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9 NARRAR-FLANAR: A BUSCA PELA EXISTÊNCIA E RESISTÊNCIA DA VOZ- CORPO FEMININA EM QUARENTA DIAS Álvaro Perini Canholi 1 Resumo: Em Quarenta dias, romance da escritora brasileira Maria Valéria Rezende, vemos a presentificação da história de Alice por meio de seu relato, ficção que é narrada dentro de outra ficção, mas que, antes, nasce da realidade patente da autora: mulher, escritora, velha que, na atitude de flanar, acaba por encontrar sua identidade. Este estudo visa, por sua vez, embrenhar-se por dois pontos que parecem funcionar como elementos estruturantes do romance, e que acenam a estas mulheres escritora-autora e personagem-escritora , a perspectiva da edificação de um mundo (real-ficcional) onde é possível impor seus destinos: o mundo do narrar e o mundo do flanar. Nossas reflexões serão conduzidas pela ideia de escrita metaficcional rezendiana, passando pelo diálogo que se forma por meio do processo de alterficção entre autor, narrador, personagem e leitor, e por considerações a respeito da figura dos flâneurs baudelairiano e benjaminiano, os quais nortearão a busca pela compreensão deste multifacetado flâneur contemporâneo concebido por Valéria Rezende. Palavras-chave: flâneur; metaficção-alterficção; Quarenta dias. [...] Em cada gota de tinta há um bom estoque de caçadores de olho na mira, prontos a descer pela caneta íngreme, cercar o cervo e apontar as armas. Eles esquecem que aqui não há vida de verdade. No preto-e-branco vigem outras leis. Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser e poderá ser dividido em pequenas eternidades, cada uma com chumbo suspenso em pleno voo. Aqui nada acontecerá sem meu aval. Contra minha vontade, nem uma folha cairá e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo. Então existe um mundo onde eu possa impor o destino? Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais? Uma existência que, a meu comando, não terá fim? A alegria de escrever. O poder de preservar. Vingança de uma mão mortal (SZYMBORSKA, 2007). 1 Mestrando em Letras | Estudos Literários na Universidade Estadual de Londrina UEL. E-mail: [email protected].

NARRAR-FLANAR: A BUSCA PELA EXISTÊNCIA E RESISTÊNCIA … · escritora, mulher madura, detentora de seu destino. 11 Sendo assim, ao conduzirmos nossas reflexões nestes dois pontos

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NARRAR-FLANAR: A BUSCA PELA EXISTÊNCIA E RESISTÊNCIA DA VOZ-

CORPO FEMININA EM QUARENTA DIAS

Álvaro Perini Canholi1

Resumo: Em Quarenta dias, romance da escritora brasileira Maria Valéria Rezende, vemos a

presentificação da história de Alice por meio de seu relato, ficção que é narrada dentro de

outra ficção, mas que, antes, nasce da realidade patente da autora: mulher, escritora, velha

que, na atitude de flanar, acaba por encontrar sua identidade. Este estudo visa, por sua vez,

embrenhar-se por dois pontos que parecem funcionar como elementos estruturantes do

romance, e que acenam a estas mulheres – escritora-autora e personagem-escritora –, a

perspectiva da edificação de um mundo (real-ficcional) onde é possível impor seus destinos: o

mundo do narrar e o mundo do flanar. Nossas reflexões serão conduzidas pela ideia de escrita

metaficcional rezendiana, passando pelo diálogo que se forma por meio do processo de

alterficção entre autor, narrador, personagem e leitor, e por considerações a respeito da figura

dos flâneurs baudelairiano e benjaminiano, os quais nortearão a busca pela compreensão deste

multifacetado flâneur contemporâneo concebido por Valéria Rezende.

Palavras-chave: flâneur; metaficção-alterficção; Quarenta dias.

[...] Em cada gota de tinta há um bom estoque

de caçadores de olho na mira,

prontos a descer pela caneta íngreme,

cercar o cervo e apontar as armas.

Eles esquecem que aqui não há vida de verdade.

No preto-e-branco vigem outras leis.

Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser

e poderá ser dividido em pequenas eternidades,

cada uma com chumbo suspenso em pleno voo.

Aqui nada acontecerá sem meu aval.

Contra minha vontade, nem uma folha cairá

e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo.

Então existe um mundo

onde eu possa impor o destino?

Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais?

Uma existência que, a meu comando, não terá fim?

A alegria de escrever.

O poder de preservar.

Vingança de uma mão mortal (SZYMBORSKA, 2007).

1 Mestrando em Letras | Estudos Literários na Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail:

[email protected].

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Em “A alegria de escrever”, poema de Wislawa Szymborska (1923-2012), a escritora

polonesa, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996, fala da tarefa do poeta, árdua,

porém libertadora: ter o poder nas mãos e, assim, poder escrever, traçar seu destino e

preservar sua presença. Ora, nada mais revelador e representativo no que toma o fazer das

escritoras a ela contemporâneas do que suas palavras, as quais se direcionam – de maneira

inspiradora – ao início deste breve estudo.

Nesse grande e profícuo colóquio de vozes femininas na literatura atual, encontramos

a brasileira Maria Valéria Rezende, escritora-transgressora, tal como a personagem que cria e

a quem empresta seus contornos: Alice, narradora-escritora de Quarenta dias (2014).

Ganhadora do Prêmio Jabuti 2015, sua obra traz uma evidente crítica social, que denuncia a

pobreza existente no sul do país. Segundo Resende e David – em um dos ainda poucos

estudos destinados a esse romance e a essa autora –, seguindo uma direção política, Valéria

Rezende “denuncia as condições de vida do meio urbano, a cidade dividida entre ricos e

pobres, fazendo tanto a descrição do espaço físico quanto do espaço social em que circulam as

figuras humanas que cruzam seu caminho” (2016, p. 15).

No excerto supracitado, encontramos dois temas muito aludidos nas diversas

entrevistas e matérias jornalísticas centradas na obra aqui tratada: a cidade (foco daquele

estudo) e a miséria. Mas, para além desses sujeitos inequívocos, temos outros, não tão

evidentes, latentes nesse romance que enfoca, primordialmente, o universo feminino. A

história de Alice se presentifica por meio de seu relato, ficção que é narrada dentro de uma

ficção que nasce da realidade patente da autora: mulher, escritora, velha, que vê as mazelas do

mundo por meio de suas andanças como missionária e militante das causas sociais, e que, na

atitude de flanar, acaba por encontrar sua identidade.

Assim, Quarenta Dias se levanta como corpus deste estudo, que visa embrenhar-se

por dois pontos que parecem funcionar como elementos estruturantes do romance, e que

acenam a estas mulheres – escritora-autora e personagem-escritora –, a perspectiva da

edificação de um mundo (real-ficcional) onde é possível impor seus destinos, como

encontramos no poema de Szymborska.

Dessa forma, ainda aportados na epígrafe desta introdução, temos como eixo de nossa

análise: 1) o mundo do narrar, onde há a alegria de escrever (alegria enquanto deleite, gozo,

glória) que visa garantir a existência da voz feminina; 2) o mundo do flanar, resistência do

corpo enquanto agente que escreve e inscreve o poder de preservar a identidade de uma

escritora, mulher madura, detentora de seu destino.

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Sendo assim, ao conduzirmos nossas reflexões nestes dois pontos indicados, o narrar

e o flanar, o faremos tangenciando-as (as reflexões) pela ideia de representação de traços da

escritora Maria Valéria Rezende na narradora-escritora Alice. Desse modo, temos a velhice

como alcunha da protagonista, fardo que a leva a uma condição de invalidez e imprime um

apagamento de sua voz – realidade, talvez, experimentada ou muito presenciada por Valéria

Rezende; a fuga e o espelhamento dessa mulher, que se sente inválida, em outros corpos,

também sem voz – aqueles que estão à margem da sociedade, os esquecidos, os pobres, os

doentes, os loucos, os necessitados, as crianças, os que vagam, sem rumo; a necessidade de

vagar tanto da personagem, quanto da autora, o assumir-se na figura do ser errante, aquele

que perambula, que vagabundeia, que flana pelas ruas; e o sentir-se impelida a vagar para se

reencontrar e, assim, se entregar ao encontro com a narrativa, tábua de salvação dessa(s)

mulher(es).

É manifesto: Valéria Rezende, a errante, fala por meio de Valéria Rezende, a escritora,

que discorre sobre Alice, a andante, que se coloca no papel de narradora para contar sua

jornada e, assim, revelar a travessia da autora que a criou. Entendemos que é este fluxo

narrativo, este processo de mise en abyme, assim definido pelo escritor francês André Gide

(1869-1951), que torna o romance rezendiano tão interessante, conduzindo-o ao status de obra

palimpséstica. É tangível: há outros sentidos por trás dos mais evidentes na obra de Valéria

Rezende.

Por fim, corroboramos e conduzimos a outras instâncias a ideia expressa pelas

pesquisadoras aqui citadas acerca do caminho da protagonista, presente no artigo “A cidade e

a escrita do corpo em Quarenta dias”, assinalando também, por ora, a importância de serem

desenvolvidos estudos que empreguem esta autora brasileira e sua rica obra. Nele

encontramos sustentação para as linhas que constroem este artigo:

Diante das relações familiares esfaceladas, Alice não se aniquila. Enfrenta

seu drama, vivenciando a liberdade das ruas e a liberdade do fazer

poético. O andar e o narrar revigoram a força da vida e a força das

palavras que são tão frequentes na literatura de Maria Valéria Rezende

(RESENDE; DAVID, 2016, p 28, grifo nosso).

Sim, ao vivenciar sua liberdade, a personagem atesta seu valor enquanto ser feminino,

como se dissesse: Eu existo: sou mulher, sou corpo maduro, mas sou criança na andança. Eu

resisto: sou mulher, sou voz que se lança, escrevo meu destino como num diário de menina,

narro minha vingança. Após quarenta dias no deserto, Alice empresta a mão mortal de

Valéria Rezende, e imortaliza a peregrinação da mulher em busca de si e de seu fazer poético.

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A alegria de escrever: narrar como ato de presença da voz feminina

Ninguém vai ler o que escrevo, mas escrevo. [...] quero mesmo é o

manuscrito, deixar escorrer tudo direto do corpo pra caneta e pro papel

(REZENDE, 2014, p. 18).

A narrativa presente em Quarenta dias parte de uma espécie de solilóquio da

protagonista, iniciando-se após o retorno de Alice das ruas de Porto Alegre, na capital gaúcha,

onde se pôs a flanar por quarenta dias. Ao se entregar à atitude de escrever, ela se liberta

daquela Alice construída por meio de reminiscências no início do romance; personagem-

inicial desenhada pela personagem-final que, no processo de reconstituição de sua busca,

funde-se à escritora na qual se transformou. Temos aqui a primeira de muitas aproximações

possíveis desta Alice escritora com a escritora que a concebe, Valéria Rezende. São mulheres

escrevendo sobre mulheres; mulheres que se encontram num processo de transformação.

Esta transmutação que ocorre por meio da dialética escritora/personagem-

personagem/escritora é construída por meio da jornada de Alice, ser dual que, ao refletir,

expõe as reflexões da autora do romance. Conforme encontramos em Resende e David,

amparadas nos escritos de Linda Hutcheon (2013), Valéria Rezende “reflete sobre seu fazer

literário ao criar uma metaficção (ficção sobre a ficção), numa postura autoconsciente e

autorreflexiva” (2016, p. 23).

Ao escrever para presentificar sua voz, expondo, no seu caderno, o fazer poético de

Valéria Rezende, Alice conta sua história. Ela indica, por meio de uma narrativa reflexiva e

entrecortada, o processo de privação de sua independência e de perda da sua inclinação à

ação, sucumbindo a uma submissão não somente em relação à filha, mas a tudo e a todos,

assumindo sua inércia. Vemos aqui um processo que vai de uma Postura Ativa (Alice jovem,

mãe-solteira, profissional dedicada e independente) a uma Postura Passiva (Alice aposentada,

futura avó, acomodada, submissa e sem voz).

Pois bem, diferente do que uma leitura superficial do livro de Valéria Rezende pode

fazer supor, Alice não se configura como uma mulher ingênua, perdida, deixada à deriva em

uma cultura diferente da sua, quando se muda da cidade natal. É possível compreender, por

meio de diversas marcas no texto, que seu capital cultural (professora, leitora voraz, poliglota)

a distancia dessa imagem naïf. O que a torna frágil diante dos acontecimentos é o estágio em

que se encontra na sua vida: estar velha, com toda a força pejorativa que a palavra pode trazer.

É justamente esta imagem da velhice presente na sociedade que a conduz a uma virtual

condição de inválida, levada ao extremo da realidade quando de sua andança.

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Nesse caminho, temos o espelhamento, a projeção dessa mulher vinda do nordeste –

mais um “agravante” à sua condição –, naqueles seres que ela encontra na rua: os inválidos da

urbe. Na busca por compreender essa situação de torpor ou comodismo na qual ela se

encontra mergulhada, a personagem vai se revelando e mostrando, assim, as reflexões de sua

autora, conduzindo sua crítica na ideia da mulher intelectual e independente que perde – ou

está constantemente ameaçada a perder – sua voz diante de uma visão patriarcal, falocêntrica

da sociedade, de homens e mulheres que adulteram a ideia da escrita feminina, da fêmea

madura e independente: dela é arrancado o desejo de escrever, a vontade de trabalhar e a

independência de caminhar.

Aliás, é revelador no texto a constatação de que sua voz é apagada pela voz de outras

mulheres. Entre tantas repreensões, a filha diz: “O que é isso, mãe? Parece que virou uma

velhota sentimental, com esse apego a coisas completamente ultrapassadas” (REZENDE,

2014, p. 07). A partir daí, Alice narra o início pontual de seu processo de perda de identidade:

o despojamento de sua casa, a venda de seus pertences e a rendição às investidas daquela

mulher tão parecida com seu marido, há tanto ausente, aquela filha distante de seus traços,

mas com a qual aceita seguir rumo a um destino conhecido, porém mal pressentido: Porto

Alegre. Entretanto, a capital gaúcha não parece ser o maior problema: alguma coisa em João

Pessoa já a tirava de seu controle.

Em meio à sua passividade, “apareceu o caderno”. E, nesse caminho, mais uma voz

feminina, a da prima, insiste em censurá-la: “Que leseira, Alice!, não vai me dizer que você

vai recomeçar, lá no Sul, com essa besteira de dar aula o dia todo para precisar de um

caderno velho, vazio e grosso” (REZENDE, 2014, p. 09). Entre poucos pertences, ela,

também velha e vazia, salva do saqueio sofrido o curioso livrete rosa, em espiral, com a

imagem da boneca Barbie na capa:

Sei lá!, a isso, sim, eu resisti até o fim, agarrei-me com o caderno como uma

boia, vai ver que foi só mesmo pra dizer Não a alguém, fincar pé contra mais

uma vontade alheia querendo tomar o controle daquela minha vida, já

escapando feito água usada pelo ralo desde que me decidi, ou cedi?, a pedir

o raio da segunda aposentadoria. Patética tentativa de resistência, mas,

afinal, tinha sentido, agora acho. O caderno veio na minha bagagem por pura

teimosia, mas com um destino oculto, tábua de salvação pra me resgatar do

meio dessa confusão que me engoliu. Talvez (REZENDE, 2014, p. 09).

Aqui reside a importância desse primeiro relato: esse caderno vai servir como meio,

suporte, materialidade que representa sua nova postura: a de escritora de sua vida, detentora

de sua história, conhecedora de um mundo onde ela poderá impor seu destino. Um destino

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diferente daquele suposto pela prima, imposto pela filha e referendado pela sociedade onde

estão inseridas estas mulheres, a qual forja o papel cobrado de Alice: deixar sua vida de lado,

se render à “bonificada” aposentadoria e dedicar-se aos filhos de sua filha e, nessa trilha, aos

filhos dos filhos de sua filha, algo concebido por um discurso machista como natural a uma

mulher de mais de 50 anos; pronta e apenas pronta, tão-somente pronta para ser avó.

Temos aí um cenário conhecido, vivido pela autora Valéria Rezende. Sobre isso, diz:

[...] fui me dando conta de toda uma problemática que estava surgindo para

mulheres da minha geração, que foram para a rua trabalhar, criaram os

filhos, deram um duro danado, adiaram uma porção de projetos e, de

repente, quando chega a hora de aposentar, elas são convocadas para serem

avós profissionais porque os filhos têm suas carreiras e nenhuma disposição

de fazer sacrifícios (2014, s/p).

Eis o pano de fundo do sacrifício encarado por Alice: Elizete desmantelando sua vida,

Norinha transportando-a para outro lugar; sua morada num jogo de monta-e-desmonta, como

numa casa de bonecas. Suas vontades desrespeitadas, marionete que o é: seu corpo, à maneira

de uma Barbie, sem desejos, sem escolhas, sem reações, cedendo às mãos pesadas do

manipulador.

Eis sua remição: o caderno, espelho onde ela se vê refletida, prenúncio daquela

juventude que não lhe cabe mais, revelador da face de boneca sorridente, silenciosa e artificial

que ao seu espírito se acomodou; reflexo que ela quebrará com as palavras, com o “limbo

tranquilizante da escrita desenfreada” (REZENDE, 2014, p. 59). O “destino oculto” do

caderno parece ser este: ponte que liga sua vida passada e sua vida futura, testemunha de um

presente que o é porque se encontra vivo em sua memória e que só será eternizado quando

colocado em palavras naquele espaço, infantil como ela, criança solta no mundo que cresceu

durante quarenta dias a presenciar as mazelas da vida, e que renasce no corpo e na mente de

uma mulher de cinquenta e poucos anos, agora, talvez, mais forte, devolvida à ação, senhora

do seu caminho, dona do seu destino.

Dessa forma, nos parece certo: o sacrifício de Alice é necessário para que seja

conduzida uma transformação do sujeito. Inconscientemente, ela se coloca nesse processo,

buscando algo além de uma compreensão de sua relação com a filha; antes, ela busca um

retorno a um estado primitivo, ingênuo, um renascimento. E este renascimento,

compreendemos por meio deste estudo, se da pela escrita do seu corpo em ação nas ruas, um

corpo que vaga, e pelo fazer assumido, desde o início da obra, de narrar; a escrita como

libertação, como purgação e como elevação de um novo ser. Um ser que reverdece após

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“quarenta dias no deserto, quarenta anos” (REZENDE, 2014, p. 18), vivenciado a paixão,

como na quarentena enfrentada por Jesus Cristo em seu retiro.

Assim, podemos depreender que o que ela realiza como obra não é um diário, mas sim

a narração de uma história que lhe proporciona a experiência tão adiada, tardia, de ser

escritora (como Valéria Rezende, que estreia na literatura aos 60 anos). O romance escrito por

Alice nasce desta experiência do narrar. Sim, pois para Valéria Rezende “a literatura nasce

como narrativa”, o que acaba por se configurar como elemento imprescindível ao seu fazer,

explorando-o em seus livros e, assim, “realçando a importância do ato de contar histórias,

posto que por várias vezes suas personagens sejam também contadoras de história”

(RESENDE; DAVID, 2016, p 09).

É neste sentido que vemos a ocorrência do mise en abyme já citado; suas narrativas

compõem-se de outras narrativas. Elas nascem daquilo que, para a autora, surgiu como

missão: a peregrinação.

Mas como surge a metaficção presente na obra, que para nós extravasa o espaço

ficcional, se ancorando na experiência real da autora? Segundo encontramos em entrevista

concedida à jornalista Luisa Gadelha, no ano de 2015, logo após receber o Prêmio Jabuti pelo

romance Quarenta dias, Valéria Rezende define sua obra como “ficcio-biografia”, ao que ela

explica: primeiro surgiu a história, a ficção, de certa forma pronta em sua cabeça; depois, veio

a vontade de se lançar a essa experiência em Porto Alegre, realizando, assim, uma espécie de

laboratório. Em outra entrevista, concedida à jornalista Maria Fernanda Rodrigues no ano de

2014, quando do lançamento de seu livro, Valéria Rezende explica o processo:

Por 15 dias fiz basicamente o que Alice fez. Perguntei para todos onde eu

poderia encontrar Cícero Araújo, que era invenção minha, e ia atrás dele.

Voltava para casa à noite, mas cheguei a dormir em rodoviária, aeroporto e

hospital, onde tinha abrigo [...]. Nessas andanças, percebi que metade do

mundo é feita de gente sumida e a outra metade está procurando quem sumiu

– não apenas aqueles que foram para a rua, mas também os que não

quiseram mais dar notícia (REZENDE, 2014, s/p).

Apesar da nomenclatura empregada por Valéria Rezende, definindo sua obra como

“ficcio-biográfica”, compreendemos que temos aí um processo de autoficção ou, conforme

encontramos no estudo de Evandro Nascimento intitulado “Matérias-Primas: Da

Autobiografia à Autoficção – Ou Vice-Versa”, um processo de “alterficção”2. Nesse sentido,

2 Sobre o termo, diz nascimento (2010, p. 192): “Estou convencido de que toda experiência do eu passa pelo encontro

com a alteridade, de forma estrutural e irredutível. ‘Eu’ só existe porque o outro/a outra (que pode ter inúmeros

nomes: mundo, universo, natureza, Deus, pai, mãe, família, sociedade, acaso, lei, norma, etc.) lhe deu existência. [...]

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corroboramos o autor: julgamos este processo “fascinante”, já que ele integra-se da “ausência

de compromisso com a verdade factual, por um lado”, e da “simultânea ruptura com a

convenção ficcional, por outro” (2010, p. 196), algo que, ele adverte, não deve ser reduzido a

um gênero.

O interesse da auto ou da alterficção é romper as comportas, as eclusas, os

compartimentos dos gêneros com que aparentemente se limita, sem

pertencer legitimamente a nenhum deles. Ela participa sem pertencer nem ao

real nem ao imaginário, transitando de um a outro, embaralhando as cartas e

confundindo o leitor por meio dessas instâncias da letra (NASCIMENTO,

2010, p. 196).

Este jogo entre realidade e ficção é algo muito perceptível na obra de Valéria Rezende.

O entrelaçamento do real e do ficcional permeia todo o livro, mesmo antes do início da

narração, já na dedicatória que a escritora concebe, oferecendo sua obra “a todos os escritores

de quem furtei palavras ao longo dessa travessia” (2014, p. 05), jornada assumida por sua

personagem que, ao escrever, coloca estes escritores citados por Valéria Rezende, nas

epígrafes de seus capítulos confidenciados àquela muda Barbie, fragmentos que resumem ou

principiam as reflexões de Alice.

O ficcional começa aí, diz Nascimento: “Nessa tensão entre narrador, autor e

personagem, é que se insere a verdadeira ficção”, algo que para Barthes, segundo o autor, é a

ficção do leitor.

O leitor é convocado a intertrocar papéis com todas essas máscaras

ficcionais, atribuindo também algo de sua própria vida, sem o que a

literatura permanece letra morta. A vida de toda ficção depende do bios

leitoral, sem o qual nada acontece. Pois a autoficção só existe de fato como

efeito e não como um novo dogma de criação (NASCIMENTO, 2010, p.

199).

Sendo assim, a construção de sentidos se dá por meio de um diálogo entre obra e

leitor, o qual é instigado a participar ativamente da narrativa rezendiana, já que, de acordo

com Resende e David “[...] por se tratar de uma metaficção, o leitor é convocado e tem sua

tarefa a cumprir para a construção dos sentidos” (2016, p. 26). Dessa forma, estas autoras

citam outros exemplos de ações que devem ser assumidas pelo leitor:

[...] a escritora subverte as regras de pontuação e cabe ao leitor participar

também dessa subversão, para depreender as várias alternativas de

‘Eu’ é e sempre será outro, igual e diferente de si: esse diferimento vem da alteridade que nos habita. Tal é o primado

ético da existência: antes de mim o outro ou a outra que me deram vez e lugar. [...] Por esse motivo sempre preferi,

em vez do neologismo autoficção, um outro, um pouco mais estranho, o de alterficção [...] para marcar que tudo vem

do outro e a ele-ela retorna, malgrado a passagem necessária pelo eu”.

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interpretação e, assim, ter a responsabilidade de organizar o texto literário. À

vista disso, na ficção contemporânea, tanto a escrita quanto a leitura são

fundamentais e complementares (2016, p. 26).

Estas particularidades relacionadas aos elementos formais da escrita metaficcional de

Valéria Rezende, bem como no diálogo que se forma por meio do processo de alterficção

entre autor, narrador, personagem e leitor, nos conduz à ideia de obra aberta, apresentada pelo

escritor italiano Umberto Eco (1932-2016) que, entre outras coisas, reflete acerca da

participação efetiva do receptor-leitor na construção da obra artística.

Nesse sentido, ainda ancorados em Nascimento, entendemos que o que existe de

verdadeiramente ficcional num romance é “menos a definição do gênero ficção como oposto à

realidade, como mera ilusão, portanto, do que como impossibilidade de discernir os limites

entre ficção e realidade” (2010, p. 199). Nessa perspectiva, diz o autor, o “fictício do ficcional

reside na impossibilidade do limite absoluto, e não na natureza dos territórios demarcados

(ficção x realidade). A ficção está no limite e não nos territórios discursivos, nos gêneros”.

Temos aí, “a instável novidade da autoficção”, afastando-a da “identificação simplista entre

narrador e autor” (NASCIMENTO, 2010, p. 199).

Em Quarenta dias vemos estes limites serem transpostos. Entre o real e o ficcional,

temos Alice, uma espécie de flanêuse que, conforme Resende e David, “cria uma narrativa de

experimentação de outra vida social, tendo uma experiência identitária no encontro com a

cidade. A rua como espaço plural possibilita a observação do fluxo de pessoas” (RESENDE;

DAVID, 2016, p 20).

E, entre ficção e realidade, temos Maria Valéria Rezende e sua inclinação à flânerie,

ação que se justifica por sua posição no mundo, como ela diz, “excêntrica”, por meio da qual,

revela a escritora: “posso ver as coisas por um ângulo diferente que acho que ajuda minha

ficção, que é apenas mais um modo de compreender, meditar, refletir e falar da vida e de seus

sentidos (REZENDE; LOPES, 2006, p. 1). Um testemunho, poderíamos acrescentar à suas

palavras, depoimento que dá voz a essas mulheres, reais e imaginárias, e que permite a elas se

colocarem num constante recomeço, pintando a face do homem e da mulher contemporâneos

em forma de história por meio da atitude de flanar, afinal, como nos diz Alice, “isso quase

podia ser um resumo de qualquer vida quando começa, sair por aí, a ganhar o mundo, à toa”

(REZENDE, 2014, p. 92).

O poder de preservar: flanar como ato de luta do corpo feminino

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Saí andando, pensando em tudo o que ainda preciso escrever pra não sentir

mais aquele frio na barriga, aquele aperreio que me dá quando me vejo de

novo na rua, como se ela me agarrasse e não me quisesse mais largar,

arrastando-me, rua-rio de novo (REZENDE, 2014, p. 65).

Após retornar de suas andanças, Alice se sente impelida a escrever e o faz, para que a

rua, que a chama, se cale diante de sua voz. Ela registra aquilo que seu corpo escreveu durante

os quarenta dias de andanças, sem rumo, como que levada pela correnteza. Compreendemos,

diante do estudo aqui desenvolvido, que a escritora Maria Valéria Rezende constrói sua

personagem como uma espécie de flanêuse.

Para compreender como essa particularidade atua de forma direta no desenvolvimento

da personagem, permitindo sua experiência nas ruas e sua criação nas letras, devemos

convidar para destas linhas participar algumas ideias que permeiam a figura dos flâneurs

baudelairiano e benjaminiano; aquelas que podem nos auxiliar na busca pela compreensão

deste multifacetado flâneur contemporâneo concebido por Valéria Rezende.

No texto intitulado “O pintor da vida moderna”, o escritor francês Charles Baudelaire

(1821-1867) vai tratar do artista de sua época por meio de um ensaio sobre o pintor

Constantin Guys (1802-1892), perfil no qual louva o gênio criador. A qualidade de criar, para

ele, só é desenvolvida por meio da experiência da multidão. Diz Baudelaire:

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos

peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito

flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência

no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar

fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o

mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns

dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados

imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O

observador é um príncipe que frui por toda parte do fato de estar incógnito

(1996, p. 20-21).

Ora, nada mais próximo da atitude de Alice do que a descrição acima exposta. Embora

sua andança parta de uma crise, de um sentimento de não-pertencimento daquela realidade de

invalidez vivida e do apagamento de sua voz, ao sair nas ruas a personagem toma fôlego, se

alimenta e se revigora a partir e do observado; sente-se, ao mesmo tempo, parte daquela

massa de andantes e outsider em seu meio. Nesse sentido, fixa residência nas ondas da rua-rio

que a levam para outras paragens.

E nada mais representativo da autora Valéria Rezende, do que o epíteto baudelairiano

“pintor da vida moderna”, mas com uma razoável conversão: ela pinta em seus textos, narra

em suas obras a figura do ser humano (homem e mulher) contemporâneo, observado em sua

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peregrinação, experimentado durante seu flanar por anos de missão em meio a multidões no

Brasil e fora de seu país.

Podemos depreender, assim, que sua literatura é construída com base na experiência

da flanêurie, prática assumida por alguns de seus personagens. Acerca dessas reflexões, diz

Lincoln Nascimento Cunha Júnior, em seu artigo “Walter Benjamin e a modernidade em

Baudelaire”:

O poeta como homem de criação, assim como “O Pintor da Vida Moderna”,

não se contenta apenas em observar a cidade, a multidão ou as mudanças

sociais, mas, com essa observação, age como um construtor. Ele não copia o

que vê, mas guarda as impressões e, no momento de criação, usa-as para

criar uma realidade que está por trás da realidade percebida (2012, p. 26).

Nesse âmbito, Cunha Júnior convida o crítico literário judaico alemão Walter

Benjamin (1892-1940) para interpor-se em suas reflexões – e por extensão, nas nossas –

indicando que em seu ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, ele localiza também o

poeta francês como um apaixonado pela multidão. O crítico nos revela que o poeta uruguaio

Jules Laforgue (1860-1887) disse que Baudelaire teria sido o primeiro a falar de Paris “como

um condenado à existência cotidiana na capital”. E completa:

Teria podido dizer também que foi o primeiro a falar do ópio que conforta

este – e somente este – condenado. A multidão não é apenas o mais novo

refúgio do proscrito; é também o mais novo entorpecente do abandonado. O

flâneur é um abandonado na multidão. Com isso, partilha a situação da

mercadoria. Não está consciente dessa situação particular, mas nem por isso

ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o indeniza por

muitas humilhações (BENJAMIN, 1994, p 51).

Por este ângulo, encontramos na pesquisa de Sérgio Roberto Massagli, intitulada

“Homem da multidão e o flâneur no conto ‘O homem da multidão’ de Edgar Allan Poe”, que

nas ruas da urbe “o flanêur constata que o homem moderno é vitimado pelas agressões das

mercadorias e anulado pela multidão, estando condenado a vagar pela cidade como um

embriagado em estado de abandono. É essa angústia que o flanêur representou no século

XIX” (MASSAGLI, 2008, p. 56).

E o flâneur de nosso século? Quais traços Alice guarda deste flâneur, figura do

homem moderno, quais características que a levantam como uma autêntica flanêuse de nossos

tempos? Certamente ela se afasta da simples atitude que Benjamin preconiza como sendo de

todo flâneur, “a fazer botânica no asfalto” (1994, p. 34). Mas, de certa forma, se aproxima da

figura descrita por Baudelaire: “esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre

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viajando através do grande deserto de homens” que “tem um objetivo mais elevado do que o

de um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância.

Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade” (BAUDELAIRE, 1996, p.

24).

Em suas andanças no também grande deserto de almas, Alice busca compreender a

sociedade contemporânea e sua negligência frente a mulheres como ela. Por isso, Alice vaga,

flana pela cidade, segundo Benjamin, “autêntico chão sagrado da flanêurie” (apud

MASSAGLI, 2008, p.55). Dentro deste ponto de vista, nos coloca Massagli:

O flanêur, portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes,

através de cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato,

através de suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser

lido, um objeto de investigação, uma floresta de signos a serem

decodificados – em suma, um texto (2008, p.57).

Alice, ser migrante, mulher em deslocamento, procura justamente ler a cidade que se

apresenta diante de si. Sim, a metrópole é para ela um texto a ser lido, mas também um texto a

ser reescrito em forma de romance; atitude que devolve, assim, seu lugar no mundo, seu corpo

e seu poder de preservar sua história em palavras por meio da criação. E sobre ela (sua

trajetória em forma de narrativa) diz Alice:

Já não sou capaz de reproduzir assim, detalhadamente, em sequência quase

exata, os caminhos que percorri depois que me soltei de uma vez, à deriva de

corpo e alma. Esses já não eram propriamente caminhos, eram sucessivos

buracos, frestas, rachaduras na superfície da cidade pelas quais eu ia

passando de mundo em mundo, ou era vagar por mundo nenhum...

(REZENDE, 2014, p. 102).

Esta descrição do seu caminhar revela-o como algo insano, mas, sendo errante, sua

experiência voltada ao flanar parece devolver sua sanidade. Torna-se, assim, observadora

privilegiada, tal como a figura do errante, do flâneur em Baudelaire, destacado por Benjamin

“como aquele que conseguiu conservar em si a capacidade de olhar, de observar, de perceber

o novo nas coisas mesmas” (CUNHA JUNIOR, 2012, p. 27). Emergida desse processo, diz

Alice: “voltei, assim, à superfície ainda por explorar. Suas rachaduras já as conheço todas e

não esqueço” (REZENDE, 2014, p. 245). Nesse contexto, acrescentamos as palavras de

Benjamin, que poderiam se dirigir a Alice ou a Valéria Rezende:

Seu olho aberto, seu ouvido atento, procuram coisa diferente daquilo que a

multidão vem ver. Uma palavra lançada ao acaso lhe revela um daqueles

traços de caráter que não podem ser inventados e que é preciso apreender ao

vivo. [...] A maior parte dos homens de gênio foram grandes flâneurs, mas

flâneurs laboriosos e fecundos. Muitas vezes, na hora em que o artista e o

poeta estão menos ocupados com sua obra é que eles estão mais

profundamente imersos (apud CUNHA JUNIOR, 2012, p. 28).

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No terreno destas reflexões benjaminianas, encontramos ambas as mulheres neste

estudo esmiuçadas: autora-escritora e personagem-autora apresentam sua genialidade, estão

imersas no mundo do flanar, por isso preservam sua existência enquanto

observadoras/narradoras do sensível, absortas no mundo do narrar, no prazer de escrever.

Assim, nos falam, elas, por meio da persona Alice: “Eu teria continuado, talvez,

indefinidamente, naquela vida transitória que já nem me lembrava direito por onde nem por

que tinha começado. [...] Vinha arrastando os pés de cansada, mas teimosa, a andarilha urbana

entranhada em mim” (REZENDE, 2014, p. 241). Contam-nos, elas, pelas mãos de Rezende:

[...] assimilavam-me como uma a mais entre eles, e eram tantos!, aves

migrantes de todas as espécies, perdidas do bando, cansadas ou extraviadas a

meio do caminho, esperando sob sol, chuva e sereno a volta do bando que as

resgate?, recusam o zoológico, não se deixam aliciar pela comida fácil

oferecida, medo de não ver a revoada ou de não ser encontradas quando o

bando passar de volta?, preferem o ar livre, mirando o céu, à procura dos

seus, ou desde o chão, deixando passar os bandos rasteiros nos quais não se

reconhecem (2014, p. 237-238).

Desse modo, como pássaros migratórios, essas mulheres percorrem o mundo, buscam

existir e resistir enquanto textos, depoimentos, escritas de si no feminino.

Existir-Resistir: as escritas de si no feminino

Quarenta dias. Atravessei a geena. Acabo de sair da quarentena. Não

planejei nada, caí lá sem querer, sem me dar conta de que aquilo podia ser

a barca do inferno. [...] O único jeito possível de livrar-me deles, expulsá-

los do espaço que ocupam dentro de mim e recuperar minha própria

presença é reduzi-los a tinta e papel e encerrá-los numa gaveta, ou tacar

fogo pra sempre. Será? (REZENDE, 2014, p. 18).

No percurso deste estudo, avançamos em direção à escrita – podemos dizer – feminista

de Maria Valéria Rezende; fomos, assim, conduzidos por reflexões que, no campo real e

ficcional, nos mostraram os obstáculos enfrentados por aquelas que se lançam e/ou se

lançaram ao ato de escrever, a um fazer fundado na escritura genuinamente de autoria

feminina. Nesse caminho, fantasmas já conhecidos foram revisitados e reavivaram velhas

discussões, assentaram novos debates; um texto relido quase sempre é um novo texto, pois vai

ao encontro de um sujeito alterado.

Assim, gostaríamos de, nestas considerações finais, aludirmos ao artigo “Profissões

para mulheres” da escritora britânica Virgínia Woolf (1882-1941). Entendemos que, ao

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refletir a condição da mulher no início dos anos 30, a escritora acaba por apontar alguns

demônios disfarçados de anjos que ainda insistem em tocar suas trombetas na

contemporaneidade. Dessa forma, nos parece que o texto supracitado fornece ganchos para

que este breve relato indique, ancorado nas palavras dessa escritora, a permanência da luta

feminista no corpo, voz e ação de outras também escritoras, como a que aqui, juntamente com

sua obra, foi discutida, refletida e compreendida à luz de conceitos tão presentes nos estudos

literários. Diz Woolf:

“O Anjo do Lar”. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me

atormentava tanto que no fim matei essa mulher. [...] quando fui escrever,

topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página;

ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Se eu não a matasse, ela é que me

mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. (2013, p. 11-13).

Este fragmento, retirado de um discurso escrito no início dos anos 30 por Woolf que

fala sobre o papel da mulher na sociedade e sua luta para se afirmar profissionalmente, mostra

o quanto ainda é necessário às escritoras e suas leitoras matarem aquelas mulheres forjadas

pela sociedade, duplo que insiste em fazer frente como no caso de Alice em Quarenta dias.

De lá para cá, sabemos, a guerra persiste.

O Anjo do Lar, aquela menecma da escritora, mulher liquidada por Woolf, hesitou a

aparecer nos textos de outras narradoras nestes mais de oitenta anos. E, hoje, o coração da

escrita de artistas como Maria Valéria Rezende e de outras contemporâneas, representativas

das causas femininas, como Amara Moira ou Natália Borges Polesso, está preservado; antes,

estas profissionais da escrita arrancam seus corações e o fundem ao âmago, ao núcleo de seus

livros. Estas mulheres desdobráveis, Freira e Velha, Travesti e Puta, Escritora e Lésbica,

tocam – ou melhor, pegam, apertam, espremem – em suas obras algo que para Woolf, naquele

momento, era muito caro (e que ainda o é), cara e coroa, os dois lados da mesma moeda, do

esforço e da estima, do sofrido, mas válido, do amado e árduo, do espinhoso, mas preferido,

algo precioso enquanto matéria, experiência, paixão: o corpo.

Falamos aqui do corpo plural, do corpo que escreve e inscreve a luta dessas (das)

mulheres na literatura brasileira contemporânea, que precede sua voz. Escritoras que

entendem a necessidade de discutir, tal como sua companheira britânica advertia em seu texto,

metas e fins pelos quais as mulheres lutam, pelos quais, diz Woolf, “combatemos esses

obstáculos tremendos” e que precisam (as metas) “ser questionadas e examinadas

constantemente” (2013, p. 18).

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Quais obstáculos se encontram no caminho das escritoras (femininas, feministas,

fêmeas) hoje? Os mesmos de quando Woolf proferiu seu discurso para a Sociedade Nacional

de Auxílio às Mulheres, em 21 de janeiro de 1931? Alguns – muitos – certamente resistem. E

devem ser refletidos, compreendidos, pois estão introjetados em um corpo-mente que jaz

numa cultura patriarcal, como era o de Woolf.

[...] quando comecei a escrever, eram pouquíssimos os obstáculos concretos

em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitável e inofensiva. O

riscar da caneta não perturbava a paz do lar. [...] Claro que foi por causa do

preço baixo do papel que as mulheres deram certo como escritoras, antes de

dar certo nas outras profissões (WOOLF, 2013, p. 10).

Quando o “Anjo” do poema de Coventry Patmore visitou Woolf, ela se deu conta de

que sua escrita, conforme se desprendia enquanto ato artístico-político, nada tinha de

inocente. E que o papel, imaculada materialidade alva, suporte banal, pronto para receber as

tintas de sua pena, se tornaria, também, corpo, rasgado pelas palavras, simulacro da carne

fêmea, depoimento de um sujeito feminino pós-colonizado, onde as diferenças dão lugar à

sororidade, pois, hoje, a denúncia presente na canção de protesto de Seu Jorge, Marcelo Yuca

e Wilson Capellette, se faz urgente, se transfigura em outras lutas. Dessa forma, se há séculos

“a carne mais barata no mercado é a carne negra”, ampliamos o refrão de “A carne” (2003),

dando voz às autoras/escritoras/mulheres aqui citadas. Então, diria Valéria Rezende: A carne

mais barata no mercado é a carne velha! Lançaria Moira: A carne mais barata no mercado é a

carne puta! Bradaria Polesso: A carne mais barata no mercado é a carne lésbica! Clamariam,

todas, mulheres, escritoras, personagens: A carne mais barata no mercado é a carne fêmea!

Hoje, como ontem, o corpo da mulher enquanto narrativa, escritura de si, paga um

preço alto: o preconceito. E, no caminho para matar os fantasmas que rondavam Woolf e

continuam patrulhando as mulheres, as penas de outrora não são mais utilizadas; atualmente,

as canetas são armas que rasgam caminhos, fendam o papel, cortam sua carne; os dedos são

martelos que golpeiam o teclado e cravam palavras.

Fincam o verbo, lutam contra o preconceito e, assim, contam histórias: seja a de Alice

e sua “carne velha”, esquecida, que vaga, flana e vê as mazelas do mundo, mas que dá voz à

carne envelhecida e à crítica da freira e escritora Maria Valéria Rezende em sua obra

Quarenta dias; seja a de Amara Moira e sua “carne puta”, uma travesti que se percebe

escritora ao tentar ser puta e puta ao se colocar no ato de escrever, reflexão em forma de livro

que explicita sua condição em E se eu fosse puta (2016); seja nas diversas personagens

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homossexuais de Natalia Borges Polesso, e a “carne lésbica” da qual são feitas – incluindo a

da própria autora – que, como a de todos, sente o medo, o gozo e as transformações, sujeitos

de nossa época que o são, personagens deste tempo e lugar retratados nos contos reunidos em

Amora (2015).

Oxalá pulule estudos sobre a escritura dessas mulheres: mulheres que escrevem sobre

mulheres; mulheres que escrevem sobre si; as escritas de si que falam das escritas daquelas

mulheres: fecundo mise en abyme!

Em 1931, para Woolf “matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora”.

Aquele foi morto, mas uma legião estaria por vir. “Na verdade, penso eu, ainda vai levar

muito tempo até que uma mulher possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um

fantasma que precise matar, uma rocha que precise enfrentar” (2013, p. 17). Mais de 85 anos

depois de proferidas suas palavras, podemos dizer que a luta dessas mulheres, escritoras,

velhas, freiras, putas, travestis, lésbicas, fêmeas, tal qual uma senhora centenária, adquiriu

sabedoria, acumulou conhecimento e venceu seu temor. Essa luta assume sua maturidade, e

deve ser levada à frente, como Alice e Valeria Rezende fizeram, sem retroceder, assumindo

seu destino conjunto de narrar-flanar, e das quais emprestamos a voz-corpo para este texto

finalizar: “na verdade o que eu tinha prometido era não ceder a nada nem a ninguém, [...] e,

como ouvi tantas vezes meu avô dizer, palavra de gente honesta é uma bala, uma vez

disparada não volta atrás” (REZENDE, 2014, p. 244).

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