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26/08/13 “O FETICHISMO DO CONCEITO” DE LUÍS DE GUSMÃO: NOTAS DE LEITURA | Oliveira | Estudos de Sociologia www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/article/view/64/51 1/5 Ajuda do sistema USUÁRIO Login Senha Lembrar usuário Acesso IDIOMA Português (Brasil) CAPA SOBRE ACESSO CADASTRO PESQUISA ATUAL ANTERIORES Capa > v. 1, n. 18 (2012) > Oliveira GUSMÃO, Luis. (2012), O FETICHISMO DO CONCEITO : limites do conhecimento teórico na investigaçao social. Rio de Janeiro, Topbooks. O FETICHISMO DO CONCEITO” DE LUÍS DE GUSMÃO: NOTAS DE LEITURA Luciano Oliveira Uma amiga enviou-me, faz algum tempo, uma matéria de jornal sobre o livro do professor Gusmão, da Universidade de Brasília (UNB); confessava que o que ele dizia sobre Habermas a fez “rir um pouco” e adiantava a impressão de que, pelo tom polêmico do autor, podia tratar-se de “mais um desses tipos em busca de sucesso por meio de provocações exageradas”. A leitura da matéria despertou minha atenção e rapidamente adquiri o livro – que li com atenção e prazer, mas também com divergências importantes. Interessei-me pelo livro porque, como examinador de dissertações e teses, identifiquei-me com algo que dizia Gusmão na matéria citada: “É praticamente impossível defender um mestrado ou doutorado sem apresentar questões teóricas, cobrança dispensável e funesta”. Achei “funesta” um tanto exagerado, mas tendi a concordar em grande medida com o “dispensável”. De fato, participando há anos de bancas, já partilhei idêntico sentimento. Exemplo: um mestrando que examinei certa vez, aluno excelente e dedicado, havia adotado como seu “marco teórico” a (para mim) impenetrável análise do discurso francesa. Metade do trabalho era um capítulo teórico para levar à conclusão, a outra metade, de que Getúlio Vargas tinha um discurso... paternalista! Na ocasião ocorreu-me uma brincadeira que expus com toda seriedade: mas como Hannah Arendt haveria chegado à conclusão de que Hitler tinha um discurso totalitário sem haver lido Pêcheux?... O livro de Gusmão adota tom provocativo bem maior do que o meu. O que ele diz sobre autores como Habermas – que qualifica de “entediante pastor de almas” (p. 111) – e Bourdieu – que define como “o narodinick [sic] universitário” (p. 107) – beira o desrespeito. Tais diatribes dão algum suporte à suspeita de minha amiga. Digo algum porque o livro de Gusmão longe está de ser apenas um arrasa-quarteirão. Mas ele se compraz em bater com tal furor os usos e costumes vigentes na academia brasileira que a suspeita de “provocações exageradas”, de certa forma, se confirma. Isso dito, adianto que O Fetichismo do Conceito é um livro bem vindo pelas provocações (desta vez sem aspas) que faz, devendo ser lido e meditado nos nossos departamentos de ciências sociais, com seus cacoetes exageradamente “teoricistas” – para falar como o autor, com quem concordo neste particular. Por “fetichismo do conceito” Gusmão entende a atitude que leva a “ilações dedutivistas a partir de simples conteúdos conceituais” (p. 163). Um bom exemplo de como funciona o

“O FETICHISMO DO CONCEITO” DE LUÍS DE GUSMÃO_ NOTAS DE LEITURA _ Oliveira _ Estudos de Sociologia

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  • 26/08/13 O FETICHISMO DO CONCEITO DE LUS DE GUSMO: NOTAS DE LEITURA | Oliveira | Estudos de Sociologia

    www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/article/view/64/51 1/5

    Ajuda do sistema

    USUR I O

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    Acesso

    I DI O MA

    Portugus (Brasil)

    CAPA SOBRE ACESSO CADASTRO PESQUISA ATUAL

    ANTERIORES

    Capa > v. 1, n. 18 (2012) > Oliveira

    GUSMO, Luis. (2012), O FETICHISMO DO CONCEITO: limites doconhecimento terico na investigaao social. Rio de Janeiro, Topbooks.

    O FETICHISMO DO CONCEITO DE LUS DE GUSMO: NOTAS DE LEITURA

    Luciano Oliveira

    Uma amiga enviou-me, faz algum tempo, uma matria de jornal sobre o livro do professor

    Gusmo, da Universidade de Braslia (UNB); confessava que o que ele dizia sobre

    Habermas a fez rir um pouco e adiantava a impresso de que, pelo tom polmico do

    autor, podia tratar-se de mais um desses tipos em busca de sucesso por meio de

    provocaes exageradas. A leitura da matria despertou minha ateno e rapidamente

    adquiri o livro que li com ateno e prazer, mas tambm com divergncias importantes.

    Interessei-me pelo livro porque, como examinador de dissertaes e teses, identifiquei-me

    com algo que dizia Gusmo na matria citada: praticamente impossvel defender um

    mestrado ou doutorado sem apresentar questes tericas, cobrana dispensvel e

    funesta. Achei funesta um tanto exagerado, mas tendi a concordar em grande medida

    com o dispensvel. De fato, participando h anos de bancas, j partilhei idntico

    sentimento. Exemplo: um mestrando que examinei certa vez, aluno excelente e dedicado,

    havia adotado como seu marco terico a (para mim) impenetrvel anlise do discurso

    francesa. Metade do trabalho era um captulo terico para levar concluso, a outra

    metade, de que Getlio Vargas tinha um discurso... paternalista! Na ocasio ocorreu-me

    uma brincadeira que expus com toda seriedade: mas como Hannah Arendt haveria

    chegado concluso de que Hitler tinha um discurso totalitrio sem haver lido Pcheux?...

    O livro de Gusmo adota tom provocativo bem maior do que o meu. O que ele diz sobre

    autores como Habermas que qualifica de entediante pastor de almas (p. 111) e

    Bourdieu que define como o narodinick [sic] universitrio (p. 107) beira o desrespeito.

    Tais diatribes do algum suporte suspeita de minha amiga. Digo algum porque o livro de

    Gusmo longe est de ser apenas um arrasa-quarteiro. Mas ele se compraz em bater com

    tal furor os usos e costumes vigentes na academia brasileira que a suspeita de

    provocaes exageradas, de certa forma, se confirma. Isso dito, adianto que O

    Fetichismo do Conceito um livro bem vindo pelas provocaes (desta vez sem aspas) que

    faz, devendo ser lido e meditado nos nossos departamentos de cincias sociais, com seus

    cacoetes exageradamente teoricistas para falar como o autor, com quem concordo

    neste particular.

    Por fetichismo do conceito Gusmo entende a atitude que leva a ilaes dedutivistas a

    partir de simples contedos conceituais (p. 163). Um bom exemplo de como funciona o

  • 26/08/13 O FETICHISMO DO CONCEITO DE LUS DE GUSMO: NOTAS DE LEITURA | Oliveira | Estudos de Sociologia

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    mecanismo aparece numa crtica a Srgio Buarque de Holanda, que em Razes do Brasil

    considerado por Gusmo como o mais frgil dos seus livros adota a figura do

    aventureiro como um tipo-ideal definidor do colonizador portugus no Brasil. Como

    sabido, Srgio estabelece o que seria o seu ethos essencial: um tipo humano cujo ideal

    colher o fruto sem plantar a rvore. Gusmo reprocha Holanda por haver adotado a

    idia geral de uma forma mentis aventureira [...], empregada para explicar, em termos

    dedutivos, um vasto e disparatado conjunto de fenmenos sociais (p. 230). O autor

    parece-me convincente nessa crtica, e transcrevo um dos momentos em que surpreende o

    mecanismo em funcionamento:

    O Brasil no conheceu, assegura Srgio Buarque, uma

    civilizao tipicamente agrcola, pois os filhos de Portugal aqui

    chegados jamais manifestaram esse zelo carinhoso pela terra

    [...], assumindo antes uma atitude imediatista, perdulria e

    imprevidente [...]. Uma evidncia disso podia ser encontrada nos

    processos de explorao do solo adotados pelos colonos (p.

    242).

    o caso das tcnicas agrcolas empregadas pelos recm-chegados, que substituram o

    velho arado europeu pela simples enxada (p. 244), j usada pelos nativos e que os

    portugueses haveriam preguiosamente se limitado a copiar. Ora, imediatamente aps

    haver feito tais consideraes, Srgio, entretanto, constata que nas circunstncias

    concretas nas quais se situavam os colonos [...], as tcnicas agrcolas adotadas, como, por

    exemplo, o uso predominante da enxada no lugar do arado, acabavam se revelando

    perfeitamente adequadas (p. 245 itlicos meus). O exemplo mostra como, submetido ao

    teste da validao emprica, o tipo-ideal do aventureiro mostra-se inadequado para

    abarcar as vrias e heterogneas particularidades do real a que supostamente se aplicaria.

    Em lugar desse mecanismo dedutivista, Gusmo prope o que chama de investigaes

    conteudsticas e atericas (p. 21) designao que, pessoalmente, considero um tanto

    rebarbativa, e que tentarei adiante aclarar.

    Como j realcei de passagem, no so poucas minhas concordncias com o autor. Aquilo

    que disse a propsito de Hannah Arendt e sua sensata concluso de que Hitler tinha uma

    proposta totalitria, mesmo sem a autora de Origens do Totalitarismo haver lido a anlise

    do discurso francesa, por exemplo, encaixa-se bem no que Gusmo diz a propsito do

    saber produzido fora do establishment acadmico e bem antes de sua institucionalizao:

    Seria [...] um lamentvel erro imaginar que no passado, antes

    do advento [...] da Sociologia profissional, observadores atentos

    e argutos da vida coletiva, valendo-se apenas de conceitos do

    senso comum expressos na linguagem corrente, no foram

    capazes de vislumbrar com a devida nitidez aqueles fenmenos

    sociais mais tarde visibilizados por conceitos sociolgicos

    formulados num jargo tcnico (p. 167 itlicos meus).

    O destaque que dei a senso comum deve-se ao fato de tal conceito figurar com destaque

    no que diz Gusmo a respeito das investigaes conteudsticas e atericas, apesar de no

    lhe dispensar um tratamento sistemtico ou, em momento algum, problematiz-lo como,

    a meu ver, deveria. A tese mais arrojada do livro curta e grossa: o conhecimento nas

    cincias sociais no constitui uma ruptura com o saber de senso comum, como provam as

    obras de autores como Flaubert e Dostoievski:

    [...]grandes observadores da condio humana que se

    expressaram apenas na linguagem natural empregada nas

    rotinas da vida cotidiana, no realizaram, na verdade, tal

    ruptura. Eles viam mais longe simplesmente porque eram mais

    lcidos e mais sbios que a maioria de ns. Apenas isso (p. 39).

    Sem esconder para que lado pende sua preferncia, Gusmo procede a uma distino

    importante: de um lado, h o que ele chama de investigaes conteudsticas e atericas,

    como vimos, terreno frequentado por gente do naipe de Flaubert e Dostoievski; de outro,

    as investigaes caracterizadas como apoiadas em teorias gerais (p. 21), apangio dos

    nossos departamentos de cincias sociais onde o fetichismo conceitual campeia.

    Demarcam-se, assim, dois campos ainda que, na prtica, eles no sejam estanques: as

    investigaes conteudsticas e atericas produzindo o que Gusmo tambm chama

    sugestivamente de paisagens seriam mais prprias ao campo da Histria; e as

    investigaes apoiadas em teorias, por seu lado, seriam mais prprias s Cincias Sociais

    basicamente a Sociologia e a Antropologia, j que Gusmo no se refere tradicional

    coirm das duas primeiras, a Cincia Poltica.

    Gusmo da opinio de que as investigaes do segundo tipo testemunham um inequvoco

    fracasso, chegando a dizer que no contm seno enormes trivialidades numa

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    linguagem to obscura quanto pedante (p. 161). Para ele, as cincias sociais, no

    possuindo um corpo de leis consensualmente aceitas pela comunidade dos cientistas, como

    acontece com as cincias normais (Thomas Kuhn), no produzem explicaes

    qualitativamente distintas daquelas cuja base terica consiste to somente nas melhores

    generalizaes do conhecimento de senso comum, como se encontra na literatura realista e

    na historiografia de qualidade. Diz e le, podemos encontrar estudos sociolgicos ou

    antropolgicos nos quais as explicaes causais oferecidas so essencialmente

    conteudsticas e atericas, embora seus autores insistam na apresentao quase ritual de

    credenciais tericas (p. 21 itlicos meus). Aqui preciso esclarecer que atericas no

    se confunde com o empirismo mais ingnuo. Gusmo no nega que o conhecimento dos

    fenmenos sociais deve ir alm do simples registro descritivo e superficial dos

    fenmenos, e est consciente da necessidade de hipteses preliminares em qualquer

    trabalho de investigao social: Essas hipteses que determinam, entre outras coisas,

    quais dados devem ser coligidos a um certo momento da investigao (p. 181, n. 95). Isso

    dito, ele enftico, porm, ao afirmar que:

    [...] perfeitamente possvel sim, no mbito das investigaes

    sociais, levantar problemas fecundos, sugerir hipteses

    plausveis e estabelecer detalhados planos de observao, sem

    qualquer base terica, se se entendem por isso as contribuies

    particulares da moderna teoria social (p.34 itlicos meus).

    Mais claro, impossvel. Mas, finalmente, o que seriam as investigaes desse tipo isto ,

    sem base terica? Para Gusmo, elas consistiriam numa explicao causal

    empiricamente orientada da vida social em toda sua riqueza e complexidade, algo que

    requer sempre inventrios exaustivos de variveis contextuais e um uso qualificado do

    conhecimento do geral (p. 163). Vista de chofre, convenhamos que a definio no brilha

    pelo excesso de clareza. Mas, para facilitar nossa tarefa, lembremos que Gusmo elege

    como modelo desse tipo de investigao aquilo que ordinariamente feito pelos (bons)

    historiadores, a exemplo do que faz um Evaldo Cabral de Mello ao estudar o Brasil

    holands ou a insurreio pernambucana de 1817. Mas Gusmo comete aqui, a meu ver,

    uma espcie de sofisma: os exemplos que d de investigaes bem sucedidas so de

    autores como, no passado, Tocqueville e Joaquim Nabuco, e, contemporaneamente,

    Braudel e Le Goff, mas tambm Evaldo Cabral de Mello. Ora, todos eles so basicamente

    historiadores! Isso, verdade, coerente com a tese por ele defendida de que na

    Histria onde se encontram os melhores estudos conteudsticos e atericos aqueles que

    ele elege como o modelo por excelncia de investigaes sobre o social. na Histria, com

    efeito, que mais fcil natural at pintar paisagens. S que na Antropologia e, mais

    ainda, na Sociologia, bem menos! O sofisma, a meu ver, reside no fato de o autor tomar o

    que seria a vocao de um dos campos, a Histria, para julgar os feitos de um outro, o das

    Cincias Sociais.

    Entendamo-nos. A diviso do conhecimento sobre o social em escaninhos com nomes como

    Histria, Antropologia, Sociologia etc. , em grande medida, artificial, fruto bem mais de

    uma diviso social do trabalho intelectual e seus respectivos interesses corporativos do que

    de uma diferena ontolgica entre esses domnios. Isso dito, e no me alongando muito,

    existe algo chamado Sociologia, um campo institucional dotado de certas particularidades

    metodolgicas que incluem, num contraponto o que no quer dizer oposio com as

    paisagens pintadas pelos historiadores e as etnografias tecidas pelos antroplogos, a

    construo de dados agregados que permitem ver camadas subterrneas da realidade no

    facilmente acessveis ao olhar normalmente desarmado o que quer dizer, na verdade,

    encharcado de pr-conceitos do homem comum. Gusmo reconhece que os autores da

    moderna teoria social, que ele tanto maltrata, podem ser de grande valia nessa empresa

    de desvendamento do real chegando, num momento exemplar de honestidade, a incluir o

    prprio Bourdieu! Diz ele:

    Um investigador bem informado [...], alertado por A. Schutz, P.

    Berger, A. Giddens e P. Bourdieu [sic!], poder investigar o

    saber tcito, no reflexivo nem articulado num corpo sistemtico

    de ideias, do qual se valem, na vida cotidiana, os membros de

    uma determinada coletividade. [...] Marx abrir os seus olhos

    para as relaes sociais de produo vigentes, alm de adverti-lo

    para a relevncia do estudo dessas relaes numa compreenso

    da vida poltica e espiritual. [...] ...e por a afora.

    Mas Gusmo no se desarma. Imediatamente, ele se recompe e passa a reafirmar pela

    ensima vez sua antipatia pela teoria, afirmando que:

    [...]no temos aqui qualquer passagem do conteudstico ao

    terico, se se entende por isso a efetiva superao, assegurada

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    pela posse de novas ferramentas intelectuais, do inventrio

    exaustivo das constelaes singulares e contingentes das

    variveis relevantes para uma caracterizao e/ou explicao

    causal de uma dada paisagem social (p. 79 itlicos meus).

    O socilogo levado a se perguntar: mas, o saber no reflexivo de Bourdieu e Cia, bem

    como as relaes sociais de produo de Marx, no seriam justamente as ferramentas

    intelectuais que permitem a superao do inventrio exaustivo das constelaes

    singulares, levando possibilidade de um conhecimento mais terico da realidade?

    Gusmo diria que no! Para ele,

    [...]no seria difcil encontrar no conhecimento social e

    psicolgico de senso comum, em uso nas melhores investigaes

    conteudsticas da vida coletiva, um nmero considervel de

    luminosas generalizaes acerca dos seres humanos e suas

    interaes mais durveis (p. 100).

    Aqui, francamente, acho que ele est fazendo malabarismos verbais: em que, finalmente,

    as generalizaes a que se refere se diferenciariam da teoria que os socilogos prezam

    e ele tanto detesta? Falei antes nas possibilidades heursticas dos dados agregados, to

    familiares Sociologia, a meu ver, muito importantes para superar o saber no reflexivo

    em que tanto se compraz o senso comum. Dou um exemplo inspirado por meus prprios

    interesses de pesquisador. Faz parte do senso comum a afirmao de que os pobres

    delinquem mais evidncia atestada pela enorme proporo de pobres nas cadeias. Ora,

    um olhar desarmado, partindo do pressuposto de que quem comete crimes vai preso,

    concluir pela exatido da afirmao. Mas se esse olhar se dispuser a ler o que diz um

    Howard Becker sobre o que esse autor chama de etiquetamento (questo: trata-se de

    uma generalizao ou de uma teoria?...), comear, sendo honesto, a duvidar

    seriamente do pressuposto, pois tomar conscincia de que os pobres, por sua fragilidade,

    esto mais propensos a serem pegos pelas malhas da lei do que os bem nascidos ou

    seja, a serem mais etiquetados.

    Alis, tantos e repetidos enaltecimentos ao senso comum levam a uma questo adicional:

    no estaria Gusmo caindo noutro tipo de fetichismo? Afinal, o que vem a ser isso?

    Ocorre-me a impresso de que ele usa o conceito no sentido ingls do termo (o common

    sense), cujo significado vai reconhecidamente bem alm daquele veiculado pela mesma

    expresso, numa traduo literal, entre ns. Para ver isso, vamos aos dicionrios.

    Remetendo-me ao famoso Collins (English Language Dictionary), deparo-me com a

    seguinte definio para o verbete common sense: is a persons natural ability to make

    good judgements and to behave in a practical and sensible way. No sentido inverso, nosso

    Aurlio d ao verbete senso comum a definio seguinte: conjunto de opinies e modos de

    sentir que, por serem postos pela tradio aos indivduos de uma determinada poca, local

    ou grupo social, so geralmente aceitos de modo acrtico como verdades (itlicos meus).

    Minha impresso a de que Gusmo est querendo se referir antes a bom-senso do que a

    senso comum, pelo menos em bom vernculo. Alis, em um momento pelo menos deve

    haver outros o leitor atento surpreender o uso do primeiro termo num trecho em que

    critica o que seria a ingenuidade de um antroplogo que leve ao p da letra o que lhe

    informam os nativos, sem decodificar o que tais falas podem esconder de autoengano,

    racionalizao ou engodo puro e simples e completa: Na realidade, apenas indivduos

    particularmente tolos e estpidos poderiam ignorar tais possibilidades. Pessoas dotadas de

    um mnimo de inteligncia e bom-senso no costumam, na vida cotidiana, proceder assim

    (p. 205 itlico meu). Gusmo, mesmo consciente da possibilidade de tais leros-leros

    mostra-se, estranhamente, muito condescendente em relao ao senso comum que, como

    sabemos, acomoda-se muito bem com enganos e racionalizaes justificadoras...

    verdade que ele no se exime de enderear algumas exigncias aos operadores do seu

    conceito to querido. Assim, seus investigadores ideais no podero dispensar inteligncia,

    plausibilidade (p. 39) e boa documentao (102-103); o ideal, certo, que sejam

    filsofos, literrios e artistas de gnio (p. 107); mas, sendo um homem comum, dever

    ser inteligente e bem informado (184), alm de agir com ateno e seriedade (p. 333)

    e por a vai! Reconheo que neste passo estou sendo irnico. Mas a ironia me sugerida

    pelo prprio Gusmo, que se pe, em determinado momento, ao que parece ser uma

    brincadeira, para no dizer provocao desta vez com aspas. Atracando-se outra vez

    com Bourdieu, comete a seguinte graola a respeito do conhecido conceito de poder

    simblico:

    [...]j podemos encontrar em Pascal, um filsofo do sculo XVII

    que, naturalmente, no leu Bourdieu, um lcido, claro e divertido

    registro da realidade do poder simblico. Pascal quem

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    observa: Isto admirvel: no se quer que eu preste honras a

    um homem vestido de brocados e seguido de sete ou oito

    lacaios. O qu! Ele me mandar dar umas correadas. Aquela

    roupa uma fora (p. 168).

    O trecho ilustra perfeio o princpio de que frases pinadas de qualquer autor so

    capazes de dizer praticamente tudo que queremos que ele diga. Alis, pensando no fato de

    que Pascal era um cristo, ocorreu-me outra graola: Ora, nesse caso, por que no ir

    diretamente Bblia? Pois bem, fui. Fui e achei mais de uma definio do poder simblico,

    acompanhada, alis, do seu desmascaramento. E no precisei ir muito longe. J no

    primeiro dos Evangelhos, quando Jesus censura os escribas e fariseus, est escrito: no

    os imiteis nas suas obras; porque dizem e no fazem. [...] Praticam [...] todas as suas

    obras com o fim de serem vistos dos homens; [...] alargam os seus filactrios e alongam

    as suas franjas. (MT., 23: 3-6).

    Voltemos ao srio. Como disse mais de uma vez, o livro de Gusmo importante pelas

    relevantes questes que levanta. Acho, porm, que ele excessivamente intolerante com

    as bases tericas que circulam nos departamentos de Cincias Sociais. Talvez muitos

    anos de participao em bancas de teses, onde tais bases figuram mais como mantras

    muitas vezes recitados quando no engolidos sem convico do que como autnticas

    bases de onde se extraem ou onde se afinam hipteses de pesquisa com as quais, numa

    palavra, se dialoga , hajam provocado certa radicalizao, expressa pela recusa

    frequentemente raivosa de autores importantes para o desvendamento de camadas nem

    sempre evidentes do real, bem como uma discutvel valorizao do senso comum.

    Confesso, de minha parte, partilhar algo do ar blas que parece ser o seu o tempo todo.

    Adianto, alis, que estou longe de ser sempre um encantado com o conhecimento

    produzido pelas Cincias Sociais e correlatas que, entre outras asneiras, j produziram o

    racismo cientfico do sculo XIX. Mas quem, afinal, desmontou com propriedade essa

    teoria seno, em primeiro lugar, a prpria cincia? Penso num exemplo clebre, o ambguo

    e controverso Gilberto Freyre que Gusmo no cita uma nica vez. Pernambucano

    formado na nostalgia da casa-grande, Gilberto tinha, sem dvida, uma sensibilidade

    aristocrtica. Mas, a partir do clebre encontro com a obra de Franz Boas, um dos

    fundadores da moderna antropologia, o menino de engenho, que no fundo nunca deixou

    inteiramente de ser, descobriu que raa e cultura so coisas diversas, e com isso inverteu

    o jogo do pensamento racialista brasileiro. Ou seja, no foi com base no senso comum

    vigente no mundo em que nasceu que Freyre escreveu Casa-Grande & Senzala. Tudo isso

    nos levaria longe. Surge, por exemplo, uma questo interessante: a antropologia

    antirracista do sculo XX parece-nos epistemologicamente (para no falar moralmente)

    mais perto da verdade do que a antropologia racista do sculo XIX. Haveria ento um

    progresso nas Cincias Sociais anlogo ao que h nas cincias normais? Questo prenhe

    de questes, como diria Machado. Fica para outra vez.

    ApontamentosNo h apontamentos.

    @ 2012 - PPGS - Revista do Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia da UFPE.

    ISSN Impresso 1415-000X

    ISSN Eletrnico 2317-5427