Upload
viviane-codeco
View
231
Download
4
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Primeiro capítulo do livro Música e Tecnologia, de Leo Morel
Citation preview
1
Música e tecnologia
2
3
Música e tecnologia
Um novo tempo, apesar dos perigos
Leo Morel
Azougue Editorial
2010
4
Projeto gráfico Sergio Cohn
Capa Carolina Noury
Foto do autor Ju Colussi
Revisão Amélia Cohn e Ingrid Vieira
Equipe Azougue
Carolina Noury, Eduardo Coelho, Giselle Andrade, Ingrid Vieira,
Karina Lopes, Luana Maria, Marta Lozano e Valterlei Borges
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M84m
Morel, Leonardo, 1976- Música e tecnologia : um novo tempo, ape-
sar dos perigos / Leonardo Morel. - Rio de Janeiro : Beco do Azou-
gue, 2010.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7920-034-2
1. Indústria musical - Brasil. 2. Som - Equipamentos e acessórios
- Inovações tecnológicos. 3. Mídia digital. I. Título.
10-2007. CDD: 780.6880981 CDU: 78(81)
04.05.10 17.05.10 019045
[ 2010 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Jardim Botânico, 674/605
Jardim Botânico - Rio de Janeiro - RJ
CEP 22461-000
Tel/fax 55_21_2259-7712
www.azougue.com.br
AZOUGUE - MAIS QUE UMA EDITORA, UM PACTO COM A CULTURA
5
Introdução
7
Um novo tempo, apesar dos perigos
9
A destruição criadora
21
Yes, nós temos inovação
33
E o futuro não é mais como era antigamente
39
Quem sabe faz a hora
45
Atenção, gravando!
69
Crise de quem, e para quem?
81
Gargalos e desafios
89
Daqui pra frente tudo vai ser diferente?
99
Bibliografia
105
Entrevistas realizadas
109
Agradecimentos e dedicatória
111
6
7
Não foi a indústria da música que mudou, ali por volta do ano
2000. Estreitar assim o olhar nos conduziria à tentação de resolver
novos problemas usando velhas fórmulas. O que mudou ali, e con-
tinua mudando a cada dia, foi a lógica que rege nossa interação
social.
A indústria da música, que não é a indústria fonográfica, vai
muito além de produtos como o fonograma e seus suportes: ela
trata de expressão humana. Música e as artes em geral sempre
serão calcadas nas relações interpessoais – e isso não há crise que
abale.
Nós, cidadãos de início de século, estamos reformulando ago-
ra, em tempo real, a lógica de produção e consumo que, durante
tantos outros séculos, sempre foi a única existente. Ruptura certa-
mente traumática. Mas será que todos nós percebemos o movi-
mento do mundo da mesma forma?
Além de todo um turbilhão de incertezas demandando jogo de
cintura e criatividade, ainda há que se considerar que não estamos
todos on the same page na percepção da importância deste momen-
to. Há que se descobrir uma nova lógica de produção e consumo,
montar um cenário em perspectiva e traçar estratégias
desengessadas, notando que a mudança está em curso e é defini-
tiva – até que a próxima venha, sabe-se lá quando.
O trabalho de Leo Morel se desenvolve a partir de um ponto de
vista singular, pois deseja perceber o momento como um todo,
entender para onde as coisas estão caminhando. É praticamente
um desafio cognitivo. Porque as ferramentas tecnológicas mudam,
IntroduçãoPaula Martini
8
mas as demandas humanas não, e uma delas é a expressão artís-
tica, que é integralmente calcada em relações interpessoais.
O sistema que conhecemos está emperrado, mas nossas cres-
centes demandas não toleram modorrices. Tempo, energia e di-
nheiro continuam sendo investidos em “novos” modelos que não
projetam o olhar para além desta lógica decadente, mas há que se
pensar novos modelos dentro de uma nova lógica – e vejo essa
vontade no entusiasmo que testemunhei ao longo da preparação
desta obra.
Quem, neste livro, analisa as mudanças ocasionadas pela rela-
ção entre música e tecnologia não é qualquer agente externo: é um
profissional comprometido prioritariamente com a expressão ar-
tística. Com a expressão humana. O olhar de Leo é imerso, impreg-
nado da inquietude de se viver uma ruptura de modelo social que
poucos percebem em sua plena radicalidade.
Nesta pesquisa, destaca-se o cuidado do autor em mesclar
múltiplas impressões de profissionais da música que se relacio-
nam com a tecnologia de formas tão diversas. E a entrevista é, em
si, a forma mais humana de entendimento de momentos históri-
cos: é uma fotografia de um momento que abarca impressões sub-
jetivas e vai muito além dos fatos. Através das entrevistas, buscou-
se entender a percepção de cada um dos profissionais sobre fenô-
menos como a migração da cultura para o digital, o advento da
internet, a existência de novas plataformas de distribuição, o ba-
rateamento dos recursos tecnológicos, a ampliação da capacidade
de armazenamento e da velocidade de tráfego de dados na internet.
A comunicação mudou. As pessoas mudaram. Nada mais será
como antes. E, daqui a algum tempo, os cidadãos de meio de sécu-
lo terão a sorte de contar com esta obra para conhecer e entender
o cenário deste novo tempo, onde, apesar dos perigos, nada mais
foi como antes.
9
O meio musical está vivendo um momento histórico. Desde o
final do século XX este campo sofreu significativas mudanças, em
virtude do processo de inovação tecnológica. Tal fenômeno modi-
ficou sua configuração, ocasionando a queda da hegemonia de
agentes estabelecidos e o surgimento de novos componentes den-
tro da cadeia produtiva da música. Consequentemente, a profis-
são do músico também passou por uma série de mudanças, visto
que surgiram novos desafios e responsabilidades. Ao mesmo tem-
po em que a tecnologia facilitou a produção artística, o mercado e
os artistas ainda encontram diversas dificuldades para se adaptar
a esse novo cenário.
Diante desse conturbado quadro, é prioritária a necessidade
de retratar a visão dos profissionais atuantes nesse meio, por es-
tarmos vivendo um momento de transição de modelos de negócio
desse nicho, marcado pela diminuição de poder do setor fonográfico
e ascensão de empresas do setor de computação. Assim, busquei
aqui entender essas mudanças no mundo da música a partir do
olhar de um dos principais agentes desse campo: o cantor/compo-
sitor/instrumentista, que se situa no mercado de produção cultu-
ral em larga escala, para usar a expressão de Pierre Bourdieu.
Esse sociólogo francês, falecido em 2002, divide o mercado de
bens culturais em duas vertentes. A primeira é o que ele chama de
“restrita”, caracterizada pela produção que visa ser disseminada
entre os produtores de um determinado nicho sem objetivos mais
amplos de mercado, isto é, o campo da cultura erudita. A segunda
refere-se ao campo de produção cultural de larga escala, que é
Um novo tempo, apesar dos perigos
10
aquele em que o material musical é produzido para fins
mercadológicos e está sujeito às influências das forças econômi-
cas do mercado.1
É justamente nessa segunda vertente que minha pesquisa se
concentra. Pretendo descrever a visão de agentes que atuam no
campo de produção de larga escala do meio musical brasileiro,
buscando compreender seus pontos de vista diante da atual con-
juntura do mercado e descrever suas estratégias de atuação para
lidar com as modificações ocorridas em consequência do impacto
do processo de inovação tecnológica.
Este é um momento histórico de ruptura: o processo de inova-
ção tecnológica gerou profundas alterações na forma de se produ-
zir, divulgar e consumir música. Observa-se que a relação entre os
agentes atuantes nesse campo também se modificou com a
implementação de novos produtos e processos. Tal fenômeno acar-
retou o surgimento de novos atores, alterando profundamente a
relação de poder entre eles, e levando ao enfraquecimento dos que
detiveram o controle do processo produtivo firmado no século
passado e à consolidação de empresas do setor de computação que
se inseriram nesse campo. O conceito da “destruição criadora” cu-
nhado pelo economista Schumpeter cai aqui como uma luva: a
implementação de inovações possibilitou a descentralização dos
meios de produção cultural e alterações na forma como a socieda-
de lida com esse campo.
Em entrevista concedida ao livro Cultura digital.br, Ronaldo
Lemos, especialista em direitos autorais, comenta que:
1 O professor Leonardo Vasconcelos Cavalier Darbilly em sua dissertação demestrado “O mercado fonográfico no Brasil: alterações nas relações de poder apartir do desenvolvimento tecnológico e da pirataria virtual”, apresentada àEscola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, observa à pagina 33que: “(...) quanto mais autônomo for um campo (nesse caso, quanto mais ele seaproximar do campo da produção restrita), menor influência ele sofrerá de taisforças econômicas e maior o poder simbólico que os produtores poderão ter. Poroutro lado, quanto menor for a autonomia do campo (ou seja, quanto mais ele seaproximar do campo da produção de grande escala), maior será a influência dasforças econômicas e do mercado.”
11
A mídia se transformou e com isto surgiu um mon-
te de oportunidade, de relações sociais que eram
impossíveis antes desse tipo de mídia descentrali-
zada de duas vias que a gente tem hoje. É a história
do trem, da estrada de ferro que chega na cidade e
aquilo muda completamente a forma em que as
pessoas vivem. O que a gente está vendo hoje é um
novo tipo de estradas virtuais, novos caminhos e
novas formas das pessoas se conectarem, que es-
tão reestruturando completamente a forma como
a cultura é feita.
Confirmando tal observação, no campo da cultura de larga
escala da música observamos o declínio do poder das empresas do
setor fonográfico, que veem seu modelo de negócio tornar-se ob-
soleto com a inserção de novos produtos e processos gerados por
agentes do setor de computação como a Apple e a Digidesign. Esse
quadro tem gerado conflitos no âmbito econômico, com a ascen-
são desses novos agentes, e no âmbito legal, com a necessidade de
adaptação da legislação vigente aos paradigmas atuais.
As onze entrevistas realizadas por mim ao longo dos anos de
2008 e 2009 para a realização deste trabalho mostraram o alto grau
de complexidade do campo da música brasileira diante do atual
processo de inovação tecnológica. Os agentes com quem tive a
oportunidade de conversar demonstraram estar buscando estra-
tégias criativas visando obter resultados positivos no exercício de
suas profissões. Suas entrevistas provaram que eles não se en-
contram passivos nesse momento; muito pelo contrário, suas
ações têm sido no sentido de ultrapassar seus obstáculos através
de uma grande capacidade de adaptação. Diante disso, vi a im-
portância de retratar o momento atual na visão dos que estão na
linha de frente desse campo: o compositor, o instrumentista, o
produtor, o técnico de som e pessoas ligadas à mídia especializa-
da.
12
Além disso, em sua entrevista, Ronaldo Lemos também assi-
nala que a relação do ouvinte com a produção musical também
sofreu grandes alterações em virtude da inovação. Inserida nos
computadores pessoais, nos telefones móveis ou em tocadores
portáteis, a música nunca esteve tão acessível como nos dias de
hoje e, nesse sentido, pode-se afirmar que o ouvinte foi benefici-
ado. Uma das consequências disso é o fato que a música está cada
vez mais presente no cotidiano das pessoas, funcionando como
trilha sonora para qualquer tipo de situação. Através da
portabilidade, conceito pelo qual as empresas do setor buscaram
desenvolver seus produtos desde a implementação do walkman,2
em 1979, o ouvinte tem a possibilidade de carregar consigo um
determinado acervo musical e, acima de tudo, tem o poder de es-
colha do que ouvir. A proliferação dos aparelhos portáteis e dos
telefones móveis que tocam música são a prova de que essa
tecnologia foi absorvida pela sociedade.
O ouvinte também se beneficiou com o desenvolvimento de
plataformas virtuais de música disponíveis na internet através da
revolução digital e do barateamento do custo de armazenamento.
Com a utilização dessas ferramentas gratuitas, é possível ter aces-
so a um vasto acervo musical produzido mundialmente - se duran-
te grande parte do século XX, tal fenômeno era impensável, nos
dias de hoje, através do simples clique de um mouse pode-se desco-
brir novas músicas e tendências. Sites e plataformas especializados
como MySpace, tornaram-se referência nesse segmento.
Mas, essa abundância de oferta de material produzido pode
causar problemas ao ouvinte no sentido de deixá-lo confuso pe-
rante a quantidade de músicas disponíveis, podendo até
desestimular o consumo. A falta de algum mecanismo de curadoria
pode tornar difícil o processo seletivo pelo ouvinte. Observa-se, no
2 Segundo a Wikipédia, Walkman é uma marca popular de uma série de tocadoresou leitores de áudio portáteis. Com sua chegada, costuma-se dizer que mudaramos hábitos musicais, uma vez que cada pessoa pode carregar e ouvir seus sonspreferidos e, principalmente, sem incomodar outras pessoas.
13
entanto, que esse mecanismo também sofreu grandes modifica-
ções com o desenvolvimento das plataformas digitais. Se durante
o século XX a crítica especializada e as empresas do setor fonográfico
tinham a função exclusiva de curadoria, nos dias de hoje o próprio
usuário pode realizar esse papel através da utilização das redes
sociais digitais.
Para ilustrar tal fenômeno, o sociólogo André Lemos comenta
em entrevista dada ao livro Cultura digital.br, já citado:
Nós fomos acostumados durante muitos séculos a
ter nos grandes meios da cultura de massa a possi-
bilidade de você ser, no máximo, um espectador. E
o máximo da inclusão naquele momento era ser um
espectador crítico. Poder ver televisão e criticar
aquilo, poder ler jornal e criticar o jornal. Hoje você
pode não só criticar como você pode fazer seu pró-
prio jornal, pode produzir a sua música, pode fazer
o seu filme com tecnologias que estão aí na mão,
com qualidade muito razoável a partir desses dis-
positivos.
Outra importante questão a ser abordada tem a ver com as
formas de divulgação da produção desse campo cultural. A revolu-
ção digital e o barateamento dos custos de produção fizeram surgir
novos mecanismos de divulgação. Além dos tradicionais veículos
de comunicação, temos hoje o surgimento de estações de rádio
vinculadas ao meio digital acessíveis de maneira global e
“programáveis” por qualquer usuário conectado à internet; e tam-
bém existem as plataformas de música digital, já mencionadas.
Dessa forma, pode-se dizer que tal fenômeno trouxe benefícios
tanto para o ouvinte, que passou a ter acesso à produção cultural
global, quanto para o artista, que enxergou nessas ferramentas
uma eficiente forma de divulgar seu trabalho e atingir seu público
sem a necessidade de agentes intermediários.
14
Além disso, vale salientar um outro benefício que essa inova-
ção trouxe para esse campo da cultura: se durante grande parte do
século passado os meios de comunicação eram escassos e restri-
tos, colocando o ouvinte como mero receptor da informação, hoje
este passou a ter mais autonomia sobre o que consome. A grande
oferta de música implica o surgimento de diversos nichos segundo
os diferentes estilos musicais, cabendo ao ouvinte direcionar suas
próprias tendências e gostos musicais.
É bom não esquecer, porém, que os meios de comunicação tra-
dicionais, como o rádio e a TV, continuam sendo de extrema impor-
tância na cadeia produtiva da música no Brasil. Mesmo com o
surgimento das novas ferramentas supracitadas, que possibilita-
ram o desenvolvimento de novas estratégias de trabalho dentro
desse campo, esses meios ainda possuem um altíssimo grau de
importância na produção cultural nacional de massa e o controle
ao acesso a esses veículos ainda se encontra nas mãos de agentes
estabelecidos no passado.
A despeito de todas as mudanças assinaladas, não se pode falar
em democratização da cultura se alguns agentes ainda têm o po-
der de manipular o ouvinte através da prática criminosa feita a
partir do jabá. Mauro Dias comenta o assunto em seu artigo “Sobre
o jabá”:
Não há questão moral a ser considerada. O negócio
é dinheiro. Um bom compositor, cantor,
instrumentista, vai ter de se submeter a determi-
nados imperativos (ditados pelos que pagam a exe-
cução) ou fica de fora. Quem não entrar no esque-
ma não aparece. Quem quer entrar no sistema pre-
cisa ter muito dinheiro – precisa pagar mais ainda,
porque as “vagas” são limitadas. Se entra um, sai
outro. (...) Só quem entra no esquema, claro, é a
grande indústria, que tem o dinheiro – e que in-
ventou o esquema, afinal. (...) Ou seja, estamos
15
falando de economia, de lobbies, de pressões, não
de música. Enquanto isso, o ouvinte vai acostuman-
do o ouvido com as barbaridades criadas nos labo-
ratórios de marketing das companhias de disco e
perde a capacidade de comparar. E os criadores...
Bem, os criadores, os artistas verdadeiros, que exis-
tem, quase ninguém sabe, vão resistindo o quanto
podem. Um dia, desistem – os novos Chicos e
Caetanos, as novas Elis Reginas e Nanas Caymmis,
os novos Jobins e Fátimas Guedes um dia desisti-
rão. Precisam comer, vestir-se, sustentar filhos. A
ganância dos executivos está promovendo um
massacre da cultura brasileira que talvez não te-
nha similar na história da humanidade. Estão ma-
tando de fome o que temos de mais rico – nossa
música. Matando de fome a inteligência e a sensi-
bilidade.3
O referido artigo de Dias fala da realidade do campo de cultura
de larga escala do Brasil e vale ressaltar que sua publicação foi ori-
ginalmente realizada no jornal Estado de S. Paulo em 1999, ou seja,
há uma década, e percebe-se que pouca coisa se alterou desde
então.
A omissão do Poder Público no que tange à prática de ações
punitivas a esse tipo de conduta criminal prejudica o desenvolvi-
mento de um dos principais bens da identidade nacional: a músi-
ca brasileira. Através da conivência das autoridades do Estado, tal
conduta (surgida no Brasil desde a década de 40, segundo relato
do jornalista Sérgio Cabral em entrevista pessoal) não parece dar
sinais de enfraquecimento. Com isso, observa-se a manipulação
do gosto musical do ouvinte e a exclusão de grande parte da pro-
dução cultural por conta dessas políticas restritivas, conforme
3 DIAS, Mauro. “ Sobre o jabá” (1999). Disponível em http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=129, acessado em 20/07/2009.
16
aponta o cantor e compositor Pedro Luís: “(...) O rádio tem uma
penetração fenomenal e a gente ainda padece de querer falar mais
no rádio, que o rádio seja mais generoso, mais diversificado, mais
democrático”.
Além disso, Danilo Cutrim, da banda Forfun, falou-me da sua
visão com relação aos veículos tradicionais da mídia como o rádio e
a TV, e dos meios digitais, mais recentes: “Eu acho que a gente está
num momento de transição: não era mais como antigamente, mas
também não é o ideal ainda. (...) Já existem os magnatas da
internet, ainda são poucos, mas já existem e tenho medo que o que
ocorre no mundo real passe para o virtual e se perca a autenticida-
de. (...) Você pode ter certeza de que em alguns canais de música na
internet já rola corrupção, onde se paga dinheiro para se divulgar
um produto musical”.
Os discursos acima alertam para a necessidade de fomentar a
boa conduta desses veículos de comunicação. Porém, como foi
exposto no artigo de Mauro Dias, trata-se de um campo da cultura
que está condicionado às leis do mercado, e por trás de tais meios
estão lobbies estabelecidos desde o século passado que trazem
bastante influência sobre o Poder Público visto que, mesmo ope-
rando sob a forma de concessão pública, muitas estações de rádio
e TV são de propriedade de políticos.
É verdade que o surgimento de novos mecanismos de produ-
ção, divulgação e consumo de música possibilitou o desenvolvi-
mento de artistas vindos da periferia4 e trouxe a oportunidade para
diversos artistas criarem seus públicos em nichos específicos da
música brasileira, sem a utilização de agentes intermediários tra-
dicionais desse campo cultural. Nomes como Nelson Nascimento,
Forró do Muído e Bonde da Stronda vêm implementando criativas
estratégias de trabalho utilizando a internet como plataforma de
visibilidade e obtendo resultados bastante significativos. Para se
4 Tema abordado na matéria “Periferia versão 2.0 – longe da mídia tradicionale com ajuda da tecnologia, artistas reúnem milhares de fãs”, de autoria de Leo-nardo Lichote e publicada no jornal O Globo de 18 de setembro de 2009.
17
ter uma ideia, um dos vídeos do grupo Bonde da Stronda ultrapas-
sou a marca de quatro milhões de visualizações no YouTube. Po-
rém, vale salientar que, ao final da primeira década do século XXI,
esses artistas ainda dependem dos tradicionais veículos de comu-
nicação para desenvolver seus trabalhos, pois, caso contrário, ve-
rão sua carreira engessada pela dificuldade de ultrapassar certas
barreiras. Apesar do advento de novas tecnologias, o rádio conti-
nua bastante ativo, mesmo sua morte já tendo sido decretada no
passado, quando do surgimento da TV, por exemplo.
Quando se atua no campo da cultura de larga escala, voltado
para o mercado, grande parte dos artistas busca desenvolver suas
carreiras com o objetivo de propagar sua música para o maior
número de pessoas possível. Com base nisso, para conseguir tal ex-
posição os veículos de massa ainda são necessários. E como teste-
munha o comentário dos integrantes da banda Forfun, a maioria
dos artistas brasileiros ainda enxerga nesses veículos a possibili-
dade de exposição de massa que pode resultar num aumento sig-
nificativo de seu público e, consequentemente, gerar mais shows.
Para descrever a atual dinâmica do meio musical sob o olhar de
músicos, compositores, produtores e outros agentes da cadeia pro-
dutiva da música, além de ter feito um grande trabalho de pesqui-
sa em livros e artigos, realizei ao longo dos anos de 2008 e 2009 uma
série de entrevistas com profissionais que se encontram “no olho
do furacão”, isto é, indivíduos atuantes no meio musical que viram
suas profissões sofrerem mudanças radicais e procuraram se adap-
tar a elas.
Para a seleção dos entrevistados, levei em conta seus
posicionamentos dentro da indústria da música visando enten-
der seus diferentes pontos de vista. Em primeiro plano, busquei
coletar a opinião de compositores que obtiveram destaque no
cenário musical brasileiro nos moldes da indústria fonográfica do
século XX, e que buscaram se adequar aos novos paradigmas que
surgiram, fruto do processo da inovação tecnológica. Tive a opor-
tunidade de entrevistar os compositores Geraldo Azevedo e Leoni.
18
O primeiro possui grande destaque na música popular brasileira
desde a década de 1970, e o outro surgiu no cenário musical du-
rante a década de 1980 como músico e compositor do conjunto
musical Kid Abelha e os Abóboras Selvagens; e atualmente tra-
balha em carreira solo.
A semelhança entre esses dois artistas que me levou a
entrevistá-los é o fato de serem músicos que foram bem sucedidos
nos moldes tradicionais da indústria fonográfica e que atualmen-
te gerenciam suas carreiras de acordo com suas necessidades. Além
disso, utilizam as ferramentas de divulgação criadas a partir do de-
senvolvimento e popularização da internet e buscaram usar de
maneira produtiva os benefícios gerados pelo processo digital de
gravação musical.
Para dar seguimento ao processo investigativo, percebi a neces-
sidade de contato com algum compositor que tivesse vivenciado o
momento de transição entre o início do declínio do modelo de negó-
cios baseado na venda de discos e o surgimento da internet como
base para a divulgação musical. Um nome que, ao meu ver, se encai-
xou com essa proposta foi o cantor e compositor Jay Vaquer.
Além de conversar com artistas que criam e trabalham seu pró-
prio repertório no mercado musical, vi a importância de registrar a
visão do músico instrumentista, isto é, profissionais capacitados que
têm como função acompanhar os artistas realizando o trabalho de
gravação e tocando nas apresentações ao vivo. Procurei alguém que
tenha feito carreira acompanhando artistas consagrados da música
popular brasileira; e na busca por nomes vi que o baterista João Viana
seria a pessoa certa para falar sobre o assunto.
Além destes, tive a oportunidade de entrevistar o cantor e com-
positor Pedro Luís, que está à frente de dois trabalhos musicais. O
primeiro é o seu trabalho autoral, o conjunto musical Pedro Luís e a
Parede, também conhecido como PLAP. O segundo é o bloco carna-
valesco de grande expressão nacional, o Monobloco. Procurei com-
preender sua visão diante desses trabalhos que possuem estratégi-
as distintas de atuação por se situarem em nichos diferentes.
19
Também procurei conversar com algum músico ou banda que
tivesse surgido após o declínio do formato tradicional da indústria
fonográfica e utilizasse novos modelos de negócio relacionados à
música. Com base nisso, enxerguei no segmento jovem do atual
cenário musical uma ótima oportunidade para conversar com pes-
soas do meio e saber mais sobre suas experiências atuando nessa
área do mercado, que utiliza peculiares e inovadoras estratégias.
Danilo Cutrim e Rodrigo Costa, integrantes da banda carioca Forfun
me cederam uma entrevista.
Ao ter contato com os jovens integrantes da Forfun constatei a
importância que esse segmento tem para a indústria da música no
que tange à formulação e implementação de ideias inovadoras na
condição de artista independente. Vi que, por mais que artistas
desse porte trabalhem de forma independente financiando estru-
turas de trabalho próprias, a utilização de mão de obra especializa-
da para auxiliar suas funções possui um papel fundamental para
um conjunto musical como esse.
Sem o trabalho de especialistas a profissão de músico torna-se
quase inviável, visto que existe um volume grande de tarefas a
serem realizadas para que um conjunto musical possa produzir
seu trabalho, divulgar suas músicas e realizar shows pelo Brasil. O
papel dos produtores, técnicos e empresários é fundamental para o
exercício da profissão, e o segmento jovem conta com um significa-
tivo número de profissionais especializados que, na sua maioria, ini-
ciaram suas carreiras na indústria a partir do desenvolvimento das
ferramentas digitais de produção e divulgação musical. Visando
ouvir a experiência de algum desses especialistas, tive a oportuni-
dade de conversar com Liana Brauer, produtora executiva, respon-
sável pelo segmento jovem da empresa Liga Entretenimento.
Com o objetivo de relatar a visão de outros agentes do mercado
vi a importância de conversar com profissionais que atuam nos
estúdios de gravação, gravando e produzindo música. Com base
nisso, busquei ter contato com indivíduos que ingressaram no
mercado em momentos diferentes. O primeiro é André Rafael,
20
músico, produtor e dono de um dos maiores estúdios de gravação
do Brasil, o AR Studio. Para se somar a esse debate, e apresentar
um olhar diferente, conversei com o jovem produtor Bernardo
Massot, que ingressou nesse meio num momento mais recente,
marcado pela disseminação dos estúdios caseiros de gravação.
Por fim, decidi conversar com profissionais que atuam no meio
musical com um olhar de fora, sem atuar diretamente como músi-
co e/ou produtor. Alguém que observe a dinâmica desse nicho e
compreenda a forma como seus agentes se relacionam entre si.
Com isso em mente, me propus a entrevistar alguém da mídia es-
pecializada, porém, cheguei à conclusão de que seria bastante
enriquecedor coletar a opinião de profissionais que possuíssem
visões e experiências distintas deste mercado. Um deles foi o jor-
nalista Sérgio Cabral, responsável por diversas publicações acerca
da música popular brasileira; e o outro foi Rodrigo Sabatinelli, jor-
nalista das revistas Áudio, Música & Tecnologia e Luz & Cena, onde
atua como repórter e crítico musical.
A partir de todo esse material por mim coletado busquei inves-
tigar os diferentes pontos de vista desses agentes que atuam nos
diversos nichos do atual mercado musical. Não tive a pretensão de
ter realizado uma pesquisa exaustiva, visto que o campo da músi-
ca nos dias de hoje conta com uma gama bastante diversificada de
especialistas que vão desde músicos, produtores e técnicos a ad-
vogados e empresários.
Com o processo de inovação tecnológica a carreira do músico e
demais agentes sofreu grandes mudanças, algumas profissões fo-
ram extintas e também surgiram novos postos de trabalho. Em meio
a esse quadro, pretendo buscar compreender os fatores que contri-
buíram para levar o mercado da música às suas atuais característi-
cas sob o aspecto da inovação tecnológica, e de que maneira seus
agentes lidaram com isso.
21
“Destruição criadora” foi o termo cunhado em 1942, no livro A
teoria do desenvolvimento econômico, pelo economista austro-ame-
ricano Joseph Schumpeter para mostrar que, ao mesmo tempo em
que a inovação tecnológica gera novos conhecimentos e proces-
sos, ela também é a responsável pela extinção de sistemas e pro-
dutos antigos.
Analisando o sistema capitalista, Schumpeter observou que
este tem a característica de estimular o processo inovador através
do qual empreendedores, ou seja, indivíduos com talento para criar
e inventar novos conhecimentos, eram responsáveis pelo desen-
volvimento da sociedade. Tais inovações poderiam ser utilizadas
para criar produtos novos que não existiam anteriormente, como o
telefone ou o automóvel, ou para aprimorar alguma técnica de
produção, como no caso do fordismo ou do taylorismo.
Schumpeter aponta que o processo de inovação tecnológica
muitas vezes acaba sendo responsável por destruir processos ou
sistemas mais antigos, gerando então a “destruição criadora”.
Muitos exemplos podem ser citados para ilustrar esse fenômeno,
como o surgimento do transporte a vapor que gerou o declínio
dos sistemas de transporte feito por carruagens e embarcações à
vela; ou a invenção do transistor, que acabou com a indústria de
válvulas eletrônicas e levou depois aos circuitos integrados. A
inovação muitas vezes não é criada a partir de técnicas já existen-
tes; ela pode surgir paralelamente a um conhecimento prévio e
tornar-se mais eficaz, superando e destruindo processos anterio-
res.
A destruição criadora
22
As expressões culturais sempre sofreram alterações diante do
desenvolvimento de novas tecnologias. Para ilustrar isso, pode-
mos pensar no surgimento do processo de registro das obras mu-
sicais ao final do século XIX, que revolucionou o mercado da mú-
sica, gerando modificações na forma de se criar, produzir e difun-
dir as obras. Antes disso, a música só podia ser apreciada se fosse
executada ao vivo por músicos; com o processo de gravação, ela
passa a ficar registrada para a posteridade. Até então, a única
forma de se registrar uma obra musical era através das partitu-
ras. Com a disseminação do fonógrafo, a música pôde ser execu-
tada em qualquer lugar, não dependendo exclusivamente de mú-
sicos.
Os fenômenos da música gravada
Inicialmente, o fonógrafo, tecnologia criada pelo cientista nor-
te-americano Thomas Edison, em 1877 e apresentada em territó-
rio brasileiro no ano seguinte, trouxe algo que mudaria a história
da música: a tangibilidade. Antes disso, a única forma tangível de
se armazenar uma música era, conforme citado, numa partitura
musical. Nesse suporte físico eram escritos os arranjos dos instru-
mentos com base na doutrina da teoria musical. Através das parti-
turas era possível registrar para a posterioridade as composições
musicais necessitando, porém, da execução de instrumentistas
para que essa fosse ouvida e disseminada.
A partir do momento em que se possibilitou registrar uma
música num suporte físico, essa tangibilidade, que antes era pos-
sível somente sob a forma de notas musicais escritas num pedaço
de papel, passou a ter seu conteúdo sonoro armazenado inicial-
mente num cilindro envolvido por papel estanho, e mais tarde nos
discos de vinil.
No livro Capturing Sound: how technology has changed music, o
autor Mark Katz, chefe do Departamento de Musicologia do Con-
servatório Peabody, da Universidade de John Hopkins, procurou
explicar os efeitos desse fenômeno na sociedade e no meio musi-
23
cal. O disco de vinil tornou uma música tangível e o efeito de pegar
um disco, retirá-lo de dentro da capa, colocá-lo no fonógrafo, girar
a manivela desse aparelho, depositar sua agulha sobre ele e ouvir
uma música saindo pelo bocal em forma de cone, foi algo extrema-
mente inovador.
A tangibilidade também proporcionou um fenômeno novo para
a sociedade de consumo, que foi a possibilidade de se colecionar
música. Até então o consumo de música podia ser feito através da
compra de instrumentos musicais, partituras, e até sob a forma de
coleção de autógrafos, porém, não de música gravada. Esse acon-
tecimento gerou uma nova maneira de a sociedade se relacionar
com a música, pois, a partir da comercialização dos discos, tornou-
se possível colecionar a música gravada.
Outro benefício gerado a partir do surgimento da música gra-
vada foi a portabilidade. Mark Katz define esse fenômeno defen-
dendo que
(...) quando a música se torna uma coisa, ela ganha
uma grande facilidade para se locomover.1
Vale ressaltar que a música tocada ao vivo também é portátil,
porém, nesse caso inserem-se os instrumentos, o número de mú-
sicos utilizados e os custos de deslocamento. Deslocar um trio de
jazz é, sem sombras de dúvidas, muito mais simples do que uma
orquestra sinfônica. Com a música gravada, tanto o jazz quanto a
música erudita acabam tornando-se igualmente portáteis.
Além disso, enquanto uma música tocada ao vivo por
instrumentistas fica condicionada às condições de tempo e espa-
ço, o surgimento da música gravada acarretou a quebra dessa bar-
reira, visto que gerou a possibilidade de execução livre desse fator
limitador. Isto possibilitou que qualquer ouvinte escute, por exem-
plo, o disco Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band, da banda inglesa
1KATZ, Mark. Capturing sound: how technology has changed music. Berkeley eLos Angeles: University of California Press, Ltd., 2004 (p. 14).
24
The Beatles, gravado no ano de 1967, em qualquer localidade e
época. A música gravada fica para a posteridade.
Até então, a experiência de ouvir música estava condicionada
a ter a presença de músicos tocando, isto é, a dimensão visual es-
tava associada à audição. Para ouvir uma música, era necessário
visualizar sua execução. Com a música gravada o ouvinte e o
instrumentista não são vistos e, tal fato já foi motivo de inquieta-
ção, conforme descreveu um crítico britânico em 1923:
(...) Alguns ouvintes não ficam confortáveis ao ou-
vir uma voz humana saindo de dentro de uma cai-
xa... eles necessitam da presença física.
Com isso, alguns equipamentos de reprodução musical no
início do século passado foram comercializados com algum tipo de
mecanismo para suprir a falta do contato visual. Em 1905 foi intro-
duzido no mercado americano a Ilustrated Song Machine (máqui-
na de música ilustrada) que oferecia imagens que eram fixadas
nos cilindros de música e faziam rotações de acordo com o tempo
da música. Na falta desses recursos visuais, muitos ouvintes fica-
vam simplesmente olhando o fonógrafo.
Essa invisibilidade retirou um canal importante de comunica-
ção entre a audiência e os músicos no que tange a suas expressões
corporais. Não se trata da execução de instrumentos musicais ou
voz, mas sim de ver o músico tocando, observar suas expressões e
movimentações. A questão visual tem um papel muito relevante
na música, pois ela dá vida e contextualiza uma performance mu-
sical. Ouvir uma apresentação ao vivo do guitarrista norte-ameri-
cano Jimi Hendrix não tem o mesmo impacto de vê-lo tocando sua
guitarra.
A questão visual da música pode servir de armadilha para o
público, como no caso do conjunto musical norte-americano Milli
Vanilli, popular nos anos 1980. O sucesso desse dueto se deu muito
por conta da aparência física de seus componentes, que se ade-
25
quava perfeitamente aos padrões estéticos de beleza de então,
além de sua forma provocativa de dançar. No entanto, a carreira
desse trabalho foi por água abaixo na década seguinte, quando se
revelou que as vozes gravadas nos discos não pertenciam a eles,
mas sim a dois indivíduos de meia-idade que não tinham nada a
ver com aqueles padrões estéticos.
A tecnologia da gravação também trouxe a possibilidade de se
ouvir por mais de uma vez a execução de uma música. É importan-
te frisar que, ao se tocar uma nota ou uma frase musical, existem
diferentes variáveis envolvidas nessa ação, como timbre, volume,
duração e intensidade, e repetir essa nota com as mesmas variá-
veis torna-se muito difícil. O que dizer então de uma música intei-
ra? Cada execução acaba tornando-se única sob o ponto de vista
sonoro, ou seja, é possível ver uma Orquestra Sinfônica executan-
do a mesma peça mais de uma vez, porém, nunca será uma repe-
tição 100% fiel a outra por conta das variáveis acima descritas. O
mesmo vale para um conjunto musical; um fã da banda brasileira
Os Paralamas do Sucesso pode ter assistido ao compositor Herbert
Viana e seus companheiros tocando composições como Óculos e
Meu erro diversas vezes. Porém, suas execuções nunca foram fiel-
mente iguais se formos compará-las detalhadamente. Cada de-
sempenho musical é único.
Para entender esse importante ponto, é preciso separar os efei-
tos da possibilidade da repetição de uma gravação para aquele
que executa um instrumento e/ou compõe, por um lado, e como
esse mecanismo afeta o ouvinte, por outro. Para este último, a re-
petição de uma execução torna possível memorizar os detalhes de
uma gravação. O indivíduo que ouve essa performance diversas
vezes pode acabar guardando em sua memória os detalhes desse
registro, como arranjos específicos e até possíveis erros de execu-
ção. Um bom exemplo para ilustrar esse fenômeno pode vir da
banda canadense de rock progressivo Rush. Esse conjunto prima
por suas apresentações, buscando executar da maneira mais fiel
possível seu repertório autoral, formado por músicas com arranjos
26
muitas vezes sofisticados no sentido teórico. Seu público fiel com-
pra seus discos e vai a seus shows com a expectativa de ver uma
execução ao vivo similar à versão gravada.
Na visão de quem executa um instrumento, esse fenômeno
pode ser encarado sob outro ponto de vista. Quando um músico
sobe ao palco e executa um determinado repertório para um de-
terminado público, essas músicas serão ouvidas somente enquan-
to estiverem sendo tocadas. A gravação possibilita eternizar uma
determinada execução livrando-a, como já foi abordado, das suas
condições limitantes de tempo e espaço. Com base nisso, costu-
ma-se ter um maior cuidado na sua execução dos instrumentos
durante uma sessão de gravação, objetivando minimizar possíveis
erros que possam vir a ser captados.
Um ponto favorável que a repetição de uma gravação gerou
para o instrumentista foi a possibilidade de este poder ouvir sua
própria execução. Antes da existência do mecanismo de registro,
um músico só podia se ouvir enquanto estivesse tocando seu pró-
prio instrumento. Com a gravação, esse músico passou a ter a pos-
sibilidade de ouvir e estudar sua própria performance, contribu-
indo, consequentemente, para o aprimoramento do estudo de um
instrumento musical, visto que escutar sua própria execução auxi-
lia a identificar possíveis falhas e ajuda a melhorar a técnica musi-
cal. Além disso, esse mecanismo também tornou possível ouvir e
estudar a performance de outros instrumentistas, algo bastante
útil para o aprimoramento da técnica de um instrumento musical.
A música se adapta à tecnologia
Outra importante mudança gerada a partir do surgimento da
música gravada foi a padronização da duração das composições
em decorrência do limite de espaço que um suporte físico podia
armazenar. Desde o surgimento do fonógrafo, em 1877, até o
surgimento do disco no formato long play (conhecido popularmen-
te como LP), em 1948, as gravações não podiam ultrapassar o limi-
te máximo de quatro minutos e meio, pois, caso contrário, não seria
27
possível armazená-la. Com base nesses fatos, é importante sali-
entar que durante setenta e um anos as músicas gravadas foram
limitadas a essa condição de duração temporária, e registrar com-
posições que ultrapassassem essa barreira implicava utilizar a
outra plataforma (lado) do disco para a mesma música, ou seja,
esta era interrompida, o ouvinte era obrigado a trocar o disco de
lado, girar a manivela do fonógrafo e colocar a agulha no início do
disco. Operando sob essas condições limitadas, muitas composi-
ções tiveram de ser adaptadas com a finalidade de serem
registradas, e ocorreram casos em que se optou por eliminar parte
da música para que esta viesse a ser gravada.
Com o intuito de exemplificar tal limitação, o autor Mark Katz
utilizou o trabalho do compositor Igor Stravinsky. Quando este
escreveu sua Sonata para Piano, em 1925, cada um de seus quatro
movimentos foi composto para que tivesse em média três minutos
de duração e pudesse ser armazenado em um lado de um disco de
78 rotações por minuto. O compositor revelou em sua autobiogra-
fia que:
...eu tinha de compor algo cuja duração era deter-
minada pela capacidade de armazenamento e foi
dessa maneira como a minha Sonata para Piano foi
escrita.
Na música popular essa limitação de tempo também afetou
de maneira significativa sua produção. Grande parte das compo-
sições do estilo musical denominado pop possui em média três
minutos de duração. Isso se deve ao fato de este estilo ter se popu-
larizado durante a década de 50, quando surgiu o disco no formato
de 45 rotações por minuto, que eram na época bastante utilizados
em fonógrafos automáticos, também conhecidos como jukebox e
nas estações de rádio. Com base nisso, uma música que durasse
mais do que o limite estipulado praticamente perderia a oportuni-
dade de ser consumida. Percebe-se esse efeito até nos dias atu-
28
ais, visto que grande parte das músicas populares executadas no
rádio possui, em média, três minutos de duração. Se por um lado
isso condicionou os compositores a escreverem composições com
essa duração, por outro lado o público ouvinte também se acos-
tumou a apreciar músicas com essas características.
Além disso, a música gravada também demandou adaptações
na forma de se executar um instrumento durante uma gravação.
Para entender isso, comparemos os locais onde se realizam uma
apresentação ao vivo e uma gravação, ou seja, um palco e um estú-
dio. Imagine uma sala fechada, sem janelas, vazia e silenciosa, com
um grande bocal em forma de cone no meio dela e uma luz verme-
lha presa na parede. Não há palco e nem aplausos do público sau-
dando a entrada. A sessão não começa com a performance, mas
sim com diversos testes que objetivam equalizar e ajustar o equi-
pamento a ser utilizado. Quando tudo está pronto não é o artista
quem decide quando começar: a luz vermelha se acende e o enge-
nheiro de som dá a autorização para que a gravação comece. Era
desta forma que se desenrolava o trabalho de registro musical no
início do século passado e uma série de precauções eram necessá-
rias, visando não comprometer o resultado esperado como por
exemplo os instrumentistas serem obrigados a se precaver para
não excederem os limites de intensidade na execução de seus res-
pectivos instrumentos e os cantores deverem evitar cantar alto ou
baixo demais. Ao final da música, o silêncio absoluto era necessá-
rio para terminar a sessão.
Meio século mais tarde, os estúdios encontravam-se moderni-
zados e o sistema de captação passou do bocal em forma de cone
para microfones sensíveis capazes de gravar qualquer tipo de som
que o homem possa emitir com sua voz ou instrumento musical.
Para se ter uma noção, o deslizar da mão de um guitarrista pelo
braço de seu instrumento, durante uma apresentação ao vivo,
emite um som que dificilmente pode ser ouvido pelo homem. Mas,
ao se posicionar um microfone sensível numa sala de gravação,
esse som passa a ser captado e, por conta disso, deve-se procurar
29
evitar movimentações bruscas durante uma gravação. Com base
no exposto, é possível compreender que o processo de registro
musical demanda adaptações quanto à execução dos instrumen-
tos com o intuito de se produzir resultados satisfatórios.
A possibilidade de se editar uma música gravada também ge-
rou profundos impactos na produção musical. No início do sécu-
lo passado, ao ouvir uma música gravada, o ouvinte estava apre-
ciando uma performance que fora executada de uma só vez, sem
interrupções e no mesmo momento em que fora gravada. Não
havia a possibilidade de se inserir outros elementos a uma com-
posição quando sua sessão já havia sido realizada, isto é, os
instrumentistas tocavam aquela determinada música em con-
junto, de uma só vez.
A partir dos anos 1940 surgiu o processo de gravação que utili-
zava fitas magnéticas como suporte de armazenamento, o que
possibilitou editar e manipular o material gravado, podendo criar
a ilusão de performances que poderiam nunca ter existido. Para
exemplificar os benefícios que essa inovação propiciou, usemos a
canção Strawberry fields forever, gravada pelo conjunto musical The
Beatles em 1967. O autor Mark Katz conta que a banda gravou mais
de vinte vezes a canção, porém, nenhuma satisfez por completo
John Lennon, um de seus cantores. Este revelou que havia prefe-
rido a primeira metade da sétima sessão e a segunda metade da
vigésima sexta. Para juntar as duas numa só o produtor do álbum,
George Martin, através do sistema de edição proporcionado pelo
sistema de fitas magnéticas, conseguiu ajustar seus
andamentos2 de modo que as duas passaram a formar uma só
música. Para exemplificar outro benefício dessa inovação, utilize-
mos o caso da cantora Natalie Cole que, em 1991, gravou o dueto
“Unforgettable” com seu falecido pai, o músico Nat King Cole, que
havia gravado sua parte da música décadas antes e as fitas da ses-
são de gravação encontravam-se preservadas.
2 Andamento é a velocidade das pulsações de um trecho musical, também tradu-zido como tempo.
30
Com o surgimento do processo digital de gravação ao final do
século XX, novas barreiras foram quebradas. O sistema de edição
tornou-se mais eficaz, visto que passou a ser realizado com o auxí-
lio de programas de computador especializados. Além disso, é
importante ressaltar que o sistema de fitas possuía uma limitação:
a gravação poderia durar enquanto houvessem fitas disponíveis.
Com o desenvolvimento do mecanismo digital, tal limitação tor-
nou-se praticamente inexistente.
Os efeitos da inovação
Se até o final do século passado grande parte dos insumos
necessários para se realizar o registro de uma música era detido
principalmente pelas empresas produtoras de discos, no cenário
atual vemos que o processo de inovação tecnológica fez surgir es-
túdios de menor porte e até caseiros. Com o barateamento dos
equipamentos de gravação, hoje em dia é possível montar uma
estrutura de trabalho com pequeno investimento financeiro. Em
consequência, observou-se um aumento substancial do volume de
material produzido e acabou-se transformando os grandes estúdi-
os em estruturas bastante dispendiosas e pouco aproveitadas.
Vale ressaltar que os estúdios de maior porte ainda detêm equi-
pamentos que propiciam uma qualidade do produto final melhor
que os demais. Bons microfones, bons amplificadores, boas mesas
de som e técnicos especializados ainda fazem a diferença quando
se busca uma boa sonoridade. Porém, empresas como a Digidesign
and the Audio Group of Avid Technology, Inc., responsável pela cri-
ação e venda do software de gravação mais disseminado mundial-
mente, o Pro Tools, busca tornar os estúdios caseiros cada vez mais
eficazes, possibilitando obter resultados bastante satisfatórios em
comparação com estúdios profissionais.
A facilidade de se registrar uma obra musical teve bastante êxito
graças à revolução digital que foi marcada pelo surgimento de um
formato para a música chamada de MPEG Audio Layer-3, popular-
mente conhecido como MP3. Essa nova tecnologia de compressão
31
de arquivos possibilitou que o tamanho dos arquivos de música
digital, originalmente em formato WAV, ficasse menor e, por
consequência, seu armazenamento nos computadores pessoais
mais fácil.
Muitas mudanças ocorreram tanto para quem produz a músi-
ca quanto para quem a aprecia. A tecnologia da música gravada
mudou a forma de se consumir música de modo nunca antes visto.
No Brasil, esse fenômeno gerou mudanças marcantes no cenário
da música popular e é justamente esse tema que será tratado no
capítulo que se segue.
32