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26/08/13 O FETICHISMO DO CONCEITO DE LUS DE GUSMO: NOTAS DE LEITURA | Oliveira | Estudos de Sociologia
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CAPA SOBRE ACESSO CADASTRO PESQUISA ATUAL
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Capa > v. 1, n. 18 (2012) > Oliveira
GUSMO, Luis. (2012), O FETICHISMO DO CONCEITO: limites doconhecimento terico na investigaao social. Rio de Janeiro, Topbooks.
O FETICHISMO DO CONCEITO DE LUS DE GUSMO: NOTAS DE LEITURA
Luciano Oliveira
Uma amiga enviou-me, faz algum tempo, uma matria de jornal sobre o livro do professor
Gusmo, da Universidade de Braslia (UNB); confessava que o que ele dizia sobre
Habermas a fez rir um pouco e adiantava a impresso de que, pelo tom polmico do
autor, podia tratar-se de mais um desses tipos em busca de sucesso por meio de
provocaes exageradas. A leitura da matria despertou minha ateno e rapidamente
adquiri o livro que li com ateno e prazer, mas tambm com divergncias importantes.
Interessei-me pelo livro porque, como examinador de dissertaes e teses, identifiquei-me
com algo que dizia Gusmo na matria citada: praticamente impossvel defender um
mestrado ou doutorado sem apresentar questes tericas, cobrana dispensvel e
funesta. Achei funesta um tanto exagerado, mas tendi a concordar em grande medida
com o dispensvel. De fato, participando h anos de bancas, j partilhei idntico
sentimento. Exemplo: um mestrando que examinei certa vez, aluno excelente e dedicado,
havia adotado como seu marco terico a (para mim) impenetrvel anlise do discurso
francesa. Metade do trabalho era um captulo terico para levar concluso, a outra
metade, de que Getlio Vargas tinha um discurso... paternalista! Na ocasio ocorreu-me
uma brincadeira que expus com toda seriedade: mas como Hannah Arendt haveria
chegado concluso de que Hitler tinha um discurso totalitrio sem haver lido Pcheux?...
O livro de Gusmo adota tom provocativo bem maior do que o meu. O que ele diz sobre
autores como Habermas que qualifica de entediante pastor de almas (p. 111) e
Bourdieu que define como o narodinick [sic] universitrio (p. 107) beira o desrespeito.
Tais diatribes do algum suporte suspeita de minha amiga. Digo algum porque o livro de
Gusmo longe est de ser apenas um arrasa-quarteiro. Mas ele se compraz em bater com
tal furor os usos e costumes vigentes na academia brasileira que a suspeita de
provocaes exageradas, de certa forma, se confirma. Isso dito, adianto que O
Fetichismo do Conceito um livro bem vindo pelas provocaes (desta vez sem aspas) que
faz, devendo ser lido e meditado nos nossos departamentos de cincias sociais, com seus
cacoetes exageradamente teoricistas para falar como o autor, com quem concordo
neste particular.
Por fetichismo do conceito Gusmo entende a atitude que leva a ilaes dedutivistas a
partir de simples contedos conceituais (p. 163). Um bom exemplo de como funciona o
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mecanismo aparece numa crtica a Srgio Buarque de Holanda, que em Razes do Brasil
considerado por Gusmo como o mais frgil dos seus livros adota a figura do
aventureiro como um tipo-ideal definidor do colonizador portugus no Brasil. Como
sabido, Srgio estabelece o que seria o seu ethos essencial: um tipo humano cujo ideal
colher o fruto sem plantar a rvore. Gusmo reprocha Holanda por haver adotado a
idia geral de uma forma mentis aventureira [...], empregada para explicar, em termos
dedutivos, um vasto e disparatado conjunto de fenmenos sociais (p. 230). O autor
parece-me convincente nessa crtica, e transcrevo um dos momentos em que surpreende o
mecanismo em funcionamento:
O Brasil no conheceu, assegura Srgio Buarque, uma
civilizao tipicamente agrcola, pois os filhos de Portugal aqui
chegados jamais manifestaram esse zelo carinhoso pela terra
[...], assumindo antes uma atitude imediatista, perdulria e
imprevidente [...]. Uma evidncia disso podia ser encontrada nos
processos de explorao do solo adotados pelos colonos (p.
242).
o caso das tcnicas agrcolas empregadas pelos recm-chegados, que substituram o
velho arado europeu pela simples enxada (p. 244), j usada pelos nativos e que os
portugueses haveriam preguiosamente se limitado a copiar. Ora, imediatamente aps
haver feito tais consideraes, Srgio, entretanto, constata que nas circunstncias
concretas nas quais se situavam os colonos [...], as tcnicas agrcolas adotadas, como, por
exemplo, o uso predominante da enxada no lugar do arado, acabavam se revelando
perfeitamente adequadas (p. 245 itlicos meus). O exemplo mostra como, submetido ao
teste da validao emprica, o tipo-ideal do aventureiro mostra-se inadequado para
abarcar as vrias e heterogneas particularidades do real a que supostamente se aplicaria.
Em lugar desse mecanismo dedutivista, Gusmo prope o que chama de investigaes
conteudsticas e atericas (p. 21) designao que, pessoalmente, considero um tanto
rebarbativa, e que tentarei adiante aclarar.
Como j realcei de passagem, no so poucas minhas concordncias com o autor. Aquilo
que disse a propsito de Hannah Arendt e sua sensata concluso de que Hitler tinha uma
proposta totalitria, mesmo sem a autora de Origens do Totalitarismo haver lido a anlise
do discurso francesa, por exemplo, encaixa-se bem no que Gusmo diz a propsito do
saber produzido fora do establishment acadmico e bem antes de sua institucionalizao:
Seria [...] um lamentvel erro imaginar que no passado, antes
do advento [...] da Sociologia profissional, observadores atentos
e argutos da vida coletiva, valendo-se apenas de conceitos do
senso comum expressos na linguagem corrente, no foram
capazes de vislumbrar com a devida nitidez aqueles fenmenos
sociais mais tarde visibilizados por conceitos sociolgicos
formulados num jargo tcnico (p. 167 itlicos meus).
O destaque que dei a senso comum deve-se ao fato de tal conceito figurar com destaque
no que diz Gusmo a respeito das investigaes conteudsticas e atericas, apesar de no
lhe dispensar um tratamento sistemtico ou, em momento algum, problematiz-lo como,
a meu ver, deveria. A tese mais arrojada do livro curta e grossa: o conhecimento nas
cincias sociais no constitui uma ruptura com o saber de senso comum, como provam as
obras de autores como Flaubert e Dostoievski:
[...]grandes observadores da condio humana que se
expressaram apenas na linguagem natural empregada nas
rotinas da vida cotidiana, no realizaram, na verdade, tal
ruptura. Eles viam mais longe simplesmente porque eram mais
lcidos e mais sbios que a maioria de ns. Apenas isso (p. 39).
Sem esconder para que lado pende sua preferncia, Gusmo procede a uma distino
importante: de um lado, h o que ele chama de investigaes conteudsticas e atericas,
como vimos, terreno frequentado por gente do naipe de Flaubert e Dostoievski; de outro,
as investigaes caracterizadas como apoiadas em teorias gerais (p. 21), apangio dos
nossos departamentos de cincias sociais onde o fetichismo conceitual campeia.
Demarcam-se, assim, dois campos ainda que, na prtica, eles no sejam estanques: as
investigaes conteudsticas e atericas produzindo o que Gusmo tambm chama
sugestivamente de paisagens seriam mais prprias ao campo da Histria; e as
investigaes apoiadas em teorias, por seu lado, seriam mais prprias s Cincias Sociais
basicamente a Sociologia e a Antropologia, j que Gusmo no se refere tradicional
coirm das duas primeiras, a Cincia Poltica.
Gusmo da opinio de que as investigaes do segundo tipo testemunham um inequvoco
fracasso, chegando a dizer que no contm seno enormes trivialidades numa
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linguagem to obscura quanto pedante (p. 161). Para ele, as cincias sociais, no
possuindo um corpo de leis consensualmente aceitas pela comunidade dos cientistas, como
acontece com as cincias normais (Thomas Kuhn), no produzem explicaes
qualitativamente distintas daquelas cuja base terica consiste to somente nas melhores
generalizaes do conhecimento de senso comum, como se encontra na literatura realista e
na historiografia de qualidade. Diz e le, podemos encontrar estudos sociolgicos ou
antropolgicos nos quais as explicaes causais oferecidas so essencialmente
conteudsticas e atericas, embora seus autores insistam na apresentao quase ritual de
credenciais tericas (p. 21 itlicos meus). Aqui preciso esclarecer que atericas no
se confunde com o empirismo mais ingnuo. Gusmo no nega que o conhecimento dos
fenmenos sociais deve ir alm do simples registro descritivo e superficial dos
fenmenos, e est consciente da necessidade de hipteses preliminares em qualquer
trabalho de investigao social: Essas hipteses que determinam, entre outras coisas,
quais dados devem ser coligidos a um certo momento da investigao (p. 181, n. 95). Isso
dito, ele enftico, porm, ao afirmar que:
[...] perfeitamente possvel sim, no mbito das investigaes
sociais, levantar problemas fecundos, sugerir hipteses
plausveis e estabelecer detalhados planos de observao, sem
qualquer base terica, se se entendem por isso as contribuies
particulares da moderna teoria social (p.34 itlicos meus).
Mais claro, impossvel. Mas, finalmente, o que seriam as investigaes desse tipo isto ,
sem base terica? Para Gusmo, elas consistiriam numa explicao causal
empiricamente orientada da vida social em toda sua riqueza e complexidade, algo que
requer sempre inventrios exaustivos de variveis contextuais e um uso qualificado do
conhecimento do geral (p. 163). Vista de chofre, convenhamos que a definio no brilha
pelo excesso de clareza. Mas, para facilitar nossa tarefa, lembremos que Gusmo elege
como modelo desse tipo de investigao aquilo que ordinariamente feito pelos (bons)
historiadores, a exemplo do que faz um Evaldo Cabral de Mello ao estudar o Brasil
holands ou a insurreio pernambucana de 1817. Mas Gusmo comete aqui, a meu ver,
uma espcie de sofisma: os exemplos que d de investigaes bem sucedidas so de
autores como, no passado, Tocqueville e Joaquim Nabuco, e, contemporaneamente,
Braudel e Le Goff, mas tambm Evaldo Cabral de Mello. Ora, todos eles so basicamente
historiadores! Isso, verdade, coerente com a tese por ele defendida de que na
Histria onde se encontram os melhores estudos conteudsticos e atericos aqueles que
ele elege como o modelo por excelncia de investigaes sobre o social. na Histria, com
efeito, que mais fcil natural at pintar paisagens. S que na Antropologia e, mais
ainda, na Sociologia, bem menos! O sofisma, a meu ver, reside no fato de o autor tomar o
que seria a vocao de um dos campos, a Histria, para julgar os feitos de um outro, o das
Cincias Sociais.
Entendamo-nos. A diviso do conhecimento sobre o social em escaninhos com nomes como
Histria, Antropologia, Sociologia etc. , em grande medida, artificial, fruto bem mais de
uma diviso social do trabalho intelectual e seus respectivos interesses corporativos do que
de uma diferena ontolgica entre esses domnios. Isso dito, e no me alongando muito,
existe algo chamado Sociologia, um campo institucional dotado de certas particularidades
metodolgicas que incluem, num contraponto o que no quer dizer oposio com as
paisagens pintadas pelos historiadores e as etnografias tecidas pelos antroplogos, a
construo de dados agregados que permitem ver camadas subterrneas da realidade no
facilmente acessveis ao olhar normalmente desarmado o que quer dizer, na verdade,
encharcado de pr-conceitos do homem comum. Gusmo reconhece que os autores da
moderna teoria social, que ele tanto maltrata, podem ser de grande valia nessa empresa
de desvendamento do real chegando, num momento exemplar de honestidade, a incluir o
prprio Bourdieu! Diz ele:
Um investigador bem informado [...], alertado por A. Schutz, P.
Berger, A. Giddens e P. Bourdieu [sic!], poder investigar o
saber tcito, no reflexivo nem articulado num corpo sistemtico
de ideias, do qual se valem, na vida cotidiana, os membros de
uma determinada coletividade. [...] Marx abrir os seus olhos
para as relaes sociais de produo vigentes, alm de adverti-lo
para a relevncia do estudo dessas relaes numa compreenso
da vida poltica e espiritual. [...] ...e por a afora.
Mas Gusmo no se desarma. Imediatamente, ele se recompe e passa a reafirmar pela
ensima vez sua antipatia pela teoria, afirmando que:
[...]no temos aqui qualquer passagem do conteudstico ao
terico, se se entende por isso a efetiva superao, assegurada
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pela posse de novas ferramentas intelectuais, do inventrio
exaustivo das constelaes singulares e contingentes das
variveis relevantes para uma caracterizao e/ou explicao
causal de uma dada paisagem social (p. 79 itlicos meus).
O socilogo levado a se perguntar: mas, o saber no reflexivo de Bourdieu e Cia, bem
como as relaes sociais de produo de Marx, no seriam justamente as ferramentas
intelectuais que permitem a superao do inventrio exaustivo das constelaes
singulares, levando possibilidade de um conhecimento mais terico da realidade?
Gusmo diria que no! Para ele,
[...]no seria difcil encontrar no conhecimento social e
psicolgico de senso comum, em uso nas melhores investigaes
conteudsticas da vida coletiva, um nmero considervel de
luminosas generalizaes acerca dos seres humanos e suas
interaes mais durveis (p. 100).
Aqui, francamente, acho que ele est fazendo malabarismos verbais: em que, finalmente,
as generalizaes a que se refere se diferenciariam da teoria que os socilogos prezam
e ele tanto detesta? Falei antes nas possibilidades heursticas dos dados agregados, to
familiares Sociologia, a meu ver, muito importantes para superar o saber no reflexivo
em que tanto se compraz o senso comum. Dou um exemplo inspirado por meus prprios
interesses de pesquisador. Faz parte do senso comum a afirmao de que os pobres
delinquem mais evidncia atestada pela enorme proporo de pobres nas cadeias. Ora,
um olhar desarmado, partindo do pressuposto de que quem comete crimes vai preso,
concluir pela exatido da afirmao. Mas se esse olhar se dispuser a ler o que diz um
Howard Becker sobre o que esse autor chama de etiquetamento (questo: trata-se de
uma generalizao ou de uma teoria?...), comear, sendo honesto, a duvidar
seriamente do pressuposto, pois tomar conscincia de que os pobres, por sua fragilidade,
esto mais propensos a serem pegos pelas malhas da lei do que os bem nascidos ou
seja, a serem mais etiquetados.
Alis, tantos e repetidos enaltecimentos ao senso comum levam a uma questo adicional:
no estaria Gusmo caindo noutro tipo de fetichismo? Afinal, o que vem a ser isso?
Ocorre-me a impresso de que ele usa o conceito no sentido ingls do termo (o common
sense), cujo significado vai reconhecidamente bem alm daquele veiculado pela mesma
expresso, numa traduo literal, entre ns. Para ver isso, vamos aos dicionrios.
Remetendo-me ao famoso Collins (English Language Dictionary), deparo-me com a
seguinte definio para o verbete common sense: is a persons natural ability to make
good judgements and to behave in a practical and sensible way. No sentido inverso, nosso
Aurlio d ao verbete senso comum a definio seguinte: conjunto de opinies e modos de
sentir que, por serem postos pela tradio aos indivduos de uma determinada poca, local
ou grupo social, so geralmente aceitos de modo acrtico como verdades (itlicos meus).
Minha impresso a de que Gusmo est querendo se referir antes a bom-senso do que a
senso comum, pelo menos em bom vernculo. Alis, em um momento pelo menos deve
haver outros o leitor atento surpreender o uso do primeiro termo num trecho em que
critica o que seria a ingenuidade de um antroplogo que leve ao p da letra o que lhe
informam os nativos, sem decodificar o que tais falas podem esconder de autoengano,
racionalizao ou engodo puro e simples e completa: Na realidade, apenas indivduos
particularmente tolos e estpidos poderiam ignorar tais possibilidades. Pessoas dotadas de
um mnimo de inteligncia e bom-senso no costumam, na vida cotidiana, proceder assim
(p. 205 itlico meu). Gusmo, mesmo consciente da possibilidade de tais leros-leros
mostra-se, estranhamente, muito condescendente em relao ao senso comum que, como
sabemos, acomoda-se muito bem com enganos e racionalizaes justificadoras...
verdade que ele no se exime de enderear algumas exigncias aos operadores do seu
conceito to querido. Assim, seus investigadores ideais no podero dispensar inteligncia,
plausibilidade (p. 39) e boa documentao (102-103); o ideal, certo, que sejam
filsofos, literrios e artistas de gnio (p. 107); mas, sendo um homem comum, dever
ser inteligente e bem informado (184), alm de agir com ateno e seriedade (p. 333)
e por a vai! Reconheo que neste passo estou sendo irnico. Mas a ironia me sugerida
pelo prprio Gusmo, que se pe, em determinado momento, ao que parece ser uma
brincadeira, para no dizer provocao desta vez com aspas. Atracando-se outra vez
com Bourdieu, comete a seguinte graola a respeito do conhecido conceito de poder
simblico:
[...]j podemos encontrar em Pascal, um filsofo do sculo XVII
que, naturalmente, no leu Bourdieu, um lcido, claro e divertido
registro da realidade do poder simblico. Pascal quem
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observa: Isto admirvel: no se quer que eu preste honras a
um homem vestido de brocados e seguido de sete ou oito
lacaios. O qu! Ele me mandar dar umas correadas. Aquela
roupa uma fora (p. 168).
O trecho ilustra perfeio o princpio de que frases pinadas de qualquer autor so
capazes de dizer praticamente tudo que queremos que ele diga. Alis, pensando no fato de
que Pascal era um cristo, ocorreu-me outra graola: Ora, nesse caso, por que no ir
diretamente Bblia? Pois bem, fui. Fui e achei mais de uma definio do poder simblico,
acompanhada, alis, do seu desmascaramento. E no precisei ir muito longe. J no
primeiro dos Evangelhos, quando Jesus censura os escribas e fariseus, est escrito: no
os imiteis nas suas obras; porque dizem e no fazem. [...] Praticam [...] todas as suas
obras com o fim de serem vistos dos homens; [...] alargam os seus filactrios e alongam
as suas franjas. (MT., 23: 3-6).
Voltemos ao srio. Como disse mais de uma vez, o livro de Gusmo importante pelas
relevantes questes que levanta. Acho, porm, que ele excessivamente intolerante com
as bases tericas que circulam nos departamentos de Cincias Sociais. Talvez muitos
anos de participao em bancas de teses, onde tais bases figuram mais como mantras
muitas vezes recitados quando no engolidos sem convico do que como autnticas
bases de onde se extraem ou onde se afinam hipteses de pesquisa com as quais, numa
palavra, se dialoga , hajam provocado certa radicalizao, expressa pela recusa
frequentemente raivosa de autores importantes para o desvendamento de camadas nem
sempre evidentes do real, bem como uma discutvel valorizao do senso comum.
Confesso, de minha parte, partilhar algo do ar blas que parece ser o seu o tempo todo.
Adianto, alis, que estou longe de ser sempre um encantado com o conhecimento
produzido pelas Cincias Sociais e correlatas que, entre outras asneiras, j produziram o
racismo cientfico do sculo XIX. Mas quem, afinal, desmontou com propriedade essa
teoria seno, em primeiro lugar, a prpria cincia? Penso num exemplo clebre, o ambguo
e controverso Gilberto Freyre que Gusmo no cita uma nica vez. Pernambucano
formado na nostalgia da casa-grande, Gilberto tinha, sem dvida, uma sensibilidade
aristocrtica. Mas, a partir do clebre encontro com a obra de Franz Boas, um dos
fundadores da moderna antropologia, o menino de engenho, que no fundo nunca deixou
inteiramente de ser, descobriu que raa e cultura so coisas diversas, e com isso inverteu
o jogo do pensamento racialista brasileiro. Ou seja, no foi com base no senso comum
vigente no mundo em que nasceu que Freyre escreveu Casa-Grande & Senzala. Tudo isso
nos levaria longe. Surge, por exemplo, uma questo interessante: a antropologia
antirracista do sculo XX parece-nos epistemologicamente (para no falar moralmente)
mais perto da verdade do que a antropologia racista do sculo XIX. Haveria ento um
progresso nas Cincias Sociais anlogo ao que h nas cincias normais? Questo prenhe
de questes, como diria Machado. Fica para outra vez.
ApontamentosNo h apontamentos.
@ 2012 - PPGS - Revista do Programa de Ps-Graduao em
Sociologia da UFPE.
ISSN Impresso 1415-000X
ISSN Eletrnico 2317-5427