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 Mímesis Corpórea – A Poesia do Cotidiano Renato Ferracini Introdução O LUME - N úcleo Interd isciplinar de Pe squisas Tea trais - UNICAMP vem pes quisando , desde 198 5, t é cnicas n ão-i nterp retat ivas de r epre senta ç ã o para o a tor. Acabo u cons olid ando , dura nte es se tempo, tr ês linhas b ásicas de pesquis a: A Dan ça Pessoal (ter mo u tiliz ado para def inir a dinamiza ç ão de ene rgi as p oten ciai s d o at or) , O Clown e a ut ilizaç ã o c ômica do c orpo e fi nalmente a Mí m esis Cor p óre a, que pesquisa a transposi ç ã o e a te atrali za ç ã o de a ç õe s f ísi ca s e vo cais en co nt ra da s no cot idiano . Essa metodo logia tem co mo ob jetivo, al ém de codificar e siste matizar uma met odologia de re presenta ç ã o  para o ator, imitar e levar a p úblico as corporeidades/vocalidades do brasileiro. Portan to, esse traba lho pretend e mostrar e discut ir essa metodo logia n ão interpre tativa de repre senta ç ã o, abord ando des de seus aspectos primeiros de pesquisa de campo, n a coleta d e materia l f ísico, vocal e textual nas vi agens realiza das p elo inte rior d o Bra sil, pa ssando pela c orpor ifica ç ã o dos elemen tos obser vados e pe squis ados e su a po sterior te atraliza ç ã o, a t é chegar aos aspectos de inter ioriz a ção na rela ç ã o ato r/mate ria l de campo. Al ém disso, parte do mat erial de ca mpo e de trei namento c otidiano d o ator, fo i digitaliz ado e org aniz ado e m CD-ROM (em a nex o) pa ra me lhor s ubs tan cial iza ç ão dos conc eitos e m é todos apr ese nta dos n ess e tra bal ho, e t amb ém pod e faze r part e inte gran te da ap rese nta ç ão e discuss ã o no grup o. Devemos esclarecer que, para melhor entendimento desse trabalho, faz-se necessário explanar, em mai ore s det alhe s, o tip o de ma teri al tea tra l esp ecífico que servir á como bas e par a as exp eri ment a ç õ es  propostas. Faremos tamb ém, logo nessa intro du ç ão, um a r áp id a conceitua ç ã o dos termos técnic os impo rtan tes par a mel hor ent end imen to, como a dif ere n ça entre repre senta ção e interp reta ç ã o, arte n ão - inte rpr eta tiva , a ç ã o f í sica como meno r c élula nervosa do ator, o trei namen to t écnico e energ é tico e a impo rt ânci a da cria ç ã o de u m vocabulário de a ç ões si cas par a o a tor, al ém de, em r ápida s pal avras s itu ar o LUME como centro de pesquisa criador dessa metodologia. Sobre o LUME O LUME é um n úcleo d e pesq uisas teatrais d a Univer sidade de Campin as, cu jas orig ens repou sam na experi ência d e Luí s O t áv io Burnie r (19 56 – 1995) em se us oito anos de tre inamen tos e

Mimese Corporea - Ferracini

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Mimese Corporea - Ferracini

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  • Mmesis Corprea A Poesia do Cotidiano

    Renato Ferracini

    Introduo

    O LUME - Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - UNICAMP vem pesquisando, desde

    1985, tcnicas no-interpretativas de representao para o ator. Acabou consolidando, durante esse

    tempo, trs linhas bsicas de pesquisa: A Dana Pessoal (termo utilizado para definir a dinamizao de

    energias potenciais do ator), O Clown e a utilizao cmica do corpo e finalmente a Mmesis Corprea,

    que pesquisa a transposio e a teatralizao de aes fsicas e vocais encontradas no cotidiano. Essa

    metodologia tem como objetivo, alm de codificar e sistematizar uma metodologia de representao

    para o ator, imitar e levar a pblico as corporeidades/vocalidades do brasileiro.

    Portanto, esse trabalho pretende mostrar e discutir essa metodologia no interpretativa de

    representao, abordando desde seus aspectos primeiros de pesquisa de campo, na coleta de material

    fsico, vocal e textual nas viagens realizadas pelo interior do Brasil, passando pela corporificao dos

    elementos observados e pesquisados e sua posterior teatralizao, at chegar aos aspectos de

    interiorizao na relao ator/material de campo.

    Alm disso, parte do material de campo e de treinamento cotidiano do ator, foi digitalizado e

    organizado em CD-ROM (em anexo) para melhor substancializao dos conceitos e mtodos

    apresentados nesse trabalho, e tambm pode fazer parte integrante da apresentao e discusso no grupo.

    Devemos esclarecer que, para melhor entendimento desse trabalho, faz-se necessrio explanar,

    em maiores detalhes, o tipo de material teatral especfico que servir como base para as experimentaes

    propostas. Faremos tambm, logo nessa introduo, uma rpida conceituao dos termos tcnicos

    importantes para melhor entendimento, como a diferena entre representao e interpretao, arte no-

    interpretativa, ao fsica como menor clula nervosa do ator, o treinamento tcnico e energtico e a

    importncia da criao de um vocabulrio de aes fsicas para o ator, alm de, em rpidas palavras situar o

    LUME como centro de pesquisa criador dessa metodologia.

    Sobre o LUME

    O LUME um ncleo de pesquisas teatrais da Universidade de Campinas, cujas origens

    repousam na experincia de Lus Otvio Burnier (1956 1995) em seus oito anos de treinamentos e

  • pesquisas na Europa. Burnier estudou trs anos com Etienne Decroux, criador da Mmica Corporal e

    trabalhou com Eugenio Barba, Philippe Gaulier, Jacques Lecoq, Ives Lebreton, Jerzy Grotowski e

    com mestres do teatro oriental (Noh, Kabuki e Kathakali).

    Aps essa experincia, Burnier retornou ao Brasil com a idia de criar um centro de pesquisa da

    arte de ator, que combinaria o conhecimento adquirido na Europa com elementos da cultura

    brasileira. Em 1985, Lus Otvio Burnier, Denise Garcia, Carlos Simioni e Ricardo Puccetti

    estabeleceram o LUME. A partir de 1994, o LUME aumenta sua equipe de trabalho com a chegada

    de novos atores-pesquisadores: Renato Ferracini (o autor desse trabalho), Raquel Scotti Hirson, Ana

    Cristina Colla e Jesser de Souza.

    O objetivo do Ncleo estudar a arte de ator em profundidade, focando seus diversos

    componentes suas tcnicas e mtodos de trabalho. No est apenas preocupado com a produo artstica,

    mas, primeiramente, em pesquisar o homem e seu corpo-em-vida em situao de representao o ator

    enquanto pessoa, enquanto filho de determinada cultura e enquanto profissional do palco.

    A meta das buscas do LUME concentrar-se no como fazer, pois entende que, no domnio da

    arte, a tcnica e a criao so inseparveis. Por esse motivo, ao longo dos anos, o LUME elaborou tcnicas

    corpreas e vocais de representao a partir da corporeidade pessoal de cada ator. Alm disso,

    estabeleceu fortes conexes de trabalho com grupos e indivduos de diversas partes do mundo como

    Eugenio Barba, Iben Nagel Rasmussem e Kai Bredholt (Odin Teatret Dinamarca); Natsu

    Nakajima (Mestre de Butoh Japo); Nani Colombaioni (mestre de clown, Itlia). Cada um destes

    grupos e/ou indivduos tm sua prpria metodologia e oferecem ao ator diferentes caminhos e

    possibilidades de trabalho.

    Conceituao

    Interpretao/Representao - Diferenas

    Primeiramente, faz-se necessrio apontar algumas diferenas, no mbito deste estudo, entre os

    conceitos de representao e interpretao. Esses termos no so empregados aqui em seus sentidos

    filosfico, lingstico ou semitico, mas apenas nos diferentes modos de pensar do ator. Lus Otvio

    Burnier, em sua tese de doutoramento, faz claramente essa distino ao explicitar que um ator quando

    interpreta um texto dramtico ou literrio, faz uma traduo de uma linguagem literria para a linguagem

    cnica; portanto, ele um intermedirio, algum que est entre. No caso do teatro ele est entre a

    personagem e o espectador, entre algo que fico, e algum real e material. (Burnier,1994:27)

  • Lus Otvio Burnier coloca que geralmente o conceito de interpretao tambm evoca o da

    identificao psquica do ator com a personagem. Alm de, historicamente, estar intimamente

    ligado ao texto literrio. (Burnier, 1994:28)

    De maneira oposta, o ator que representa busca sua expresso atravs de suas aes fsicas e vocais.

    Ele, o ator, no parte do texto literrio, mas o esquece e busca o material para seu trabalho em sua

    prpria pessoa e na dinamizao de suas energias potenciais. Ele no se coloca entre o espectador e a

    personagem, mas deixa que este faa a prpria interpretao de suas aes vivas. Poderamos dizer que a

    personagem, para o ator que representa, vem antes do texto, j que ele possui um vocabulrio de aes

    fsicas e vocais codificadas que poder emprestar a qualquer momento ao personagem. Assim, quando

    esse ator vai montar o espetculo, ele j tem todo o material fsico e vocal que dar vida pea. Sobre isso,

    versa Lus Otvio Burnier:

    A noo de representao, no contexto especfico do teatro, pode tambm ser

    entendida como re-apresentar, ou seja, apresentar e re-apresentar a cada noite, ou,

    melhor ainda, apresentar duas vezes numa mesma vez (Barba,1990:63), dilatando suas

    energias e suas aes, desenvolvendo um corpo dilatado (Decroux,1963:66), criando ou

    induzindo o espectador a criar algo entre eles. (Burnier,1994:29).

    A relao ator-espectador, neste caso no-interpretativo, diferente de um espetculo feito a partir

    do texto: o ator, ao representar, ou re-apresentar, atravs de suas aes fsicas codificadas, de certa

    forma, ilude o espectador. O ator no est interpretando Hamlet, mas emprestando a esse

    personagem suas aes fsicas carregadas de organicidade. Ele no Hamlet, o ator ele mesmo em cena,

    mostrando suas aes vivas codificadas e nascidas de seu trabalho cotidiano, revelando, na realidade,

    as imagens que vm incutidas nestas aes que absolutamente nada tm a ver com Hamlet. O espectador

    pensa estar vendo Hamlet, pois as aes do ator esto vestidas com um figurino, dentro de um

    cenrio e um contexto, e tambm o texto o leva a esta concluso; mas, na realidade, ele est vendo aes

    fsicas e vocais que nada tm a ver com a personagem. Assim, dois nveis de compreenso so

    estabelecidos e percebidos pelo espectador: o do texto (a histria de Hamlet) e o da organicidade da

    ao fsica viva e pulsante no ator.

    Existe aqui um paradoxo: ao mesmo tempo em que o ator ilude1 o espectador, dentro do

    contexto da cena montada e estruturada, ele mostra toda sua veracidade e a sua vida, atravs de suas

    aes fsicas e vocais, que so independentes e descontextualizadas em relao cena.

    1 A "iluso", nesse caso, no uma inteno; mas conseqncia natural.

  • Nesse caso podemos afirmar que as personagens, atravs das aes fsicas e vocais, esto

    potencializadas antes mesmo do texto dramtico e da personagem literria. Assim, o texto cnico

    montado segundo um encadeamento de uma seqncia orgnica de aes fsicas e vocais predeterminadas

    pelo ator, dentro de seu vocabulrio, ligadas entre si de maneira clara e precisa. A essas pequenas

    ligaes e transies entre as aes orgnicas, Lus Otvio Burnier deu o nome de ligmens. Dentro dessa

    experincia cabe ao diretor a importante tarefa de encontrar uma seqncia orgnica entre as diversas aes

    fsicas e vocais do(s) ator(es) e os seus respectivos ligmens.

    Dizemos que essa maneira particular de construo da cena e da personagem uma maneira no-

    interpretativa de representao.

    Como premissa bsica podemos ter, ento, uma primeira definio da diferenciao entre Interpretao

    e Representao: a Interpretao est intimamente relacionada com o texto dramtico. O intrprete

    funciona como um tradutor do texto em cena e todos os dados e informaes para construo de seu

    personagem so retirados a partir do texto e/ou em funo deste. Sobre um ator interpretativo, Etienne

    Decroux conceitua:

    O ator que chamamos de intrprete, como diramos, o intermedirio, o

    intermediador, um autor de msica dramtica: aquela que ele compe, mesmo se sem

    tomar nota, para as palavras daquele que toma o nome de autor. (Decroux, in Burnier

    1994:52)

    Por outro lado, a Representao independe do texto dramtico. O ator cria a partir de si mesmo.

    Assim, sem informaes preliminares ou dados para construo de seu personagem, ele necessita

    operacionalizar uma maneira nova de construo de sua arte. Ele necessita, ento, de parmetros

    objetivos que permitam a construo de uma cena independente de informaes literrias, analticas ou

    psquicas. Esses parmetros objetivos sero as aes fsicas e vocais orgnicas.

    O ator que no interpreta, mas representa, no busca um personagem j

    existente, ele constri um equivalente, por meio de suas aes fsicas. Esta diferena

    fundamental. Se pensarmos no sentido da palavra representar, o ator ao representar no

    outra pessoa, mas a representa. Em nenhum momento, ele deixa de ser ele mesmo:

    evidentemente, a fim de evitar uma possvel transformao de suas aes fsicas em puros

    cdigos a serem executadas de forma mecnica, ele dinamiza suas energias potenciais,

    desencadeando um processo verdadeiramente vivo. A forma como este processo se

    operacionaliza, deve ser tema de estudos dos atores. (Burnier, 199:22)

  • Todos os atores-bailarinos do teatro Oriental (N, Kabuki, Kyogen, Kathakali, pera de Pequim,

    Odissi, Teatro Balins), assim como os de tcnicas codificadas Ocidentais como o Bal Clssico ou a

    Mmica Decroux, no partem do princpio da identificao psicolgica ou da interpretao de um texto. Eles

    partem de elementos objetivos que so apreendidos durante anos de aprendizagem e treinamento.

    Eles buscam usar o corpo de maneira diferenciada, extracotidiana, utilizando, para isso o que

    Eugenio Barba chama de tcnica de aculturao, onde o ator busca renegar o natural se impondo

    um outro modo de comportamento cnico. Eles se submetem a um processo de aculturao forado,

    imposto de fora, como uma maneira prpria de se colocar em p, de andar, de parar, de olhar, de

    estar sentado, distinta do cotidiano (Barba, 1989 : 29).

    O ator oriental aprende, desde o incio de seu processo de formao, princpios e cdigos

    especficos e particulares de utilizao de seu corpo e tambm de sua energia. Regras e exerccios fixos

    so passados de gerao em gerao, como numa tradio oral.

    No Ocidente os atores a quem chamamos de no-interpretativos, salvo em algumas tcnicas

    aculturadas como a Mmica Decroux e o Bal Clssico, no se utilizam de um processo de aculturao

    forado, imposto de fora, mas tentam buscar dentro de si, os mecanismos que o levem a essa maneira

    particular de utilizao corprea e energtica na cena, criando uma tcnica pessoal de representao. A

    busca dessa tcnica pessoal poderia ser chamada de tcnica de inculturao (Barba,1995:190).

    Assim Eugenio Barba, Grotowski e o prprio Stanislavski levam seus atores a buscarem uma maneira

    individual e particular de estar em cena, diferenciada do cotidiano; uma maneira no habitual de

    comportamento cnico.

    Se analisarmos atentamente os princpios e as bases de sustentao, tanto de tcnicas aculturadas

    como inculturadas de representao, chegaremos a princpios de utilizao do corpo que so comuns entre

    si. O estudo desses princpios comuns entre essas diversas tcnicas codificadas de representao para o

    ator, nos levaria ao estudo da Antropologia Teatral, que importante ponto de referncia, mas no o

    objetivo principal desse trabalho.

    Sinto-me tentado a fazer uma relao direta entre as tcnicas de aculturao e inculturao e o

    modo no-interpretativo de representar. Nesse caso, a representao subentenderia a necessidade de

    uma tcnica aculturada ou inculturada de utilizao do corpo e da energia, portanto, extracotidiana.

    Poderamos dizer que, partindo dessa premissa, os atores que se utilizam de tcnicas aculturadas de

    representao (como os orientais, por exemplo) ou aqueles que possuem uma tcnica inculturada ou

    pessoal de representao (como os atores do Odin Teatret, por exemplo) representam, e no

  • interpretam, pois se utilizam de princpios corpreos e energticos objetivos, apreendidos como a base

    da articulao de sua arte. Assim sendo, os teatros orientais clssicos, com seus atores bailarinos

    aculturados, e o teatro ocidental, com seus atores inculturados [...] so anlogos no nvel pr-

    expressivo. (Barba, 1995:190).

    Assim, Decroux, Eugenio Barba com o Odin Teatret, Jerzy Grotowski com seu Teatro

    Laboratrio, e inclusive o LUME, talvez todos filhos da mesma vontade de experimentao de

    Stanislavski, tentaram e esto tentando buscar princpios que devolvam a liberdade de criao do ator.

    Princpios estes que faam o ator, e no mais o texto literrio, voltar a ser o verdadeiro artista de sua arte

    de representar, o que somente aconteceu em momentos fugazes na histria do teatro como, por

    exemplo, na Commedia Dell'Arte. Etienne Decroux tinha a mesma opinio sobre a relao entre ator e

    literatura:

    [A literatura ] na verdade a concubina, a mais pegajosa. Este drago de

    virtude, esta honesta diaba teve, portanto, sua escapada: por volta do sculo XVI, nos

    tempos da Commedia DellArte, poca na qual, contente celibatrio, o ator fez a sua

    prpria sopa: bons tempos. Hels a literatura voltou, de passagem, dizia ela, para

    costurar um boto de cueca, aproveitou para verificar a vestimenta inteira: oito dias mais

    tarde, suas razes vivificavam por dentro. (Decroux in Burnier 1994 : 39).

    Da Pr-Expresso Expresso

    Pr-expressividade - o alicerce

    Como o prprio nome diz, pr-expressivo aquilo que vem antes da expresso, da personagem

    construda e antes da cena acabada. o nvel onde o ator produz, e principalmente, trabalha todos os

    elementos tcnicos e vitais de suas aes fsicas e vocais. o nvel da presena, onde o ator se trabalha,

    independente de qualquer outro elemento externo, quer seja texto, personagem ou cena.

    A pr-expressividade no se preocupa com a expresso artstica em si, mas com aquilo que,

    anteriormente, a torna possvel. Assim...

    O nvel que se ocupa com o como tornar a energia do ator cenicamente viva, isto ,

    como o ator pode tornar-se uma presena que atrai imediatamente a ateno do espectador,

    o nvel pr-expressivo[...]. Este substrato est includo no nvel de expresso, percebido na

    totalidade, pelo espectador. Entretanto, mantendo esse nvel separado durante o processo de

    trabalho, o ator pode trabalhar no nvel pr-expressivo, como se, nesta fase, o objetivo

  • principal fosse a energia, a presena, o bios de suas aes e no seu significado. O nvel

    pr-expressivo, pensado desta maneira , portanto, um nvel operativo: no um nvel que

    pode ser separado da expresso, mas uma categoria pragmtica, uma prxis, cujo objetivo,

    durante o processo, fortalecer o bios do ator. (Barba,1985:188)2

    A pr-expresso, portanto, o alicerce do trabalho no-interpretativo, pois nesse nvel que o ator

    busca aprender e treinar uma maneira operativa, tcnica e orgnica, de articular, tanto suas aes fsicas e

    vocais no espao como, e principalmente, sua dilatao corprea, sua presena cnica e a manipulao de

    suas energias.

    Essa busca pode dar-se de duas formas: atravs do aprendizado de uma tcnica sistematizada e

    codificada que ensine e treine a manipulao desses elementos pr-expressivos, o que significa

    deparar-se com uma tcnica de aculturao, como o caso das tcnicas orientais de representao, ou

    em uma busca individual que resulte numa pesquisa dos caminhos que levem a um encontro com

    suas prprias energias, organizando-as no espao e no tempo, atravs de uma tcnica pessoal de

    representao. Os treinamentos, exerccios e trabalhos pr-expressivos propostos pelo LUME, logo

    mais, tm como objetivo essa busca de uma tcnica pessoal de representao para o ator.

    Ao Fsica - A Poesia Corprea3

    Podemos dizer que a ao fsica4 a passagem, a transio entre a pr-expressividade e a

    expressividade. Ela corporifica os elementos pr-expressivos de trabalho e o cerne, a base e a menor

    clula nervosa de um ator que representa. atravs dela que esse ator comunica sua vida e sua arte.

    Segundo Lus Otvio Burnier a ao fsica a poesia do ator.

    Primeiramente, para entendermos o conceito real de ao fsica, proposto para esse trabalho,

    devemos distingui-la dos conceitos de atividade, de gesto e de movimento. Recorreremos a

    Grotowski:

    O que um gesto se olharmos do exterior? Como reconhec-lo? O gesto uma

    ao perifrica do corpo, no nasce do interno do corpo, mas da periferia. 1 exemplo:

    quando os fazendeiros dizem um bom dia s visitas, se so ainda ligados vida

    tradicional, o movimento da mo comea dentro do corpo (Grotowski demonstra), e os da

    2 Grifos-negritos meus.3 Todos os conceitos discutidos nesse sub-tem Ao Fsica A Poesia Corprea - foram baseados na tese de doutoramento de Lus Otvio Burnier, A Artede Ator Da Tcnica Representao passin pginas 49 774 Todos os conceitos relacionados, aqui, aes fsicas, podem ser aplicados, tambm, s aes vocais, pois no desvinculamos a voz do corpo. Assim,quando fala-se em aes fsicas, pode-se ler aes fsicas e vocais.

  • cidade assim (demonstra o mesmo movimento partindo das mos.). Este o gesto. Quase

    sempre se encontra na periferia, nas caras, nesta parte das mos, nos ps, pois muito

    freqentemente no tem origem na coluna vertebral. Ao contrrio, a ao algo mais,

    porque nasce do interno do corpo, est radicada na coluna vertebral e habita o corpo

    (Grotowski in Burnier,1994:40)

    Ento, a primeira definio que Grotowski d para uma ao fsica que ela deve nascer da coluna

    vertebral, deve ser algo de profundo e estar em contato com a pessoa e as energias potenciais do

    ator. Etienne Decroux coloca o mesmo quando diz:

    O que chamo de tronco, todo o corpo, compreendendo os braos e as pernas...

    contanto que esses braos e pernas se movam somente ao chamado do tronco e

    prolongando sua linha de fora (...). Se tem emoo o movimento parte do tronco e ecoa

    mais ou menos nos braos. Se s tem explicao da inteligncia pura, desprovida de

    afetividade, o movimento pode partir dos braos para transportar somente os braos ou

    levar o tronco. (Decroux, 1963: 60-61)

    Essa ao fsica, que necessariamente deve nascer da coluna vertebral, como coloca Grotowski e

    Decroux, mesmo sendo a menor partcula viva do ator, pode ainda ser dividida em sub-partculas

    para melhor compreenso de sua funo e sua complexidade.

    Essas sub-partculas podem ser separadas em dois grupos distintos: de um lado os micro-

    elementos relacionados parte fsico-mecnica da ao (inteno, lan, impulso e movimento) e de outro os

    micro-elementos que do o conceito de dilatao e organicidade cnica. Essa diviso apenas didtica, pois

    todos esses elementos devem, necessariamente, estar inter-relacionados para que a ao fsica seja viva

    e pulsante no ator. Definamos, ento, rapidamente esses elementos, com base nas pesquisas de

    Eugenio Barba, Lus Otvio Burnier, Jerzy Grotowski e Etienne Decroux:

    Inteno

    A inteno nasce na musculatura antes da ao se realizar no espao. como uma vontade de agir

    sem ao. Podemos defini-la, tambm, como uma tenso interna ou um estado muscular em alerta.

    Para que essa tenso interna ocorra necessrio no mnimo duas foras em oposio.

    Para o ator, esse estado muscular em tenso s existe na medida em que seja corpo, ou seja, uma

    tenso muscular maior ou menor, esteja conectada com algum objetivo fora de ns. Podemos cham-la

    mais precisamente de inteno muscular.

  • lan

    O lan de uma ao pode ser entendido como o seu sopro de vida, ou seu impulso vital, algo

    de enigmtico, de conhecido, porm no explicvel, que nos impulsiona ao, vida, por meio das aes. o

    elemento que leva a inteno ao impulso; a vontade que leva concretizao da ao no tempo e no espao.

    Impulso

    No caso do ator, a palavra impulso toma um sentido particular de empurrar ou arremessar com

    fora, de dentro. Esse algo arremessado de dentro para fora, vai, posterior e imediatamente, tomar

    corpo e se transformar numa ao fsica orgnica. Grotowski tambm se refere aos impulsos como algo

    que precede imediatamente as aes:

    Os impulsos precedem as aes fsicas, sempre. como se a ao fsica, ainda

    invisvel do externo, tivesse j nascido no corpo. isso o impulso. (...) Antes da ao

    fsica tem o impulso, que empurra de dentro do corpo (...). Na realidade, a ao fsica, se

    no inicia de um impulso, vira algo de convencional, quase como um gesto. Quando

    trabalhamos com os impulsos, ela fica enraizada no corpo. (T.Richards,1993:105)

    Na verdade, Grotowski busca, para o ator, uma eliminao do lapso de tempo entre o impulso

    interior e reao exterior. "O Impulso e a reao passam a ser concomitantes: o corpo se desvanece,

    queima, e o espectador assiste a uma srie de impulsos visveis." (Grotowski,1986:15)

    A inteno, o lan e o impulso so elementos que prenunciam o desenrolar da ao. Fazem parte

    do primeiro momento, invisvel, desta clula mater que a ao fsica.

    Movimento

    Uma vez que esses pr-elementos (inteno, lan e impulso) da ao fsica existem, acontece, ento, o

    segundo momento: seu movimento, ou seja, o acontecimento da ao no espao, com um itinerrio e um

    ritmo determinado. Por itinerrio entendamos o desenho da ao no espao e por ritmo o desenho

    dessa ao no tempo.

    Gostaria de chamar a ateno ao fato de que, esses elementos da ao fsica so subdivididos, mas

    no precisam, necessariamente, estar contidos, todos e sempre, na mesma ao fsica. Dentro dessa

    lgica, verificamos, na prtica, que perfeitamente possvel existir uma ao fsica com inteno e lan mas

    sem movimento, ou ainda, o movimento da ao ser modificado no espao, diminuindo-o ou

    ampliando-o, mantendo-se o mesmo impulso. Tambm mantendo-se a mesma inteno e lan, modificar

    os impulsos e os movimentos. Todos os elementos esto intimamente relacionados, mas ao mesmo

  • tempo so completamente independentes. A variao desses elementos no tempo e no espao, sua

    omisso e segmentao pode ser denominada, no mbito do trabalho do LUME de variao de

    fisicidade5

    Esses elementos, topificados acima, fazem parte do aspecto fsico-mecnico da ao. Adentremos

    agora naquilo que podemos chamar de contedo da ao, o processo de manuteno da vida, ou seja,

    do que vivo e orgnico na ao fsica: a energia (a vibrao, a vida, a humanidade, enfim, um conjunto de

    fatores que nos ajudam a estar em vida), a preciso e a organicidade. Esses elementos podem ser

    agrupados sob o conceito de presena, ou ainda, dilatao corprea. Esse corpo dilatado o que

    Eugenio Barba chama de energia extracotidiana do ator.

    Energia

    A palavra energia vem do grego energon, que significa em trabalho. Uma maneira de se

    pensar energia enquanto fluxo, um caminhar especfico que encontra resistncias e as vai

    vencendo; ou ento como radiao, ou seja, vibrao, algo que se propaga pelo

    espao(Burnier,1994:67). No ocidente essa palavra vista com certo receio no meio cientfico, e at

    mesmo artstico, quando designada para nomear algo que emana do corpo humano. J no Oriente ela

    vista com naturalidade entre mdicos, cientistas e profissionais de palco. Os atores, em seu longo

    aprendizado, conseguem, de certa forma, utilizar e manipular essa energia de maneira expandida,

    dilatada, quando em cena. Na ndia, essa presena que provm da manipulao da energia chamada de

    prana ou shakt; no Japo koshi, ki-hai e yugen; em Bali chikara, taxu e bayu; na China kung-fu ou

    chi. Barba e Savarese colocam a energia como algo de quase impossvel definio terica:

    Para adquirir esta fora, esta vida, que uma qualidade intangvel, indescritvel

    e incomensurvel, as vrias formas teatrais codificadas usam procedimentos muito

    particulares, um treinamento e exerccios bem precisos. Esses procedimentos so

    projetados para destruir as posies inertes do corpo do ator, a fim de alterar o equilbrio

    normal e eliminar a dinmica dos movimentos cotidianos (Barba e Savarese, 1991: 74)

    Observaes feitas no teatro Oriental e em pesquisas cnicas ocidentais feitas por Grotowski,

    Eugenio Barba, Lus Otvio Burnier entre outros, sugerem que atravs de resistncias musculares,

    oposies corpreas, exausto fsica, contatos profundos com a pessoa, os atores conseguem, depois de

    muitos anos de trabalho, uma dilatao, uma certa manipulao consciente da energia e suas variaes.

    5 Voltaremos a esse conceito de variao de fisicidade mais adiante.

  • Podemos, ainda, tentar definir energia como um estado muscular orgnico. Dessa forma, a

    musculatura, enquanto objeto palpvel e manipulvel, tanto nas variaes de sua tenso, como em sua

    movimentao no tempo/espao, pode ser o ponto de partida para esse estudo corpreo sobre a

    manipulao de energia. No momento em que o ator conseguir fazer sua musculatura conectar-se

    com sua pessoa, no caso sua humanidade, fecha-se o foco do pndulo entre tcnica(estril) e vida

    (catica). Esse foco orgnico passa ento a gerar energia. Essa energia, como um fantasma ou como

    a gua que ecoa no rio depois da pedra atirada, causa, ento, um refluxo que se expande para alm do

    corpo, gerando uma dilatao corprea e em conseqncia, uma presena cnica. Eugenio Barba tambm

    coloca a energia como uma potncia nervosa e muscular, objeto de estudos dos atores:

    A energia do ator uma qualidade facilmente identificvel: sua potncia

    nervosa e muscular. O fato dessa potncia existir no particularmente interessante, j

    que ela existe, por definio, em qualquer corpo vivo. O que interessante a maneira

    pelo qual essa potncia moldada num contexto muito especial: o teatro. [...] Estudar a

    energia do ator significa examinar os princpios pelos quais ele pode modelar e educar sua

    potncia muscular e nervosa de acordo com siuaes no cotidianas. (Barba e

    Savarese,1995:74)

    Organicidade

    Por orgnico se entenda uma capacidade de encontrar e dinamizar um determinado fluxo de

    vida, uma corrente quase biolgica de impulsos (Grotowski,1992:02). Esse fluxo dinmico deve

    ocorrer entre a ao fsica externa em relao com as macro e micro tenses interiores pulsantes do ator,

    ou seja, a organicidade o contato interior que o ator tem, na realizao da ao fsica, com sua pessoa e

    suas energias potncias.

    [...] para se obter uma organicidade em uma ao fsica, ou em uma seqncia de

    aes fsicas, h de se desenvolver um conjunto complexo de ligaes e interligaes

    internas ao ou seqncia das aes [...] Busca-se, neste caso, uma reao primria

    e primitiva, no filtrada pela razo. Aqui, no se trata de uma organicidade que pode ser

    reconstruda [...], mas de algo que deve ser reencontrado. Portanto, neste caso, trabalha-

    se com a passividade da mente, a busca de um espao que permita este reencontro com

    uma organicidade primria. o corpo-memria se reencontrando a si mesmo, a sua

    integralidade orgnica. (Burnier,1994: 74)

  • Como percebemos, organicidade uma inter-relao integral corpo-mente-alma, uma espcie de

    totalidade psicofsica. como ser o verbo ESTAR. Um estar pleno, vivo e integrado.

    Preciso

    um termo usado para designar exatitude, justeza, rigor e perfeio. Na ao fsica, estes termos

    podem se aplicar no somente no itinerrio, ritmo e impulsos, mas tambm no que se refere a qualidade

    e quantidade de energia que alimenta a ao. Tanto na preciso fsica/mecnica do movimento, como na

    manipulao da energia, necessrio que haja uma espcie de corte ou parada, antes que termine sua

    linha de fora, seu fluxo. Esse corte ou parada faz com que esse fluxo no se dilua no espao, dando

    uma sensao de propagao da energia despendida para realizao daquela ao, como um eco.

    * * *

    At aqui definimos o conceito de ao fsica, tanto a parte fsico-mecnica como a parte interior,

    ou seja, os elementos que do vida ao. Como resumo dessas definies, podemos observar o caminho

    complexo pelo qual a ao fsica nasce: da inteno vem o lan e o impulso (ou impulsos) que,

    posteriormente se transformam em movimento na relao tempo/espao; esse movimento preenchido

    pelo ator com uma presena e uma dilatao corprea que corresponde, em primeiro lugar, a um

    contato do ator com sua pessoa, sua alma, sua verdade, e suas energias potenciais,

    configurando, assim, uma ao fsica orgnica. Essa organicidade deve gerar uma energia

    expandida e/ou dilatada e finalmente todos esses elementos devem ser manipulados, pelo ator, de

    uma forma clara, objetiva e precisa.

    Como visto, a conexo ao fsica & energia potencial do ator fundamental. o que vai dar

    vida s aes fsicas, transformando-as em aes vivas, e a tcnica em tcnica-em-vida. Somente assim,

    seguindo o pensamento de Artaud, ele conseguir atingir seu pblico, dinamizando nele tambm,

    energias potenciais. (Burnier,1994:78)

    Esse mergulho interior na busca de uma integralidade orgnica que o ator deve fazer para

    entrar em contato com suas energias potenciais.

    Corporeidade/Fisicidade

    Outro fator importante e intimamente relacionado questo da ao fsica, o conceito de

    corporeidade e fisicidade, tambm proposto por Lus Otvio Burnier.

  • A corporeidade a maneira como as energias potenciais se corporificam, a transformao

    destas energias em msculo, ou seja, em variaes diversas de tenso. Esta transformao de

    energias potenciais em msculo o que origina a ao fsica (Burnier, 1994:75)6.

    J a fisicidade corresponde parte mecnica pela qual se opera uma ao fsica. Da fisicidade fazem

    parte o movimento, a relao desse movimento com o tempo/espao, enfim, tudo o que corresponde

    parte mecnica da ao fsica. Na definio do prprio Lus Otvio Burnier:

    Por corporeidade, entendo a maneira como o corpo age e faz, como ele intervm

    no espao e no tempo, o seu dinamorritmo. A corporeidade mais do que a pura fisicidade

    de uma ao. Ela, em relao ao indivduo atuante, antecede a fisicidade... [...] a

    corporeidade est, pois, entre a fisicidade e as energias potenciais do ator. Ela pode ser

    considerada como a primeira resultante fsica do processo de dinamizao das distintas

    qualidades de energias que se encontram em estado potencial. Est muito prxima do que

    podemos chamar de qualidades de vibrao. Ela significa a primeira etapa deste

    processo de corporificao das qualidades de vibrao, ao passo que a fisicidade significa

    a etapa final deste processo. (Burnier, 1994:75).

    Temos, portanto, dois plos complementares: enquanto a fisicidade o corpo final e

    trabalhado da ao fsica, a corporeidade sua alma, sua vida primeira, o "corao" da forma no

    tempo/espao e, para o trabalho do ator, um elemento no pode existir sem o outro.

    Matrizes

    Uma ao fsica e ou vocal orgnica e pessoal, descoberta e pesquisada pelos atores, e que dinamizam suas

    energias potenciais, chamada de MATRIZ. Se a procurarmos no dicionrio, encontraremos algumas das

    razes dessa palavra ter sido utilizada para definir uma ao fsica orgnica: MATRIZ: rgo das fmeas

    dos mamferos onde se gera o feto; tero; madre [...] que fonte ou origem; principal; primordial.

    Assim, a Matriz entendida como o material inicial, principal e primordial; como a fonte orgnica de

    material do ator, qual ele poder recorrer, sempre que desejar, para a construo de qualquer trabalho

    cnico. A matriz a prpria ao fsica/vocal, viva e orgnica, codificada.

    A matriz, entendida como rgo onde se gera o feto, o tero, a clula criativa do ator. Ela, como material

    inicial, pode ser moldada, remodelada, reconstruda, segmentada, transformada em sua fisicidade no

    tempo/espao, tendo como nica condio a necessidade de se manter seu corao, o ponto de

    6 Grifo meu

  • organicidade que no pode ser perdido, que a essncia da ao/matriz ou seja, sua corporeidade. Recorro

    novamente a Lus Otvio Burnier para conceituar esse corao da ao:

    O corao da ao no somente o impulso, mas sua localizao precisa na coluna

    vertebral, no tronco do corpo. Os exemplos, neste caso, no funcionam muito bem. Um

    impulso que move uma ao no algo de conceitual, mas de concreto, fsico e corpreo.

    O corao da ao, aquilo que no pode ser retirado sem matar a ao, a sua essncia

    fsica. Existe um conjunto de elementos que pode ser retirado de uma ao, como o

    movimento dos braos, ou at de outras partes do corpo, mas que no prejudicam em sua

    essncia, a vida da ao. O corao da ao determina onde no corpo est localizada a

    inteno, o impulso, a voz, a respirao, e , portanto, arriscado tentar exemplos. Aqui no

    podemos trabalhar conceitualmente, mas praticamente, fazendo, ou seja, checando no

    corpo do ator onde est o corao no momento em que ele desencadeia sua ao. O que nos

    importa saber que a noo do corao da ao visa sobretudo localizar no corpo o impulso,

    a inteno, o pulso da ao. (Burnier, 1994:54).

    Em movimento - a emoo

    A emoo no deve ser vista, no mbito desse trabalho, como objetivo primeiro do ator.

    Lembremos a citao de Lus Otvio Burnier dizendo que, em relao s emoes, ... no podemos fix-las,

    nem evoc-las, mas simplesmente senti-las. (Burnier, 1994:116). Acrescento ainda: senti-las na

    musculatura.

    Emoo, segundo o prprio Burnier, poderia ser definida como in-motion, ou ainda, em

    movimento. Portanto, as emoes esto em constante movimento dentro de ns. Tentar fix-las dentro de

    um suposto cerco psicolgico, ou defini-la dentro de uma forma muscular preestabelecida, seria

    estagnar essa movimentao orgnica da emoo, realizando assim, um processo altamente inorgnico,

    falso e estereotipado. Querer interpretar o medo, a raiva ou um estado de paz no seria encontrar

    equivalncias orgnicas, mas alegorias de emoes, estereotipando-as. Quando digo sentir as emoes

    na musculatura, o mesmo que dizer ao ator para tentar no buscar formas preestabelecidas de

    mostrar ou representar esta ou aquela emoo, mas para descobrir uma maneira de fazer com que seu

    corpo psicofsico esteja apto e despojado de todos os bloqueios, e assim, deixar fluir essas in-motions

    atravs de sua musculatura.

    A arte, vale lembrar, do domnio do fazer, e pede um manuseio de instrumentos

    objetivos, materiais, operativos. Lembremos mais uma vez Stanislavski: No podemos

  • lembrar os sentimentos e fix-los. Ns s podemos lembrar a linha das aes fsicas. Assim, as

    bases de nosso edifcio no podem ser as emoes ou os sentimentos. H de se construir

    parmetros objetivos, corporeidades, e assim permitir que as emoes se movam

    provocando sensaes musculares que sero ento sentidas e vividas pelo ator. Agindo

    desta forma podemos estar entrando em contato com universos muito alm do das

    emoes, como a memria muscular, o corpo-memria, ou a corporeidade antiga

    no sentido de passado, do passado longnquo. No devemos, no meu entender, sequer

    definir as emoes sob o risco de mat-las. Devemos encontrar parmetros tcnicos

    objetivos para que o ator possa se abandonar s estranhas e misteriosas sensaes

    provocadas por algo que se move nele, que acordado, dinamizado, e o remete a imagens

    muitas vezes longnquas e cruis. Talvez assim, atores e espectadores vivam realmente

    algo de significativo, e sintam realmente emoes, e no algo forjado, provocado, que de

    emoo s guarda o nome. (Burnier, 1995:118)

    Tcnica - a possibilidade de articular

    Dentro das tcnicas de inculturao no se busca uma tcnica especfica e global de representao

    para o ator, mas exerccios e elementos de trabalho que o possibilitem descobrir uma tcnica pessoal.

    Mesmo assim, o ator deve saber manipular de forma precisa seu corpo e sua voz no tempo e no

    espao.

    Quando digo tcnica pessoal, entenda-se uma metodologia pela qual o ator, atravs de

    treinamentos, trabalhos e exerccios especficos realizados ao longo de um grande perodo de tempo,

    consegue codificar uma tcnica corprea e vocal prpria. Assim, o ator no aprende uma srie de

    exerccios e trabalhos codificados e mecanizados no qual ele apenas os repete em cena, criando

    assim, um esteretipo e uma estilizao superficial de sua arte. Ele no aprende como chorar, como

    mostrar alegria, como mostrar tristeza.

    Ele, o ator, deve ento aprender a aprender (Barba,1995:244), ou seja, descobrir como

    dinamizar suas energias potenciais, como superar suas dificuldades corpreas e vocais, como ir

    sempre alm. Esse aprender a aprender, portanto, no pode estar embasado em frmulas e

    esteretipos preestabelecidos. A pesquisa de Grotowski tambm buscou, no uma frmula especfica de

    representao, mas um desbloqueio dos obstculos que levam o ator a uma entrega total:

    No estamos atrs de frmulas, de esteretipos, que so a prerrogativa dos

    profissionais. No pretendemos responder a perguntas do tipo: Como se demonstra

  • irritao? Como se anda? Como se deve representar Shakespeare? Pois essas so

    perguntas usualmente feitas. Em vez disso, devemos perguntar ao ator : Quais so os

    obstculos que lhe impedem de realizar um ato total, que deve engajar todos os seus

    recursos pscicofsicos, do mais instintivo ao mais racional? Devemos descobrir o que o

    atrapalha na respirao, no movimento e - isto o mais importante de tudo - no contato

    humano. Que resistncias existem? Como podem ser eliminadas? Eu quero eliminar, tirar

    do ator tudo que seja fonte de distrbio. Que s permanea dentro dele o que for criativo.

    Trata-se de uma liberao. Se nada permanecer que ele no era um ser criativo.

    (Grotowski, 1987, 180).

    Essa postura pela via negativa, como Grotowski definia seu "mtodo" de trabalho, acaba

    gerando no uma, mas vrias tcnicas pessoais de representao, pois cada ator deve pesquisar suas

    prprias resistncias, e assim que as eliminar, descobrir uma maneira particular de dinamizar suas

    energias, sua presena e tambm um modo particular e nico de articular suas aes fsicas e vocais no

    tempo e no espao.

    Essa tcnica pessoal no possui um vocabulrio prefixado de aes fsicas e vocais, como o caso

    das tcnicas aculturadas orientais. O ator no necessita aprender uma maneira especfica e pr-

    codificada de representao, como o caso do N, Kabuki e Kathakali; mas deve, necessariamente,

    apreender e in-corporar no seu corpo os elementos pr-expressivos que lhe possibilitaro a articulao

    de uma tcnica extracotidiana de representao e uma maneira especfica de manipulao de sua energia e

    organicidade.

    A palavra tcnica remete a organizao, fixao e delimitao. Na verdade, o objetivo da tcnica o

    desenhar o corpo e o domar a energia. Uma imagem usada por Lus Otvio Burnier em sala de

    trabalho que a tcnica deveria domar o leo que est dentro de ns. Domar esse leo significa, para o

    ator, encontrar o foco do pndulo onde temos de um lado, vida (o leo acordado e furioso) e do outro,

    a tcnica (o domador).

    Codificao repetio orgnica do corpo-memria

    Um dos grandes problemas para o ator no-interpretativo a codificao de suas aes fsicas e

    vocais. Dentro das tcnicas aculturadas Orientais esse problema praticamente no existe, j que todas as

    aes fsicas so codificadas e sistematizadas dentro de um lxico corpreo que repassado de gerao em

    gerao. O ator aprende, atravs de seu mestre, tanto a parte fsico mecnica como tambm os meios pelos

    quais eles manipulam as energias e a organicidade dentro dessas aes extracotidianas.

  • Para o ator, que se utiliza de uma tcnica pessoal , seu lxico de aes vai sendo construdo

    durante o seu trabalho cotidiano. Assim, as aes fsicas orgnicas codificadas vo formando um

    vocabulrio prprio de aes:

    Como disse muito sabiamente Grotowski, existe um momento de graa durante

    o qual a criao flui, as energias fluem, o inusitado (ou o esquecido) surge. Quanto a este

    momento, s podemos ativ-lo, como se colocssemos lenha na fogueira. Mas existe

    um outro momento, tambm fundamental para a arte de ator, sem o qual no podemos

    falar de arte, que o de codificao e sistematizao das aes fsicas surgidas neste

    processo, visando uma elaborao tcnica.(Burnier, 1994:141)

    Assim cada ator deve buscar, individualmente, os caminhos de resgate dessa organicidade e

    dessa vida, aps o nascimento da ao em um momento de estado de graa, codificando-a. No

    LUME, partimos do pressuposto de que a codificao orgnica da ao somente ser possvel se partirmos

    para uma tentativa de codificao enquanto corpo, e o corpo enquanto memria. Se o corpo possui uma

    memria muscular como diz Grotowski, ento essa memria muscular, esta memria que to forte

    no ator (Stanislavski,1980:371), deve ser ativada, sendo possvel usar e fixar a organicidade da

    ao atravs da prpria musculatura, tentando reencontrar e repetir as macro e micro tenses, a inteno

    muscular, o lan, o(s) impulso(s), o "corao da ao" e todos os elementos que desencadearam a vida

    da ao no momento em que ela nasceu. Conseguindo essa repetio de maneira exaustiva, o ator

    conseguir re-apresentar, corporalmente, a ao fsica com a mesma verdade. Se perder, durante esse

    processo, os elos corpreos orgnicos com sua pessoa, ou no encontrar algum elemento essencial para

    restaurao dos impulsos e intenes, as aes tornam-se mecnicas e devem ser descartadas.

    Podemos definir a codificao como uma busca de uma repetio, muscular e orgnica, da

    ao. Devemos observar uma preocupao com a codificao, no somente a nvel muscular, mas tambm

    de todos os elementos que levam organicidade da ao, como imagens e todo o universo sensorial.

    Treinamento - o combustvel do ator

    A maneira de se trabalhar todo esse processo a criao de um espao onde o ator, assim como o

    pianista que necessita de horas de treinamento em um piano durante toda a vida, possa trabalhar

    todos os componentes de sua arte. nesse espao que o ator deve aprender a aprender. Ele deve

    trabalhar nesse treinamento no s o aspecto fsico-mecnico, mas principalmente a dimenso interior, a

    dinamizao de suas energias potenciais e aprender a fazer a correlao entre esses dois universos.

  • Temos portanto dois tipos de treinamento: um treinamento que visa a parte fsico-mecnica do ator, o

    aprendizado do desenhar aes no espao e no tempo; e o treinamento energtico que visa o acordar da

    organicidade, dinamizando e permitindo o fluir de energias mais profundas que se encontram em

    estado potencial no indivduo. O ator deve buscar, em ambos os casos, maneiras extracotidianas de

    relacionamento com o espao, o tempo e a energia.

    importante dizer que essa diviso entre treinamento tcnico e treinamento energtico

    simplesmente para facilitar a abordagem do assunto. Dentro de trabalhos tcnicos o ator deve buscar

    o contato com suas energias e tentar descobrir que portas aquele trabalho tcnico abre em sua

    pessoa. O contrrio tambm vlido: para trabalhos energticos o ator nunca poder esquecer da tcnica, ou

    seja, dos aspectos que do forma precisa s suas aes fsicas e vocais no tempo e no espao. A diferena

    bsica simplesmente o enfoque que dado por um ou outro.

    Esse treinamento deve ser sistemtico, cotidiano e disciplinado. um trabalho pr-expressivo,

    pois no momento do treinamento, o ator no trabalha a personagem ou um espetculo teatral, mas o

    espao onde o ator se trabalha, seja descobrindo sua tcnica pessoal, seja adquirindo e assimilando

    elementos de tcnicas aculturadas, j estruturadas e codificadas, buscando sempre maneiras precisas

    e objetivas de desenhar, modelar, articular, a apreenso no corpo de certos princpios, leis, de uso

    do corpo cnico. (Burnier,1994:88)

    Concordo com Barba quando descreve o treinamento como um trabalho que no ensina a ser

    ator, a interpretar uma mscara de Comedia DellArte ou a interpretar um papel trgico ou

    grotesco, no d a sensao de conhecer algo, de adquirir habilidades. O treinamento um

    encontro com a realidade que se escolheu: qualquer coisa que se faa, faa-a com todo seu ser. Por

    isso falamos de treinamento e no de escola ou de um perodo de aprendizagem. (Barba,1991:56).

  • A Mmesis Corprea

    A mmesis corprea um meio particular do LUME para a apreenso de matrizes. Seu estudo to

    complexo e pormenorizado que se transformou em linha de estudo independente dentro do Ncleo.

    Ela possibilita ao ator a busca de uma organicidade e de uma vida a partir de aes coletadas

    externamente, atravs da imitao de aes fsicas e vocais de pessoas encontradas no cotidiano. Alm das

    pessoas, ela tambm permite a imitao fsica de aes estanques como fotos e quadros, que podem ser,

    posteriormente, ligadas organicamente, transformando-se em matrizes complexas. Cabe ao ator a

    funo de dar vida a essa ao imitada, encontrando um equivalente orgnico e pessoal para a ao

    fsica/vocal.

    Enquanto preparao do ator, faz com que ele saia de si e olhe para o exterior. Trabalhos como o

    treinamento energtico e a Dana Pessoal7 buscam um mergulho interior do ator para descobrir sua

    organicidade e corporeidades. O trabalho com objetos8 proporciona um dilogo interno/externo

    simultneo, enquanto a mmesis inaugura uma nova etapa de trabalho: tambm um mergulho, mas a

    partir de uma vivncia externa e objetiva. E esse universo exterior um passo importante na formao de

    um ator. Carlos Simioni tambm coloca essa questo:

    ...percebemos que faltava ainda mais um elemento para podermos

    avanar. Temos o ator pessoal; ele desenvolveu e codificou suas energias

    pessoais, seus movimentos pessoais, seus gestos, seu modo de agir, sua lgica,

    recolhendo, assim, um universo de materiais e de composies. Esta a sua

    lgica. Para avanar, ele precisa descobrir o universo do outro. Surge, ento, no

    Lume, a Mmesis Corprea,[... que] se desenvolve por si s, para qual

    elaborada uma tcnica prpria, mas com destino marcado, que o avano da

    tcnica de ator a que nos propomos.9

    E Ana Cristina Colla d um panorama:

    A mmesis me fez descobrir a beleza das pessoas a minha volta, no

    momento em que me obrigou a observ-las com novos olhos. Atravs dela vivi em

    meu corpo a fragilidade da Dna Maria, velhinha que me acompanhar em meus

    dias com sua beleza e seu riso estridente. Enquanto tema de pesquisa expandiu o

    7 Linha de pesquisa do LUME que busca a dinamizao das energias potenciais do ator, na busca de uma tcnica pessoal de represetnao.8 Trbalho desenvolvido pelos atores-pesquisadores que buscam, tambm, a dinamizao de energias potenciais coma ajuda de objetos externos. Essesobjetos, inicialmente, so o Tecido e o Basto.9 Carlos Roberto Simioni, 1998. Mimeo.

  • universo de possibilidades a serem desenvolvidas: 1) Observao: como e o que

    observar na coleta de aes, 2) Codificao e memorizao das aes

    observadas, exteriores a mim , j que eram coletadas de outra pessoa, animal ou

    foto. O que suscitou novas dificuldades pois at o momento s havia trabalhado

    com aes surgidas em sala de trabalho. 3) E finalmente como dar a minha vida

    a essa aes, sem roubar-lhes a particularidade. Como colar as aes de outro

    ser em meu corpo respeitando-lhe as caractersticas prprias. Como imprimir em

    meu corpo jovem os oitenta anos vividos por Dna. Maria. (Ana Cristina Colla,

    entrevista, 1997)

    Convm fazer uma rpida reflexo sobre a questo da palavra imitao. O LUME no usa essa

    palavra para nomear sua pesquisa nessa rea, pois ela pode sugerir uma imitao estereotipada e

    estilizada da pessoa. No esse o objetivo. Buscamos uma imitao, precisa e real, sim, no somente da

    forma e da fisicidade, mas principalmente das corporeidades da pessoa. Nos escritos de Lus Otvio

    Burnier, dizendo do processo da montagem Wolzen, que se utilizou dessa pesquisa:

    No nos interessava uma imitao aproximativa dos doentes, mas uma

    imitao precisa e perfeita de suas aes fsicas e vocais. No nos interessava a

    pessoa do ator, ou seja, o que as atrizes haviam sentido ao verem os pacientes,

    mas suas aes fsicas, o o que e o como eles, precisa e objetivamente, faziam,

    agiam ou reagiam com o corpo, suas corporeidades.(Burnier,1994:221)

    O LUME, portanto, fala em mmesis corprea, ou mmesis das corporeidades, numa tentativa

    de se distanciar da palavra imitao, mesmo sabendo que ambas significam o mesmo, a nvel lingstico.

    Na verdade, uma definio mais precisa seria algo como equivalncias orgnicas de observaes

    cotidianas, pois busca imitar no somente os aspectos fsicos, mas tambm os orgnicos, encontrando

    equivalncias para esses ltimos. Essa a busca bsica, que suscita uma pergunta tambm bsica: como

    fazer para imitar essa organicidade? Para respondermos a essa questo, e tambm para um melhor

    entendimento da ferramenta preciosa que a mmesis corprea na formao do ator, ser necessrio fazer

    alguns apontamentos sobre a pesquisa desenvolvida, tanto a nvel mecnico como orgnico.

    Nos primeiros passos do processo da criao da metodologia de Mmesis Corprea como

    ferramenta de criao do ator, observava-se a pessoa que seria imitada e partia-se para o trabalho

    prtico em sala tendo em primeira instncia uma viso do todo, globalizada, ou seja, os atores-

    pesquisadores buscavam a organicidade das aes imitadas sem uma separao clara do gesto, voz e

  • energia. Esse processo somente foi possvel pois a pesquisa de campo, em relao observao, foi

    realizada na prpria regio, sendo vivel retornar fonte sempre que necessrio, para sanar dvidas

    decorrentes do trabalho prtico em sala e esclarecer detalhes tcnicos na observao.

    Quando a pesquisa de campo realizada em regies distantes, como foi o caso recente da

    pesquisa realizada na regio amaznica, o retorno freqente fonte fica invivel. Portanto, nesse novo

    processo, o ponto de partida no pode ser o todo, mas deve, necessariamente, ser dividida em partes

    precisas, pois os atores contam apenas com os registros de anotaes, fitas gravadas, fotos e a memria

    de alguns poucos encontros.

    Pode-se perguntar por que, ento, no gravar esses encontros em vdeo? Porque, embora

    tenhamos tentado a gravao em vdeo no incio, percebemos logo que as pessoas se portam de maneira

    diferente diante de cmera, determinando, assim, uma relao diferente entre o ator-observador e

    pessoa-observada - menos humana e mais formalizada. Percebeu-se, tambm, que mesmo a relao da

    pessoa com o prprio gestual e ao vocal se modificam diante da cmera de vdeo. Assim, essa relao

    formalizada e estilizadora provocada pela cmera, pode, de certa forma, criar uma imitao tambm

    estilizada, pois provm de uma relao no natural e filtrada entre observador e observado. Convm

    dizer que um fator fundamental para a escolha de uma imitao a identificao que surge entre o

    ator e o observado, podendo essa identificao se dar de diversas formas, quase sempre no

    explicveis, pois s vezes uma forte repulsa pode despertar o desejo de uma imitao. Tambm

    mais interessante para um ator buscar imitaes que tragam fisicidades e aes mais marcantes e

    complexas, pois normalmente so as mais teatrais. As sutilezas tambm so muito intrigantes, mas

    funcionam mais como exerccio de treinamento, do que como resultado teatral.10

    Assim, sem a ferramenta do vdeo, torna-se necessrio para o ator trabalhar a mmesis de cada

    parte (texto, ao vocal, ao fsica, fotos) para construir a personagem, como um processo de colagem

    de partes. A seguir descreveremos exemplos de como so coletados esses materiais que serviro de

    base futura para o trabalho prtico em sala. Esses exemplos foram embasados nos escritos da atriz-

    pesquisadora Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson:11

    Anotaes

    Abaixo exemplificamos a maneira como as anotaes so realizadas, no momento da observao.

    Normalmente, quando temos um curto perodo de tempo para a observao, faz-se necessrio que ela

    seja a mais sucinta possvel, sem perder a preciso nos detalhes, fundamentais no momento de imitao

    10 Raquel Scotti Hirson - Relatrio Cientfico, 1998. Mimeo.

  • posterior. Alguns cdigos e pontos chaves so estabelecidos para maior compreenso, desenvolvidos

    por cada ator-pesquisador ao longo do seu trabalho:

    DUCA, morador da cidade de Barcelos - AM, vive nas ruas ou em casas abandonadas, recebe

    ajuda dos moradores da cidade, os quais lhe dedicam bastante carinho por ser ele bastante dcil e

    prestativo. Idade indefinida, corpo bastante maltratado, mas com ar infantil, sempre sorridente.

    Possui uma deficincia fsica que o faz caminhar apoiado num pedao de pau, que faz s vezes de

    muleta. mudo, se comunica atravs de alguns sons e gestos.

    Faz sim com a cabea, tremelicando o corpo, esticando e apertando os lbios e olhos, s

    vezes abre a boca. Puxando e soltando ar pelo nariz, sonoro. Pequeno, vrias vezes;

    gestos meio descoordenados;

    aponta os lugares. Quando aponta, empina o corpo. Lordose;

    aponta tambm com a cabea e queixo, grande;

    aponta as pessoas que passam na rua, mo solta, como se apontasse com o punho;

    respira fundo pelo nariz, sobe peito e solta;

    trovo, gesto de dormindo, sacudiu o corpo, balanou os braos, imitando tremor;

    sons ;

    faz pose para a foto, ri;

    s vezes solta a coluna, levanta a cabea, deixa a nuca grudada nas costas;

    mo no queixo, sempre;

    olha quem passa, parado;

    ouve caminho, olha, acompanha com a cabea;

    estica pescoo para o lado para tomar sol no rosto;

    coa cabea com a mo esquerda na nuca, mo meio boba;

    pernas juntas, mocinha, meio de lado;

    olha para o lado, ri sem porqu;

    11 Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson Relatrios Cientficos, 1998. Mimeo.

  • longo tempo parado, olhando;

    s vezes, olha s com a cabea, outras com o corpo todo;

    tosse rouca, trovo, balana o corpo;

    As anotaes prosseguem, mas se tornaria bastante extenso relat-las na ntegra.

    Essas anotaes so executadas de acordo com a ordem cronolgica em que foram realizadas as

    aes, ajudando, assim, a recompor os fatos, o que no significa necessariamente, que no momento da

    utilizao desse material, essa lgica deva ser respeitada.

    Quando possvel, a anotao deve ser realizada simultaneamente observao, do contrrio,

    necessrio que ela seja feita o mais prximo possvel desse momento para que informaes importantes

    no se percam nesse espao de tempo.

    Os atores tiveram com Duca um pequeno contato, podendo observ-lo durante algumas horas.

    Nesse caso, tiveram que equilibrar o tempo da anotao com a simples observao, para que no se corra

    o risco de perderem algumas aes e o contato se tornar por demais frio e distante, causando

    constrangimento para a pessoa observada. Duca tambm foi observado distncia, para que fosse

    testada a variao de sua gestualidade em outras situaes, sem o contato direto e com outros estmulos

    do local onde se encontrava, ou mesmo para observ-lo simplesmente num estado de contemplao.

    Muitas so as maneiras de estabelecer contato, dependendo da pessoa observada e do tipo de

    material desejado. Se pretendemos coletar aes de como essa pessoa se relaciona em seu meio natural

    ou mesmo ouvi-la contando histrias, faz-se necessrio o contato direto e se possvel permanente, em

    dias alternados, para que assim se possa observ-la em diferentes situaes, enriquecendo a gama de aes

    observadas. Nesse caso, possvel interferir na situao, conduzindo a conversa para determinados

    temas que possam alterar o estado de nimo do observado, como, por exemplo, remet-lo a lembranas

    de infncia, ou situaes que lhe provoquem riso, raiva, constrangimento. Outra forma a observao

    distante, sem contato direto, como nas ruas, bares, pontos de nibus ou outros locais, onde a pessoa

    no se sente observada, livre para aes que no utilizaria normalmente em um contato direto.

    A observao detalhada e em alguns casos o contato, so fundamentais para o trabalho cujo

    objetivo seja chegar mmesis mais precisa da pessoa. Por isso uma frase simples e banal como

    respira fundo levantando os ombros... para o ator, est totalmente ligada pessoa imitada e no a

    uma pessoa qualquer, pois ele tem a memria de todos aqueles fatores que esto contidos nessa ao.

  • Por outro lado, a mmesis tem como caracterstica a diversidade de possibilidades. Usando,

    como pequeno exemplo, o material de anotaes que temos acima, elas somente tm utilidade para os

    atores que estiveram em contato com a pessoa observada, podendo, inclusive, funcionar como a nica

    forma documentada da observao. No entanto, no caso das fotografias e das fitas cassete gravadas,

    temos documentos que podem ser utilizados por outro ator, pois existe uma metodologia para

    trabalhar imitao somente a partir de fotos e tambm h a possibilidade das fitas serem o material para

    uma imitao puramente vocal. A inteno da pesquisa em questo era chegar primeiramente a um

    material bruto, codific-lo e depois permitir que ele se transformasse.

    Registro Fotogrfico

    Material imprescindvel, principalmente nos casos em que a observao foi realizada em um nico

    contato. Fundamental na elaborao do material, pois registra precisamente posturas fsicas e situaes

    observadas.

    Podem ser realizadas com o consentimento da pessoa, que normalmente sente muito prazer em

    estar sendo fotografada. muito comum toda a famlia se preparar para esse momento, penteando os

    cabelos, trocando as roupas das crianas, fazendo poses. Quando possvel, costuma-se enviar cpias das

    fotos para aqueles que nos pedem; so guardadas como preciosidades. O nico empecilho, nesses

    casos, assim como acontece nos vdeos, que as fotos so posadas, e, portanto, estilizadas, no

    registrando o momento em seu estado puro e natural. Por esse motivo, tenta-se, sempre que possvel,

    aps estabelecido o contato, fotografar ao acaso, sem que a pessoa tenha tempo de se preparar

    previamente. O mesmo acontece quando fotografa-se distncia, sem contato estabelecido.

    Como j mencionado acima, ao contrrio das imitaes, o material fotogrfico pode ser utilizado

    por outros pesquisadores, mesmo os que no estavam presentes no momento registrado. Precisamente

    as posturas fsicas, mscaras faciais, entre outros, tornam-se passveis de serem reproduzidos por outro

    ator que queira se utilizar desse material, cabendo a ele imprimir o recheio, ou seja, o que d vida a

    essa foto. A liberdade de manipulao muito extensa, cabendo ao pesquisador explor-lo em toda sua

    extenso, preenchendo com os elementos que compem sua pesquisa pessoal.

    Registro Sonoro

    Normalmente o registro sonoro realizado com um pequeno gravador, que deve ser utilizado

    de maneira discreta, para no ser motivo de constrangimento para o observado.

  • Na maioria das vezes, a gravao realizada com o consentimento da pessoa, que aps alguns

    minutos se esquece do fato e passa a agir normalmente. Em alguns casos, quando se trata de alguma

    criana ou idoso, que no entenderia do que se trata, a gravao realizada sem o seu consentimento, isto

    , sem o pedido para o seu consentimento.

    Ao longo desse perodo de pesquisa, alguns casos curiosos aconteceram. O primeiro deles

    ocorreu em Paran, estado de Tocantins, quando da primeira pesquisa de campo utilizando essa

    metodologia. Os atores visitavam Seu Pedro da Costa e j haviam gravado algumas canes, que ele

    cantava com muito orgulho, quando veio a pergunta: E d pra ouvir, assim, na hora?, os atores

    responderam que sim e que os desculpasse pelos chiados da gravao pois o gravador no era muito

    bom; ele, por sua vez, com toda sua doura e ingenuidade respondeu: , tamm o dia hoje t meio

    nublado, num t muito bo pressas coisas, n?!. A partir desse momento a cada cano ou histria

    contada, os atores deviam voltar a fita para que ele pudesse ouvir, com os olhos brilhando, a prpria

    voz no gravador.

    Outro caso foi com o Sr. Renato Torto. Ao se dar conta do gravador passou a falar

    ininterruptamente, relatando um causo aps o outro. Alguns meses depois, quando os atores

    retornaram, Seu Renato os recebeu com a pergunta: Cad o gravador?. Os atores responderam

    que dessa vez no tinham levado. Depois que ficou sabendo disso, perdeu todo interesse, no falando

    mais nenhuma palavra e deixou os atores entregues aos cuidados de sua mulher.

    Relatamos esses dois casos, no sentido de ressaltar que em nenhum momento o material de

    registro, como fotos, gravaes e anotaes, so realizados de forma ofensiva, que possa vir a incomodar

    ou agredir a pessoa observada. Desde o momento em que o contato se estabelece, a preocupao

    primeira, alm da coleta de material, o profundo respeito e carinho que dedicamos a essa pessoa.

    Temos sempre a preocupao de tentar retribuir o muito que estamos recebendo.

    Normalmente so pessoas profundamente carentes de contato humano, principalmente quando

    se trata de pessoas idosas, j relegadas pela prpria famlia. Embora esse no seja o objetivo primeiro da

    pesquisa, inegvel o bem-estar que os pesquisadores proporcionam a essas pessoas, dando-lhes ateno

    e tornando-as protagonistas de suas histrias.

    Como no caso da fotografia, as gravaes tambm podem ser utilizadas por outros pesquisadores,

    pois contm todas as informaes necessrias para a imitao das aes vocais.

  • Objetos

    Ainda uma outra maneira de tentar reter a situao o mais globalmente possvel, ampliando as

    possibilidades, a coleta de objetos pertencentes pessoa, que muitas vezes so ofertados aos atores

    como lembrana. Quando isso no ocorre, eles tentam adquirir objetos prprios da cultura local. No

    caso da recente viagem para o Amazonas, para fins de pesquisa de mmesis, os pesquisadores

    coletaram, cada um em sua regio de pesquisa, cestos e redes de materiais diversos, roupas e adereos

    utilizados em festas locais, instrumentos musicais, bancos de diversos tamanhos, artesanato indgena,

    entre outros.

    As anotaes pessoais, juntamente com o material fotogrfico e sonoro e, claro, a memria do

    momento, vm a formar o conjunto fundamental para o momento posterior de retomada e elaborao do

    material coletado.

    Nas primeiras reflexes sobre o processo metodolgico da mmesis, em sua tese de

    doutoramento, Lus Otvio Burnier definiu algumas etapas de trabalho tomando como base os

    experimentos decorrentes das observaes realizadas em pequenas distncias, quando o retorno fonte

    era sempre possvel. Assim, a diviso das etapas de trabalho foi realizada tomando por base apenas

    um objeto observado, no caso a prpria pessoa, que era, podemos definir, apenas um elemento de

    estudo. Assim temos OBSERVAO da pessoa, a posterior IMITAO e MEMORIZAO das aes fsicas

    e/ou vocais e sua CODIFICAO atravs de repetio. Finalmente a etapa de TEATRALIZAO dessas aes

    e sua aplicao na cena.

    Com a pesquisa sendo realizada em regies distantes e a volta fonte impraticvel, no temos

    apenas um elemento de estudo (a pessoa), mas pelo menos trs elementos concretos: as anotaes (das

    aes fsicas), o registro fotogrfico (alguns gestos, posturas e aes) e o registro sonoro (aes vocais),

    todos trs apresentados acima. Temos, alm desses, ainda um quarto elemento, esse um pouco mais

    complexo, que poderamos chamar de memria energtica ou ainda interiorizao muscular

    orgnica. Esse elemento ser discutido posteriormente.

    Assim sendo, temos que aplicar as divises propostas por Lus Otvio Burnier a cada um dos

    objetos de estudo (anotaes, fotos e gravaes), gerando uma nova aplicao metodolgica de apropriao

    corporal e prtica do material recolhido. Uma primeira diviso prtica do trabalho ps pesquisa de campo

    pode ser:

    1. Mmesis das aes vocais

  • Ouvir as fitas seguidas vezes.

    Consultar as anotaes.

    Imitar.

    Memorizar.

    Codificar.

    2. Mmesis das aes fsicas

    Consultar as anotaes.

    Imitar

    Memorizar.

    Codificar

    3. Mmesis das fotos

    Selecionar.

    Observar.

    Imitar.

    Criao de aes a partir das fotos.

    Memorizar.

    Codificar.

    4. Colagem das partes

    Agrupar texto, ao vocal, ao fsica e aes a partir das fotos em uma s pessoa/personagem

    imitado.

    Memorizar.

    Codificar.

    Como a TEATRALIZAO subentende uma aplicao da mmesis na cena, no existe diferena

    nesse ponto. O que difere, como visto, o processo para se chegar pessoa imitada, determinado pela

    maneira de realizao da pesquisa de campo. A teatralizao o universo de aplicao artstica da mmesis.

    A imitao pode ser usada como um personagem completo, ou ainda ser desconstruda em aes fsicas

    e/ou vocais separadas para uma possvel reconstruo de um terceiro elemento. A mmesis, na verdade,

  • instrumentaliza o ator, proporcionando-lhe uma gama de aes fsicas e vocais orgnicas para o exerccio

    de criao na cena. A reflexo sobre o aprofundamento da mmesis leva, tambm, elaborao de uma

    metodologia cada vez mais rica para a transmisso da arte de ator, portanto com fins pedaggicos.

    Convm dizer, tambm, que essas divises e subdivises do processo, descritas acima, no so

    suficientes para uma mmesis orgnica. Ela ajuda, sim, no processo organizacional da realizao

    mecnica da pesquisa, mas at agora no falamos sobre a essncia da mmesis, que na realidade a

    essncia de todo o trabalho de ator quando parte de uma ao externa a ele: a transformao de uma ao

    fsica e ou vocal imitada, e portanto mecnica em primeira instncia, em uma ao fsica orgnica e viva.

    Primeiramente, para que possamos detectar os caminhos que levam a esse processo de

    transformao mecnico/orgnico, podemos comear percebendo uma interfase entre os processos de

    observao e posterior memorizao e codificao. Essa interfase sempre esteve presente, mas no

    conscientemente. O fato de, nas ltimas pesquisas de campo, a fonte posterior de trabalho prtico em

    sala residir nos materiais de registro e na memria do observador, fez com que este ponto se

    esclarecesse. Trata-se do momento em que o ator, aos poucos, consegue se soltar do material de

    registro e comea a preencher a pessoa/personagem imitado com vida e liberdade, pois tem toda a

    parte mecnica interiorizada. O ator pode comear a imprimir sua organicidade s aes fsicas e vocais. O

    tempo e a dedicao contnua de muitas horas de trabalho cotidiano so elementos responsveis pela

    realizao plena desta fase da pesquisa.

    Podemos denominar esta interfase de interiorizao.

    A interiorizao dever sempre estar presente e ser de fundamental importncia para que a mmesis

    se realize com profundidade e verdade, sendo assim, uma manifestao artstica do corpo e no uma

    mera estereotipizao do cotidiano observado.

    Outro elemento, aparentemente abstrato, dentro dessa fase de interiorizao, a percepo, ainda

    durante o processo de observao em campo, de elementos que poderamos denominar de memria

    energtica.

    Durante a recente pesquisa de campo na regio amaznica, os atores voltaram, alm do material

    concreto de estudo citado acima, com elementos de vivncia. Um fator muito citado foi a percepo de

    uma forte sensualidade do povo do Par e Amazonas, ou ainda a dor do abandono encontrada nas

    pessoas idosas, ou mesmo o desespero e autodestruio coletiva de uma cultura que percebe seu fim,

    como a cultura indgena. Convm dizer que essas no so afirmaes antropolgicas cientficas que buscam

    definir culturas e tendncias desse ou daquele povo ou lugar, mas simplesmente as percepes de

  • atores-pesquisadores que, de certa forma, sentiram esses elementos nos encontros com as pessoas.

    Ora, essas percepes no podem ser fotografadas ou anotadas em caderno. Podemos afirmar que existe

    uma postura corporal definida para a sensualidade, dor ou desespero, mas ela sutilssima, feita de um

    nuanamento de profundidade de voz, de ritmos e tempos ligeiramente diferentes e de uma qualidade

    diferente, sutil, de gestos e expresses. No d para pressupor uma forma nica de manifestao destes

    aspectos, ou usar apenas recursos exteriores de caracterizao, vestimentas ou congneres. Pensar assim

    seria cair em esteretipos pr estabelecidos, matando qualquer possibilidade de aes fsicas orgnicas,

    verdadeiras e coerentes. Por outro lado, ignorar esses elementos e percepes seria desperdiar o ponto

    de vida e organicidade que tem cada foto, gesto ou minuto de gravao, porque implicaria ignorar o

    contexto no qual vive o indivduo ou grupo humano observado.

    Os atores sabem que essas energias existem, sabem que essas energias emanam dos corpos

    das pessoas, e cabe a ele perceb-las e transform-las em corpo.

    nesse ponto que colocamos o problema: sem fatores concretos, como fotos e gravaes, como o

    ator pode imitar a energia percebida? Na verdade, uma imitao propriamente dita impossvel, ao

    menos sem cair em esteretipos. Ento, a nica sada possvel o ator, novamente, encontrar dentro de si

    mesmo essas energias e essas ligaes orgnicas, criando, assim um equivalente mimtico.

    Em recentes reunies de reflexo entre os atores-pesquisadores do LUME e seu Conselho

    Cientfico e Artstico, a atriz Ana Cristina Colla disse que a sua imitao de Dna. Maria, utilizada no

    espetculo Contadores de Estrias e que vem sendo feita pela atriz desde 1993, torna-se mais viva e

    orgnica medida que ela se distancia da matriz original de Dna. Maria. Essa afirmao pode parecer

    paradoxal, se pensarmos que o objetivo da mmesis imitar precisamente as aes fsicas e vocais das

    pessoas. Mas do ponto de vista orgnico, ela muito natural, pois a atriz, com a ajuda dos fatores

    tempo e trabalho, abandona-se cada vez mais s aes fsicas e vocais dessa pessoa idosa imitada,

    encontrando as ligaes orgnicas pessoais e prprias da sua pessoa em relao matriz original,

    encontrando, dessa forma, um equivalente pessoal para essa mesma matriz. Essa distncia de que

    fala a atriz, pode ser entendida, portanto, como um mergulho pessoal dentro da prpria matriz. Ela se

    distancia de Dna. Maria e se aproxima de suas prprias energias, buscando sua equivalncia. E a prpria

    atriz completa:

    como se eu mergulhasse na essncia da matriz, que no caso Dna.

    Maria. A voz, antes, quando imitada precisamente, no dava a noo de velha.

    medida que fui me abandonando sensao dessa voz, ela mudou ligeiramente,

  • mas ao mesmo tempo, encontrei a essncia orgnica da matriz. Agora, ela

    muito mais precisa que antes, pois parece que estou imitando sua vida, e no

    simplesmente suas aes. como se, com o tempo, eu tivesse encontrado em meu

    corpo a fragilidade dos oitenta anos No mais necessito provocar o tremelicar

    externo, observado em Dna. Maria. Basta mergulhar no universo dessa

    fragilidade descoberta, que o tremelicar do corpo e da voz e essa debilidade dos

    movimentos aparece naturalmente em minha musculatura. (Ana Cristina Colla,

    entrevista, 1998)

    Nesse ponto a Mmesis Corprea esbarra nos outros trabalhos e na prpria filosofia de trabalho do

    LUME. Como j visto, o objetivo do ator realizar um mergulho dentro de si mesmo, na busca de suas

    energias escondidas e guardadas. Isso possvel atravs do treinamento cotidiano sistemtico e intenso

    dos elementos pr-expressivos e de ponte discutidos at o momento.

    Entendemos, ento, que o ator deve ter um aprimoramento e um aprofundamento na

    sensibilidade do prprio corpo para poder ser um receptor de energias e vibraes das pessoas que est

    imitando e observando no trabalho de campo.

    Na mmesis corprea, o ator, em hiptese alguma, deve se restringir apenas imitao dos gestos,

    apesar desse mesmo trabalho de observao e imitao dos gestos ser importante, necessrio e

    fundamental para o trabalho de mmesis e, consequentemente, para o aperfeioamento tcnico, visto

    que obriga o ator a treinar preciso, colocao do corpo no espao cnico, explorao de ritmos da

    mecnica do corpo e no aprendizado de dominar e conduzir o corpo no tempo/espao.

    Porm o ser humano no somente corpo fsico, mas um corpo fsico vivo que contm sensaes,

    afetividades, impulsos, sentimentos, pensamentos, energias e vibraes. O ator-pesquisador tem que

    ter um corpo fsico desenvolvido e preparado e alm disso, e mais importante, ser conhecedor do seu

    universo humano e energtico.

    Os trabalhos do LUME, citados, permitem ao ator aguar, aflorar e desenvolver suas energias,

    para que ele possa criar um corpo dilatado e presente, colocando disposio da cena, da personagem e

    do pblico todos seus sentidos: a isso chamamos de presena total do ator.

    Esse mesmo treinamento pode permitir ao ator, no momento da observao, uma percepo das

    emanaes dessas energias, podendo at mesmo detectar onde e em que musculatura do seu corpo essas

    emanaes produzem algum efeito, para posteriormente poder reproduzi-las e pesquis-las em sala.

    Essa reproduo no pode ser chamada simplesmente de cpia muscular da percepo da energia, j que o

  • ator busca reproduzir no corpo a sua prpria energia, apenas baseado na percepo energtica da pessoa

    imitada. Aqui, portanto, ele cria um equivalente orgnico da energia percebida, e portanto, tambm

    orgnica. Podemos chamar esse processo de memria energtica.

    Isso, de certa forma, explica tambm, porque um ator escolhe uma pessoa e no outra, durante a

    pesquisa de campo. Pois algumas pessoas, mais que as outras, de certa forma, suscitam no ator essa

    empatia energtica, que ser fundamental no momento do trabalho em sala. Isso se aplica tambm a

    fotos e quadros, porm, de maneira indireta. As fotos e quadros iro suscitar imagens com as quais o

    ator se identifica ou no, provocando nele alguma reao orgnica. Atravs da mmesis da foto ou quadro,

    o ator deve "corporificar" essa reao, criando, tambm, um equivalente.

    A mmesis, portanto, permite ao ator um intenso treinamento na manipulao dessas energias

    sutis.

    Pode parecer, em primeira instncia, um trabalho muito abstrato, mas devemos nos lembrar que

    todo o processo se inicia atravs de questes muito objetivas e concretas: a mmesis precisa das aes

    fsicas e vocais, sua memorizao e codificao. A partir desse universo concreto, parte-se para a

    pesquisa das ligaes orgnicas e pessoais entre as aes e o ator, tambm embasada em elementos

    concretos anteriormente trabalhados, atravs dos elementos pr-expressivos. Recorro novamente aos

    prprios atores para substancializar, ainda mais, essas palavras:

    O fantstico da mmesis que ela me aproximou muito do teatro ao qual

    estamos habituados, teatro de personagem vamos assim chamar, sem contudo

    fugir de todos os conceitos que eu havia assimilado anteriormente. A mmesis me

    fez enxergar que em qualquer lugar existe o pretexto para fazer teatro. Se

    estivermos atentos para as coisas e os seres que nos cercam, teremos sempre ao

    nosso alcance o motivo, o ponto de partida. A mmesis uma brincadeira sria.

    Brincar de ser o outro, de agir como o outro: brincar de ser vrios num s.

    Brincar tambm de ser fada, de dar vida s coisas estticas, de dar trs

    dimenses quelas que no as tem. Um quebra-cabeas para l de complexo, que

    depois de montado uma vez no se desfaz jamais e, pelo contrrio, ganha vida

    prpria e o direito de se transformar. A mmesis modificou totalmente o meu

    olhar e fez surgir uma ligao direta entre olhar, corao, msculo, nervo. Me

    sinto uma escultora esculpindo em meu prprio corpo. Acho a Mmesis muito

    importante tambm porque um trabalho que me conecta com um mundo real,

  • que me pe diante de questes muito concretas da minha pessoa em relao ao

    meio. (Raquel Scotti Hirson, entrevista, 1997).

  • O CD-ROM

    H muitos anos, os estudiosos e artistas ligados s artes cnicas escrevem e

    refletem sobre a representao teatral: suas funes sociais, as encenaes e as

    prticas de formao tcnica do ator. Dizer, simplesmente, que a escrita terica e

    reflexiva da arte teatral no se justifica seria, no mnimo, negar toda a histria do

    prprio teatro. Mas, podemos afirmar que o teatro, em si, seja ele interpretativo ou

    representativo, uma arte eminentemente prtica, tanto no produto expressivo e esttico

    o espetculo - quanto aos processos pr-expressivos, metodolgicos e de pesquisa que

    esto na base desse produto. E se pensamos assim, ambos os processos - expressivo e

    pr-expressivo - geram, no somente reflexes embasadas na escrita, mas tambm, e

    principalmente, uma farta documentao audiovisual, que poderia servir como elemento

    substancializador da prpria reflexo, possivelmente, at sanando alguns equvocos que

    poderiam decorrer da escrita. Esse link entre a linguagem escrita e a linguagem

    corprea, poderia, at mesmo, funcionar como um suporte persistente das tcnicas

    corpreas e vocais apresentadas para futuras pesquisas na rea.

    Hoje, temos tecnologia suficiente, se no para implantar essa prxis de maneira

    efetiva, ao menos para iniciar e viabilizar esse ligao quase simultnea entre a

    reflexo e o audiovisual e, a partir da, verificar suas potencialidades e falhas. Hoje

    podemos ver e ouvir ao mesmo tempo que lemos, desde que utilizemos, para esse

    fim, o computador e as ferramentas multimdia.

    A reflexo teatral realizada atravs desse link entre reflexo escrita/audiovisuais,

    trabalhada com ferramentas de multimdia, em hiptese, pode expandir, enriquecer e

    aprofundar a compreenso do que est sendo colocado pelos pesquisadores dessa rea,

    pois permite a facilidade de criao e manipulao de hipertextos, o trabalho grfico e

    a manipulao de imagens estticas e em movimento, alm da criao de desenhos e

    animaes, elementos esses que substancializam, em muito, a questo didtica.

    Pelos motivos expostos, nesse trabalho, alm da reflexo terico-prtica a que ela

    se propem, resolveu-se criar um CD-ROM que pudesse embasar audiovisualmente os

    conceitos e exerccios pesquisados pelo LUME Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas

    Teatrais UNICAMP, verificando, para isso, a veracidade ou no da hiptese

    levantada.

  • A mmesis corprea somente uma parte integrante do CD-ROM, que tambm discute e mostra

    grande parte do todo o processo pre-expressivo e expressivo do ator no interpretativo, dentro da

    metodologia proposta pelo LUME.

  • Bibliografia Citada

    ARTAUD, Antonin.

    1978 Ouvres Completes: le thtre et son double, le thtre de Sraphin. Paris: Gallimard.

    (Ouvres Compltes IV)

    1987 O Teatro e seu Duplo. Trad. de Teixeira Coelho. S.Paulo : Max Linonad.

    BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola.

    1995. A Arte Secreta do Ator. Trad. Lus Otvio Burnier. Campinas: Editora da

    Unicamp

    BURNIER, Luis Otvio

    1994 A Arte de Ator: Da Tcnica Representao - Elaborao, Codificao e Sistematizao de

    Tcnicas Corpreas e Vocais de Representao para o Ator - Tese de Doutorado -

    PUC-So Paulo - Depto de Semitica da Cultura

    ESSLIN, Martin

    1976 Artaud, So Paulo. Cultrix

    GROTOWSKI, Jerzy

    1971 A Voz. Palestra (feita em maio de 1969 para estagirios estrangeiros do Teater

    Laboratrium de Worclaw). Le Thtre, 1971 -1, cahiers dirigs par Arrabal.

    Christian Bourgois Editeurs, Paris, 1971, pp 87-131. (traduo de Luiz Roberto

    Galizia).

    1988 il Performer, in Centro di Lavoro di Jerzy Grotowski, Centro per la

    Sperimentazione e la Ricerca Teatrali, Pontedera

    1988 Conferencia a Santo Arcangelo de 18 de julio de 1988. (Transcrio de uma

    gravao,em francs, traduzida por Dinah Kleve). No publicada.

    1987 Em Busca de Um teatro Pobre, Trad; Aldomar Conrado, Civilizao Brasileira

    JANUZELLI, Antonio. (Jan)

    1986 A aprendizagem do ator. So Paulo: Atica.

    KUMIEGA, Jennifer

    1985 The Theatre of Grotowski. London - Mathew London Ltda.

  • 1989 Jerzy Grotowski: La Riccerca nel teatro e oltre il teatro - 1959 a 1984. Firenze:

    La casa USHER.

    MSCARA

    1992 Historiografia Teatral Scenologia A . C Mxico n. 9 e 10

    MEYERHOLD, Vsvolod.

    1972 Comunicacin: textos tericos. trad. jos Fernandes. Madrid: Alberto Corazn. V.2.

    1982 Teoria teatral. Trad. Augustin Barreno. Madrid: Fundamentos, 4 ed.

    STANISLAVSKI, Konstantin.

    1972 A criao de um papel. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilizao

    Brasileira.

    1981 Mi vida en el arte. Argentina: Quetzal

    1982 A preparao do ator. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilizao

    Brasileira.

    1983 A construo da personagem. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira.

    TOPORKOV, Vasily Osipovich

    S.d. Stanislavski in rehearsal: the final years. Trad. para o ingls de C.Edwards. New

    York: Theatre Arts Books.

    Material de Suporte do LUME

    DIRIOS DE TRABALHO

    1993 1997Ana Cristina Colla, Ana Elvira Wuo, Jesser de Souza, Luciene Pascolat, Raquel

    Scotti Hirson e Renato Ferracini. ( No Publicado)

    ENTREVISTAS COM OS ATORES

    1997 Com Ana Cristina Colla, Ana Elvira Wuo, Jesser de Souza, Luciene Pascolat e

    Raquel Scotti Hirson. (No Publicada)

    FILMOGRAFIA

  • 1990 a 1997Vdeos de Espetculos, Workshops, Demonstraes Tcnicas de trabalho dos atores

    do LUME.

    HOMEROTECA

    1985 a 1997Entrevistas dos atores e Matrias Jornalsticas sobre Espetculos, Workshops,

    Demonstraes Tcnicas de trabalho dos atores do LUME.

    PROGRAMAS e FOLDERS DOS ESPETCULOS

    1989 Kelbilim, o Co da Divindade

    1991 Sleep and Reincarnation from the Empty Land

    1992 Clown Valef Ormos

    1995 Folder Geral de Apresentao

    RELATRIOS CIENTFICOS

    1995 Projeto o Butoh com Natsu Nakajima em confronto com as Tcnicas do LUME

    Coletnia de Reflexes conjuntas dos Atores. (No Publicado)

    1996 Projeto o Butoh com Natsu Nakajima em confronto com as Tcnicas do LUME

    Coletnia de Reflexes conjuntas dos Atores (No Publicado)

    1997 Mmesis Corprea a Poesia do Cotidiano, de Raquel Scotti Hirson (No

    Publicado)

    1997 Mmesis Corprea A Poesia do Cotidiano, de Luciene Pascolat (No Publicado)

    1998 Mmesis Corprea A Poesia do Cotidiano, Reflexo Conjunta.(No Publicado)

    1998 Mmesis Corprea A Poesia do Cotidiano, de Ana Cristina Colla (No Publicado)

    RELATRIOS DE WORKSHOPS

    1995 a 1997Dinmica com Objetos, Voz e ao Vocal, Treinamento Tcnico e Mmesis Corprea