10
Criança A infância constitui uma faixa etária com necessidades energéticas significativamente distintas das necessidades do adulto. Nesta fase, o crescimento acentuado com concomitante ganho ponderal associa-se a um marcado desenvolvimento neuronial, condicionando um maior dispêndio energético 1 . Por sua vez, o desenvolvimento do sistema nervoso é profundamente sensível aos estados nutricionais 1 . As exigências energéticas e proteicas diárias decrescem com o avançar da idade, particularmente após a entrada na puberdade 1 (TABELA ). Como é expectável, situações de stresse como cirurgias, queimaduras ou sepsis fazem-se acompanhar por um incremento nas necessidades metabólicas, sobretudo às expensas da acção das catecolaminas, que potenciam um balanço azotado negativo 1 . O suporte nutricional preconiza-se em situações de subnutrição, preferencialmente por via entérica, assegurando-se, a priori, a integridade do tracto gastrointestinal 1 . O substrato alimentar poderá ser administrado continuamente durante a noite por sonda nasogástrica, possibilitando a alimentação normal durante o período diurno 1 . A via parentérica pode ser empregue como complemento à via entérica ou, alternativamente, nas ocasiões em que a nutrição entérica está contra-indicada 1 . Trauma

Nutrição cirúrgica

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Nutrição cirúrgicaNutrição entéricaNutrição parentéricaEstado nutricionalCasos especiaisPancreatite Pancreatite crónicaCancroTransplantesQueimadosTraumatizadosCriançasFormulações

Citation preview

Page 1: Nutrição cirúrgica

Criança

A infância constitui uma faixa etária com necessidades energéticas

significativamente distintas das necessidades do adulto. Nesta fase, o

crescimento acentuado com concomitante ganho ponderal associa-se a um

marcado desenvolvimento neuronial, condicionando um maior dispêndio

energético1. Por sua vez, o desenvolvimento do sistema nervoso é

profundamente sensível aos estados nutricionais1. As exigências energéticas e

proteicas diárias decrescem com o avançar da idade, particularmente após a

entrada na puberdade1 (TABELA).

Como é expectável, situações de stresse como cirurgias, queimaduras

ou sepsis fazem-se acompanhar por um incremento nas necessidades

metabólicas, sobretudo às expensas da acção das catecolaminas, que

potenciam um balanço azotado negativo1.

O suporte nutricional preconiza-se em situações de subnutrição,

preferencialmente por via entérica, assegurando-se, a priori, a integridade do

tracto gastrointestinal1. O substrato alimentar poderá ser administrado

continuamente durante a noite por sonda nasogástrica, possibilitando a

alimentação normal durante o período diurno1. A via parentérica pode ser

empregue como complemento à via entérica ou, alternativamente, nas

ocasiões em que a nutrição entérica está contra-indicada1.

Trauma

O trauma severo provoca um desarranjo homeostático, desencadeando,

por sua vez, a activação de vias para o restabelecimento da homeostasia,

designadamente a activação adrenérgica e indução de uma resposta

inflamatória com libertação de mediadores como o TNF-α e a IL-12. Estes

mecanismos, entre muitos outros, fomentam um estado de instabilidade

hemodinâmica e potenciam a instalação de um estado híper-metabólico, com

aumento do catabolismo de hidratos de carbono, proteínas (balanço azotado

negativo) e lípidos2,3; gliconeogénese com hiperglicemia e resistência à acção

da insulina; híper-oxidação das proteínas e gorduras e, por fim, aumento da

permeabilidade intestinal, com perda da função de barreira, facilitando a

invasão de microorganismos patogénicos2.

Page 2: Nutrição cirúrgica

O aumento do metabolismo basal pode, em casos mais severos, atingir

os 60% e, num espaço de três semanas, um indivíduo politraumatizado pode

perder 20% do armazenamento proteico corporal2. Destes 20%, cerca de 2/3

corresponde à perda de proteínas do músculo esquelético, condicionando, em

estados mais críticos, insuficiência respiratória, o que acarreta um pior

prognóstico e maior morbilidade e mortalidade2.

O suporte nutricional num doente traumatizado assenta em três pilares

essenciais: evitar o défice proteico agudo; modular a resposta inflamatória e

promover a manutenção da estrutura e da função do tracto gastrointestinal4. A

nutrição entérica é considerada o gold-standard na nutrição do doente

politraumatizado, permitindo reverter, quando iniciada precocemente, muitos

dos desarranjos metabólicos supracitados4. O aporte proteico deve ser

aumentado para 1,5 g/kg/d, aumentado concomitantemente o aporte calórico

em 50% face à taxa metabólica basal, mantendo um rácio glicose/gordura igual

a 1 para calorias não proteicas3.

Queimados

Os pacientes queimados exibem alterações metabólicas, inflamatórias e

imunológicas que se caracterizam por um stresse oxidativo exacerbado, uma

intensa resposta inflamatória e um estado híper-metabólico prolongado5.

Nestes doentes, as necessidades calóricas estão aumentadas entre 1,7

(envolvimento de 30-50% da área corporal) a 2,0 vezes (70-90% da área

corporal afectada)3. As necessidades proteicas estão aumentadas, havendo

necessidade de fornecer entre 1,5 – 2 g/kg/d de proteínas3,5. No que concerne

aos hidratos de carbono, estes devem constituir 55 a 60% do total de calorias,

não excedendo os 7 g/kg/d5. A dieta dos pacientes queimados deve conter

apenas pequenas quantidades de lípidos, tendo em conta a extrema

sensibilidade destes doentes à carga total destes nutrientes5. Os

micronutrientes e vitaminas devem ser fornecidos em níveis supranutricionais,

em compensação pelas perdas massivas por exsudação e por aumento do

stresse oxidativo5.

A nutrição entérica deve ser iniciada o mais precocemente possível,

salvaguardando previamente a integridade do tracto gastrointestinal5. O suporte

nutricional entérico permite atenuar o estado hipermetabólico, potenciar a

Page 3: Nutrição cirúrgica

resposta imunológica e reduzir o risco de subnutrição5. A via parentérica

constitui uma alternativa à via entérica em caso de contra-indicação ou falência

desta última.

Doenças Inflamatórias Intestinais (DII)

As DII (Doença de Crohn e Colite Ulcerosa) cursam, amiúde, com

subnutrição, motivada frequentemente pela anorexia induzida pela dor, pelo

aumento das perdas intestinais e pela presença de um quadro inflamatório

sistémico6,7. Em mais de 50% dos doentes ocorre balanço azotado negativo,

explicado por um menor consumo proteico, por perdas intestinais acentuadas e

por catabolismo proteico originado pelo tratamento com corticosteróides7. Para

além dos distúrbios já enumerados, é relevante mencionar a ocorrência de

défices mineralo-electrolíticos (Ca2+, K+, Mg2+, Zn, Fe) e vitamínicos,

especialmente das vitaminas lipossolúveis (Vit. A, D, E, K) e do folato6,7. Nos

doentes em idade pediátrica, a subnutrição pode traduzir-se por atrasos no

crescimento7.

As necessidades calóricas dos doentes com DII encontra-se aumentada

1,3 a 1,7 vezes, mas apenas no caso de se tratarem de doentes em regime de

ambulatório3. Decorrente das perdas proteicas previamente elencadas, é

necessário proceder a um aumento compensatório do aporte de aminoácidos3.

O suporte nutricional, de preferência por via entérica, tem como

principais objectivos: (1) O tratamento da subnutrição e do atraso no

crescimento; (2) O tratamento da fase aguda aquando da impossibilidade da

utilização de corticosteróides; (3) Melhorar a qualidade de vida; (4) Manutenção

do estado de remissão7.

Pancreatites

As pancreatites podem ser genericamente divididas em pancreatites

agudas e pancreatites crónicas. A maior parte das pancreatites agudas são

ligeiras ou moderadas, apresentado um curso autolimitado em 80% dos casos8.

Em casos ligeiros, a mortalidade é inferior a 1%9. Numa minoria de ocasiões

(15 - 20%), a doença é severa e apresenta-se com necrose pancreática,

exibindo índices de mortalidade que rondam os 19 – 30% mas que podem, em

casos extremos (com necrose extensa e/ou sepsis), atingir os 80%10.

Page 4: Nutrição cirúrgica

Na pancreatite aguda ocorre a activação dos zimogénios ainda nas

células acinares pancreáticas, gerando-se um processo de autodigestão.

Subsequentemente, monta-se uma resposta inflamatória com libertação de

citocinas proinflamatórias, activação do complemento e libertação de espécies

reactivas de oxigénio8. Estes mediadores conduzem a um estado híper-

metabólico, com híper-catabolismo proteico, estimulação da gliconeogénese,

diminuição da oxidação da glicose com resistência à insulina e híper-

lipidemia8,9. A estas perturbações metabólicas acrescem ainda défices de

micronutrientes e ainda um aumento da permeabilidade intestinal8,9.

Em casos ligeiros, os doentes podem usufruir de uma alimentação

normal, com um menor teor lipídico, sem necessidade de suporte nutricional

entérico ou parentérico9. Em casos mais severos, a nutrição por via entérica

deve ser instituída logo que seja possível, garantindo previamente que a

motilidade intestinal está preservada9,11. Por forma a evitar a estimulação da

secreção pancreática exócrina, os tubos de alimentação devem ser

posicionados no jejuno, visto que a presença de nutrientes ao nível deste

segmento intestinal gera uma menor estimulação pancreática9,11.

Levando em conta os défices acima descritos, o doente com pancreatite

aguda apresenta necessidades acrescidas de vitaminas, Ca2+ e fosfatos3. O

aporte proteico deve ser aumentado para 1,0 a 1,5 g/kg/d9,11. O controlo

rigoroso dos níveis glicémicos e de triglicerídeos tem um impacto positivo no

estado clínico dos doentes, devido ao sério risco de hiperglicemia e híper-

trigliceridemia3,11.

As pancreatites crónicas, em grande parte de etiologia alcoólica,

acompanham-se numerosas vezes por subnutrição, com origem num

decréscimo do consumo alimentar devido à dor crónica pós-prandial e na

deficiente digestão e absorção dos nutrientes9,11. A deficitária absorção de

lípidos conduz ao depauperamento em vitaminas lipossolúveis e provoca

esteatorreia, sintoma comum nestes doentes9. A maior parte dos doentes não

necessita de suporte nutricional especializado. Para estes doentes, uma

alimentação diminuída em lípidos e suplementação com enzimas pancreáticas

é suficiente9. A nutrição entérica é preconizada para os casos de subnutrição;

quando contra-indicada, a nutrição por via parentérica constitui uma alternativa

viável9.

Page 5: Nutrição cirúrgica

Cancro

A subnutrição e a perda de peso estão frequentemente presentes em

doentes neoplásicos12. A perda ponderal é um dos sintomas mais precoces em

doentes com cancro, sendo habitualmente insensível ao suporte nutricional12.

Um deficiente estado nutricional correlaciona-se com pior qualidade de vida,

menor resposta aos tratamentos, aumento das complicações relacionadas com

o tratamento, sendo as infecções o exemplo mais significativo e, por fim, menor

sobrevida12.

Nestes doentes, ocorre um desarranjo metabólico, com perturbações na

oxidação da glicose, resistência à insulina, catabolismo proteico e aumento da

lipólise12. Tendo em conta estes dados, constata-se que o metabolismo lipídico

ocorre, nestes doentes, de forma mais eficaz que o metabolismo glicídico12.

Desta forma, uma alimentação com aumento da carga lipídica pode ser

benéfica12. Para fazer face às necessidades metabólicas do doente neoplásico,

o aporte energético deve ser aumentado em 1,3 a 1,7 vezes o nível basal e o

consumo de aminoácidos deve também sofrer um incremento para 1,3 a 2,0

g/kg/d3. As calorias não proteicas devem ser administradas sob a forma de

70% de glicose e 30% de gorduras3.

Sepsis

Num quadro séptico, ocorrem alterações metabólicas que se reflectem

num aumento das necessidades energéticas, com catabolismo de proteínas e

gorduras13. Acrescendo a estes distúrbios, instala-se simultaneamente um

quadro de resistência à insulina, com potenciação da gliconeogénese e híper-

glicidemia, o que constitui um factor de mau prognóstico por atenuação da

resposta imunológica, diminuindo a capacidade de fazer frente a uma infecção

subjacente14.

O suporte nutricional nestes pacientes deve ser iniciado o mais

precocemente possível, preferivelmente por via entérica nas primeiras 24h -

48h15. O aporte calórico deve ser elevado em 30% sobre o metabolismo basal

e, por forma a compensar as enormes perdas proteicas, a administração de

proteínas deve ser reforçada para 2g/kg/d3. Os níveis de triglicerídeos devem

ser vigiados, sobretudo de a o rácio glicose vs. gordura se aproximar de 1 em

calorias não-proteicas3. Por fim, dietas enriquecidas em arginina, ácidos gordos

Page 6: Nutrição cirúrgica

ω3 e glutamina, ditas “immune-enhancing”, podem favorecer a evolução clínica

dos doentes sépticos15.

Transplantes

O tratamento da subnutrição no período que precede o transplante

permite atenuar a deterioração clínica do doente, melhorando simultaneamente

o prognóstico pós-transplante, com diminuição da mortalidade e das

complicações infecciosas16. O tratamento da subnutrição do dador (em casos

de transplante com dador vivo) permite assegurar uma melhor preservação da

capacidade funcional do órgão16. No período que sucede o transplante, a

nutrição entérica deve ser iniciada precocemente mas de forma cautelosa. Em

caso de subnutrição deve-se associar nutrição parentérica16.

1. Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics: Elsevier; 2012.2. Hill AG, Hill GL. Metabolic response to severe injury. The British journal of surgery 1998;85:884-90.3. Gonzaga R. Nutrição Cirúrgica - Princípios gerais. 2000.4. Todd SR, Kozar RA, Moore FA. Nutrition support in adult trauma patients. Nutrition in clinical practice : official publication of the American Society for Parenteral and Enteral Nutrition 2006;21:421-9.5. Rousseau AF, Losser MR, Ichai C, Berger MM. ESPEN endorsed recommendations: nutritional therapy in major burns. Clinical nutrition (Edinburgh, Scotland) 2013;32:497-502.6. Montgomery SC, Williams CM, Maxwell PJt. Nutritional Support of Patient with Inflammatory Bowel Disease. The Surgical clinics of North America 2015;95:1271-9.7. Lochs H, Dejong C, Hammarqvist F, et al. ESPEN Guidelines on Enteral Nutrition: Gastroenterology. Clinical nutrition (Edinburgh, Scotland) 2006;25:260-74.8. Abou-Assi S, O'Keefe SJ. Nutrition support during acute pancreatitis. Nutrition (Burbank, Los Angeles County, Calif) 2002;18:938-43.9. Meier R, Ockenga J, Pertkiewicz M, et al. ESPEN Guidelines on Enteral Nutrition: Pancreas. Clinical nutrition (Edinburgh, Scotland) 2006;25:275-84.10. McClave SA, Chang WK, Dhaliwal R, Heyland DK. Nutrition support in acute pancreatitis: a systematic review of the literature. JPEN Journal of parenteral and enteral nutrition 2006;30:143-56.11. Grant JP. Nutritional support in acute and chronic pancreatitis. The Surgical clinics of North America 2011;91:805-20, viii.12. Bozzetti F, Arends J, Lundholm K, Micklewright A, Zurcher G, Muscaritoli M. ESPEN Guidelines on Parenteral Nutrition: non-surgical oncology. Clinical nutrition (Edinburgh, Scotland) 2009;28:445-54.13. Chiolero R, Revelly JP, Tappy L. Energy metabolism in sepsis and injury. Nutrition (Burbank, Los Angeles County, Calif) 1997;13:45s-51s.14. Khardori R, Castillo D. Endocrine and metabolic changes during sepsis: an update. The Medical clinics of North America 2012;96:1095-105.15. Ortiz Leyba C, Montejo Gonzalez JC, Vaquerizo Alonso C. Guidelines for specialized nutritional and metabolic support in the critically-ill patient: update. Consensus SEMICYUC-SENPE: septic patient. Nutricion hospitalaria 2011;26 Suppl 2:67-71.

Page 7: Nutrição cirúrgica

16. Weimann A, Braga M, Harsanyi L, et al. ESPEN Guidelines on Enteral Nutrition: Surgery including organ transplantation. Clinical nutrition (Edinburgh, Scotland) 2006;25:224-44.