosse por procuração. Então convidamos a

capela a permanecer com a família durante os acontecimentos das próximas

horas. Não posso falar pelos outros, mas senti uma ponta de ressentimento,

não ultraje, apenas um pequeno sentimento de intrusão. O que os capelães

de hospital fazem? São coletores de almas? Mal conseguíamos nos

conformar com o fato de estarmos perdendo alguém com a qual não

podíamos imaginar viver sem, e ela estava ali para fazer o quê? Garantindo

a parte de Deus? Eu queria ouvir o que ela tinha a dizer sobre isso.

Logo percebi que minha preocupação era infundada, Instintivamen-

te ela percebeu que deveria ir até minha mãe, e seu afeto teve efeito cal-

mante. Mais tarde, quando todos estavam reunidos no quarto da UTI, cada

um achou seu espaço ao lado da cama, colocando uma mão sobre ela e

outra em K.C., com a capela permanecendo em silêncio. As horas

passaram, e o ar da sala não foi ficando pesado, como era de se esperar,

mas, a cada momento que passava, cada um sussurrava um adeus e também

um "Nós te amamos, K.C.". A vigília evoluiu para algo intensamente

espiritual. Começamos a contar histórias e dividir lembranças pessoais;

houve muitos risos, mesmo quando enxugávamos lágrimas com mangas já

ensopadas dos choros anteriores. Os funcionários do hospital, que

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Page 194: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

presenciam tragédias familiares todos os dias, para minha surpresa, não

eram imunes à emoção e ao amor demonstrado pela nossa família. Os

intervalos entre uma e outra de suas visitas foram diminuindo e sabíamos

que o tempo de Karen conosco estava acabando.

A capela mal tinha falado a tarde toda, mas veio com uma pergunta

para nós:

- Karen tinha uma música preferida?

Steve e eu trocamos olhares, e um tipo de alarme soou na minha ca-

beça. Será que ela estava sugerindo um hino religioso? Não sei por que,

mas isso me pareceu meio inapropriado.

- Algo que ela amasse quando era adolescente? Talvez algo de que

ela gostasse de cantar? - a mulher continuou.

Minha irmã Jackie, talvez a mais emotiva de todos nós com a situa-

ção, foi a primeira a responder. Numa voz suave e trêmula, ela cantou:

"Sweet little Sheila, you'll know herif you see her" (pequena e doce Sheila,

você a reconhecerá se a vir).

Kelly juntou-se a ela: "Blue eyes and a ponytail" (olhos azuis e rabo

de cavalo).

Tommy Roe, 1962. Karen amava essa música. Tenho certeza de

que nenhum de nós pensou muito nisso, mas todos, de algum modo, sabía-

mos a letra. Até meu irmão e eu nos juntamos ao coro: "We're so doggone

happy, just beirí around together" (estamos felizes demais apenas porque

estamos juntos).

Agora todos juntos: "Man, that little girl isfine" (cara, essa pequena

é o máximo).

Estávamos chorando, cantando e rindo. E K. C. estava indo. E está-

vamos tristes, mas sabíamos que ela estava bem. Tínhamos fé.

193

Page 195: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

PARTE QUATRO

Família

Sorte no amor

Do mesmo jeito que as pessoas supõem que o período de mais ou

menos oito anos desde que escrevi o primeiro livro foi de declínio, também

supõem que isto tenha ocorrido com meu casamento, que eu teria ficado

mais debilitado e que, com isso, meu casamento teria ficado sobrecarre-

gado. Mas, na verdade, este foi um tempo de iluminação e aprendizado,

que nos levou a ura incrível enriquecimento.

Opa, ficou boa a frase acima. Devia tê-la guardado para o cartão.

Hoje é o dia do nosso aniversário de vinte anos de casados e tenho

um cartão em branco para preencher com meus sentimentos até a hora do

jantar - vinte anos de amor, gratidão, afeição e respeito colocados na minha

cada vez mais indecifrável letra. Prometi a mim mesmo que limitaria a

coisa apenas ao espaço do cartão.

Muito do que foi tão bem nesses vinte anos tem a ver com como as

coisas que deram erradas foram abrandadas pela nossa relação, parceria,

194

Page 196: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

amizade e, em sentido mais amplo, pela possibilidade de o nosso

casamento dar certo. Algumas pessoas me perguntam o segredo de um

casamento longo e feliz, do mesmo modo que me perguntam qual a chave

para criar bem os filhos. Minha resposta rápida para a parte dos filhos é:

'Ame-os, alimente-os e mantenha-os longe do tráfico". Já para o casamento,

também tenho uma resposta curta: "Mantenha as brigas honestas e o sexo

sacana". Claro que não sei a resposta para nenhuma das duas perguntas,

mas o que aprendi com minhas experiências nas duas áreas vale a pena

darmos uma olhada mais profunda. Só vou resolver o problema do cartão e

já volto.

Amor e sordidezLOS ANGELES, CALIFÓRNIA • 11 DE SETEMBRO DE 2001

O telefone do hotel me acorda de um sono profundo. Luto contra

ele e vejo que são 6 horas. Vim à Califórnia fazer uma participação em

Spin City, agora com Charlie Sheen como astro, mas não era esperado no

estúdio antes das 10 horas. Resmunguei algo ininteligível.

- Liga a televisão - era Tracy.

- Quê? Ah, tá bom. Que canal?

- Não interessa. Qualquer um.

Merda. Só isso já era suficiente para me dizer que algo grande tinha

acontecido, se eu ainda não tivesse intuído pela hora da ligação e pelo

nervosismo na voz de Tracy. Peguei o controle remoto e apertei o botão.

Enquanto a TV ligava, o pequeno pixel no centro da tela aumentava e re-

velava a imagem do World Trade Center. Uma enorme nuvem de fumaça

preta saía de uma torre do lado direito da tela. O controle remoto caiu da

minha mão. Levantei da cama e caminhei em direção à TV numa espécie

de transe, até que a base do telefone escorregou do criado-mudo e caiu no

chão, levando com ela meu copo-d'água, caixas de remédios e o roteiro de

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Page 197: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Spin City, lembrando que eu ainda segurava a outra parte do telefone.

- Estou vendo o que acho que estou vendo? - perguntei.

- Ouve um acidente no World Trade Center - ela disse. - Um avião

acertou uma das torres.

- Não acho que tenha sido um acidente - respondi. - Já tentaram

explodi-las em 1993. O que estão falando na TV?

- Não tenho certeza - ela respondeu. - Apenas que aconteceu.

- Onde estão as crianças?

- Na escola.

Aquinnah e Schuyler estudavam no segundo ano numa escola no

Upper East Side, relativamente perto da nossa casa e muitos quilômetros

ao norte do Lower Manhattan, onde as coisas estavam acontecendo. Já Sam

estudava no centro, não na direção exata das torres, mas perto o suficiente

para colocá-lo na zona de impacto de um desastre dessa magnitude.

- Espere alguns minutos até eu descobrir o que está acontecendo,

mas acho melhor ficar preparada para pegar as crianças.

- Todas as crianças? As meninas também?

- Sim, eu acho.

Ainda estávamos ao telefone quando o segundo avião bateu na

torre. A cidade onde estavam meus filhos e minha mulher grávida de oito

meses estava sendo atacada naquele instante.

- Espere um pouco - Tracy pediu. - A outra linha está tocando.

Antes que eu pudesse protestar, ela me colocou na espera. E depois

do que pareceu um tempo interminável, apesar de provavelmente

ter sido menos de um minuto, ela voltou.

- Você não vai acreditar quem era - Tracy disse. - Era o Sy.

- Sy? O motorista?

Ele trabalhava para uma locadora de carros com motorista de Nova

York. Quando tínhamos um evento ou situação que pedia mais conforto e

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confiabilidade do que os táxis amarelos podiam nos dar, contratávamos os

serviços delas. Eu gostava de Sy, um senhor de voz grave e muito

amigável, sempre com uma história para contar. Todavia, pelo que eu

estava prestes a ouvir de Tracy, ele ganhara um lugar no meu coração para

sempre.

- Sy está com Sam - Tracy falou. - Ele estava por perto. Assim que

ouviu sobre a segunda explosão, foi até a escola e pegou Sam. Eles estão a

caminho daqui. Agora vou buscar as meninas. E depois ligo para você.

- Dê meu telefone a Sy e peça para ele me ligar- pedi.

Dez minutos depois, pela TV da minha suíte em BeTerly Hills, eu

testemunhava um êxodo em massa, centenas de milhares de pessoas em

carros e a pé, indo em direção ao norte pela FDR, algumas atravessando as

pontes do East Side. O que fez com que essa experiência fosse ainda mais

assustadora e surreal foi o fato de que, naquele mesmo momento, meu filho

de 12 anos falava comigo do meio daquele imenso rio humano que o

carregava para o norte. Ele parecia assustado, mas afirmava que se sentia

seguro. Apesar de sua postura ter me dado certo alívio, eu sabia que só me

sentiria bem quando estivessem todos em casa, ou melhor, fora da ilha de

Manhattan, juntos e já na nossa casa de campo em Connecticut. Mais que

tudo, é claro, eu queria estar lá com eles - todos nós juntos e salvos.

Tenho certeza de que a memória emocional se mostra presente para

a maioria das pessoas. Com Tracy, minha esposa e mãe dos meus filhos,

desenvolvi uma conexão tão profunda que colocaria minha vida em risco

para proteger a dela a qualquer hora. Eu pularia na frente de um trem por

ela. Com os filhos, o instinto protetor de pular na frente de um trem existe

desde o primeiro dia. No dia 11 de setembro de 2001, enquanto minha

família estava em Nova York, eu não estava realmente em Los Angeles; se

eu não estava com eles, então não estava de verdade em lugar nenhum.

A cada segundo que passava, minha vontade de voltar para minha

197

Page 199: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

família aumentava. Mas logo ficou claro que não havia a mínima chance de

pegar um voo para Nova York, para alguma outra cidade da Costa Leste ou

qualquer outro lugar nos Estados Unidos. Os céus sobre o país todo

estavam fechados; ninguém podia voar.

Nelle Fortenberry, minha assistente de produção, também estava

comigo em Los Angeles para minha participação em Spin City, assim como

Jackie Hamada, em sua primeira semana de trabalho como minha nova

assistente pessoal. O trabalho dela já era bem complicado nas horas boas,

mas essa, de repente, era a pior hora de todas. O marido de Nelle, diretor de

TV e o filhinho tinham vindo de avião, de Nova York, mais cedo naquele

dia.

Fiz um monte de telefonemas entre os momentos que falava com

Tracy e as crianças, incluindo vários curtos com Jackie e uma longa

conversa com Nelle - se bem que "conversa" talvez não seja o termo

adequado. Cada um do seu lado da linha, emudecido, assistia às notícias

não só de Nova York, mas também do DC e da Pensilvânia, às vezes

quebrando o silêncio para oferecer uma interpretação dos eventos. Naquele

instante, milhões de pessoas em todo o país e ao redor do mundo estavam

fazendo a mesma coisa: apenas tentando entender o sentido de tudo aquilo.

- Teve alguma notícia dos produtores? - Nelle perguntou, referindo-

se ao dia de trabalho que tínhamos agendado em Spin City.

- Ainda não - respondi. - Pedi um carro para nós.

Para ela, isto trouxe mais confusão a uma manhã que já era confusa

o bastante. O estúdio providenciava transporte para que eu fosse e voltasse

do trabalho, então por que eu fizera isso?

- Um carro com motorista? Para ir ao estúdio? - ela me perguntou.

- Não vou para o estúdio - respondi. - Vou para Nova York. Hoje é

terça e ainda é cedo. Se parar apenas para abastecer, consigo chegar lá na

quinta à noite.

198

Page 200: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Uma das coisas que amo em Nelle é que ela tem muito mais cons-

ciência das coisas que eu. Ela estava pensando na agenda programada do

estúdio.

- Então eles não vão mais gravar esta semana?

- Não sei. Mas eu não vou gravar o programa esta semana. Vou

para casa.

Embora um pouco contrariada, ela entendeu minha decisão e disse

que ligaria para Gary Goldberg e lhe diria o que eu pretendia fazer. Ja-ckie

e eu havíamos falado sobre alugar um carro, mas dividir a direção em

apenas dois durante quarenta e oito horas sem parar pareceu meio absurdo,

e nenhuma empresa que contratamos estava preparada para nos arranjar um

veículo e um motorista para fazer uma viagem de quase cinco mil

quilômetros até uma zona de guerra.

Gavin De Becker é renomado segurança pessoal e especialista em

avaliação de riscos, além de ser meu amigo. Anos antes, ele ajudou a

polícia a rastrear e prender um fã desequilibrado que fizera várias ameaças

de morte a mim e a Tracy. A empresa de Gavin também havia feito a

segurança contra paparazzis em nosso casamento e em outros vários

eventos pessoais e profissionais. Quando falei com ele naquela manhã, já

estava trabalhando duro, analisando a situação em conjunto com agências

para as quais já trabalhara no passado. Gavin estava disposto a me ajudar

como pudesse. E concordou em providenciar uma picape com dois agentes

para dirigi-la.

Saímos de Los Angeles por volta das 15h30. A cozinha do hotel nos

preparou alguns lanches e também nos deu travesseiros e cobertores. Eu

não ia dirigir, mas era difícil imaginar que conseguisse dormir.

Tracy decidiu que era possível ficar em nosso apartamento em

Nova York. Os amigos da vizinhança prometeram manter contato constante

com ela. Pedi ao nosso amigo Curtis Schenker, se a situação piorasse, que

199

Page 201: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

levasse minha família com a dele para nossa casa de campo em

Connecticut. Mas não havia garantias de que eles teriam permissão para

deixar a cidade. A preocupação do governo com possíveis novos ataques

permanecia alta, por isto o tráfego para entrar e sair de Manhattan pelas

várias pontes e pelo túnel havia sido severamente restringido. Tínhamos

sido alertados de que poderíamos chegar até os portões da cidade apenas

para ter nosso acesso a ela negado, mas, como diz o ditado, só poderíamos

cruzar a ponte (ou não) quando chegássemos até ela. O importante era

chegar lá.

Os funcionários de Gavin, Dennis e Steve, eram extremamente

profissionais, guiando-nos ao longo dos Estados Unidos pelo sudoeste,

passando pelo Texas, por Oklahoma, depois subindo pelo Missouri,

passando pelo Meio-Oeste e em direção ao nordeste. Concordei que

acompanhar as Rochosas, apesar do cenário de tirar o fôlego, apenas au-

mentaria a distância e nos faria perder tempo. Assim que saímos de Los

Angeles, o sinal do celular começou a falhar. Sempre que achava um sinal

que se mantinha, ligava para Tracy, da mesma forma que um corredor de

maratona checa sua pulsação. Em cada região, conseguíamos achar a Rádio

Pública Nacional. O clima no carro era sombrio. Fizemos algumas paradas

para reabastecer o veículo e comer, incluindo um prato de espaguete no

Olive Garden do Texas. Esta foi a quarta vez que cruzei o país de carro.

Apenas quatro anos antes, havia feito essa viagem com Sam. Todavia,

enquanto Sam e eu procurávamos diversidade naquela experiência, nesta

viagem eu sentia conforto em ver coisas que conhecia, cópias carbono de

cultura. Eu sabia que estava comendo um espaguete igual a todos os Olive

Garden do país. Os donos do restaurante estavam tão focados nos eventos

de Nova York e Washington quanto imagino que as pessoas de Nova Jérsei

estivessem. Parando para usar o banheiro em um quiosque de informações

turísticas em Oklahoma, vimos um aviso que dizia: "Todas as agências

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Page 202: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

governamentais estão fechadas até segunda ordem por causa da ameaça

terrorista". Duvido que a Al Qaeda tivesse aquela casinha com dois lugares

em seus planos, e que distribuísse mapas, mas vi aquilo mais como um

gesto de solidariedade que de medo de uma ameaça. Passar por Oklahoma

lembrou-me do ataque terrorista de seis anos antes, quando um prédio

federal foi destruído, matando quase duzentas pessoas. Lembrei da imagem

de um bombeiro carregando um bebê ferido e pensando que não dava para

ficar pior que aquilo. Percebia agora que, quando a coisa fica feia, ela fica

feia mesmo. Não há graus. No dia 13 de setembro, bem cedinho, passamos

por St. Louis. Não consegui me decidir se o Arco Gateway parecia

vulnerável ou desafiador - acho que os dois. Aquela dicotomia resumia o

humor do país que eu estava atravessando como um fantasma.

No fim da tarde, estávamos em Somerset Coranty, na Pensilvânia,

perto da fazenda onde, apenas dois dias antes, um avião fora derrubado

pelos passageiros para evitar que fosse desviado para a Casa Branca. Liguei

para Tracy para dizer onde estávamos e quanto demoraria para chegarmos.

Ela tinha um pedido: será que eu podia comprar pão?

Quando estava escurecendo, chegamos a Nova Jérsei. Do outro lado

do rio Hudson estava Manhattan, cercada de fumaça, poeira e cinzas. A

falta das torres era o que mais se destacava na paisagem. O céu me deu a

impressão de um machucado recente. Olhar para ele foi doloroso, mas eu

não conseguia parar.

Dennis e Steve, sem conhecer os padrões de trânsito de Manhattan,

perderam a primeira saída. Fizemos a volta na ponte George Washington, a

única rota viável para entrar na cidade vindo do oeste. Uma última parada

para abastecer e, para cumprir o que Tracy havia pedido, comprei pães.

Entramos numa longa fila de carros e caminhões que tinham de passar pela

segurança combinada de polícia e exército. Dois dias tinham se passado

desde que saíramos de Los Angeles, e, tendo chegado, senti um frio na

201

Page 203: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

barriga pelo que iria encontrar. Sentia que estava voltando para casa, mas,

ao mesmo tempo, para um lugar onde eu nunca havia estado antes.

Meu único desejo concreto, além de me reunir com minha família,

era abraçar meus três filhos o máximo de tempo que eles pudessem

agüentar e, ao abraçar Tracy, abraçar nosso quarto filho, que nasceria em

menos de dois meses. Eu continuava com meu plano de sair com todos da

cidade, pelo menos temporariamente. O rádio dizia que Nova York poderia

sofrer novos ataques; os serviços governamentais eram limitados; e, como

vi ao comprar pão, os comerciantes trabalhavam com filas ininterruptas.

Com o senso de segurança lá no alto pela minha volta, as crianças

não queriam ir para o campo; na verdade, não queriam ir a lugar nenhum.

A vontade delas era de voltar para a escola e ficar com os amigos. Eu

esperava que Tracy, já nos últimos estágios da gravidez, pensasse diferente

e quisesse sair de Nova York. Mas ela sentia que o melhor para nossa

família e para a cidade era que ficássemos por lá.

Dois dias num carro e sem acesso à televisão tinham me deixado

com pouca exposição às imagens inesquecíveis que eram reprisadas a todo

momento nos últimos dois dias. Claro que as imagens iniciais do desastre

estavam gravadas para sempre na minha mente: prédios caindo, pessoas

aterrorizadas correndo entre um mar de edifícios, perseguidas por turvas

nuvens de morte. Contudo, agora eu tinha a chance de testemunhar, em

primeira mão, a coragem, a bravura, o sacrifício e o senso de envolvimento

da comunidade aqui presente, desde o instante em que o primeiro avião

bateu na torre. Comecei a entender por que tanta gente ficou. Muitos

estavam com medo, mas ao mesmo tempo cheios de esperança. Os efeitos

reverberaram por todo o país, porém, enquanto Nova York tinha sido alvo

de um ato dos mais desprezíveis, um dos piores tipos de sofrimento que um

ser humano pode infligir a outro, também tinha surgido sua grande virtude.

A esperança, neste caso, era verdadeiramente um otimismo formado pelo

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Page 204: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

conhecimento de que mais pessoas estavam mais inclinadas a fazer o bem

do que o mal.

HOSPITAL MONTE SINAI, NOVA YORK 3 DE NOVEMBRO

DE 2001

Menos de dois meses depois, Tracy deu à luz nosso quarto filho,

nossa terceira menina. Demos a ela o nome Esmé por causa do título do

conto de J. D. Salinger, "Para Esmé - com amor e desprezo", que

demonstrava bem o que tínhamos vivido nas semanas anteriores. No dia 4

de novembro de 2001, algumas horas antes de voltarmos para casa com

Esmé, olhei pela janela do quarto de Tracy no hospital e vi uma cena

incrível se desenrolando lá embaixo, na Quinta Avenida. A Maratona de

Nova York, que fora ameaçada de cancelamento, estava acontecendo em

grande estilo. Era um tipo bem diferente de explosão: era uma explosão de

cores, energia, resistência - uma verdadeira celebração do espírito humano.

A primeira visão que Esmé teve de sua cidade e de seu mundo foi mais de

amor que de desprezo.

Por que fico firme com Tracy e trêmulo

sem ela

UNIVERSIDADE DE COLÚMBIA, NOVA YORK 11 DE

SETEMBRO DE 2008

Sete anos depois, para lembrar os eventos do 11 de setembro de

2001, os candidatos à presidência Barack Obama e fohn McCain vieram

discursar na Universidade de Colúmbia, mas separadamente - apesar de

ser no mesmo palco e na mesma noite -, a respeito de serviços públicos. O

campus da universidade fica do outro lado do Central Park e a uns doze

quarteirões de nossa casa, por isso decidimos assistir ao evento

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Page 205: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

pessoalmente. Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire ocuparam as cadeiras

bem à nossa frente. Algumas fileiras adiante estava Bonfovi e logo à minha

esquerda estava o astro Usher Raymond.

Mas, minutos depois de começar o evento, desejei que tivéssemos

optado por vê-lo na televisão. Meu problema não era com nada do que eu

estava ouvindo dos primeiros oradores. Eu estava bem concentrado. O

problema era meu cérebro. Com quase nenhum aviso, comecei a tremer

dramaticamente, pulando na cadeira e alternando entre dobrar os braços,

que abanavam na minha frente, e sentar sobre as mãos. Todavia, o

desenrolar foi pior, com as pernas ficando enlouquecidas. Estendi-as bem

na minha frente e pressionei uma contra a outra, como se fosse fundi-las

numa só, mais fácil de controlar que as duas rebeldes. Isso me deixou na

arriscada posição de talvez chutar a bunda do Homem-Aranha, mas,

quando as firmei no chão, ambas deram uma acalmada, apenas pulinhos e

escorregando para os lados, o que me deixava na situação de Usher achar

que eu estava flertando com ele ao fazer a "dancinhagay" do senador

Larry Craig. Se houve um momento para eu escapar, ele passou na hora

em quefohn McCain subiu ao palco.

— Eu sabia que o negócio ia mal - Tracy me disse mais tarde - e

que você precisava ter saído e ficado sozinho até os remédios fazerem

efeito. Mas fiquei com medo de que, se você saísse de repente da cadeira

enquanto McCain estava discursando, o serviço secreto caísse em cima.

Quando Judy Woodruff, moderadora da noite com o editor da

revista Time, Richard Stengel, passou para os comerciais logo após a

primeira parte do discurso de McCain, Tracy viu isto como a chance de

que eu precisava. Por razões difíceis de explicar após o momento ter

passado, relutei quando ela se ofereceu para me levar para fora do

auditório. Enquanto me movimentar é inicialmente difícil, comprometer-me

com uma ação simples é ainda pior, e ter Tracy me ajudando a passar por

204

Page 206: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Usher poderia ser mais embaraçoso que minha "dancinha" do senador -

era bem capaz de eu cair sentado no colo do cara.

Apesar de minha esposa se esforçar para me levantar e me levar

para fora, estanquei e não consegui, depois tremi, bati, ondulei durante o

intervalo e tentei convencê-la de que os remédios já estavam para fazer

efeito e de que o alívio era iminente. No entanto, quando as luzes

começaram a se apagar, os tremores pioraram e preparei-me para mais

um assalto na luta comigo mesmo. Transferir deforma isométrica a energia

de uma parte do corpo para outra é um trabalho duro, como apagar o

incêndio de uma casa usando colheres com água, por isso eu pingava de

suor. Vendo as gotas escorrendo por todo meu rosto, Tracy tentou me

ajudara tirar o paletó, mas, após começara tirá-lo dos meus ombros, ela

hesitou e o colocou de volta. Minha camisa azul ficara azul-marinho por

causa de tanto suor. No próximo intervalo, depois do que pareceu ser uma

eternidade, deixei-a me levar para fora.

Em menos de um minuto eu estava num silencioso canto da ante-

sala, virando uma garrafa de água gelada. Convenci Tracy a voltar lá

para dentro; ela prometeu voltar e ver como eu estava no próximo

intervalo, antes de Obama subir ao palco. Passei os dez minutos seguintes

repetindo a mim mesmo quanto eu era sortudo.

Exceto pelo fato de que estivemos na mesma sala que o futuro pre-

sidente dos Estados Unidos, aquela noite não foi nada fora do comum. O

Parkinson sempre me prende numa caixa, e Tracy virou especialista em

abrir as abas, puxar a tampa e me tirar de Já de dentro. Isto não passa

despercebido e fez com que ela ganhasse o respeito e a empatia de outras

pessoas na mesma posição que a sua. De modo compreensível, as pessoas

projetam suas situações na dela. E, mesmo Tracy sendo sempre bondosa e

tendo muita compaixão, este não é um papel no qual ela se sinta

particularmente confortável. Ela simplesmente não vê as coisas dessa

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Page 207: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

forma. Não que ser casada comigo seja fácil - é preciso ter muita paciência

-, mas com certeza ela diria a você, provavelmente rindo, que o maior

desafio dela não é ter um marido com Parkinson, é ser casada comigo. E,

por falar nisso, eu tenho Parkinson.

Sam sempre teve problemas com matemática básica, porém, à me-

dida que foi crescendo, mostrou-se um excelente aluno nessa disciplina -

parece contradição, mas não é. Enquanto a parte básica - somas rápidas,

tabuada e divisões - pareciam confundi-lo, a parte mais complexa da coisa -

álgebra, trigonometria e cálculo - o animavam muito. Acho que Tracy e eu

sentíamos o mesmo com o casamento. Quanto mais complicado ficasse,

mais parecia despertar o melhor em cada um de nós.

O confronto com uma complicação tão terrível quanto meu diag-

nóstico de DP, tão no início do nosso casamento, poderia ter acabado com

tudo. Eu, para começar, não era propenso a ficar reclamando da vida.

Sempre acreditei no que prego agora: que era um feliz ganhador na loteria

da vida e que tinha tudo que poderia querer - uma grande carreira, uma

esposa linda e um filho saudável. Meu esforço era apenas para imaginar

como manter tudo isso. Eu trabalhava mais do que precisava, preocupando-

me mais do que gostaria de admitir e bebendo mais que qualquer um deve

beber. Eu não estava numa boa posição para lidar com o que estava para

acontecer.

Durante o curso de sua vida, Tracy desenvolveu várias característi-

cas peculiares que, apesar de terem sido muito importantes no passado, não

seriam de grande valia agora e, pior, seriam contraproducentes. Ela acredita

piamente que pesquisas e planejamentos meticulosos podem evitar

qualquer desastre. Quando, pouco depois de conhecê-la, descobri que em

meio hipocondríaca, achei isso fofo, mas não pensei naquela época que

ficar extremamente doente é algo que acontece com as pessoas. A mudança

que o Parkinson forçou em mim e, por tabela, em Tracy e na nossa família,

206

Page 208: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

não é nada em comparação às mudanças que trouxemos um ao outro.

Damos muito mais um ao outro do que o Parkinson pode tirar.

Para mim e para Tracy, seria muito difícil separar nosso

crescimento pessoal do crescimento de nossa família. Após meu

diagnóstico de DP, algumas pessoas ficaram chocadas e mostraram

preocupação quando contamos que tínhamos planos de ter mais filhos.

- Acham que isto é justo? - perguntaram. - Justo para a criança?

Justo para você? E o futuro?

Sei bem que tipo de destino desolador essas pessoas imaginavam

para mim, mas fico feliz em afirmar que não aconteceu.

Então, depois de Sam vieram as gêmeas, Schuyler e Aquinnah, e,

seis anos mais tarde, Esmé.

O plano familiar

Há um ditado sobre ser pai e mãe que é mais ou menos assim:

quando seu primeiro filho está chupando uma chupeta e a derruba no

chão, você a recolhe, desinfeta em água fervendo para destruir as

bactérias e depois a põe na boca dele de volta. Com o segundo filho você

percebe que uma passada na água corrente da tornara elétrica está bom.

Já no terceiro filho você pega a chupeta do chão, dá uma lambida nela e a

devolve para a criança. No quarto, você dá a chupeta para o cachorro

lamber.

Aos que ficaram curiosos para saber por que eu e Tracy, pais de três

filhos, resolvemos ter mais um já estando na faixa dos 40 anos, podemos

dar as seguintes razões:

-A casa ainda não estava barulhenta o suficiente.

- Nossa mesa da cozinha tinha seis lugares.

- Apenas tivemos uma sensação de que estava faltando alguém.

207

Page 209: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Falando de maneira clara, acho que o que aconteceu foi que, como

família, ainda não estávamos completos. Outra maneira de olhar a

coisa é que, pessoalmente, eu estava muito mais presente no nascimento de

Esmé que no nascimento dos outros três. De volta para o futuro II e III, Dr.

Hollywood - uma receita de amor, Aprendiz de feiticeiro, Um talento muito

especial, Por amor ou por dinheiro e Os puxa-sacos - fiz sete filmes antes

de Sam fazer 5 anos. E nos primeiros quatro anos de vida das gêmeas eu

estava estrelando e produzindo uma série semanal de TV Eu já estava havia

dez anos com Parkinson e entrando em meu primeiro ano de aposentadoria

de Spin City quando Esmé nasceu. Eu estaria por perto para ouvir suas

primeiras palavras, para ver seus primeiros passos; iria ver a riqueza e

profundidade da personalidade dela.

Se Esmé fosse dividir a chupeta com nossa cadela, Daisy, podería-

mos dizer que Sam, nascido menos de um ano depois de Tracy e eu nos

casarmos, passou muito tempo esperando aquela água do ditado ferver.

Como pais de primeira viagem, Tracy e eu caímos numa rotina de exagero

no que, olhando agora, eram as coisas mais básicas do processo. Fomos a

muitas aulas de Lamaze e de pais iniciantes (botar fraldas em bonecas, e

por aí vai). Reagíamos a cada choro ou resmungo como se fosse uma sirene

de ataque aéreo, sem conseguir acreditar que aquele bebê de saúde de ferro

poderia manter uma respiração regular.

Raramente longe de nós, Sam passava as férias conosco e também

ia a reuniões de negócios e restaurantes. Se algum de nós estivesse tra-

balhando, arranjávamos acomodações no estúdio. Vigílias noturnas ao lado

do berço eram um ritual, ainda mais se ele chorasse querendo a mamadeira

ou fizesse barulhos estranhos pedindo por uma troca de fralda. Tudo isso

era para ter certeza de que ele ainda estava vivo, um milagre contínuo.

"Milagre" não é uma palavra forte demais quando é um jovem pai

que a usa. Meu sentimento era de que (conheço outros pais com a mesma

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Page 210: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ilusão) esse bebê, o nosso bebê, tinha um significado especial. Da mesma

forma que toda noiva no dia do casamento é Grace Kelly, antes de perceber

que não se casou com um príncipe e que mora era Bayonne, Nova Jérsei, e

não Mônaco, pais de primeira viagem acham que deram à luz o Menino

Jesus. Quanto antes perceberem que estão errados, melhor para o Júnior.

Um grande número de livros e de programas de TV a cabo alimenta esse

narcisismo. Claro que não existe um jeito certo de cuidar de um bebê e

criar um filho. Até mesmo os mais bem-intencionados, os pais e mães mais

certinhos, acabam fazendo besteiras colossais alguma hora.

Quando Sam nasceu, troquei minha Ferrari de motor potente, dois

lugares, roncadora, uma máquina mortífera preta, por um ultrasseguro e

familiar SUV Consultamos a revista Consumer Reports para achar a ca-

deirinha de bebê com a melhor nota nos testes de qualidade e segurança.

Certa vez, após um dia de brincadeiras (bem, Sam tinha uns cinco meses,

então não foram tantas brincadeiras assim), estávamos voltando de carro

pela Mulholland Drive, percorrendo as difíceis curvas com extremo

cuidado. Sam estava resmungando baixinho no banco de trás, enquanto

Tracy e eu conversávamos com descontração, provavelmente sobre quão

Sam era brilhante em relação ao amiguinho que não era nenhum Menino

Jesus. Chegamos na garagem, paramos e, ao olharmos para trás, Sam não

estava lá. Entramos em pânico. Pulamos um por cima do outro para tentar

ser o primeiro a achá-lo. E lá estava ele, ainda com seus res-mungos, feliz,

de ponta-cabeça, atrás do banco do passageiro. Ele ainda estava bem preso

na caríssima cadeirinha de bebê, que só não tinha sido presa direito no

caríssimo carro. Hoje isso é quase engraçado - bem, nem tanto -, mas

naquela época ficamos horrorizados.

Examinamos cada pedaço de Sam, procurando por algum machu-

cado, e imaginamos, seriamente, se haveria algum dano psicológico de

longo prazo, qualquer trauma que pudesse combinar com um dano físico.

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Page 211: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Acho que discutimos vários dias sobre quem seria o culpado - se eu,

porque, como motorista, tinha a responsabilidade de me certificar de que

todos os passageiros estavam em segurança, ou se, precisamente por ser o

motorista, Tracy poderia ter cuidado disso com tranqüilidade. Perguntamos

aos nossos amigos, igualmente pais jovens, se eles tinham tido experiências

similares e ficamos vermelhos de vergonha quando responderam:

- Bem, não - e sem muita sinceridade ainda acrescentaram: - Mas

não precisam se preocupar com isso.

Nem preciso dizer que jamais aconteceu de novo. Depois daquele

dia, o carro nunca mais foi ligado antes de termos certeza de que ele estava

bem preso.

Claro que, se o mesmo acontecesse com Esmé, iríamos checar se

estava tudo bem com ela e, vendo que sim, trocaríamos um "Bem, acon-

tece", e iríamos direto para a parte de ter certeza de que aquilo jamais

aconteceria de novo.

Como convidado freqüente dos programas de David Letterman,

descobri que podia conseguir risadas fáceis dele contando histórias dos

meus filhos e a respeito de como ser pai. Isso funcionou muito bem na

primeira personificação do programa, na NBC, quando Sam era pequeno e

estava começando a andar. O trabalho de ser pai sempre confundia Dave.

Para ele, parecia uma ocupação em tempo integral, com mais riscos que

recompensas.

— Claro — ele diria -, crianças pequenas são bonitinhas e tudo

mais, mas simplesmente não entendo o que você faz com elas.

Eu sentia que Dave tinha aquela aversão dos solteiros pela intermi-

nável responsabilidade de criar um filho, e decidi alimentar sua ansiedade

falando mais sobre isso.

- Bem, Dave - respondi -, passear com Sam ou com qualquer crian-

ça de Z anos é basicamente como ter de vigiar um suicida. A missão deles

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é achar um jeito de se machucar a cada instante... mijar numa

tomada, lamber o focinho de um pitbull, correr atrás de um caminhão de

sorvete pelo meio da rua... e seu trabalho como pai é resolver essas coisas

antes que elas aconteçam.

Superproteção pode ser um conceito duro para um pai jovem com

um único filho para se agarrar. Além da vigilância constante, Tracy e eu

tornamos nossa casa à prova de bebês. Mais que colocar objetos afiados,

remédios, venenos e outras coisas perigosas fora do alcance de Sam, pro-

tegemos cada canto das mesinhas de centro, todas as tomadas e cada porta

ou escada com um portãozinho. Não lembro de haver uma proteção desse

nível quando eu era criança. Quem tinha condição de pagar por tudo isso?

Mas me lembro de um método usado pelas mulheres das bases militares

nas quais cresci para prevenir as crianças de se machucarem. Elas

colocavam os filhinhos num colete salva-vidas amarrado ao varal no

quintal de casa.

Vejo o jeito mais livre e desencanado da minha mãe de criar os

filhos como algo que não era nem negligente nem descuidado - era algo

meio darwiniano. Ela se arriscava e nos colocava em risco, e tenho de

admitir que os resultados foram mistos. Eu tropeçava, caía, batia nas coisas

e passava por lugares e situações perigosos quando tinha uns 6 anos de

idade, algo pelo qual Sam não vai passar a vida inteira. Um dos

condomínios de apartamentos em que moramos tinha um muro de concreto

em volta do estacionamento. O atalho que eu pegava para vir do

apartamento de meus amigos para o nosso envolvia passar em altíssima

velocidade por uma curva daquele muro. Minha mãe poderia ter estado

naquele ponto toda vez que eu viesse correndo e me avisado de que era

bom eu olhar para onde ia, mas eventualmente eu ainda iria dar uns

encontrões com o canto do muro, com força suficiente para fraturar o

crânio e ter de levar catorze pontos na cabeça. Na ausência das mães,

211

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paredes de concreto são ótimos professores. Eu era o quarto de cinco filhos.

Meus pais trabalhavam - e meu pai geralmente estava longe, em algum

posto militar -, então eu ficava bastante tempo sozinho. Se esse tempo livre

teve o preço de uns dentes quebrados, vários pontos levados e uma

concussão ocasional, mesmo assim valeu muito a pena.

Se todos os riscos são removidos do ambiente da criança, ela ficará

fadada a viver uma vida sem nunca correr riscos. Ironicamente, foi quando

as gêmeas nasceram e o mundo de Sam ficou mais cheio de gente que ele

teve mais espaço para se mexer. Se Tracy estivesse esperando apenas mais

um bebê, talvez tivéssemos conseguido manter uma boa vigilância dos

nossos dois filhos.

Claro que não é como se Sam fosse começar a surfar, esquiar, mer-

gulhar ou decidir sozinho que iria estudar na Califórnia, com um continente

inteiro separando-o do lar, e ainda assim continuaríamos a vigiar cada

passo dele.

Durante os últimos dezenove anos, passei a entender que os pais

não têm como carregar nos braços todos os "poderia ter", "deveria ter",

"tinha de", "talvez" e "e se". Cada momento novo já traz um fardo a ser

carregado, e aprendi que, em especial quando meus braços foram se tor-

nando mais trêmulos, às vezes o melhor é desencanar.

Desencanar não quer dizer apenas evitar as coisas desagradáveis;

significa também entender quando o assunto não é da sua alçada.

Aquinnah, minha filha mais velha (nasceu dez minutos antes de Schuyler),

é bailarina clássica. Hoje com 14 anos, ela faz bale desde a pré-escola.

Aquinnah é graciosa - não só na aparência, mas também pela flexibilidade,

que lhe permite se dobrar inteira e nunca cair. Tracy também tinha feito

bale, mas admitia que a paixão e o progresso de Aquinnah estavam muito

acima que os dela. Ela está nos apresentando a experiências que nunca

imaginamos ter.

212

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Fileira do meio do Teatro Estadual de Nova York do Lincoln

Center, sento-me ao lado de Tracy. Esmé, extasiada, pula de um colo para o

outro enquanto nos aproximamos do momento de O quebra-nozes, quando

a impossível mulher gigante parte as dobras de sua saia e libera uma

dúzia de pequenas dançarinas, que emergem e dançam pelo palco.

Meu foco é a terceira bailarina da esquerda para a direita - pequena, etérea

e arrebatadoramente feliz. Sinto-me mais em casa num jogo de beisebol

que no bale, mas agora estou me sentindo absolutamente em casa; não na

minha, mas na de Aquinnah.

Schuyler dançou durante alguns anos também. Entrou na mesma

prestigiosa escola de bale da irmã e apareceu em algumas produções pro-

fissionais. Mas há dois anos ela disse que queria experimentar outras

coisas, talvez algum esporte. Para os gêmeos, a vida de um é inexpli-

cavelmente ligada à do outro. Andar para fora da segurança e do enig-

mático mundo de ser uma metade para virar um indivíduo completo é algo

bem assustador. Os pés de Schuyler sentiram-se melhor com chuteiras de

futebol que com sapatilhas de bale. Alongar num colchonete a animava

mais que girar pelo palco. Deixei para trás as últimas ilusões de que nada

de bom poderia transpirar do coração da criança, do seu rosto ou até

mesmo de sua alma sem que eu colocasse lá, quando a vi correndo pelo

campo.

Do meu lugar no quase vazio Estádio Icahn, segui o ponto louro e

azul, que era Schuyler de uniforme de corrida, enquanto ela corria pelo

campo e se aquecia nas raias antes da partida. Ela cumprimenta uma das

colegas de equipe, apesar de que, conhecendo Sky, sei que ela não liga

muito para quem ganha e quem perde. Várias escolas independentes de

Nova York estão participando, e a competição parece formidável. Schuyler,

meio rindo, deixa um grupo de amigas barulhentas e segue em direção ao

início da pista, onde os corredores estão se alinhando para sua corrida.

213

Page 215: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Como é baixinha, perco-a de vista várias vezes, quando passa por trás de

meninas mais altas e maduras de corridas anteriores, mas as horas em que a

vejo ela parece estar muito feliz, sorrindo como sempre e totalmente

despreocupada com o fato de que a competição vai começar. Ando pela

arquibancada até um lugar no qual vejo o meio da pista. Será que ela sabe

como fazer isso? Parada na linha de partida enquanto as outras

competidoras alongam as grandes pernas e se aquecem, Sky parece o

cordeiro diante do lobo. A única coisa que me impede de gritar conselhos é

o fato de não ter nenhum a oferecer, sabendo pouco mais sobre corridas do

que sei de dança - ou seja, quase nada. O juiz levanta a arma para dar o tiro

inicial. Sky olha para baixo e depois levanta a cabeça, e aquele meio

segundo é transformador. Sua face angelical é estoica e confiante; seus

olhos ficam semicerrados. Jesus, penso quando é dada a largada. Ela vai

ganhar essa coisa. E ganha mesmo. E com folga.

Esmé, sendo nossa quarta filha, nunca foi filha única como Sam ou

conectada fisiológica e psicologicamente a alguém como as gêmeas o são.

A cena a seguir, ou versões dela, aconteceram inúmeras vezes em

nossa casa nos últimos anos: estou sentado na banqueta da cozinha no

nosso apartamento de Nova York, lendo o jornal, comendo alguma coisa ou

ajudando uma das outras crianças com a lição de casa, e Esmé passa por

nós. Ela se move com um propósito. Não cumprimenta ninguém, mas

consigo mandar um "Ei, Ez", e a mão dela, a última parte de seu corpo a

sair pela outra porta da cozinha, me faz um cumprimento, mais como um

tchau. Alguns minutos depois ela volta pela mesma porta, agora carregando

um bichinho de pelúcia, um rolo de fita adesiva e uma caixa de ovos. Já sei

que ela vai voltar outras vezes. Quando vem, está usando capa de chuva,

chinelos de dedo e um par de asas de fadas da Disney. Ela parece estar

lendo as instruções em um livro. Quando passa de novo, nem levanto a

cabeça, apenas pergunto:

214

Page 216: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Esquema mirabolante?

- Isso - ela responde, lançando um olhar rápido na minha direção. -

É um esquema mirabolante, e dos bons.

"Esquema mirabolante" foi a expressão que Tracy usou há alguns

anos para definir todos os planos excêntricos e imaginativos criados por

Esmé, em parte para entreter os outros, mas principalmente para seu

próprio divertimento. Podia ser um elaborado show que ela apresentaria ilc

sua pequena cama, utilizando os talentos de seus muitos bichinhos de

pelúcia ou de qualquer ser vivo que estivesse perto num momento da sua

inspiração. Podia ser uma música que ela escreveu ou uma dança que

coreografou, um livro que ilustrou ou uma torre balançando que ela montou

na banheira usando várias coisas.

A criatividade de Esmé é definitivamente mais natural que ensi-

nada. Ela já nasceu velha; sempre a descrevo como alguém que já esteve

aqui antes. Talvez não seja bem isso, mas ela parece ter vindo ao mundo já

com uma familiaridade de lidar com o básico e além dele. É curiosa,

inventiva, criativa e engraçada - ela é quem eu sempre quis ser quando

estava crescendo. O truque que ela mais domina - ou talvez seja uma

habilidade, e não um truque - é se mover sem esforço entre o mundo da

imaginação e o normal no qual todos nós vivemos. Ela não é uma daquelas

pessoas que foge para o mundo da imaginação; apenas tem dois passaportes

e viaja muito. Sempre alerto babás, professoras, parentes que nos visitam

ou qualquer um que queira dar algo para ela fazer:

- Se você chegar e ela estiver deitada no sofá, no tapete ou no galho

de uma árvore, com os olhos mirando perdidamente o espaço enquanto a

mão direita brinca com o cabelo atrás da orelha, ela não vai fazer mais

nada. Está ocupada. Desencana.

***

Odeio dizer isso, mas existem pais que vêem os filhos como instru-

215

Page 217: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

mentos que devem ser usados. Tudo se resume a que cordas apertar e a

quão afinadas ficaram. Eu os vejo, usando a mesma metáfora, mais como

uma jukebox. Coloque sua moeda, às rezes é preciso dar um tapinha do

lado para fazer funcionar, mas nove entre dez vezes, se você tiver sorte,

elas vão tocar as próprias músicas. Essa sempre foi a grande emoção para

mim e Tracy. Descobrir o que nossos filhos já tinham descoberto, ouvi--los

contando suas alegrias e sucessos, deixar que sejam donos de suas

conquistas e lhes dar crédito pelas coisas que aprenderam são a melhor e

mais fácil parte de ser pai

Mas é muito mais difícil, claro, deixar que também sejam donos de

seus fracassos e desapontamentos. A verdade é que você não tem escolha.

Em alguns casos, o peso pode ser dividido, mas nunca será carregado

apenas por você.

A experiência a seguir é familiar a todos os pais, e Tracy e eu já

passamos por isso muitas vezes com nossos quatro filhos: agachar-se no

chão do banheiro às 3 horas, segurando uma toalha úmida na testa de seu

jovem filho, que, não tendo idéia do que o atingiu, está ajoelhado ao lado

do vaso sanitário, vomitando loucamente, além de tremer e suar. É

provável que o mesmo drama se repita três ou quatro vezes durante a noite.

Ninguém vai dormir. Os lençóis sujos tirados da cama estão numa pilha ao

lado da máquina de lavar porque a primeira vez que aconteceu você estava

sonolento demais para perceber por que a criança foi até seu quarto de

maneira tão urgente. Em uma das pausas, você coloca o termômetro para

ver se a febre baixou. Quanto menor a idade, mais você se preocupa. Com

tudo isso, você comenta, em geral:

- Eu sei, eu sei. Tá tudo bem, já tá acabando. Essa foi a última vez.

Você vai ficar bem, filho(a).

Mas não é isso que você gostaria de dizer. A vontade é de jogar a

cabeça para trás e gritar:

216

Page 218: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

- Pelo amor de Deus, por favor, passe isso pra mim! Deixe que eu

fique doente.

Mas você não faz isso porque simplesmente não pode. Não

funciona assim. E só estou falando das doenças básicas do dia a dia. Todos

sabemos que há pais que adorariam que isso fosse o máximo que os filhos

tivessem de enfrentar. O sofrimento deles é inimaginável. Aqueles de nós

que são abençoados por ter filhos que continuam saudáveis, inteiros e

felizes podem pelo menos apreciar essas noites no banheiro como uma

gentil lembrança de que você não tem como fazer a dor de seu filho

desaparecer. Você pode apenas estar presente, atento, ser compreensivo, ter

compaixão e amar aquela criança com todas as suas forças.

Claro que meus 47 anos, minha infância, os altos e baixos da car-

reira, minha experiência e rendição ao álcool, meu diagnóstico e a vida

com Parkinson, assim como tudo que veio antes, depois e no meio, me

ensinaram bastante sobre o poder de recuperação. Não importa quão bem-

intencionado eu seja, se por acaso conseguir convencer meus filhos de que

posso resolver todos os problemas deles, amenizar todas as dores e poupá-

los dos altos e baixos da vida, estarei prestando um enorme desserviço a

eles.

SETEMBRO DE 2008

A educação formal do meu pai foi apenas até o primeiro ano do

ensino médio, apesar de ele sempre lembrar que depois se formou com

grandes honrarias na "escola da vida". Cheguei até o último ano do ensino

médio e, na primavera do que seria o ano da minha formatura, enquanto

meus colegas falavam das provas finais, eu morria de calor no velho Dodge

do meu pai, a caminho de Los Angeles, para encontrar um agente.

Não que a busca do conhecimento não fosse encorajada em nossa

família; só não assumíamos que a estrutura seria automaticamente o que

desencadearia o processo do conhecimento. Tracy vem de uma família

217

Page 219: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

altamente escolarizada. Entre seus parentes mais próximos há professores,

doutores, escritores e empresários bem-sucedidos. Na verdade, a única que

não fez faculdade foi Tracy. Ela entrou na universidade que queria, mas

postergou a matrícula enquanto cursava a escola de teatro e tentava fazer

sua carreira decolar. E, como isso aconteceu logo, os planos de fazer

faculdade foram ficando para trás.

No entanto, por muitas razões diferentes, sempre achei que Sam iria

para a faculdade; o ensino que ele recebeu durante toda a vida certamente o

preparou para uma escolha como esta. Tenho certeza de que a porcentagem

dos alunos da escola de Sam que vão para a faculdade e a dos da minha que

foram é inversamente proporcional. Bem, isso não é uma verdade absoluta;

acredito que 100% dos alunos da escola de Sam vão para a faculdade,

enquanto apenas um punhado de meus colegas chegou a entrar em uma,

com exceção de um ocasional estudante de faculdades técnicas. No último

inverno, Sam foi para a Universidade Stanford, na Califórnia. Por ser meu

primeiro filho e o único menino, ele ficou sujeito a muito mais projeções e

idealizações da minha parte. A tentação é sempre ver a jornada dele pelas

lentes da minha experiência. Fiquei mais consciente disso porque, sendo

filho de pai famoso, Sam também estava sujeito às projeções de outras

pessoas, além das minhas.

Imagino que a expectativa com a qual Sam sempre teve de lidar é a

de que, como sou um ator bem-sucedido, ele também escolheria a mesma

carreira. Fora ter levantado a mão para se candidatar a assistente do mágico

em seu aniversário de 6 anos, Sam nunca mostrou interesse pela indústria

do entretenimento. Se existe um padrão de "criança celebridade", Sam

definitivamente não se enquadrava nele. Em especial nos últimos dez anos,

mais ou menos, vivemos nossa vida bem longe dos holofotes, mas, se ele

fosse inclinado a ser visto e aparecer, havia muitas oportunidades para isso

- porém, não era o estilo dele. Sam foi para a faculdade não para fazer

218

Page 220: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

graduação em teatro, mas buscando especializar-se em coisas do seu

interesse, como matemática e ciências. Tenho certeza de que a visão dele

de como sua vida será depois da faculdade ainda é incerta. Ele já falou em

trabalhar com pesquisas médicas, com foco em biologia celular. Quando

conto isso para as pessoas, em geral vejo sempre a mesma reação. Posso

ver as pessoas concatenando os pensamentos, antes de olharem para mim

buscando uma confirmação:

- Quando você diz pesquisas médicas, é algo como pesquisas sobre

Parkinson? - elas me perguntam.

Sei aonde querem chegar. É uma noção romântica da coisa, bem

mais forte que outros duetos feitos por pais e filhos. Espero um pouco antes

de responder, deixo que pensem um pouco e cheguem ao ponto de as

lágrimas quase rolarem.

- Olha, ficarei muito feliz se ele conseguir curar a calvicie.

Não forcei Sam a fazer isso. Apenas desencanei e o deixei escolher.

Já chegamos, pai?BASE CHILLIWACK DO EXÉRCITO CANADENSE

COLÚMBIA BRITÂNICA • 1968

Em 1968, meu pai e sargento do exército recebeu a notícia de que

estava sendo transferido da base de Chilliwack para a instalação militar

NORAD NATO, em North Bay, Ontário. Para meus pais e meus três

irmãos mais velhos essa não era uma boa notícia. Para meu pai, foi algo

que o pegou de surpresa. Parecia uma punição ou, no mínimo, um capricho

dos homens no comando. Estando no exército havia vinte anos, ele se

ressentiu de ser forçado a se mudar com a família para o outro lado do

continente, depois de já ter mudado tantas outras vezes - três vezes desde

219

Page 221: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

que eu tinha nascido e muitas outras antes disso. Para meu irmão e minhas

irmãs mais velhos, que estavam bem entrosados no ensino médio, aquilo

significava perder muitos amigos e interromper o ano letivo. Minha irmã

menor, Kelly, só um pouco mais velha que eu em 1964, quando nos

mudamos pela última vez vindos de Edmonton, Alberta, não tinha cons-

ciência daquele motim. Para mim seria uma grande aventura - minha

primeira grande viagem de carro.

Quaisquer que fossem as razões e os porquês da migração da nossa

família para o leste, como o fizemos é que ainda parece um milagre para

mim, no sentido das vantagens pessoais. Tínhamos um carro fodão - um

Pontiac Laurentian azul-royal com quatro portas, bancos contínuos na

frente e atrás, e alugamos uma caixa para carregar mudanças, que ia no teto

do automóvel. O porta-malas estava tão abarrotado que meu pai teve de

amarrar a porta com uma corda para evitar que abrisse e derrubasse parte

da nossa vida na Transcanadá. Dentro do carro, meu pai dirigia, minha mãe

ia do lado do passageiro e minha irmãzinha Kelly, de 3 anos, sentava-se

entre eles. Atrás, Karen (18 anos), Steve (15 anos), Jackie (12 anos) e eu

ocupávamos cada espaço livre do banco de vinil.

Carros como o que tínhamos vinham equipados com cinto de se-

gurança, mas eram aqueles para a cintura, raramente usados; nós, pelo

menos, não estávamos nem aí para eles. Espere, não, não é verdade. Em

algum lugar nas proximidades de Moose Jaw, na província de Saska-

tchewan, após uma batalha por causa de um gibi, joguei a parte de metal de

um dos cintos na cabeça de Jackie, com força suficiente para fazer um corte

bem atrás da orelha dela. Essa bagunça, que virou quase um derramamento

de sangue, fez com que minha mãe virasse para trás na vã tentativa de nos

separar. Meu pai, abrigado atrás do volante em sua camiseta de manga

curta, com o braço tatuado apoiado na janela aberta do carro, pegando sol

apenas na ponta do cotovelo, gritou algo assustador e, dadas as

220

Page 222: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

circunstâncias, absurdo, como:

- Não me façam ir aí atrás!

Se fosse uma viagem de férias, e não aquela por causa do trabalho,

ele teria dito:

- Se não pararem, viro o maldito carro e voltamos para casa! Mas

isso era impossível, para tristeza do meu pai.

Com o preço da gasolina bem abaixo dos 50 centavos por galão e

nossa acomodação provida por uma grande barraca de lona do exército,

carregada na caixa do teto do carro, que era montada em acampamentos de

cidades como Peapod ou Flin Flon, nossas despesas eram mínimas.

Todavia, tenho certeza de que, mesmo assim, excederam qualquer pequeno

auxílio-viagem que o exército tenha se disposto a pagar. A cada manhã, a

tenda era desmontada antes de o sol nascer e partíamos em seguida. Havia

pelo menos duas razões para isso: a primeira, a falta de ar-condicionado,

como a maioria dos carros daquela época, por isso queríamos rodar o

máximo possível antes de o Pontiac se tornar uma grande

sopa de suor, fedor e mau humor colocada para ferver no calor da

tarde. A outra tinha mais a ver com prazer que com praticidade. Pegando a

estrada cedo, chegávamos à cidade seguinte e arrumávamos nossa tenda

ainda de dia, com luz do sol e tempo suficientes para explorarmos as re-

dondezas - uma praia, um playground ou, se tivéssemos sorte, alguma da-

quelas atrações bregas de beira de estrada, como um zoológico de répteis /

posto de gasolina ou uma floresta petrificada. A proximidade do Canadá

com o Polo Norte significava que mesmo os primeiros dias de verão con-

tinuavam claros até bem depois do final da tarde, com o céu bem azul até

umas 22h30. Talvez seja por isso que minha infância parece ter sido tão

longa, enquanto a dos meus filhos parece passar voando.

Meu pai tinha certas regras de estrada que nós, como passageiros

(ou carga humana, como sei que ele preferia pensar em nós em algumas

221

Page 223: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

ocasiões), tínhamos de aceitar. Minha mãe, a navegadora, tinha de ficar

atenta à rota do dia, estar familiarizada com aquela região no mapa e,

quando perguntada, passar a informação para meu pai de forma clara e

sucinta. Nunca sugeríamos que se pedisse informação a outro motorista,

atendente de um posto ou alguma garçonete. O pesadelo do meu pai era

chegar a uma encruzilhada e perguntar a um morador local se fazia

diferença, para quem ia para Winipeg, por exemplo, e a pessoa responder

presunçosamente:

- Não, para mim não faz diferença.

Minha mãe não tinha permissão para avisar meu pai de que ele esta-

va prestes a virar à esquerda numa rua lotada, mas se ele virasse rápido

demais ou devagar demais, quase atropelando alguém, ela podia reclamar.

Isso era feito para viagens tensas.

Já nós, as crianças, nem pensávamos em participar de nada que en-

volvesse meu pai e a direção, ficando inteligentemente em silêncio por

longos períodos de tempo. Falando em tempo, sair do carro e esticar-se

estava reservado para as paradas para comer ou ir ao banheiro. Para isso

tínhamos, em 1968, nas estradas canadenses, alguns McDonalcTs, Dairy

Queen ou Kentucky Fried Chicken, mas em geral tínhamos mesmo

vários daqueles pequenos postos/restaurantes de beira de estrada. Ainda

não havia a grande proliferação de grandes outâoors nas estradas anun-

ciando grandes cadeias de fast-food, um fenômeno que começaríamos a ver

três anos depois, em nossa viagem de volta. Se passássemos por um

Burguer King ou um Dairy Queen, seria só isso o que faríamos - passar.

Nosso orçamento não permitia muito mais que uns sanduíches de frios no

pão branco e uma salada de repolho que minha mãe preparara no camping

pela manhã e colocara em nossa bolsa térmica.

Mais que uma parada num fast-food, meu maior desejo era que meu

pai parasse num lugar, qualquer lugar, que tivesse banheiro - podia ser

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Page 224: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

grande, pequeno, limpo ou sujo, desde que tivesse banheiro. Só o fato de

não precisar mais ficar no acostamento da Transcanadá, quase pelado e

fazendo minhas necessidades na frente de todos que passavam, já seria mil

vezes melhor que um Big Mac.

Nunca entendi a aversão de meu pai pelas paradas para ir ao banhei-

ro. Em parte, imagino, era a crença de que as piores coisas só aconteciam

com você se fosse trouxa o bastante para sair da estrada principal. A pers-

pectiva de se perder nas pequenas estradinhas do campo canadense já era

motivo suficiente para que morrêssemos de dor nos rins e na bexiga de

vontade de fazer xixi. Negociações ferozes das pessoas do banco de trás

eram sempre apoiadas com declarações de solidariedade implorando para

que meu pai desse uma parada. A resposta dele era que devíamos

sincronizar nossas necessidades. Ele nunca precisava parar para isso, o que

era incrível, levando em conta a quantidade de café que consumia em ura

dia. Juntando, torcendo ou cruzando as pernas, tentávamos nos distrair

lendo uma velha revista Mad pela milésima vez ou jogando outra rodada de

soquinho, que era simplesmente dar um soco no braço da pessoa ao lado se

aparecesse um fusca, algo tão comum que todos ficamos com manchas

roxas nos braços. Por sorte, minha mãe precisava de paradas freqüentes.

Sempre lhe empurrávamos café pela manhã, já que ela não era imune às

suas propriedades diuréticas como meu pai. O melhor jeito de aumentar a

irritação do meu pai era perguntar:

-Já chegamos, pai?

De vez em quando, esquecendo que este era um pecado capital, um

de nós fazia a pergunta, percebendo apenas a gravidade do erro ao escutar

os resmungos e vendo o encolhimento dos outros. Meu pai lançava todo

tipo de injúrias e, nesse ponto, todas as apostas estavam encerradas. Se

precisasse ir ao banheiro, melhor se preparar para segurar. Se estivesse com

fome, podia se preparar para ficar faminto. "Já chegamos, pai?" era a

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Page 225: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

pergunta mais inútil e estúpida que alguém podia fazer.

- O carro ainda está se movendo? Já estamos montando a barraca? -

Essas eram pistas óbvias de que ainda não tínhamos chegado lá naquele

momento da pergunta. E, para nos dar uma lição e deixar bem claro quanto

odiava isso, meu pai prometia que, se tivéssemos chegado lá, ele começaria

a andar a cinco quilômetros por hora, estabelecendo um novo lá ao qual

não chegaríamos tão cedo.

Meu pai era o rei da estrada, e aquelas eram suas leis.

Finalmente chegamos a North Bay, Ontário, nove dias depois

deixarmos CB. Como eu disse, meu pai tinha dúvidas das razões pelas

quais havia sido transferido para lá, mas claramente não era porque estava

desesperado para mudar ou porque estavam precisando das suas habi-

lidades por lá. Não havia uma habitação do exército para nós, por isso

continuamos usando a velha barraca. Pelo restante do verão e até perto do

inverno, ela ficou armada num camping ao lado do lago Nipissing, servindo

de residência para nós. Meu irmão dormia no carro.

Imagino que meus pais eram infelizes com isso. Eu acordava com

suas tensas conversas em voz baixa, do lado de fora da barraca, enquanto

aqueciam o café da manhã. Mas, mais uma vez, para mim era apenas uma

extensão da aventura. Havia outras crianças por lá, apesar de serem apenas

pessoas em férias, e não refugiados como nós. E uma pequena liga local de

beisebol jogava num campinho ali perto. Lembro-me com certa culpa de

que sempre patrulhava as sombras embaixo da arquibancada com meu

novo amigo, Spike, coletando moedas que caíam dos bolsos dos

espectadores e dando olhadas ocasionais embaixo das saias das moças que

se sentavam acima. Minha irmã mais velha, Karen, desesperada por ter

deixado o namorado Ed para trás, ficou surpresa e muito feliz, ao contrário

de meu pai, quando Ed, que se descrevia como hippie, se lançou numa

travessia solitária do continente e chegou misteriosamente ao nosso

224

Page 226: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

acampamento para levar Karen embora. Eles se casaram em um ano.

Resumindo, independente do que a família pensasse desse drama

doméstico, acho que ficamos todos felizes por ter mais espaço para nossos

sacos de dormir. O calor de agosto incitou meus pais a conseguirem uma

casa permanente para nós, em tempo do início das aulas, em setembro -

algo com mais que uma lona entre a família e o frio do outono de Ontário

ou, pior que isso, o frio do inverno.

Eles encontraram um modesto bangalô de três quartos perto da ci-

dade quase rural de Callander, local de nascimento dos quíntuplos de

Dionne. No ano seguinte, mudamo-nos para um quartel militar privado.

Dois anos depois, em 1971, meu pai aproveitou a primeira oportunidade

que teve e se aposentou. Nossa família se preparou e entrou no Pontiac para

fazer tudo de novo, mas desta vez em direção ao oeste. Karen e Ed, já

casados e com um filho, já tinham voltado para a Colúmbia Britânica.

Steve, recém-formado no ensino médio e bem acostumado a grandes

andanças, estava viajando pela Europa com amigos, carregando mochilas

com a bandeira canadense para evitar discussões a respeito do Vietnã.

Desta vez era Jackie, agora com 15 anos, que estava deixando um namo-

rado para trás. Lembro-me dele como um cara muito legal, que tinha um

Plymouth Barracuda envenenado bem legal.

Em todos esses anos, convenci-me de que, se tivesse meus próprios

filhos um dia, iria arrastá-los pelo continente também. Era apenas questão

de quando, como, de onde e para onde.

A volta do “Ja chegamos, pai?"CONNECTICUT • 7 DE JUNHO DE 1997

Se eu não conseguir construir esta droga âe barco, decidi, a

225

Page 227: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

viagem de carro estará cancelada.

Era o primeiro final de semana de junho de 1997; na segunda-feira

seguinte seria meu aniversário de 36 anos. Na terça-feira, Sam e eu, com

nosso amigo John e seus dois filhos, Emily e Josh, ela um pouco mais

velha e ele um pouco mais novo que Sam, iríamos embarcar num Chevy

Suburban novinho e partir numa excursão de dezesseis dias atravessando os

Estados Unidos. No entanto, ao deparar com a atordoante superestrutura

marinha e seus detalhes - a cobertura, a hélice, o eixo motor, o assoalho e a

casa do leme - que estavam bem à minha frente, eu podia sentir a dúvida

sobre a viagem instalando-se na minha mente.

Perceba que o barco não tinha nada a ver com nossa viagem de

carro. Tendo sido um presente antecipado de um amigo da Costa Oeste, o

pequeno barco esportivo de controle remoto tinha sido entregue na sexta-

feira pela Federal Express. Era um modelo ao estilo "monte você mesmo"

de dois pés, do tipo que as pessoas apostam corrida no laguinho do Central

Park. A idéia por trás do presente era que eu poderia montá-lo com Sam e

depois nos divertir revezando o uso do controle remoto enquanto faríamos

a pequena embarcação cruzar nossa piscina em Connecticut. Agora, vou

dizer uma coisa a você: se acha difícil dizer barco de brinquedo três vezes

bem rápido, tente montar um, E, se achar que está apto para o trabalho,

tente montar um tendo Parkinson.

Abri a caixa na mesa de jantar dos meus sogros em Connecticut. Ti-

rei todas as peças da embalagem, chequei-as com o inventário que tinha

vindo com o produto para saber se estava tudo lá e tentei identificá-las com

as ilustrações do manual. O que se seguiu foi um exercício de frustração

que levou embora a melhor (ou pior) parte da manhã do meu sábado.

Durante um tempo, Sam sentou-se do meu lado direito e fez um trabalho

bem melhor que o meu em entender o manual em inglês, traduzido do

226

Page 228: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

japonês. Aos 8 anos de idade, ele tinha uma mente mais arguta para esse

tipo de coisa do que eu jamais terei, mas depois de mais ou menos uma

hora ficou claro que não iríamos fazer o barco flutuar tão cedo e que ele

poderia achar coisas mais interessantes para fazer lá fora numa manhã de

verão.

Então me sentei, comecei a montagem, resmunguei, xinguei e mais

de uma vez cheguei perto de jogar toda aquela confusão frustrante no chão.

Isso não iria rolar. O barco não seria montado nunca - não por mim, pelo

menos -, e aquela conclusão me deprimia quase a ponto de me levar às

lágrimas. Eu punha a culpa da minha dificuldade em juntar as muitas peças

em suas posições corretas à minha falta de destreza manual causada pelo

Parkinson. E minha inabilidade em decodificar o método certo de

construção era atribuída à distração causada pelos tremores e pela confusão

mental do Parkinson. Claro que seis anos depois do diagnóstico esses

fatores existiam mesmo, mas não na extensão que têm hoje (doze anos

depois), e raramente me sinto tão louco da vida e desmoralizado quanto me

senti naquele dia, tentando fazer aquele barco flutuar. Eu já havia passado

por coisas difíceis na vida e enfrentaria outras muito maiores no futuro,

porém aquilo era algo pessoal. O desafio instigava minha competência

como pai. Era uma péssima lembrança de que a saúde teria impacto nas

minhas responsabilidades do dia a dia.

Eventualmente minha sogra veio me resgatar de meu momento difí-

cil, lembrando-me com polidez de que iria servir o almoço naquela mesa

em breve e perguntando se eu me importaria de parar um pouco para que

ela pudesse fazer a arrumação. Muito feliz até mesmo para dizer que sim,

joguei as peças na caixa, onde, pelo que sei, elas permanecem até hoje.

Fico imaginando se me permiti cair numa armadilha. O barco era

apenas um brinquedo de montar e, claro, minha condição tornava a coisa

mais difícil; contudo, falando sério aqui, nunca fui bom nesse tipo de coisa.

227

Page 229: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Minha mente seguiu adiante com muita rapidez para a armadilha

potencialmente maior na qual eu iria me meter - a iminente viagem que eu

faria com San, atravessando o país.

Eu havia tentado antecipar qualquer contingência. Reservas de

hotéis, motéis e os alojamentos dificílimos de conseguir no parque

Yellowstone e no Grand Canyon; itinerários foram escolhidos; números de

confirmação foram confirmados; consultei até mesmo a previsão do tempo

dos lugares e de todos os dias. Fiquei mal-acostumado por ter uma parceira

como Tracy, excelente com os detalhes, de forma que eu nunca precisava

me preocupar com esse tipo de coisas. Ela estava dividida, eu acho, entre

tranqüilizada e até impressionada, mas também insegura em relação à

perfeição do trabalho que eu fizera. Esse zelo pela organização era algo

novo ou algo que eu vinha escondendo havia muitos anos, talvez pela

preocupação de que, uma vez demonstrado, ele sempre seria esperado de

mim.

A verdade é que eu estava tão surpreso quanto ela pelo detalhamen-

to e pela minuciosidade com a qual havia planejado essa viagem. Em

circunstâncias normais, prefiro ver a parte geral do plano e delegar a parte

dos detalhes. Mas algo maior estava agindo dessa vez. Antes do Parkinson,

eu tinha espontaneidade de sobra. Para cada plano A ou B, sempre havia

um plano C, sem nenhum detalhamento, a não ser pelo fato de

simplesmente não ser o plano A nem o B. Eu ficava feliz em dançar

conforme a música, seguir o ritmo. Na minha nova vida com DP, não era

necessário apenas ter os detalhes do plano C, mas também sólidos planos

D, E e F. Foi com isso em mente que entrei de cabeça no planejamento da

Grande Viagem de Carro de 1997.

Foi divertido olhar os mapas e guias de viagens com Sam, decidir

nosso curso e tentar imaginar o que descobriríamos no caminho. As aven-

turas de cruzar o Canadá na minha infância fizeram de mim um guerreiro

228

Page 230: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

amante das estradas, e eu esperava incutir esta mesma paixão em Sam. Já

tínhamos uma boa história de viagens de carro juntos, viajando a

Vermont várias vezes e passando uma vez por Shenandoah Valley,

com a vaga meta de tentar visitar todas as cavernas da região. A

impetuosidade daquela viagem, que incluiu uma parada em Washington,

DC (ainda temos a foto de Sam, eu, George Stephanopoulos e Bill Clinton

em volta da mesa presidencial no salão oval), foi o último suspiro de Sam

como filho único. Com 6 anos na época, ele estava compreensivelmente

nervoso com a iminente chegada das irmãs gêmeas. Ainda não sabíamos se

seriam meninas ou meninos, mas, de qualquer forma, a vida dele iria

mudar, e parecia o momento ideal para um momento de ligação entre pai e

filho. Agora, dois anos depois, as gêmeas tinham chegado, duas anjinhas

que atraíam imediatamente as atenções em qualquer lugar que chegassem,

atenção esta outrora de Sam. Não houve trauma, porém não precisamos de

um especialista para perceber que a mudança em seu papel na família tivera

impacto na escola.

Não que ele rejeitasse a mudança. Na realidade, ele adorava mu-

danças, em especial as da natureza, como a lagarta virar borboleta ou o

impacto dos elementos mudando as formas do planeta. Grande parte do

nosso relacionamento era baseada na fascinação mútua pelo mundo à nossa

volta, em como ele mudava no próprio ritmo e com propósito definido.

Mas a rápida alteração de dinâmica familiar e as mudanças de expectativas

na escola eram duras de engolir. E também havia a mudança inexorável

ocorrendo em mim. Enquanto eu não fazia esforço para esconder os efeitos

da doença, também não tornei isso um tópico diário de discussão. Fora

forçar uma sessão de perguntas e respostas que traria mais dúvidas que

respostas, era difícil saber o que Sam estava pensando a respeito do

Parkinson. Quando ele perguntava dos sintomas, eu sempre era sincero e

tentava apresentar a coisa como apenas mais um processo da natureza.

229

Page 231: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Quando ele viu meus dedos tremendo, mostrei a ele como poderia distrair

meu cérebro, pegando e apertando minha mão, interrompendo o sinal e

induzindo-o a uma calma que infelizmente não duraria muito. Tudo

continuaria bem desde que eu mantivesse meu equilíbrio e tentasse

enxergar essas experiências do ponto de vista dele, sem projetar nele

minhas ansiedades. Houve vezes, entretanto, quando eu estava lutando com

o maldito barco, que posso ter traído minhas próprias dúvidas e

preocupações. Por que Sam tinha ido embora? Será que estava mesmo

louco de vontade de brincar lá fora ou sentia-se repelido por aquela

mudança que ele não entendia e não fazia sentido em seu processo lógico?

Após colocar as peças do barco na caixa e a caixa numa prateleira,

considerei minhas razões para a viagem de travessia do continente que

estava prestes a fazer com meu filho. A viagem era, como acabei decidin-

do, sobre lidar com as mudanças ao abraçá-las. Se a mudança do meu pai

de Chilliwack para North Bay tivesse me obrigado a entrar num avião e

chegar seis horas depois em meu novo lar, tenho certeza de que teria tido

um impacto radicalmente diferente do que teve em mim. A semana e pouco

de viagem pelas estradas (além do mês morando como um beduí-no às

margens do lago Nipissing) me permitiu marcar aquilo como uma grande

mudança em nosso ambiente familiar e também de natureza, pois trocamos

as florestas do Pacífico pelas Montanhas Rochosas. Cruzamos as pradarias

de Saskatchewan, tão retas e sem vegetação alta que podíamos ver um silo

de grãos a quase dez quilômetros de distância; circulamos pela miríade de

lagos de Manitoba, procurando abrigo em nossa barraca dos milhões de

mosquitos que eles atraíam. O que meu pai e minha mãe fizeram,

provavelmente sem saber - aliás, com certeza sem saber -, foi colocar nossa

mudança familiar no contexto de uma grande transformação que estava

acontecendo em todos os níveis, em todos os lugares, todos os dias.

Era isto o que nossa viagem de duas semanas de carro cruzando os

230

Page 232: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Estados Unidos significaria para mim e para Sam - o contexto para as

mudanças que estavam acontecendo na vida de nós dois. Claro que ele só

via a viagem do jeito que vi quando criança: a primeira gr ande viagem de

carro da sua vida. Eu, por outro lado, sabia que essa, provavelmente, seria a

minha última. Mas isso foi antes do 11 de setembro.

NOVA YORK • 10 DE JUNHO DE 1997

Crianças são iguais a labradores - mostre a eles um carro com o

motor ligado e a porta de trás aberta, sem nenhuma dica do destino, e eles

vão pular lá dentro e ficar com a cara na janela aberta, esperando o vento

balançar os pelos e levar embora a baba de sua boca.

Estávamos embarcando numa ambiciosa odisséia do nosso aparta-

mento na Quinta Avenida para uma casa alugada na Avenida Costeira de

Malibu, na Califórnia. Tracy e as gêmeas iriam pegar o avião pouco depois

que partíssemos, e nós nos encontraríamos lá. Incluindo as paradas ao

longo do caminho, levaríamos em torno de dezesseis dias para cruzar de

uma costa à outra.

O Chevy Suburban novinho estava parado com a parte metálica e a

cor azul brilhando no sol da manhã. Tendo acabado de ser lavado, ele só

veria água e sabão de novo na Califórnia; Sam e eu queríamos ver nosso

bebê com tanta terra, lama, fuligem e insetos esmagados no pára-brisa, que

no final da viagem poderíamos pegar uma amostra do que cobria o carro e

ler as camadas como um mapa de onde havíamos estado. A mesma lógica

masculina serve para explicar as malas cheias no porta-malas -não haveria

paradas para lavar roupa em Wheeling, na Virgínia Ocidental; Mitchell, em

Dakota do Sul; Durango, no Colorado; ou em Yuma, no Arizona.

O porta-luvas, que meu pai gostava de chamar de "guarda-mapas",

estava muito bem recheado no meu Chevy. Tinha os melhores guias de

viagem, atlas de estradas de cada Estado arrumados na ordem de viagem

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Page 233: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Leste-Oeste, lista de contatos ao longo do caminho e informações de

segurança e serviços.

Antes de partirmos, John e eu abrimos nosso mapa dos Estados

Unidos de costa a costa no capo do carro. Para Tracy e Sharon, a mulher

dele, saberem, passei o dedo pela rota que faríamos de Nova York a

Malibu. Era uma enorme distância continental para cobrirmos. Nossas

esposas estavam impressionadas com a nossa iniciativa, mas felizes

em irem de avião, e não de carro conosco.

Iríamos de Nova York para Hershey, na Pensilvânia, para

Columbus, em Ohio, para Chicago, do Wisconsin até Minnesota, da Devil's

Tower até as Badlands e para Deadwood e o Monte Rushmore, cruzando o

Wyoming, com uma passada em Montana, depois para o sul acompa-

nhando as Rochosas até o Colorado, passando Four Corners até o Grand

Canyon e subindo para Nevada, cruzando a Califórnia, até chegar à praia.

Dobramos o mapa. Abracei e beijei Tracy e os bebês. E então partimos.

Não que eu tivesse algum ressentimento da autocracia de meu pai

em viagens de carro. Mas nesta, desde o início, resolvi não ser nem

autoritário nem mole demais. Afinal, aqui estava eu, querendo replicar de

alguma forma aquela experiência com meu filho. Todavia, as

circunstâncias eram diferentes - tínhamos um carro mais espaçoso, tempo e

orçamento maiores, por isso eu não precisava utilizar os antigos métodos

do meu pai. Muita coisa foi diferente nessa viagem em relação àquela de

quando eu era criança. Uma delas era o fato de ter outra família envolvida;

não faria mal ter outro motorista no carro, companhia para Sam e alguém

para bater papo tarde da noite quando a estrada estivesse escura e os olhos

pesados. Sam, Emily e Josh se entenderam melhor que eu e meus irmãos,

tendo em vista que o espaço extra ajudava muito no quesito paz. Em geral,

duas das crianças ocupavam o primeiro banco de trás e a outra ficaria no

outro. Chamávamos de "o lixo" por causa dos detritos acumulados durante

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Page 234: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

o dia - papéis de doces, miolo de maçãs, latas de refrigerante vazias,

garrafas de plástico - que acabavam ali. Qualquer coisa perdida acabava

sendo eventualmente achada no lixo. Muito raramente eu ou John nos

aventurávamos lá atrás, a menos que algum odor misterioso se tornasse

ruim o suficiente para que um adulto tivesse de ir fazer uma visita de

limpeza. Você nunca sabia o que iria descobrir lá. Uma vez, após tirar o

lixo, reportei a john o seguinte:

- Tenho boas e más notícias para você. A boa é que Josh sabe escre-

ver o nome dele. A má é que ele escreveu no banco de trás inteiro.

O único conflito de Sam com Emily era por causa de música. Ainda

não existiam iPods, e minha política de igualdade para o rádio do carro

(meu pai nunca concordaria com isso) significava que todos éramos for-

çados a ouvir o CD Mmmbop do Hanson, que Emily havia trazido, tantas

vezes que parecia um disco riscado. Quando era a vez de Sam escolher a

música, me passava um CD do Clash ou do Elvis Costello - eu o havia

ensinado bem. Apesar de ter John e seus filhos conosco e de isso ter au-

mentado o valor da viagem, ela ainda era, na essência, uma experiência de

pai e filho.

Sam era um filho feito na lua de mel, nascido no início do verão de

1989, menos de um ano após Tracy e eu termos nos casado. Caras àr

Caretas estava no final da sétima e última temporada; o trabalho estava

andando em De volta para o futuro II; e, no começo de 1990, com pouca

ou nenhuma interrupção, começaríamos a trabalhar em De volta para o

futuro III. Meu pai morreu em janeiro daquele ano, e de repente eu era um

pai que não tinha mais pai. Trabalhar, ganhar a vida e prover minha família

tornou-se minha única missão. Imagino que tenha sido a mesma coisa com

meu pai quando ele e minha mãe criaram a mim e meus irmãos. Mas,

agora, suspeito de que, se meu pai ainda estivesse à disposição para

consultas, observaria que ele tentava cumprir sua missão com um salário de

233

Page 235: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

militar. Eu ganhava num mês mais do que ele ganhou a vida toda. Eu podia

fazer o que ele nunca pôde - diminuir o ritmo, passar mais tempo com

minha mulher e meu filho, aproveitar a sorte que tinha. Contudo, estava

fechado num círculo de trabalhar mais para ter mais trabalho. Durante os

primeiros anos da vida de Sam, eu passava mais tempo fora que em casa, e,

mesmo quando Tracy, Sam e meu trabalho estavam na mesma cidade,

como foi o caso de Aprendiz de feiticeiro, todo filmado em Nova York,

minhas horas de trabalho eram extremas e o tempo com a família pequeno.

Então veio o diagnóstico de Parkinson e com ele, por várias

circunstâncias diferentes, a oportunidade de parar, avaliar e pôr as coisas

em perspectiva: saúde, família e carreira. Mas não fiz isso. Escolhia a nega-

ção, o que no meu caso significou mais trabalho ainda. E, quando não

estava trabalhando, estava bebendo. Numa época em que eu deveria estar

me aproximando da minha família, eu os afastei. Eu temia que a DP me

impedisse de ser o marido e o pai que eu havia prometido ser. No entanto,

na metade dos anos 1990, mudei a maioria dessas coisas. Adotei uma

atitude responsável em relação ao meu tratamento do Parkinson e parei de

beber. E, enquanto os filmes que fazia ainda me tiravam de casa às vezes,

como no caso de Os espíritos, em 1995, durante o qual passei seis meses na

Nova Zelândia, meus planos para o futuro eram aumentar bastante meu

tempo com Tracy, Sam e minhas gêmeas.

Na Nova Zelândia, tendo deixado Tracy sozinha não com uma, mas

com três crianças, comecei a pensar num retorno à televisão e numa agenda

mais amena para se criar uma família. Posso não ter passado tanto tempo

quanto queria com Sam em seus primeiros 6 ou 7 anos de vida, mas mesmo

assim construímos uma relação bem forte. A viagem cruzando o continente

não foi uma tentativa de reparar nossos laços, mas apenas de fortalecê-los

ainda mais.

Meu pai nos colocou a todos no carro não porque queria, mas por-

234

Page 236: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

que precisava. Eu e Sam éramos o contrário - não precisávamos, mas

queríamos ir. O engraçado é que, se meu pai fosse vivo, sei que adoraria ser

convidado para essa viagem. Sem a necessidade de chegar por causa da

nova chefia, ele estaria livre para aproveitar todos os caminhos que

pegássemos e todas as nossas odisséias pelas estradas. Teríamos rido da

ridícula grandeza do Palácio do Milho em Mitchell, na Dakota do Sul, e ele

se sentiria ao mesmo tempo feliz e triste pelo adesivo que vimos em

Indiana, que dizia: "O diabo é bicha". Não acho que ele ficaria bravo com

Sam e com as outras crianças pelos milhares de pedidos de paradas para ir

ao banheiro, os quais eu aceitava com prazer, mesmo que estivéssemos

longe de tudo ou que tivéssemos acabado de parar. Não paramos em fast-

foods (um ou dois, no máximo), mas só porque tínhamos pesquisado

exaustivamente quais eram os melhores lugares para se comer perto das

estradas. Algumas vezes, porém, vi o mérito do meu pai na intratável

proibição da temível frase: "Já chegamos, pai?".

"Já cheguei lá?" foi a frase que literalmente lançou nosso carro

através do continente, "lá" sendo o ponto sem retorno no qual o Parkinson

ditaria os termos da minha vida. Será que as mudanças que fiz na vida - a

sobriedade, as novas prioridades - tinham sido feitas tarde demais? Havia

sobrado o suficiente de mim para que eu fosse o homem que eu não sabia,

até agora, que gostaria de ser? Dizer que minha atitude em relação à doença

era menos evoluída que hoje seria uma declaração bem equivocada. Eu

ainda não a tinha desenvolvido na totalidade e lutava para entender o

quanto ela me dominaria. Então, essa jornada foi, em grande parte, uma

rebelião. Meus mapas e listas e folhas de contatos eram uma preparação, se

não para uma batalha, pelo menos para um trabalho pesado de

reconhecimento.

Descobri nessa viagem que mapas e fronteiras são coisas arbitrárias

e, às vezes, invisíveis. Sem sinais feitos pelo homem, nada indica a você

235

Page 237: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

que passou de um lugar a outro. É tudo uma percepção pessoal. Ao viajar

de costa a costa, ganhei um entendimento de que as fronteiras antigas - o

rio Mississípi, a Divisória Continental, as Montanhas Rochosas e o Grand

Canyon - marcavam verdadeiras mudanças. O risco de atravessá-las era

recompensado com a descoberta de algo completamente novo e poderoso

do outro lado. Aos poucos, relaxei com a crescente idéia de que o que

estava acontecendo em mim era apenas parte do meu mundo. O reloginho

que estava criando um senso de urgência em mim era, na verdade, um

metrônomo que eu podia diminuir para um tempo que julgasse mais

apropriado. E quanto a Sam, meu companheiro daquela viagem e de outras

que viriam, percebi que ele me amava, confiava em mim, dependia de mim

e talvez se preocupasse um pouco comigo, mas, fora isso, eu não ocupava

muito espaço na cabeça dele. Sam estava se divertindo muito.

Sam deu umas escorregadas e perguntou algumas vezes se já ha-

víamos chegado. Dma vez, cm particular, enquanto passávamos pelos

grandes pastos do Wyoming, ele começou a usar a frase porque estava

entediado. Não exatamente incomodado, ainda assim decidi que seria uma

boa hora para acabar com isso antes que virasse um hábito. Sem aviso,

parei o carro gentilmente no acostamento e olhei sobre o ombro para o

banco de trás. Será que eu deveria gritar? Fazer ameaças? Exigências?

Talvez fazer algo mais passivo, pegar o mapa e explicar polidamente o

tempo estimado de nossa chegada naquele dia e depois abrir a discussão

para sugestões de como seria melhor a gente proceder? Não. Optei por uma

estratégia diferente, uma que meu pai jamais teria imaginado, mesmo que

se esforçasse. Eu ia usar o existencialismo contra ele.

- O que você perguntou? - disse para Sam, sem deixar minha voz

expressar nenhum tipo de sentimento.

- Se nós já chegamos - ele respondeu, um pouco provocante agora.

- Ótima questão - soltei o cinto e saí do carro, mantendo os olhos

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Page 238: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

nos dele enquanto circundava o veículo, ia até a porta dele e a abria. -Não

sei, Sam - respondi, ajudando-o a descer do automóvel. - Vamos dar uma

olhada. Pode ser que tenhamos chegado.

A nossa volta havia pastos vazios até onde a vista alcançava, inter-

rompidos apenas pela grande faixa de concreto na qual estávamos viajando.

Aquele era exatamente o meio do meio do nada. Agora, John e as crianças

já haviam saído do carro também, e perguntei ao grupo todo:

- O que vocês acham, já chegamos? Vamos lá, olhem em volta,

sem pressa.

Nos cinco ou dez minutos seguintes, as crianças exploraram minu-

ciosamente aquela enigmática paisagem de grama, terra e pequenos

arbustos. Emily pegou algumas flores, Josh achou duas pedras bem di-

ferentes e Sam voltou com algo que parecia cocô de coiote petrificado. Era

uma psicologia primitiva, mas fiquei surpreso de como funcionou. Acho

que a pessoa mais afetada por ela fui eu. Estamos onde estamos. Se

continuarmos nos movendo, estaremos em outro lugar. E saberemos

quando chegarmos lá.

EPÍLOGO

Há oito anos aposentei-me de Spin e mergulhei na vida de ex ator.

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Page 239: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Dei um jeito de preencher meu tempo- ou melhor, o tempo me preencheu.

Eu jamais teria imaginado quão ocupado ficaria a Fundação Fox; minha

defesa dos pacientes e meu ativismo político, minhas explorações da fonte

espiritual de minhas inspirações e bênçãos e, é claro, os muitos momentos

de aceleração com minha família. Parafraseando uma antiga expressão se

há dez anos, antes de começar essa minha segunda odisséia, eu fizesse uma

lista de coisas que esperaria ter conseguido até agora, teria descoberto que

esperava pouco de mim.

Mesmo durante esses últimos dias de trabalho em meu livro

consigo alcançar, tocar e me sentir seguro pelos quatro pilares que descrevi

aqui: trabalho, política, fé e família. A última semana foi, na verdade, uma

representação perfeita do lugar aonde essa jornada me trouxe e a promessa

de aonde ainda pode me levar.

NOVA YORK SEXTA-FEIRA, 31 DE OUTUBRO DE 2008

Dwight, de 40 e poucos anos, está paralisado da cintura para baixo.

Apesar de ter sido um entusiasta dos esportes radicais e um viciado em

adrenalina, não foi sua busca por desafios arriscados - base-jumping, surfe

em ondas gigantescas, corridas de carte - que o colocou numa cadeira de

rodas. Ele é vítima da mais ordinária e trágica das circunstâncias. Quando

dirigia de volta para casa de um jogo de hóquei com o irmão e o primo, o

carro deles foi abalroado por um bêbado dirigindo um Hummer. Ele perdeu

o movimento das pernas e os outros dois perderam a vida. Até aquele

instante, sua vida havia sido chegar sempre ao limite. E então o limite o

empurrou de volta. Agora Dwight vive tomando remédios, bebendo,

perdendo a cabeça e competindo na internet para compensar suas perdas.

Dwight é uma bomba-relógio.

Ou seria uma bomba, se existisse de verdade. Mas não existe. Para

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Page 240: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

não dizer que ele não existe, na verdade eu sou ele. Ele é um personagem

que estou interpretando em Rescue Me, a série de TV do canal FX nas

últimas semanas. Meu amigo Denis Leary, protagonista, escritor e produtor

da série, me ligou no verão para saber se eu estaria interessado em aparecer

num arco de quatro episódios. Não atuei muito desde que me aposentei de

Spin City. Apenas aparições especiais em Scrubs e Justiça sem limites - e

nenhuma delas foi fácil. Sendo um ator com Doença de Parkinson, acho

bem difícil fazer o papel de alguém que não tem Parkinson. Atuar tem a ver

com escolhas, e nisso não posso contar com meu corpo para expressar

minhas intenções. Tenho de operar sem ter todas as ferramentas. Muitas

coisas podem motivar um personagem a tomar uma cerveja, mas, se eu não

conseguir levar a garrafa à boca sem derrubar um monte do conteúdo, então

não terá adiantado nada. E Dwight apresentava uma característica

especialmente amedrontadora. Ele é paraplégico, caramba, e eu sou uma

batedeira ambulante. Como manter minhas pernas paradas por mais de

alguns segundos durante uma cena? E, como já disse antes, coloque-me

numa cadeira com rodas e é bom se preparar para correr atrás de mim.

Denis foi louco de me convidar para fazer isso, e fui mais louco

ainda em aceitar. Este é um bom caso de "escolha de elenco fora do tipo", e

não apenas pela nossa disposição física diametralmente oposta. O contraste

entre a visão de mundo de Dwight e a minha não poderia ser maior. Mas

claro que no contexto de nossas diferenças estão nossas similaridades.

Conheço a perda, a vida remodelada, os propósitos reexaminados, os

limites do destino. E, afinal, não faço mais isso para viver. Segui em frente.

Por isso, posso voltar ao tempo que quiser e escolher. Existem tantas razões

pelas quais posso acreditar que consigo fazer isso que não dá para me

convencer de que o Parkinson não me deixaria fazer.

Por isso resolvi dar uma volta na cadeira de rodas de Dwight. Hoje,

Dia das Bruxas, é meu último dia de filmagem. Faltando apenas algumas

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Page 241: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

cenas, já posso dizer que sobrevivi à experiência e que vou chegar em casa

para brincar de "travessuras ou gostosuras" com Esmé, uma experiência

mais difícil do que meu papel como Dwight. Se esse exercício será um

sucesso ou não, acho que depende da cabeça das pessoas que vão assistir.

Mas estou feliz de ter aceito o papel. Um dia, tenho certeza de que farei

isso de novo.

Além de manter meus benefícios do sindicato dos atores, como o

plano de saúde, por exemplo.

SÁBADO, 1Q DE NOVEMBRO DE 2008

Desejamos lembrá-lo de que, na infinita tradição de nosso povo,

iremos mencionar o Yahrzeit de Karen Lang...

No inverno anterior, Tracy e eu fomos visitar o rabino Rubinstein

para conversar sobre os detalhes do vindouro b'not mitzvah de Aquinnah e

Schuyler. Não sei se foi intuição clériga, mas o rabino rapidamente sentiu

que eu estava preocupado com algo mais que o D'var Torahs das meninas.

Contei a ele que havia acabado de perder minha irmã Karen e como aquilo

tinha sido algo chocante para nossa família. Não havia nada prático nem

nenhum desconforto na expressão de simpatia e compaixão dele. Agora,

um ano depois, eu não deveria ficar surpreso ao saber, na forma de uma

carta da sinagoga, que o nome de minha irmã Karen vai ser incluído no

kadish durante o serviço religioso de sábado, dia 8 de novembro.

Mantenho uma fotografia de K. C. na mesa do meu escritório. Gos-

to da foto. E uma bem-comportada, tirada num casamento de família quatro

meses antes de ela morrer. Com apenas um traço de cansaço, ela sorri para

mim do retângulo do frame. E, pelo menos uma vez por dia, cinco dias por

semana, sorrio de volta. É difícil acreditar que os dias e as semanas se

passaram e que já faz um ano desde que nos reunimos em volta da cama de

Karen e cantamos nossas despedidas.

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Page 242: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Vim à sinagoga sozinho. As crianças fizeram sua dispersão do sába-

do - dormir na casa de amigos, aulas de bale, Tracy ocupada em levar e

buscar todas elas. Mas eu queria estar aqui. Então, esta manhã, coloquei um

terno, peguei um táxi e agora estou aqui, sentado no final de uma fileira

vazia, olhando a programação que me foi entregue pelo porteiro. Karen não

é um dos nomes na lista dos que serão lembrados. Verifico a data - é l2 de

novembro. Estou uma semana adiantado.

O serviço religioso começa e o sobrinho de um dos meus sócios

está fazendo o bar mitzvah hoje, por isso decido ficar e ver o garoto dar

este passo. Observo o rosto orgulhoso dos seus familiares e, apesar de

nunca ter me encontrado com aquele jovem, logo me sinto orgulhoso

também. Chega o momento de a congregação recitar o kadish, e os nomes

são lidos. Num sussurro que apenas ela, eu e quem mais puder estar

ouvindo ouve, adiciono o nome de Karen à lista.

DOMINGO, 2 DE NOVEMBRO DE 2008

Equipe Fox, Equipe Fox... tlim, tlim, tliml

Esmé e eu estamos na rua, na Quinta Avenida, dando uma força aos

maratonistas que vão atacar os últimos cinco quilômetros que os separam

da linha de chegada no Tavern on the Green, o restaurante do Central Park.

O pelotão de elite já passou faz tempo; mas estamos aqui para ver o pelotão

intermediário, a turma da hora do almoço, os sorridentes corredores

melhores que a média que, ao mesmo tempo, inspiram e envergonham os

que não participam da corrida.

Mais especificamente, Esmé e eu gritávamos mais alto pelos 135

participantes que corriam pela equipe Fox, usando as cores da nossa

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Page 243: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Fundação e doando o dinheiro ganho dos patrocinadores para ajudar nossos

programas de pesquisa. Esmé tem olhos aguçados e, ao ver a palavra Fox

em laranja numa camiseta azul, gritava "Equipe Fox!" e tocava um maldito

sino daqueles que ficam pendurados no pescoço de uma vaca que alguém

(e pretendo descobrir quem) lhe deu. Claro que aprecio seu entusiasmo,

mas seria um pouco mais fácil se ela não estivesse sentada nos meus

ombros, gritando loucamente e tocando a maldita coisa a centímetros das

minhas orelhas.

Um cortejo de familiares da Equipe Fox, funcionários e apoiadores

da Fundação reuniram-se conosco na calçada. Estávamos todos aplaudindo,

assoviando e levantando cartazes grandes e chamativos o suficiente para

que os corredores os vissem a distância e, se quisessem, pudessem vir para

o nosso lado da avenida e cumprimentar as pessoas com aqueles tapinhas

na mão - e é claro que os primeiros "cinco" tapinhas seriam meus. Óbvio

que alguns de nossos heróis estavam tão cansados, confusos ou distraídos

com a liquefação de suas entranhas e ossos que nem percebiam a guarda de

honra. Mas a maioria percebia, e alguns se mostravam tão em forma e

relaxados que parecia muito possível que, quando chegassem à Columbus

Circle, fizessem a curva completa e voltassem correndo até a linha de

partida. Um desses espécimes era Ryan Reynolds, astro do cinema, recém-

casado com Scarlett Johansson e amável filho de um pai com DP. Ele nos

viu a tempo de passar por vários abraços rápidos e uns tapinhas nas costas

e, em reconhecimento ao nosso "muito bem rapazes" no finalzinho da

corrida, declarou mais tarde:

- Ganhei uns sete quilos em arrepios. E foi o que me fez terminar

aqueles últimos quilômetros.

Os esforços de Ryan hoje trarão mais de 100 mil dólares para a

Fundação, juntando-se ao montante de 500 mil dólares arrecadados pela

Equipe Fox. Isto é o que chamo de muitos arrepios.

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Page 244: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Essa não foi a primeira vez que Esmé e eu ficamos vendo a marato-

na de Nova York enquanto ela passava pela Quinta Avenida. Sete anos

antes, quase exatamente no mesmo dia (o aniversário dela é amanhã),

assistimos à maratona da janela do hospital Monte Sinai, apenas alguns

quarteirões ao norte. Com um dia de vida, embrulhada em meus braços,

não sentada nos meus ombros, Esmé não tinha um sininho nem mesmo a

força de tocar um. Mas agora, enquanto desce dos meus ombros e sorri para

mim como se tivesse sido lambida por um cãozinho, lembro de seus olhos

serem tão vastos quanto antes.

SEGUNDA-FEIRA, 3 DE NOVEMBRO DE 2008

Esmé escolheu seu restaurante italiano preferido para jantar hoje à

noite no seu aniversário. Tracy teve de buscar o bolo; afinal, não era algo

que pudesse ser confiado a mim. Temos de levar nosso próprio bolo porque

Esmé tem alergia a amendoins e nunca dá para ter certeza de que

amendoins ou derivados não vão ser encontrados num bolo por aí. Tracy

toma tanto cuidado para que nada contenha amendoim que não deixaria

sequer um desenho de amendoim ser feito no bolo. Estamos mais alertas

esses dias por causa do Dia das Bruxas que acabou de passar. Tivemos de

separar todos os salgadinhos, chocolates e doces com amendoim de tudo

que ela ganhou. Eu estava encarregado disso. As guloseimas proibidas

iam direto para a mesa do meu escritório. Ei, vou precisar mastigar

muito para acalmar meus nervos enquanto assisto aos programas políticos

da eleição amanhã à noite.

TERÇA-FEIRA, 4 DE NOVEMBRO DE 2008

É dia de eleição e, como de costume, saí bem cedo. Em decorrência

da natureza histórica da eleição presidencial deste ano e apesar de a vitória

de Obama aqui em Nova York ser um fato consumado, minha seção está

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Page 245: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

com muito mais gente do que jamais vi. Na escada da igreja uma garo-tinha

se aproxima; ela tem 10 ou 11 anos, usa saia e agasalho náutico - o

uniforme de uma escola particular próxima.

- Com licença, senhor, posso fazer algumas perguntas depois que

votar?

Olhando em volta, vejo que ela faz parte de um contingente que

pode ser descrito como o mais irresistível grupo de pesquisas do mundo,

carregando pranchetas e tendo como sombras alguns adultos supervisores.

- Claro - respondo.

Obviamente estão fazendo a pesquisa como parte das aulas de Edu-

cação Cívica, mas imagino que isso seria um contra-ataque brilhante para

aquele "probleminha" com as pesquisas de boca de urna. Quem teria

coragem de mentir para essas crianças?

Lá dentro vejo muitos sorrisos. Todos estão felizes. Assino meu

nome, entro na cabine, fecho a cortina, ponho o nome do meu candidato e

puxo a alavanca. E fico razoavelmente feliz comigo mesmo.

De volta ao lado de fora, minha pequena pesquisadora e seu profes-

sor acenam para mim e me lançam um monte de perguntas, anotando

laboriosamente cada uma de minhas respostas.

- Não precisa responder a esta última questão se não quiser - ela me

diz e me dá essa chance, como se neste ponto eu não lhe desse o número do

meu cartão de crédito se me pedisse. - Posso perguntar em quem você

votou para presidente?

- Vou lhe dar uma dica - respondo e então abro a jaqueta de couro e

mostro a camiseta, presente de minha amiga Nelle. A habilmente mo-

dificada versão do logotipo laranja estilizado de um conhecido filme é

reconhecida na mesma hora pelo professor da menina. Após ler, ele olha

para mim de novo enquanto sua aluna lê em voz alta:

- Barack para o Futuro.*

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Page 246: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Agora o professor está rindo. Fica claro para nós dois que a jovem

não entendeu a referência, e também solto uma boa gargalhada.

______

* Analogia ao filme “De volta para o futuro”, que em inglês se escreve “Back to the

future”.

Vi, durante a campanha de 2006, como era difícil para os opositores

das pesquisas com células-tronco competirem contra a esperança. E o

mesmo aconteceu na eleição presidencial de 2008. Esta era uma esperança

coletiva, uma definição que sempre deveria ser aplicada à expressão da

vontade política das pessoas. Christopher Reeve acreditava na fórmula:

otimismo + informação = esperança. Neste caso, fomos o agente da

informação. É certo que tudo poderá parecer diferente daqui a um ano, mas

é difícil não ser envolvido pelo desejo de mudanças positivas expresso e

adiantado por Barack Obama. E bom ter esperança. Desta vez, o desejo de

muitos não será ridicularizado como se fosse desespero de algumas

pessoas, como ocorreu no debate sobre células-tronco em 2006.

Quando você estiver lendo este livro, o presidente Obama e o Con-

gresso terão estabelecido um programa federal de fundos para as pesquisas

com células-tronco. A maldição terá terminado.

Como eu tinha esperança de que acontecesse.

QUARTA-FEIRA, 5 DE NOVEMBRO DE 2008

- Quase vale a pena ter Parkinson graças a isso! - anuncio para as

mil e poucas pessoas reunidas no salão de festas do Sheraton do centro, no

evento anual de arrecadação de fundos da Fundação Michael J. Fox,

o 'Aconteceu unia Coisa Engraçada no Caminho da Cura do Parkinson". Já

animado, o público entende exatamente o que quero dizer e me devolve um

belo grito de aceitação. Dou um passo para trás e acerto o tom e o volume

245

Page 247: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

da minha guitarra Les Paul 1962 que Tracy me deu de Natal há alguns

anos. Não penso em mim como um possuidor de coisas premiadas e tal,

mas se há uma coisa de que gosto é deste ótimo instrumento musical norte-

americano manufaturado. Esta guitarra merece coisa melhor que eu, porém

amo tocá-la, mesmo quando estou travado e trêmulo, impedido de regular o

ritmo com o braço direito ou de descrever um padrão de acordes ou uma

linha a seguir por causa dos dedos caídos da mão esquerda. Às vezes,

apenas embalo a Gibson e, na mais pura tradição (se não for o espírito

exato) de gerações de guitarristas de rock'n'roll no mundo todo, espero as

drogas fazerem efeito.

Mas esta noite estou pronto, meus sintomas estão bem controlados

e, se por acaso eu fizer coisas erradas, posso contar com os rapazes da

banda para me carregarem em algumas notas. A música é Magic bus, e a

banda que me acompanha é The Who. Isso mesmo, juntei-me a Pete

Townshend e Roger Daltrey no palco para o bis deles depois da

performance em favor das pesquisas da DP. Olho para Pete enquanto ele

manda ver e Bo Diddley também está detonando. Estou atordoado e

impressionado de estar me juntando a eles enquanto de algum lugar atrás

de mim, do lado esquerdo do palco, Roger canta Every day 1 get in tine

queue... Viram o que eu quis dizer? Quase vale a pena ter Parkinson

graças a isso!

Eu poderia fazer a mesma declaração sobre os eventos que levaram

à formação de uma organização que fez muito pelo avanço das pesquisas

relacionadas às condições debilitantes e sem esperança que afetam milhões

de pessoas ao redor do mundo. O esforço e as conquistas não são meus,

mas devem-se a Debi Brooks e sua sucessora, a dinâmica Katie Hood, à

nossa equipe, à nossa diretoria, aos cientistas e às milhares de pessoas que

reconheceram a importância do nosso trabalho e nos encorajaram com

apoio econômico e emocional. Na primavera de 2009, a Fundação terá

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Page 248: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

aplicado quase 200 milhões de dólares em pesquisas de Parkinson, sendo,

assim, a líder das fundações privadas em seu segmento. Mesmo no período

de extremo distúrbio econômico, com boa parte de nossos apoiadores

estando no combalido mercado financeiro, esperamos arrecadar hoje tanto

quanto nos eventos anteriores, algo como quatro milhões de dólares. E,

mais, o total deve aumentar daqui a alguns dias, quando a seção especial

"Giving", do New York Times, publicar um artigo de capa falando em

detalhes da Fundação, de nosso trabalho e da visão inovadora que temos

em relação a incentivar o avanço da ciência:

O que faz a história da Fundação Michael J. Fox diferente - não, o

que a faz importante - é que não apenas doa dinheiro aos cientistas e torce

pelo melhor, mas usa seu dinheiro para controlar as pesquisas com

Parkinson de uma maneira que poucas outras já tinham feito. No processo

de tentar solucionar os mistérios da doença, ela evoluiu o modo como as

pesquisas científicas são feitas e como os acadêmicos interagem com as

pesquisas farmacêuticas e as companhias de biotecnologia, pelo menos em

seu pequeno canto do mundo. Isso demanda mais responsabilidade e

divisão da informação do que já se ouviu falar na comunidade científica. E

por isso já conseguiu se tornar, em sua curta vida, a voz mais confiável em

pesquisas de Parkinson do mundo.

De volta ao palco, Roger está pingando de suor e, com o microfone

e a harmônica presos entre as duas mãos que parecem rezar, toca e aperta o

instrumento em Mãgic bus. Quando Zach Starkey (filho de Ringo Starr)

aumenta as batidas da bateria um decibel ou dois, Pete Townshend e eu

construímos o crescente com uma série de acordes poderosos. Estou aqui,

tocando minha amada Les Paul, a menos de um metro de uma das maiores

lendas do rock de todos os tempos. Quando ele começa uma série de seus

giros patenteados, olha para mim, sorri e acena para que eu laça o mesmo.

Já faz um bom tempo desde que Marty McFly fez uma homenagem a

247

Page 249: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Townshend com os mesmos movimentos em De volta para o futuro, mas,

se funcionou na época, então que se dane o medo de fazer agora. Meus

braços giram como uma daquelas setas circulares de um jogo de tabuleiro.

Isso é loucura. Olho para a multidão espremida nos cantos do palco e

imediatamente reconheço os belos rostos de Aquinnah e Schuyler. As

meninas estão aproveitando. Mesmo sendo um dia de semana, elas

receberam permissão de vir à nossa festa pela primeira vez. Esmé, é claro,

está em casa, dormindo, sonhando com o esquema mirabolante de amanhã.

Sam, lá longe na faculdade, também perdeu a festa, mas em breve vai ficar

enjoado de tanto me ouvir falar dela.

E agora vejo Tracy. Acho que vou sair com essa fã e dar um passe

de bastidor para ela. Tracy parece especialmente bem.

QUINTA-FEIRA, 6 DE NOVEMBRO, 2 HORAS

Too much. Magic Bus!

Minha fantasia de ser um astro do rock acabou há algumas horas, e

estou em casa com minha família. Amanhã tem aula, por isso Aquinnah e

Schuyler vão rapidamente para o quarto para tirar os vestidos, colocar os

pijamas e aparecer como as menininhas que sempre serão para mim

(desculpe, é coisa de pai). Abraços, beijos de boa-noite e em alguns minu-

tos os sons de risos atrás da porta transformam-se em roncos.

Meia hora depois, Tracy (minha maior e única fã) e eu nos damos

boa-noite e, assim que ela dorme, saio da cama e começo meu passeio

noturno. É meu padrão normal. Dormir, como acordar, não é algo que faço

e pronto. Preciso negociar, buscar o consenso de todas as partes envolvidas

- mente, corpo e psique -, antes de simplesmente deitar, fechar os olhos e

cair no sono.

Conseguir fazer tudo que queria nas últimas horas exigiu mais re-

médios do que tomo normalmente, e agora estou pagando o preço da

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Page 250: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

discinesia. Arrasto-me pelo apartamento, pego água na geladeira e volto ao

escritório para checar meu e-mail. Alguém já mandou uma foto minha com

Roger, Pete e os outros rapazes tirada de um aparelho sem fio. Estou

fisicamente exausto agora, com o rosto sem expressão demais para poder se

aproximar do sorriso estático da minha foto que salta do Mac. Mas o sinto

por dentro; a adrenalina gerada pelo evento desta noite ainda vai adicionar

uma hora ou mais ao meu ritual noturno. O negócio é ir dormir no

momento exato, quando a última rodada de medicamentos fizer efeito e eu

puder subir na cama sem incomodar muito Tracy com chutes e socos.

Entro em nosso quarto e sigo com calma até a beira da cama. Meu

balanço, seriamente comprometido pelo Parkinson, está num momento

negro de pouca confiança. Se eu cair, pelo menos posso me inclinar para a

frente e garantir uma aterrissagem macia na cama. Circundando até meu

lado, passo a mão que agora não treme muito por baixo do cobertor, pronto

para levantá-lo e entrar embaixo dele. Quando os pés tocam os sapatos, já

preparados para amanhã de manhã, sei que estou na posição certa. Temos

uma cama bem confortável e logo deito nela como um gato em uma

almofada. Silenciosamente agradeço a Tracy por estar quenti-nho debaixo

do cobertor; o último obrigado do dia à minha mulher e o mais recente dos

milhões já ditos durante nossa vida juntos.

Após todo trabalho que deu para eu chegar ali, acabo dormindo bem

rápido. Pode ser que acorde algumas vezes, talvez mais ou menos daqui a

uma hora. Repetirei minha rotina de caminhada pelo apartamento, mas

apenas por alguns minutos. E voltarei para a cama e dormirei de novo.

Nesse meio-tempo, enquanto durmo, terei os "filmes da minha mente".

Quando prescreveu os remédios que tomo, o médico avisou-me de um

efeito colateral comum: sonhos exageradamente reais e intensos. Sendo

honesto aqui, nunca senti a diferença. Eu sempre sonhei grande!

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Page 251: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

AgradecimentosCom muito amor e gratidão, gostaria de agradecer às pessoas a

seguir pelo apoio pessoal e pelas contribuições para este livro.

Tracy - você faz tudo funcionar. Vinte e poucos anos e a cada dia

eu me apaixono por você de novo.

Sam, Aquinnah, Schuyler e Esmé, obrigado por me entenderem e

me inspirarem. Amo cada um de vocês completamente.

Obrigado à minha mãe, Phyllis, por ter a mim e por tudo que fez

desde então.

Nesse esforço, levando tudo em conta, beneficiei-me da ótima re-

lação que mantenho com meus espertos, engraçados e espirituosos irmãos:

Steve, Kelly, Jackie e K.C. (da qual sentimos muita falta).

Obrigado também aos melhores sogros do mundo, Corky e Stephen

Pollan.

Eu não teria conseguido sobreviver a essa experiência de quase to-

dos os dias se não fosse o entusiasmo, a inteligência e o apoio da minha

escritora-assistente, Asher Spiller.

Durante um dos meus muitos bloqueios criativos, reclamei para

Tracy:

- Nunca vou terminar meu livro sobre otimismo.

- O que você precisa - ela me aconselhou - é de alguém que estale o

chicote todos os dias.

Então, procurei a pessoa que Tracy sugeriu, uma velha parceira de

produção, Nelle Fortenberry. Nelle, sem você, essa tarefa teria sido

impossível.

Também tenho a sorte de ter acesso a dois brilhantes profissionais,

meu cunhado, o lendário Michael Pollan, e o jornalista político Frank

Wilkinson.

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Page 252: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

Meu mais profundo apreço também para Jackie Hamada, Nina

Tringali, Iwa Goldstein e Patti Ruiter - todas elas mantiveram minha vida e

meu escritório funcionando enquanto eu estava ocupado tentando

recapturar memórias das campanhas e de outros eventos dos últimos dez

anos.

A Hyperion foi uma grande parceira, e sou grato pela paciência e

confiança no meu livro. Leslie Wells, como já fizera em Lucky man, foi

uma ótima editora e mentora. Quero agradecer a Bob Miller, por me trazer

de volta à Hyperion para mais uma volta, e a Ellen Archer, por mergulhar

de cabeça com tanta energia e brilho. Agradeço também a Marie Cooleman

e Leslie Sloane, por apoiarem o lançamento do livro.

Quero agradecer aos funcionários, cientistas, conselheiros

científicos e apoiadores da Fundação Michael J. Fox, pela generosidade,

comprometimento e por acreditarem em nossa missão. E por

particularmente me ajudarem neste livro: Debi Brooks, Katie Hood, Todd

Sherer, Brian Fiske, Kate Gendreau, Holly Barkhymer, Sandy Drayton e

Karen Leies. Sou grato a eles pelos comentários e contribuições.

Muitas pessoas ficaram à disposição durante meu processo de

escrever o livro, dividindo comigo suas idéias, experiências profissionais e

histórias inspiradoras: bispo Carlton Pearson, George Stephanopoulos,

Lance Armstrong, Lonnie e Muhammad Ali, rabino Rubinstein, Donny

Deuts-ch, Lawrence 0'Donnell, Mike Manganiello, Claire McCaskill,

Sherrod Brown e Connie Schultz, Ben Cardin, Jin Doyle e Tammy

Duckworth.

Minha agente, a grande e única Binky Urban, muito obrigado. John

Rogers, meu guia em todo o território político, muito obrigado. E obrigado

também à sua assistente, Kelly, e à sua equipe incrível. Meu agradecimento

também à dra. Susan Bressman e a Mark Seliger, pelas contribuições. A

Bob Philpott, Aaron Philpott, Peter Benedek e Cliff Gilbert-Lurie, obrigado

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Page 253: Michael j. Fox - um otimista incorrigível

por tomarem conta dos negócios.

Uma menção especial a Bruce Springsteen, Pete Townshend e

Roger Daltrey. Curtis e Carolyn Schenker, vocês são os melhores amigos

que qualquer um pode ter. Denis Leary, obrigado por me fazer rir. E pelo

trabalho. Mort Kondracke, vejo você no almoço em novembro de 2010. E,

é claro, muito amor e gratidão, como sempre, a Joyce A.

Mesmo que eu dedicasse tanto tempo a esta lista quanto dediquei a

escrever o livro, ainda sim não conseguiria fazer uma lista completa. Há

muitas pessoas que fizeram parte desta jornada, e, se você não viu seu

nome aqui, saiba que ele está escrito no meu coração.

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