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“NÓS, TICUNA, TEMOS QUE CUIDAR DA NOSSA

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“NÓS,TICUNA,TEMOSQUECUIDARDANOSSACULTURA”:UMESTUDOSOBREO

RITUALDEINICIAÇÃOFEMININAENTREOSTICUNADEUMARIAÇÚI,TABATINGA,ALTOSOLIMÕES

(AM)

MayAnyelyMouradaCosta

MANAUS2017

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“NÓS,TICUNA,TEMOSQUECUIDARDANOSSACULTURA”:UMESTUDOSOBREORITUALDEINICIAÇÃOFEMININAENTREOSTICUNADEUMARIAÇÚI,TABATINGA,ALTOSOLIMÕES(AM)

MayAnyelyMouradaCosta

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FichaCatalográficaelaboradaporSuelyO.Moraes-CRB11/365C837nCosta,MayAnyelyMourada“Nós,Ticuna,temosquecuidardanossacultura”:umestudosobreoritual

deiniciaçãofemininaentreosTicunadeUmariaçúI,Tabatinga,AltoSolimões(AM)/MayAnyelyMouradaCosta.–Manaus:EDUA,2017.

118p.:il.color.ISBN978-85-7401-XXX-X1.Culturaindígena.2.Mito.3.RitualdaMoçaNova.4.Ritual.5.Ticuna.I.

Título.

CDU316.72(=1-82)FichaCatalográfica

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DedicoestelivroaSra.BerlindaMouradaCosta,(inmemorian),mulher

guerreira,professora,minhamãe,comquemaprendiogostopelosestudos;eatodososparentesTicunadoAltoSolimões,poiscomamorecarinhomeensinaramumpoucodoqueeudeveriasabereaprendersobreseuuniversoculturalmeauxiliandonestapesquisadecampo.Aeles,todaminhagratidão!

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas fizeram parte do percurso que deu origem a este livro.

AgradeçoemprimeirolugaraosTicuna,emespecial,aquelesqueresidememUmariaçú,porpermitiremminhainserçãoemsuasvidas,assimcomoemsuacomunidade,epelascontribuiçõesparaarealizaçãodestapesquisa.Agradeçoa Yói e Ipi, por me guiarem nesse tempo pelo caminho da luz e por meajudaremacombaterosperigosdavida.

AocoordenadorecaciquedeUmariaçú, senhorValcirMendes,que, semmediresforços,colaborouparaarealizaçãodestapesquisanacomunidade.

Aospaisdamoçanova,senhorValdiresenhoraEularia,pormepermitirparticiparepesquisarafestadesuafilha,Valdinéia(moçanova),assimcomoaosanciõesdacomunidadeeaosdemaisTicunaquemeajudaramnoscantos,mitos e tantasdúvidasque tinha a respeitodo ritual.Não citarei nomesparanãocorreroriscodeesqueceralguém–atodosetodasmuitoobrigada!

Souprofundamentegrata àUFAMe aoProgramadePós-Graduação emAntropologiaSocial (PPGAS), pormepossibilitar a realizaçãodeste sonho,dando-mecondiçõesparaodesenvolvimentodemeusestudos.

Gratidão especial à minha orientadora, Profa. Dra. Deise Lucy OliveiraMontardo, pela sua disponibilidade, conhecimento, generosidade, paciência,apoioeumaótimaorientação.Nosmomentosemqueeuestavacomamentecansadaeperdidacomosdadosdapesquisa,elameencorajouemeanimouaprosseguircommaisentusiasmo.Avocê,minhamestraeprofessora,devotominha sincera admiração, amizade e gratidão por todo o tempo preciosocompartilhadocomigo.Muitoobrigada!

Agradeço ao apoio financeiro e institucional da Fundação de Amparo àPesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), pela concessão de bolsa demestradoduranteoperíododemarçode2013afevereirode2015.Esseapoiofoimuitoimportanteparaarealizaçãodasatividadesdecampoeaconsecuçãodesteestudo.

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AgradeçoatodososprofessoresdoPPGAS,emespecialàsProfas.Dras.Ana Carla Bruno e Priscila Faulhauber, pelas contribuições na banca dequalificação,assimcomoàProfa.TherezaMenezes,quemesmonasconversascotidianasdeudicasasquaismeajudaramaproblematizaralgumasquestõesnapesquisa.

Agradeço ao Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI),coordenado pelo Prof. Dr. GiltonMendes e aos demais colegas do núcleo.Naqueleespaçoexerciteiecomplementeimeuaprendizadoantropológico.

Agradeço ao Instituto Brasil Plural, que concedeu recursos para arealizaçãodapesquisabibliográficanoMuseuNacionalenoMuseudoÍndionoRiodeJaneiro.Esseapoiofoideterminanteparaotrabalhodepesquisa.

Dedico meus agradecimentos ao Projeto Arte e Sociabilidades naAmazônia, do Grupo de Pesquisa Maracá: estudos sobre arte, cultura esociedade,peloapoioàminhaparticipaçãonaVIIENABET,emFlorianópolis(SC), onde conheci o professorAnthonny Seeger, debatedor domeuGrupoTrabalho.Essa experiênciamepermitiu enxergar alguns caminhosdaminhadissertaçãoqueaindaestavamobscuros.

Peloscomentáriosvaliosos,agradeçoàLigiaSoareseàSocorroBatalhanaENABET,epelasdoaçõesdetextosdaetnomusicologia.

Aos meus colegas de classe da turma 2013 do PPGAS/UFAM quecompartilharamalegriasedificuldadesnavidaacadêmica,comosquaispudeaprender muitas coisas. Em especial aos companheiros indígenas Iranildes(Macuxi), Dimas (Piratapuia), Adelson (Tariano) e à minha amiga e irmãDeyse Rubim (Kokama) pelos maravilhosos momentos de descobertasantropológicasquepassamosjuntas.MeucarinhotodoespecialàminhaamigaAudirene Cordeiro (minha terceira mãe) pelo imenso carinho, atenção ehumildadecomigo,sempremedandoforçaparalevantardastantassituaçõespelasquaispassei.

Ao meu amigo de graduação em Benjamin Constant e companheiro nomestrado, Anderson Rocha, meus agradecimentos pelas dúvidascompartilhadasetantoslivrosapresentadossobreosTicuna.

Não poderia me esquecer de agradecer à Rosseline Tavares e à Valériapelascaronas,ànoite,saindodoPPGAS,epelaspreocupaçõescomigo.

Deixo um agradecimento muito especial à Franceane, secretária doprograma, por sempre estar disposta a atender e se antecipar na oferta desoluções para os inúmeros problemas que apareceram. Muito obrigada àsminhas duas mães, Rosângela (Ticuna) e Berlinda Moura da Costa, (in

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memorian), não indígena.Àprimeira pela sábia decisão emmedoar para asegunda; e à segunda, pela fundamental contribuição na minha trajetória.Ambascontribuíramparaquehojeeuestivesseondeestou.

Agradeçoàminhavó,MariaAristota,quesempremeajudouemeacolheunomomentoquemais precisava e até hojeme acompanha.MuitoObrigada,vó, por tudo! Ao meu tio Bernoldo, agradeço pela sua amizade e peladisposiçãoemsempremeajudar.

Agradeçotambémaomeuirmão,MárcioCícero,porsempretermedado

forçanosmomentosdifíceis,epelosmomentoscompartilhadosemsuacasa,emManaus,duranteoperíododasdisciplinasdomestrado,porsuaamizadeecompanheirismo.Àminhaeternacunhada,Lucilene(Huty),portantasalegriasproporcionadas,umadelasmeussobrinhosqueridosquesãocomofilhosparamim:Márcio Filho eMarcos Vinícius. Obrigada pelas conversas e por meproporcionaremoamor,aalegriaeoafetodeumafamília.

Aomeunoivo,IvánRuizChaveco,queestevecomigodesdeaseleçãodomestradoatéagorano fimdadissertação, sempredispostoeatenciosoameajudarnospequenosproblemasqueapareceramnestepercurso.Meucubano,muitoobrigado,vocêfoiessencialparamimnestaetapa,teamo!

Aos meus colegas de trabalho da Secretaria Municipal de Educação(SEMED) da Coordenação da Educação Especial Indígena e Não Indígena:Claudete Góes, Cléia, Selma e professor Enildo Batista, agradeço pelapaciênciaecompreensãoemmeajudaremnessetempoempercurso.

Enfim, agradeço a todas aquelas pessoas que contribuíram direta ouindiretamenteparaestetrabalho.EsperoqueesteestudopossacontribuirparareflexãodosTicunadacomunidadedeUmariaçúsobreaimportânciadoritualda moça nova para a vida do povo, e também proporcionar uma fonte deinformaçãoaosinteressadospelatemática.

Atodosquetorcerampormim,obrigada!

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LISTADEABREVIATURASAMIT-AssociaçãodeMulheresIndígenasTicunaCGTT-ConselhoGeraldaTriboTicunaINSS-InstitutoNacionaldoSeguroSocialFUNAI-FundaçãoNacionaldoÍndioOGPTB-OrganizaçãoGeraldosProfessoresTicunaBilínguesOMSPT-OrganizaçãodosMonitoresdeSaúdedoPovoTicunaOSPTAS-OrganizaçãodeSaúdedoPovoTicunadoAltoSolimõesPIASOL-PolíciaIndígenadoAltoSolimõesPI-PostoIndígenaPF-PolíciaFederalPM-PolíciaMilitarSEDUC-SecretariadeEstadodeEducaçãoSEMED-SecretariaMunicipaldeEducaçãoCulturaeDesportoSEMSA-SecretariaMunicipaldeSaúdeS/D - Referente às referências bibliográficas, é devido não constar nos

artigos,apostilas,monografias,dentreoutrosmateriaisconsultados,adatadepublicação das obras e, em alguns casos, a numeração de páginaexpressamentenasfichascatalogadasparaestetrabalho.

S/N-ReferenteàfaltadenumeraçãodepáginaSPI-ServiçodeProteçãoaoÍndioTI-TerraIndígenaTRE-TribunalRegionalEleitoralUFAM-UniversidadeFederaldoAmazonas

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APRESENTAÇÃO

Este livro é uma versão revisada, mas pouco modificada, de minha

dissertaçãodemestrado,defendidaemagostode2015peloProgramadePós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal doAmazonas.Eleconsisteemumaetnografiadoritualdamoçanova,realizadopelosTicunaedeumapossíveltraduçãodoscantosnesteritual.

Esteritualéumademonstraçãodeculturadopovo,edetodaacomunidadeTicuna.Estacerimôniaéumritodepassagem,queaomenstruarpelaprimeiravez, a jovem que protagoniza o ritual é submetida à depilação do courocabeludo,queérealizadanapresençadeconvidados,deseufuturonoivoedosmembrosdafamíliadela.Duranteoritual,aadolescenterecebeorientaçãodospais e parentes sobre como deverá se comportar para manter sua vida,construiremantertambémafuturafamília.Apósorito,aadolescente(moçanova)entranavidaadulta.

Uma das indagações iniciais quemotivaram este trabalho foi a de tentarentenderopapelexercidopelaFestadaMoçaNovanavidadosTicuna,umavezqueparaelesesseritualcontribuiparatodaacomunidade,dando-osvidalongaefartura.ProcureicompreenderporqueesteritualestádeixandodeserpraticadoemalgumascomunidadesTicuna,oque,consequentemente,parecedemonstrar o “desinteresse” dos mais jovens em aprenderem os cantos doritual.

Dessemodo,estelivroapresentaumesforçodeaproximaçãoemdiálogocom trabalhos realizados entre os Ticuna sobre etnologia indígena e acosmologiacultural ticuna.Buscomostrarcomoseestabeleceaorganizaçãodesseritual,osmomentosimportantesnavidadamoçanova,oqueestadeveaprendereafinalidadedarealizaçãodesseritualparatodaacomunidade.

SegundoWagner (1984), o ritual pode sermais bemabordado enquantocomunicação envolvendo pessoas, grupos, espíritos, divindades e forçasabstratas reconhecidas, por isso o ponto central dessa pesquisa não é umaanálisesobreritual.

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Oritual damoçanova seráumaviade acesso aosTicuna, umavezque,como rezam estudos nessa temática, culturalmente devemos buscarcompreender sua “força transformativa” e sua “comunicaçãonãoverbal”.Omaisimportanteemumestudosobreritualéqueoantropólogoestejaatentoparanãoprojetar“modelosacadêmicosapertados”quepossamobscurecerasdinâmicaseosconceitosnativos.

Oritualdamoçanovaéumritodepassagemeosprimeirosestudossobreo tema foramdesenvolvidosporVanGennep,oqualpublicou, em1908,osRitosdePassagem.ParaoantropólogoVanGennep(1978[1908],p.62-76),ritualcomoodamoçanova“[...]acompanhamtodamudançadelugar,estado,posiçãosocialde idade”.Oautorexplicaque todosos ritosdepassagensoutransiçãocaracterizam-seportrêsfases:separação,margemouliminaridadeeagregação.

Na margem, segundo Van Gennep (1978), desenvolve-se umacomplexidadeindependenteeumaautonomiaemrelaçãoàsoutrasduasfases,desenvolvendo-se um simbolismo próprio que ele denominou de liminar.Durante os períodos liminares os indivíduos que participavam do ritual seencontravam como que fora das estruturas da sociedade, entre as quais semovimentavam–eestamovimentaçãoéosentidodoritodepassagem.Essesindivíduos liminares eram os neófitos, os adolescentes, os noivos, aparturienteeoutrosnamesmasituaçãodetransição.

ParaTurner(2008),osrituaisdepassagemsãoabordadoscomoumritualdedistanciamentodo indivíduoda suaestrutura social e,depois,um retornocomnovostatus.Aliminaridade,oufaseliminar,éafaseintermediáriaentreodistanciamentoeareaproximação,emqueascaracterísticasdoindivíduoqueestá transitando são perplexas,misturando sagrado e profano, por exemplo.Turner (2008) declara que a liminaridade é frequentemente comparada àmorte,invisibilidadeeoutrosestadosquedemonstraque,naposiçãodeseresliminares,os indivíduosnãopossuemstatus,qualquerqueseja,emostraqueporváriasvezesasroupasnormaissãosubstituídasporsimplestirasdepanoou,atémesmo,nudez,parasimbolizaressafaltadestatus.

No estado liminar, dado o distanciamento simbólico da estruturahierárquicada sociedade, apareceum segundomodeloque alterna comessaestrutura: um estado de comunidade ou comunhão, de indivíduos iguais, umestadoqueelechamadecommunitas.

Acommunitasnãoé,segundoTurner(1960),umasimplesdistinçãoentreo sagrado e o mundano, por assim dizer. O sagrado, presente em diversos

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cargosdaestruturahierarquizadadeumasociedade,vemderitosdepassagemgraças aos quais as pessoas adquirem essa posição. Nos rituais em que talstatuséconcedido,deacordocomTurner(1960),ahumildadedaigualdadedoestadoliminarmoderaoorgulhodoindivíduoqueorecebe.

Turner considera que isso se deve a um reconhecimento de um laçohumanoessencialparaaexistênciadasociedade:parahaveroqueestaacima,deveexistiralguémqueestejaembaixo.

Oritodepassagemdamoçanovamarcamudançasparaelaenaestruturasocial em que ela vive. De acordo com os conceitos de liminaridade ecommunitas de Turner (1960), essa passagem envolve algo como umrenascimento.

Para mudar de status a moça nova precisa, primeiro, se distanciar daestruturasocial,comosemorresseoudeixassedeexistirnaquelaposiçãoqueocupavanasociedadeTicuna;aseguir,elapassaporumprocessoliminar,emqueestá forada sociedade, emqueécolocadaemumestadode igualdadeehumildade,desprovidodestatus.Sóentãoelavoltaaserintegradanaestruturasocial, ocupando agora uma nova posição, como se renascesse deixando desercriançaparasetornarmulher.

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INTRODUÇÃO

OsTicuna,povo indígenaestudadonestapesquisa,constituem-secomoo

primeiro grupo étnico de maior expressão populacional no territóriobrasileiro.Estima-sequesãoemtornode36mile377indivíduosdistribuídosnos municípios de Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença,Amaturá, SantoAntônio do Içá, Tonantins, Jutaí, Tefé, Anamã, Berurí, e nacidadedeManaus.Contudo,amaiorpartedasaldeiasedapopulaçãoencontra-seaolongodorioSolimões(FUNASA,2009).

Imagem1-MapadelocalizaçãodaTerraIndígenaTicunaUmariaçú

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Fonte:Funai(2014).EstabeleciosprimeiroscontatoscomosTicunaaindanaminha infância,

quando minha mãe adotiva me levava para a comunidade de Filadelfia, em

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BenjaminConstant, para ter uma aproximação commeus parentes.Ela tinhamuitos conhecidos nessa comunidade, íamos quase todos os meses por lá.Apósasuamorte,em1998,passeiumlogotemposemiràcomunidade.Foiaparti de 2011, na condição de aluna de graduação, que realizei um trabalhofinal da disciplina “Antropologia Pericial”, sob a orientação do professorRafael São Paio1, sobre a Festa da Moça Nova. Esta experiência foiimportantíssimaparaminhareaproximaçãonovamentecommeupovoTicuna,enquanto indígena2 criada na cidade. Após presenciar a primeira Festa daMoçaNova daminha vida, na comunidade indígena de Lauro Sodré, fiqueiencantadaporesseritual.

No iníciodestapesquisa,enfrenteidificuldadesnomomentode interaçãocomossujeitos,poisfoidisseminadoumboatodequeeuhaviacitadoonomedealgunsmembrosdacomunidadeafimdefacilitarmeuacessoaocampodeformaprivilegiadaeantiética.Ratificoqueemnenhummomentouseiouciteio nome de pessoas que pudessem me ajudar na realização da pesquisa decampo,como“divulgado”nosboatos.

A literatura sobre pesquisas como a que desenvolvi já registra essaproblemática. De acordo com Foote White (2005, p. 331), quando háfamiliaridadedo investigador comocampodepesquisaocorreoperigodouso de diálogos tendenciosos com os sujeitos que podem prejudicar oresultado,podendochegaraagirdetalformaa“[...]ativamenteinfluenciaroseventos”.

Bourdieu (1997) acredita que isso pode ocorrer dentro da pesquisa deforma inconsciente, portanto, esse perigo deverá ser bem observado.Diantedisso, o autor propõe uma sensibilidade metodológica em não cometerviolência simbólica com os sujeitos da pesquisa, levando a um esforçoreflexivo, por uma postura de simetria do pesquisador em relação aopesquisado.

Por conta disso, ressalto que assumi o compromisso de incorporar afunção de investigadora e empreendi o esforço necessário para que ospressupostosobtidosdaexperiênciadeatuaçãocomogruponãointerferissemnacoletaeanálisedosdadosduranteodesenvolvimentodapesquisa.

ApresentepesquisafoirealizadanaterraindígenaUmariaçúI,localizadaemTabatinga,noAltoSolimões.AcomunidadeUmariaçúsurgiuapartirdacompra de uma fazenda que serviu para os Ticuna como refúgio durante operíodoemqueestesseencontravamsobodomíniodospatrõesseringalistasnoséculoXX.FoiumadasprimeirasáreasindígenasTicunademarcadasnesta

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região, tendo sua origem nas antigas terras do Posto Indígena Ticuna (PIT)criado em 1942, então administrado pelo antigo Serviço de Proteção aosÍndios(SPI)noiníciodadécadade1940.

Imagem2-AntigoPostoIndígenaemUmariaçú

Fonte:Aautora(2014).A língua ticuna é falada em uma área extensa por vários falantes. As

comunidades estão distribuídas em três países: Brasil, Colômbia e Peru.DevidoaofatodeacomunidadeindígenaUmariaçúIestarlocalizadaaoladodo município de Tabatinga, supus que todos compreendessem o português,mas me enganei completamente. Observei que quando alguns Ticuna deUmariaçúvisitamLetícia(municípiocolombiano)elesfalamalínguanativae,

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com muita dificuldade, apenas um do grupo geralmente tenta indagar aosvendedoresdaslojasopreçodosobjetosemportuguês.

A grafia da língua ticuna utilizada neste trabalho foi proposta porprofessoresdeUmariaçúIqueestabeleceramumaescritaparaalíngua,ecomessa escrita eles estão registrando a própria história e organizando outrosmateriaisparaseremadotadosnasescolas.

OsTicunatêmporprincipalatividadeapesca,praticadanosrios,igarapése lagosdoAltoSolimões,aqualseconstituicomoatividadefundamentalnaeconomiadeautossustentoTicuna.OutrasatividadesproduzidaspelosTicunasãoacriaçãodeanimaiseaagriculturadealimentosparaconsumopróprioecomercialização, tais como:macaxeira, farinha demandioca, ingá, pupunha,mapati3,cheiro-verde,pato,galinhaediversasespéciesdepeixes.

Com o aumento da população nos últimos 30 anos, algumas famíliasadquiriram empregos em escolas – atuando como diretores, professores,merendeiras, faxineiras – e em postos de saúde, como técnicos deenfermagem, agentes de saúde e secretários. Outros recebem benefíciossociais tais como aposentadorias rurais,Bolsa Família, auxíliomaternidade,cartãocidadãoetc.

Durante a pesquisa de campo, observei que os relatos das pessoas estãopermeados de queixas sobre o uso excessivo de álcool e drogas ilícitas, asquais,namaioriadasvezes,sãoutilizadasporjovenseadolescentesdentrodacomunidade.

Os Ticuna tiveram a iniciativa de criar uma polícia indígena dentro dacomunidade para manter a ordem e a segurança da população, chamadaPIASOL. Essa política tinha o papel de controlar o consumo de álcool edrogasdentrodacomunidade.MasporfaltadeapoiodealgumasinstituiçõesgovernamentaisaPIASOLparoudeatuar.

UmdosestudosmaisrecentessobreaPIASOLéodaantropólogaMisleneMetchacuna M. Mendes (2014)4. O estudo foi realizado na comunidadeindígena Ticuna de Umariaçú II, no município de Tabatinga (AM), peloprogramadePós-GraduaçãoemAntropologiaSocialdaUniversidadeFederaldoAmazonas(PPGAS-UFAM),enelesãoanalisadasasrelaçõessociaisentrePIASOL e comunidade indígena Umariaçú II, considerando mudanças erepresentaçãosocialnocontextoculturalTikuna.

Na primeira visita à comunidade de Umariaçú I, localizada à margemesquerdado rioSolimões,comumadistânciadedoisquilômetrosdocentrode Tabatinga, procurei conversar inicialmente com o cacique, seu Valdir

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Mendes.Apresentei-mea ele e, em seguida, abordei sobre apesquisa.Muitoeducadoeatencioso,“cheiodegraça”,elemedisseraquehaveriaumaFestada Moça Nova somente em junho, inaugurando o novo lugar que estavamconstruindo. Fiquei desanimada, mas não desisti de continuar a pesquisanaquelacomunidade.

Na volta para Tabatinga, parei na casa de uma colega dentro dacomunidadeeelamedissequehaviaumafamíliasepreparandopararealizarumafestademoçanovaemabril.Fiqueiesperançosaevolteiparaencontraropai damoçanova nomesmodia.Chegando à casa do senhorValcir (pai damoça nova), tive a primeira dificuldade de campo: não compreendíamos alínguafaladaporumeporoutro:“eusófaloportuguês,eelesóticuna”.

Paraminhaalegriaavizinhafalavaeentendiaoportuguês–pouco,masosuficienteparaanegociação.SeuValcircobrouemdinheiroovalordeR$20mil reais para que eu pudesse assistir o ritual da filha dele. Assustada,expliquei-lhequenãodispunhadovalor,poiseramuitoaltoparaumasimplespesquisadora.Depoisdealgumtempodeinsistênciadaminhaparte,conseguiconvencê-lo a pensar melhor e em dar-me a resposta no dia seguinte. EleconcordouevolteiparacasaemTabatinga.

Nodiaseguinte,pegueiocoletivo5quefazarotadeTabatinga-Umariaçú-Letícia/Colômbia, e, ao chegar à casa de seu Valcir, me deparei com umagrande quantidade de pessoas. Todos estavam lá para presenciar minhaconversacomele.Airmãdelemandouqueeuentrasseefoilogofalandoqueeles decidiram baixar o valor para dois mil reais. Tentei mais uma veznegociar um valor menor, porque ainda era muito para mim. Então elesconversarambaixinhona línguamaterna e, decorridos unsminutos, a irmã-negociadoraanunciou:“ElequerentãoR$400,00paraamoçanovacomprarsuascoisas,4caixasdefrango,1pacotedearroz,tabacoeaçúcar”.Eusabiaque assistir ao ritual não iria sair barato, mas esta parecia minha últimapossibilidade de negociação e resolvi aceitar antes que eles desistissem.Concordeiemarqueiadataparalevartudoisso.Elessorriramecomeçaramame chamar de senhora, perguntando se era verdademesmo que eu iria dartudoaquiloparaeles.Eurespondiquesim.Nadatamarcada,láestavaeueomotoristadocarrodefreteentregandoosmantimentosàcasadeseuValcir.

Imagens3e4-Entregade“rancho”aopaidamoçanovaantesdafesta

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Fonte:Aautora(2014).ProcessodeobtençãodasfontesRealizei durante dois anos um levantamento de fontes bibliográficas nos

arquivoseacervosde fotografiasde rituaisnoMuseu/CentroMAGÜTA,emBenjaminConstant (AM), nasbibliotecasdasunidades acadêmicasdaUFAMemManause emBenjaminConstant, naBibliotecadoNúcleodeEstudosdaAmazônia Indígena/NEAI,noProgramadePós-GraduaçãoemAntropologiaSocial daUniversidade Federal doAmazonas/UFAM, noMuseuAmazônico(em Manaus), em teses disponibilizadas pela Capes, em sites e artigoscientíficosdainternet,fizleituraefichamentosdasbibliografiasedocumentosrelacionadosàtemáticaparaumamelhorabordagemteóricaeantropológica.

Os trabalhos etnográficos sobreo ritual damoçaTicunautilizadosnestapesquisaforamrealizadosporpesquisadoresquevisaramconheceredivulgar

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o povo e a cultura Ticuna e o ritual demaior importância para eles.MinhaatençãoespecialfoidadaaostrabalhosdeFreiFidelis(1945),OliveiraFilho(1988,1999)eClementeSantoCruz(2011),complementadacomapesquisadePriscilaFaulhaber(1999,2007)eJocileneGomesCruz(2008).ArespeitodostrabalhospesquisadosnestaregiãosobreoscantosnoritualdamoçanovaTicunahápoucascolaborações.UtilizeiascontribuiçõesdeCamacho (1996,2003)paraoquedizrespeitoaoscânticos.

Procurei analisar e extrair desses documentos e acervos as informaçõesque poderiam auxiliar esta pesquisa na contribuição de dados referentes aoritualesuaimportânciaparaopovoTicuna.

A pesquisa também foi desenvolvida e embasada metodologicamente apartir de Oliveira (2006), quando se refere ao trabalho do antropólogo, noolhar,ouvireescrever.

Talvezaprimeiraexperiênciadopesquisadordecampo–ounocampo–

estejanadomesticação teóricade seuolhar. [...]Evidentemente tantooouvircomo o olhar não podem, ser tomados como faculdades totalmenteindependentes no exercício da investigação. [...] é, seguramente, no ato deescrever, portanto na configuração final desse trabalho, que a questão doconhecimentotorna-setantooumaiscritica.(OLIVEIRA,2006,p.19;21;25).

Vale notar que o material recolhido resultou de uma “observação

participante”, procedimento que, segundo Clifford (2008), obriga seuspraticantes a experimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais, asvicissitudesdatradução.Tenteimeaprimorarparaadquiriroconhecimentodealgumas palavras da língua Ticuna a fim de compreender as entrevistasrealizadasnesteestudo.Masconfessoqueaindasouumaaprendiz.

Paraalémdaanálisedocumental,estapesquisacontoucomasinformaçõescoletadas em campo no período de 27 de janeiro a 25 de fevereiro e 10 deabril a 12demaiode2014.Entre elas, destacam-se asnarrativasque foramrelatadasetraduzidasporumdoscoparticipantesdestapesquisa,bemcomodoprivilégiodepoderassistiraoritualmoçanova,nosanosatuais.

***

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Estelivrocorrespondeintegralmenteàdissertaçãodemestradoesegueomesmoesquemanarrativo.Foramaportadasapenasalgumasmodificações,nointuitodetornaraleituramaisclara.Otextoestrutura-seemtrêscapítulos.

Noprimeirocapítulo, intitulado“SituaçãoHistórica:dosmitosTicunaaoritual Worecü”, procuro analisar a relação dos Ticuna sobre os mitos daorigemdaFestadaMoçaNovaeaorigemdosTicunadeacordocomosmitosdosquaisalimentamsuacultura,seguidadealgumasnarrativasdosprópriosTicuna,emcampo.Alémdisso,elaboroumabreveexposiçãohistóricasobreosTicunaeouniversoculturaldeles–destacoquemeuobjetivonãoéfazerumaextensa revisãobibliográfica sobreohistóricodopovoTicuna,masdecompreender como os Ticuna são vistos por diversos autores que osestudaram nestes longos anos, principalmente em relação ao ritual damoçanova.

No segundo capítulo, sobre o “Ritual da Moça Nova na comunidadeIndígena Umariaçú/Tabatinga (AM)”, procuro realizar uma descriçãoetnográficadoritualdamoçanova,duranteostrêsdiasdefesta.

No terceiro e último capítulo, intitulado “Os cantos no ritual”, procuroapresentaroscantosregistradosemcampo,duranteoritual,eas“possíveis”traduções para o leitor ter conhecimento das letras desses cantos e em quemomento eles são cantadosduranteo ritual.Também faço a abordagemdosinstrumentosmusicaisutilizadosnoritual.

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CAPÍTULOI:SITUAÇÃOHISTÓRICA:DOSMITOSTICUNAAORITUALWORECÜ

Neste capítulo, apresento alguns mitos que recolhi em campo e em

trabalhos pesquisados. Muitas versões desses mitos já são conhecidas naetnografiaticuna.

No Alto Solimões existem importantes estudos que focalizam acosmologia e amitologia dosTicunabuscandouma compreensãomaior doidioma simbólico que reveste a estruturação dessa sociedade. Ir à busca dehistóriasdopassado,mitos, comoosTicunachamam, foi aprimeira emaiseficiente maneira que encontrei para uma aproximação junto ao universosimbólicodestepovo.

Essas histórias são consideradas um patrimônio daqueles que as sabemcontar, geralmente osmais velhos e, como patrimônio bem valorizado, nãopodemsercontadasaqualquerpessoa.Algunspoucosjovens,porteremmaiorinteressequeoutros epor estaremmaispróximosdosvelhos conhecedores,acabamaprendendotaismitosepassamacontá-los,porémcomcertatimidez.

Vale lembrar que a relação íntima entre mito e história já tinha sidopostuladaporLévi-Strauss(2008[1958],p.224):

Ummitosempreserefereaeventospassados,‘antesdacriaçãodomundo’

ou‘nosprimórdios’–emtodocaso,‘hámuitotempo’.Masovalorintrínsecoa ele atribuído provém do fato de os eventos que se supõe ocorrer nummomento do tempo também formarem uma estrutura permanente, que sereferesimultaneamenteaopassado,aopresenteeaofuturo.

AsprimeirasdescriçõessobreosTicunasurgemapartirdosséculosXVII,

XVIII eXIX.Eles são abordados por alguns viajantes, cientistas, cronistas e

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missionáriosquepassarampelaregiãodoAltoSolimõesefizeramanotaçõessobre o modo de vida dos Ticuna em diversos aspectos. Dentre estes,destacam-se: Acuña (1637-1639), Fritz (1686-1723), o Ouvidor Sampaio(1774-1775), Spix e Martius (1817-1820), Bates (1979), Maw (1989) eAgassiz(1867).

NocontextodosséculosXXeXXI,apareceminúmerosestudosrealizadospor alguns etnólogos, antropólogos e sociólogos que contribuíram com aetnologia ticuna, dos quais se destacam: Fidelis (1945), Nimuendaju (1948,1952), Oliveira (1965, 1995, 2002, 2006), Oliveira Filho (1988, 1999),Goulard(1994,2002),Erthal(1998,2006),Garcés(2000),Faulhaber(1999,2007),Gomes(2006),Costa(2011),entreoutrosaseremcitadosnodecorrerdesteestudo.

Alguns pesquisadores realizaram estudos visando conhecer e divulgar opovoeacultura ticuna,dedicando-seàanálisedosmitos,dacosmologia,daorganizaçãosocial,daeducação,daarte,dasrelaçõesinterétnicas,territórios,entreváriasoutrostemasdouniversoTicuna.

Meu objetivo neste capítulo é situar o leitor sobre a história do povoTicuna,decomoestesurgiu,seusmitosesuacultura.Nãopretendofazerumaextensa revisão bibliográfica sobre todos seus aspectos, apenas o suficientepara compreender como os Ticuna são vistos por diversos autores que osestudaramecomoelessãolembradosporelesmesmos.

***Deacordocomoseumitodeorigem,osirmãosYo’ieIpicriaramopovo

Ticuna.Usandoiscademacaxeira,Yo’ipescounoigarapéEwaré6–próximoàs nascentes do igarapé São Jerônimo (Tonatü)7 entre os municípios deTabatingaeSãoPaulodeOlivença–peixesquesetransformaramemgenteaoseremretiradosdaágua,conseguindo,destamaneira,formaroquequerdizer“povopescadodorio”,expressãodosquaisdescendemosTicuna.Ipitambémpescoumuitagente,sóquenãoeraopovoMagüta,eramtodosperuanos.EssepovoviviaemterrafirmedaflorestatropicalenoaltodosigarapésafluentesdamargemesquerdadorioSolimões.

ParaOliveiraFilho(1999),osTicunaautodenominam-seMagüta,quequerdizer na sua língua “povo que foi pescado com vara”. O povo Ticuna estálocalizadonafronteiraentrePeru,BrasileColômbia;elepossuiumahistóriamarcadapelachegadadosseringueiros,madeireirosepescadores.

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Anarrativaa seguir refere-seaomitodo surgimentodeYo’i e Ipi,ondepreserva-se a fala do senhor Valdir Mendes (atual cacique de Umariaçú I),possibilitando-me reconstruirnesteestudoo surgimentodosmitos ticuna,astransformaçõespercebidasporeleemsuaculturaesuaslembranças.

AssimcomoocorreentreosTicuna,Halbwachs (2011)citadoporBonin(1999,p.44),consideraque:

A lembrançaé resultantedeumapráxiscoletivae se fixapela relevância

que assume para um determinado grupo, inserindo-se em correntes depensamentosocial,equeaconsciênciaindividualélugardepassagemepontode encontro destas correntes de pensamento coletivo. Ressalta ainda que a‘memória é, portanto, uma construção social, e que amemória é sustentadacoletivamenteefazcomqueosfatosnãosejamesquecidos’.

Segundo seuValcir, desde pequeno suamãe e sua avó sempre contavam

para ele e seus irmãos queYo’i e Ipi sempre foram considerados os heróisculturaisdosTicuna;elesnasceramdosjoelhosdeseupaiNgutapajuntocomsuas duas irmãs Nowatcha e Aicüna. Eles criaram os animais, os objetos,ensinaramcomoosTicunadeveriam se casar entre si, fazer suas festas e sepintar.Depois foramembora:Yo’i foiparao ladoemqueo solnasce,e Ipiparaoladoemqueosolsepõe.

DeacordocomasnarrativasTicuna, amplamentedescritasporClemente(2011, p. 21), omito da Festa daMoçaNova começa comNgutapa quandogestara nos joelhos os irmãosYói, Ipi e as irmãsMowatcha eAicüna.Maistarde uma das filhas de Ngutapa teve uma filha sem pai e quando cresceufizeramafestadesuaprimeiramenstruação,quefoichamadaa“festadamoçanova/ worecü” 8. Puseram a menina no curral para ser guardada e depoisrealizaremasuafesta.Quandoestavanametadedafesta,amoçasaiudocurralpara ver as máscaras, que eram animais muito monstruosos, e se assustousubindo numa árvore. Commedo, a moça urinou-se, os animais a viram emataram-na. Em seguida, eles foram partir a sua barriga no igarapé Ewaré.Apóspartiremabarrigadamoça,aáguaficouensanguentadadeixandoolocalmuitoperigoso.Poressemotivo,hojeninguémpodechegarnestelocal,poisessa festaerapara ir àeternidade,que seriaum lugarencantado,acreditassequeaspessoasquefossembemvelhinhasiriamficartodasnovas.

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O segundomito ticuna conta que,muito antigamente, uma jovem estavareclusa aguardando o ritual de iniciação, quando escutou muito próximo osom tristedoaricana9 e, em seguida, ouviuo somdevozesque cantavamebatiam os tutus. Curiosa, ela abandonou o curral e resolveu ir olhar osdançarinos. Esses, no entanto, eram seres malévolos que a violentaram emataram. Desde aquele dia, como castigo, o céu separou-se da terra e oshomensdeixaramdeserimortais.Eleshojeadoecem,envelhecememorrem.

Outromitoticunacontaque:Tudocomeçounosjoelhosdopai,osdoisjoelhosincharamdurantevários

dias, logosaíramtodasaspessoasquepovoaramomundo.Os joelhoseramcomoumespelho.Osprimeirosgruposdepessoasquesaíramvinhamcomosdiferentes instrumentos emateriais. Os da frente portavam uma carapaça detracajá, eram dois homens e umamulher, depois vinha um grupo com umabuzinadecana,porquecomcertezaopaiqueriaquefosseassim.Seelesnãohouvessem saído, nós não existiríamos, nem tampouco se celebraria a festa,nemsequerosmaisantigossaberiam.Gutapaobservavaosgruposdepessoasquesaíamdoseujoelho,eramdetamanhodiminuto.Passaramnovamenteosquelevavamotracajá,doishomenseumamulher,emseguidasaíramoutroshomensquetraziamfrutodejenipapodentrodeumcesto,eportavamtambémumaraizdepaxiúba,pararalarojenipapo...(SOARES,s.d.,p.86).

Ostrêsmitosestãorelacionadoscomosseresimportantesnacosmologia

ticunaqueseacreditaqueexistamrealmente.Apartirdessesmitos,osTicunapassaramarealizaresteritualjustamenteparaselembrardaprimeiramoçaeparacuidardesuasadolescentes,ensinandotodososconhecimentosqueelasnecessitamparasetornaremmãeseesposasnofuturo.

Conhecida também com o nome de “festa da puberdade”, “festa daPelação”,“festadamoçanova”,“festadaWorecü”ou“ritualdamoçanova”,esse é considerado entre osTicunadoAltoSolimõesummomentoque elesrevivemsuasorigens,seusmitosesuacultura.

Observa-se a grande variedade de versões sobre os mitos. Não é meuobjetivo encontrar uma versão original para o mito de origem ticuna e daFestadaMoçaNova,masanalisaralgunsregistrossobreotema,nosentidodecontribuirparaacompreensãodoimagináriodopovoTicuna.

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Curt Nimuendajú, etnólogo alemão, fez sua primeira viagem ao altoSolimões em novembro de 1929 realizando estudos etnográficos eetnológicos sobre os Ticuna, se interessou pela morfologia social ecosmologia presenciando muitos conflitos entre os indígenas efazendeiros/patrões. Ele preparou um pequeno relatório ao SPI, onde foipublicadocomoumartigonaAlemanhanoanode1930.Otextodorelatório,de1929,étraduzidocommodificaçõesdealgunsdetalheseexclusãodeoutraspartes escritas. Entre essas partes, inclui-se a festa da puberdade, ou seja, oritualdamoçanova.FreiFidelisdeAlviano,queseencontravaentreosTicunanessa época da primeira viagem de Curt Nimuendaju, tinha a missão decatequisarosTicunadeBelémdoSolimõeseoutrascomunidades.Entreseustrabalhos ele presenciou alguns rituais da moça nova junto com CurtNimuendaju. Alviano (1945, p. 206) define este ritual cômoda seguintemaneira:

A festa daMoça-Nova é um conjunto de cerimônias, de atos expiatórios

com que a jovem índia dará início ou se disporá as funções sexuais,alcançando,pormeiodoqueelasofrenaquelascerimônias,umabenevolênciaespecialdeTupã.

No livro de leitura “Popera i Ugütaeruü Magütagawa”, encontra-se um

texto produzido pelo indígena Ticuna Nino Fernandes – diretor do MuseuMagüta,emBenjaminConstant–queserefereaoritualchamado“APelação”.Fernandes(1988,s.p.,texto58)10alidefine:

Pelação é uma festa da nossa tradição, por isso não podemos esquecer

nossa tradição. Essa tradição que vai nos defender. Por isso, nós temos querelembrarnesselivroanossacultura.Agentevêtudonessafesta,temalgumasaldeias que não praticam mais a nossa tradição, não é bom esquecer. OscostumesqueapessoavêsãoverdadeirosdosTicuna.Todososindígenastêmsuacultura,suatradição,porquenósvamosdeixarnossocostume?Nãoébomagente esquecer a nossa cultura. Por causa dela, os civilizados reconhecemquesomosverdadeirosTicuna.Todososindígenastêmsuaprópriacultura.

Um artigo publicado por Artemis de Araújo Soares (s.d.), intitulado A

simbologiadoritualnocorpodamulherTicuna,apontaváriosaspectossobrea sociedade Ticuna no que se refere ao destaque dado ao corpo nas suas

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principais manifestações. A autora conclui que a sobrevivência Ticuna está,definitivamente, presa à realização do ritual, centralizada na construçãomaterial da festa e do corpo da Worecü, e na realização simbólica dosmesmos. Ou seja, além de ser necessário que a sociedade Ticuna reviva osensinamentosdosantigos,aorigemdomundoeacriaçãodeseupovo,deve-seobservarquedurantearealizaçãodesderitualtudoissodeveservivido.

Paladino (2006), em sua tese de doutorado sobre processos deescolarização vividos pelos Ticuna ao longo do séculoXX, assinala que osTicunareferem-sea“festas”tantoparaindicaroritualdeiniciaçãofeminina(“festa da moça nova” ou “worecü”), quanto às cerimônias religiosas(relacionadasadatascomemorativasdefundaçãodaIgrejadaCruz,daIgrejaBatista, da Igreja Evangélica etc), aquelas que envolvem bailes commúsicaregional. Os Ticuna só participam dessas festas se receberem “convite” dos“donos” dasmesmas.Oliveira (2002, p. 321), já destacava em seu diário decampo,de1959,ograndegostodosTicunanucleadosnareservadoPITpelosbailesdo tipo regional, organizando-os com frequência edelesparticipandotambém os “civilizados” vizinhos. É normal entre os Ticuna convidaremoutrospovosvizinhosparaparticiparemde seuseventos,pois apresençadeconvidados de fora, não indígenas, é considerada por eles como forma deprestígioparaoritualedivulgaçãodesuacultura.

Faulhaber(2000)ressaltaqueoestudodosmitosquecompõemavisãodeuma determinada etnia (como os Ticuna) mostra que os membros deles sevalem para elaborar sua própria imagem e os vínculos entre a mesma emmomentos passados, com os quais se identificam. Deste ponto de vista, osTicunaacreditamnessesmitoscomoumaformaderegistrohistóricodeseusantepassadosqueumdiaexistiram.

ParaLeach(1996),mitoeritualsãoumalinguagemdesignosemfunçãodaqualseexpressamaspretensõesadireitoseastatus,maséumalinguagemdeargumentação,enãoumcorodeharmonia.Omitoéumalinguagemverbalqueservedereferênciaparaorito/eficáciasimbólica.Oritoéumelementodeordemprática,poiselemarcacertosmomentos,eleordena,éextraordinário.Algumas pessoas que entrevistei durante aFesta daMoçaNova comentaramqueoritualdamoçanovanãopermaneceomesmodeantes.Acreditoqueissosedevaháalgunselementosnaestruturaquesãoinvariáveis,eessaestruturasomosnósquevamosconstruir.

Geertz(1997,p.152),aodeclararque“[...]ritosemitoseaorganizaçãodavida familiar oudadivisãodo trabalho são açõesque refletemos conceitos

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desenvolvidosnapinturadamesma formaqueapintura refleteos conceitossubjacentesdosocial[...]”,indicaqueaartenãoestáapenaspararepresentarosvários elementos que compõem a vida de um povo, mas aquilo que elaapresenta em seu repertório também pode ser visualizada em outras ordensdessamesmasociedade,eissovarianotempoeespaço/contextosocial.

ParaLévi-Strauss(1989,p.22)“[...]aformabásicadesepensaromundoparaospovos tribaiséatravésdosmitos”.Osmitossepensariamatravésdeumprocessoqueoautordescrevecomomuitosemelhanteàbricolagem.Elesedariaemplanoespeculativocomoabricolagemsedánoplanoprático.

Abricolageméumamaneiradecriaroureorganizarascoisasapartirde

uminventáriojáestabelecido.Paracompreenderossignificadosdascoisasopensamento mítico agiria relacionando signos elaborando uma espécie dediálogoparaenumerarasrespostaspossíveisbaseadasnoquejáexistesobreaquilo.(LEVI-STRAUS,1989p.23).

Sahlins (2008, p. 35) propõe a análise das estruturas históricas de

significância, entendendo os mitos como “[...] metáforas históricas de umarealidademítica”. Elas atuam como operadores de continuidade,mas devemtambémserexaminadasnoseventosqueevocamarupturaeamudança,comonasmobilizaçõesindígenas.

AComunidadeUmariaçúImagem5-CroquidacomunidadeIndíginaUmariaçú

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Fonte:EliasGrande(2015).

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A TI Umariaçú está localizada à margem esquerda do rio Solimões, na

confluênciadorioJavari,aoladodireito.Existemduasformasparasechegarateàcomunidade:umaépelorioSolimões,atravésdebarcosregionaiscomocanoas,peque-peque,voadeiras11,quesaemdoportodeTabatingaeBenjamin(municípiosmaispróximos).Aoutraopçãoparachegaràcomunidadeépelarua meio asfaltada do bairro Comara de Tabatinga, utilizando motos oucarros.AscomunidadesdeUmariaçúatualmentetêm934famílias,chegandoaproximadamentea7mile219pessoas,nototal,dasduascomunidades(ISA,2014).

Veja na tabela a seguir alguns dados populacionais daTerra Indígena deUmariaçú:

Tabela1:PopulaçãodaTIUmariaçú/AltoSolimões:1987,1998e2011

POPULAÇÃOTIUMARIAÇÚ–ALTOSOLIMÕESPOPULÇÃO ANOFONTE

7.219 2011 FUNAI/ALTOSOLIMÕES4.300 1998 FUNAI1.720 1987 FUNAIFonte:ISA(2014).

De acordo com o senhor Paulo Mendes, morador da comunidade de

UmariaçúI:AprimeiraformaçãodacomunidadeUmariaçúsedeuasmargensdorio

Solimões.AiapopulaçãofoicrescendoecomonesseespaçoasfamíliaserammaioresaioscaciquessereuniramedecidiramsemudarparaaterrafirmedomunicípiodeTabatinga,ondeestãoatéhoje(informaçãoverbal)12.

Nos estudos realizados porOliveiraFilho (1988), na área doUmariaçú,

constatou-se que o processo de formação se deu bem antes da existência dareserva.“Duranteorecenseamentodaquelaaldeiaficouclaroqueessesgrupos

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estavamlocalizadosemummesmopontodareservahámaisdetrêsdécadas.”(OLIVEIRAFILHO,1988,p.198).

A partir da promulgação da Constituição Brasileira de 1988, dar osdireitos constitucionais aos povos indígenas aparte do Ato das DisposiçõesConstitucionaisTransitórias(ADCT),emparticularnoartigo231,noqualestáprescrita uma variedade de elementos a respeito da natureza de vínculos deposse, ocupação e domínio nas terras destinadas aos índios(FUNAI/TABATINGA-AM,2012).13

DiantedopoderconstitucionaldoGovernoFederal,ficamcatalogadasasComunidades do Umariaçú I e II como reserva indígena protegida peloMinistériodaJustiçaeFUNAI,artigo231daConstituiçãoFederal,Artigo18s1ºLei6001/73eoartigoNº161doCódigoPenal.14

Assim, estabelecem-se os direitos especiais para os grupos indígenas,reconhecendo-os como usufrutuários especiais de determinados territórios,sendodefinidoscomoespaçosindispensáveisàreproduçãofísicaecultural,deacordocomseususosecostumes.

Seguido pela legislação infraconstitucional, decorre desse marco legal(ver IMAGEM 6) que as políticas públicas de qualquer natureza e em todoterritórionacionaldevamgarantirinstrumentosdeequalizaçãodaparticipaçãodosgruposindígenas,respeitandoasdiferençasculturais,modosdeexpressãosocialeeconômica15.

Imagem6-MarcodaTerraindígenadeUmariaçú

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Fonte:Aautora(2014).Segundo a narrativa de seuValcir, a origemdo nomeda comunidade se

deuatravésdoseguinteepisódio:Não é comunidade que chamaUmariaçú é garapé que chamaUmariaçú,

primeironomedessegarapééUareté.Aí,nomomentoqueTicunaprimeiromoraaqui,ondeestavaigrejaassembleiadeDeus,aqui,antigamentenãotemnenhum, não tem nem branco, não tem ninguém. Lá doBrilhante tem casasindígena, e casas dos civilizados só isso. Aí, morando, então, chegou umnegro. Aí, depois desse aí, chegou branco. Aí, na saída da boca do garapé,

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chegouummoreno,veionãoseidaondené?chegou,aí,ficoumorando,temteufilhadelenovinhaquemoravacomele,15anostinha.Aí,umdia,lavandoroupa sozinha ela no garapé, sozinha, ela.Aí, pai dela se lembra dela e vaibuscarelanogarapé10horasdamanhãlembradelae,quandopaidelaveiovê, ela, ela levantar epulandodevezdentrodaágua,quandopulandonuncamasboioua filhadele,nomedelaMariadaCosta.Aí,outragentechamadeMariagrande,porqueamoçaeramuitogrande,oumelhorderamoutronomepelofatodesergrande“UMARIAÇÚ”,quequerdizerMariagrande,aíficouassim(informaçãoverbal)16.

Poucos conhecem essa estória do surgimento do nome da comunidade.

EssaémaisumaestóriadeseuValcirqueelelembrouquandoeulhepergunteia origemdo nomeda comunidade.Em resposta, ele recordou esse episódioqueosavósdelecontavamparaseusirmãos.

O clima na comunidade Umariaçú I é quente e úmido com chuvasconstantesduranteosmesesdeinverno,queiniciaemnovembro/dezembroeatinge o ponto máximo nos meses de abril/ maio. Inicia-se geralmente emjunho/julhooprocessodevazantedorioSolimões.Operíododavazantedorio se caracteriza pela abundância de alimentos silvestres e cultivados,contrárioaoperíododacheiadosriosquesecaracterizapelarelativaescassezdealimentos(cultivadosesilvestres).

TodaaproduçãoagrícolanacomunidadedeUmariaçúIéretiradadaroça.É da agricultura que vem o sustento de grande parte das famílias dacomunidade;desdeaalimentaçãoparaoautoconsumoatéavendadeprodutos.Durante a pesquisa percebi que a roça consome grande parte da jornada detrabalho das famílias indígenas Ticuna, sendo nela traçada a cultura da vidafamiliar.Todavezqueeu ia falarcomseuValcir,paraparticiparda festadafilhadele,eleestavaausentedecasa.Procuravaalternaroshoráriosparatentarencontrá-lo,masnuncaoachava.Umdia,àtardezinha,conseguilocalizá-los;eleentãomeexplicouquesaiatodososdiasàsquatrohorasdamanhãparaasuaroça,paralimparecolheresóretornavaànoitinha.

DasroçassaemosalimentoscultivadosparaarealizaçãodaFestadaMoçaNova,autoconsumoevendasfeitasemdoisperíodosdosanos:noverãoenoinverno.Dessemodo,os indígenasgarantemumaroçamaduraeumaverde,demaneiraqueháváriasroçasdemandiocaparaaproduçãodefarinhaoanotodo.Durante algumas visitas à roça de seuValcir, constatei que ele plantoumuitamandiocaparaaFestadaMoçaNova,juntocomseusparenteseamigos.

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Elestrabalhavamcomtécnicasbemtradicionais,ouseja,umtrabalhomanualárduo.Apartirdasentrevistas,realizadas,verifiqueiquenasroçasécultivadaamacaxeiraouamandiocajuntamentecomasplantasfrutíferas,quetemseutempodecolheitacomoficaevidentenatabelaaseguir.

Tabela2-Épocatempodeproduçãodosalimentoscultivadosnaroçade

seuValciremUmariaçú/Tabatinga-AMPRODUTOSCULTIVADOSNAROÇADESEUVALCIR

PRODUTO ÉPOCADOANO TEMPOPARASECOLHER

Abacaxi Setembro/Novembro 1a2anosBanana Junho 1anoCaju Novembro 9mesesCana Dezembro 1anoCubiu Janeiro 1anoIngá Janeiro 1ano

Farinha JaneiroaDezembro De6em6meses

Macaxeira JaneiroaAbril 5a7meses

Mandioca SetembroaNovembro 9meses

Tucumã Janeiro 1anoFonte:Aautora(2014).

DiadoÍndioemUmariaçúIForneço aqui uma descrição da festa do Dia do Índio, ocorrida na

comunidade Umariçú I, no dia dezenove de abril de 2014. De manhã cedoacordocomosomdascaixasamplificadastocandomúsicasTicunamuitoalta.Olho pela janela da casa de seu Valcir (pai da moça nova) e observo amovimentação das pessoas se dirigindo ao posto de saúde local ondeaconteceriaacomemoraçãodoDiadoÍndio.Tomamoscafé(cafépretocomtapiocaebolacha),depoisfomostodosparaopostodesaúdeparaprestigiarafestadodiadoíndio.

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Aochegar,medirigiàcasagrandenaqualtodosqueiriamseapresentarestavam se organizando, enfeitando-se e se pintando com jenipapo. Logoescutoairmãdamoçanovameperguntarseeunãoqueriaquemepintassemtambémparamarcarmeuclã.Respondiquesim.AfilhadeseuPauloMendeséaresponsávelpelaspinturasdealgunsclãsnoqualse incluiomeu,Galinha.Depoisdeesperaralgumtempo,chegaaminhavez.Nomesmomomento,ocacique chega a casa e explica, no alto falante, para toda a comunidade quedentrodeinstantesaprogramaçãomarcadajáiriaseiniciar.Convidoutodaacomunidade a participar lembrandoque “odia do índio é tododia e não sóhoje”.

Umpequenopalcofoiorganizadonavarandadopostodesaúdejuntocomum cercado onde ocorreriam as apresentações de grupos musicais dacomunidade e grupos de dança de adultos e crianças. O cacique (ValdirMendes) abriu a comemoraçãopedindodesculpas aospresentespelo fatodenãotersidopossívelprepararmuitacoisa.Eletinhaorganizadoumagincana,junto com premiações para bailarinos, mas não foi possível porque aprefeituralocaldeTabatinganãodoouosprêmios,comoprometido,ficandopara outra ocasião.Apesar disso, aconteceriam duas apresentações de dançapara mostrar que “o povo Ticuna ainda não perdeu seus costumes, suacultura”,eoutrasduasapresentaçõesseriamdosgruposdemúsicoscantandonalínguaticuna.

Concluídoodiscursodocacique,seuSabáNogueira,vestidocomcamisaebermudajeans,segurandoemumamãoumpapelcomváriosnomesenaoutraomicrofone, pediu a atenção dos presentes para o início da cerimônia. Elefalou sobrea importânciadadatapara todo índio, enfatizandooorgulhodeseríndioeaslutasqueelestravamparagarantirsuasterras,seusdireitos.Eletambém discorreu sobre a necessidade de divulgação de tal datacomemorativa, que não deve ser importante apenas para os índios, mastambémparaas“autoridadesdefora”.

ComooprefeitodeTabatinganãocompareceu,elessesentiramnodeverde sublinhar que o convite foi feito, mas, sempre era assim, nuncacompareciam na comunidade para ver suas festas, se lembravam apenas naépocadepolítica.Emseguidacadaumdosqueali tinhaonomenopapeldeseuSabáseaproximaramparapronunciaremseusdiscursos,maisoumenoslongos, sempre na língua ticuna, se referindo aos ali presentes como“parentes”.

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Umtemabastantediscutidoportodosfoiaquestãodalínguamaterna.Umprofessor da escola indígena da comunidade declarou que “ninguém podeproibiroíndiodefalaralínguadentrodaescoladele.Istoéumdireitodeleeestáescritonopapel.Sealguémfalarissonaminhafrenteeuvoucolocarumprocessonessapessoaporqueelanãotemessaautoridade”.Observeiqueentrecadafalatocavasempreamesmamúsica,vindadacaixadesomamplificada,colocadanavarandadopostodesaúde.Osomerabemalegreecontagiavaatodosqueestavampresentes.

Depois dos discursos feitos pelos palestrantes convidados, o microfonevoltouàsmãosdeseuSabáqueanunciouumapequenaparadaparaumlancheoferecidopelo cacique e algumas autoridadesda comunidade. Já passavadomeiodiaeosolestavaescaldante.TodossedirigiramparaacasadeseuJoãoonde estavam servindo açaí com farinha e açúcar. Eu fui uma das últimas apegaroaçaí,porqueafilaestavagrande.

Depoisdealgumtempo,asapresentaçõestiveraminício,começandopelogrupo de dança das crianças. Elas demonstravam que desde pequena eramestimuladas a aprender sobre a própria cultura. Em seguida houve aapresentaçãodeoutrogrupodeadultosquedançavamamúsicacacique/moçanova/Pajé, que fez sucesso na comunidade. Nos dias normais era possívelouvir essamúsicanamaioriadas casasnacomunidade.Ela foi cantadapelocacique da comunidade, seu Valdir Araújo Mendes, e por AngelinaMonçambiteManoel.AmbospertencemaoclãAwaí.Elesgravaramháumanona língua ticuna, e todos gostam de seu ritmo. Logo depois, houve muitabebidaservidanacuia(payuaru/caiçuma)–que,porsinal,estavaumadelícia.O último grupo a se apresentar foi o dos cantadores regionais indígenas dacomunidade. Eles encerraram as comemorações daquele dia tão importanteparatodososindígenas.

Durante as apresentações, pude verificar que a tecnologia entrou nacomunidadeplenamente.Haviamuitaspessoasdacomunidadefotografandoosgrupos.Amaioria era de jovens com celulares de última geração, inclusivetablets,ummaiorqueooutro.

Porfim,ocaciqueagradeceuapresençadetodos,anunciandoqueafestacontinuaria na casa de seu Paulo Mendes com música ao vivo para quemquisessedançar.Algumaspessoasaceitaramoconviteesedivertiramatécairuma chuvamuito forte, quando, aos poucos, todos foram se dirigindo parasuascasas,enquantoeuretorneiparaacasadeseuValcir.

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É importante pensar que tanto a Festa da Moça Nova quanto acomemoraçãoalusivaaoDiadoÍndioestãoligadasaumritualqueexpressaaculturae tradiçãodopovoTicuna.Ambasretornamaoseurepertóriomíticode ummodo bemparticular, apresentando suas origens, o que é ser índio equal o futuro do índio sem sua cultura. As duas demonstram algumassemelhanças ao expressarem as complexidades e as tradições de ser Ticunanessesrituais.

Imagens7e8-MoçasnovasegruposdecriançasTicunaseapresentando

noDiadoÍndionacomunidadeUmariaçú

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Fonte:Aautora(2014).Imagens 9 e 10 - Cacique da comunidade Umariaçú I e convidados

merendando

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Fonte:Samias(2014).Relaçõescomoutrospovosindígenasecomosvizinhosnãoindígenasda

regiãoOsTicuna são citados na literatura histórica da regiãoAmazônica como

inimigos dosOmágua (moradores damargem esquerda doAlto Solimões).Historicamente,umadasprimeirasreferênciasaosTicunaremontaameadosdo século XVII, e se encontra no livro “Novo descobrimento do rio

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Amazonas”, de Acuña (1994), mostrando-os como inimigos dos Omágua.SegundodadosdoISA(2014,s.p.):

Os primeiros contatos com os brancos datam do final do século XVII,

quandojesuítasespanhóis,vindosdoPeruelideradospeloPadreSamuelFritz,criaramdiversosaldeamentosmissionáriosàsmargensdorioSolimões.Essafoi à origem das futuras vilas e cidades da região, como São Paulo deOlivença, Amaturá, Fonte Boa e Tefé. Tais missões foram dirigidasprincipalmente para os Omágua que dominavam as margens e as ilhas doSolimões, impressionando fortementeos viajantes e cronistas coloniais peloseu volume demográfico, potencial militar e grande força econômica. Osregistrosdaépocafalamemmuitosoutrospovos(comoosMiranhaouosIçá,Xumana,Passe,Júri,entreoutros,dadoscomoextintosjánaprimeirametadedo século XIX pelos naturalistas viajantes), que foram aldeados juntamentecomosOmáguaeosTicuna,dandolugaraumapopulaçãoribeirinhamestiça.

OsTicuna sódesceramparaasmargensdocursoprincipaldoSolimões

apósotérminodopoderioOmágua,noséculoXVIII,emedianteaexploraçãoda borracha na região na segundametade do séculoXIX (PORRO, 1992, p.15).

ApartirdasduasúltimasdécadasdoséculoXIXeiníciodoséculoXX,aAmazôniacomoumtodosetornaráumlugarporexcelênciadaexpansãodefronteira do Estado brasileiro, esse último influenciado majoritariamentepelos Estados Unidos e Inglaterra, países que buscavam a apropriação daborracha (ou “ouro negro”, na época assim chamada), pois estavamenvolvidosnaSegundaGuerraMundial.

ParaOliveira(1996,p.71):No que concerne aos Tükúna, a tradicional beligerância entre eles e os

Omágua (comvantagem sempre destes últimos) impediu pormuito tempo adescidadosprimeirospara asmargensdogrande rio, fatoqueos livroudereceberemo impactocomacivilização,aomenoscomamesmaintensidadecomqueforamatingidososOmágua.

Apósalgumtempodeescravidão,asepidemiasdevaríolaeoutrasdoenças

europeias, assim como a guerra entre os portugueses e os espanhois pelo

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controle do território, fizeram com que os Omágua, que moravam nasmargenseilhasdoAltoSolimões,fossempraticamentedizimados.Assim,osTicunapuderamdescerouforamdescidosparaasmargensdoSolimões.

DeacordocomGoulard(1994,p.316),[...] los antepasados de la población Ticuna pudieron constituir una

poblaciónriberiña,quedebidoafuertepresionesguerreras,sevioobligadaarefugiarseenunazona interfluvial.Alceder lapresióncon la llegadade losnuevosconquistadoresespanholeseportuguesesalAmazonas,lêsfueposiblereocuparsuyaantigoterritório.

Os Ticuna também possuem relações com outros povos indígenas por

meio de alianças matrimoniais com pessoas de outros povos como osKokamas,KanamarieKambebas.

ParaWagnereRubim(2012,p.69),osKokamajánãofalavama língua,seus filhos viviam e conviviam com tios, tias, primos e primas,mas não sereconheciamcomoíndioKokama;elescasavamcompessoasdeoutrospovos,sobretudo os Ticuna, e passavam a se identificar como tais. Foi umprolongadotempodenegaçãoedeexistênciaatomizada,cujasmanifestaçõesculturaisencontravam-sesubmetidasàquelasdeoutrospovos,principalmenteosTicuna,cujaexpressãodemográficaeterritorialostornavampoliticamentehegemônicos.

A relação dos Ticuna da comunidade deUmariaçú com os vizinhos nãoíndioséhistoricamentemarcadapormovimentosconstantesdeaproximação,trocas,relaçõeseconômicasematrimonias.HánãoíndioscasadoscomTicunaquemoramnacidadedeTabatinga(próximoàcomunidade).Outros“brancos”que costumam comprar peixe, galinha, banana e farinha dentro da TIUmariaçú. Há também as constantes visitas dos não índios na TI,principalmente, aos domingos, quando a população está de folga de seustrabalhos.Ospoderesxamânicoede“reza”tambématraempessoasdacidadepara a comunidade com a finalidade de serem “curadas” de váriasenfermidades.

Relaçõescomomovimentoindígenadaregião

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Apartir de 1970, surgem as primeiras reuniões domovimento indígenaTicuna para juntos se organizarem em forma de grupos de lideranças paracriarem organizações e representatividades frente ao Estado Brasileiro etambém junto à comunidade Internacional. Por meio de assembleias comlíderesindígenas,reuniam-senacomunidadedeCampoAlegre(SãoPaulodeOlivença/AM), com a finalidade da demarcação de terras pertencentes aosTicuna.

A partir desse movimento o povo Ticuna começa a organizar váriasformasdeestratégiaspolíticasparalutarporseusdireitosconstitucionaiscomopropósitodegarantiraautonomiaeodireitodedefinirasprópriashistórias.

Em 1982, foi criado, pelos Ticuna, o Conselho Geral da Tribo Ticuna(CGTT), com a intenção de lutar por um processo de desenvolvimento daSaúde e Educação, dando ênfase ao respeito das especificidades próprias.OCGTT vem buscando proporcionar um quadro aos Ticuna dirigentes egerenciadores que sejam aptos a desenvolverem propostas que estejampautadasnareflexãodasnecessidadesreaisdosTicuna.

A partir da constituição de 1988, houve o reconhecimento dos povosindígenas como atores capazes para entrarem em juízo através de suasorganizações, rompendo, assim, como status que era a eles designado peloartigo6ºdoCódigoCivilde1916,sendoqueoparágrafoúnicoestabeleciaoregimetutelar.

A constituição de 1988 definiu os direitos indígenas como direitoscoletivos, reconheceu seus direitos culturais e a organização própria. EssesdireitosforamcontempladosporumapolíticanacionaldeeducaçãoindígenapresentenaLeideDiretrizeseBasesdaEducaçãoNacional(Lei9394de20dedezembrode1996).

Logo surgiram outras organizações como: a Organização Geral dosProfessores Ticuna Bilíngues (OGPTB), em 1986; a Organização dosMonitores de Saúde do Povo Ticuna (OMSPT); a Coordenação dasOrganizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), em 1989, aOrganizaçãodeSaúdedoPovoTicunadoAltoSolimões(OSPTAS),em1990;a Associação de Mulheres Indígenas Ticuna (AMIT); a Associação deartesãos/a eCultura IndígenadeUmariaçú (ACIU);Polícia IndígenadoAltoSolimões(PIASOL),em2008;etc.

ParaGersem(2006,p.58,61-62),

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Movimento indígena, segundo uma definição mais comum entre asliderançasindígenas,éoconjuntodeestratégiaseaçõesqueascomunidadeseasorganizaçõesindígenasdesenvolvememdefesadeseusdireitoseinteressescoletivos [...]Organização indígenaéa formapelaqualumacomunidadeoupovo indígena organiza seus trabalhos, sua luta e sua vida coletiva. Sendoassim,todacomunidadeindígenapossuisuaorganizaçãoouorganizações.Elaécomotalumaorganizaçãosocialprópria.Aexistênciadeorganizaçãoéumanecessidadecoletiva,umavezqueaconvivênciasóépossívelcomummínimodeordenaçãointernaemquehajadefiniçãodeobjetivos,metas,estratégiaseaçõesaseremdesenvolvidascoletivamente,alémdadistribuiçãode tarefaseresponsabilidades.Ocacique,otuxaua,olíder,opajé,oprofessor,oagentedesaúde,opaidefamíliaeoutrosagentesemembroscomunitáriosfazempartedaorganizaçãointernadeumacomunidadeindígena,namedidaemcadaumpossuisuafunçãoeresponsabilidadebemdefinidas,conhecidasecontroladasportodos.

A partir dessa contextualização, novas perspectivas de comportamento,

valorizaçãoerespeitoforamsendoconstruídas.Osindígenassemobilizarame assumiram a discussão de sua autonomia, quando vieram a públicoreivindicaroqueeranecessárioparaseupovo.

Somente em 1990 que os Ticuna ganharam o reconhecimento oficial damaioria de suas terras. Hoje, eles enfrentam o desafio de garantir asustentabilidade econômica e ambiental e de manter viva sua riquíssimacultura.

AcidadecomocentrodecomércioelazerDuranteasentrevistasemcampo,constateiqueosTicunadeUmariaçúvão

à cidade deTabatinga eLetícia (Colômbia) com frequência para a venda deseusprodutosdaroçaedoartesanato.Amaioriadasfamíliasvaiparaacidadede moto ou a pé, com bacias na cabeça, carregando seus produtos. Nopercurso,algumaspessoasdacidadecompramfarinha,macaxeira,peixeseatéo destino final comercializam tudo que levam. O objetivo é chegar à feiramunicipal de Tabatinga ou à feira provisória dos Ticuna, situada namesmacidade.Masháosquepreferemvenderosprodutosnomercadoinformalemtornodosportoseavenidasondehágrandemovimentaçãodepessoas.

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Navolta,osTicunapegamocoletivoquefazrotainternanacomunidadeindígena até a cidade deLetícia e vice e versa.Com o dinheiro das vendas,comprammateriaisescolaresparaosfilhos,roupas,mosquiteiros17,calçados,enfim são mercadorias de que precisam e às quais não têm acesso nacomunidade.

NacomunidadedeUmariaçúexisteaigrejacatólicaeigrejasdediferentescorrentes evangélicas, a saber: Cruzada, Assembleia de Deus, Madureira,PlenoeTradicional/Tocü.MasébemcomumvocêverapresençadosTicunaem algumas igrejas evangélicas na cidade de Tabatinga principalmente aosdomingos. A igreja católica atua com os Ticuna através das paroquias daDiocese do Alto Solimões, onde os missionários visitam a comunidade etentamtransformaralgunsjovensemcatequistas18.

Finalmente,éimportanteconsideraracidadecomocentrodelazerparaosTicuna.Acreditoque,alémdocomércioedaescola,elessesentemmotivadosem frequentar esse espaço de diversão e descontração. São frequentadaspraças,danceterias,bares19,sorveterias,lanchonetesecentrosdebanhos20.AmaioriasãoestudantesdeensinomédioedeensinosuperiordaUniversidadedoEstadodoAmazonas(UEA)dacidadedeTabatinga.Constateiquesempreeles estão informados sobre os eventos locais como: torneios de futebol,shows e festas da cidade.Unsme falaramque eles se informamatravés dosrádioslocaisedeseuscolegasnãoindígenas.Outrosvãoàcidadeparabeber(já que na comunidade é proibido o consumo de bebidas alcoólicas) enamorar.Tambémécomumfamíliasiremàcidadeparapassearedançarnasfestas em locais pequenos. Nas grandes festas que acontecem na cidade deTabatinga e Letícia, como o Aniversario da Cidade21, Pirarucú de Oro22,FINCATA23, e o FESTISOL24 é normal que os Ticuna amanheçam o diabêbados, uns dormindona beira da rua, outros emhospedarias ou hotéis dacidade.

PolíticasPúblicas:benefíciosocial,saúde,educaçãoescolarUm dos principaismotivos dos Ticuna se deslocarem para a cidade é a

buscadebenefíciossociaispormeiodeórgãospúblicoscomo:FUNAI,INSS,Prefeitura Municipal, Cartórios, Bancos, Correios, SEMED25, SEMSA26,SEDUC27eoutros.

ComoaadministraçãoRegionaldaFUNAIestá localizadaemTabatinga,na avenida da amizade, os Ticuna se dirigem a esta sede para pedirinformações, adquirir documentos e/ou orientações para resolverem outros

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problemas.OscaciqueselidereslocaistambémsedirigemtambémaFUNAIàprocuradereivindicaçõesgeraisqueenvolvemtodaacomunidade.Épossívelobservá-loscompondofilasenormesnaportadaagênciadoINSSnacidadedeTabatinga. Os Ticuna usufruem desse serviço para solicitar aposentadoriasruraiseporinvalidez,auxíliomaternidadeeoutrostiposdebenefícios.

Geralmente,nofimenocomeçodecadamêshágrandesmovimentaçõesnosbancos(BradescoeBrasil)enascasaslotéricasouCaixacomapresençadapopulaçãoindígena.Registreiaquantidadedeindígenasdeváriasetniasqueao receber os benefícios, aproveitam para pagar talões de água e energiaelétrica.

Alguns indígenasTicunafrequentamaPrefeituradeTabatingaparapedirpassagensparaacapital–Manaus–afimdelevaremseusparentesenfermos,outros querem bolsas de apoio. Mas é na SEMED, SEDUC e SEMSA quevemos com mais frequência a presença indígena. Estes vão em busca deinformaçõesoudemandasdepedidoscomo:solicitarbolsaescolaematerialdidáticosparaosfilhos.

Atualmente os professores, professoras e agentes de saúde indígenaspossuem uma relação maior com a sociedade envolvente, e tornaram-sefalantes fluentes de português. O manejo da língua facilitou muito oatendimentonessessetoresparaapopulaçãoindígena,dentreelaosTicuna,osresponsáveisporassumiralgunscargosnacomunidade.

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CapítuloII:RITUALDAMOÇANOVANACOMUNIDADEINDÍGENAUMARIAÇÚ/TABATINGA(AM)

Este capítulo tem como finalidade descrever o Ritual da Moça Nova

Ticuna.No texto, compartilhoa experiência etnográfica (GOLDMAN,2006)vivenciadaduranteminhaparticipaçãono ritual enaconvivênciadiária comos membros da comunidade de Umariaçú I. A etnografia é resultado doencontro de diferentes vozes.Nela, procuro traduzir ecos narrativos da faladosmaisvelhosedosadultosdacomunidade,assimcomodasmoçasnovas,entrevistadasemcampo.TemostambémrelatosdeindígenasTicunadeoutrascomunidades,convidadosparaassistiraoritual.

CaracterizaçãodolocaldaFestadaMoçaNovaYo’i criou e deixou no mundo a festa da moça nova para nusso povo

Ticunanuncaesquecernussastradições.Umariaçú28A configuração plástica da casa onde acontece a Festa daMoça Nova é

quaseamesmadealgumasfotografiasdacasadamoçanovaqueseencontramno museu Maguta, apenas o tamanho e o local da construção sofremalterações.

Taisalterações sedevemàquantidadedeconvidadoseao fatodea festaser realizada em comunidades diferentes ao longo dos anos. Isso porque oritual deve acontecer sempre na comunidade onde vive a família da moçanova.Inicialmente,éerguidaaarmaçãodeumacasa,semjanelas,nemportas.Sustentadaporpauslaterais,acasainstaladaérevestidaporumacoberturadepalhaseca.Aobraconcluídamedeaproximadamente7x10m(setemetrosdefrente,por10defundo).

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Valeressaltarquetodososmateriaisutilizadosparaaconstruçãodolocalda festa são coletados e ou extraídos da floresta pelos própriosTicuna, quepromovem um acabamento manual extremamente tradicional à casa. Comoúltimaetapadecaracterizaçãoestruturaldolocal,éconstruídooturídamoçanova,ondeelapermaneceránostrêsdiasdefesta.

Concluída a construção da casa, são erguidos os tablados laterais paraacomodaraspessoasdacomunidadeeosconvidadosquequeiramarmarredepara descansar durante a madrugada ou mesmo sentar um pouco. Assim olocal da Festa da Moça Nova é construído. Desde os tempos remotos esseprocessoobedeceaomesmomododeconstrução.

Seu Valcir convidou os pais de duas moças Ticuna que estavam paramenstruar para ajudar na construção da casa de sua filha. As comunidadesTicuna que fazem o ritual da moça nova possuem, em geral, uma casaespecialmenteconstruídaparaestetipoderitual.TiveahonradeprestigiarospreparativosnacomunidadedeUmariaçúIaconvitedocaciquequedeuessainiciativacomoobjetivodesemprehaveresteritualnacomunidade.

AcasadaFestadaMoçaNovadeUmariaçúIfoiinauguradanodia20dejunhode2014.Aquelefoiummomentobemsignificativo,poisse tratavadaprimeira Festa da Moça Nova do clã Awaí, realizada na comunidade comconvidados de órgãos públicos e ONGs como FUNAI, SESAI, FOCCIT eoutros. Talvez isso tenha sido determinante para que uma singularidademarcasseafesta.FoiaprimeiraFestadaMoçaNovaemcujaaberturahouveummomento cívico com a entoação do Hino Nacional brasileiro diante daBandeiradoBrasil,“guardada”porummeninoeumajovem,ambosTicuna.AsegurançadoeventoficouporcontadaPIASOLdacomunidadedeUmariaçúedeoutrascomunidadesTicunadaColômbia.

Imagens 11 e 12 - Casa damoça nova durante a construção e no dia da

inauguração

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Fonte:Aautora(2014).Imagens13e14-PIASOLnafestadeinauguraçãodacasadamoçanova

emUmariaçúI

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Fonte:Aautora(2014).Imagem15-CroquidaFestadaMoçaNova

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Fonte:EliasGrande(2014).Fui à Festa de Debüna Det’chiana29! Etnografia de uma festa (02/05 a

04/05de2014)Emjaneirode2014, realizeiváriasvisitasàcomunidadeUmariaçúI,em

companhia do cacique e de alguns conhecidos, a fim de obter informaçõessobreadataderealizaçãodaFestadeWorecü.Emumdessesmomentos, fui

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informadadequepoderiaparticipardafestaqueestavaprevistaparaacontecerem maio. Assim que soube de que família era a moça nova, procurei meaproximar do “dono da festa”, como os Ticuna se referem ao pai damoçanova.ConvivicomseuValcireafamíliadeledurante40dias(30diasantesdafesta e mais 10 dias depois). Compartilhei o dia a dia da família em suahumildeeaconchegantecasanaTIdeUmariaçúI.

Oritualdamoçanovateminícioantesdafesta.Mesesantesdacelebraçãodafesta,opaidamoçanovapreparaumgranderoçadodemacaxeiraparaapreparaçãodasbebidasfermentadasecomeçaaabastecero“paneiro”30delecomascarnesepeixesmoqueadosparaodiadafesta.Realizarumritualcomoesse não é uma tarefa fácil, pois ocupa quase todo o tempodo pai damoçanovaedafamíliadela.Alémdocompromissodafamília,afestaexigequeosmembros convidados também colaborem no sentido de não apenascompareceràfesta,masdefabricarasmáscaraseasprópriasvestimentasqueserão usadas por eles durante o ritual. Atualmente, a temporada de preparoacontececomseismesesdeantecedência–emtempospassadosesseperíodoeradequaseumanooumais.

Naquelamanhãdequintafeira,numdiadeabrilde2014,foradacasa,otempoestavafechado.Nacozinhadepalha31doseuValcir,lenhaqueimavanofogão,erapossívelveroscigarrosdetabacosendofeitosali,comagilidadeeeficiência, assim como ouvir o zumzumzum de várias pessoas semovimentando para moquear32 as carnes de pato, guaribas33 e de peixe dediversasespécies.

Eume lembrodeestarexausta,masrealizadapor terconseguidogravar,nomeugravadorportátil,algumasmúsicasdoritual,cantadaspelaavóetiadaworecü.Foiumaoportunidadeúnica,jáqueelasnãomoravamnacomunidadeeestavamapenasdepassagemparaessapartedafesta.

PassamosatardeeanoiteinteiraouvindooscantosnacasadeseuValcir.Odiadafestajáestavapertoeaindahaviamuitascoisasporfazer:finalizaropreparo das bebidas fermentadas, obter mais caça e pesca para a festa eprepararosornamentosdamoçanova.Mastudotemseudevidotempo,horaelugar. Antes de entrarmos nos preparativos da festa é bom entendermos adivisãosocialdasnaçõesentreosTicuna.

OrganizaçãoSocialTicuna

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AorganizaçãosocialdosTicunaestádivididaemclãs,ou“nações”comosãoreferidos,atualmenteagrupadosemmetadesasquaisadotamosnomesdeárvores, animais terrestres e insetos (metade A) e aves (metade B). Essasnações regulamos casamentos, aorganização social epolítica.Membrosdeuma metade devem se casar com pessoas da metade oposta, e seus filhosherdamoclãdopai.Odesrespeitoàexogamia,secometidocasualmente,podeser punido com censura pública sem que haja exclusão definitiva dosindivíduos das atividades sociais. No entanto, as ligações incestuosasprolongadascausam“horrorerepugnância”aosparentesepodemresultarem“tragédias de sangue”, com acusações públicas e mortes violentas, que sãovistas, no entanto, como restauradoras do estado de normalidade (ERTHAL,2001).

SegundoOliveira (1996),osclãsTicunasão reconhecidosporumnometécnico, geral a todos eles, que é Kï’a, no idioma ticuna. Em português, osíndiostraduzem-nopornação,oquedemonstraaconsciênciaqueelestêmdoclã como unidade significativa no “sistema social tribal”. Nota-se que ocontato constante dos Ticuna com a sociedade nacional possibilitou a essesíndios a construção de uma reflexão sobre o significado dos própriosconceitos e da aproximação de sentido desses conceitos com os conceitosocidentais.

Aorigemdas nações é relatadanomito principal dosTicuna, omito de

criaçãodomundo,ondeos irmãosYoie Ipi, seusheróisculturais, criamoshomenseosseparampornações,ensinandocomocasarentresi.Nestetemposóexistiamosimortais(üüne)eYoiqueriapescarseupovo.Usandoumafrutade tucumã como isca, os peixes que pegava se transformavam em animais:queixada,porcodomato,sempremachoefêmea.Yoi,então,resolveutrocarde isca,equandoexperimentouamacaxeiraospeixes se transformavamemgente. Então pescoumuita gente. Seu irmão Ipi também pescou o seu povo,mas eram todos peruanos. Aqueles que Yoi tinha pescado eram os Ticunamesmo,eramopovoMagüta,quequerdizerpovopescadodorio.Essepovo,noentanto,tinhaumaúnicanaçãoeaspessoasnãopodiamsecasar.Então,osirmãos resolverammatar uma jacarerana e fazer umcaldo.Quandoo caldoficoupronto,chamaramaspessoasetodososqueprovavamdiziamogostoesabiam sua nação. Os primeiros que provaram receberam a nação de onça,depoisveiosaúva,eassimpordiante,secriaramtodasasnaçõesqueexistemhoje.(ERTHAL,1998,p.91-92).

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OliveiraFilho (1988,p.38) afirmaque“[...] a funçãodasnaçõesoudas

metadesselimitaemauxiliarnaregulaçãodocasamento[...]”,estabelecendoaproibiçãodecontrairmatrimônionãoapenasdentrodomesmoclã,masainda,dentro da mesma metade a que esse clã pertença. Em uma sociedademarcadamentesegmentar,ficaclaroqueasnações(clãs)easmetadesnãotêmsuasfronteirasdeatuaçãorestritasaouniversodomatrimônio.Semsombradedúvidas,oseuarcodeatuaçãovaialémdesseuniverso.

A descendência entre os Ticuna se dá por linhagem paterna, herdandotodosos filhosoclãdopai.NocasodoscasamentosdemulherTicunacomhomem não indígena, o clã dos filhos fica sendo Boi (Woca) (CAMACHOGONZALEZ,1999).

Opertencimentoàsnações(clãs)podeserdestacadoemsituaçõessociaiscomooritualdamoçanova,ocasiãonaqualosparticipantespintamorostocomgrafismosquesãoprópriosdoclã.Aspinturasdoturídamoçanovaedotrajedelatambémcorrespondemàsmetades,entreoorienteeoocidente.

Nimuendaju (1948) informa que as metades em que se estrutura asociedade Tükúna estão associadas, respectivamente, com o leste e o oeste.Com base nesse autor, Oliveira (1964, p. 69) refere que os clãs de lestepertencem a dyo’i e os de oeste a ‘e:pi, sendo dyo’i e ‘e:pi heróis culturaisTükúna.SegundoNimuendaju(1948),umadasmetadestemquinze“sibs”comnomes de pássaros. Oliveira (1965) oferece exemplos de clãs e sub-clãsTükúna,conformesegue:

Tabela3-MetadePlantas-MetadeAves

METADEPLANTAS

METADEAVESMETADEAVES

Clãs Sub-Clãs Clãs Sub-Clãs

AuaígrandeAuaípequenoejenipapoJenipapodoigapóAuaígrandeAuaípequenoe

CanindéVermelhaMaracanãMaracanãpequenoCanindéVermelhaMaracanãMaracanã

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Auaí AuaípequenoejenipapoJenipapodoigapóAuaígrandeAuaípequenoejenipapoJenipapodoigapó

AraraMaracanãpequenoCanindéVermelhaMaracanãMaracanãpequenoCanindéVermelhaMaracanãMaracanãpequeno

Buriti BuritiBuritifinoBuritiBuritifino Mutum

MutumcavalourumutumMutumcavalourumutum

Saúva

AçaíSaúva(‘nai(n)yeë)Saúva(tëku)AçaíSaúva(‘nai(n)yeë)Saúva(tëku)AçaíSaúva(‘nai(n)yeë)Saúva(tëku)

Japu JapuJapinhimJapuJapinhim

Tucano Tucano

Onça

SeringaranaPaumulatoAcapuCaranãMaracajáSeringaranaPaumulatoAcapuCaranãMaracajáSeringaranaPaumulatoAcapuCaranãMaracajáSeringaranaPaumulatoAcapuCaranãMaracajáSeringaranaPaumulatoAcapuCaranãMaracajá

Manguari

ManguariJaburuTuyuyuManguariJaburuTuyuyuManguariJaburuTuyuyu

Galinha GalinhaUrubu Urubu-rei

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Rei Urubu-rei

GaviãoReal Gavião-real

Fonte:Oliveira(1965)apudSampaio-Silva(2000).Numexercício de interpretaçãodoprincipal ritual dopovoTicuna, o da

moçanova,edeleituraconjuntacomindígenasTicunadeartefatosdaculturamaterial pertencentes a museus, Priscila Faulhaber estabelece uma relaçãoentreaspráticasrituaiseosfenômenosambientais.AocruzarosdepoimentosTicunacomaiconografiainscritanaspeças,asnarrativasdomitodeorigemeo modo como observam o movimento dos astros no céu, ela indica que osaber, frutode todasessasmanifestaçõesnestepovo,édifundidopelos ritos,possuiregistronaiconografia,exteriorizaomodocomopensamearticulamas soluções para os problemas que se apresentam nos lugares onde vivem,relativos ao meio ambiente, à meteorologia e às mudanças climáticas(TEIXEIRA,2012).

ParaCamachoGonzález(2003),omitodeorigemdopovoTicunaapontaalguns indicadores de como eles se orientam com relação aos fenômenosambientais,atravésdaassociaçãodamovimentaçãodosastrosnocéucomosprocessosambientaisocorridosnaterra,ourelacionandoavisibilidadedessesastrosnocéucomaocorrênciadealgumacontecimentoespecial relativoaoambiente,comocolheitas,chuvas,mudançadeestação,poisajustificativaparao aparecimentode astrosno céu, navisãoTicuna, é deque as estrelas estãosempre no céu, mas só se deixam enxergar em momentos precisos(CAMACHOGONZALÉZ,2003).

Geralmente essesmomentosprecisos sãodurante o ritual damoçanova.Um grande ritual é realizado quando a lua está cheia. Outro momentoindicador é período de plantio das roças de mandioca: elas são produzidassomenteduasvezesporano,ouseja,deseisemseismeses,umanoverãoeaoutranoinverno,envolvendotempoetécnicasclimáticasparaobtermandiocaoanotodo.

Constatou-seemdiversostrabalhosqueasociedadeTicunaestáorganizadade forma dual ou segmentada, ou seja, ela é constituída de dois elementosbásicos,osclãseasduasmetades(aveseplantas).Eafunçãodasnações(clãs)oudasmetadesselimitaemauxiliarnaregulaçãodocasamentoeemalgumasdistribuições de tarefas dentro e fora dos rituais indígenas Ticuna. Dessa

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forma,osclãsregulamumvariadolequederelaçõesqueforamestabelecidaspelosancestrais.

Emcampoalgumascriançascomidadeentreoitoadozeanosdesenharamalgunsrostosdepessoascomalgunsrespectivosclãs.Euacheiinteressanteepediparafotografarosdesenhosqueelaspintaram.Aseguirapresentoessesdesenhos feitosduranteumaatividadedas criançasTicunadesenvolvidadiasantesdoritual.

Imagens16e17-DesenhosdascriançasTicunanomeandoalgunsclãs

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Fonte:Vandercléia(2014).OspreparativosdafestaUmariaçúI,29deAbrilde2014Eraexatamente1hdamanhã.Depoisdeumdiadetrabalhovoltadoparaos

preparativos para a festa, estava organizando meu material de campo ecolocandopararecarregaramáquinafotográficaeogravadordevoz.Todosestavamdormindo.ApenaseueomacacodeestimaçãodeumadasfilhasdeSeu Valcir estávamos acordados. Meu corpo inteiro vibrava de expectativapeloqueaindaviriapelafrente.Depoisdealgumashoraseuconseguidormir.

Durante o café da manhã do mesmo dia, Seu Valcir me convidou paraacompanhá-lo à roça no dia seguinte para arrancar macaxeira e mandioca.Toda feliz, aceitei o convite na hora. As tias da moça nova logo me

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perguntavam se eu conseguiria acordar cedo ou se teria força para nãodesmaiar no caminho, pois o roçado da família ficava bastante longe dacomunidadeenãohavianenhumtipodetransporteparanoslevaratéolocal.Respondiquesim,equeteriadisposiçãofísicaparaenfrentaracaminhada.Fuiavisadadequesairíamosàs4h30,edequesóretornaríamosàs17h.Prepareiuma pequena mochila com algumas bolachas e água para levar. Estava tãoansiosa que passei a noite quase toda acordada, embalando-me na rede paraespantarascarapanãs,esperandootempopassar.Saímosexatamenteàs4hemponto.FoirealmenteumalongacaminhadaatéchegarmosàroçadeseuValcir.Afamília,jáacostumada,nãoperdeutempoecomeçoulogoaarrancarospésdemandioca.Foiumdiacansativo,maspercebiquetodoaqueleesforçovaliaapenaparaafamíliaquequeriarealizarumafestalindaparaafilha.Navolta,a caminhada foi mais difícil: estávamos carregando vários “paneiros” demacaxeira nas costas. Ao chegarmos em casa, no fim da tarde, estávamoscansados. Revendo o momento de ter estado lá, estando agora aqui, possoafirmarseguramentequefoiumdiamuitoprodutivoparatodos.

Aprendendoafazerasbebidasfermentadas:CaiçumaePayuaruÉimportantesalientarque,quandoumpaidamoçanovadeciderealizara

festaparasuafilha,eledevesepreparardurantecincoanos,tantonasuavidaespiritual como na sua vida carnal, o que é raro acontecer hoje segundo osprópriosTicunaemcampo.Essetempodepreparaçãodevedurar,nomínimo,um ano ou seis meses. Segundo o pai da moça nova, o ritual do qual euparticipei durou um ano a contar dos preparativos em relação à roça, caça,pescaeetc.QuandoeumantiveoprimeirocontatocomafamíliadeseuValcirparaparticiparda festade sua filha faltavaapenas trêsmesespara realizarafesta. A seguir apresento um desenho feito por mim e pela família de seuValcir para compreendermos a elaboração de algumas atividades de suafamília durante um ano até acontecer o ritual de sua filha Valdinéia (moçanova).

Imagem18-Atividadedafamíliadamoçanovaduranteumanoatéodia

doritual

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Mesesemqueocorreacheianorio

Lenhafabricaçãodecanoa

Mesesemqueocorreasecanorio

Pesca

Roçasdemandiocaemacaxeira

FestadaMoçaNova

CaçaTicunacultivandoaroça

Fonte:AautoraeValcir(2014).Namanhãdodiaseguinte,tiveaoportunidadedepresenciaroterminoda

produção das bebidas fermentadas na casa do irmão de seuValcir, chamadoSeuGino.Otrabalhomaiorduranteostrêsdiasdefestaéderesponsabilidadedoirmãodopaidamoçanova,oqualvaicomandarafestaduranteessesdias.Enquantoopaidamoçanovaficarádeolhoparaversetudoestáemordem,otiodamoçanovarecepcionaráosconvidadosquechegamdedentroedeforadacomunidadeparaparticiparemda festa,por issocabeaelemantera festaimpecável.Quando cheguei à casa de seuGino (tio paterno damoça nova),haviamuitoshomensemulherestrabalhandonacozinha,cadaqualcomumatarefa.DonaNelsina,tiapaternadamoçanova,mefalavaqueerafácilfazerasbebidas e que no momento em que cheguei elas já estavam quase prontas,precisavamdeapenasumdiaamaisparaficarnoponto.Elameperguntouseeuqueriavereaprender,aoquerespondiquesim.Então,elamedisse“sentaaí,eolha,quevouteensinarcomoéacaiçuma”.

[...]primeiro turancamacaxeira,quandojáestámadura,descascaecorta

empedacinho, numa bacia ou paneiro, para lavar e colocar numa panela.Apanela tem que ser forrado com folha de bacaba para não queima o fundo,comoestaaqui.Agora,vamoleváprofogoalenhaparaferverdurantedozehoras. Depois. troque de panela pra esfriar. Depois que ficá frio, comece a

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amassarcompedaçodecanaoupilãofeitodemadeira.Quandoamassativerpronta, coloca a batata doce, ralada pra adoçar, e guarda em uma vasilhachamadaigaçaba,feitadebarro,bemfechada.Esperepassardoisdiaspracoarnapeneira,praprepararabebida,eprontojáestáinfermentado,vaificarbemforteejápodebeber(informaçãoverbal)34 .

Nodiaseguinte,continuamoscomopreparodasbebidasfermentadas,na

casa de seuGino, na companhia dasmulheres da família damoça nova, dealguns vizinhos e parentes convidados. Preparamos payuaru, outra bebidatípicado ritual.O relato a seguir, sobre aproduçãodabebidapayuaru, édedonaFlorentina,tiamaternadamoçanova.

‘payuaru’éfeitadamacaxeirabrancatambém.Depoisquetudescascoua

macaxeira,partedecima,levaelacomtodaacascabrancapararalar.Apessoaresponsável em fazerabebida temquepassar amãono fundodo fornopraficarpreto,pradepoisfazeramarcadesuamãonamassaraladadopayuaru.Depoistemquecolocaramassadentrodotipitiprasecáepeneirá.Enquantoisso, os outros vão fazendo o fogo embaixo do forno e, quando o fornoestiverbemquente,colocaapuba.Sefortipobeiju,sedividiigualumapizza,pra puder virá os pedaços pra não queimar. Depois tirá do forno, quandoestiverbemassado,tupegaecolocaessespedaçosassadosemumpaneiropraesfriar. A pessoa que vai deitar o ‘payuaru’ tem que se preparar: tecer umpaneirinhopracolocáospedacinhosdentro,prapudermeteropaneirinhonaáguafervidopranãoqueimar,temqueprocuráfolhademaniwaparaforraemcima.Essafolhaéparaadoçaramassapayuaruéomesmoprocessoquandoétipo farinha: coloca farinha numa bacia para fazer igual pirão de comer eforraochãocomafolhadebananeirainajá,temquepassartrêsdiaspratiráamassa do paiyuru, vai ficá doce que nem açúcar. Tem que termais de cemlitrosdeáguaparacolocaremcimaprapudercolhermuitocaldodepaiyuru,colocamanichauwa(queéfeitocomfolhasecademaniwabempeneirado)emcima pra fermentação. Pronto é só servi no pote ou balde para beber(informaçãoverbal)35.

As bebidas oferecidas no ritual da moça nova, caiçuma e payuaru, são

típicas tradicionais, ambas feitas com macaxeira branca – própria para opreparo dessas bebidas. A farinha tem que ficar bem sequinha, mais que afarinha de comer e não se deve colocar a macaxeira de molho, como de

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costumenopreparodefarinha,porqueseamacaxeiraforpostademolho,afarinhavaiapodrecerenãovaifermentar.Sãoessasbebidasquesãoservidasaos convidados da festa, aos mascarados e aos instrumentos musicaissagrados.PorissoéimportanteaquantidadedebebidaemumaFestadaMoçaNovaparanãodeixarafestatristeoucalma.

Depoisdeaprenderomododeproduçãodasbebidasfermentadas,fuijuntocomelesparaacasadeseuValcir,guardaralgumasmacaxeiraseorganizarospotesevasilhas,paraconservarasdemaisbebidasqueestavamnafasefinaldepreparação.

Imagens 19, 20 e 21 - Bebidas fermentadas nas caixas e panelas para a

FestadaMoçaNova

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Fonte:Aautora(2014).Imagem22-Mulherescoandonapeneiraasbebidasfermentadas

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Fonte:Valcir(2014).OritualeostrêsdiasdefestaPrimeirodiaApós alguns dias de muito trabalho, finalmente, chegou o dia da festa.

Todosacordarambemcedo.Afestacomeçouoficialmenteàs06h12min,comum brinde de payuaru, na casa de seu Valcir (pai damoça nova) e com osdemais vizinhos que ali estavam. Aos poucos, foram se juntando ao grupoalgumasliderançasindígenasdacomunidade.OsTicunariramecomeçaramacantar canções que correspondem ao mito de origem deles. Em seguida,realizaramumpequenoritualdepajelançaparachamarosseresdaflorestae

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alimentá-los. Foi neste momento que apareceram as primeiras máscarasTicuna,“amãedamontanhaedatempestade”.Essasmáscarassãofeitasdepauda balsa, tururí36 e pintadas com jenipapo ou urucum, conforme os seusrespectivos desenhos míticos. Não consegui fotografá-las, porquedesapareceramrapidamente.

Em seguida, todos desceram para a casa ao lado, construída pelo seuValcir, local onde foi realizada a festa. Ali aparecerammuitas pessoas paraajudaracarregarasbebidasfermentadas,guardadasempotesecaixasd’águatampados. Uma mulher Ticuna e o irmão do pai da moça nova, seu Gino,serviramprimeiroopaidamoçanovaedepoisosdemaisconvidados.Haviabastante paiyuaru e caiçuma. Naquele primeiro dia de festa é normal quemuitas pessoas fiquem em círculos olhando o que as outras estão fazendo,principalmenteoshomensquetêmatarefadeconstruiro localondeamoçaficará “isolada”, chamado de turí 37. O turí é elaborado com as esteiras deburiti, à frentedelas sãopintadosdesenhosque representamasduasmetadesdos clãs. Os artistas da comunidade usam para isso jenipapo e urucum; aospoucosostraçosvãogerandoossímbolosdosclãs.Veremosmaisadiante!

Amoçanovaestavaisolada,emumquartodacasadopaidela,ondepodiase comunicar apenas comamãedela, donaEularia, e comas tiasmaternas,dona Florentina, Davina e Marta, que se dirigiam a ela para narrar váriosmitoseensinaroscomportamentosdeumamulherTicuna.Paraqueninguémpossa ver a moça nova sair de casa para o turí, é solicitado que todos ospresentessedirijamàcasadopaidelaparatomarpayuarue,depois,ajudaralevarassobrasdasesteirasdeburitiparaseremjogadasnorioSolimõesquebanhaacomunidade.Enquantoissoacontecia,amoçanova,nacompanhiadamãe e das parentasmulheres, aproveitou para sair pela porta dos fundos dacasadopaierapidamentesedirigiraoturí.

Imagens23,24e25-DonaGildatecendoaesteiradeburitiparaamoça

ficarsentadadentrodoturí

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Fonte:Aautora(2014).Aesteira,ou tapete,damoçanova foi confeccionadapelavizinhade seu

Valcir, dona Gilda. Commuita experiência ela teceu para amoça nova, emquestão de alguns minutos, o tapete demonstrado na Imagem 25. Outrosconvidados ficaram responsáveis em pintar o cocar de penas vermelhas dearara,atangavermelha,eajudarnaelaboraçãodoscolares,dasbraçadeiraseperneiras para a moça nova. Todos esses ornamentos são carregados deprofundos significados, mas não podem conter muitos detalhes, devem ser

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registrados apenas na memória dos mais velhos que repassam esseconhecimentoparaopróximoouapróximaTicuna,notempocerto.

Imagens26e27-Convidadospintandoosornamentosdamoçanova

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Fonte:Aautora(2014).

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Aochegar a tarde,o almoço foi servidoaospresentes.Todos formaramuma fila com a taça e o prato nasmãos, para “pegar” o delicioso caldo dejacaré,combananaverde,farinhaelimão.Almoçamosseparadosdascrianças.Emmomentoscomoaquele,semprehaviamaispessoasdoquenojantar.Apósoalmoço,asmaioriasdasfamíliasTicunasereúnemparaconversar,baterostutus e cantar no terreiro da festa, enquanto outras pessoas se ocupam emlimparoulavarlouça,roupaserealizaroutrosafazeres,nabeiradorio,e/ouno fundo do quintal. O som dos tutus não pode parar para que não haja osilêncioduranteafestaeoutrosseresseaproximaremparafazeremmalparaas crianças e/ou para quemnão passou pela festa ainda.Desde cedo, eles jáestão avisando do acontecimento da grande festa.O som desperta a atençãodosnãoTicunaqueestãopassandopelacomunidade.Aoouvirostutus,elesseaproximamparatentarentenderoqueestáacontecendo.

Ànoiteojantarerapreparadopelasmulheresticuna,enquantocantavamebebiamasbebidasfermentadas.Depoisdealgumashoras,fomosconvidadosasaborear o caldo de bacú38. Uma bebida deliciosa. Já era quase madrugadaquandotodosterminaramdecomer.EumedirigiparaacasadeseuValcirafimdedescansarumpouco,enquantoasoutraspessoascontinuaramnafesta,cantando e bebendo. Durante este primeiro dia de festa, percebi como aseparaçãodosclãsé importantenoritualdamoçanova.SemcompreenderaorganizaçãosocialTicuna,essapercepçãoéimpossível.

SegundodiadefestaAo amanhecer, a moça nova saia do turí para a sua primeira pintura

corporal e a colocação de seus primeiros ornamentos. Curiosos, todos seaproximavam para vê-la, mas o pai dela, imediatamente, pediu para essaspessoas em volta darem espaço. A primeira pintura é para afastar todos osmales do corpo damoça nova, algumas crianças também forampintadas dejenipapo e colocadas às primeiras penas de pássaros nelas. Foram suas tiasmaternasqueapintaram;esteepisódiodurouaproximadamentevinteminutos.

Imagem28-Saídadamoçanovadoturí

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Fonte:Valcir(2014).Depois disso, algumas pessoas foram tomar café na casa de seu Valcir,

servidoporsuaesposa,enquantooutrosTicunaficaramreunidosemgruposcirculares.Permaneciporalgumashorasobservandoepercebiqueumgrupodemulheres Ticuna estava servindo as bebidas fermentadas, enquanto outrogrupojáestavapreparandoascomidasparaosdoisúltimosdiasdafestaquefaltava.

Imagens29,30e31-MulheresTicunapreparandoacomidaparaafesta

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Fonte:Aautora(2014).Naquele momento, as mulheres dos dois grupos cantaram para a moça

nova, que ainda estava no turí, o canto de número dois “Worecü” do qualtranscrevo as letrasmais adiante.Este canto diz que hoje é a Festa daMoçaNova, todos vão colher jenipapo e ralar para pintar o cocar, os enfeites damoçanovaeaprópriamoçanovabebendoasbebidasdafesta.Ocantodurouquase seis minutos. Os convidados não indígenas que estavam ali presentesouviramcalmamenteocanto,eaindaquenãoentendessemnenhumapalavraticuna,suasreaçõesforamatenciosaserespeitosasnaquelemomento.Depoiselesqueriam tocaros tutusmaishaviapoucos,eapenasalgunsconseguirambateropequenotambor.

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Durante a tarde, aconteceu a dança do tracajá. Foram realizadas algumasbrincadeiraserodasdeconversaatéserviremoalmoço.Asapresentaçõesdosgrupos de batedores com instrumentos musicais tradicionais, como o tutus,continuaram juntamente com outros grupos de pessoas que “puxavam” osconvidados para dançar em círculos com eles.As crianças participamdesdemuitonovinhasdogrupodebatedores,poisdeverãosetornarosmúsicosdosfuturosrituais.

Imagens 32, 33, 34 e 35 - Representação das danças e apresentações de

batedoresdetutus

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Fonte:Aautora(2014).Naquela noite uma linda lua cheia saudou a moça nova. Geralmente, os

Ticunapreferem realizar a festa emnoites assimpor causada luminosidadenatural. Jantamoscaldode tucunaré,umsaborosopeixedaregião.Duranteanoiteamoçanovaficaempédentrodeseuturí,segurandootaperebá(nomede uma árvore da região) e ouvindo os conselhos que saem da aricana(instrumento sagrado). O taperebá émuito importante para a festa, pois ele

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servetambémdechocalhochamadoaruentreosTicunaparaopajébenzerosinstrumentos, acompanhar os cantos e as danças durante a festa.O casco dotracajátambéméamarradoemumavaradetaperebápararealizaradançadotracajá.Nofinaldafestaamoçatemqueatirarumaflechanotaperebáenviadonabeiradorioparaelatersaúde,vidalonga,serumaboamulhereparatermuitafarturadepeixenesserioparaosTicuna.

Amadrugadafoilongaemarcadapelosomdaaricanatocadosomenteporhomens Ticuna da comunidade que se reversavam durante a madrugada epediammuitabebidatradicionalparacontinuartocando.

Imagens36,37e38-Homenstocandooinstrumentosagradoaricana

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Fonte:Aautora(2014).Próximodoamanhecerdo terceirodia,notava-seumnúmerodepessoas

bemmenornafesta.Depoisdepassaramadrugadaadentroouvindoosomdaaricana e dos tutus, via-se o dia começa a clarear. Naquele momento, osmascaradosentraramparasaudaroamanhecer.EramasúltimashorasdaFestada Moça Nova. Eles representam os seres mitológicos. Nesse momento, amoçasaidareclusãodoseurecintoparareforçarasuapinturacorporal.Essapintura significa a defesa do corpo. Como a festa já está quase no seu

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momento final, osTicuna acreditam que os seres domal estejam por perto.Crianças, adultos e convidados não indígenas recebem a força daespiritualidadeparaaprópriasegurança.TodososfilhosdosTicunarecebemofechamentodocorpopelopajéatravésdobastãodotaperebáesuaspalavras,que só ele sabe o que significa, para não pegar doença, principalmente ascriançasquesemprepegamoespíritodomaldaflorestaedosanimais.

Imagens39,40e41-Convidadosecriançassepintandoduranteafesta

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Fonte:Aautora(2014).As máscaras continuam em cena. Elas imitam entidades ou animais,

representam os espíritos demoníacos que durante um tempo míticomassacravamosTicuna.Essasmáscaras lembramàmoçanovaqueoperigoexiste e ela pode ser influenciada por maus espíritos durante esta fase depuberdade.Osmascaradosdançam,brincamjocosamentecomosconvidadoscomoobjetivode lhesassustarede lhescausarmedo.ParaMatarezioFilho

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(2015), esse é omomento de os imortais aparecerem.Omomento dos nãohumanos,deummodogeral,seremaceitosedomesticadosnascomunidades.

Aatraçãoqueamoçaexercesobreos imortais tambéméexercidasobre

seresperigososqueaparecemnaFesta.OsmascaradossãoesperadosnaFesta,mas as pessoas devem defender a moça de suas investidas, segurando-os eoferecendobebidaecarnemoqueada.Nestemomento,ossereseestadosquesão antagônicos no cotidiano ticuna se juntam numa mesma Festa. E acondensaçãoentremortais e imortais emcursono ritual ticunaencontra seuepicentronasprópriasmoçasnovas.(MATAREZIOFILHO,2015,p.487-488).

Imagens42,43,44e45-Mascarados

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Fonte:Aautora(2014).Tudo é encaminhado para o momento da pelação, que significa a

renovação. A belamoça já se tornoumulher, podendo, assim, assumir umaposturadepessoaadultanasociedadeindígena.Osornamentossãoretiradosdocorpodelaeosmaisvelhoscomeçamaarrancaroscabelosdamoçanova.

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Todososparticipantesdafestadançam,tocaminstrumentosebebempaiyuarue caiçuma.Alguns ficam “bêbados”. Asmulheresmais velhas e parentas damoça nova começam a puxar os fios de seu couro cabeludo até arrancaremquasetodos,deixamapenasumpouconocentrodacabeçaparaserextirpadonoúltimodia.

Aavópaternadamoçanovanarraquenos ritosdepassagemanteriores,antesdapelação,ocourocabeludodamoçaerapreparadoparaqueelanãosentissetantador.Osmaisvelhosproduziamumapastaespecialamassandoosfilhotes da formiga tucandeiras. Esse procedimento facilitava a retirada doscabelos.Nesse ritual issonãoocorreu.Ocourocabeludodamoçanovanãopassoupornenhumpreparoantesdapelação.

ParaFaulhaber(1999,p.115),[...]o ritualdapelaçãodamoçanovaapareceassimcomoumaformade

revigorar a identidadeTicuna,naperformanceda sua estruturação social nosentido de tal reaproximação. Essa reaproximação, vista enquantoperformance, não implica uma tentativa de volta ao passado, mas a açãointerpretativadeidentificaçãocomaflorestaecomasforçasdanatureza.

AordemdeentradaeasmáscarasnoritualA tensão e a expectativa estavam instaladas causando até mesmo certa

ansiedade.Nãoeraoprimeiro ritualqueeuassistia,maseraoprimeiroqueobservavacomoutroolhar,edeoutrolugar,odepesquisadora.Cercade150pessoas, entre indígenas e não indígenas convidados, estavam presentesnaquelemomento.

Durante a cerimônia, os convidados não indígenas chegavam e seacomodavamcomopuderamnacasadamoçanova.Écomum“armarem”asredes de dormir, a fim de marcar um bom lugar de descanso durante amadrugada dos dias de festa. Os convidados do clã do pai da moça novaprecisam seguir “um protocolo”: devem entrar na casa pelo oriente, emdireçãoaoocidente.Deinício,osconvidadosindígenascantamalgunscantosque estão sendo cantados na festa pelas mulheres anciães da comunidade.Observei que alguns convidados indígenas Ticuna da Colômbia tiveramdificuldades em acompanhar os cantos naquele momento. De acordo commeus interlocutores, entoar determinados cantos depende muito da

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proveniência territorial (das comunidades), pois cada comunidade tem umadiferenteinterpretaçãodomitodeorigemedeseuscantos.

Enquanto isso duas mulheres ticuna entraram pelo Oeste no terreiro doritual para servir as bebidas tradicionais fermentadas caiçuma e paiyuaru.Outro grupo de homens Ticuna deram várias voltas circulares ao redor doterreiro,carregandoesteirasparaelaborarorecintodamoçanovaatéqueoprimeiroentroupelafrentedacasadamoçanova,peloladodireitoe,comosdemais homensTicunaderrubouno chão as esteiras e começama caminharemcírculonocentrodoterreiroatéasbatidasdostutuspararem.

Emseguida,atiapaternadamoçanovaseposicionanaentradaparatecero tapete de folhas de buriti onde amoça nova ficará sentada durante os trêsdiasde festa.Acompanhandoaquelemomento,outrogrupodehomensentracompequenasfolhasdoburitiparacolocarnochãodorecintodamoçanova.Apósreceberemaautorizaçãodopajédacomunidadequelideravaestegrupode homens os demais pegam as folhas e se dirigem para a parte detrás dorecintoondeamarramcomcipóemfilaessasfolhas.

Imagens46e47-Homensentrandocomomaterialparaaconstruçãodo

turídamoçanova

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Fonte:Aautora(2014).Imagens48,49,50-Processodeconstruçãodo turíourecintodamoça

nova

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Fonte:AautoraeValcir(2014).Imagens 51, 52, 53 e 54 - Processo de construção do turí ou recinto da

moçanova

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Fonte:Aautora(2014).Enquantoconcluíamaconstruçãodorecintoedotapetepelapartedafrente

do recinto da moça nova, os demais convidados ficaram circulando no

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entornodessesgrupos, ingerindoasbebidasoferecidasaeleseconversandoacercadedúvidassobreoritual.

Apósterminaremasconstruções,amoçanovaentrounoseurecinto,pelofundo da casa da moça nova, sem que ninguém a olhasse. Para isso serpossível,todossãoconvidadosasairpelafrentedacasaearecolherassobrasdasfolhas,palhasepausparajogá-lasnorioSolimões,queficapróximodacasadamoçanova.

As primeirasmáscaras entraram pelo lado Leste da casa damoça nova,pois o ritual está relacionado com o ambiente, com o destino material dogrupo e com sua cosmovisão. A moça nova deste ritual pertencia ao clãBarü/ave/pena/leste.Ascarnesepeixesmoqueados tambémtemumadireçãodeentradanacasadamoçanova:elasentrarampeloOesteconsiderandoofatodeamoçanovapertenceraoclãdeave.

Asmáscaras se apresentaram na festa, após o segundo dia, logo após apinturadamoçanovacomo jenipapo.Essaapresentação temcomoobjetivorelembrar alguns animais e outros seres que antigamente se transformavamemgenteeapareciamparaosTicuna.Asprimeirasmáscarasaentraremforamasde“mãedatempestade”e“mãedamontanha”.ElasentrarampeloOestenoamanhecer do primeiro dia da festa e permaneceram por pouco tempo. Foiuma apresentação tão rápida que não consegui fotografá-las. Segundo osTicunacomquemconversei, essasmáscarasestão relacionadasaumacobracaçadoraquemoranasmontanhasencantadasdoigarapéEware.

Nodecorrerdoritual,entraramoutrasmáscaras:máscarasdosmicos,damãedosventosedosmorros.Algunsmascaradosentraramdesfilando,outrosimitando os animais que representam. Os Ticuna possuem uma variedadegrande de máscaras rituais; a fabricação desses trajes é um trabalhoexclusivamentemasculino.Amatéria-primaprincipalutilizadaparaconfecçãodessas máscaras são as entrecascas de árvores, chamadas tururi, da qualexistem diversos tipos. Esse material é muito utilizado pelos Ticuna para aconfecçãodasmáscarasedosadornosparaafesta.

Boapartedafestasedesenvolvenasapresentaçõesdealgumasmáscaras,poistrazemaalegriadeperseguirosconvidadoscombrincadeirasjocosas–algunsgostameoutrosdemonstramsentirmedo.

Segundoo seuValcir, a quantidadedemascarados foi reduzida devido àpouca quantidade de carne moqueada e de peixes defumados que ele tinhadisponível para oferecer. Todomascarado recebeu sua parte da carne e dospeixes,alémdebeberemmuitopayuaru.

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Imagens55,56e57-Paidamoçanovaentregandocarneepeixeparaos

mascarados

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Fonte:Aautora(2014).TerceirodiadefestaImagens58,59e60-Momentodepelaçãodoscabelosdaworecü

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Fonte:Aautora(2014).Imagens 61, 62 e 63 - Momento de destruição do recinto daWorecü e

despachodosmateriaisnorioSolimões

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Fonte:Aautora(2014).Aproximadamenteàs11h39mindoúltimodiadafesta,osadornosforam

recolocadosnamoçanova.Osúltimosfiosdecabelodelaforamarrancadoseorecintofoidestruído.AmoçanovasedirecionouparaorioSolimões,comosdemaisconvidados,parasepurificar,dandomergulhosevoltasna flechafincadanopaúdetaperebánabeiradorio.Crê-sequeosbanzeiroslevamtodo

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o mal que estava por perto. Alguns materiais e objetos usados no ritualtambémforamjogadosno rioparaseremlevadospelobanzeiro.Logoapósessapurificação,amoça,quejápodeserchamadademulher,foiparaacasadospaisparadescansarecomer.NessemomentosepodedarporencerradaaFestadaMoçaNova.

Imagens64,65e66-MoçasNovasantes,duranteedepoisdoritual

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Fonte:Aautora(2014).Mesmoapósotérminodafesta,continueihospedadanacasadoseuValcir,

pormais 10 dias. Queria observar asmudanças na comunidade e, não só afamíliadamoçanova,mas“principalmenteela”.Foinesseperíodoquetiveaoportunidadedeconversarfinalmenteasóscomamoçanova,agoramulher.Valdinéia(Debüna)mecontouqueacabeçadelaestavadoendomuito,masqueagoraelaeramulheretudojáhaviapassado.

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Nãopensavaqueiasentirtantador,maisagorajámesintobem,vousótervergonhade ir na cidade comminha cabeçapelada...todosvão saberque fuiminha festa de moça nova. Agora sou mulher tenho que aprender a tecerpacaráqueaindanãosei,minhamãevaimeensinaredepoisvouvendernacidade(informaçãoverbal)39.

Depois de um “longo e esclarecedor bate-papo”, deixei a Valdinéia

descansar e fui ao igarapé fazer umas fotos. A comunidade de Umariaçú Iestavacalma.Diferentedosdemaisdiaspareciaque todosestavamcansados,apesardenemtodasaspessoasquemoramnacomunidadeteremparticipadoda festa. Naquele momento, eu comparei a comunidade às cidades dos nãoindígenas em dia de feriado nacional. Algumas casas onde gênerosalimentícios são vendidos estavam funcionando normalmente, havia pessoasvendendo peixe e verduras na beira do igarapé, como sempre, e outrasvendendofarinhaebananaverde.Àtardezinha,regresseiàcasadeseuValcirparatomarbanho.Algunsaindaderessaca,outrosdormindonoterreiroeascriançascorrendoebrincandonoquintal.

Nodiaseguinte,acomunidadeeafamíliadeseuValcirvoltaramàrotina.Eleeaesposaforamparaa roçacolher frutoseverdurasparavenderemnafeira de Tabatinga. Como de costume, os filhos menores, que estudavam àtarde,ficaramemcasanacompanhiadosirmãosmaisvelhos.EuacompanheiValdinéiaeairmãàescolaindígenaqueficanacomunidade,paravercomooscolegasiriamreagirquandoelachegasseàescola.Aprincípio,algunscolegasriramquandoaviram,oqueénormalentreosticuna.Elesriemdequalquerfatoatéquando seolhamouquando lhe fazemalgumapergunta.Depoisdasprimeiras risadas,ela falouna línguaTicunacomalgumasmeninaseentrounasaladeaula.Fiqueidelongeobservandooqueocorria,porém,nofimdascontas,euéqueestavasendoocentrodasatençõesenãoamoçanova.Afinal,nãoeratododiaqueuma“estranha”iaàescoladeles.

Apóso términodaaula,voltamosparaacasade seuValcir.Erahoradepreparar o almoço para todos. Como havia bastante peixe congelado norefrigerador,aindadoritual,fizemosumacaldeiradaecomemos.SeuValcireaesposachegaramsomenteàs18h.NestefinaldediafuibrindadacomavisitainesperadadedonaMarilza,vizinhadeseuValcir.ConversamossobreaFestadaMoçaNova.Ela repetitivamente falou: “nós,Ticuna, temosque cuidar danossa cultura”40. Ela se queixou de que o povo Ticuna, de certa maneira,estavasedistanciandodessacultura,derealizaroritualdamoçanovaemsuas

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comunidades. Para isso não mudar, ela explicou que os Ticuna tinham decuidar da cultura deles. No decorrer da conversar, donaMarilza confirmouumasuspeitaacercadomotivodeascomunidadesnãorealizaremmaisafesta:

OritualdamoçanovaerapraserfeitoemtodasascomunidadesTicuna,

como era antigamente. Foi nosso pai Y’oi que deixou esta festa pra nussacultura pra nós.Hojemuitas comunidades não queremmais fazer o ritual eelas falam que as meninas que não querem porque vão sofrer na cidadepreconceito, mas na verdade é que essas comunidades estão dando maisatençãoparaaigrejaevangélicadoquepranussaculturaesenósfalarquetáerradoospessoaldaigrejaficamcomraivaebrigamcomnós,mesmoessessendoTicuna,aigrejamandamaindanaspessoasenasmeninas(informaçãoverbal)41.

Durante esses dias na comunidade de Umariaçú I ficou claro que as

meninas querem passar pelo ritual, independentemente, da dor ou dopreconceito na cidade. Todavia, a presença e a posição da igreja evangélicacontraafestanascomunidadestemsidodeterminanteparaosTicunapararemderealizarafesta.

Ao conversar com o cacique, seu Valdir Mendes, sobre esta questão omesmo ficou sem jeitodedaruma respostamaisprofunda, apenasmedissequemembrosdeumaigrejaevangélicaqueexistenacomunidadeimpedemosTicuna de praticarem atividades culturais próprias, como o ritual da moçanova,porváriosmotivos.Dentreeles,estáafabricaçãoeconsumodepajauaruecaiçumaeatémesmoavendadebebidasalcoólicasdentrodoscomérciosdacomunidade.

Osdiaspassavameeucomeçavaacriarlaçosdeamizadescomafamíliade seuValcir eosvizinhos.Foramdiasdemuita aprendizagem.Lembro-medosirmãosdamoçanovamechamandoparabrincarnoterreirocomasoutrascriançasedodiaemqueaprendiabrincardegaviãoegalinha–o’ta i inyu.Achei interessantea formadecomoessabrincadeiraé realizada,poiséumaformalúdicadeensinarashistóriasdopovodesdecedoparaascrianças.

Abrincadeiraéorganizadacomváriascrianças.Primeiroéescolhidaumacriançamaisforteparaserogavião,queéaveforteecomedoradosanimaispequenos. Outra criança representa a galinha, que fica de braços abertos,protegendotodososseuspintinhos.Ogaviãocorreparatentarcomerumdos

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pintos,massópodepegaroúltimo.Agalinhatentaevitar,dandovoltasemaisvoltas, impedindo que o gavião pegue o filhotinho dela. O gavião só podepegaropintopelolado.Nãopodetocarporcima.Quandoeleconsegue,comeo pintinho, ou seja, a criança fica fora da brincadeira. Algumas vezes, essacriançapassaasertambémgavião.Aimagemdogaviãorepresentaumaferaqueameaçacomerospequenosanimaisquenãopodemsedefender.

SegundoseuValcir,atalbrincadeiraexistedesdeotempodeYoí.Ogavião(inyu)vinhapegarcriançaseosmaisvelhosquenãosabiamsedefender.Umdiaaferadeixoudeaparecer,e,paranãomorreratradição,hojeascriançasbrincamdegaviãoegalinha,representandoahistóriadeummomentodopovoedavidaticunaancestral.

Enfim, durante todo esse tempo em campo, observei como osTicuna seorganizamnastarefasdiáriaseduranteoritual.Oquadroaseguirdemonstraparte dos dados observados que utilizei para analisar, por exemplo, adistribuiçãodepapéismasculinosefemininosnospreparativosdoritualdesdeaproduçãodabebida,apreparaçãodascomidasedoturíparaoritual.

Entre os Ticuna do Alto Solimões de Umariaçú I, registrei a seguinteformadedivisãodotrabalho:

Tabela4-DivisãodeTrabalhoentreMulhereseHomens

DIVISÃODETRABALHODIVISÃODETRABALHODIVISÃODETRABALHODIVISÃODETRABALHODIVISÃODETRABALHODIVISÃODETRABALHODIVISÃODETRABALHOATIVIDADESATIVIDADESATIVIDADESATIVIDADESATIVIDADESATIVIDADESATIVIDADESQueimaderoçadoQueimaderoçadoQueimaderoçadoQueimaderoçadoQueimaderoçadoQueimaderoçadoQueimaderoçadoPlantioPlantioPlantioPlantioPlantioPlantioPlantioPlantioLimpezadoroçadoLimpezadoroçadoLimpezadoroçadoLimpezadoroçadoLimpezadoroçadoLimpezadoroçadoLimpezadoroçadoColheitaColheitaColheitaColheitaColheitaColheitaColheitaColheitaConstruçãodecasaConstruçãodecasaConstruçãodecasaConstruçãodecasaConstruçãodecasaConstruçãodecasaConstruçãodecasaCaçaCaçaCaçaCaçaCaçaCaçaCaçaPescaPescaPescaPescaPescaPescaPescaPescaConstruçãodearmasConstruçãodearmasConstruçãodearmasConstruçãodearmasConstruçãodearmasConstruçãodearmasConstruçãodearmasArtesanatosgeraisArtesanatosgeraisArtesanatosgeraisArtesanatosgeraisArtesanatosgeraisArtesanatosgeraisArtesanatosgerais

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geraisArtesanatosgeraisArtesanatosgeraisConstruçãoderedesecestosConstruçãoderedesecestosConstruçãoderedesecestosConstruçãoderedesecestosConstruçãoderedesecestosConstruçãoderedesecestosConstruçãoderedesecestosConstruçãoderedesecestosPreparodecarnesdecaça(tirarocourooupelo)Preparodecarnesdecaça(tirarocourooupelo)Preparodecarnesdecaça(tirarocourooupelo)Preparodecarnesdecaça(tirarocourooupelo)Preparodecarnesdecaça(tirarocourooupelo)Preparodecarnesdecaça(tirarocourooupelo)Preparodecarnesdecaça(tirarocourooupelo)ComidaassadoecozidaComidaassadoecozidaComidaassadoecozidaComidaassadoecozidaComidaassadoecozidaComidaassadoecozidaComidaassadoecozidaComidaassadoecozidaPreparaçãodebebidasparaoritualPreparaçãodebebidasparaoritualPreparaçãodebebidasparaoritualPreparaçãodebebidasparaoritualPreparaçãodebebidasparaoritualPreparaçãodebebidasparaoritualPreparaçãodebebidasparaoritualCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparacasaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparafazerfarinhaCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarlenhaparacozinharamacaxeiraCarregarmandioca(doroçadoàcasadefarinha)Carregarmandioca(doroçadoàcasadefarinha)Carregarmandioca(doroçadoàcasadefarinha)Carregarmandioca(doroçadoàcasadefarinha)Carregarmandioca(doroçadoàcasadefarinha)Carregarmandioca(doroçadoàcasadefarinha)Carregarmandioca(doroçadoàcasadefarinha)CarregaráguaCarregaráguaCarregaráguaCarregaráguaCarregaráguaCarregaráguaCarregaráguaCarregaráguaPreparaçãodefarinhaPreparaçãodefarinhaPreparaçãodefarinhaPreparaçãodefarinhaPreparaçãodefarinhaPreparaçãodefarinhaPreparaçãodefarinhaPreparaçãodefarinhaColetadefrutasColetadefrutasColetadefrutasColetadefrutasColetadefrutasColetadefrutasColetadefrutasColetadefrutasColetadeaçaíepreparaçãodovinhoColetadeaçaíepreparaçãodovinhoColetadeaçaíepreparaçãodovinhoColetadeaçaíepreparaçãodovinhoColetadeaçaíepreparaçãodovinhoColetadeaçaíepreparaçãodovinhoColetadeaçaíepreparaçãodovinhoConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/Ritual

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Confecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãoderoupaedasmáscarasp/RitualConfecçãodeadornosp/amoçanovaConfecçãodeadornosp/amoçanovaConfecçãodeadornosp/amoçanovaConfecçãodeadornosp/amoçanovaConfecçãodeadornosp/amoçanovaConfecçãodeadornosp/amoçanovaConfecçãodeadornosp/amoçanovaConfecçãodeadornosp/amoçanovaPreparaçãotinturap/pinturas(urucumejenipapo)Preparaçãotinturap/pinturas(urucumejenipapo)Preparaçãotinturap/pinturas(urucumejenipapo)Preparaçãotinturap/pinturas(urucumejenipapo)Preparaçãotinturap/pinturas(urucumejenipapo)Preparaçãotinturap/pinturas(urucumejenipapo)Preparaçãotinturap/pinturas(urucumejenipapo)LimpezadoterreironacomunidadeLimpezadoterreironacomunidadeLimpezadoterreironacomunidadeLimpezadoterreironacomunidadeLimpezadoterreironacomunidadeLimpezadoterreironacomunidadeLimpezadoterreironacomunidadeConstruçãodoturíConstruçãodoturíConstruçãodoturíConstruçãodoturíConstruçãodoturíConstruçãodoturíConstruçãodoturíConstruçãodoturíCantosnoritualCantosnoritualCantosnoritualCantosnoritualCantosnoritualCantosnoritualCantosnoritualCantosnoritualServirasbebidasnoritualServirasbebidasnoritualServirasbebidasnoritualServirasbebidasnoritualServirasbebidasnoritualServirasbebidasnoritualServirasbebidasnoritualServirascomidasnoritualServirascomidasnoritualServirascomidasnoritualServirascomidasnoritualServirascomidasnoritualServirascomidasnoritualServirascomidasnoritualMomentodepelaçãodamoçanovaMomentodepelaçãodamoçanovaMomentodepelaçãodamoçanovaMomentodepelaçãodamoçanovaMomentodepelaçãodamoçanovaMomentodepelaçãodamoçanovaMomentodepelaçãodamoçanovaMomentodepelaçãodamoçanovaFonte:Aautora(2014).

O antropólogo Glukman (2011), em seu texto “Rituais de Rebelião no

sudeste da África”, na qual fez uma conferência sobre a obra de Frazerintitulada “O ramo de Ouro”, analisa o ritual Nomkubulwana feminino queestáassociadoàexpulsãodeumapesteprovocadaporinsetosondeoshomensnão participam deste ritual, mas acreditam que sejam como um negócio demulheres e são convencidos de que a cerimônia ajudaria a produziremcolheitas generosas. No ritual da moça nova entre os Ticuna os homensparticipam na roça junto com as mulheres acreditando em farturas,diferentemente de outras atividades em que somente as mulheres devemrealizarcomo,porexemplo,avendadeartesanatos.

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ConclusãoA Festa da Moça Nova é muito importante para a sociedade indígena

Ticuna. É uma festa tradicional. Observa-se que há três imagens centrais narealização dessa festa. O primeiro é o pajé, responsável pela comunicaçãocom seres sobrenaturais perigosos que aparecem no ritual e colocam aspessoasemrisco–muitasvezeselesseincorporamnosmascarados.Opajééresponsável também pelo benzimento dos instrumentos musicais e dosornamentosdamoçanova,enascriançasnomomentodapintura.

Osegundoseriamos“ostios(a)paternosdamoçanova”domesmoclãdamoça nova (já que a descendência clânica é patrilinear). São eles (as) queservem os convidados com as bebidas fermentadas caiçuma e payuaru.Geralmente,comosãotrêsmoçasnovas,oumaisemalgunscasos,éescolhidoum dos tios para comandar os outros tios (a) das moças novas na hora deserviremasbebidas.Oescolhidotemqueficaranoitetodaacordadoparanãofaltarbebidaaosconvidados.Aterceiraimagemsãoosprestigiososbatedoresdetutuseascantoras,quealegramafestanessetempo.

AfestareuniuasnaçõesTicunaAeBparajuntasfortaleceremasprópriasorigens,emostrarparaapopulaçãopresenteoqueéseríndioTicuna.ComofoivistonaetnografiadaFestadaMoçaNovaosclãsouasmetadesseunempara realizar a festa.Durante ritual todos buscammostrar o orgulho de serTicunaeassimincentivaroutrascomunidadesarealizaroritual.

Todavia a resposta à pergunta: “PorqueosTicuna realizameste ritual?”poderemeteraquestõesaindamaisprofundasemuitoalémdeapenasexaltaro orgulho de ser Ticuna e/ou servir de incentivo para a continuidade dacelebração.

Em campo, eu ouvi duas principais explicações para essa pergunta. Aprimeira seria que este ritual é omomento dos imortais aparecerem para amoça nova e todos da comunidade que estavam dentro da casa de festa damoçanova.Essemomentosóaconteceseafestaforfeitademaneiracorreta,comoantigamente.Segundomeuinterlocutor,acasadamoçanovadeviasubirpara o lugar onde vivem os imortais, “o céu dos imortais”, e todos queestivessem ali conseguiam ver os seres imortais e se tornariam imortaistambém. O problema, no entanto, é que hoje isso está se perdendo na

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comunidade,porqueoritualnãoacontecemaiscomoeraantes.SegundodonaMarilza, por exemplo, “as meninas da comunidade namoram antes depassarem pelo ritual, as crianças tocam nos instrumentos musicais que sãosagrados,aspessoasnãocantamdireitooscantosnalínguamaterna”.

O segundo motivo seria o medo dos bichos e a vulnerabilidade dacomunidade em relação aos perigosos ataques deles se não concretizar esteritual.OsTicuna falamqueao realizaro ritualdamoçanovaeles se livramdos seres “não-humanos” que ficam rondando a comunidade. Desse modo,comarealizaçãodoritual,osTicunateriamboaroça,colheitafarta,pescaecaça em abundância. Enfim, por manterem os “demônios” longe de suacomunidade, estariam protegidos e livres de todo o mal e a saúde estariaassegurada.

Atrevo-meaindaaafirmarqueesteritualéumconviteparaumcasamentopróximo:odamoçaqueestásendoiniciada.Afestaétambémumaformadeacomunidade saber quais mulheres estão prontas para casar. Afinal, o ritualmarcaamaturidadesexualdasmoçasquepassamporele.Adoreperdadoscabelos arrancados são recompensadas pela permissão para poder casar. Amoça,antesdoritual,eraapenas“maisumacriança”,depoisdafesta,passaraserumamulherresponsávelporcuidardesimesmaepreparadaparaassumiroscompromissosdocasamento.

Ao longo da descrição da festa, fica evidente que o ritual é farto emsimbolismos“nãomaterializados”,difíceisdedescreverporseremvividos,ede simbolismos “materializados” nos ornamentos, pinturas, clãs/ nações,mascarados,objetossagrados,músicas/cantores,dentreoutroselementos.

Emcampo,observeiaindaqueasmoçasquenãofazemafestanãodeixamdeserTicunaparaacomunidade.NãoexisteumaseparaçãoentreasmulheresqueforamWorecüeasquenãoforam.Pormaisquenãopassempeloritual,elaspodemcasareterfilhos,assimcomoassistireparticipardeoutrasfestasdamoçanova.

PorqueexistemmoçasTicunaquenãorealizamoritual?Segundoasconversasque tivecomaspoucasmeninasquenãopassaram

poresteritualequemoramnacomunidadedeUmariaçúI,oprincipalmotivoseria o “bulling” que elas sofrem na cidade deTabatinga eLetícia.Como acomunidade tem essa aproximação com as duas cidades, algumas moçaspedemparaospaisnãorealizaremoritual.

Na conversa com seus pais, doismotivos diferentes são apresentados.Oprimeiro seria o tempo da roça e a quantidade da produção de macaxeira,

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pesca e caça para realizar um bom ritual para sua filha. Devido aospreparativos,elesalegaramterquededicarmuito tempoe trabalhoparaestemomento,oquepoderiaacarretardificuldadesfuturasparatodaafamília.Osegundomotivoseriaaproibiçãoderealizaçãodoritual impostapela igrejaevangélicaqueficadentrodacomunidade.Aigrejaconsideraqueestetipoderitualsejacoisademoníacaporhaverapresençados“imortais”,afabricaçãoeconsumo das bebidas fermentadas payuaru e caiçuma, em virtude de osindígenas entoaremmúsicas e praticarem danças, por isso proíbe os Ticunaconvertidos a participar ou realizar a festa. Essa segunda questão não pudeexplorarmais porque os Ticuna nãome permitiram ir além. Senti que elesficaram receosos e retraídos, depois que tocaram no assunto “proibição doritualimpostapelopastordentrodacomunidade”.

Acreditoqueaquestãodemandaestudosmaisaprofundados,pois,apesarde haver comunidades que ainda realizam a festa, como a comunidade daTerraEwaré, conhecida por ser uma dasmaismantenedoras da tradição, háoutrascomoFiladélfia,ondeémuitodifícilacontecerumritualdamoçanova.Atualmente lá, o que se registra é apenas uma pequena “representação” daFestadaMoçaNovaemdatascomemorativas,comooDiadoÍndioeoDiada“Independência”doBrasil.

Clemente(2011,p.21-22)declaraque:OsjovenseadultosnãosabemmaisoqueéafestadaMoça-Novaenem

conhecemais.Nãoestãodandodecontaquesenãopraticaremessafestaestãoperdendoasuaidentidadecultural.Essaculturaéumaculturamilenarqueosnossosantepassadosdeixaramparanós.Aculturatradicionaltemumagrandeimportância, porque ali está à memória do nosso povo Ticuna, e marcarealmente que você tem um conhecimento que vai servir para toda geraçãofutura. Vai ser importante também para o estado e para o Brasil. Se somospovos indígenas, que as leis estão garantidas na constituição, têm quepreservaraculturaqueissoéquefaznossadiferença.

Tanto o ritual quanto os cantos da Festa da Moça Nova são pontos de

discussõesnasreuniõeseconversasdentrodascomunidadesTicunaqueestão“deixando”depraticaressatradiçãocultural.

NocasodacomunidadedeUmariaçúI,oquepreocupaosTicunaéafaltada prática dos cantos por todos da comunidade. Neste ritual que participeieram apenas grupos de mulheres mais velhas da comunidade e de outras

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comunidades que cantavam os cantos do ritual da moça nova, enquanto asjovenseosdemaisficavamrindooubatendonostutusnessemomento.

Osmaisvelhosdacomunidadealegamqueessafaltadeinteressedosmaisjovensemrelaçãoàaprendizagemdoscantos,comopassardo tempo,podefazercomquecantosantigosetradicionaisdeixemdesercantadosnoritual.Porisso,ocaciquedacomunidadeincentivarealizaremoritualeconvidaremos demais parentes das outras comunidades para que todos tenham oconhecimentodoscantosedaculturatradicionaldosTicuna.Oscantosestãopresentesdocomeçoaofimdesseritual,comosomdostutusbatendosempre.Emoutrosmomentos,algunsgruposdemulherescantamparaamoçanova,poissepararemdetocarecantaracomunidadeeamoçanovacorremoriscodeos“demônios”seaproximaremparafazeremmalatodos.

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CapítuloIII:OSCANTOSDORITUAL

EstecapítulotemcomofinalidadedescreveroscantosdoRitualdaMoça

Nova, realizado na comunidade de Umariaçú/Tabatinga (AM), e que tive aoportunidadedegravar.Devidominhapoucacompreensãoda línguaTicuna,conteicomacolaboraçãodeumaprofessorabilínguedaprópriacomunidade.Além deme ajudar na tradução dos cantos, ela também foi fundamental noprocessodecompreensãodasprincipaisestrofesdecadacanto.Essatrocafoibasilarparaaanálisedoscantos.Afimdetentardemonstraraimportânciadamúsica/canto na vida dos Ticuna, descrevo esses cantos e faço umaapresentaçãodetalhadadosinstrumentosutilizadosnoritual.

Todavia, inicialmente, apresento alguns pressupostos já erigidos sobreetmusicologiaeemseguidaanalisoaimportânciadocantonatradiçãoculturaldosTicuna.

DeacordocomChada(2011,p.10),aetnomusicologiasurgenofinaldoséculoXIX.

Sob o nome de Musicologia comparada (Vergleichende

Musikwissenschaft), esboçando algumas diretrizes que se tornariamposteriormente paradigmáticas na disciplina: estudos interculturais, trabalhode campo, estudo damúsica na cultura, organologia comparada, problemasanalíticos,tudoissonaatmosferadeumavisãoholísticadaMusicologia.

NoBrasil,osestudossobreasmanifestaçõesmusicaisindígenastêmcomo

suas primeiras referências os relatos de Jean deLéry, no séculoXVI, sobrealguns cantos Tupinambá. Mário de Andrade é considerado, por muitospesquisadores, como o pai da etnomusicologia brasileira. Em 1928, elepublicouo“Ensaiosobreamúsicabrasileira”,noqualbusca“[...]delineareanalisar os vários elementos sonoros e estruturais da música folclóricabrasileira.”(CHADA,2011,p.19).

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Atualmenteamúsicaindígenaéobjetodepesquisase interessedemuitosestudiososaoredordomundoetêmtrazidomuitasinformaçõessignificativaspara os estudos da etnomusicologia e contribuído com saberes para outrasáreasdoconhecimento.

Os pesquisadores Pinto (2001) e Barros (apud DUARTE; SILVA, 2014),consideram os estudos de Rafael de Menezes Bastos sobre a musicologiaKamayurá (MT) como o trabalho que inaugura uma nova fase naetnomusicologia brasileira, abrindo espaço para a compreensão maisdetalhadadacentralidadedamúsicaparaascomunidadesindígenasdasterrasbaixasdaAméricadoSul.

Como vimos, a etnomusicologia é um campo de conhecimento que hápoucas décadas começou a se institucionalizar no Brasil, recentementetomando força enquanto área específica de estudo e de criação deconhecimento.AAssociaçãoBrasileiradeEtnomusicologia(ABET)foicriadahá pouco mais de uma década (em julho de 2001), o que demonstra quãorecente é a etnomusicologia enquanto campo acadêmico no Brasil. Há umvastocampoaserpesquisadonopaís,principalmenteemrelaçãoàsproduçõesmusicaisdascomunidadesindígenasnacionais.

Recentemente, uma abordagem mais sistemática das manifestaçõestécnicas,artísticaseestéticas,emcontextosespecíficos,temcontribuídomuitopara a melhor compreensão da construção social e individual nessassociedades.Demaneiraaindaincipiente,vêmaumentandotambémosestudossobre as concepções ameríndias do discurso e da música. De modo geral,avançam os trabalhos de síntese e comparativos em nível temático emicrorregional(cf.VIDAL;SILVA,2000).

Os estudos de etnomusicologia vêm aumentando em quantidade equalidade. Segundo John Blacking (2000), o etnomusicólogo não é umpesquisador apenasdamúsicaproduzidaemdeterminadocontextocultural esocial,masumestudiosodeprocessosrelacionaissignificativosqueliguemamúsicaàvidadequemafazeautiliza.

Os estudos sobre a música indígena constituem um campo vasto, maspoucodiscutidotantonocurrículodeformaçãodosantropólogosecientistassociais, quanto dos músicos. Assim, as dimensões antropológicas esociológicasdapráticamusicalentreasdiversasetniasbrasileirassãopoucodebatidas.Asraraspesquisassobreamúsicae/ouoscantosdoRitualdaMoçaNovaTicunanaregiãoamazônicarefletembemessarealidade.

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Nestesentido,estapesquisasobreoscantosnoritualdamoçanovaTicunapretendecontribuirpara apromoçãoe expansãodeestudos sobreo tema.AmaneiracomoocantoaparecenavidadosTicunanosremetediretamenteaosmitos de criação do povo Ticuna, às narrativas de fundação do cosmos, domundo e das coisas, das gentes e dos animais (entre outros). Por isso osdiferentescantos,marcandoosváriosmomentosdoritual,formamocaminhopararelembrarosantepassadoseahistóriadelutadopovo.

Apartir dadécadade1970, a luta pelo reconhecimentodas terras ticunaresultou também em uma recuperação e reformulação de práticas culturais.Desdeessaépoca,osTicunacomeçaramachamarde“tradicional”asmúsicascantadasduranteaFestadaMoçaNovaeoutrosrituaisnelareunidos.

Segundoomitoticuna,narradoporNinoFernandes,‘Ngutapa’, o pai criador, no alto do igarapé São Jerônimo, estava com

raivadesuaesposa ‘Mapana’porelanão lhedáumfilho,Ngutapaamarrouelaemumaárvoreparasermordidaporformigas,edepoissaiucantandodesatisfação,andandoparafrenteeparatráscomoéhojenasdançasdosrituaisumpassoparafrenteeoutroparatrás.Depois todososTicunacomeçaramacantar(informaçãoverbal)42.

Os cantosTicuna estão presentes em todo lugar na vida social e na vida

ritualdessepovo,desdeahistóriadeseusantepassadosaténosdiasatuais.Eleestávivoentreoshomensemulheres,sejamcrianças,jovensouadultos.

Levandoemcontaminhapouca compreensãoda línguaTicuna, procureidestacarasprincipaisestrofesdecadacanto,assimcomoalgumaspalavrasemTicuna para obter uma melhor análise dos cantos. Isso me possibilitouobservar queos cantosTicunanão são entoados somenteno ritual.Eles sãocantados durante todas as atividades cotidianas, como quando se vai lavarroupasnoigarapéourio,cozinhar,embalarumacriançanaredeparadormir,prepararbebidasfermentadas,teceroufazerartesanatos,arrancarjenipapo,eatéquandoentramnamataparaplantare/ouderrubarumaárvore.

Os cantos são classificados em: canto de conselho (moça nova), cantadoparamoça nova nomomento em que está reclusa no recinto reservado. Oshomenssopramaaricanaqueé(instrumentosagradodamúsica)paraamoçanovaouvir.Jáocantopararalarjenipapoécantadopelasmulheres,enquantoralamofrutoepreparamatinturadojenipapoparaserusadanosornamentosdamoçanova.Ocanto tradicional foi cantadono ritualque relateiporduas

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mulheres:DonaSara,avómaternadamoçanova,edonaMarilza,moradorada comunidade. Após elas cantarem a primeira parte, via-se que os demaisacompanhavamnocanto.Ocantodadançado tracajáécantadopor todasascriançasqueestãoparticipandodadançadotracajáeosdemaispresentes.

Esses cantos são relatos míticos Ticuna sobre tempos passados; cantamensinamentoseestãopresentesnoRitualdaMoçaNova.Atravésdocanto,asmulheresticunatransmitemàmoçanovaosensinamentosdeixadosporYoi’iparaasmulheres.

Duranteotrabalhodecampo,verifiqueiquesãoasmulheresmaisvelhas(anciãs) que sabem os cantos do ritual da moça nova. Elas exercem certaautoridade dentro da comunidade. Cada palavra delas é um “ato ético”(BUBNOVAet al, 2011).Esse “local de poder” é resultante das experiênciaspor elas vividas em rituais anteriores e pela memória que detém sobre osconhecimentos antigos dos Ticuna. São essas anciãs que exercem o papelimportantíssimodemanutençãodestacultura.Égraçasàexistênciadelasqueatransmissão do ensinamento dos cantos e da história da vida ticuna éassegurada.

Nessesentido,oRitualdaMoçaNovaéfundamental,poiséduranteafestaqueessasvelhasTicunacumpremumpapelsecular:asseguraraperpetuaçãodos ensinamentos lhes repassado por Yoi’i. Durante o período de reclusão,elasrelembramesseconjuntodeconhecimentosparaasfilhase/ounetasqueporsuavezassumemocompromissodecantarenarrartudoqueaprenderamàsmoçasnovas,nofuturo.

Os cantos possuem uma função importante nos rituais da puberdadepraticadospelosTicunaeficamaoencargodosanciãos,masemespecialdasmulheres.AorigemdoscantoséassociadaaoAvôTchürüne,personagemque,em tempos remotos, conseguia conduzir um grupo de pessoas tocando umtambor feitode cascode jabuti até amontanhamíticapara ali se esconder esalvaropovodas feras.Depoisque consegue sair de lá comseugrupo, elecomeçaaprepararumafesta.Yoi’iduranteofestejoteriaaprendidotodososcantos com To’ü, o macaco caiarara. O To’ü teria aparecido durante apreparaçãoda festae,nomeioda sala,onde ficavao recintode reclusãodamoça nova, começara a cantar, chamando a atenção de todos. Nos cantos,recomendaraàmoçanovaescutarquieta,semrir.Tchürüneensinouaosmaisvelhos que, ao ouvirem o cantar dele, aprendessem as canções e queestivessem atentos e silenciosos nessa hora. O Avô Tchürüne, o qual sabiatodososcantosadequadosparacadanação,ensinouquenafestadamoçanova

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e na das crianças os cantos tinham que ser de acordo com suas nações(CAMACHOGONZALEZ,1996).

ParaSeeger (2008),amúsicaéumsistemadecomunicaçãoqueenvolvesons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que secomunicacomoutrosmembros.Amúsicaindígena,comoadançaeosmitos,podem também ser um veículo importante de comunicação com seresmitológicosouextraordinários(antepassados,bichos,espíritos).

ParaBlacking(2007,p.201),[...]amúsicaéumsistemamodelarprimáriodopensamentohumanoeuma

partedainfraestruturadavidahumana.Ofazer‘musical’éumtipoespecialdeaçãosocialquepodeterimportantesconsequênciasparaoutrostiposdeaçãosocial. Amúsica não é apenas reflexiva,mais também gerativa, tanto comosistemaculturalquantocomocapacidadehumana.

Os dados de campo me levam a concluir que a música na comunidade

Ticuna, durante o ritual da moça nova, é um sistema por meio do qual“sustentam”abasede“tradução”daprópriaculturade formaqueosoutros,convidados de fora da comunidade, possam percebê-la e compreendê-la.Asperformanceseosartefatosassumemdiferentes sentidosduranteo ritualeamúsicaéaindicaçãodocaminhodoentendimentoaserpercorridoportodosparacompreensãodosignificadodeserumticunanomundo.

Descobri durante as “traduções” que os primeiros contatos das criançasticunacomosbichossãoatravésdossonsquesuasmãescantamparaelesnasmúsicasdeninar.Ossonsproduzidosemalgunscantosouacalantosdeninarnos lembramsonsdebichoscomo,porexemplo,oworecüticüemurucututu(bichos domato). São esses sons também que fazem a abertura da Festa daMoçaNova.Háoutroscantosquenãotêmletras,sendoregidassomenteporum som calmo entoado pelas mulheres dos clãs e outros que são sopradossomente pelos homens no instrumento chamado aricana. São os anciões quefabricamoinstrumentoeapenaselespodempegaresoprar.Esseéosommaisalto e forte que pode ser escutado de longe. Isso é considerado um tipo deaconselhamentoparaamoçanova.Ocantoérepetidoduranteanoitenostrêsdiasdoritual.

Letrasdasmúsicas

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Os cantos que descreverei a seguir foram registrados durante o períodoemqueestivena casade seuValcir, entreosdias02a06demaiode2014.Algunsdessescantosforamcantadosanteseoutroscantadosdepoisdoritualprincipalmentepelavizinhaeavómaternadaworecü.Inicialmente,apenasasmulheres mais velhas começam a cantá-los, mas logo outras mulherescomeçamaacompanharcantando,eoshomensbatendonostutus.

A“possível” traduçãodos cantos coletados emcampono ritual damoçanova resulta da troca dialógica que mantive com Luz Marina HonoratoMendes43,nativaTicuna,professorabilínguecommaisde25anosdecarreiraprofissionalemoradoradacomunidadepesquisada.

CantoI:AOrigemdosCantos

Marüenatchamarü’ü,tchamarü’üNü’üenacudauena,cudauenaYaguatürü(bis3x)Yatchautchiü’ü(bis3x)Yanucümama(bis3x)Toütürü,tüütürüNawaücü,nawaücüNapogü’ü,napogü’üNamagü’üNgemacani’i,ngemacani’iTomarücürümaguta,rümaguta,rümagutaArüduüüti’iRümagutati’igüYeani’i,yeani’i,yeani’iYeanucüma,yanucümaYaaucümacü,yaaucümacüYayoiraü,yayoiraüYoyowetchayayoyowetchaTorüwaiyatanatüYangu’tapa,yangutapaNagutürü,nagutürünaã’tchüi,naã’tchüiNaaucümaneyaaucümaneYaweupü,yaweupü

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NaEwarearüyaEwarearüArüyetchipenü,Yabunecü(bis)Arüngaüguneyatõ’õtchine,yatõ’õtchineYaaucümane,yaaucümaneYaweupü,yaweupüYaoi,oi,oiNucüma,nucüma,tchabugumanaRütchonaniü,rütchonaniüNgemacani’i,(bis)Nhumaücü,nhumaücunapeewa,napeewaRüaücümawayuepaeyayanatüNhunhacü,nhunhacüNagutürü,tch’itatchigumare,tatchigumareNawenayatanatüyatanatüNgerücüyatchauetchanaucaüarüdu’üütchü(bis)Rüoegaüganorügaiatawe,iataweGadoutchita,gadoutchitaarüngaüwa,ngaüwaNügüma,rüüünetchãtchiatane,tchiataneTchiwanearüyacthai,yacthaiRüngema’ãcü,rüngema’ãcüCumatürü,cumatürüTchãu’tü’ü,tchãu’tü’üNhaani’i,nhaani’iinatchicaGatoütürüyatanatüOi,oi,oi,oiyayoyowetcha,yoyowetchaYatanatüyangutapa,ngutapa,ngutapaArucatchi,arucatchi,tawenatarütawenataTchamaruü,tchamaruüpedauena,pedauenaNanatchiüyanatchiüGaoi,oi,oi,oiNawatürü,nawatürüYatanatü,napogü’ü,namagü’üWü’iarüarünguneüguCunatürütchitchipetüMarutaenarünü’ütürüCucuaenangemacani’i

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Tchitchicutchi,tchitchipetúRüguanayai,rüguanayaiNalchicaganawatürüYautü’ü,yautü’üYautü’ü,yautü’üMello(2005),emseutrabalho“Iamurikuma:música,mitoeritualentreos

WaujadoAltoXingu”, afirmaqueamúsicae adançaexternadasatravésdocanto das mulheres são os marcadores dos momentos densos do rito. Cadacantonarraummomentodomitoepodeserepetiremdiferentesdias.Nãoédiferentenoritualdamoçanova.

A letra deste primeiro canto narra umdosmitos ticuna deNgu’tapa (paicriador)oqualdeixouumacasa,naterrasagradaparaseusfilhosnoEwaré,umlugarlindoondetodosqueremmorar.Noritualdamoçanovaasmúsicascantadas pelas mulheres variam também nos momentos de “dor” – comonaquelesemqueamoçaésubmetidaaoritualdapelaçãodeseuscabelos–enosmomentosemqueasmáscarasentramemcenademonstrandoosmitosdecadauma.FoidonaMartaatiapaternadamoçanovaquemcomeçouacantar,quando estava limpando a casa do irmão junto com outrasmulheres ticuna,antesdoritual.Assimqueelacomeçouocanto,todasasmulheresalipresentescomeçaramaacompanhá-lanacanção.Apropostade“tradução”docanto,emportuguês,éaseguinte:

VocêjáviucomoeuVocêjáviucomoeuAquelaminhacasa(bis3x)QueantigamenteOnossopaienossoDeusYo’inospescouPorisso,porissoNóssomospovomagütaNaquele,naqueleTempoantigoMuitoantigoEmuitoperigosoEmuitoperigoso

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PaiYo’iPaiYo’iNossopaiDeusNgu’tapanelemorouUmamontanhaChamadamontanhadospapagaiosNomeiodoEwaréEnofinaldoEwaréExisteárvoresbaixo–bunecüNomeiodobunecüExisteminhacasaBonitodomundoMuitoantigo,muitoantigoQuandoeueracriançaMeupaimedeixouabandonadoEporisso,eporisso,eporissoAgora,nafrente,nafrenteSouheróiimortalComoeupenseiQueumdiavoudeixarvocêsVouparaoutrocantodomundoPorqueeusouumhomemheróiDeixa,deixaqueminhasirmãsmeabandonaramQuevoumorarlánaminhaterrasagradaOnde,onde,ondeVovó,vovô,vovoYo’inossoDEUSEnossopaiNgu’tapanoscriouNolugarmaisbonitoqueéEwaré.

CantoII:Worecü

Yeangi’tchigayaaucümaneYairi,iripaworecüYangi’tchi’ürüngimatürüYatomatürüngimatürütautüguYangitü’üganütürücua’neta

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Yairi,iripaworecüNatchi’üarünaanewayo’irüEtchaipirü’ünorüwaiyaucaüYawainetayaaitchanariNamatürüngüiecünaenetaYairi,iriyaworecüNgutchi’üyaaucümacüYangutchiüyangi’patawaMerutchipamagaaruanaDurucürayongi’pateeEsse segundo canto é conhecido também como “Canto de conselho da

moçanova”.Éumcantotradicionalconhecidoporpoucoseentoadossomentepormulheresdo ladomaternodaworecü.Foiaavómaternadaworecüquecantou,enquantoasmulherespassavamumlíquidonacabeçadamoçanova,antesdeelairparaseuturí.

ParaMatarezioFilho(2015,p.293)as“cançõesdeaconselhamento”,sãocantadasemmomentoselocaismuitoespecíficosdoritualediretamenteparaasmoças: dentro da reclusão, quando asmoças são pintadas de jenipapo norecintodosinstrumentoseduranteoarrancamentodoscabelosdasmoças.Atraduçãodanarrativaéaseguinte:

HojeaquiafestaédeumaBelaoulindamoça(worecü)NacasadelaecomelaVamoscantarocantoritualOndenósvamosbeberabebidadamoçanova(worecü)LánaterradelaondeexisteIpi’eYo’iVamoscolherojenipapo(aitchanari)VamosralarparapintaraworecüOworecüseescondenocurralBemmaneirinhaQueéacasadelaOuruaseráenfeitedelaRaboenvermelhadodaararaOchapéudelaéococar

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Imagens67e68-DonaSaraeDonaMarilzacantandonoritual

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Fonte:Aautora(2014).

CantoIII:AberturadoCurral

Caaree,caaree,caareüYamatim,matim,matimGuanayi’itchiwaarüo,tchiwaarüo’Yeaiyi’itorügairi,iri,iri,woworecüNgo’o,ngo’oyayudeu,yudeu,yudeuNgu’tchicuneyatemapawe,temapaweNatü’ügunenaaureü,aureü,aureüTorügairi,iri,iriwoworecüMoürütarütacatürüyatchi’itchiTchi’itchi,tchi’itchi

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Norugayematumara,tumaraTumaraarüwitapeewaü’uneru,Ü’nerü,ü’ünerüüYaarumarü,aumarüü,aumarüü,aumarüüRünge’gü,rünge’güti’iPatchauenyarü,tchaueyarü,tchaueyarüEstecantoéentoadonoterceirodiadefesta,contextoemqueaworecüsai

do curral ou turí. É omomento emque todos queremver amoça nova.Oshomensacompanhamocantonostutus.EleéconhecidotambémcomoCantodamoçanova.Quemcomeçouacantá-lo foidonaMarilza,acompanhadadeoutras mulheres Ticuna no momento que a moça nova saiu do turí paraterminarafesta.Geralmenteessescantosduramentrequatroaseisminutos.Apropostade“tradução”docanto,emportuguês,éaseguinte:

Oscachos,oscachos,oscachosDaárvorematimtim,matimtimAqueletambémafrutaDaárvoretchiwa(matimtim)Bicho,bicho,yudeu,yudeuManeirinhotalodeburitiQueembaixooworecüVaiseesconderManhãdeamanhãoWorecüvaisaidocurralComseutumara,tumara(enfeite)AsmulheresencantadaAsmulheresencantadaMinhasirmãsMinhasirmãs

CantoIV:DançadoTracajá

Ngegumatchitchãta’ugüRünu’ãtchitünange’tchigaItorüdotchinaweitoriyana

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DaanayainucumamaYanatapeeguyau’tü’üNhumawairütchamatchietchaTaugurünu’ãtchitünaNangetchigaitorüdotchinawetoriyanaRütchamatchiwaitchatauguwaiRütchautchinanhumarü’üecüÃyaneürücumatürüetiÜeguatchitanucü’iNuetamarüaneüwarüNgi’tchigaetchatchonagüNhumarüwaiibubuetücü’üItatügurücü’ütürütayaãtaweüRüaneüwarüngo’ürü’üCutchigamatchawawaeüEssecantoéentoadopelosjovensnomomentoemquehámuitascrianças

no ritual. Duas mulheres ticuna puxam a corda para derrubar o casco dotracajá“tori”queficapenduradanopaudaárvoretaperebá,comoumtambor,bemnocentrodolocaldaFestadaMoçaNova.Eleédedicadoàscrianças.Emseguida, duas pessoas batemo casco do tracajá indo para frente e para trás,sempredoispassosparafrente,eomesmoparatrás,comotracajánocentro.Nessa dança as pessoas ficam de braços dados, aos pares, trios, quartetos,segurando os instrumentos: tutus, flautas e bastão de ritmo. São necessáriasduaspessoaspara tocar o tracajá.Cadaum seguranumapontadogalho emqueestáamarradoocascoetocacomumabaquetafeitaespecialmenteparaoinstrumento.Metadedaspessoasficaatrásdeumdostocadores,aoutrametadeseposicionaatrásdooutro.Asmetadesficamdefrenteumaparaaoutraeadançacomeça.Estamúsicaérepetidaváriasvezesduranteoritualetodosquequeiramparticipamsãoincentivadosaentrarnadança.

SeeunãoestivesseaquiAfestanãoestavaanimadaNinguémcantariaocantodonossotracajáAquiosantigosFicamencantadosHoje,euaquicanteio

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CantodotracajáPrafestaficaanimadaCommuitavergonhaEuaquiigualUmaararacantandoEucanteinomeiodosconvidadosImagens69,70e71-MomentosnaDançadoTracajá

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Fonte:Aautora(2014).

CantoV:Lavandootururi

AitchirutchirücutüPacoiritchirücutüÊcücaapeparaegu

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Pangu’ütatchirürücutüNgeaingemangu’ütatüarüYecutüwapenawogatchitanüTchipü’ütchareinga’wütatchirüCutüpaaietatchirucutüNgematatürücupuguyanõe,nõ’eTayaiparatchigüputchinücüPacoiritchirurücutüAietatchirucutüYeayemawaiamawagaDeremacatü’üpacoiritchirüCutüaietatchirurücutüÉcütürüyayimacuriacüTchirucutüpayunatütchirücutüNgimaatchocutchipeetchirurücutüPaaietatchirurücutüNüemaüganõ’e,nõ’egairawarü’üCupugucutchigamatchiyuwatchigüPacoiritchirücutüaitchirutchirücutüEssecantoéentoadonomomentoemqueoshomensestãopreparandoo

tururiparaaconstruçãodoturíondeaworecüiráficarnostrêsdiasdefesta.Ele é cantado por todas asmulheres ali presentes, porém sua letra é amaisconhecidaportodosospresentes.Aletrafalaqueelesestãoadquirindoforçasnestemomentoparaaconstruçãodoturí,ecitaosoleoriocomoelementosessenciais da manifestação cultural ticuna assim como as queixadas para sealimentarem.Apropostade“tradução”docanto,emportuguês,éaseguinte:

Aitchirutchirücutü(nãohatraduçãoparaessaestrofe)BambutchirucutüSevocêstivesseforçaMataremosasqueixadasQueixadatchirucutüNaqueleeaquelenooutroLadodorioasqueixadasVãoseespalharpraninguémmatá-lasQueixadatchirucutü

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VocêsqueixadasnãovãoAproveitaracomidadevocêsOsoutrosvãocomerBambutatchirucutüQuandoosolsepõeÉumatristezanosvãoficarFicartodoemsilêncioBambutatchirucutü

CantoVI:Mascarados

Aiyu,aiyupato’üEcücacayayimacurüAyaneyacurüpu’etü’üpato’üGuayayimapatauayaDünecügucunamugüiCurütchuraragüpato’üRüguatürüyimaguayayimaBunecuarüyepetchinüwarüÜ’üneyacuipü’ütchareeyaMatchicuruyatürünemaYadaigü’üpato’üAiyu,aiyupato’üEcücayangeü’catürüCurüa’yaneücurüpuetüüCuporogungiütürüinaGaiariicurüpuetüüpato’üEssecantomarcaaentradadosmascaradosnoritual.Todosficamalegres

com a presença deles e começam a dançar e a correr para não seremcapturadospelosmascarados.Éaavómaternadamoçanova,nestemomentoda festa, que começa a cantá-lo. A proposta de “tradução” do canto, emportuguês,éaseguinte:

Brinca,brincamascaradaTátudobemquevãocantar

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OseucantoritualmascaradaNaquelepédepatawaEstãoosseussoldadosQuevocêdeixoumascaradaNomeiodasárvoresbonecüNofinalzinhoestaumaárvoreencantadaEárvoresdecastanhademacacaestãoQuebrandoparacomermascaradaBrinca,brincamascaradaEntãoquandocantaremoteucantoritualVocêficamuitoanimadaEvocêvaiganharamoçanovapracasarOscantosticuna,duranteoritualdamoçanova,sãosempreiniciadospelas

mulheres,masaentoaçãoabresempreumintervalopequenoparaoshomenstocarem os tutus e a aricana (instrumentos musicais). Geralmente, essesintervalos são na hora das refeições, quando os convidados do ritual sedirigem à casa do “dono da festa” para comerem.Enquanto isso, os demaisconvidadosemembrosdacomunidadeficamnacasadaFestadaMoçaNova,bebendo as bebidas tradicionais dosTicuna, payuaru e caiçuma.O consumoem excesso dessa bebida pode deixar muitos Ticuna bêbados. Quando issoacontece,elescomeçamachorareacantar,aomesmotempo,dizendoverosantepassados.Eles relembramas lutascomos“brancos”,os sofrimentoseaangústia. Sempre fica alguém tocando os instrumentos ou cantando algumcanto,duranteosintervalos,poisafestanãopodeficaremsilêncio.

Com as considerações a respeito dos cantos apresentados neste trabalho,pode-se dizer que os cantos estão presentes na cultura indígena ticuna desdeseusancestrais.Issovariadecomunidadeparacomunidade.

OscantostradicionaisaparecemnoritualcomoumaapresentaçãoparaosconvidadoseparaosprópriosTicuna interagirem.Duranteessemomento,ocanto pode ser visto como um caminho para o surgimento de futurascantadoras, pois ao ouvir asmulheres ticunamais velhas, asmães, avós outias, as mulheres mais novas aprendem a cantar. Em alguns cantos, estápresenteahistóriadoprópriopovo,aslutas,asconquistas,osurgimentodosobjetos,aseparaçãodosclãs.

Instrumentosmusicais

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Asbatidasdos instrumentosdepercussão sãocostumeiramenteutilizadas

emsociedadesameríndiasparamarcaroritmomusical.Among primitive tribes, including the whole of America, song was

accompanied only by rhythmic beating on instruments of percussion. It isinterestingtonotethatthebeatsdidnotalwayscoincidewiththeaccentofthesong,buthadoftenanindependent,thoughcoordinatedrhythm(BOAS,1955,p.343).

A importância da música para tais sociedades pode ser avaliada pela

grande variedade de instrumentos musicais utilizados e pela capacidade demanipulaçãodessesobjetos.

Os instrumentos musicais das sociedades pré-colombianas, ou os

pertencentes a grupos conectados há pouco tempo, empregam escassosrecursosparaobterumaamplagamadesons.Utilizam,emgeral,apercussãoou a alteração da coluna de ar (como nas flautas). São raros os exemplosaborígenes de instrumentos de corda, e poucos os tipos de tambor. A voz,geralmente não considerada como instrumento, constitui, provavelmente, aprodução mais comum de música indígena. Embora menos elaborados –quanto à forma e diversidade – do que os instrumentosmusicais domundoocidentalmodernoaimportânciaintrínsecadamúsicanavidatribaldemandaumestudocuidadosodessesinstrumentos.(SEEGER,1987,p.174).

No Brasil, a multiplicidade de instrumentos musicais indígenas é bem

significativa,comoindicamasflautasdepãdosPareci(MT,RO),Makú(AM)eTicuna (AM);as flautasdebambudosBororo (MT);as flautas transversassem orifícios dos Timbira; as flautas nasais e os tambores de cerâmica dosPakaa-Nova(ouWari,RO);oscolaresdeapitosebuzinasdosKrahô(TO);asbuzinas de bambu e as flautas de ossos de pássaros dos Kayapó (PA); otrompetedosTicuna(AM);otambordecarapaçadosTicuna(Colômbia,Perúe AM); e os chocalhos dos Guarani (MT). Além dos vários chocalhos emfileiras, os diversos zunidores e maracás, dentre outros tantos artefatosmusicais que enriquecem a vida cerimonial e as festividades dos indígenasbrasileiros.

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Há ainda uma ressalva importante sobre os objetos consideradosritualísticos, uma vez que eles exercem papel capital nas cerimônias onde ocontato com a esfera do sobrenatural é buscado. Alguns objetos musicais,como o maracá, são, geralmente, usados somente pelos cantores. Outros,como a aricana dos Ticuna, apenas podem ser tocados e assoprados porhomens no ritual da moça nova. Enfim, os instrumentos musicaiscompartilhamdavidasocialdosindígenasbrasileirosdeformasingular,poisauxiliam,quandoutilizadosparaproduzirmúsica,nofortalecimentodoslaçossociaisemváriospovos.

Nimuendajú (1948) faz uma extensa e detalhada caracterização dosinstrumentosmusicaisentreosTicunas.Eleestabelecetambémumarestriçãoquanto ao uso da buzina, trompete (conhecido também como aricana nacomunidadeUmariaçú),tutus,flautas,tambordetracajáporclãseclassesnosrituaiscomo:o ritualdamoçanova, ritualparapintarumacriança, ritualdefuraçãodeorelha,porexemplo.Deacordocomosmaisvelhos,entrevistadosnacomunidadeUmariaçú,todosessesinstrumentoseramutilizadosnosrituaisantigosdamoçanova.NoritualdaWorecüemUmariaçuI,noteiqueapenasalgunspermaneceram:aaricana(trompete),tutus,tambordetracajáeflautas.Todospassamporumprocessodefabricaçãoquedescrevereimaisàfrente.

Comocrescimentodaextraçãodaborracha,apartirdasúltimasdécadasdo século XIX, as relações dos Ticuna com a sociedade envolventeaumentaramdeformasignificativa.Apartirdessaépoca,passaramaconvivercominstrumentosdasociedadecomo:violões,pandeiros,sanfonas,tecladoeeventualmente aprenderam a tocá-los e a executar uma grande variedade derepertóriosmusicais.

É importante salientarquenaatualidadequantomaior for a comunidade,menorseráapossibilidadedeseterumritualdentrodoscostumestradicionaisTicuna.Mesmoassimtodooconhecimentoestávivodentrodetodos,eissoépossível graças àmanutenção da tradição de narrar as histórias emitos pormuitosindígenasmaisvelhosqueaofazeremissotransmitemoconhecimentoparaageraçãomaisnova.ParaSeeger(1980,p.17),

[...]emmuitassociedadesosvelhossãomarginalizadosedesprestigiados;

entreosíndiosSuyáelestêmpapéisespeciaisegozamdeumtipodeprestígioespecial. A posição única dos velhos Suyá é o ponto de partida para umareflexãosobreaposiçãodosvelhosnumaperspectivacomparativa.

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Na sociedade ticuna os mais velhos possuem papéis especiais,principalmente no momento do ritual quando eles ensinam, por exemplo, aconstruçãodosinstrumentosmusicais,aspinturas,osgrafismos,eosdemaisartefatosdoritualparaosjovensquevivemaFestadaMoçaNovadeformadiversacomaorientaçãodeseuspaiseavósquecantamecontamashistóriasemúsicas.

CaracterísticasdosInstrumentosAOrganologia é a disciplina que busca descrever e classificar qualquer

instrumentomusical.EstudosmaisrecentessobreaOrganologiatêmenfocadoprincipalmenteosinstrumentosmusicaispopulareseindígenas.Essadisciplinaimporta-secomomaterialempregadonaconfecçãodoinstrumento,aforma,a qualidade do somproduzido, omodo de execução, o timbre, entre outrospontos.Estecampodeestudo tambémprocuraclassificaros instrumentosdeacordo com semelhanças físicas, articulaçãodo some timbre em“famílias”instrumentais.

A organologia considera como instrumento musical qualquer corpo ou

objeto feito pelo ser humano para produzir um som, ou sons. Instrumentosforaminventadospararealizaremsonoridadesdiferentes,deextremaduração,de volume, ou com capacidade para produzirem sequencias rápidas evirtuosas,expandindoassimouniversosonorodocorpohumano.Aquestãobásicaparaaclassificaçãodosinstrumentosécomoestecorpoproduzoseusom,ouseja,seosoméproduzidoporumacordaqueentraemvibração,porumapeledetamborqueépercutida,umacolunadearquevibraaosoprarmosumaflauta.(PINTO,2001,p.226).

Os instrumentosdo ritual damoçanovadoqual participei emUmariaçú

foram a aricana, os tutus, o tambor de tracajá e as flautas. Todos sãofabricadospelosprópriosindígenasTicunacommatériasprimasdanatureza.

Atrás do recinto da moça nova ficam os instrumentos consideradosproibidosparamulheresecrianças:noritualquefrequenteiapenasaaricanaeraproibido.Esseinstrumentofoialimentadocombebidafermentadapayuarudurantetodooritual.Apenasaoshomenspodemépermitidotocareassopraraaricana.DeacordocomosTicuna,duranteomanejodosinstrumentosexisteumapossibilidadedeacasasubirparaocéuetodososqueestiveremládentro

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setornaremimortais.Antigamente,aFestadaMoçaNovaerafeitaparaelaverosencantados.Fazendoafestadaformacorreta,acasainteiraeralevadaparaocéudosencantados.

Jáostutusconsistememinstrumentosquepodemsertocadosportodos,deambosossexos,sejamindígenasounãoindígenas.Nodecorrerdoritual,osconvidadoschegama fazer“fila”para tocarumpouco.Mesmoo tambordetracajá,destinadoespecialmenteparaascriançasTicunatocarem(edançaremao somemitido), pode ser tocadopelo adulto convidado, seja eleTicunaounão.

Duranteaconversacomosmaisvelhos,elesmeconfidenciaramque,hojeem dia, conforme citei anteriormente, as pessoas não respeitam mais asacralidade do ritual. De acordo com alguns deles, “as crianças olham osinstrumentos, as pessoas saem para namorar no meio da festa e as moçasnamoramosprimosantesdefazeremafesta”.

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CONSIDERAÇÕESFINAIS

Considerandoqueoobjetivodestetrabalhofoietnografaroritualdamoça

nova Ticuna, descrevendo a maneira como é realizado hoje e registrandoalgumas “possíveis” traduções dos cantos que foram cantados durante esseritual, devo afirmar que nesse estudo apresento apenas de forma superficialtodoesseprocesso,poisdetalharminuciosamentetodasasetapasdeumritualnãoéfácil,aindamaissetratandodeumritualquetemduraçãodetrêsdiasdefestas,umanooualgunsmesescomseuspreparativoscomooritualdamoçanova.Dessamaneira,reservoalgumasperguntas,caminhosefuturasanálisesparaodoutorado.

Neste texto, expus a construção do ritual da moça Ticuna e as relaçõesimplicadasnesteritual,taiscomo:suaorganizaçãosocialentreclãsemetadeseas relaçõescomos“não-humanos”quepovoamocosmoseacosmologiadestepovo.

Assim,esseestudosobreoritualdamoçanovaTicunaabreumcaminhoparaacompreensãodasformaspelasquaisessesíndiospensameclassificamoritualeseusdiversossignificados,etambémcomoserelacionamedecomotaisrelaçõessãoestabelecidasevivenciadaspelogrupo.

ParaosTicuna, a realizaçãodeste ritual temumsignificadocomunitárioimportantíssimo. Acreditam os indígenas que se a festa não é realizadaqualquer um da comunidade, principalmente a moça, pode ser atacada porseres “malévolos”, “demônios” ou “imortais” e ser comida ou ficar doente.Alémdessaconsequênciaindividual,todasasfamíliasTicunacorremoriscode não terem uma boa roça e, consequentemente, uma boa colheita pelaaproximação dos seres na sua comunidade. Os Ticuna também falam quequandoumritualébemfeito todosganhamproteção,saúde,eacomunidadeprogride. Issome leva concluir queumadasprincipais razõespara fazeremessa festa é o medo desses seres “malévolos”, “demônios” ou “imortais”atacaremmortalmenteacomunidade.

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Dopontodevistacosmológico,aFestadaMoçaNovaéfeitaparaelaverosimortais.RealizandoaFestadaformacorreta,acasainteiraondeacontecea festa é levada para o “céu” dos imortais. O problema é que hoje em dia,dizemosmaisvelhos,aspessoasnãorespeitammaisasacralidadedoritual.Elescitamsupostasevidênciasdisso:segundoosanciõesdosclãs,ascriançasolhamos instrumentos,aspessoassaemparanamorarnomeioda festaeasmoças namoram os primos antes de passarem pela festa,meninas namoramcommeninasemeninosnamoramcommeninos,amoçanovanãofica tantotemporeclusadaspessoascomoantesequalquerpessoapodevereladentrodoturíeatémesmoosquenãopertencemaoclãdela.“Hojeemdiaomundoestátorto”,declaradonaLuzmarina.

O contexto ritual é ummomento singular por várias razões: é o espaçoonde os imortais podem aparecer para os mortais; momento único para asociedadeTicuna reviver amemória de seus antepassados; ocasião damoçanovaserapresentadacomoumamulherprontaparacasar;oportunidadedeamoça aprender tudo que foi passado de geração para geração; período paraensinaratodosindígenasTicunaalipresentesaculturalocaleosignificadodetodososornamentoseobjetosdoritualparaanovageraçãoeprincipalmentepara incentivar a aprendizagem dos cantos do ritual e assim assegurar quesejam cantados em outros rituais realizados na comunidade e em outrascomunidadesticuna.

Os cantos do ritual são um dos pontos principais deste ritual, apreocupação do cacique da comunidade deUmariaçú de que daqui a algunsunsanosnãohajaquemsaibacantaroscantosdoritualsoacomoumpedidodesocorro.

[...]hojenacomunidadetemosaindapessoasquecantammaissecontinuar

assim sem a vontade dos jovens aprenderem vamos acabar com os cantostradicionaisdo ritual,porqueessaspessoasnãovãoviverpara semprenestaterra.Por issoeuincentivoprincipalmenteosjovensaaprenderemoscantoscomsuafamília,parapassaremparaseusfilhosdepois(informaçãoverbal)44.

Sem dúvida o cacique não tem medido esforços para assegurar a

manutençãoda festa entreos comunitáriosdeUmariaçu I: “Hoje temosumacasaconstruídanacomunidadeparaaFestadaMoçaNova.Eraumsonhoque

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setornourealidade.Dessemodonãotemosquepararemfazeroritualporqueumafamílianãotemcasaparafazerafesta”.

Valendo-sedediferentesestratégias,seuValdirtemajudadoacomunidadea praticar sua cultura e incentivar outras comunidades ou famílias Ticuna arealizaremoritualdamoçanova:eleconvidatodosparaconstruçãodacasa;incentivaosjovensaaprenderemoscantosritualísticos;explicanasrodasdeconversa a importância do ritual para a sobrevivência de todos; enfim, SeuValdir tenta fazer com que todos sintam os efeitos simbólicos do ritual eprincipalmentedoscantosdamoçanovanavidadeles.

A experiência etnográfica e as reflexões sobre o “estar lá”, à luz dacontribuiçãodeoutrospesquisadoresdacultura ticuna, remeteànecessidadedeumaprofundamentosobreoimpactodoencontrosemprepermanenteentreosmodosde“SERticuna”comosmodosdeSER“nãoticuna”.

EsperohumildementequemeuolharsobreoritualdamoçanovaTicunapossacontribuirparadespertarnovosolharessobreessesdiferentesmodosde“ser”ou“nãoser”ticuna,naatualidade.

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1)Esta experiência ocorreu na Comunidade indígena de LauroSodré (Alto Solimões), na proximidade do município deBenjaminConstant-AM,emoutubrode2011,sobaorientaçãodoprofessorRafaelPessoaSãoPaio,queinfelizmentefaleceuem2013.↵

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2)SouindígenadaetniaTicunadanaçãoGalinha,comonomedeMETCHI’ENA. Fui adotada aos doze dias de nascida porminhamãe branca, BerlindaMoura daCosta, já falecida. quevivianacidadedeBenjaminConstant(AM).↵

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3)Tipo de fruta da região, conhecida também como a uva daAmazôniapeloseuformatoecor.↵

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4)Adissertaçãoencontra-senoprelo,disponívelparaconsultanabibliotecacentraldoPPGAS-UFAM.↵

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5)Meio de transporte comum nesta região e bastante utilizadopelosTicuna.

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6)Conformeamitologia,Ewaré éum lugarsagradoonde teriamsidooriginadososTicuna.↵

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7)NalínguaTicuna,Tonatüquerdizer“nossopai”.↵

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8)Nalínguaticunaquerdizerfestadamoçanova.↵

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9)Um longo instrumento sagrado de aconselhamento utilizadopelososhomensnafestadamoçanova.↵

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10)OGPTB,1988,texto58,produzidoporNinoFernandes.↵

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11)Barcos pequenos que servem de táxi fluvial, no trajeto deTabatinga/Benjamin Constant. Uns possuem motores de popa,sendo também chamados de rabeta por terem uma partecompridaqueligaapalhetaaomotor.↵

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12)Entrevista concedida por Paulo Mendes, na comunidade deUmariaçúI,emabr.2014.(Cadernodecampo,p.5).↵

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13)Entrevistarealizadaemabrilde2014,naFUNAIdomunicípiode Tabatinga-AM, com o coordenador Ismael AdércioCostódio.↵

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14)Dados obtidos durante entrevista concedida Sr. Alírio, naFUNAI,realizadaemabr.2014.↵

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15)Essespressupostosestãoconsignadosnasnormasdedisposiçãodos serviços públicos de saúde, educação,etnodesenvolvimentoe arranjosprodutivospara aspopulaçõesindígenas, conforme exemplificado no Decreto 1.141/94.3.2002.↵

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16)EntrevistaconcedidaporseuValcir,emabr.2014.(Cadernodecampop.4).↵

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17)Nomeque sedaauma redede rendaprotetoracontra insetosoumosquitosdaregião.↵

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18)Paraoutracontribuição,consultarPaladino(2006).↵

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19)Pequenos estabelecimentos comuns na cidade que vendembebidasemgeralepossuemsomaovivo.↵

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20)Conhecidos também como balneário, localizados nas estradasdebarrosdistantedacidade.↵

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21)No dia primeiro de fevereiro comemora-se o aniversário dacidade, geralmente com gincanas, shows e brincadeiras o diatodo.↵

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22)FestivalInternacionaldamúsicaPopularAmazonenseFinmupaemLetícia-ElPirarucúdeOro.↵

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23)Festival Interamericano de Cultura e Arte de Tabatingaacontece no mês de setembro, conta com o concurso queescolhe aMissTrípliceFronteira eoFestivalUniversitáriodaCanção.Jovensamazonensesedeoutrospaísesparticiparamdadisputa.↵

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24)Festival de tribos do Alto Solimões acontece no mês desetembroemTabatingacomadisputadasonças–aonçapretae a onça pintada. A presença indígena Ticuna é muito forteporque alguns indígenas participam desse festival comapresentações em tribos e há bastantes turistas dos paísesvizinhosquevêmprestigiar.↵

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25)SecretariaMunicipaldeEducaçãoCulturaeDesporto.↵

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26)SecretariaMunicipaldeSaúde.↵

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27)SecretariadeEstadodeEducação.↵

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28)InterlocutorTicuna,Umariaçú,2014.↵

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29)NomenalínguaindígenadaWorecüdaqualparticipei.Onomecompleto da moça é Valdinéia Batista da Silva DebünaDet’chiana,temtrezeanosepertenceaoclãBarü(ave).↵

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30)UtensílioutilizadopelosTicunaparacarregarlenha,macaxeira,bananaeetc.↵

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31)É comum entre os Ticuna terem no final de suas casas umapequenacozinhadepalhaeumfogãoalenha.Lá,elesguardamas panelas e utensílios em geral pendurados nas paredes. Asmulherescozinhamparaafamílianestelocalepassamamaiorpartedotempoládepoisdechegaremdaroça.↵

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32)Tornar seco ou assar a caça ou a pesca com o couro em umgradeadodemadeiraoudiretamentesobreasbrasas.Apóssersubmetido a esse processo, o produto pode ser consumido atéemumasemana.↵

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33)Espéciedemacacodaregião.↵

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34)InformaçãoconcedidaporDonaNelsina,emUmariaçú,em30abr.2014.(Cadernodecampo).↵

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35)InformaçãoconcedidaporFlorentina,emUmariaçú,em30abr.2014.(Cadernodecampo).↵

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36)Nome da árvore que fornece o leite usado nas pinturas dascrianças.↵

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37)Conhecidotambémcomorecinto,verFaulhaber(2002).↵

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38)Espécie de peixe grande da região conhecido também por sergordo.

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39)EntrevistaconcedidaporValdinéia,emUmariaçúI,2014.↵

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40)Foiduranteessaconversacomd.Marilzaquetiveoinsightdeusaresta frase-desabafocomo títulodestadissertação.Afinal,tinhatudoavercomapesquisa.↵

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41)EntrevistaconcedidaporMarilza,emUmariaçúI,2014.↵

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42)TrechodeconversacomNinoFernandesduranteaqualnarraomitoTicuna.BenjaminConstant,12out.2014.↵

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43)Conhecida também como I’reena (cacho pequeno de Awaí),tem45anosemoranacomunidadedeUmariaçúI.Ajudounastraduções dos cantos com muita atenção. Segundo ela, hápalavrasantigasemalgunscantosquesomenteosmaisvelhossabem o verdadeiro significado (amaioria jámorreu). Ficandoassimatraduçãomaisaproximada,emalgunscasos.↵

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44)TrechodaconversadecampocomseuValcir,emUmariaçúI,em2014.(Cadernodecampo,p.15).↵

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Sumario

AGRADECIMENTOS

APRESENTAÇÃO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I: SITUAÇÃO HISTÓRICA: DOS MITOS TICUNA AORITUALWORECÜ

Capítulo II:RITUALDAMOÇANOVANACOMUNIDADEINDÍGENAUMARIAÇÚ/TABATINGA(AM)

CapítuloIII:OSCANTOSDORITUAL

CONSIDERAÇÕESFINAIS

REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS