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NARRAR-FLANAR: A BUSCA PELA EXISTÊNCIA E RESISTÊNCIA DA VOZ-
CORPO FEMININA EM QUARENTA DIAS
Álvaro Perini Canholi1
Resumo: Em Quarenta dias, romance da escritora brasileira Maria Valéria Rezende, vemos a
presentificação da história de Alice por meio de seu relato, ficção que é narrada dentro de
outra ficção, mas que, antes, nasce da realidade patente da autora: mulher, escritora, velha
que, na atitude de flanar, acaba por encontrar sua identidade. Este estudo visa, por sua vez,
embrenhar-se por dois pontos que parecem funcionar como elementos estruturantes do
romance, e que acenam a estas mulheres – escritora-autora e personagem-escritora –, a
perspectiva da edificação de um mundo (real-ficcional) onde é possível impor seus destinos: o
mundo do narrar e o mundo do flanar. Nossas reflexões serão conduzidas pela ideia de escrita
metaficcional rezendiana, passando pelo diálogo que se forma por meio do processo de
alterficção entre autor, narrador, personagem e leitor, e por considerações a respeito da figura
dos flâneurs baudelairiano e benjaminiano, os quais nortearão a busca pela compreensão deste
multifacetado flâneur contemporâneo concebido por Valéria Rezende.
Palavras-chave: flâneur; metaficção-alterficção; Quarenta dias.
[...] Em cada gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho na mira,
prontos a descer pela caneta íngreme,
cercar o cervo e apontar as armas.
Eles esquecem que aqui não há vida de verdade.
No preto-e-branco vigem outras leis.
Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser
e poderá ser dividido em pequenas eternidades,
cada uma com chumbo suspenso em pleno voo.
Aqui nada acontecerá sem meu aval.
Contra minha vontade, nem uma folha cairá
e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo.
Então existe um mundo
onde eu possa impor o destino?
Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais?
Uma existência que, a meu comando, não terá fim?
A alegria de escrever.
O poder de preservar.
Vingança de uma mão mortal (SZYMBORSKA, 2007).
1 Mestrando em Letras | Estudos Literários na Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail:
10
Em “A alegria de escrever”, poema de Wislawa Szymborska (1923-2012), a escritora
polonesa, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996, fala da tarefa do poeta, árdua,
porém libertadora: ter o poder nas mãos e, assim, poder escrever, traçar seu destino e
preservar sua presença. Ora, nada mais revelador e representativo no que toma o fazer das
escritoras a ela contemporâneas do que suas palavras, as quais se direcionam – de maneira
inspiradora – ao início deste breve estudo.
Nesse grande e profícuo colóquio de vozes femininas na literatura atual, encontramos
a brasileira Maria Valéria Rezende, escritora-transgressora, tal como a personagem que cria e
a quem empresta seus contornos: Alice, narradora-escritora de Quarenta dias (2014).
Ganhadora do Prêmio Jabuti 2015, sua obra traz uma evidente crítica social, que denuncia a
pobreza existente no sul do país. Segundo Resende e David – em um dos ainda poucos
estudos destinados a esse romance e a essa autora –, seguindo uma direção política, Valéria
Rezende “denuncia as condições de vida do meio urbano, a cidade dividida entre ricos e
pobres, fazendo tanto a descrição do espaço físico quanto do espaço social em que circulam as
figuras humanas que cruzam seu caminho” (2016, p. 15).
No excerto supracitado, encontramos dois temas muito aludidos nas diversas
entrevistas e matérias jornalísticas centradas na obra aqui tratada: a cidade (foco daquele
estudo) e a miséria. Mas, para além desses sujeitos inequívocos, temos outros, não tão
evidentes, latentes nesse romance que enfoca, primordialmente, o universo feminino. A
história de Alice se presentifica por meio de seu relato, ficção que é narrada dentro de uma
ficção que nasce da realidade patente da autora: mulher, escritora, velha, que vê as mazelas do
mundo por meio de suas andanças como missionária e militante das causas sociais, e que, na
atitude de flanar, acaba por encontrar sua identidade.
Assim, Quarenta Dias se levanta como corpus deste estudo, que visa embrenhar-se
por dois pontos que parecem funcionar como elementos estruturantes do romance, e que
acenam a estas mulheres – escritora-autora e personagem-escritora –, a perspectiva da
edificação de um mundo (real-ficcional) onde é possível impor seus destinos, como
encontramos no poema de Szymborska.
Dessa forma, ainda aportados na epígrafe desta introdução, temos como eixo de nossa
análise: 1) o mundo do narrar, onde há a alegria de escrever (alegria enquanto deleite, gozo,
glória) que visa garantir a existência da voz feminina; 2) o mundo do flanar, resistência do
corpo enquanto agente que escreve e inscreve o poder de preservar a identidade de uma
escritora, mulher madura, detentora de seu destino.
11
Sendo assim, ao conduzirmos nossas reflexões nestes dois pontos indicados, o narrar
e o flanar, o faremos tangenciando-as (as reflexões) pela ideia de representação de traços da
escritora Maria Valéria Rezende na narradora-escritora Alice. Desse modo, temos a velhice
como alcunha da protagonista, fardo que a leva a uma condição de invalidez e imprime um
apagamento de sua voz – realidade, talvez, experimentada ou muito presenciada por Valéria
Rezende; a fuga e o espelhamento dessa mulher, que se sente inválida, em outros corpos,
também sem voz – aqueles que estão à margem da sociedade, os esquecidos, os pobres, os
doentes, os loucos, os necessitados, as crianças, os que vagam, sem rumo; a necessidade de
vagar tanto da personagem, quanto da autora, o assumir-se na figura do ser errante, aquele
que perambula, que vagabundeia, que flana pelas ruas; e o sentir-se impelida a vagar para se
reencontrar e, assim, se entregar ao encontro com a narrativa, tábua de salvação dessa(s)
mulher(es).
É manifesto: Valéria Rezende, a errante, fala por meio de Valéria Rezende, a escritora,
que discorre sobre Alice, a andante, que se coloca no papel de narradora para contar sua
jornada e, assim, revelar a travessia da autora que a criou. Entendemos que é este fluxo
narrativo, este processo de mise en abyme, assim definido pelo escritor francês André Gide
(1869-1951), que torna o romance rezendiano tão interessante, conduzindo-o ao status de obra
palimpséstica. É tangível: há outros sentidos por trás dos mais evidentes na obra de Valéria
Rezende.
Por fim, corroboramos e conduzimos a outras instâncias a ideia expressa pelas
pesquisadoras aqui citadas acerca do caminho da protagonista, presente no artigo “A cidade e
a escrita do corpo em Quarenta dias”, assinalando também, por ora, a importância de serem
desenvolvidos estudos que empreguem esta autora brasileira e sua rica obra. Nele
encontramos sustentação para as linhas que constroem este artigo:
Diante das relações familiares esfaceladas, Alice não se aniquila. Enfrenta
seu drama, vivenciando a liberdade das ruas e a liberdade do fazer
poético. O andar e o narrar revigoram a força da vida e a força das
palavras que são tão frequentes na literatura de Maria Valéria Rezende
(RESENDE; DAVID, 2016, p 28, grifo nosso).
Sim, ao vivenciar sua liberdade, a personagem atesta seu valor enquanto ser feminino,
como se dissesse: Eu existo: sou mulher, sou corpo maduro, mas sou criança na andança. Eu
resisto: sou mulher, sou voz que se lança, escrevo meu destino como num diário de menina,
narro minha vingança. Após quarenta dias no deserto, Alice empresta a mão mortal de
Valéria Rezende, e imortaliza a peregrinação da mulher em busca de si e de seu fazer poético.
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A alegria de escrever: narrar como ato de presença da voz feminina
Ninguém vai ler o que escrevo, mas escrevo. [...] quero mesmo é o
manuscrito, deixar escorrer tudo direto do corpo pra caneta e pro papel
(REZENDE, 2014, p. 18).
A narrativa presente em Quarenta dias parte de uma espécie de solilóquio da
protagonista, iniciando-se após o retorno de Alice das ruas de Porto Alegre, na capital gaúcha,
onde se pôs a flanar por quarenta dias. Ao se entregar à atitude de escrever, ela se liberta
daquela Alice construída por meio de reminiscências no início do romance; personagem-
inicial desenhada pela personagem-final que, no processo de reconstituição de sua busca,
funde-se à escritora na qual se transformou. Temos aqui a primeira de muitas aproximações
possíveis desta Alice escritora com a escritora que a concebe, Valéria Rezende. São mulheres
escrevendo sobre mulheres; mulheres que se encontram num processo de transformação.
Esta transmutação que ocorre por meio da dialética escritora/personagem-
personagem/escritora é construída por meio da jornada de Alice, ser dual que, ao refletir,
expõe as reflexões da autora do romance. Conforme encontramos em Resende e David,
amparadas nos escritos de Linda Hutcheon (2013), Valéria Rezende “reflete sobre seu fazer
literário ao criar uma metaficção (ficção sobre a ficção), numa postura autoconsciente e
autorreflexiva” (2016, p. 23).
Ao escrever para presentificar sua voz, expondo, no seu caderno, o fazer poético de
Valéria Rezende, Alice conta sua história. Ela indica, por meio de uma narrativa reflexiva e
entrecortada, o processo de privação de sua independência e de perda da sua inclinação à
ação, sucumbindo a uma submissão não somente em relação à filha, mas a tudo e a todos,
assumindo sua inércia. Vemos aqui um processo que vai de uma Postura Ativa (Alice jovem,
mãe-solteira, profissional dedicada e independente) a uma Postura Passiva (Alice aposentada,
futura avó, acomodada, submissa e sem voz).
Pois bem, diferente do que uma leitura superficial do livro de Valéria Rezende pode
fazer supor, Alice não se configura como uma mulher ingênua, perdida, deixada à deriva em
uma cultura diferente da sua, quando se muda da cidade natal. É possível compreender, por
meio de diversas marcas no texto, que seu capital cultural (professora, leitora voraz, poliglota)
a distancia dessa imagem naïf. O que a torna frágil diante dos acontecimentos é o estágio em
que se encontra na sua vida: estar velha, com toda a força pejorativa que a palavra pode trazer.
É justamente esta imagem da velhice presente na sociedade que a conduz a uma virtual
condição de inválida, levada ao extremo da realidade quando de sua andança.
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Nesse caminho, temos o espelhamento, a projeção dessa mulher vinda do nordeste –
mais um “agravante” à sua condição –, naqueles seres que ela encontra na rua: os inválidos da
urbe. Na busca por compreender essa situação de torpor ou comodismo na qual ela se
encontra mergulhada, a personagem vai se revelando e mostrando, assim, as reflexões de sua
autora, conduzindo sua crítica na ideia da mulher intelectual e independente que perde – ou
está constantemente ameaçada a perder – sua voz diante de uma visão patriarcal, falocêntrica
da sociedade, de homens e mulheres que adulteram a ideia da escrita feminina, da fêmea
madura e independente: dela é arrancado o desejo de escrever, a vontade de trabalhar e a
independência de caminhar.
Aliás, é revelador no texto a constatação de que sua voz é apagada pela voz de outras
mulheres. Entre tantas repreensões, a filha diz: “O que é isso, mãe? Parece que virou uma
velhota sentimental, com esse apego a coisas completamente ultrapassadas” (REZENDE,
2014, p. 07). A partir daí, Alice narra o início pontual de seu processo de perda de identidade:
o despojamento de sua casa, a venda de seus pertences e a rendição às investidas daquela
mulher tão parecida com seu marido, há tanto ausente, aquela filha distante de seus traços,
mas com a qual aceita seguir rumo a um destino conhecido, porém mal pressentido: Porto
Alegre. Entretanto, a capital gaúcha não parece ser o maior problema: alguma coisa em João
Pessoa já a tirava de seu controle.
Em meio à sua passividade, “apareceu o caderno”. E, nesse caminho, mais uma voz
feminina, a da prima, insiste em censurá-la: “Que leseira, Alice!, não vai me dizer que você
vai recomeçar, lá no Sul, com essa besteira de dar aula o dia todo para precisar de um
caderno velho, vazio e grosso” (REZENDE, 2014, p. 09). Entre poucos pertences, ela,
também velha e vazia, salva do saqueio sofrido o curioso livrete rosa, em espiral, com a
imagem da boneca Barbie na capa:
Sei lá!, a isso, sim, eu resisti até o fim, agarrei-me com o caderno como uma
boia, vai ver que foi só mesmo pra dizer Não a alguém, fincar pé contra mais
uma vontade alheia querendo tomar o controle daquela minha vida, já
escapando feito água usada pelo ralo desde que me decidi, ou cedi?, a pedir
o raio da segunda aposentadoria. Patética tentativa de resistência, mas,
afinal, tinha sentido, agora acho. O caderno veio na minha bagagem por pura
teimosia, mas com um destino oculto, tábua de salvação pra me resgatar do
meio dessa confusão que me engoliu. Talvez (REZENDE, 2014, p. 09).
Aqui reside a importância desse primeiro relato: esse caderno vai servir como meio,
suporte, materialidade que representa sua nova postura: a de escritora de sua vida, detentora
de sua história, conhecedora de um mundo onde ela poderá impor seu destino. Um destino
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diferente daquele suposto pela prima, imposto pela filha e referendado pela sociedade onde
estão inseridas estas mulheres, a qual forja o papel cobrado de Alice: deixar sua vida de lado,
se render à “bonificada” aposentadoria e dedicar-se aos filhos de sua filha e, nessa trilha, aos
filhos dos filhos de sua filha, algo concebido por um discurso machista como natural a uma
mulher de mais de 50 anos; pronta e apenas pronta, tão-somente pronta para ser avó.
Temos aí um cenário conhecido, vivido pela autora Valéria Rezende. Sobre isso, diz:
[...] fui me dando conta de toda uma problemática que estava surgindo para
mulheres da minha geração, que foram para a rua trabalhar, criaram os
filhos, deram um duro danado, adiaram uma porção de projetos e, de
repente, quando chega a hora de aposentar, elas são convocadas para serem
avós profissionais porque os filhos têm suas carreiras e nenhuma disposição
de fazer sacrifícios (2014, s/p).
Eis o pano de fundo do sacrifício encarado por Alice: Elizete desmantelando sua vida,
Norinha transportando-a para outro lugar; sua morada num jogo de monta-e-desmonta, como
numa casa de bonecas. Suas vontades desrespeitadas, marionete que o é: seu corpo, à maneira
de uma Barbie, sem desejos, sem escolhas, sem reações, cedendo às mãos pesadas do
manipulador.
Eis sua remição: o caderno, espelho onde ela se vê refletida, prenúncio daquela
juventude que não lhe cabe mais, revelador da face de boneca sorridente, silenciosa e artificial
que ao seu espírito se acomodou; reflexo que ela quebrará com as palavras, com o “limbo
tranquilizante da escrita desenfreada” (REZENDE, 2014, p. 59). O “destino oculto” do
caderno parece ser este: ponte que liga sua vida passada e sua vida futura, testemunha de um
presente que o é porque se encontra vivo em sua memória e que só será eternizado quando
colocado em palavras naquele espaço, infantil como ela, criança solta no mundo que cresceu
durante quarenta dias a presenciar as mazelas da vida, e que renasce no corpo e na mente de
uma mulher de cinquenta e poucos anos, agora, talvez, mais forte, devolvida à ação, senhora
do seu caminho, dona do seu destino.
Dessa forma, nos parece certo: o sacrifício de Alice é necessário para que seja
conduzida uma transformação do sujeito. Inconscientemente, ela se coloca nesse processo,
buscando algo além de uma compreensão de sua relação com a filha; antes, ela busca um
retorno a um estado primitivo, ingênuo, um renascimento. E este renascimento,
compreendemos por meio deste estudo, se da pela escrita do seu corpo em ação nas ruas, um
corpo que vaga, e pelo fazer assumido, desde o início da obra, de narrar; a escrita como
libertação, como purgação e como elevação de um novo ser. Um ser que reverdece após
15
“quarenta dias no deserto, quarenta anos” (REZENDE, 2014, p. 18), vivenciado a paixão,
como na quarentena enfrentada por Jesus Cristo em seu retiro.
Assim, podemos depreender que o que ela realiza como obra não é um diário, mas sim
a narração de uma história que lhe proporciona a experiência tão adiada, tardia, de ser
escritora (como Valéria Rezende, que estreia na literatura aos 60 anos). O romance escrito por
Alice nasce desta experiência do narrar. Sim, pois para Valéria Rezende “a literatura nasce
como narrativa”, o que acaba por se configurar como elemento imprescindível ao seu fazer,
explorando-o em seus livros e, assim, “realçando a importância do ato de contar histórias,
posto que por várias vezes suas personagens sejam também contadoras de história”
(RESENDE; DAVID, 2016, p 09).
É neste sentido que vemos a ocorrência do mise en abyme já citado; suas narrativas
compõem-se de outras narrativas. Elas nascem daquilo que, para a autora, surgiu como
missão: a peregrinação.
Mas como surge a metaficção presente na obra, que para nós extravasa o espaço
ficcional, se ancorando na experiência real da autora? Segundo encontramos em entrevista
concedida à jornalista Luisa Gadelha, no ano de 2015, logo após receber o Prêmio Jabuti pelo
romance Quarenta dias, Valéria Rezende define sua obra como “ficcio-biografia”, ao que ela
explica: primeiro surgiu a história, a ficção, de certa forma pronta em sua cabeça; depois, veio
a vontade de se lançar a essa experiência em Porto Alegre, realizando, assim, uma espécie de
laboratório. Em outra entrevista, concedida à jornalista Maria Fernanda Rodrigues no ano de
2014, quando do lançamento de seu livro, Valéria Rezende explica o processo:
Por 15 dias fiz basicamente o que Alice fez. Perguntei para todos onde eu
poderia encontrar Cícero Araújo, que era invenção minha, e ia atrás dele.
Voltava para casa à noite, mas cheguei a dormir em rodoviária, aeroporto e
hospital, onde tinha abrigo [...]. Nessas andanças, percebi que metade do
mundo é feita de gente sumida e a outra metade está procurando quem sumiu
– não apenas aqueles que foram para a rua, mas também os que não
quiseram mais dar notícia (REZENDE, 2014, s/p).
Apesar da nomenclatura empregada por Valéria Rezende, definindo sua obra como
“ficcio-biográfica”, compreendemos que temos aí um processo de autoficção ou, conforme
encontramos no estudo de Evandro Nascimento intitulado “Matérias-Primas: Da
Autobiografia à Autoficção – Ou Vice-Versa”, um processo de “alterficção”2. Nesse sentido,
2 Sobre o termo, diz nascimento (2010, p. 192): “Estou convencido de que toda experiência do eu passa pelo encontro
com a alteridade, de forma estrutural e irredutível. ‘Eu’ só existe porque o outro/a outra (que pode ter inúmeros
nomes: mundo, universo, natureza, Deus, pai, mãe, família, sociedade, acaso, lei, norma, etc.) lhe deu existência. [...]
16
corroboramos o autor: julgamos este processo “fascinante”, já que ele integra-se da “ausência
de compromisso com a verdade factual, por um lado”, e da “simultânea ruptura com a
convenção ficcional, por outro” (2010, p. 196), algo que, ele adverte, não deve ser reduzido a
um gênero.
O interesse da auto ou da alterficção é romper as comportas, as eclusas, os
compartimentos dos gêneros com que aparentemente se limita, sem
pertencer legitimamente a nenhum deles. Ela participa sem pertencer nem ao
real nem ao imaginário, transitando de um a outro, embaralhando as cartas e
confundindo o leitor por meio dessas instâncias da letra (NASCIMENTO,
2010, p. 196).
Este jogo entre realidade e ficção é algo muito perceptível na obra de Valéria Rezende.
O entrelaçamento do real e do ficcional permeia todo o livro, mesmo antes do início da
narração, já na dedicatória que a escritora concebe, oferecendo sua obra “a todos os escritores
de quem furtei palavras ao longo dessa travessia” (2014, p. 05), jornada assumida por sua
personagem que, ao escrever, coloca estes escritores citados por Valéria Rezende, nas
epígrafes de seus capítulos confidenciados àquela muda Barbie, fragmentos que resumem ou
principiam as reflexões de Alice.
O ficcional começa aí, diz Nascimento: “Nessa tensão entre narrador, autor e
personagem, é que se insere a verdadeira ficção”, algo que para Barthes, segundo o autor, é a
ficção do leitor.
O leitor é convocado a intertrocar papéis com todas essas máscaras
ficcionais, atribuindo também algo de sua própria vida, sem o que a
literatura permanece letra morta. A vida de toda ficção depende do bios
leitoral, sem o qual nada acontece. Pois a autoficção só existe de fato como
efeito e não como um novo dogma de criação (NASCIMENTO, 2010, p.
199).
Sendo assim, a construção de sentidos se dá por meio de um diálogo entre obra e
leitor, o qual é instigado a participar ativamente da narrativa rezendiana, já que, de acordo
com Resende e David “[...] por se tratar de uma metaficção, o leitor é convocado e tem sua
tarefa a cumprir para a construção dos sentidos” (2016, p. 26). Dessa forma, estas autoras
citam outros exemplos de ações que devem ser assumidas pelo leitor:
[...] a escritora subverte as regras de pontuação e cabe ao leitor participar
também dessa subversão, para depreender as várias alternativas de
‘Eu’ é e sempre será outro, igual e diferente de si: esse diferimento vem da alteridade que nos habita. Tal é o primado
ético da existência: antes de mim o outro ou a outra que me deram vez e lugar. [...] Por esse motivo sempre preferi,
em vez do neologismo autoficção, um outro, um pouco mais estranho, o de alterficção [...] para marcar que tudo vem
do outro e a ele-ela retorna, malgrado a passagem necessária pelo eu”.
17
interpretação e, assim, ter a responsabilidade de organizar o texto literário. À
vista disso, na ficção contemporânea, tanto a escrita quanto a leitura são
fundamentais e complementares (2016, p. 26).
Estas particularidades relacionadas aos elementos formais da escrita metaficcional de
Valéria Rezende, bem como no diálogo que se forma por meio do processo de alterficção
entre autor, narrador, personagem e leitor, nos conduz à ideia de obra aberta, apresentada pelo
escritor italiano Umberto Eco (1932-2016) que, entre outras coisas, reflete acerca da
participação efetiva do receptor-leitor na construção da obra artística.
Nesse sentido, ainda ancorados em Nascimento, entendemos que o que existe de
verdadeiramente ficcional num romance é “menos a definição do gênero ficção como oposto à
realidade, como mera ilusão, portanto, do que como impossibilidade de discernir os limites
entre ficção e realidade” (2010, p. 199). Nessa perspectiva, diz o autor, o “fictício do ficcional
reside na impossibilidade do limite absoluto, e não na natureza dos territórios demarcados
(ficção x realidade). A ficção está no limite e não nos territórios discursivos, nos gêneros”.
Temos aí, “a instável novidade da autoficção”, afastando-a da “identificação simplista entre
narrador e autor” (NASCIMENTO, 2010, p. 199).
Em Quarenta dias vemos estes limites serem transpostos. Entre o real e o ficcional,
temos Alice, uma espécie de flanêuse que, conforme Resende e David, “cria uma narrativa de
experimentação de outra vida social, tendo uma experiência identitária no encontro com a
cidade. A rua como espaço plural possibilita a observação do fluxo de pessoas” (RESENDE;
DAVID, 2016, p 20).
E, entre ficção e realidade, temos Maria Valéria Rezende e sua inclinação à flânerie,
ação que se justifica por sua posição no mundo, como ela diz, “excêntrica”, por meio da qual,
revela a escritora: “posso ver as coisas por um ângulo diferente que acho que ajuda minha
ficção, que é apenas mais um modo de compreender, meditar, refletir e falar da vida e de seus
sentidos (REZENDE; LOPES, 2006, p. 1). Um testemunho, poderíamos acrescentar à suas
palavras, depoimento que dá voz a essas mulheres, reais e imaginárias, e que permite a elas se
colocarem num constante recomeço, pintando a face do homem e da mulher contemporâneos
em forma de história por meio da atitude de flanar, afinal, como nos diz Alice, “isso quase
podia ser um resumo de qualquer vida quando começa, sair por aí, a ganhar o mundo, à toa”
(REZENDE, 2014, p. 92).
O poder de preservar: flanar como ato de luta do corpo feminino
18
Saí andando, pensando em tudo o que ainda preciso escrever pra não sentir
mais aquele frio na barriga, aquele aperreio que me dá quando me vejo de
novo na rua, como se ela me agarrasse e não me quisesse mais largar,
arrastando-me, rua-rio de novo (REZENDE, 2014, p. 65).
Após retornar de suas andanças, Alice se sente impelida a escrever e o faz, para que a
rua, que a chama, se cale diante de sua voz. Ela registra aquilo que seu corpo escreveu durante
os quarenta dias de andanças, sem rumo, como que levada pela correnteza. Compreendemos,
diante do estudo aqui desenvolvido, que a escritora Maria Valéria Rezende constrói sua
personagem como uma espécie de flanêuse.
Para compreender como essa particularidade atua de forma direta no desenvolvimento
da personagem, permitindo sua experiência nas ruas e sua criação nas letras, devemos
convidar para destas linhas participar algumas ideias que permeiam a figura dos flâneurs
baudelairiano e benjaminiano; aquelas que podem nos auxiliar na busca pela compreensão
deste multifacetado flâneur contemporâneo concebido por Valéria Rezende.
No texto intitulado “O pintor da vida moderna”, o escritor francês Charles Baudelaire
(1821-1867) vai tratar do artista de sua época por meio de um ensaio sobre o pintor
Constantin Guys (1802-1892), perfil no qual louva o gênio criador. A qualidade de criar, para
ele, só é desenvolvida por meio da experiência da multidão. Diz Baudelaire:
A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos
peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito
flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência
no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar
fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o
mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns
dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados
imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O
observador é um príncipe que frui por toda parte do fato de estar incógnito
(1996, p. 20-21).
Ora, nada mais próximo da atitude de Alice do que a descrição acima exposta. Embora
sua andança parta de uma crise, de um sentimento de não-pertencimento daquela realidade de
invalidez vivida e do apagamento de sua voz, ao sair nas ruas a personagem toma fôlego, se
alimenta e se revigora a partir e do observado; sente-se, ao mesmo tempo, parte daquela
massa de andantes e outsider em seu meio. Nesse sentido, fixa residência nas ondas da rua-rio
que a levam para outras paragens.
E nada mais representativo da autora Valéria Rezende, do que o epíteto baudelairiano
“pintor da vida moderna”, mas com uma razoável conversão: ela pinta em seus textos, narra
em suas obras a figura do ser humano (homem e mulher) contemporâneo, observado em sua
19
peregrinação, experimentado durante seu flanar por anos de missão em meio a multidões no
Brasil e fora de seu país.
Podemos depreender, assim, que sua literatura é construída com base na experiência
da flanêurie, prática assumida por alguns de seus personagens. Acerca dessas reflexões, diz
Lincoln Nascimento Cunha Júnior, em seu artigo “Walter Benjamin e a modernidade em
Baudelaire”:
O poeta como homem de criação, assim como “O Pintor da Vida Moderna”,
não se contenta apenas em observar a cidade, a multidão ou as mudanças
sociais, mas, com essa observação, age como um construtor. Ele não copia o
que vê, mas guarda as impressões e, no momento de criação, usa-as para
criar uma realidade que está por trás da realidade percebida (2012, p. 26).
Nesse âmbito, Cunha Júnior convida o crítico literário judaico alemão Walter
Benjamin (1892-1940) para interpor-se em suas reflexões – e por extensão, nas nossas –
indicando que em seu ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, ele localiza também o
poeta francês como um apaixonado pela multidão. O crítico nos revela que o poeta uruguaio
Jules Laforgue (1860-1887) disse que Baudelaire teria sido o primeiro a falar de Paris “como
um condenado à existência cotidiana na capital”. E completa:
Teria podido dizer também que foi o primeiro a falar do ópio que conforta
este – e somente este – condenado. A multidão não é apenas o mais novo
refúgio do proscrito; é também o mais novo entorpecente do abandonado. O
flâneur é um abandonado na multidão. Com isso, partilha a situação da
mercadoria. Não está consciente dessa situação particular, mas nem por isso
ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o indeniza por
muitas humilhações (BENJAMIN, 1994, p 51).
Por este ângulo, encontramos na pesquisa de Sérgio Roberto Massagli, intitulada
“Homem da multidão e o flâneur no conto ‘O homem da multidão’ de Edgar Allan Poe”, que
nas ruas da urbe “o flanêur constata que o homem moderno é vitimado pelas agressões das
mercadorias e anulado pela multidão, estando condenado a vagar pela cidade como um
embriagado em estado de abandono. É essa angústia que o flanêur representou no século
XIX” (MASSAGLI, 2008, p. 56).
E o flâneur de nosso século? Quais traços Alice guarda deste flâneur, figura do
homem moderno, quais características que a levantam como uma autêntica flanêuse de nossos
tempos? Certamente ela se afasta da simples atitude que Benjamin preconiza como sendo de
todo flâneur, “a fazer botânica no asfalto” (1994, p. 34). Mas, de certa forma, se aproxima da
figura descrita por Baudelaire: “esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre
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viajando através do grande deserto de homens” que “tem um objetivo mais elevado do que o
de um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância.
Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade” (BAUDELAIRE, 1996, p.
24).
Em suas andanças no também grande deserto de almas, Alice busca compreender a
sociedade contemporânea e sua negligência frente a mulheres como ela. Por isso, Alice vaga,
flana pela cidade, segundo Benjamin, “autêntico chão sagrado da flanêurie” (apud
MASSAGLI, 2008, p.55). Dentro deste ponto de vista, nos coloca Massagli:
O flanêur, portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes,
através de cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato,
através de suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser
lido, um objeto de investigação, uma floresta de signos a serem
decodificados – em suma, um texto (2008, p.57).
Alice, ser migrante, mulher em deslocamento, procura justamente ler a cidade que se
apresenta diante de si. Sim, a metrópole é para ela um texto a ser lido, mas também um texto a
ser reescrito em forma de romance; atitude que devolve, assim, seu lugar no mundo, seu corpo
e seu poder de preservar sua história em palavras por meio da criação. E sobre ela (sua
trajetória em forma de narrativa) diz Alice:
Já não sou capaz de reproduzir assim, detalhadamente, em sequência quase
exata, os caminhos que percorri depois que me soltei de uma vez, à deriva de
corpo e alma. Esses já não eram propriamente caminhos, eram sucessivos
buracos, frestas, rachaduras na superfície da cidade pelas quais eu ia
passando de mundo em mundo, ou era vagar por mundo nenhum...
(REZENDE, 2014, p. 102).
Esta descrição do seu caminhar revela-o como algo insano, mas, sendo errante, sua
experiência voltada ao flanar parece devolver sua sanidade. Torna-se, assim, observadora
privilegiada, tal como a figura do errante, do flâneur em Baudelaire, destacado por Benjamin
“como aquele que conseguiu conservar em si a capacidade de olhar, de observar, de perceber
o novo nas coisas mesmas” (CUNHA JUNIOR, 2012, p. 27). Emergida desse processo, diz
Alice: “voltei, assim, à superfície ainda por explorar. Suas rachaduras já as conheço todas e
não esqueço” (REZENDE, 2014, p. 245). Nesse contexto, acrescentamos as palavras de
Benjamin, que poderiam se dirigir a Alice ou a Valéria Rezende:
Seu olho aberto, seu ouvido atento, procuram coisa diferente daquilo que a
multidão vem ver. Uma palavra lançada ao acaso lhe revela um daqueles
traços de caráter que não podem ser inventados e que é preciso apreender ao
vivo. [...] A maior parte dos homens de gênio foram grandes flâneurs, mas
flâneurs laboriosos e fecundos. Muitas vezes, na hora em que o artista e o
poeta estão menos ocupados com sua obra é que eles estão mais
profundamente imersos (apud CUNHA JUNIOR, 2012, p. 28).
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No terreno destas reflexões benjaminianas, encontramos ambas as mulheres neste
estudo esmiuçadas: autora-escritora e personagem-autora apresentam sua genialidade, estão
imersas no mundo do flanar, por isso preservam sua existência enquanto
observadoras/narradoras do sensível, absortas no mundo do narrar, no prazer de escrever.
Assim, nos falam, elas, por meio da persona Alice: “Eu teria continuado, talvez,
indefinidamente, naquela vida transitória que já nem me lembrava direito por onde nem por
que tinha começado. [...] Vinha arrastando os pés de cansada, mas teimosa, a andarilha urbana
entranhada em mim” (REZENDE, 2014, p. 241). Contam-nos, elas, pelas mãos de Rezende:
[...] assimilavam-me como uma a mais entre eles, e eram tantos!, aves
migrantes de todas as espécies, perdidas do bando, cansadas ou extraviadas a
meio do caminho, esperando sob sol, chuva e sereno a volta do bando que as
resgate?, recusam o zoológico, não se deixam aliciar pela comida fácil
oferecida, medo de não ver a revoada ou de não ser encontradas quando o
bando passar de volta?, preferem o ar livre, mirando o céu, à procura dos
seus, ou desde o chão, deixando passar os bandos rasteiros nos quais não se
reconhecem (2014, p. 237-238).
Desse modo, como pássaros migratórios, essas mulheres percorrem o mundo, buscam
existir e resistir enquanto textos, depoimentos, escritas de si no feminino.
Existir-Resistir: as escritas de si no feminino
Quarenta dias. Atravessei a geena. Acabo de sair da quarentena. Não
planejei nada, caí lá sem querer, sem me dar conta de que aquilo podia ser
a barca do inferno. [...] O único jeito possível de livrar-me deles, expulsá-
los do espaço que ocupam dentro de mim e recuperar minha própria
presença é reduzi-los a tinta e papel e encerrá-los numa gaveta, ou tacar
fogo pra sempre. Será? (REZENDE, 2014, p. 18).
No percurso deste estudo, avançamos em direção à escrita – podemos dizer – feminista
de Maria Valéria Rezende; fomos, assim, conduzidos por reflexões que, no campo real e
ficcional, nos mostraram os obstáculos enfrentados por aquelas que se lançam e/ou se
lançaram ao ato de escrever, a um fazer fundado na escritura genuinamente de autoria
feminina. Nesse caminho, fantasmas já conhecidos foram revisitados e reavivaram velhas
discussões, assentaram novos debates; um texto relido quase sempre é um novo texto, pois vai
ao encontro de um sujeito alterado.
Assim, gostaríamos de, nestas considerações finais, aludirmos ao artigo “Profissões
para mulheres” da escritora britânica Virgínia Woolf (1882-1941). Entendemos que, ao
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refletir a condição da mulher no início dos anos 30, a escritora acaba por apontar alguns
demônios disfarçados de anjos que ainda insistem em tocar suas trombetas na
contemporaneidade. Dessa forma, nos parece que o texto supracitado fornece ganchos para
que este breve relato indique, ancorado nas palavras dessa escritora, a permanência da luta
feminista no corpo, voz e ação de outras também escritoras, como a que aqui, juntamente com
sua obra, foi discutida, refletida e compreendida à luz de conceitos tão presentes nos estudos
literários. Diz Woolf:
“O Anjo do Lar”. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me
atormentava tanto que no fim matei essa mulher. [...] quando fui escrever,
topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página;
ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Se eu não a matasse, ela é que me
mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. (2013, p. 11-13).
Este fragmento, retirado de um discurso escrito no início dos anos 30 por Woolf que
fala sobre o papel da mulher na sociedade e sua luta para se afirmar profissionalmente, mostra
o quanto ainda é necessário às escritoras e suas leitoras matarem aquelas mulheres forjadas
pela sociedade, duplo que insiste em fazer frente como no caso de Alice em Quarenta dias.
De lá para cá, sabemos, a guerra persiste.
O Anjo do Lar, aquela menecma da escritora, mulher liquidada por Woolf, hesitou a
aparecer nos textos de outras narradoras nestes mais de oitenta anos. E, hoje, o coração da
escrita de artistas como Maria Valéria Rezende e de outras contemporâneas, representativas
das causas femininas, como Amara Moira ou Natália Borges Polesso, está preservado; antes,
estas profissionais da escrita arrancam seus corações e o fundem ao âmago, ao núcleo de seus
livros. Estas mulheres desdobráveis, Freira e Velha, Travesti e Puta, Escritora e Lésbica,
tocam – ou melhor, pegam, apertam, espremem – em suas obras algo que para Woolf, naquele
momento, era muito caro (e que ainda o é), cara e coroa, os dois lados da mesma moeda, do
esforço e da estima, do sofrido, mas válido, do amado e árduo, do espinhoso, mas preferido,
algo precioso enquanto matéria, experiência, paixão: o corpo.
Falamos aqui do corpo plural, do corpo que escreve e inscreve a luta dessas (das)
mulheres na literatura brasileira contemporânea, que precede sua voz. Escritoras que
entendem a necessidade de discutir, tal como sua companheira britânica advertia em seu texto,
metas e fins pelos quais as mulheres lutam, pelos quais, diz Woolf, “combatemos esses
obstáculos tremendos” e que precisam (as metas) “ser questionadas e examinadas
constantemente” (2013, p. 18).
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Quais obstáculos se encontram no caminho das escritoras (femininas, feministas,
fêmeas) hoje? Os mesmos de quando Woolf proferiu seu discurso para a Sociedade Nacional
de Auxílio às Mulheres, em 21 de janeiro de 1931? Alguns – muitos – certamente resistem. E
devem ser refletidos, compreendidos, pois estão introjetados em um corpo-mente que jaz
numa cultura patriarcal, como era o de Woolf.
[...] quando comecei a escrever, eram pouquíssimos os obstáculos concretos
em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitável e inofensiva. O
riscar da caneta não perturbava a paz do lar. [...] Claro que foi por causa do
preço baixo do papel que as mulheres deram certo como escritoras, antes de
dar certo nas outras profissões (WOOLF, 2013, p. 10).
Quando o “Anjo” do poema de Coventry Patmore visitou Woolf, ela se deu conta de
que sua escrita, conforme se desprendia enquanto ato artístico-político, nada tinha de
inocente. E que o papel, imaculada materialidade alva, suporte banal, pronto para receber as
tintas de sua pena, se tornaria, também, corpo, rasgado pelas palavras, simulacro da carne
fêmea, depoimento de um sujeito feminino pós-colonizado, onde as diferenças dão lugar à
sororidade, pois, hoje, a denúncia presente na canção de protesto de Seu Jorge, Marcelo Yuca
e Wilson Capellette, se faz urgente, se transfigura em outras lutas. Dessa forma, se há séculos
“a carne mais barata no mercado é a carne negra”, ampliamos o refrão de “A carne” (2003),
dando voz às autoras/escritoras/mulheres aqui citadas. Então, diria Valéria Rezende: A carne
mais barata no mercado é a carne velha! Lançaria Moira: A carne mais barata no mercado é a
carne puta! Bradaria Polesso: A carne mais barata no mercado é a carne lésbica! Clamariam,
todas, mulheres, escritoras, personagens: A carne mais barata no mercado é a carne fêmea!
Hoje, como ontem, o corpo da mulher enquanto narrativa, escritura de si, paga um
preço alto: o preconceito. E, no caminho para matar os fantasmas que rondavam Woolf e
continuam patrulhando as mulheres, as penas de outrora não são mais utilizadas; atualmente,
as canetas são armas que rasgam caminhos, fendam o papel, cortam sua carne; os dedos são
martelos que golpeiam o teclado e cravam palavras.
Fincam o verbo, lutam contra o preconceito e, assim, contam histórias: seja a de Alice
e sua “carne velha”, esquecida, que vaga, flana e vê as mazelas do mundo, mas que dá voz à
carne envelhecida e à crítica da freira e escritora Maria Valéria Rezende em sua obra
Quarenta dias; seja a de Amara Moira e sua “carne puta”, uma travesti que se percebe
escritora ao tentar ser puta e puta ao se colocar no ato de escrever, reflexão em forma de livro
que explicita sua condição em E se eu fosse puta (2016); seja nas diversas personagens
24
homossexuais de Natalia Borges Polesso, e a “carne lésbica” da qual são feitas – incluindo a
da própria autora – que, como a de todos, sente o medo, o gozo e as transformações, sujeitos
de nossa época que o são, personagens deste tempo e lugar retratados nos contos reunidos em
Amora (2015).
Oxalá pulule estudos sobre a escritura dessas mulheres: mulheres que escrevem sobre
mulheres; mulheres que escrevem sobre si; as escritas de si que falam das escritas daquelas
mulheres: fecundo mise en abyme!
Em 1931, para Woolf “matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora”.
Aquele foi morto, mas uma legião estaria por vir. “Na verdade, penso eu, ainda vai levar
muito tempo até que uma mulher possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um
fantasma que precise matar, uma rocha que precise enfrentar” (2013, p. 17). Mais de 85 anos
depois de proferidas suas palavras, podemos dizer que a luta dessas mulheres, escritoras,
velhas, freiras, putas, travestis, lésbicas, fêmeas, tal qual uma senhora centenária, adquiriu
sabedoria, acumulou conhecimento e venceu seu temor. Essa luta assume sua maturidade, e
deve ser levada à frente, como Alice e Valeria Rezende fizeram, sem retroceder, assumindo
seu destino conjunto de narrar-flanar, e das quais emprestamos a voz-corpo para este texto
finalizar: “na verdade o que eu tinha prometido era não ceder a nada nem a ninguém, [...] e,
como ouvi tantas vezes meu avô dizer, palavra de gente honesta é uma bala, uma vez
disparada não volta atrás” (REZENDE, 2014, p. 244).
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25
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